segunda-feira, 30 de maio de 2011

A Tempestade - Ato II

ATO II
Cena I
(Outra parte da ilha. Entram Alonso, Sebastião, Antônio, Gonzalo, Adriano, Francisco e outros.)
GONZALO - Por obséquio, senhor, ficai alegre. Tendes motivo, como nós, de júbilo, pois de muito
ultrapassa o que salvamos a tudo o que perdemos. Nossa causa de tristeza é comum. Todos os dias unia
mulher de marinheiro, o chefe de algum barco de carga, ou mesmo o dono desse barco, o mesmíssimo
motivo têm de tristeza. Mas no que respeita ao milagre, refiro-me, sem dúvida, à nossa salvação, poucas
pessoas falarão como nós. Por isso, penso, caro senhor, que contrabalançadas estão as perdas com o que
lucramos.
ALONSO - Cala-te, por obséquio.
SEBASTIÃO - Essas palavras são para ele tal qual um caldo frio.
ANTÔNIO - Mas o visitador ainda insiste.
SEBASTIÃO - O relógio do espírito ele apresta; vai dar horas.
GONZALO - Senhor!
SEBASTIÃO - Uma! Falai.
GONZALO - Quando as tristezas são assim tratadas, sabeis o que se ganha?
SEBASTIÃO - Sei; um dólar.
GONZALO - Isso mesmo: uma dor. Falastes com mais acerto do que poderíeis imaginar.
SEBASTIÃO - E vós interpretastes o dito com mais espírito do que eu esperava que o fizésseis.
GONZALO - Assim sendo, meu senhor...
ANTÔNIO - Oh céus! Como ele é pródigo com a língua!
ALONSO - Por favor, parai com isso.
GONZALO - Já parei. Contudo...
SEBASTIÃO - Ele precisa continuar a falar.
ANTÔNIO - Quem será o primeiro a cantar: ele ou Adriano? Vamos apostar?
SEBASTIÃO - O galo velho.
ANTÔNIO - Não, o novo.
SEBASTIÃO - Feito. Quanto apostamos?
ANTÔNIO - Uma gargalhada.
SEBASTIÃO - Aceito.
ADRIANO - Conquanto esta ilha pareça deserta...
SEBASTIÃO - Ah, ah, ah! Já estais pago.
ADRIANO - Inabitada e quase inacessível...
SEBASTIÃO - Contudo...
ADRIANO - Contudo...
ANTÔNIO - Ele não poderia deixar de achá-la.
ADRIANO - Precisará ser de sutil, doce e agradável temperança.
ANTÔNIO - Temperança era uma rapariga delicada.
SEBASTIÃO - E Sutil, como ele disse com muita erudição.
ADRIANO - Sentimos-lhe o suave bafejo.
SEBASTIÃO - Como de pulmões podres.
ANTÔNIO - Ou como se tivesse sido perfumado por um pântano.
GONZALO - Tudo aqui é vantajoso para a vida.
ANTÔNIO - Sim, com exceção dos mantimentos.
SEBASTIÃO - Que é o que não se encontra, ou muito pouco.
GONZALO - Que aparência fresca e agradável a desta relva! Como é verde!
ANTÔNIO - Realmente; o chão é aleonado.
SEBASTIÃO - Com uma pequena tonalidade verde.
ANTÔNIO - Ele quase não erra.
SEBASTIÃO - Realmente; apenas afasta-se por completo da verdade.
GONZALO - Mas o mais raro de tudo isso, que, por assim dizer, é inacreditável..
. SEBASTIÃO - Como se dá com a maioria das raridades muito recomendadas...
GONZALO - ... é que as nossas vestes, molhadas, como o foram, pela água do mar, nada perderam do
frescor e do lustre. Mais parecem tingidas pela água do mar, do que manchadas por ela.
ANTÔNIO - Se ao menos um de seus bolsos pudesse falar, tachá-lo-ia de mentiroso.
SEBASTIÃO - A menos que embolsasse com habilidade os seus dizeres.
