sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 36 ao 40

Capítulo XXXV

A “Mazzolata"

            - Senhores - disse ao entrar o conde de Monte-Cristo -, aceitem as minhas maiores desculpas por não me ter antecipado, mas receei ser indiscreto se me apresentasse tão cedo nos seus aposentos. Aliás, mandaram-me dizer que viriam e por isso estou à disposição de ambos.
            - Franz e eu temos de lhe apresentar mil agradecimentos, Sr. Conde - disse Albert. - Tirou-nos realmente de um grande apuro e estávamos em vias de inventar os veículos mais fantásticos no momento em que recebemos o seu amável convite.
            - Meu Deus, senhores - perguntou o conde, fazendo sinal aos dois rapazes para se sentarem no sofá -, só por culpa do imbecil do Pastrini os deixei tanto tempo em dificuldades! Não me disse nada acerca do embaraço em que se encontravam, a mim que, sozinho e isolado como estou aqui, apenas procurava uma
oportunidade de estabelecer relações com os meus vizinhos. Logo que soube que lhes podia ser útil em qualquer coisa, bem viram com que alvoroço aproveitei essa oportunidade para lhes apresentar os meus cumprimentos.
            Os dois jovens inclinaram-se. Franz ainda não encontrara uma única palavra para dizer. Ainda não tomara nenhuma resolução e, como nada indicava no conde o seu desejo de o reconhecer ou de ser reconhecido por ele, não sabia se devia, com qualquer palavra, aludir ao passado ou deixar ao futuro o cuidado de lhe fornecer novas provas. De resto, embora estivesse certo de que era ele quem se encontrava na véspera no camarote, não podia responder tão positivamente quanto a ser ele o homem que na antevéspera estivera no Coliseu. Resolveu portanto deixar correr o marfim, como se costuma dizer, sem dirigir ao conde qualquer pergunta direta. Aliás, tinha uma vantagem sobre ele - era senhor do seu segredo –, ao passo que, pelo contrário, o conde não podia exercer qualquer ação sobre Franz, que não tinha nada a esconder.
            Em todo o caso resolveu encaminhar a conversa para um ponto que podia, mesmo assim, conduzir sempre ao esclarecimento de certas dúvidas.
            - O Sr. Conde - disse - ofereceu-nos lugares na sua carruagem e nas sua janelas do Palácio Rospoli. Poder  dizer-nos agora como nos será possível arranjar um posto qualquer, como se diz na Itália, na Praça del Popolo?
            - Ah, sim, é verdade! - exclamou o conde com ar distraído e olhando Morcef com muita atenção. - Não há na Praça del Popolo qualquer coisa como uma execução?
            - Há - respondeu Franz, vendo que ele vinha por si mesmo aonde o queria trazer.
            - Espere, espere... creio ter dito ontem ao meu intendente para tratar disso. Talvez possa prestar-lhes também esse pequeno serviço.
            Estendeu a mão para um cordão de campainha e puxou-o três vezes.
            - Nunca se preocupou - disse a Franz - com o emprego do tempo e o meio de simplificar as idas e vindas dos criados? Fiz um estudo disso. Quando toco uma vez é para o meu criado de quarto; duas vezes, é para o meu mordomo; três vezes, é para o meu intendente. Assim, não perco nem um minuto, nem uma palavra. Cá está o nosso homem.
            Viu-se então entrar um indivíduo de quarenta e cinco a cinquenta anos, que pareceu a Franz assemelhar-se como duas gotas de água com o contrabandista que o introduzira na gruta, mas que não pareceu reconhecê-lo por nada deste mundo. Pelo visto, fora avisado.
            - Sr. Bertuccio - perguntou o conde –, tratou, como lhe ordenei ontem, de me arranjar uma janela na Praça del Popolo?
            -Tratei, sim, Excelência - respondeu o intendente –, mas era muito tarde...
            - Como, não lhe tinha dito que queria uma? - indagou o conde, franzindo o sobrolho.
            - E Vossa Excelência tem uma, a que estava alugada ao príncipe Lobanieff. Mas tive de pagar por cento...
            - Está bem, está bem, Sr. Bertuccio, poupe a estes senhores a todos esses pormenores domésticos. Arranjou a janela, não arranjou? Pois nada mais é preciso. Dê o endereço da casa ao cocheiro e este já na escada para nos acompanhar. Não é preciso mais nada. Vá.
            O intendente cumprimentou e deu um passo para se retirar
            - Ah! - deteve-o o conde. - Faça-me o favor de perguntar a Pastrini se recebeu a tavoletta e me quer enviar o programa da execução.
            - É inútil - interveio Franz, tirando a sua agenda da algibeira. - Vi esses cartazes, copiei-os e tenho-os aqui.
            - Muito bem. Então, Sr. Bertuccio, pode-se retirar, não preciso mais de si. Previnam-nos apenas quando o pequeno-almoço estiver servido. Estes senhores - continuou, virando-se para os dois amigos - dão-me a honra de tomar o pequeno-almoço comigo, não é verdade?
            - Mas, Sr. Conde, na verdade seria abusar - protestou Albert.
            - Não, antes pelo contrário, dar-me-„o grande prazer. Retribuir-me-„o tudo isto um dia, em Paris, um ou outro e talvez ambos. Sr. Bertuccio, mande pôr três talheres.
            Tirou a agenda das mãos de Franz.
            - Dizem portanto - continuou no tom de quem lê os pequenos anúncios -  que “serão executados hoje, 12 de Fevereiro, o réu Andrea Rondolo, culpado de assassínio na pessoa respeitabilíssima e veneradíssima de D. César Terlini, cônego da Igreja de S. João de Latrão, e o réu Peppino, também conhecido por Rocca Priori, culpado de cumplicidade com o detestável bandido Luigi Vampa e os homens da sua quadrilha..." Hum!... “O primeiro será mazzolato e o segundo decapitato." Sim, com efeito - prosseguiu o conde -, era de
fato assim que as coisas se deviam passar primitivamente; mas parece-me que desde ontem houve qualquer alteração na ordem e na sequência da cerimônia.
            - Sim? - observou Franz.
            - Sim. Ontem, em casa do cardeal Rospigliosi, onde passei a noite, falava-se de qualquer coisa como um adiamento concedido a um dos dois condenados.
            - A Andrea Rondolo? - perguntou Franz.
            - Não... - perguntou negligentemente o conde - ao outro... - (deitou uma olhadela à agenda, como que para se recordar do nome) - a Peppino, por alcunha Rocca Priori. Isso priva-os de uma guilhotinadela, mas resta-lhes a  mazzolata, que é um suplício deveras curioso quando se vê pela primeira vez e mesmo pela segunda, ao passo que o outro, que Aliás devem conhecer, é muito simples, muito rápido, e sem nada de inesperado. A mandaça nunca falha, não treme, não, fere em falso, não obriga a tentar trinta vezes, como aconteceu ao soldado encarregado de cortar a cabeça ao conde de Chalais, e ao qual, de resto, Richelieu. talvez tivesse recomendado o paciente. Mas deixemo-nos disto - acrescentou o conde em tom desdenhoso. - Não me falem dos Europeus no tocante a suplícios; não percebem nada disso e encontram-se verdadeiramente na infância, ou antes, na velhice da crueldade.
            - Na verdade, Sr. Conde - observou Franz –, diria-se que fez um estudo comparado dos suplícios entre os diversos povos do mundo.
            - Pelo menos há poucos que não tenha visto - respondeu friamente o conde.
            - E encontrou prazer em assistir a esses horríveis espetáculos?
            - A minha primeira sensação foi de repulsa, a segunda de indiferença e a terceira de curiosidade.
            - Curiosidade! A palavra é terrível, não acha?
            - Porquê? Na vida há apenas uma preocupação grave: a morte. Pois bem, não seria curioso estudar de que formas diferentes a alma pode sair do corpo e como, segundo os caracteres, os temperamentos e até  os costumes do país, os indivíduos suportam essa suprema passagem do ser para o nada? Quanto a mim, respondo-lhe uma coisa: quanto mais vemos morrer, mais fácil se toma morrer. Assim, na minha opnião, a morte é talvez um suplício, mas não é uma expiação.
            - Não o compreendo bem - confessou Franz. - Explique-se, pois tenho dificuldade em dizer-lhe até  que ponto as suas palavras espicaçaram a minha curiosidade.
            - Escute - disse o conde, e o seu rosto encheu-se de rancor como o de qualquer outra pessoa se coloraria de sangue. - Se um homem tivesse feito perecer por meio de torturas inauditas, no meio de tormentos sem fim, o seu pai, a sua mãe, a sua noiva, um desses seres, enfim, que quando os desenraízam do nosso coração deixam nele um vazio eterno e uma chaga sempre sangrenta, consideraria a reparação que lhe concedesse a sociedade suficiente, só porque o cutelo da guilhotina passou entre a base occipital e os músculos trapézios do assassino e porque este, que o fez passar anos de sofrimentos morais, experimentou alguns segundos de dor física?
            - Sim, bem sei que a justiça humana é insuficiente como confortadora - admitiu Franz. - Só pode verter o sangue em troca do sangue, e mais nada. Mas temos de nos contentar com o que ela pode e não com outra coisa.
            - Vejamos um caso material - prosseguiu o conde –,  aquele em que a sociedade, ferida pela morte de um indivíduo, na base em que assenta, vinga a morte com a morte. Mas não há milhões de dores em que as entranhas do homem podem ser dilaceradas sem que a sociedade se preocupe minimamente com isso, sem que lhe ofereça o meio insuficiente de vingança de que falamos há pouco? Não há crimes para os quais o
empalamento dos Turcos, os alcatruzes dos Persas e os látegos dos Iroqueses seriam suplícios demasiado suaves e que no entanto a sociedade, indiferente, deixa sem castigo?... Responda, não há crimes assim?
            - Há - concordou Franz –, e é para os punir que o duelo é tolerado. 
            - Ah, o duelo!... - exclamou o conde. - Curiosa maneira, palavra, de alcançar um fim, quando o fim é a vingança! Um homem rouba-lhe a amante seduz-lhe a mulher, desonra-lhe a filha. De uma vida inteira que tinha o direito de esperar de Deus a parte de felicidade por Ele prometida a todo o ser humano ao criá-lo, esse homem fez uma existência de dor, miséria ou infâmia, e o senhor considera-se vingado infligindo-lhe, a um homem que lhe introduzi o delírio no espírito e o desespero no coração, uma estocada no peito ou
metendo-lhe uma bala na cabeça? Ora adeus! Sem contar que muitas vezes é ele que sai triunfante da luta, limpo aos olhos do mundo e de certo modo absolvido por Deus. Não, não - continuou o conde –, se alguma vez tivesse de me vingar, não seria assim que me vingaria.
            - Portanto, desaprova o duelo? Portanto, não se bateria em duelo? - perguntou por sua vez Albert, atônito por ouvir em emitir tão estranha teoria.
            - Oh, claro que me bateria! - respondeu o conde. - Entendamo-nos: me bateria em duelo por uma miséria, por um insulto, por um desmentido, por uma bofetada, e isso com tanta mais despreocupação quanto é certo que, graças à experiência que adquiri de todos os exercícios do corpo e ao lento hábito que também adquiri do perigo, teria quase a certeza de matar o meu homem. Oh, claro que me bateria em duelo por tudo isso! Mas por um sofrimento lento, profundo, infinito, eterno, infligiria, se me fosse possível um sofrimento idêntico ao que me tivessem causado: olho por olho, dente por dente, como dizem os orientais, nossos mestres em todas as coisas, esses eleitos da criação que souberam criar para si uma vida de sonhos e um paraíso de realidades.
