domingo, 8 de maio de 2011

Os Irmãos Corsos - Capítulos 1 ao 3

CAPÍTULO 1

A HOSPITALIDADE CORSA


Córsega é uma região misteriosa, pitoresca e muito surpreendente.
Quando resolvi visitar a ilha, em março de 1841, pensei que teria de enfrentar uma viagem longa e complicada, que me deixaria com os ossos quebrados e a língua de fora. Qual nada! Embarca-se em Toulon e dali a vinte horas descemos em Ajácio, já em solo corso.
Lá chegando, temos que comprar ou alugar um cavalo para nos levar à localidade desejada. Mas não se assuste, leitor: tanto o aluguel como a compra são oferecidos por um preço tão baixo que, mesmo sem muito dinheiro, somos tentados a comprar uma boa meia dúzia de montarias.
É bem verdade que quando adquiri meu animal tive medo de que o coitado não agüentasse andar cem metros. Enganei-me redondamente: ele não apenas suportou com firmeza toda a viagem como fez coisas que fariam morrer de inveja um cavalo francês.
Fiquei espantadíssimo: o bicho era rápido, ágil e resistente. Saltava obstáculos incríveis, subia e descia elevações com uma facilidade que me dava calafrios na espinha. Sem falar das pinguelas que atravessava com passo firme e displicente. Um verdadeiro animal de combate.
Eu, é claro, fechava os olhos e confiava no seu bom senso, que, em se tratando da Córsega, era muito maior que o meu.
Fazíamos umas quinze léguas por dia sem que o extraordinário cavalo exigisse água ou comidinhas especiais. Quando, de tempos em tempos, eu parava para visitar um velho castelo feudal ou uma antiga torre construída pelos genoveses, o animal mastigava um tufo de erva, lambia uma pedra coberta de musgo e matava a sede em qualquer riacho. Pronto, estava resolvido o assunto.
Hospedar-se na ilha gratuitamente é coisa ainda mais fácil. Basta que o viajante percorra a rua principal de uma povoação e escolha a casa mais bela e confortável de todas. Isso feito, é só bater à porta: um instante depois surge o dono ou dona, convida o viajante a descer, oferece-lhe uma boa ceia e seu próprio leito, caso tenha apenas um.
No dia seguinte, esse acolhedor hospedeiro nos acompanha até a porta e agradece-nos a preferência com que o honramos. Não é fantástico?
Mas, atenção, caro leitor, para um detalhe importante: nem sonhe em oferecer dinheiro ao dono da casa se não quiser fazer dele um corso ofendido. E um corso ofendido — valha-nos Deus! — é algo que sempre devemos evitar.
No máximo, podemos oferecer à sua filha um retalho de qualquer fazenda fina com o qual fará uma touca para ir à próxima festa da cidade. O dono da casa aceitará de bom grado uma faca ou punhal com que certamente matará seu inimigo, caso o encontre.
Outro hábito comum na Córsega é serem os parentes pobres do proprietário muitas vezes empregados deste último, em troca de casa, comida e um pequeno salário. Embora tal coisa possa parecer estranha a um francês, os corsos acham semelhante barganha perfeitamente natural.
Apesar da tradição de violência da ilha, jamais ouvi falar de roubos e ladrões em toda minha permanência na Córsega. O mesmo, entretanto, não se pode dizer sobre os bandidos. Não se devem confundir, contudo, os primeiros com os segundos. Os corsos fazem muita questão de diferenciarem os ladrões — a quem desprezam — dos bandidos, a quem muitas vezes admiram e de quem são freqüentemente amigos.
O leitor pode ir a Ajácio ou a Bastia com uma bolsa recheada de ouro pendurada na sela e não correrá o menor perigo. Atravessará a ilha de ponta a ponta sem que nenhum corso o moleste. No entanto, pobre dele se quiser se deslocar de Occana a Levaco tendo um inimigo que lhe declarou a temível vendetta! Não dou um tostão furado por sua vida ao fazer esse curto trajeto de duas léguas.