GONZALO - Tenho a impressão de que nossas vestes estão agora tão frescas como quando as pusemos
pela primeira vez na África, no casamento de Claribel, a bela filha do rei, com o Príncipe de Túnis.
SEBASTIÃO - Foi um belo casamento, tendo sido nós, ao retorno, muito bem sucedidos.
ADRIANO - Nunca Túnis tivera a graça de possuir uma rainha tão incomparável.
GONZALO - É certo; desde o tempo da viúva Dido.
ANTÔNIO - Viúva, como? A peste que a carregue! Por que essa viúva, agora? Ora, a viúva Dido!
SEBASTIÃO - E se ele tivesse dito também: o viúvo Enéias? Como interpretais as coisas?
ADRIANO - "A viúva Dido"; não foi o que dissestes? Levastes-me a refletir sobre o caso; ela não era de
Túnis, mas de Cartago.
GONZALO - Essa Túnis, senhor, era Cartago.
ADRIANO - Cartago?
GONZALO - Posso assegurar-vos: Cartago.
ANTÔNIO - Sua palavra pesa mais do que a harpa miraculosa.
SEBASTIÃO - Não levantou apenas muralhas, mas também casas.
ANTÔNIO - Qual será o próximo impossível que ele vai deixar fácil?
SEBASTIÃO - Sou de pensar que ele acabará levando a ilha no bolso, para casa, a fim de dá-la para o
filho, como uma maçã.
ANTÔNIO - Cujas sementes ele semeará no mar, para que nasçam mais ilhas.
ALONSO - Como?
ANTÔNIO - Sim, no tempo certo.
GONZALO (a Alonso) - Estávamos dizendo, senhor, que nossas vestes parecem agora tão frescas como
quando nos encontrávamos em Túnis, no casamento de vossa filha, hoje rainha.
ANTÔNIO - A mais completa rainha que já foi ter àquelas plagas.
SEBASTIÃO - Com licença: se excetuarmos a viúva Dido.
ANTÔNIO - Oh! a viúva Dido! Sim, a viúva Dido.
GONZALO - Meu gibão, senhor, não está tão fresco como no primeiro dia em que o vesti? Quero dizer,
de certo modo.
ANTÔNIO - Um modo muito bem pescado.
GONZALO - Quando o vesti no casamento de vossa filha...
ALONSO - Entupis-me os ouvidos com palavras que de todo me são insuportáveis. Antes em tal lugar
nunca eu tivesse casado minha filha, pois, à volta, perdi meu filho, como também a ela, porque da Itália
estando tão distante, jamais a reverei. Ó, meu herdeiro de Milão e de Nápoles, que estranho peixe terá de
ti feito alimento?
FRANCISCO - Senhor, provavelmente ainda está vivo. Vi-o por cima das ondas, a batê-las, as cristas
cavalgando-lhes. Das águas a cólera afastava, a avançar sempre, e opondo o peito à túmida corrente;
mantinha a ousada fronte sempre acima das ondas contenciosas e remava com os braços fortes mui
galhardamente, em direção à praia, que, inclinada sobre a base batida pelo oceano, parecia, abaixando-se,
ajudá-lo. Tenho quase certeza de que pôde salvo alcançar a praia.
ALONSO - Não; morreu.
SEBSTIÃO - A vós, senhor, é que deveis dar graças por semelhante perda. Não quisestes à nossa Europa
conceder a graça de possuir vossa filha, preferindo vir a perdê-la para um africano, onde banida a tendes,
para sempre, dos olhos que com causa ora a pranteiam.
ALONSO - Paz, por obséquio.
SEBASTIÃO - Todos nós, de joelhos, instantes, vos pedimos, e ela própria - bela alma! - vacilante se
mostrava sobre o prato a pender: o da obediência ou o da aversão. Perdemos vosso filho, receio-o, para
sempre. Mais viúvas ganhou Milão e Nápoles com isso do que homens poderíamos levar-lhes para
consolo delas, e foi tudo, tudo por vossa culpa.