            - Mas - observou Franz ao conde - com essa teoria que o constitui juiz e carrasco na sua própria causa, seria difícil que se contivesse numa medida que lhe permitisse escapar eternamente ao poder da lei. O ódio é cego, a cólera desorienta, e aquele que serve a si próprio a vingança arrisca-se a beber uma beberagem amarga.
            - Sim, se é pobre e inexperiente; não, se é milionário e hábil. Aliás, o pior que lhe pode acontecer é o último suplício de que falamos há pouco, aquele que a filantrópica Revolução Francesa inventou para substituir o esquartejamento e a roda. Mas que significa o suplício se estiver vingado? Na verdade, sinto-me quase decepcionado por, segundo todas as probabilidades, esse miserável Peppino não ser decapitato, como eles dizem, pois se o fosse veriam como a execução é rápida e se realmente vale a pena perder tempo falando respeito. Mas agora reparo, meus senhores, que escolhemos uma conversa deveras singular para um dia de Carnaval. Como aconteceu tal coisa? Ah, já me lembro! Pediram-me um lugar à minha janela. Pois bem, seja, o terão. Mas sentemo-nos primeiro à mesa, pois vêm anunciar-nos que estamos servidos.
            Com efeito um criado abriu uma das quatro portas da sala e proferiu as palavras sacramentais:
            - Al suo commodo!
            Os dois jovens levantaram-se e passaram à sala de jantar. Durante o café da manhã, excelente e servido com infinito requinte, Franz procurou com a vista os olhos de Albert, a fim de ler neles a impressão que sem dúvida produzira nele as palavras do seu anfitrião. Mas quer porque na sua despreocupação habitual lhes não tivesse prestado grande atenção, quer porque a concessão que o conde de Monte-Cristo lhe fizera a propósito do duelo o tivesse  reconciliado com ele, quer finalmente porque os antecedentes que relatamos,
apenas conhecidos de Franz, tivessem duplicado só para si o efeito das teorias do conde, não notou que o companheiro estivesse de modo algum preocupado. Muito pelo contrário, fazia honra à refeição como homem condenado havia quatro ou cinco meses à cozinha italiana, isto é, a uma das piores cozinhas do mundo. Quanto ao conde, mal tocava em cada prato. Diria-se que ao sentar-se à mesa com os seus convivas cumpria
um mero dever de cortesia e que esperava que se fossem embora para se mandar servir alguma iguaria estranha ou especial.
            - Malgrado seu, o caso lembrava a Franz o terror que o conde inspirara à condessa G... e a convicção em que a deixara de que o conde, o homem que lhe mostrara no camarote fronteiro ao dela, era um vampiro.
            No fim do café da manhã, Franz puxou o relógio.
            - Estão assim com tanta pressa? - perguntou-lhe o conde.
            - Queira desculpar-nos, Sr. Conde - respondeu Franz –, mas temos ainda de fazer mil coisas.
            - O quê?
            - Não temos máscaras e hoje as máscaras são obrigatórias.
            - Não percam tempo com isso. Temos, segundo creio, um quarto particular na Praça del Popolo. Mandarei levar para lá os trajes que se dignarem indicar-me e nos mascararemos imediatamente.
            - Depois da execução? - perguntou Franz.
            - Sem dúvida. Depois, durante ou antes, como quiserem.
            - Diante do cadafalso?
            - O cadafalso faz parte da festa.
            - Desculpe, Sr. Conde, mas pensei melhor - perguntou Franz. - Decididamente, agradeço-lhe a sua amabilidade, mas me contentarei com um lugar na sua carruagem e outro à janela do Palácio Rospoli, e o deixarei livre, para dispor dele como entender, o meu lugar à janela da Praça del Popolo.
            - Mas assim perde, previno-o, uma coisa deveras curiosa - contrapós o conde.
            - O senhor me contará - insistiu Franz - e estou convencido de que pela sua boca o relato me impressionará quase tanto como a vista. De resto, já por mais de uma vez quis assistir a uma execução e nunca fui capaz. E você, Albert?
            - Eu - respondeu o visconde - vi executar Castaing. Mas creio que estava um bocadinho alegre nesse dia. Foi no dia da minha saída do colégio e tínhamos passado a noite não sei em que botequim.
            - Aliás, o fato de não ter feito uma coisa em Paris não é razão para que a não faça no estrangeiro. Quando viajamos, é para nos instruirmos; quando mudamos de terra, é para ver. Lembre-se portanto do rosto que fará quando lhe perguntarem: “Como são as execuções em Roma?" E tiver de responder: “Não sei." Além disso, consta que o condenado é um refinado patife, um velhaco que matou a golpes de cão de chaminé um bom cônego que o criara como filho. Que diabo, quando se assassina um sacerdote escolhe-se arma mais conveniente do que um cão de chaminé, sobretudo quando o sacerdote é talvez nosso pai. Se viajasse pela Espanha iria assistir às touradas, não é verdade? Pois bem, suponha que vamos ver uma tourada. Lembre-se dos antigos romanos do circo, das caçadas onde se matavam trezentos leões e uma centena de homens. Lembre-se dos oitenta mil espectadores que batiam palmas, das sensatas matronas que  levavam as filhas casadouras e das encantadoras vestais de mãos brancas que faziam com o polegar um não menos encantador sinalzinho que significava: “Vamos, nada de moleza! Acabem com esse homem que já está há três quartos morto."
            - Vamos, Albert? - perguntou Franz.
            - Claro que sim, meu caro! Estava como você, mas a eloquência do conde me fez decidir.
            - Vamos, mas porque você quer - salientou Franz. - Mas no caminho para a Praça del Popolo desejava passar pela rua do Corso. Será possível. Sr. Conde?
            - A pé, sim; de carruagem, não.
            - Então, irei a pé.
            - É assim tão necessário passar pela rua do Corso?
            - É. Quero ver uma coisa.
            - Nesse caso, passaremos pela rua do Corso. Mandaremos a carruagem pela Estrada del Babuino esperar-nos na Praça del Popolo. De resto, também não me importo de passar pela rua do Corso para ver se umas ordens que dei foram cumpridas.
            - Excelência - disse o criado abrindo a porta –, um homem vestido de penitente pede para vos falar.
            - Ah, sim, sei do que se trata! - disse o conde. - Meus senhores, dignem-se passar novamente à sala onde encontrarão na mesa do centro excelentes charutos de Havana. Irei ter convosco dentro de instantes.
            Os dois jovens levantaram-se e saíram por uma porta, enquanto o conde, depois de lhes renovar as suas desculpas, saía por outra. Albert que era um grande apreciador de charutos e que desde que estava na Itália não considerava pequeno sacrifício estar privado dos charutos do Café de Paris, aproximou-se da
mesa e soltou um grito de alegria ao ver autênticos puros.
            - Então, que pensa do conde de Monte-Cristo? - perguntou-lhe Franz.
            - Que penso? - disse Albert, visivelmente surpreendido pel companheiro lhe fazer semelhante pergunta. - Penso que é um homem encantador, que faz maravilhosamente as honras da sua casa, que viu, estudou e refletiu muito, que é, como Bruto, da escola estóica, e - acrescentou, soltando amorosamente uma baforada de fumo que subiu em espiral para o teco - que além de tudo isso possui excelentes charutos.
            Era esta a opiniãode Albert acerca do conde. Ora, como Franz sabia que Albert tinha a pretensão de não ter opinião a respeito dos homens e das coisas senão depois de madura reflexão, não tentou modificar-lha. No entanto, perguntou-lhe:
            - Não notou uma coisa singular?
            - O quê?
            - A atenção com que o olhava.
            - A mim?
            - Sim, a você.
            Albert refletiu.
            - Oh, não há nada de estranho nisso! - perguntou, suspirando. - Há cerca de um ano que estou ausente de Paris e as minhas casacas devem estar fora de moda. O conde deve ter-me tomado por um provinciano. Desengane-o, caro amigo, e diga-lhe, peço-lhe, na primeira oportunidade, que isso não é verdade.
            Franz sorriu. Um instante depois o conde regressou.
            - Cá estou, senhores, e inteiramente à sua disposição - disse. - As ordens estão dadas: a carruagem segue para a Praça del Popolo e nós, se estão de acordo, seguimos para a rua do Corso. Tire alguns desses charutos, Sr. de Morcerf.
            - Aceito, palavra, com grande prazer - disse Albert porque os charutos italianos são ainda piores do que os da fábrica do Estado, na França. Quando for a Paris lhe retribuirei tudo isto.
            - E eu não recusarei. Espero ir la´qualquer dia e, uma vez que me permitir, irei bater-lhe à porta. E agora vamos, meus senhores, vamos porque não temos tempo a perder. É meio-dia e meia hora, partamos.
            Desceram os três. O cocheiro recebeu as últimas ordens do amo e seguiu pela Via del Babuino, enquanto eles subiam a pé a Praça de Espanha e a Via Frattina, que os levava direitos aos palácios Fiano e Rospolh.
            Toda a atenção de Franz se concentrou nas janelas deste último palácio. Não esquecera o sinal convencionado no Coliseu entre o homem da capa e o trasteveriano.
            - Quais são as suas janelas? - perguntou ao conde no tom mais natural que conseguiu arranjar.
            - As três últimas - respondeu ele com uma negligência que não tinha nada de afetada, pois não podia adivinhar com que fim lhe faziam a pergunta.
            Franz olhou rapidamente para as três janelas. As janelas laterais estavam forradas de damasco amarelo e a do meio de damasco branco com uma cruz vermelha.
            O homem da capa cumprira a palavra que dera ao trasteveriano e já não havia dúvida: o homem da capa era o conde. As três janelas encontravam-se ainda vazias.
            De resto, por todos os lados se faziam preparativos.  Colocavam-se cadeiras, erguiam-se bancadas, forravam-se janelas. As máscaras não podiam aparecer nem as carruagens circular senão ao toque do sino; mas adivinhavam-se as máscaras atrás de todas as janelas e as carruagens atrás de todas as portas.
            Franz, Albert e o conde continuaram a descer a rua do Corso.  À medida que se aproximavam da Praça del Popolo a multidão tornava-se mais densa e por cima das cabeças dessa multidão erguiam-se duas coisas: o obelisco encimado por uma cruz que indica o centro da Praça e, à frente do obelisco, precisamente
no ponto de correspondência visual das três ruas do Babuino, do Corso e da Ripetta, as duas traves principais do cadafalso, entre as quais brilhava o cutelo arredondado da mandaça. Na esquina da rua encontrava-se o intendente do conde, à espera do amo.
            A janela alugada pelo preço exorbitante de que o conde não quisera que os seus convidados tomassem conhecimento pertencia ao segundo andar do grande palácio situado entre a Rua do Babuino e o monte Píncio. Era, como dissemos, a janela de uma espécie de gabinete de vestir que dava para um quarto de dormir, os ocupantes do gabinete estavam como que em sua casa. Em cima das cadeiras viam-se trajes de palhaço, de cetim branco e azul, dos mais elegantes. 
            - Como me deixaram a escolha das máscaras - disse o conde aos dois amigos –, mandei arranjar-lhes estas. Primeiro, porque são as mais em moda este ano; depois, por serem as mais cômodas para os confetti, atendendo a que a farinha se não vê.