A vendetta é um dos costumes mais arraigados na Córsega, como se fizesse parte do solo, das árvores e do próprio ar da ilha. A palavra quer dizer "vingança" e significa a eterna luta de uma família que se julga ofendida contra outra que supostamente a ofendeu. Essa luta, que passa de pais para filhos através das gerações, vai semeando assassinatos até não mais restar um só membro de uma das duas famílias para contar a história.
Chegando à Córsega e logo depois de visitar Corte e Ajácio, resolvi partir para Sartene. Embora toda a ilha seja habitada por gente corajosa e brigona, a província de Sartene é a terra clássica da vendetta, o que estimulava extraordinariamente minha curiosidade. Posso mesmo dizer que foram as fantásticas histórias ouvidas sobre aquela província que me decidiram a visitar a Córsega.
Tomando um guia para não me perder pelas montanhas e matagais que atravessam a região, cheguei pelas cinco horas de uma tarde calma e ensolarada ao alto da colina de onde se viam as cidades de Olmeto e Sullacaro.
Levei menos de um minuto para me decidir por Sullacaro e suas graciosas ruas quase desertas. Descemos até o povoado, encontrando apenas, de quando em quando, uma ou outra mulher que caminhava apressadamente, sem olhar para os lados.
O guia virou-se para mim com ar interrogativo.
—  Onde deseja o senhor passar a noite? — perguntou afinal.
Observei atentamente o povoado, olhando as casas que minha vista podia alcançar. Finalmente, decidi-me por uma habitação quadrada e sólida, construída à maneira de uma fortaleza, com ameias diante das janelas e por cima das portas.
Era a primeira vez que eu via essas fortificações domésticas e olhei a casa cheio de curiosidade. Pareceu-me também a mais confortável de todas as que vi, e tratei de perguntar ao guia a quem pertencia tal morada.
—  Muito bem escolhido, senhor! — aprovou ele. — Esta casa pertence à Sra. Savília de Franchi, uma excelente dama e uma verdadeira corsa. Será muitíssimo bem recebido e não se arrependerá.
—  Mas escute — perguntei já preocupado —, não há nenhuma inconveniência em que eu vá pedir hospedagem a uma senhora?
O corso pareceu não entender.
—  Inconveniência?   —   perguntou   admirado.   —   Por   que motivo?                
—  Ora! — respondi. — Se a Sra. de Franchi é uma mulher ainda moça, hospedar um homem, ainda que por pouco tempo, poderá comprometê-la, não acha?
—  Comprometê-la? — tornou a perguntar o guia, sem entender o sentido da frase que eu italianizara à minha vontade, como bom francês. O italiano falado por mim estava longe de ser perfeito, mas a incompreensão de meu interlocutor começava a impacientar-me.
—   Que diabo, amigo! — exclamei, sem poder conter-me. — Essa senhora não é viúva?
—  É, senhor.
—  E mesmo assim receberá em sua casa um homem ainda moço?
Como eu contava apenas trinta e seis anos e meio, acreditava merecer ainda esse título.
O guia olhou-me espantado, sem compreender patavina.
—  Mas que diferença fará para a Sra. de Franchi que o senhor seja velho ou moço?
Perdi as esperanças de chegar a uma conclusão se continuasse a interrogá-lo desse modo e resolvi mudar de assunto.
—   Que idade tem ela?
Meu companheiro cocou a cabeça.
—  Mais ou menos uns quarenta anos — respondeu, depois de um momento.
—  Ah! — exclamei, sem saber exatamente por quê. — E tem filhos?
—  Sim, senhor. Dois excelentes rapazes.
—  Ambos moram com a mãe?                             
—  Apenas um. O outro vive em Paris.
—  Que idade têm eles?
—  Vinte e um.
—  Os dois?
—  Sim, senhor. São gêmeos.
—  Estudam?
—  O que está em Paris será advogado.           
—  E o outro?