ALONSO - A maior perda também me coube em sorte.
GONZALO - Sebastião, essas verdades são inoportunas e indelicadas; arranhais a úlcera, em vez de
pôr-lhe emplastro.
SEBASTIÃO - Muito bem.
ANTÔNIO - E cirurgicamente doutrinado.
GONZALO - Para nós todos, meu senhor, o tempo fica ruim, quando ficais nublado.
SEBASTIÃO - Muito ruim?
ANTÔNIO - Horrível.
GONZALO - Se eu tivesse nesta ilha, meu senhor, uma lavoura...
ANTÔNIO - Urtiga plantaria.
SEBASTIÃO - Ou malva e grama.
GONZALO - E eu, que faria, se rei dela fosse?
SEBASTIÃO - Não vos embriagaríeis, por não terdes vinho para beber.
GONZALO - Não; na república faria tudo pelos seus contrários, pois não admitiria espécie alguma de
comércio; de magistrados, nada, nem mesmo o nome; o estudo ficaria ignorado de todo; suprimiria, de
vez, ricos e pobres e os serviços; contratos, sucessões, questões de terra, demarcações, cuidados da
lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada. Nenhum uso, também, de óleo e de vinho, trigo e metal.
Ocupação, nenhuma. Todos os homens, ociosos, todos. E as mulheres, também; mas inocentes e puras.
Faltaria, de igual modo, soberania...
SEBASTIÃO - Mas o rei era ele.
ANTÔNIO - Da república o fim esquece o início.
GONZALO - Todas as coisas em comum seriam, sem suor nem esforço, produzidas pela natura.
Espadas, espingardas, facas, chuços, traições e felonias, eu não admitiria. A natureza produziria tudo por
si mesma, só para alimentar meu povo ingênuo.
SEBASTIÃO - E casamentos, haveria entre eles?
ANTÔNIO - Não, meu caro senhor; vadios todos: vilãos e prostitutas.
GONZALO - De tal modo governaria, que deitara sombra à própria idade de ouro.
SEBASTIÃO - Deus vos guarde, majestade!
ANTÔNIO - Gonzalo viva! Viva!
GONZALO - E vós, senhor, não me estais ouvindo?
ALONSO - Pára, por obséquio; para mim não falaste coisa nenhuma.
GONZALO - Acredito no que diz Vossa Alteza; mas assim fiz, para aproveitar a oportunidade de
mostrar a estes cavalheiros que eles são de pulmões tão delicados e sensíveis, que riem por coisa
nenhuma.
ANTÔNIO - Estávamos rindo de vós.
GONZALO - De mim, que em matéria de gracejos, sou coisa nenhuma para vós. Assim, continuais a rir
de coisa nenhuma.
ANTÔNIO - Que golpe certeiro!
SEBASTIÃO - Se não bateu de lado.
GONZALO - Sois cavalheiros de humor valente, capazes de levantar de sua esfera a lua, no caso de vir
ela a ficar cinco semanas sem se modificar.
(Entra Ariel, invisível, tocando música solene.)
SEBASTIÃO - Sim, faríamos isso, para depois irmos caçar morcegos com archotes.
ANTÔNIO - Não vos agasteis, meu caro senhor.
GONZALO - Tranqüilizai-vos; não vou perder o senso assim com tanta facilidade. Sinto os olhos
pesados; quereis rir, vendo-me dormir?
ANTÔNIO - Dormi e escutai-nos.
(Todos adormecem, com exceção de Alonso, Sebastião e Antônio.)
ALONSO - Como assim! Já dormiram? Tão depressa? Quem me dera que os olhos, a um só tempo, se
me fechassem e estes pensamentos! Mas parece que estão propensos a isso.
SEBASTIÃO - Não recuseis sua pesada oferta; mui raramente ele visita a mágoa, mas, quando o faz, é
de real consolo.
ANTÔNIO - Nós dois, caro senhor, vos guardaremos. Velaremos, enquanto repousardes, por vossa
segurança.