            Franz só muito imperfeitamente ouvia as palavras do conde e por isso talvez não tenha apreciado no seu justo valor aquela nova amabilidade. A verdade é que toda a sua atenção estava concentrada no espetáculo que oferecia a Praça del Popolo e no instrumento terrível que naquela altura era o seu principal
ornamento.
            Era a primeira vez que Franz via uma guilhotina. Dizemos guilhotina porque a mandala romana‚ talhada mais ou menos pelo mesmo padrão do nosso instrumento de morte. A única diferença reside no fato de o cutelo, que tem a forma de um crescente e corta com a parte convexa, cair de menos alto.
            Dois homens, sentados na prancha basculante onde se deita o condenado, almoçavam enquanto esperavam e comiam, tanto quanto Franz pode ver, pão e salsichas. Um deles levantou a prancha, tirou uma garrafa de vinho, bebeu um gole e passou a garrafa ao camarada. Aqueles dois homens eram os ajudantes do carrasco!
            Bastou o seu aspecto para que Franz sentisse o suor molhar-lhe a raiz dos cabelos.
            Os condenados, transportados na véspera dos Carceri Nuove para a pequena Igreja de Santa Maria dei Popolo, tinham passado a noite, assistidos cada um por dois padres, numa câmara-ardente gradeada, diante da qual passeavam sentinelas rendidas de hora a hora.
            Duas alas de carabineiros colocadas de cada lado da porta da igreja estendia-se até  ao cadafalso, à volta do qual formavam círculos, deixando livre um caminho de dez pés de largura, aproximadamente, e à roda da guilhotina um espaço de uma centena de passos de circunferência. Todo o resto da praça era um mar de cabeças de homem e mulher. Muitas das mulheres tinham os filhos às cavalitas. Essas crianças, cujo corpo
ultrapassava a multidão, estavam admiravelmente colocadas.
            O monte Píncio parecia um vasto anfiteatro em que todos os degraus estivessem carregados de espectadores. As varandas das duas igrejas que fazem esquina para a Rua do Babuino e para a Rua da Ripetta regurgitavam de curiosos privilegiados e os degraus dos peristilos lembravam uma torrente movediça e colorida que uma mar‚ incessante empurrasse para o pórtico. Cada saliência da parede capaz de suportar um homem tinha a sua estátua viva.
            O que o conde dizia era portanto verdade: o que existe de mais curioso na vida é o espetáculo da morte.
            E no entanto, em vez do silêncio que deveria presidir à solenidade do espetáculo, saía da multidão um barulho ensurdecedor composto por risos, chamamentos e gritos alegres. Era também evidente, como dissera o conde, que a execução não significava para toda aquela gente mais do que o início do Carnaval.
            De súbito, o barulho cessou como que por encanto. Acabava de se abrir a porta da igreja.
            Uma confraria de penitentes em que todos os membros envergavam uma espécie de saco cinzento apenas com aberturas nos olhos e empunhavam uma vela acesa, apareceu em primeiro lugar. O chefe da confraria vinha à frente. 
            Atrás dos penitentes vinha um homem alto. Esse homem estava nu, com exceção de umas ceroulas de pano do lado esquerdo das quais trazia presa uma grande faca embainhada. No ombro direito carregava uma pesada maça de ferro.  Aquele homem era o carrasco.
            Além disso, calçava sandálias presas por cordas às canelas.
            Atrás do carrasco caminhavam, pela ordem em que deviam ser executados, primeiro Peppino e depois Andrea.
            Cada um vinha acompanhado por dois padres. Nem um nem outro traziam os olhos vendados.
            Peppino caminhava com passo bastante firme. Sem dúvida fora avisado do que se preparava para si.
            Andrea era amparado por cada braço por um padre. Ambos beijavam de vez em quando o crucifixo que lhes apresentava o confessor. Mal viu aquele aparato, Franz sentiu as pernas fraquejarem-lhe. Olhou para Albert. Estava pálido como a sua camisa e num gesto maquinal atirou para longe o charuto, embora só tivesse fumado metade.
            Apenas o conde parecia impassível. Mais, uma leve coloração rosada parecia querer sobrepor-se à palidez lívida das suas faces. O nariz dilatava-se-lhe como o da fera que fareja sangue, e os seus lábios, ligeiramente afastados, deixavam ver os seus dentes brancos, pequenos e aguçados como os de um chacal.
            E no entanto, apesar de tudo isso, o seu rosto tinha uma expressão de doçura sorridente que Franz nunca lhe vira. Os seus olhos negros, sobretudo, estavam admiráveis de mansidão e suavidade.
            Entretanto, os dois condenados continuavam a dirigir-se para o cadafalso, e à medida que avançavam podiam distinguir-se-lhes as feições. Peppino era um belo moço de vinte e quatro a vinte e seis anos, de pele queimada pelo sol e olhar ousado e bravio. Vinha de cabeça levantada e parecia farejar o vento para ver de que lado lhe viria o seu libertador.
            Andrea era gordo e baixo. O seu rosto, repugnantemente cruel, não indicava idade. Podia no entanto contar trinta anos, pouco mais ou menos. Deixara crescer a barba na prisão.  Inclinava a cabeça sobre um dos ombros e as pernas dobravam-se-lhe debaixo dele. Todo o seu ser parecia obedecer a um movimento maquinal, no qual a sua vontade já não intervinha.
            - Parece-me - disse Franz ao conde - que me anunciara que só haveria uma execução.
            - E disse-lhe a verdade - respondeu o conde, friamente.
            - No entanto, estão ali dois condenados...
            - Pois estão. Mas desses dois condenados um morrerá e o outro terá ainda longos anos de vida.
            - Parece-me que se o perdão deve vir não há tempo a perder.
            - Por isso aí vem. Veja - perguntou o conde.
            Com efeito, no momento em que Peppino chegava ao pé da mandala, um penitente que parecia vir atrasado passou através da ala sem que os soldados lhe impedissem a passagem, dirigiu-se ao chefe da confraria e entregou-lhe um papel dobrado em quatro. 
            O olhar ardente de Peppino não perdera nenhum destes pormenores. O chefe da confraria desdobrou o papel, leu-o e levantou a mão.
            - O Senhor seja bendito e Sua Santidade seja louvado! - disse em voz alta e inteligível. - há perdão da vida para um dos condenados.
            - Perdão! - gritou o povo em uníssono. - há perdão!
            Ao ouvir a palavra “perdão", Andrea pareceu saltar e levantou a cabeça.
            - Perdão para quem? - gritou.
            Peppino ficou imóvel, mudo e arquejante.
            - Há perdão da pena de morte para Peppino, também conhecido por Rocca Priori - respondeu o chefe da confraria.
            E passou o papel ao capitão que comandava os carabineiros, o qual, depois de ler, o restituiu.
            - Perdão para Peppino! - gritou Andrea, inteiramente fora do estado de torpor em que parecia mergulhado. - Porquê perdão para ele e não para mim? Devíamos morrer juntos. Tinham-me prometido que ele morreria antes de mim e não têm o direito de me fazer morrer sozinho. Não quero morrer sozinho, não quero!
            E arrancou-se dos braços dos dois padres, contorcendo-se, gritando, rugindo, fazendo esforços insensatos para quebrar as cordas que lhe prendiam as mãos. O carrasco fez sinal aos seus dois ajudantes, que saltaram do cadatalso e vieram apoderar-se do condenado.
            - Que se passa? - perguntou Franz ao conde.
            Porque como aquilo decorria em dialeto romano, não compreendera muito bem.
            - Que se passa? - respondeu o conde. - Não compreende bem? Passa-se que aquela criatura humana que vai morrer está furiosa por o seu semelhante não morrer com ela, e se a deixassem à vontade o  despedaçaria com as unhas e com os dentes em vez de o deixar gozar a vida de que ela vai ser privada. Óh homens homens, raça de crocodilos, como diz Karl Moor - gritou o conde, estendendo os punhos para toda aquela multidão. - Como vos reconheço bem aí e como sois sempre bem dignos de vós próprios!
            Com efeito, Andrea e os dois ajudantes do carrasco rolavam pelo chão, com o condenado sempre  gritando: “Ele deve morrer, quero que ele morra! Não têm o direito de me matar sozinho!"
            - Vejam, vejam - continuou o conde, agarrando cada um dos dois jovens pela mão. - Vejam porque, pela minha alma, é curioso. Eis um homem que estava resignado com a sua morte, que caminhava para o cadafalso, que ia morrer como um covarde, é certo, mas enfim, ia morrer sem resistência e sem recriminações. Sabem o que lhe dava alguma coragem? Sabem o que o consolava? Sabem o que o levava a aceitar o seu suplício com resignação? O fato de outro compartilhar a sua angústia, de outro morrer com ele, de outro morrer antes dele! Levem dois carneiros ou dois bois ao matadouro e façam compreender a um deles que o companheiro não morrerá. O carneiro balirá e o boi mugirá de alegria. Mas o homem, o homem que Deus fez à sua imagem; o homem a quem Deus impôs como primeira, única e suprema lei o amor ao próximo; o homem a quem Deus deu voz para exprimir o seu pensamento, qual é o seu primeiro grito quando sabe que o seu camarada está salvo? Uma blasfêmia. Honra ao homem, essa obra-prima da Natureza,
esse rei da Criação! 
            E o conde desatou a rir, mas com um riso terrível, que indicava que devia ter sofrido horrivelmente para chegar a rir assim. Entretanto a luta continuava e era de horrível vê-la. Os dois ajudantes transportavam Andrea para o cadafalso. Todo o povo tomara partido contra ele e vinte mil vozes gritavam em uníssono: “à morte! à morte!"
            Franz recuou, mas o conde pegou-lhe no braço e reteve-o diante da janela.
            - Que faz? - perguntou-lhe. - Piedade? Não há dúvida que está  bem aplicada! Se ouvisse gritar que andava um cão raivoso à solta, pegaria na sua espingarda, correria para a rua e mataria sem misericórdia, à queima-roupa, o pobre animal, que no fim de contas não seria culpado de ter sido mordido por outro cão e de fazer o que lhe fizeram; mas tem piedade de um homem que nenhum outro homem mordeu e que no entanto
assassinou o seu benfeitor, e que, não podemos agora matar porque tem as mãos amarradas, quer à viva força ver morrer seu companheiro de cativeiro, o seu companheiro de infortúnio! Não, não! Veja, veja!
            A recomendação tornara-se quase inútil, pois Franz estava como fascinado pelo horrível espetáculo. Os dois ajudantes tinham conduzido o condenado para o cadafalso e aí, apesar dos seus esforços, das suas mordidelas e dos seus gritos, tinham-no obrigado a se ajoelhar. Entretanto, o carrasco pusera-se de lado
e com a maça preparada. Então, a um sinal, os dois ajudantes afastaram-se. O condenado quis levantar-se, mas antes que tivesse tempo de faze-lo a maça abateu-se sobre a têmpora esquerda. Ouviu-se um ruído abafado e seco, o paciente caiu como um boi, de cara contra o chão, e depois, bruscamente virou-se de costas. Então o carrasco deixou cair a maça, tirou a faca da cintura e de um só golpe abriu-se-lhe a garganta,
subiu-lhe imediatamente para a barriga e pôs-se a pisar nela com os pés:
            A cada pressão saía do pescoço do condenado um jato de sangue.
            Desta vez, Franz não aguentou mais. Recuou e foi cair numa poltrona meio desmaiado.
            Albert ficou de pé, com os olhos fechados e agarrado às cortinas da janela.
            O conde estava de pé e triunfante como o anjo mau.