—  O outro será corso — respondeu o guia, com um sorriso feliz que ia de orelha a orelha.
Achei a resposta — dada no tom mais natural e onde não havia a mínima sombra de brincadeira — bem característica da região. Pouco a pouco começava a entender o orgulho que os habitantes da ilha têm de sua terra.
—  Muito bem — disse eu. — Vamos então à casa da Sra. Savília de Franchi.
Dez minutos depois, cansados e cobertos de poeira, entrávamos no povoado.
Notei então que todas as casas eram tão fortificadas como as da Sra. Savília, o que não pudera observar do alto da montanha. As mais pobres não contavam com ameias, mas sim com pranchas e tábuas grossas forrando o interior das janelas, com pequenas aberturas para a passagem de fuzis. Em outras casas, o reforço era feito com tijolos vermelhos dispostos em duas camadas.
—  Como se chamam essas aberturas que se comunicam com o interior das casas? — perguntei ao guia, seguindo um pensamento que me ocorrera.
—  Seteiras, senhor — respondeu-me ele.
Eu tinha razão. Por sua resposta, constatei que as vendettas corsas eram muito anteriores às armas de fogo. Sabe Deus quando teria uma família disparado a primeira flecha ou até mesmo dado a primeira paulada contra outra!
Enquanto avançávamos pelas ruas de Sullacaro, ia notando como a vila parecia triste e solitária ao entardecer. As paredes e portas de muitas casas mostravam-se crivadas de balas, o que aumentava a impressão de tristeza do lugar.
Repentinamente, à medida que caminhava, senti-me espiado sem saber exatamente de onde. Continuei a andar com toda a calma, embora redobrasse de atenção ao observar, quase sem mover a cabeça, as aberturas negras de cada casa.
Súbito, distingui um olho brilhando na escuridão. Logo adiante surpreendi outro que me vigiava. Não consegui perceber se pertenciam a um homem ou a uma mulher: só sei que me acompanhavam atentamente até a minha saída de seu ângulo de visão. Senti-me um pouco desconfortável com semelhante espreita. Mas, bolas! Afinal de contas, estava ou não estava na Córsega?
Chegamos finalmente à casa da Sra. de Franchi, sem dúvida a maior de toda a vila. Meu olhar curioso caiu logo sobre os buracos de bala que vi nas portas e paredes — é verdade que eram antigos, datando talvez de uns quinze anos atrás; mesmo assim, ali estavam vestígios de uma vendetta!
Meu guia bateu à porta e ficamos esperando: pouco depois, um homem de casaco e culote de veludo, faixa de seda na cintura e polainas de couro apareceu. Da faixa de seda pendia a bainha de uma faca de modelo espanhol.
—  Senhor — disse-lhe eu —, perdoe-me a ousadia, mas sou estrangeiro e não conheço ninguém em Sullacaro. Seria demasiado abuso de minha parte pedir-lhe hospitalidade por uma noite?
Por suas palavras notei então, pasmo, que era criado, apesar da elegância exibida. Lembrei-me então dos costumes corsos: aquele homem devia ser um primo pobre ou sobrinho do dono da casa.
—  De modo algum, Excelência — respondeu ele. — O estrangeiro honra a morada na qual se hospeda. Maria — disse para a criada que também acorrera —, informe a Sra. Savília de que um viajante francês esta pedindo hospitalidade.
Dizendo isso, saiu da casa e veio segurar as rédeas de meu cavalo, que olhou com ar de conhecedor:
—  O animal causou-lhe algum problema durante a viagem, senhor? — perguntou-me com um leve sorriso.
—  Nenhum — respondi. — Trouxe-me até Sullacaro quase sem que eu tivesse de dirigi-lo.
—  Nossos cavalos conhecem bem a velha Córsega — concluiu satisfeito, dando um tapinha carinhoso no lombo do animal. — Já tivemos alguns viajantes estrangeiros que se mostraram bastante surpreendidos com a rapidez e agilidade de nossas montarias, achando provavelmente que todas deveriam constituir um formidável bando de pangarés.