ALONSO - Agradecido. Cansaço extraordinário!
(Adormece. Ariel sai.)
SEBASTIÃO - Que curiosa fadiga se apossou de todos eles!
ANTÔNIO - Sem dúvida é do clima.
SEBASTIÃO - E nossas pálpebras, por que não baixa o clima? Não me sinto sonolento.
ANTÔNIO - Nem eu, tampouco. Tenho despertos os espíritos. Caíram todos a um tempo, como por
vontade. Parecem sucumbidos por um raio. Meu digno Sebastião, que poderíamos... Sim, que nos fora...
Não; sobrestejamos nisso por ora. No entretanto, leio-te no rosto tudo o que podias ser. E a ocasião que te
chama. A minha vívida fantasia percebe uma coroa que te baixa à cabeça.
SEBASTIÃO - Estás desperto?
ANTÔNIO - Não ouves minha voz?
SEBASTIÃO - Ouço. Contudo, é uma linguagem sonolenta. Falas do fundo de teu sono. Que disseste?
Repouso extraordinário, esse; com os olhos abertos, e a dormir; de pé, falando, movendo-te, e a dormir
pesadamente.
ANTÔNIO - Meu nobre Sebastião, deixas a tua adormecer, morrer de todo, piscar, enquanto ficas
acordado.
SEBASTIÃO - Roncas distintamente. Há algum sentido nesse teu ronco.
ANTÔNIO - Estou falando sério, mais do que de costume, o que devíeis fazer também, porque me
compreendesseis. Assim, tua valia triplicara.
SEBASTIÃO - Sou uma água parada.
ANTÔNIO - Vou mostrar-vos como ela há de correr.
SEBASTIÃO - Fazei-o; minha preguiça hereditária me encoraja mais a refluir.
ANTÔNIO - Oh! Se soubésseis quanto dais força à idéia assim zombando dela! Quanto, torcendo aos
termos o sentido, os deixais ajustados a vós mesmo! E certo, quem reflui, por vezes chega quase a tocar o
fundo, seja a causa disso o medo ou a preguiça.
SEBASTIÃO - Fala logo. O rosto e os olhos te anunciam algo cujo parto te custa muitas dores.
ANTÔNIO - Então, senhor, ouvi. Conquanto aquele nobre ali, de memórias um tanto fraca e que mais
fraca há de ficar, depois que ele baixar à terra, tenha quase persuadido o monarca - pois é o espírito da
persuasão, sem que outra coisa faça, a não ser isso mesmo - que seu filho ainda está vivo... Tão absurdo é
que este não se tenha afogado como a esse homem que ali dorme nadar.
SEBASTIÃO - Não tenho a mínima esperança de que ele haja escapado.
ANTÔNIO - Oh! Como dessa mínima esperança vos nasce uma esperança muito grande! Não ter sobre
isto a mínima esperança, é ter sobre outra coisa uma tão grande, que a própria vista da ambição não pode
devassar-lhe os arcanos, duvidando de quanto ali descobre. Concedeis-me que Ferdinando pereceu?
SEBASTIÃO - Concedo.
ANTÔNIO - Podeis dizer-me, então, quem seja o herdeiro mais próximo do trono?
SEBASTIÃO - Claribel.
ANTÔNIO - A Rainha de Túnis, que demora dez léguas para além da vida humana, que notícias não
pode ter de Nápoles, salvo se o sol servisse de correio - fora lerdo demais o homem da lua - antes de um47]
queixo recém-nado achar-se no ponto de barbear-se? Ela, por causa de quem fomos tragados pelas ondas,
embora alguns se vissem vomitados por elas outra vez, para que parte tomar pudessem numa grande peça
em que o passado é prólogo e o futuro depende só de nós?
SEBASTIÃO - Que trapalhada! Como dissestes? É verdade: a filha de meu irmão rainha ora é de Túnis;
herdeira ela é de Nápoles, havendo algum espaço entre esses dois países.