Capítulo XXXVI

O Carnaval de Roma


            Quando voltou a si, Franz encontrou Albert bebendo um copo de água. A sua palidez indicava que necessitava muito daquele lenitivo. Quanto ao conde, vestia já o seu traje de palhaço. Franz olhou maquinalmente para a praça: tudo desaparecera, cadafalso, carrasco e vítima, e só restava o povo, barulhento, irrequieto, alegre. O sino do Monte Citorio, que só tocava por morte do papa e pela abertura da mascherata, tocava dasabaladamente.
            - Então - perguntou ao conde –, que aconteceu?
            - Nada, absolutamente nada, como vê. Apenas começou o Carnaval; vistamo-nos depressa. 
            - De fato - observou Franz ao conde –, de toda aquela horrível cena só resta o vestígio de um sonho.
            - Porque não passou tudo de um sonho, de um pesadelo que o senhor teve.
            - Eu, sim; mas o condenado?
            - Foi um sonho também. Simplesmente, ele ficou adormecido, ao passo que o senhor acordou. Quem poderá dizer qual dos dois é o privilegiado?
            - E Peppino, que foi feito dele? - perguntou Franz.
            - Peppino é um rapaz sensato, que não tem menor amor-próprio e que, ao contrário do que é habitual nos homens, que ficam furiosos quando lhes não ligam importância, ficou encantado ao ver que a atenção geral incidia sobre o seu camarada. Consequentemente, aproveitou essa distração para se esgueirar por entre a multidão e desaparecer, sem sequer agradecer aos dignos padres que o acompanharam. Decididamente, o homem é um animal muito ingrato e egoísta.. Mas vista-se. Olhe, veja como o Sr. de Morcerf lhe dá o exemplo.
            Com efeito, Albert passava maquinalmente as calças de tafet  por cima das calças pretas e das botas de verniz.
            - Então, Albert, está resolvido a cometer loucuras? - perguntou Franz. - Vamos, responda francamente.
            - Não - respondeu o interpelado. - Mas na verdade agora sinto-me satisfeito por ter assistido a semelhante espetáculo e compreendo o que dizia o Sr. Conde: uma vez que nos conseguimos habituar a ele, trata-se do único espetáculo que ainda provoca emoções.
            - Sem contar que é apenas nesse momento que se podem fazer estudos de caracter - observou o conde. - No primeiro degrau do cadafalso, a morte arranca-nos a máscara que usamos toda a vida e o nosso verdadeiro rosto aparece.  Devemos concordar que o de Andrea não era agradável de ver... Repugnante patife!... Mas vistamo-nos, meus senhores, vistamo-nos!
            Franz achou que seria ridículo da sua parte se fazer de rogado e não seguir o exemplo que lhe davam os seus dois companheiros. Vestiu portanto o seu traje e pôs a máscara, que certamente não era mais pálida do que o seu rosto. Assim que acabaram de se vestir, desceram. A carruagem os esperava à porta, cheia de confetti e de ramos de flores.
            Entraram na fila.
            É difícil fazer idéia de um contraste mais completo do que aquele que acabava de se operar. Em vez do anterior espetáculo de morte, sombrio e silencioso, a Praça del Popolo apresentava o aspecto de uma louca e ruidosa orgia. Viam-se aparecer inúmeras máscaras por todos os lados, saindo das portas e descendo das janelas. As carruagens desembocavam de todas as ruas, carregadas de pierros, arlequins, dominós, marqueses, trasteveres, figuras grotescas, cavalheiros, camponeses, etc., todos eles gritando, gesticulando e atirando ovos cheios de farinha, confetti e flores, atacando com palavras e projéteis amigos e estranhos, conhecidos e desconhecidos, sem que ninguém tivesse o direito de se zangar, sem que se fizesse fosse o que fosse a não ser rir.
            Franz e Albert eram como homens que, para se distraírem de um grande desgosto, participam numa orgia e que, à medida que bebem e se embriagam, sentem um véu espessar-se entre o passado e o presente. Viam ainda, ou antes, continuavam a sentir em si o reflexo do que tinha visto. Mas, pouco a pouco,
a embriaguez geral dominou-os e pareceu-lhes que a sua razão, pouco firme, ia  abandoná-los. Experimentavam uma necessidade estranha de participar naquela algazarra, naquele movimento, naquela vertigem. Um punhado de confetti atirado a Morcerf de uma carruagem vizinha e que, cobrindo-o de pó,
assim como aos seus dois companheiros, lhe picou o pescoço e toda a porção do rosto não tapada pela máscara, como se lhe tivessem atirado uma centena de alfinetes, acabou de atrai-lo para a luta geral em que já estavam envolvidas todas as máscaras que encontravam. Levantou-se por seu turno na carruagem, meteu ambas as mãos nos sacos e com todo o vigor e pontaria de que foi capaz lançou por sua vez ovos e confeitos nos seus vizinhos.
            A partir daí o combate estava travado. A recordação do que tinham visto meia hora antes esfumou-se por completo do espírito dos dois jovens, de tal modo o espetáculo colorido, movimentado e insensato que tinha diante dos olhos os distraiu. Quanto ao conde de Monte-Cristo, nunca parecera, como dissemos, impressionado um só instante.
            Imagine-se a grande e bela rua do Corso, ladeada de uma ponta à outra de palácios de quatro ou cinco andares, com todas as suas varandas guarnecidas de tapeçarias, com todas as suas janelas decoradas; nessas varandas e nessas janelas trezentos mil espectadores, romanos, italianos e estrangeiros vindos das quatro partidas do mundo; todas as aristocracias reunidas: de nascimento, de dinheiro, de espírito; mulheres encantadoras que, sofrendo elas próprias a influência do espetáculo, se inclinam sobre as varandas, se debruçam fora das janelas e fazem chover sobre as carruagens que passam uma saraivada de confetti que lhes retribuem com flores; a atmosfera toda carregada de confeitos que descem e de flores que sobem; depois, nas próprias ruas, uma multidão alegre, incessante, louca, metida em trajes insensatos: couves gigantescas que se passeiam majestosamente, cabeças de búfalos que mugem encimando corpos de homens, cães que parecem caminhar nas patas traseiras, etc.; no meio de tudo isto uma máscara que se
levanta e, como na tentação de Santo Antônio idealizada por Callot, alguma Astarte que mostra um rosto encantador, que se quer seguir, mas do qual se é separado por uma espécie de demônios idênticos aos que se vêem nos sonhos, e se terá uma fraca idéia do que é o Carnaval em Roma.
            A segunda volta, o conde mandou parar a carruagem e pediu aos companheiros licença para se separar deles, deixando a carruagem à sua disposição. Franz levantou os olhos: estavam diante do Palácio Rospoli, e à janela do meio, aquela que se encontrava forrada de damasco branco com uma cruz vermelha,
estava um dominó azul sob o qual a imaginação de Franz descobriu sem dificuldade a bela grega do Teatro Argentina.
            - Meus senhores - disse o conde ao apear-se –, quando estiverem cansados de ser Atores e quiserem voltar a ser espectadores, sabem que têm um lugar nas minhas janelas. Entretanto, disponham do meu cocheiro, da minha carruagem e dos meus criados.
            Esquecemo-nos de dizer que o cocheiro do conde estava gravemente vestido com uma pele de urso negro, exatamente igual à de Odry em O Urso e o Pax , e que os dois lacaios que se mantinham de pé atrás da caleça envergavam trajes de macaco verde, perfeitamente adaptados à sua estatura, e usavam máscaras de molas com as quais faziam caretas a quem passava.
            Franz agradeceu ao conde a sua amável oferta. Quanto a Albert, todo ele era galanteios com uma carruagem cheia de camponesas romanas, parada, como a  do conde, para um desses descansos tão vulgares nos desfiles e que ele cobria de flores.
            Infelizmente para ele, o cortejo voltou a por-se em andamento, e, quando ele descia para a Praça del Popolo, a carruagem que lhe atraíra a atenção subia para o Palácio de Veneza.
            - Ah, meu caro, não viu?... perguntou a Franz.
            - O quê?
            - Olhe, aquela caleça que vai ali, carregada de camponesas romanas.
            - Não.
            - Pois estou certo de que são mulheres encantadoras.
            - Que azar estar mascarado, meu caro Albert - disse Franz. - Era a altura de se desforrar das suas decepções amorosas!
            - Oh, espero que o Carnaval não termine sem me proporcionar qualquer compensação! - exclamou Albert, meio rindo, meio a sério.
            Apesar desta esperança, o dia passou-se todo sem outra aventura além do reencontro, duas ou três vezes renovado, com a caleça das camponesas romanas. Num desses encontros, como que por acaso, ou por cálculo, a máscara de Albert soltou-se.
            Ao mesmo tempo, ele pegou o resto das flores e atirou-as para a caleça.
            Sem dúvida uma das mulheres encantadoras que Albert adivinhava sob o traje garrido de camponesa ficou impressionada pela galanteria, pois por sua vez, quando a carruagem dos dois amigos voltou a passar, atirou-lhe um ramo de violetas.
            Albert precipitou-se para o ramo. Como Franz não tinha nenhum motivo para crer que fora atirado em sua intenção, deixou Albert apanhá-lo. Albert colocou-o vitoriosamente na lapela e a carruagem continuou a sua corrida triunfal.
            - Pronto, aí está um princípio de aventura! - disse-lhe Franz.
            - Ria à vontade - respondeu Albert –, mas na verdade estou convencido que sim. Por isso, não largo mais este ramo.
            - Acredito! - declarou Franz, rindo. - É um sinal de reconhecimento.
            O gracejo, Aliás, depressa adquiriu o caráter de realidade, pois quando, sempre levados pelo cortejo, Franz e Albert se cruzaram de novo com a carruagem das contadine a que atirara o ramo a Albert bateu as mãos ao ver-lhe a lapela.
            - Bravo, meu caro, bravo – disse-lhe Franz. - Corre tudo às mil maravilhas! Quer que o deixe! talvez seja mais agradável para si estar só...
            - Não - respondeu Albert. - Não precipitemos nada. Não quero me deixar apanhar como um idiota, a uma primeira demonstração, num encontro debaixo do relógio, como dizemos nos bailes da ópera. Se a bela camponesa quiser ir mais longe, a encontraremos amanhã, ou antes, a encontraremos. Então, me dará um  sinal da sua existência e verei o que devo fazer.
            - Na verdade, meu caro Albert - observou Franz –, você é sábio como Nestor e prudente como Ulisses. E se a sua Circe conseguir transformá-lo num animal qualquer, é porque será muito hábil ou muito poderosa.
            Albert tinha razão. A bela desconhecida resolvera, sem dúvida, não levar mais longe o namoro daquele dia; porque embora os jovens dessem ainda várias voltas, não tornaram a ver a caleça que procuravam com a vista: desaparecera decerto por uma das ruas adjacentes. 
            Então dirigiram-se para o Palácio Rospoli, mas o conde também desaparecera com o dominó azul. As duas janelas forradas de damasco amarelo continuavam, de resto, a ser ocupadas por pessoas que sem dúvida convidara.
            Naquele momento, o mesmo sino que tocara para a abertura da mascherata tocou para o  encerramento. A fila do Corso rompeu-se imediatamente e num instante todas as carruagens desapareceram nas ruas transversais.
            Franz e Albert encontravam-se então defronte da Via delle Maratte. O cocheiro meteu por ela sem dizer nada, alcançou a Praça de Espanha contornou o Palácio Poli e parou diante do hotel. Mestre Pastrini veio receber os seus hóspedes à porta.
            O primeiro cuidado de Franz foi informar-se acerca do conde e exprimir o seu pesar por o não terem ido buscar a tempo, mas Pastrini tranquilizou-o dizendo-lhe que o conde de Monte-Cristo reservara segunda carruagem para si e essa carruagem fora buscá-lo às quatro horas no Palácio Rospoli. Além disso, estava encarregado de oferecer da parte dele aos dois amigos a chave do seu camarote no Teatro Argentina.
            Franz consultou Albert acerca das suas disposições, mas Albert tinha grandes projetos a pôr em prática antes de pensar em ir ao teatro. Por isso, em vez de responder, informou-se se mestre Pastrini lhe poderia arranjar um alfaiate.
            - Para que quer o nosso hóspede um alfaiate?
            - Para nos fazer daqui até  amanhã, trajes de camponeses romanos tão elegantes quanto possível - respondeu Albert.
            Mestre Pastrini abanou a cabeça.
            - Fazer-lhes daqui até  amanhã dois trajes?! - exclamou. - Ora aí está, com perdão de Vossas  Excelências, um pedido à francesa. Dois trajes! Se daqui a oito dias não encontrariam com certeza um alfaiate que consentisse em pregar seis botões num colete, nem que lhe pagassem os botões a um escudo cada um!
            - Quer dizer que devo desistir de arranjar os trejes que desejo?
            - Não, porque arranjaremos os trajes prontos. Deixe-me tratar disso e amanhã encontrarão quando acordarem uma coleção de chapéus, jaquetas e calções que os deixará satisfeitos.
            - Meu caro - disse Franz a Albert –, confiemos no nosso hoteleiro, que já nos provou ser homem de recursos. Jantemos pois tranquilamente e depois do jantar vamos ver A Italiana no Argel.
            - Seja A Italiana no  Argel - admitiu Albert. - Mas não se esqueça, mestre Pastrini, que eu e este senhor - continuou, indicando Franz - atribuímos a mais alta importância a termos amanhã os trajes que pedimos.
            O hoteleiro garantiu mais uma vez aos seus hóspedes que não tinham de se preocupar fosse com o que fosse e que os seus desejos seriam satisfeitos. Assim Franz e Albert subiram aos seus quartos para despirem os trajes de palhaços.
            Ao despir o seu, Albert tirou com o maior cuidado o ramo de violetas: era o seu sinal de  reconhecimento para o dia seguinte.
            Os dois amigos sentaram-se à mesa; mas enquanto jantavam, Albert não pode deixar de notar a diferença notável que existia entre os méritos respectivos dos cozinheiros de mestre Pastrini e do conde de Monte-Cristo. Ora, a verdade obrigou Franz a confessar, apesar das prevenções que parecia ter contra o conde, que a comparação não era nada a favor do chefe de Pastrini. 
            À sobremesa, o criado perguntou a que horas os dois jovens desejavam a carruagem. Albert e Franz entreolharam-se, receando sinceramente abusar, mas o criado tranquilizou-os:
            - Sua Excelência o conde de Monte-Cristo - disse - deu ordens terminantes para que a carruagem ficasse todo o dia às ordens de Suas Senhorias. Suas Senhorias podem portanto dispor dela sem receio de abusar.