—  É verdade — repliquei. — O que o viajante deveria fazer é um seguro contra os colapsos cardíacos, de tanto que esses cavalos sobem e descem.
Desmontei e pus-me a desatar a bagagem que trazia comigo, mas o criado impediu-me:
—  Vossa Excelência não tem que se preocupar com nada — disse ele. — Levaremos toda a bagagem para o seu quarto.
Que alívio! Estava tão cansado que nunca como naquele momento apreciei a verdadeira e real hospitalidade corsa.
CAPÍTULO 2

NA CASA DE SAVÍLIA DE FRANCHI



Sacudi com tapas vigorosos um pouco da poeira de minhas roupas e entrei na casa.
Um corredor fresco e mergulhado na penumbra me esperava, coisa muito agradável depois de tantas horas viajando sob um sol fortíssimo que por pouco não me fritara os miolos.
Ao fim desse corredor, que desembocava numa sala mais clara, estava uma senhora alta, vestida de preto, que me olhou diretamente nos olhos.
Pensei com meus botões: eis a Sra. Savília de Franchi. Deveria ter uns quarenta anos de idade, tinha um rosto bonito, cabelos negros e aquela determinação que muitas vezes se encontra nas mulheres mediterrâneas.                                                                
Dirigi-me a ela e parei à sua frente.
—  Senhora — disse eu inclinando-me —, provavelmente me julgará muito indiscreto e audacioso por vir incomodá-la em sua casa. Entretanto, os costumes da terra desculpam-me e as palavras de seu criado deixam-me mais à vontade para pedir-lhe hospedagem.
—  Seja bem-vindo para a mãe como será dentro em pouco para o filho — respondeu-me amável e dignamente a Sra. de Franchi. — A partir deste momento, senhor, a casa é sua, use-a como melhor lhe parecer.
—   A hospitalidade que lhe peço, senhora, é apenas por uma noite. Tenciono partir amanhã bem cedo, logo ao romper do dia.
—  O senhor fará como lhe for mais conveniente. Espero, contudo, que mude de opinião e nos dê a honra de uma longa permanência.
Agradeci-lhe e inclinei-me pela segunda vez.
A Sra. de Franchi virou-se para a criada:
— Maria, acompanhe este senhor ao quarto de Luís. Acenda imediatamente o fogo e prepare-lhe um banho.
—  Perdão, senhor — disse sorrindo a Sra. de Franchi, enquanto a criada se afastava. — Sei que o maior desejo de um viajante ao chegar é um bom banho e uma lareira acesa, pois se nossos dias são quentes, as noites, como notará, são bastante frias. Quando a moça voltar tenha a bondade de segui-la. Peça-lhe, por favor, tudo aquilo de que necessitar. Cearemos dentro de uma hora. Logo que meu filho chegar irá receber as suas ordens, caso isso não o incomode.
—  Será um prazer conhecer o Sr. Luís de Franchi. Peço-lhe, senhora, que desculpe minhas pobres roupas de viagem.
—  Claro que sim — respondeu-me. — Desde que o senhor nos desculpe a rudeza da recepção.
Como a criada viesse de volta, inclinei-me mais uma vez ante a Sra. de Franchi e acompanhei a moça até o quarto.
Este estava situado no primeiro andar e dava para os fundos, abrindo-se para um lindo jardim plantado com mirtos e palmas cor-de-rosa, atravessado por um riacho de águas claras.
A vista era limitada por um bosquezinho de pinheiros tão cerrado que mais parecia uma muralha verde.
Depois de contemplar durante algum tempo a encantadora paisagem que me cercava, voltei minha atenção para o quarto. Como acontece com todos os quartos das casas italianas, as paredes deste também eram caiadas de branco e adornadas com alguns afrescos representando paisagens.