ANTÔNIO - Sim, mas espaço em que todos os cúbitos nos parecem gritar: "De que maneira há de a volta
medir-nos para Nápoles essa tal Claribel? Que fique em Túnis, e acorde Sebastião!" Ora, admitamos que
a morte fosse que a estes dominasse neste momento. Não se encontrariam em pior situação. Vive quem
pode Nápoles governar tão bem como esse que dorme ali estendido, como há nobres tão faladores como
esse Gonzalo, desnecessariameflte tagarela. Eu, também, se o quisesse, poderia papaguear como ele. Oh,
se tivésseis meu modo de pensar! Como este sono em vossa promoção vos ajudara! Compreendeis-me?
SEBASTIÃO - Parece que compreendo.
ANTÔNIO - E como aplaudireis a vossa dita?
SEBASTIÃO - Lembro-me agora que já destronastes vosso irmão Próspero.
ANTÔNIO - É verdade. Vede como estas vestes me vão bem no corpo; muito melhor do que antes. Os
vassalos de meu irmão, meus companheiros eram; hoje são meus criados.
SEBASTIÃO - Quanto à vossa consciência...
ANTÔNIO - Ora, senhor! Onde é que há isso? Se fosse uma frieira, obrigar-me-ia a calçar as chinelas;
mas no peito não sinto essa deidade. Se coubessem entre mim e Milão vinte consciências poderiam gelar
e derreter-se, sem que me molestassem. Ali se acha vosso irmão. Em verdade, não valera mais do que a
terra sobre que repousa, se fosse o que parece ser: defunto, sendo que eu poderia facilmente, com este
aço obediente - usando apenas três polegadas dele - para sempre deixá-lo preso ao leito. De igual modo
faríeis vós, lançando num silêncio que nunca acabe aquele velho traste, o tal senhor Conselho, que, desta
arte, não nos censuraria. Quanto aos outros, aceitam sugestões tão facilmente como os gatinhos, leite.
Estão dispostos a fazer soar as horas quantas vezes lhes dissermos que é tempo.
SEBASTIÃO - Caro amigo, teu caso é o meu fanal. Do mesmo modo que obtiveste Milão, hei de obter
Nápoles. Saca da espada; um golpe vai livrar-te de um tributo, enquanto eu, teu soberano, te votarei
afeto.
ANTÔNIO - Saquemos juntos; ao levantar a mão, fazei o mesmo para atacar Gonzalo.
SEBASTIÃO - Uma palavra!
(Conversam à parte. Música. Toma a entrar Ariel, invisível.)
ARIEL - Meu mestre, graças à sua parte, soube do perigo em que está seu grande amigo. Por isso me
mandou - que, do contrário, lhe falharia o plano - porque a vida te conservasse nesta conjuntura. (Canta
ao ouvido de Gonzalo.)
Enquanto dormes tranqüilo,
a traição, como do estilo,
está desperta.
Se ainda tens amor à vida,
põe fim à sesta comprida.
Alerta! Alerta!
ANTÔNIO - Então, sejamos rápidos.
GONZALO - Agora, bons anjos, amparai o rei.
(Despertam.)
ALONSO - Que é isso? Que é isso? Despertai! Por que arrancastes das espadas? Por que esse olhar de
fantasma?
GONZALO - Que aconteceu?
SEBASTIÃO - Enquanto nós estávamos a vos vigiar o sono, cuidadosos, um ruído cavo ouvimos, qual
rugido de touros ou de leões. Não acordastes? Para mim era um ruído insuportável.
ALONSO - Não ouvi nada disso.
ANTÔNIO - Oh! Um estrondo de apavorar o ouvido até de um monstro, de produzir um terremoto.
Certo, era o rugir de leões em grandes bandos.
ALONSO - Gonzalo, ouvistes algo?
GONZALO - Por minha honra, senhor, ouvi apenas um sussurro muito estranho, realmente, que, de
pronto, me fez ficar desperto. Sacudi-vos, senhor, e vos chamei. Foi quando os olhos abri, vendo as
espadas assim nuas. Houve barulho, é certo; é mais prudente de guarda nós ficarmos, ou mudarmos de
lugar. Arranquemos as espadas.