            Os jovens resolveram aproveitar até  ao fim a cortesia do conde e mandarem atrelar os cavalos enquanto eles iam trocar por um traje de noite o seu traje de dia, que estava um bocadinho amarrotado pelos numerosos combates em que tinham participado.
            Tomada esta precaução, dirigiram-se para o Teatro Argentina e instalaram-se no camarote do conde.
            Durante o primeiro Ato, a condessa G... entrou no dela e o seu primeiro olhar foi para o lado onde na véspera vira o conde, de modo que viu Franz e Albert no camarote daquele acerca de quem exprimira a Franz, havia vinte e quatro horas, opinião bastante estranha.
            O seu binóculo visava-o tão intensamente que Franz se convenceu ser uma crueldade tardar mais tempo a satisfazer a curiosidade da condessa. Por isso, usando do privilégio  concedido aos espectadores dos teatros italianos, que consiste em transformar salas de espetáculo em salas de recepção, os dois amigos deixaram o seu camarote e foram apresentar as suas homenagens à condessa.
            Mal entraram no camarote, ela fez sinal a Franz para se sentar no lugar de honra.
            Por sua vez, Albert sentou-se atrás.
            - Então - disse a condessa quase sem dar tempo a Franz de se sentar –, parece que não tiveram nada mais urgente que fazer do que travar conhecimento com o novo Lorde Ruthwen e tornarem-se os melhores amigos do mundo...
            - Sem que estejamos tão adiantados como diz numa intimidade recíproca não posso negar, Sra Condessa - respondeu Franz -, que abusamos todo o dia da sua amabilidade.
            - Como, todo o dia?
            - É como lhe digo: esta manhã aceitamos o seu café da manhã, durante toda a mascherata  percorremos o Corso na sua carruagem e finalmente à noite assistimos ao espetáculo no seu camarote.
            - Conhecem-no, portanto?
            - Sim e não.
            - Como assim?
            - É uma longa história.
            - Que me contar ?
            - Lhe causaria demasiado medo.
            - Mais uma razão.
            - Espere ao menos que a história tenha um desenlace.
            - Seja, gosto das histórias completas. Entretanto, como entraram em contato? Quem os apresentou?
            - Ninguém. Foi ele, pelo contrário, que se apresentou a nós.
            - Quando?
            - Ontem à noite, depois de deixá-la.
            - Por intermédio de quem?
            - Oh, meu Deus, pelo intermédio prosaiquíssimo do nosso hoteleiro! 
            - Está portanto hospedado no Hotel de Espanha como os senhores?
            - Não só no mesmo hotel, mas também no mesmo andar.
            - Como se chama? Porque sem dúvida sabem o seu nome...
            - Perfeitamente. Conde de Monte-Cristo.
            - Que nome é esse? Não é um nome de família.
            - Não, é o nome de uma ilha que ele comprou.
            - E é conde?
            - Conde toscano.
            - Enfim, engoliremos isso como os outros - declarou a condessa, que pertencia a uma das mais antigas famílias dos arredores de Veneza. - Mas que espécie de homem é ele?
            - Pergunte ao visconde de Morcerf.
            - Ouviu, senhor? Remetem-me para si - disse a condessa.
            - Seríamos demasiado exigentes se não o achassemos encantador, minha senhora - respondeu Albert. - Um amigo de dez anos não faria por nós mais do que ele tem feito, e com uma graça, uma delicadeza, uma cortesia que indicam realmente tratar-se de um homem de sociedade.
            - Bom - disse a condessa, rindo –, verão que o meu vampiro acaba por ser muito simplesmente algum novo rico que quer que lhe perdoem os seus milhões e se meteu na pele de Lara para não o confundirem com o Sr. de Rothschild. E ela, viram-na?
            - Ela, quem? - perguntou Franz, sorrindo.
            - A bela grega de ontem.
            - Não. Ouvimos, se não me engano, o som da sua guzla, mas ela conservou-se absolutamente invisível.
            - Isto é, quando diz invisível, meu caro Franz - observou Albert –, é apenas para adensar o mistério, não é verdade? Quem acha que era o dominó azul que estava na janela forrada de damasco branco?
            - E onde estava essa janela forrada de damasco branco? - perguntou a condessa.
            - No Palácio Rospoli.
            - O conde tinha portanto três janelas no Palácio Rospoli?
            - Tinha. Passou na rua do Corso?
            - Sem dúvida.
            - Não notou duas janelas forradas de damasco amarelo e uma janela forrada de damasco branco com uma cruz vermelha? Essas três janelas eram do conde.
            - Ah, sim?... Mas então esse homem é um nababo! Sabem quanto custam três janelas como essas para os oito dias de Carnaval e no Palácio Rospoli, isto é, na melhor situação do Corso?
            - Duzentos ou trezentos escudos romanos...
            - Diga dois ou três mil.
            - Demônio!
            - É a sua ilha que lhe dá tão bom rendimento?
            - A sua ilha? Não lhe rende nem um chavo.
            - Nesse caso, porque a comprou?
            - Por capricho.
            - Trata-se portanto de um original? 
            - Efetivamente - declarou Albert –, pareceu-me bastante excêntrico. Se morasse em Paris e frequentasse os nossos espetáculos, diria-lhe, meu caro, que se tratava de um brincalhão de mau gosto cheio de pose ou de um pobre diabo que a literatura não soube aproveitar. Na realidade, teve esta manhã duas ou três saídas dignas de Didier ou de Antony.
            Neste momento entrou uma visita e, segundo o uso, Franz cedeu o seu lugar ao recém-chegado. Esta circunstância, além da troca de lugares, teve ainda como resultado mudar o tema da conversa.
            Uma hora mais tarde, os dois amigos regressaram ao hotel. Mestre Pastrini ocupara-se já das suas máscaras para o dia seguinte e prometeu-lhes que ficariam satisfeitos com a sua inteligente atividade.
            Com efeito, no dia seguinte às nove horas entrava no quarto de Franz com um alfaiate carregado com oito ou dez trajes de camponês romano. Os dois amigos escolheram dois iguais, mais ou menos à medida do seu corpo, e encarregaram o hoteleiro de lhes mandar pregar uns vinte metros de fitas em cada chapéu e de lhes arranjar dois desses encantadores lenços de seda de barras transversais e cores vivas com que os homens do povo têm o hábito, nos dias de festa, de apertar a cintura.
            Albert tinha pressa de ver como lhe ficaria o seu novo traje, o qual se compunha de uma jaqueta e de uns calções de veludo azul, meias bordadas, sapatos de fivela e colete de seda. Aliás, Albert só podia ser beneficiado com este traje pitoresco. E quando cingiu com aquela espécie de faixa a cintura elegante, e o chapéu, ligeiramente inclinado para um lado, lhe deixou cair sobre o ombro ondas de fitas, Franz foi obrigado a confessar que o traje representa quase sempre muito na superioridade tísica que concedemos a certos povos. Os turcos, dantes tão pitorescos com as suas longas túnicas de cores vivas, não são agora ridículos com as suas sobrecasacas azuis abotoadas e os seus barretes gregos que lhes dão o ar de garrafas de vinho de cápsula vermelha?
            Franz felicitou Albert, que, de resto, de pé diante do espelho, sorria com um ar de satisfação que não tinha nada de equívoco. Estavam nisto quando o conde de Monte-Cristo entrou.
            - Meus senhores - disse-lhes –, como por mais agradável que seja um companheiro de prazer a liberdade é ainda mais agradável, venho dizer-lhes que hoje e nos dias seguintes deixo à sua disposição a carruagem de que se serviram ontem. O nosso hoteleiro deve ter-lhes dito que tenho três ou quatro alugadas no hotel; portanto, essa não me faz falta e podem servir-se dela livremente, quer para as suas saídas de prazer, quer para as de negócios.Nos encontraremos, se tivermos alguma coisa a dizer uns aos outros, no Palácio Rospoli.
            Os dois jovens quiseram fazer-lhe qualquer observação, mas na realidade não tinham nenhum motivo aceitável para recusar uma oferta que aliás lhes era agradável. Acabaram pois por aceitar.
            O conde de Monte-Cristo ficou cerca de um quarto de hora com eles, falando de todas as coisas com extrema facilidade.  Encontrava-se, como já tinham podido notar, muito ao corrente da literatura de todos os países. Uma olhadela às paredes da sua sala provara a Franz e a Albert que era amador de quadros. Algumas palavras despretensiosas que deixou escapar por acaso provaram-lhes que as ciências lhe não eram estranhas. Parecia sobretudo ter-se ocupado especialmente da química. 
            Os dois amigos não tinham a pretensão de oferecer ao conde o café da manhã que lhes dera, e seria um gracejo de muito mau gosto servir-lhe, em troca da sua excelente refeição, a comida muitíssimo medíocre de mestre Pastrini. Assim lhe disseram com toda a franqueza e ele recebeu as suas desculpas como homem
que apreciava a sua delicadeza.
            Albert estava entusiasmado com as maneiras do conde, que só a sua ciência o impedia de o considerar um autêntico fidalgo. Sobretudo a liberdade de dispor inteiramente da carruagem enchia-o de alegria. Tinha os seus planos a respeito das graciosas camponesas, e como elas lhe tinham aparecido na
véspera numa carruagem elegantíssima, não lhe desagradava continuar a parecer nesse ponto em pé de igualdade com elas.
            Os dois jovens desceram à uma e meia. O cocheiro e os lacaios tinham tido a idéia de vestir os casacos das librés debaixo das suas peles de animais, o que lhes dava aspecto ainda mais grotesco do que na véspera e lhes valeu muitas felicitações de Franz e Albert.
            Albert colocara sentimentalmente na lapela o seu ramo de violetas já murchas. Mal soou o sino, partiram e precipitaram-se na rua do Corso pela Via Vitioria.
            À segunda volta, um ramo de violetas frescas partiu de uma caleça carregada de palhaças e veio cair na caleça do conde. Albert teve assim a indicação de que, tal como ele e o amigo, as camponesas da véspera também tinham mudado de traje, e de que, quer por acaso, quer por um sentimento idêntico àquele
que os impelira, enquanto eles, galantemente, tinham escolhido o traje delas, elas pela sua parte haviam escolhido o deles.
            Albert pôs o ramo fresco no lugar do outro, mas conservou o ramo murcho na mão, e quando se cruzou de novo com a caleça, levou-o apaixonadamente aos lábios, o que pareceu divertir muito, não só a que lhe atirara, mas também as suas loucas companheiras.
            O dia não foi menos animado do que a véspera. É até  provável que um profundo observador tivesse notado um aumento de barulho e alegria. Viram por momentos o conde à sua janela, mas quando a carruagem tornou a passar ele já desaparecera. Não é necessário dizer que a troca de galanteios entre Albert e a palhaça dos ramos de violetas durou todo o dia.
            À noite, quando regressaram, Franz encontrou uma carta da embaixada em que lhe anunciavam que teria a honra de ser recebido no dia seguinte por Sua Santidade. Em todas as viagens que fizera anteriormente a Roma solicitara e obtivera o mesmo favor. E tanto por devoção como por reconhecimento, não quisera passar pela capital do mundo cristão sem depositar as suas respeitosas homenagens aos pés
de um dos sucessores de S. Pedro que tem dado o raro exemplo de todas as virtudes.
            Naquele dia não se tratava portanto para ele de pensar no Carnaval; porque apesar da bondade de que o Santo Padre rodeia a sua grandeza, é sempre com um respeito cheio de profunda emoção que as pessoas se inclinam diante do nobre e santo velho chamado Gregório XVI.
            Quando saiu do Vaticano, Franz foi direito ao hotel e evitou até passar pela rua do Corso. Levava consigo um tesouro de pensamentos piedosos para os quais o contato com as loucas alegrias da mascherata seria uma profanação. 
            Albert regressou às cinco horas e dez minutos. Vinha eufórico. A palhacinha tornara a envergar o seu traje de camponesa e ao passar pela caleça de Albert tirara a máscara. Era encantadora.
            Franz apresentou a Albert as suas mais sinceras felicitações e ele recebeu-as como homem a quem são devidas. Reconhecera, dizia, por certos sinais de elegância inimitável, que a sua bela desconhecida pertencia à mais alta aristocracia. Estava decidido a escrever-lhe no dia seguinte.
            Ao receber tal confidência, Franz notou que Albert parecia ter qualquer coisa a pedir-lhe, mas que no entanto hesitava em fazer-lhe o pedido. Insistiu, declarando-lhe antecipadamente que estava pronto a fazer em benefício da sua felicidade todos os sacrifícios que estivessem na sua mão, mas Albert fez-se de rogado  exatamente o tempo exigido por uma amistosa delicadeza. Por fim, confessou a Franz que lhe prestaria um grande favor se no dia seguinte lhe cedesse a caleça só para ele. Albert atribuía à ausência do amigo a extrema bondade que tivera a bela camponesa em tirar a máscara.
            Como se compreende, Franz não era egoísta ao ponto de levantar dificuldades a Albert no meio de uma aventura que prometia ao mesmo tempo ser tão agradável para a sua curiosidade e tão lisonjeira para o seu amor-próprio. Conhecia bastante bem a perfeita indiscrição do seu digno amigo e tinha a certeza de que ele o manteria ao corrente dos mais pequenos pormenores da sua boa fortuna. E como, desde que havia dois ou três anos que percorria a Itália em todos os sentidos, nunca tivera sequer a oportunidade de esboçar um namoro assim em seu proveito, Franz estava ansioso por saber como se passavam as coisas em semelhante caso. Prometeu portanto a Albert que no dia seguinte se limitaria a admirar o espetáculo das janelas do Palácio Rospoli.
            Com efeito, no dia seguinte viu passar e tornar a passar Albert. Trazia um ramo enorme que sem dúvida encarregara de ser o portador da sua epístola amorosa. Tal probabilidade transformou-se em certeza quando Franz tornou a ver o mesmo ramo, notável devido a um círculo de camélias brancas, nas mãos de uma encantadora palhaça vestida de cetim cor-de-rosa.
            Por isso, a noite já não foi de alegria, foi de delírio. Albert estava certo de que a bela desconhecida lhe responderia pela mesma via. Franz foi ao encontro dos seus desejos dizendo-lhe que todo aquele barulho o fatigava e que estava decidido a empregar o dia seguinte a rever o seu álbum e a tomar apontamentos.
            Aliás, Albert não se enganara nas suas previsões: no dia seguinte à noite, Franz viu-o entrar-lhe no quarto num salto, agitando maquinalmente uma folha de papel segura por uma ponta.
            - Então, enganei-me? - perguntou.