Pelo tamanho do aposento e seu conforto imaginei que me davam o melhor quarto, provavelmente o do filho ausente, e minha curiosidade se acendeu. Logo depois que tomasse banho, resolvi, esquadrinharia atentamente a mobília, os livros e todos os detalhes que lá se encontravam, para ter uma idéia da personalidade de seu habitante costumeiro.
Uma vez banhado e quase totalmente vestido, pus mãos à obra: primeiro, dei uma olhadela atenta e circular por todo o quarto, passando em revista os diferentes objetos que me cercavam.
A mobília, para minha surpresa, era bastante moderna — fato raro nessa parte da ilha, onde a civilização ainda não chegou. Constava de um grande leito de ferro com um colchão delicioso, macio e resistente ao mesmo tempo, um travesseiro, um diva, quatro poltronas, seis cadeiras, uma grande estante e uma escrivaninha de acaju. Por esta lista o leitor pode imaginar como era espaçoso o quarto de Luís de Franchi. Tive vontade até mesmo de pegar meu cavalo e dar um galope lá por dentro antes do jantar.
Cortinados de uma bonita fazenda estampada pendiam das janelas e cobriam o leito. O divã, poltronas e cadeiras eram forrados com o mesmo tecido, dando um aspecto alegre ao quarto.
Resolvi então examinar a estante que ocupava toda uma das paredes.
Nosso Luís devia ser um grande leitor: lá estavam os poetas franceses mais famosos, como Corneille, Racine, Molière, La Fontaine, Ronsard, Victor Hugo e Lamartine. Também os moralistas como Montaigne, Pascal e La Bruyère enfileiravam-se nas prateleiras; os historiadores, como Mèzeray, Chateaubriand, Agostinho Tierry e mesmo sábios franceses, como Cuvier, Beudant, Elias de Beaumont.
Em outra parte da estante estavam os romances, entre os quais notei orgulhosamente as minhas Impressões de Viagem.
Como eu fosse um curioso de marca maior, resolvi investigar também as gavetas da estante.
Abri uma delas: encontrei páginas de uma história da Córsega, escritas provavelmente pelo próprio Luís, e também um trabalho sobre os meios a empregar para abolir a vendetta. Alguns versos franceses e sonetos italianos — em manuscrito — estavam colocados sob todo o resto.
Era mais do que eu precisava para formar uma idéia sobre Luís de Franchi: na certa tratava-se de um rapaz estudioso, que gostava muito de ler e escrever. Segundo suas leituras, devia ser também partidário das reformas liberais francesas. Eis por que deseja ser advogado, pensei comigo mesmo.
Decidi pôr o paletó de veludo preto, para estar totalmente pronto quando o irmão de Luís aparecesse. O espelho me devolveu uma imagem bizarra: se não estava no rigor da elegância, pelo menos não me faltava o pitoresco.
Meu casaco, aberto nas costuras das mangas para permitir ventilação nas horas quentes do dia, deixava entrever uma camisa de seda de listras suaves. As calças eram também de veludo preto, apertadas do joelho ao tornozelo em polainas espanholas abertas do lado com bordados de seda colorida. A grande esquisitice de meu traje, contudo, era o chapéu de feltro capaz de tomar todas as formas possíveis e imagináveis — de acordo com os socos e amassaduras que eu lhe dava. Entretanto, ficava ele à vontade principalmente como um sombrero[1] pois nisso o transformava com mais freqüência.
Como vê o leitor, eu contava com a indulgência da dona da casa para com os meus trajes. Apesar de me arriscar a um acesso de riso de mãe e filho, recomendo tais roupas aos viajantes, pois são extremamente cômodas.
Estava ainda diante do espelho quando bateram à porta do quarto. O mesmo criado que me fizera entrar na casa dos De Franchi apareceu no limiar.
—  Perdão — desculpou-se ele. — Mas o Sr. Luciano de Fran­chi acaba de chegar e deseja ter a honra de lhe vir apresentar as boas-vindas, se isso não o incomoda.
—   A honra será minha — respondi. — Mande entrar o Sr. Luciano.
Alguns segundos depois ouvi o ruído de passos rápidos no corredor e meu hospedeiro apareceu na porta.