ALONSO - Saiamos logo, para procurarmos meu pobre filho.
GONZALO - Possa o céu guardá-lo dessas feras terríveis, pois é certo encontrar-se nesta ilha.
ALONSO - Vamos logo.
(Sai com os outros.)
ARIEL - O que o mestre mandou, cumpri com brilho. Parte, rei, à procura de teu filho.
(Sai.)

Cena II
(Outra parte da ilha. Entra Calibã, com uma carga de lenha. Ouve-se ruído de trovão.)
CALIBÃ - Que quantas infecções o sol aspira dos atoleiros, dos pauis e charcos, sobre Próspero caiam,
morte lenta fazendo-o padecer. Necessidade tenho de amaldiçoá-lo, muito embora seus espíritos me
ouçam. E verdade que eles só me beliscam, me amedrontam com visagem de duendes, só me atiram nos
lodaçais, ou do caminho certo, no escuro, me desviam, sob a forma de tições movediços, quando
Próspero os manda assim fazer. Mas por coisinhas de nada sobre mim eles se atiram, às vezes como
monos careteiros, que os dentes batem e depois me mordem; sob a forma de porco-espinho, às vezes, que
suas pontas eriçam, machucando-me demais os pés desnudos. Outras vezes, fico todo envolvido por
serpentes que me sibilam com suas línguas bífidas, de me deixarem louco.
(Entra Trínculo.)
Justamente! Eis um de seus espíritos. Só veio para me atormentar, por eu ser tardo no transporte da
lenha. Vou deitar-me rente ao chão; pode ser que não me veja.
TRÍNCULO - Por aqui não há nem bosques, nem arbustos, para a gente se resguardar do tempo, e já se
anuncia nova tempestade. Já ouço assobiar o vento. Aquela nuvem escura lá embaixo, aquela grande ali,
parece-se com um alforje sujo, que esteja prestes a derramar o seu conteúdo. Se trovejar como da outra
vez, não sei onde esconder a cabeça. Aquela nuvem não poderá deixar de despejar-se aos baldes. - Olá!
Que temos aqui? E homem ou peixe? Está vivo ou morto? E peixe; o cheiro é de peixe, esse ve lho cheiro
de ranço, que lembra muito a peixe, no jeito de bacalhau meio passado. Mas, que peixe esquisito! Se eu
estivesse agora na Inglaterra - como já me aconteceu de outra feita - e fosse dono deste peixe pelo menos
em pintura, não haveria tolo de feira que não pagasse uma moeda de prata para vê-lo. Este monstro me
deixaria homem. Naquela terra não há animal estranho que não faça homens. Não dão um ceitil para
auxiliar um aleijado, mas darão dez para ver um índio morto. As pernas são como as de gente; as
barbatanas parecem braços... E está quente, por minha fé! Abandono minha primeira idéia; não é peixe,
mas um insulano que a trovoada derrubou. (trovões.) Ai de mim! Recomeça a tempestade. O melhor que
tenho a fazer é ficar debaixo do manto dele; em toda a redondeza não há outro abrigo. A necessidade nos
faz habituar com estranhos companheiros de leito. Vou esconder-me aqui, até que passe a borra da
tempestade.
(Entra Estéfano, cantando, com zona garrafa na mão.)
ESTÉFANO - Jamais ao mar voltarei. Desejo morrer na praia... Essa melodia é multo lúgubre para o
enterro de uma pessoa. Muito bem. Aqui está o meu consolo. (Bebe.) O comandante, o contramestre e
eu, e o grumete também, gostávamos do Meg, Isbel e Iseu; mas de Kate, ninguém, porque nos espachava
com risota: "Vai te enforcar, idiota!"Não gostava de piche e de alcatrão; mas o alfaiate nela punha a mão.
Ao mar, rapazes! Ela que se enforque! Essa também é tétrica; mas aqui tenho o consolo.