            - Ela respondeu? - inquiriu Franz.
            - Leia.
            Esta palavra foi pronunciada com uma intonação impossível de reproduzir. Franz pegou no bilhete e leu: 
            Terça-feira à noite. às sete horas desça da sua carruagem defronte da Via dei Pontefici e siga a camponesa romana que lhe tirar o seu moccoletto. Quando chegar ao primeiro degrau da Igreja de San-Giacomo tome o cuidado para que ela o possa reconhecer de atar uma fita cor-de-rosa no ombro do seu traje
de palhaço.
            Daqui até lá não me verá mais.
            Constância e discrição.
            - Que pensa disso, caro amigo? - perguntou Albert a Franz quando este terminou a leitura.
            - Penso - respondeu Franz - que a coisa toma todo o carater de uma aventura deveras agradável.
            - É também a minha opinião- disse Albert - e receio muito que você tenha de ir sozinho ao baile do duque de Bracciano.
            Franz e Albert tinham recebido naquela mesma manhã um convite do célebre banqueiro romano.
            - Cautela, meu caro Albert - recomendou-lhe Franz. - Toda a aristocracia estará na casa do duque, e se a sua bela desconhecida pertence de fato à aristocracia, não poderá dispensar-se de comparecer.
            - Compareça ou não, mantenho a minha opinião acerca dela - perguntou Albert. - Não leu o bilhete?
            - Li.
            - Conhece a pobre educação que recebem na Itália as mulheres do mezzo cito? Chama-se assim à burguesia.
            - Conheço - tornou a responder Franz
            - Então, releia o bilhete, examine a letra e descubra-me um erro de língua ou de ortografia.
            Com efeito, a letra era encantadora e a ortografia impecável
            - Você é um predestinado - disse Franz a Albert, restituindo-lhe o bilhete pela segunda vez.
            - Ria à vontade e graceje o quanto quiser - declarou Albert. - Estou apaixonado.
            - Oh, meu Deus, assusta-me! - exclamou Franz. - E vejo que não só irei sozinho ao baile do duque de Bracciano, como ainda poderei muito bem regressar sozinho a Florença.
            - A verdade é que se a minha desconhecida for tão amável como é bela, declaro-lhe que me fixo em Roma durante pelo menos seis semanas Adoro Roma e além disso sempre tive uma predileção acentuada pela arqueologia.
            - Vamos, mais um encontro ou dois como esse e não desespero de o ver membro da Academia de Inscrições e Belas-Letras.
            Albert preparava-se sem dúvida para discutir seriamente os seus direitos à cadeira acadêmica, mas vieram anunciar aos dois jovens que o jantar estava servido. Ora, em Albert o amor não era de modo algum contrário ao apetite. Apressou-se pois, assim como o amigo, a sentar-se à mesa, resolvido a retomar a
discussão depois do jantar.
            Mas depois do jantar anunciaram-lhes o conde de Monte-Cristo. Havia dois dias que os jovens o não viam. Mestre Pastrini dissera-lhes que um negócio o chamara a Civita-Vecchia. Partira na véspera à noite e regressara havia apenas uma hora.
            O conde foi encantador. Quer porque se contivesse, quer porque a ocasião não despertasse nele as fibras acrimoniosas que certas circunstâncias tinham já feito vibrar duas ou três vezes e o haviam levado a proferir palavras amargas; a verdade é que foi pouco mais ou menos como toda a gente. Aquele homem
constituía para Franz um autêntico enigma. O conde não podia duvidar de que o jovem viajante o reconhecera. E no entanto nem uma só palavra desde o seu novo encontro parecia indicar na sua boca que se recordava de o ter visto em outro lugar. Pela sua parte, ainda que Franz desejasse aludir ao seu primeiro encontro, continha-o o receio de ser desagradável para com um homem que o cumulara, a si e ao amigo, de atenções. Continuou portanto a manter a mesma reserva que ele.
            O conde soubera que os dois amigos tinham querido comprar um camarote no Teatro Argentina e lhos haviam respondido que estava tudo vendido. Trazia-lhes por isso a chave do seu. Pelo menos era esse o
motivo aparente da sua visita.
            Franz e Albert fizeram-se um bocadinho rogados, alegando o receio de o privarem do camarote. Mas o conde respondeu-lhes que como ia naquela noite ao Teatro Palli, o seu camarote no Teatro Argentina se perderia se eles o não aproveitassem. Este tato determinou os dois amigos a aceitarem.
            Franz habituara-se pouco a pouco à palidez do conde, que tanto o impressionara da primeira vez que o vira. Não podia deixar de prestar justiça à beleza do seu rosto severo, cuja palidez constituía o seu único defeito ou talvez a sua principal qualidade. Autêntico herói de Byron, Franz não podia, não diremos vê-lo, mas apenas pensar nele, sem imaginar aquele rosto pálido e sombrio sobre os ombros de Manfredo ou sob o
barrete de Lara. Tinha na testa essa ruga que indica a presença incessante de um pensamento amargo; possuía uns olhos ardentes que penetravam até  às profundezas das almas, e nem sequer lhe faltava, para completar o quadro, os lábios orgulhosos e zombeteiros que dão às palavras que preferem o carater especial que as leva a gravarem-se profundamente na memória daqueles que as escutam.
            O conde já não era novo. Tinha pelo menos quarenta anos e no entanto adivinhava-se sem custo que estava preparado para levar a melhor ao jovem com quem deparasse. Na realidade, numa derradeira semelhança com os heróis fantásticos do poeta inglês, o conde parecia possuir o dom da fascinação.
            Albert não se cansava de salientar a sorte que ele e Franz tinham tido em encontrar semelhante homem. Franz era menos entusiasta, mas mesmo assim sofria a influência que exerce qualquer homem superior no espírito daqueles que o rodeiam. Pensava no projeto de ir a Paris que já por duas ou três vezes o conde manifestara e não duvidava que com o seu carater excêntrico, o seu rosto característico e a sua
fortuna colossal o conde produziria o maior efeito. E contudo não desejaria encontrar-se em Paris quando ele lá fosse.
            A noite passou-se como se passam habitualmente as noites no teatro na Itália, não escutando os cantores, mas sim fazendo visitas e conversando. A condessa G... queria reatar a conversa sobre o conde, mas Franz anunciou-lhe que  tinha coisa muito mais recente a comunicar-lhe e, apesar das demonstrações de falsa modéstia a que se entregou Albert, contou à condessa o grande acontecimento que havia três dias
era objeto das preocupações dos dois amigos.
            Como tais namoros não são raros na Itália, pelo menos a julgar pelo que dizem os viajantes, a condessa não se mostrou nada incrédula e felicitou Albert pelas primícias de uma aventura que prometia terminar de forma tão satisfatória. Separaram-se prometendo reencontrar-se no baile do duque de
Bracciano, para o qual Roma em peso fora convidada. A dama do ramo cumpriu a sua promessa: nem no dia seguinte nem no outro deu a Albert sinal de existência.
            Chegou por fim terça-feira, o último e o mais ruidoso dos dias de Carnaval. Na terça-feira os teatros abrem às dez horas da manhã, porque depois das oito horas da noite entra-se na Quaresma. Na terça-feira, todos aqueles que por falta de tempo, de dinheiro ou de entusiasmo ainda não participaram nas festas anteriores, juntam-se à bacanal, deixam-se arrastar pela orgia e contribuem com a sua parte de barulho e movimento para o movimento e o barulho gerais.
            Das duas às cinco horas, Franz e Albert seguiram no cortejo, trocando punhados de confetti com as carruagens da fila oposta e os peões que circulavam entre as patas dos cavalos e as rodas das carruagens sem que acontecesse no meio de tão medonha barafunda um único acidente, uma única disputa, uma única rixa. Nestas coisas, não há nenhum povo como o italiano. As festas são para ele verdadeiras festas. O autor desta história, que residiu na Itália cinco ou seis anos, não se recorda de ter visto alguma vez uma solenidade perturbada por um só desses acontecimentos que servem sempre de corolário às nossas.
            Albert triunfava no seu traje de palhaço. Tinha no ombro um laço de fita cor-de-rosa cujas pontas lhe caíam até  às curvas das pernas Para não haver qualquer confusão entre ele e Franz, este conservara o seu traje de camponês romano.
            Quanto mais o dia avançava, maior era o tumulto. Não havia em todas aquelas ruas, em todas aquelas carruagens, em todas aquelas janelas uma boca que se mantivesse calada, um braço que se conservasse ocioso. Era verdadeiramente uma tempestade humana, composta por uma trovoada de gritos e uma saraivada de confeitos, flores, ovos, laranjas e ramos.
            Às três horas, o barulho de foguetes lançados simultaneamente da Praça do Povo e do Palácio de Veneza sobrepôs-se com dificuldade ao tumulto ensurdecedor e anunciou que as corridas iam começar.
            As corridas, como os moccolli, são um dos episódios característicos dos últimos dias de Carnaval Ao soar o estrépito dos foguetes, as carruagens romperam imediatamente as fileiras e refugiaram-se nas ruas transversais mais próximas do lugar onde se encontravam.
            Todas estas evoluções se efetuam, de resto, com inconcebível perícia e maravilhosa rapidez, e isso sem que a Polícia se dê ao menor incômodo de indicar a cada um o seu lugar ou de traçar a cada um o seu caminho.
            Os peões encontraram-se às paredes dos palácios e em seguida ouviu-se um grande barulho de cavalos e bainhas de sabre. Um esquadrão de carabineiros a quinze de frente percorria a galope e a toda a largura a rua do Corso, que varria para abrir lugar aos barberi. Quando o esquadrão chegou ao Palácio de Veneza, o rebentamento doutra girândola de foguetes anunciou que a rua estava livre. 
             Quase imediatamente, no meio de um clamor imenso, universal, inaudito, viram-se passar como sombras sete ou oito cavalos excitados pelos clamores de trezentas mil pessoas e pelas castanhas de ferro que lhes saltavam no dorso. Depois, o canhão do Castelo de Santo ângelo disparou três tiros. Estes
destinavam-se a anunciar que o número três ganhara.
            Ato contínuo, sem outro sinal além daquele, as carruagens puseram-se de novo em movimento e refluíram, para o Corso, transbordando de todas as ruas como torrentes por instantes contidas que se lançam ao mesmo tempo no leito do rio que alimentam, e a vaga imensa recomeçou, mais rápida do que nunca, o seu curso entre as duas margens de granito.
            Apenas um novo elemento de barulho e movimento se viera ainda juntar à multidão: os vendedores de moccoli acabavam de entrar em cena.
            Os maccolli ou moccoletti são velas que variam de tamanho, desde o círio pascal até  ao rolo de pavio, e que provocam nos atores da grande representação com que termina o Carnaval romano duas  preocupações opostas:
            1ª - A de conservar aceso o seu mocoletto;
            2ª - A de apagar o moccoletto dos outros.
            Passa-se com o moccoletto o mesmo que com a vida: o homem ainda só encontrou um meio de a transmitir, e esse meio recebe-o de Deus. Mas descobriu mil meios de a tirar, e a verdade é que nessa
operação suprema o Diabo o tem ajudado um bocadinho. O moccoletto acende-se chegando-se a uma chama qualquer.
            Mas como descrever as mil maneiras inventadas para apagar o moccoletto, os foles gigantescos, os apagadores monstros, os leques sobre-humanos? Toda as pessoas se apressaram a comprar moccoletti, Franz e Albert como os outros.
            A noite aproximava-se rapidamente, e em breve, ao grito de “Moccoli!" repetidos pelas vozes estridentes de um milhar de vendedores, duas ou três estrelas começaram a brilhar por cima da multidão. Foi como que um sinal.
            Ao cabo de dez minutos, cinquenta mil luzes cintilaram, descendo o Palácio de Veneza para a Praça do Povo e subindo da Praça do Povo para o Palácio de Veneza. Dir-se-ia a festa dos fogos-fátuos.
            Não se pode fazer idéia do aspecto de conjunto; só visto.
            Suponha o leitor que todas as estrelas se desprendiam do céu e se juntavam na Terra numa dança insensata, tudo acompanhado de gritos como nunca ouvido humano escutou no resto da superfície do Globo.
            E sobretudo nesse momento que desaparecem as diferenças sociais. O facchino mistura-se com o príncipe, o príncipe com o trastevere e o trastevere com o burguês, todos soprando, apagando e reacendendo. Se o velho Éolo aparecesse em semelhante altura, seria proclamado rei dos moccolli, e
Aquilão, herdeiro presuntivo da coroa.
            Esta corrida louca e resplandecente durou aproximadamente duas horas. A rua do Corso estava iluminada como em pleno dia. Distinguiam-se as feições dos espectadores até  ao terceiro e quarto andares.
            Albert puxava do relógio de cinco em cinco minutos. Por fim, os ponteiros marcaram as sete horas. 
            Os dois amigos encontravam-se precisamente nas imediações da Via dei Pontefich Albert saltou da caleça com o seu moccoletto na mão.
            Dois ou três mascarados quiseram aproximar-se dele para o apagarem ou tirarem; mas como hábil pugilista que era, Albert fê-los rolar um após outro a dez passos de distância e continuou o seu caminho para a Igreja de San-Giacomo
            Os degraus estavam cheios de curiosos e de máscaras que lutavam para ver quem arrancaria as velas das mãos uns dos outros. Franz seguia Albert com a vista e viu-o pôr o pé no primeiro degrau. Depois, quase imediatamente, uma mascara com o traje bem conhecido da camponesa do ramo estendeu o braço e, sem que desta vez ele oferecesse qualquer resistência, tirou-lhe o moccoletto.
            Franz estava demasiado longe para ouvir as palavras que trocaram; mas sem dúvida não tiveram nada de hostil, pois viu afastar-se Albert e a camponesa de braço dado. Durante algum tempo seguiu-os no meio da multidão, mas na Via Macello perdeu-os de vista
            De súbito, soou o toque do sino que dá o sinal do encerramento do Carnaval. no mesmo instante, todos os moccoli se apagaram como que por encanto. Diria-se que uma única e imensa lufada de vento aniquilara tudo.
            Franz encontrou-se no meio da escuridão mais profunda
            Ao mesmo tempo, todos os gritos cessaram, como se o sopro poderoso que extinguira as luzes tivesse extinguido ao mesmo tempo os ruídos.
            Ouviu-se apenas o rodar das carruagens que reconduziam as máscaras a suas casas e viram-se unicamente as raras luzes que brilhavam atrás das janelas.
            O Carnaval terminara.