CAPÍTULO 3


O JOVEM LUCIANO



Era um rapaz de cabelos e olhos negros, pele queimada de sol e não muito alto, embora forte e bem proporcionado. Seu rosto de traços firmes era bem típico daquela região, um rosto bonito e viril.
Era visível que, na pressa de vir cumprimentar-me, Luciano de Franchi subira a meu quarto com a mesma roupa com que chegara da rua. Usava um casacão de pano verde, uma calça cinzenta bem justa e botas com espora. Na cintura trazia uma bem fornida cartucheira, o que lhe dava uma aparência militar.
Uma grande pistola pendia de seu lado direito, mas Luciano parecia não confiar inteiramente nela; segurava na mão esquerda uma carabina inglesa ultramoderna.
Completando tudo, sua cabeça estava coberta por um chapéu tipo explorador, dando-lhe um ar bastante bizarro.
Apesar de ser muito jovem — vinte e um anos, segundo o guia que me conduzira a Sullacaro —, Luciano de Franchi tinha uma aparência de independência e firmeza que me surpreendeu bastante.
Ali estava um homem habituado a viver em meio ao perigo, educado para a luta mas ao mesmo tempo prudente, calmo e grave.
Num olhar rápido observou as roupas que eu acabara de vestir, as que eu despira, minhas armas e até mesmo a bagagem trazida por mim.
Era bem o golpe de vista — rápido e seguro — de um homem cuja vida depende muitas vezes disso.
— Perdoe-me se o incomodo, senhor — disse Luciano. — Queria apenas dar-lhe as boas-vindas e saber se necessita de algo. Nós, os corsos, somos tão selvagens que é sempre com inquietação que vemos chegar a nossa casa um viajante estrangeiro — sobretudo um francês, devido à nossa pobre hospitalidade cheia de falhas. Contudo, mesmo com todos os erros que poderá observar nela, dentro de pouco tempo será a única tradição da Córsega que sobreviverá.
—   Nada tem a recear, caro senhor — respondi-lhe. — Sua mãe foi de uma amabilidade sem limites, provendo-me de tudo que eu pudesse necessitar.
"Além disso — continuei, olhando rapidamente pelo quarto —, se os corsos são selvagens, eu sou um chinês recém-importado da China. Possuem uma excelente biblioteca e todo o aposento é de um extremo bom gosto. Se eu não estivesse vendo esta admirável paisagem através das janelas, julgaria estar num dos mais elegantes bairros de Paris."
—  Talvez — respondeu Luciano com um leve sorriso. — Na verdade, meu irmão Luís sempre teve hábitos mais franceses do que corsos. Gostava de viver rodeado por objetos e idéias que lhe lembrassem a França, embora seu amor pela Córsega seja grande.
—  Contudo — prosseguiu Luciano com ar triste — não creio que ao voltar de Paris consiga adaptar-se à nossa pobre caricatura de civilização. Isto lhe bastava antes da partida, mas agora. . .
Ficamos um momento em silêncio.
—   Há quanto tempo seu irmão deixou a ilha? — perguntei finalmente a Luciano.
—   Há seis meses, senhor.
—   Regressará em breve?
—  Somente daqui a uns três ou quatro anos. Terá que concluir primeiro seus estudos de advocacia.
Notei que a fisionomia de Luciano se entristecera ainda mais.
—  Sem dúvida é uma ausência bem longa para dois irmãos que se estimam — comentei.
—  Oh, sim — respondeu-me, olhando através da janela. — Somos grandes amigos.
—  Ele provavelmente virá visitá-lo antes de terminar os estudos, não? — perguntei.
—  É possível — disse, tornando a fitar-me com tranqüilidade. — Pelo menos foi o que prometeu.
—  Bem, se ele não cumprir a promessa o senhor sempre poderá visitá-lo em Paris, não é verdade?
—  Não... eu nunca deixo a Córsega.