(Bebe.)
CALIBÃ - Não me atormentem, oh!
ESTÉFANO - Que será isso? Teremos demônios por aqui? Pregai-nos peças, fantasiando-vos de
selvagens e homens da Índia? Ah! Não escapei de morrer afogado, para ter medo desses quatro pés. É
dito conhecido: não há homem de quatro pés que me faça ceder terreno; o que poderá ser repetido
enquanto Estéfano respirar pelo nariz.
CALIBÃ - O espírito me atormenta, oh!
ESTÉFANO - Deve ser um monstro da ilha, com quatro pernas, que provavelmente apanhou febre. Mas
onde diabo terá ele aprendido nossa linguagem? Que não seja por mais nada, vou dar-lhe algum
fortificante. Se o deixar bom e puder domesticá-lo e levá-lo comigo para Nápoles, será presente para
qualquer imperador que ande sobre couro de boi.
CALIBÃ - Por favor, não me atormentes mais; levo já a lenha para casa.
ESTÉFANO - Está com acesso agora, não havendo muito senso no que fala.Vou dar-lhe a prova da
minha garrafa. Se ele nunca bebeu vinho, há muita probabilidade de livrar-se da febre. Se o deixar bom e
o domesticar, não terá sido muito grande o desembolso; quem ficar com ele, pagará com sobra.
CALIBÃ - Por enquanto, não me atormentas muito; mas dentro de pouco irás fazê-lo, vejo-o pelo teu
tremor. Neste momento Próspero está influindo sobre ti.
ESTÉFANO - Criai ânimo! Abri a boca. Isto, gato, vos fará soltar a língua. Abri a boca; isto vos sacudirá
o próprio tremor, é o que vos digo à maravilha.
(Dá de beber a Calibã.)
Ninguém sabe onde tem um amigo. Abri novamente a mandíbula.
TRÍNCULO - Parece-me que conheço essa voz. Deve ser de... Não, pereceu afogado; estes aqui são
demônios. Oh! Defendei-me!
ESTÉFANO - Quatro pernas e duas vozes; é um monstro primoroso. Com voz da frente, fala bem dos
amigos; com a de trás calunia e pronuncia discursos horrorosos. Se bastar todo o vinho de minha garrafa,
hei de cura-lhe a febre. Vamos. Amém. Vou pôr também um pouco naquela outra boca.
TRÍNCULO - Estéfano!
ESTÉFANO - A tua outra boca me chamou pelo nome? Piedade! Piedade! Não é monstra, é demônio.
Vou deixá-lo; não tenho comigo uma colher grande.
TRÍNCULO - Estéfano! Se fores Estéfano, toca-me e fala-me, porque sou Trínculo. Não tenhas medo;
sou o teu bom amigo Trínculo.
ESTÉFANO - Se fores Trínculo, vem para cá. Vou puxar-te pelas pernas mais curtas. Se aqui há pernas
de Trínculo, têm de ser forçosamente estas. És Trínculo, em verdade! Mas como é que ficaste sendo o
excremento deste bezerro da lua? Será que ele expele Trínculos?
TRÍNCULO - Pensei que ele houvesse sido vítima de raio. Mas não morreste afogado, Estéfano? Tenho
esperança, agora, de que não tivesses morrido, realmente. Já passou a tempestade? De medo da
tempestade, escondi-me debaixo da capa do bezerro da lua. E tu, Estéfano, estás vivo? Oh, Estéfano!
Dois napolitanos salvos!
ESTÉFANO - Por favor, não me vires desse jeito; não tenho o estômago muito firme.
CALIBÃ (à parte) - Se são espíritos, são coisa fina. Aquele é um deus valente, que me pode dar licor
celestial; vou ajoelhar-me.
ESTÉFANO - Como escapaste? Como chegaste até aqui? Jura-me por esta garrafa como conseguiste
escapar. Eu me salvei em cima de uma barrica de xerez que os marinheiros atiraram ao mar. Juro por esta
garrafa que eu fiz de uma casca de árvore com minhas próprias mãos, depois que fui lançado à praia.