Capítulo XXXVII

As Catacumbas de S. Sebastião


            Franz talvez nunca tivesse experimentado na sua vida uma impressão tão nítida, uma passagem tão rápida da alegria à tristeza, como naquele momento. Diria-se que Roma, sob o sopro mágico de algum demônio da noite, acabava de se transformar num vasto túmulo. Por um caso que aumentava ainda mais a intensidade das trevas, a Lua, que estava em quarto minguante, só devia aparecer por volta das onze horas da noite. As ruas que o jovem percorria estavam portanto mergulhadas na mais profunda escuridão. De resto, o trajeto era curto. Ao cabo de dez minutos a sua carruagem, ou antes, a do conde, parou diante do Hotel de Espanha.
            O jantar esperava; mas como Albert prevenira de que não contava regressar tão cedo, Franz sentou-se à mesa sem ele. Mestre Pastrini, que estava habituado a vê-los jantar juntos, perguntou o motivo da sua ausência; mas Franz limitou-se a responder que Albert recebera na antevéspera um convite que aceitara. A extinção súbita dos moccoletti, a escuridão que substituíra a luz, o silêncio que sucedera ao barulho, tinham
deixado no espírito de Franz uma certa tristeza que não estava isenta de  inquietação. Jantou portanto muito
silenciosamente, apesar da solicitude oficiosa do seu hospedeiro, que entrou duas ou três vezes para perguntar se não precisava de nada.
            Franz estava resolvido a esperar Albert até o mais tarde possível. Pediu pois a carruagem apenas para as onze horas e solicitou a mestre Pastrini que o mandasse prevenir imediatamente se Albert voltasse ao hotel, fosse qual fosse o motivo. As onze horas, Albert ainda não regressara Franz vestiu-se e saiu, depois de prevenir o hoteleiro de que passaria a noite na casa do duque de Bracciano.
            A casa do duque de Bracciano, é uma das mais encantadoras casas de Roma, e sua mulher, umas das últimas herdeiras dos Colona, faz-lhe as honras na perfeição. Resulta daí que as festas que ele dá gozam de celebridade europeia. Franz e Albert tinham chegado a Roma com cartas de recomendação para ele. Por isso as primeiras palavras do duque foram para perguntar a Franz o que era feito do seu companheiro de viagem. Franz respondeu-lhe que se tinham separado no momento em que se iam apagar os moccoli e que o perdera de vista na Via Macello.
            - E ainda não regressou? - perguntou o duque.
            - Esperei-o até  agora - respondeu Franz.
            - Sabe aonde ia?
            - Não, exatamente. Creio porém que se tratava de qualquer coisa como uma entrevista amorosa
            - Diabo - disse o duque –, é mau dia, ou antes, é má noite para uma pessoa se demorar lá fora! Não é verdade, Sra Condessa?
            Estas últimas palavras dirigiam-se à condessa G.... que acabava de chegar e passeava pelo braço do Sr. Torlonia, irmão do duque.
            - Acho, pelo contrário, que se trata de uma noite encantadora - respondeu a condessa. - Aqueles que estão aqui só se queixarão de uma coisa: de que passar  demasiado depressa.
            - Por isso - perguntou o duque, sorrindo –, não me refiro às pessoas que estão aqui. Essas só correm um perigo: os homens, de se apaixonarem pela senhora; as mulheres de adoecerem de inveja ao verem-na tão bela. Refiro-me às pessoas que andam pelas ruas de Roma.
            - Meu Deus - perguntou a condessa –, quem anda pelas ruas de Roma a estas horas, a não ser que seja para ir ao baile?
            - O nosso amigo Albert de Morcerf, Sra Condessa, que deixei atrás da sua desconhecida por volta das sete horas da noite - respondeu Franz - e que desde então nunca mais vi.
            - Como, e não sabe onde está?
            - Não faço a menor idéia.
            - Está armado?
            - Foi vestido de palhaço.
            - Não devia te-lo deixado ir - disse o duque a Franz - pois conhece Roma melhor do que ele.
            - Pois sim, mas seria o mesmo que tentar deter o número três dos barberi, que hoje ganhou a corrida - respondeu Franz. - De resto, que poderia lhe acontecer? 
            - Sei lá! A noite está muito escura e o Tibre fica muito perto da Via Macello. Franz sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo ao ver o duque e a condessa tão de acordo com as suas inquietações pessoais.
            - Por isso deixei recado no hotel de que tinha a honra de passar a noite em sua casa, Sr. Duque - disse Franz –, para me virem anunciar o seu regresso.
            - Olhe - atalhou o duque –, creio precisamente que um dos meus criados anda à sua procura.
            O duque não se enganava Ao ver Franz, o criado aproximou-se dele.
            - Excelência - disse –, o dono do Hotel de Espanha manda dizer-vos que está lá à vossa espera um homem com uma carta do visconde de Morcerf.
            - Com uma carta do visconde?! - exclamou Franz.
            - Exatamente.
            - E quem é esse homem?
            - Ignoro-o
            - Porque não veio traze-la aqui?
            - O mensageiro não me deu nenhuma explicação.
            - E onde está o mensageiro?
            - Foi-se embora assim que me viu entrar na sala do baile para o prevenir.
            - Oh, meu Deus, vá  depressa - rogou a condessa a Franz. - Pobre rapaz, pode ter ocorrido algum acidente.
            - Vou imediatamente - respondeu Franz.
            - Voltará, para nos dar notícias? - perguntou a condessa.
            - Voltarei, se o caso não for grave. De contrário, não sei o que será de mim próprio.
            - Em todo o caso, prudência - recomendou a condessa.
            - Oh, esteja tranquila!
            Franz pediu o chapéu e partiu a toda a pressa. Mandara embora a carruagem e ordenara ao cocheiro que viesse buscá-lo às duas horas, mas, por sorte, o Palácio Bracciano, que dá por um lado para a rua do Corso e por outro para a Praça dos Santos Apóstolos, fica apenas a dez minutos a pé do Hotel de Espanha.
Ao aproximar-se do hotel, Franz viu um homem de pé no meio da rua e não duvidou um só instante que fosse o mensageiro de Albert. O homem estava envolto numa grande capa. Foi ao seu encontro, mas com grande espanto de Franz, o homem foi o primeiro a dirigir-lhe a palavra.
            - Que quer de mim, Excelência? - perguntou dando um passo atrás, como um homem que se põe em guarda.
            - Não é o senhor que me traz uma carta do visconde de Morcerf? - perguntou Franz.
            - Vossa Excelência está hospedado no hotel de Pastrini?
            - Estou.
            - E Vossa Excelência é o companheiro de viagem do visconde? - Sou.
            - Como se chama Vossa Excelência?
            - Barão Franz de Epinay.
            - Então é de fato a Vossa Excelência que esta carta é dirigida.
            - Tem resposta? - perguntou Franz, tirando-lhe a carta da mão.
            - Tem. Pelo menos o seu amigo a espera.
            - Venha ao meu quarto para lha dar.
            - Prefiro esperá-la aqui - replicou, rindo, o mensageiro. 
            - Porquê?
            - Vossa Excelência compreenderá  porquê quando ler a carta.
            - E o encontrarei aqui?
            - Sem dúvida nenhuma.
            Franz entrou. Na escada encontrou mestre Pastrini
            - Então? - perguntou-lhe o hoteleiro.
            - Então o quê? - respondeu Franz.
            - Viu o homem que desejava falar-lhe da parte do seu amigo? - inquiriu Pastrini
            - Vi, sim, e entregou-me esta carta - respondeu Franz. - Mande alumiar-me até  ao quarto, por favor.
            O hoteleiro ordenou a um criado que precedesse Franz com uma vela O jovem notara em mestre Pastrini um ar assustado, ar que só contribuíra para aumentar o seu desejo de ler a carta de Albert. Por isso, aproximou-se da vela assim que ela foi acesa e desdobrou o papel. A carta fora escrita pelo punho de Albert
e estava assinada por ele. Franz releu-a duas vezes, de tal forma estava longe de esperar o que continha. Ei-la reproduzida textualmente:
            Caro amigo. Assim que receber a presente, faça favor de tirar da minha carteira, que encontrará na gaveta quadrada da minha escrivaninha a minha carta de crédito. Junte-lhe a sua se ela não for suficiente. Corra a casa de Torlonia, levante imediatamente quatro mil piastras e entregue-as ao portador. É urgente que esta importância me seja enviada sem qualquer demora.
            Não insisto mais, mas conto consigo como você poderia contar comigo.
            P.S. - I believe now to italian banditti. (1)
            Seu amigo,
            ALBERT DE MORCERF

            Por baixo destas linhas estavam escritas por mão desconhecida estas poucas palavras em italiano:
            Se alle sei della mattina le quattro mile piastre non sono nelle mie mani, alla sette il conte Alberto avia cessato di vivere (2).
            LUIGI VAMPA

            Esta segunda assinatura explicou tudo a Franz, que compreendeu a repugnância do mensageiro em subir ao seu quarto. A rua parecia-lhe mais segura do que os aposentos de Franz. Albert caíra nas mãos do famoso chefe de bandidos, em cuja existência durante muito tempo se recusara a acreditar. 
            (1) “Agora acredito em bandidos italianos." (N. do T.)
            (2) “Se às seis da manhã as quatro mil piastras não estiverem em meu poder, às sete o conde Alberto deixará de viver." (N. do T.)

            Não havia tempo a perder. Correu à escrivaninha, abriu a gaveta indicada, tirou a carteira e desta a carta de crédito. A carta fora emitida pelo total de seis mil piastras, mas destas seis mil piastras Albert levantara já três mil. Quanto a Franz, não tinha nenhuma carta de crédito. Como residia em Florença e viera a Roma para passar apenas sete ou oito dias, trouxera uma centena de luíses, e desses cem luíses restavam-lhe quando muito cinquenta.
            Faltavam portanto setecentas a oitocentas piastras para que os dois, Franz e Albert, pudessem reunir a importância exigida. Claro que num caso assim Franz podia contar com a amabilidade do Sr. Torlonia.
            Preparava-se pois para regressar ao Palácio Bracciano sem perda de um instante quando de súbito uma idéia luminosa lhe atravessou o espírito.
            Lembrou-se do conde de Monte-Cristo. Franz ia mandar chamar mestre Pastrini quando o viu aparecer em pessoa à entrada da porta.
            - Meu caro Sr. Paslrini - disse-lhe vivamente acha que o conde estará nos seus aposentos?
            - Está sim, Excelência. Acaba de entrar.
            - Já terá tido tempo de se deitar?
            - Duvido.
            - Então, toque-lhe à porta, peço-lhe, e rogue-lhe que me receba.
            Mestre Pastrini apressou-se a cumprir as instruções que lhe davam. Cinco, minutos depois estava de volta.
            - O conde espera Vossa Excelência - disse.
            Franz atravessou o patamar e um criado introduziu-o junto do conde. Este encontrava-se num gabinetezinho que Franz ainda não vira e que estava rodeado de divãs. O conde veio ao seu encontro.
            - Que bom vento o traz aqui a esta hora? - perguntou. - Virá por acaso pedir-me de cear? Seria muita amabilidade da sua parte.
            - Não, venho falar-lhe de um assunto grave.
            - De que assunto? - perguntou o conde, fitando Franz com o profundo que lhe era habitual.
            - Estamos sós?
            O conde foi até  à porta e voltou.
            - Perfeitamente sós - disse.
            Franz apresentou-lhe a carta de Albert.
            - Leia - pediu-lhe.
            O conde leu a carta.
            - Ah, ah! .. - exclamou.
            - Leu também o post-scriptum?
            - Li. Bem vejo:
           
            Se alle sei della mattina le quattro mile piastre non sono nelle mie mani, alla sette il conte Alberto avia cessato di vivere.
           