O orgulho que Luciano de Franchi tinha pela pátria e a indiferença pelos outros lugares transpareceu em sua resposta.
Sorri. Vendo isso, ele também sorriu.
—  Pode parecer estranho que eu não queira abandonar uma terra miserável como a nossa — disse, apoiando a coronha da carabina numa das botas. — Mas nada posso fazer. Sou uma espécie de produto da ilha, como a azinheira e as palmas cor-de-rosa. Eu morreria se fosse obrigado a ficar longe dessa terra, de seu perfume de mar e de montanha.
"Além disso — continuou —, sou muito ativo, preciso mover-me constantemente no meio da natureza; necessito atravessar torrentes a nado ou de barco, sinto falta de rochedos para subir, florestas para explorar. Preciso de espaço e de liberdade. Se me levassem para Paris ou para qualquer grande cidade me sentiria um pássaro na gaiola. Seria desastroso, como bem pode imaginar."
—  O senhor e seu irmão possuem, assim, temperamentos bastante diferentes.
—  Apesar de uma semelhança física extraordinária — acrescentou ele.
—  Verdade?
—  Sim — afirmou —, a ponto de, quando éramos crianças, nossos pais serem obrigados a colocar nas minhas roupas e nas de Luís um sinal que nos distinguisse.
—  Quando cresceram, a semelhança não foi alterada por nada? — perguntei curioso.
—  Apenas uma leve coloração na pele, determinada por nossos hábitos — respondeu. — Luís, sempre trancado em seu quarto a ler e escrever, tornou-se bem mais pálido, ao passo que eu, como o senhor vê, sou bastante moreno, pois meu tempo é despendido quase todo ao ar livre. Essa diferença serve de guia aos amigos — concluiu Luciano, dando uma risada.
—  Espero que me dê oportunidade de constatar essa diferença disse eu — encarregando-me de levar uma carta ou presente que o senhor porventura queira enviar a seu irmão. Gostaria muitíssimo de conhecer Luís de Franchi.
Claro, com imenso prazer de nossa parte. Mas, agora, peço-lhe que me desculpe: vejo que o senhor já está pronto para o jantar e eu acabo de chegar da rua. Ainda não tomei banho nem mudei de roupa e dentro de quinze minutos teremos de estar à mesa.
—  É por minha causa que se dará ao trabalho de mudar de roupa?
—  Mesmo se fosse este o motivo, o senhor é que teria me dado o exemplo. De qualquer modo, terei que trocar a roupa que estou usando por uma de montanhês; depois do jantar tenho um assunto a resolver e, para onde vou, estas botas com esporas seriam muito incômodas.
—  Vai sair depois do jantar? — perguntei.
—  Sim — respondeu. — Tenho um encontro...
Sorri.
—   Oh! Não é nada do que o senhor está pensando. Trata-se de uma simples entrevista de negócios.
—  Perdão se fui indiscreto — disse eu. — Não pretendia forçar nenhuma confidência.
—  Por favor, não se desculpe, o senhor não foi indiscreto. A verdade é que não vou mesmo a nenhum encontro amoroso. Nunca tive uma amante e provavelmente nunca terei nenhuma. Se meu irmão se casar e tiver filhos, é quase certo que eu nem me case. Mas se ele permanecer solteiro terei que arranjar uma esposa para que nosso nome não se extinga. Já lhe disse — acrescentou com uma risada —, sou um verdadeiro selvagem que veio ao mundo cem anos depois do que devia.
De repente, lembrou-se de que estava atrasado.
—  Meu Deus! Se continuar aqui falando pelos cotovelos não estarei pronto à hora do jantar.
—  Podemos continuar a conversa depois que tomar banho — disse eu —, enquanto for se vestindo. O seu quarto fica em frente a este, não é? Deixe a porta aberta e poderemos conversar.
—  Por que não vem ao meu quarto dentro de alguns minutos? Se o senhor gosta de armas, verá as minhas enquanto me visto. Tenho algumas de certo valor histórico.

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