CALIBÃ - Quero jurar por essa garrafa que ficarei sendo teu vassalo fiel, porque esse licor não é terreno.
ESTÉFANO - Aqui! E agora jura-me: como conseguiste escapar?
TRÍNCULO - Nadando para a praia, homem, como um pato. Nado como um pato, posso jurá-lo.
ESTÉFANO - Aqui, beija o livro.
(Dá a Trínculo a garrafa.)
Podes nadar como um pato, mas foste feito como um ganso.
TRÍNCULO - O Estéfano, ainda há mais?
ESTÉFANO - Uma barrica inteira, homem. Minha adega fica num rochedo perto do mar. Foi lá que eu
escondi o vinho. Então, bezerro da lua, como vai a febre?
CALIBÃ - Não caíste do céu?
ESTÉFANO - Caí da lua, posso asseverar-te. Já houve tempo em que eu era o homem da lua.
CALIBÃ - Eu já te vi dentro dela e me prostrei diante de ti. Minha ama me mostrava onde tu estavas, teu
cão e o feixe de lenha.
ESTÉFANO - Vamos; jura por isto; beija o livro! Dentro de pouco tornarei a enchê-lo. Jura!
TRÍNCULO - Por esta boa luz, esse monstro é bem simplório. E eu tive medo dele! Muito fraco, em
verdade, o tal monstro. Ora, o homem da lua! Que monstro ingênuo! Bonito trago, monstro, por minha
fé!
CALIBÃ - Todas as polegadas vou mostrar-te. De terra fértil da ilha. Os pés te beijo. Sê meu deus, por
favor.
TRÍNCULO - Por esta luz, é um monstro borracho e muito pérfido. Quando o deus dele estiver
dormindo, ele lhe roubará a garrafa.
CALIBÃ - Beijo-te os pés e quero vassalagem permanente jurar-te.
ESTÉFANO - Então vem; ajoelha-te e jura.
TRÍNCULO - Hei de rir até morrer, à custa deste monstro de cabeça de cachorro. Não pode haver
monstro mais indecente do que este. Tenho gana de dar-lhe uma boa coça.
ESTÉFANO - Vamos, beija.
TRÍNCULO - Como está bêbado o pobre monstro! Que monstro abominável!
CALIBÃ - Hei de mostrar-te as fontes mais saudáveis; pescarei para ti, colherei bagas, trarei lenha
bastante. Possa a peste carregar o tirano a que estou preso. Já não lhe levarei feixes de lenha; sim, vou
seguir-te, ó homem prodigioso!
TRÍNCULO - E um monstro excessivamente ridículo; fazer de um pobre bêbado um prodígio!
CALIBÃ - Permite que te traga maçãs bravas; com minhas unhas grandes vou tirar-te da terra belas
túbaras; um ninho de galo vou mostrar-te e o meio fácil de armar ciladas para os macaquinhos. Irei
contigo aos bosques de aveleiras e algumas vezes te trarei das rochas filhotes de gaivotas. Vamos?
Vamos?
ESTÉFANO - Só quero agora que me indiques o caminho, sem maior palavreado. - Trínculo, uma vez
que o rei e todos os da nossa companhia pereceram afogados, tomaremos posse disto. - Aqui! Leva a
garrafa! - Amigo Trínculo, daqui a pouquinho tornaremos a enchê-la.
CALIBÃ - Adeus, mestre! Adeus! Adeus!
(Canta, embriagado.)
TRÍNCULO - Um monstro que uiva; um monstro que se embriaga!
CALIBÃ - Já não farei barragem para peixe, nem fogo irei buscar, quando ele me mandar. Não lavo
prato nem carrego feixe. Bã, bã, bã, Calibã! outro mestre amanhã! Liberdade! Viva! Liberdade!
Liberdade!
ESTÉFANO - á bravo monstro! Vamos; mostra-nos o caminho.
(Saem.)

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