LUIGI VAMPA

            - Que diz a isso? - perguntou Franz.
            - Tem a importância que lhe pedem?
            - Tenho, menos oitocentas piastras. 

            O conde dirigiu-se à sua escrivaninha, abriu-a e puxou uma gaveta cheia de ouro:
            - Espero - disse a Franz - que me não faça a injúria de se dirigir a outro em vez de a mim.
            - Bem vê que, pelo contrário, vim direito ao senhor - respondeu Franz.
            - Agradeço-lhe. Tome.
            E fez sinal a Franz para que se servisse do dinheiro que estava  na gaveta.
            - É de fato necessário mandar essa importância a Luigi Vampa? - perguntou o rapaz, olhando por seu turno fixamente para o conde.
            - Demônio! - exclamou este. - Julgue por si mesmo. O post-scriptum é claro.
            - Parece-me que se o senhor se desse ao incômodo de procurar, encontraria algum meio capaz de simplificar muito a negociação - observou Franz.
            - Qual? - perguntou o conde, atônito.
            - Por exemplo, se fãssemos procurar Luigi Vampa juntos, estou certo de que não nos recusaria a libertação de Albert.
            - A mim? Que influência julga que tenho sobre esse bandido?
            - Não acaba de lhe prestar um desses serviços que se não esquecem?
            - Qual?
            - Não acaba de salvar a vida a Peppino?
            - Ah, ah! .. Quem lhe disse isso?
            - Que importa? Sei-o
            O conde ficou um instante calado e de sobrolho franzido.
            - Se eu fosse procurar Vampa você me acompanharia?
            - Se a minha, companhia lhe não for muito desagradável.
            - Pois seja. O tempo está bom e um passeio pelos campos de Roma só nos pode fazer bem.
            - É preciso levar armas?
            - Para quê?
            - Dinheiro?
            - É inútil. Onde está o homem que trouxe esse bilhete?
            - Na rua.
            - Espera a resposta?
            - Espera.
            - Precisamos saber mais ou menos aonde vamos. Vou chamá-lo.
            - Inútil, ele não quis subir.
            - Ao seu quarto, talvez; mas ao meu, não levantará obstáculos.
            O conde foi à janela do gabinete, que dava para a rua, e assobiou de certa forma. O homem da capa afastou-se da parede e avançou até  ao meio da rua.
            - Salite! - disse o conde, no tom em que daria uma ordem a um criado.
            O mensageiro obedeceu sem demora nem hesitação, com pressa até, galgou os quatro degraus do pórtico e entrou no hotel. Cinco segundos depois estava à porta do gabinete.
            - Ah, és tu, Peppino! - disse o conde.
            Mas Pepino, em vez de responder, caiu de joelhos, pegou na mão do conde e beijou-a repetidas vezes.
            - Ah, ah! - exclamou o conde. - Ainda não esqueceste que te salvei a vida. É estranho, pois já se vão oito dias. 
            - Não, Excelência, e nunca o esquecerei - respondeu Peppino em tom de profundo reconhecimento.
            - Nunca é muito tempo! Mas enfim já é muito que o acredites. Levante-se e responda.
            Peppino deitou uma olhadela inquieta a Franz.       
            - Oh, pode falar diante de Sua Excelência! - tranquilizou-o o conde. - É um dos meus amigos.
            - Permite-me que lhe dê este título, não é verdade? - perguntou o conde em francês, virando-se para Franz. - é necessário para conquistar a confiança deste homem.
            - Pode falar diante de mim - declarou Franz. - Sou um amigo do conde.
            - Ainda bem - disse Peppino, virando-se por seu turno para o conde. - Interrogue-me, Excelência, e responderei.
            - Como foi que o visconde Albert caiu nas mãos de Luigi?
            - Excelência, a caleça do francês cruzou-se várias vezes com a de Teresa.
            - A amante do chefe?
            - Sim. O francês fez-lhe olhos ternos e Teresa divertiu-se a corresponder-lhe. O francês deitou-lhe flores e ela retribuiu-lhe. Tudo isto, evidentemente, com o consentimento do chefe, que ia na mesma caleça.
            - Como, Luigi Vampa estava na caleça das camponesas romanas?! - exclamou Franz.
            - Era ele quem a conduzia, mascarado de cocheiro - respondeu Peppino.
            - Depois? - perguntou o conde.
            - Bom, depois o francês tirou a máscara, e Teresa, sempre com o consentimento do chefe, fez o mesmo. O francês pediu uma entrevista e Teresa concedeu-lha. Simplesmente, em vez de Teresa, foi Beppo quem ele encontrou nos degraus da Igreja de San-Giacomo.
            - Como - interrompeu-o novamente Franz –, aquela camponesa que lhe tirou o moccoletto?...
            - Era um rapaz de quinze anos - respondeu Peppino. - Mas o seu amigo não tem de se envergonhar por ter sido apanhado, Beppo tem apanhado muitos outros.
            - E Beppo levou-o para fora das muralhas? - Perguntou o conde.
            - Exatamente. Uma caleça esperava-o ao fundo da Via Macello. Beppo meteu-se nela e convidou o francês a subir.  Ele não esperou que o convidassem duas vezes. Ofereceu galantemente a direita a Beppo e sentou-se a seu lado. Beppo anunciou-lhe então que ia conduzi-lo a uma vivenda situada a uma légua de Roma. O francês garantiu a Beppo que estava pronto a segui-lo até  ao fim do mundo. O cocheiro subiu
imediatamente a Rua da Ripetta e alcançou a Porta de S. Paulo. A duzentos passos no campo, como o francês se mostrasse demasiado atrevido Beppo encostou-lhe um par de pistolas à garganta. Ato contínuo, o cocheiro deteve os cavalos, virou-se no seu lugar e fez outro tanto. Ao mesmo tempo, quatro dos nossos que estavam escondidos nas margens do Almo correram para as portinholas. O francês bem queria defender-se, até  ia estrangulando Beppo, segundo ouvi dizer, mas não podia fazer nada contra cinco homens armados. Teve de se render. Mandaram-no descer da carruagem, levaram-no pela margem do ribeiro e conduziram-no à presença de Teresa e de Luigi, que o esperavam nas catacumbas de S. Sebastião. 
            - Bom - disse o conde, virando-se para Franz –, trata-se: de uma história como outra qualquer. Que diz o senhor, que é mais versado do que eu nessas coisas?
            - Digo que acharia a história deveras divertida - respondeu Franz - se tivesse acontecido a outro em vez de ao pobre Albert.
            - A verdade declarou o conde - é que se o senhor não me tivesse encontrado no hotel a aventura custaria um bocadinho cara ao seu amigo. Mas tranquilize-se, tudo quanto lhe custar será um pouco de medo.
            - Sempre vamos buscá-lo? - perguntou Franz.
            - Decerto, tanto mais que se encontra num lugar deveras pitoresco. Conhece as catacumbas de S. Sebastião?
            - Não, nunca fui até lá, mas tencionava ir um dia.
            - Pois aproveite a oportunidade. Seria difícil encontrar outra melhor. Tem a sua carruagem?
            - Não.
            - Não tem importância. Costumo ter uma atrelada dia e noite.
            - Completamente atrelada?
            - Sim. Sou um homem muito caprichoso. Confesso-lhe que às vezes me levanto, no fim de jantar ou a meio da noite, e apetece-me partir para qualquer parte do mundo e parto.
            O conde tocou a campainha e entrou o seu criado de quarto.
            - Mande sair a carruagem da cocheira - ordenou - e veja se as pistolas estão nas bolsas. É inútil acordar o cocheiro, Ali conduzirá.
            Pouco depois ouviu-se o ruído da carruagem, que parava diante da porta.
            O conde puxou o relógio.
            - Meia-noite e meia hora - disse. - Se partíssemos daqui às cinco horas da manhã ainda chegavamos a tempo, mas talvez a demora fizesse passar uma má noite ao seu companheiro. É melhor portanto correr a arrancá-lo das mãos dos infiéis. Continua decidido a acompanhar-me?
            - Mais do que nunca.
            - Então, venha.
            Franz e o conde saíram, seguidos de Peppino
            Encontraram a carruagem à porta. Ali ocupava o lugar do cocheiro. Franz reconheceu o escravo mudo da gruta de Monte-Cristo.
            Franz e o conde subiram para a carruagem, que era um cupé. Peppino sentou-se ao lado de Ali e partiram a galope. Ali recebera as suas instruções antecipadamente, pois meteu pela rua do Corso, atravessou o Campo Vaccino, subiu a Estrada de S. Gregôrio e chegou à Porta de S Sebastião. Aí, o porteiro
tentou levantar algumas dificuldades, mas o conde de Monte-Cristo apresentou uma autorização do  governador de Roma para entrar na cidade e sair a toda a hora do dia ou da noite. A barreira foi portanto levantada, o porteiro recebeu um luís pelo trabalho e passaram.
            A estrada que a carruagem seguia era a antiga Via Ápia, toda ladeada de túmulos. De vez em quando, ao luar que começava a brilhar, parecia a Franz ver como que uma sentinela destacar-se de uma ruína Mas imediatamente, a um sinal trocado entre Peppino e a sentinela, esta reentrava na sombra e desaparecia.
            Um pouco antes do Circo de Caracala, a carruagem parou, Peppino veio abrir a portinhola e o conde e Franz desceram.
            - Dentro de dez minutos chegaremos - disse o conde ao companheiro.
            Depois chamou Peppino à parte, deu-lhe uma ordem em voz baixa e Peppino partiu depois de se munir de um archote que tirou da caixa do cupe.
            Passaram-se mais cinco minutos, durante os quais Franz viu o pastor se meter por um caminho no meio das ondulações do terreno que formam o solo revolvido da planície de Roma e desaparecer no meio das altas ervas avermelhadas que parecem a juba eriçada de algum leão gigantesco
            - Agora, devemos segui-lo - disse o conde.
            Franz e o conde penetraram por seu turno no mesmo caminho, que ao fim de cem passos os conduziu por uma vertente íngreme ao fundo de um valezinho.
            Não tardaram a ver dois homens conversando na sombra
            - Devemos continuar a avançar ou esperar? - perguntou Franz ao conde.
            - Caminhemos. Peppino deve ter prevenido a sentinela da nossa chegada.
            Com efeito, um dos homens era Peppino e o outro um bandido colocado em guarda avançada. Franz e o conde aproximaram-se. O bandido cumprimentou-os.
            - Excelência - disse Peppino, dirigindo-se ao conde –, se quiser fazer o favor de me acompanhar, a abertura das catacumbas fica a dois passos daqui.
            - Está bem - concordou o conde. - Vá na frente.
            Com efeito, atrás de um maciço de silvas e no meio de algumas rochas via-se uma abertura pela qual mal cabia um homem. Peppino foi o primeiro a esgueirar-se através da fenda. Mas mal se davam alguns passos a passagem subterrânea alargava Então, deteve-se, acendeu o archote e virou-se para ver se o
seguiam.
            O conde fora o primeiro a penetrar naquela espécie de respiradouro; Franz vinha atrás dele. O terreno descia suavemente e alargava-se à medida que avançavam. No entanto, Franz e o conde eram ainda obrigados a caminhar curvados e com dificuldade passariam a par. Percorreram ainda cento e cinquenta passos assim e depois foram detidos pelo grito de “Quem vem lá ?"
            Ao mesmo tempo, viram no meio da escuridão brilhar no cano de umo rostobina o reflexo do seu próprio archote.
            - Ami! - respondeu Peppino.
            Avançou sozinho e disse algumas palavras em voz baixa à segunda sentinela que, como a primeira, cumprimentou e fez sinal aos visitantes noturnos que podiam continuar o seu caminho.
            Atrás da sentinela ficava uma escada de uns vinte degraus. Franz e o conde desceram-nos e encontraram-se numa espécie de cruzamento mortuário do qual divergiam cinco caminhos, como os
raios de uma estrela. As paredes, cobertas de nichos sobrepostos com a forma de túmulos, indicavam que se entrara finalmente nas catacumbas. Numa das cavidades, cuja extensão era impossível distinguir, viam-se de dia alguns raios de luz.
            O conde pousou a mão no ombro de Franz.
            - Quer ver um acampamento de bandidos em repouso? - perguntou-lhe.
            - Certamente - respondeu Franz.
            - Então, venha comigo... Peppino, apague o archote.
            Peppino obedeceu e Franz e o conde encontraram-se mergulhados na mais profunda escuridão. Apenas cerca de cinquenta passos adiante deles continuaram a dançar ao longo das paredes alguns
clarões avermelhados, mais visíveis desde que Peppino apagara o archote.
            Avançaram silenciosamente, com o conde a guiar Franz, como se possuísse a singular faculdade de ver nas trevas. Aliás, o próprio Franz distinguia mais facilmente o caminho à medida que se aproximava dos reflexos que lhe serviam de guias.
            Três arcadas, das quais a do meio servia de porta, deram-lhes passagem. As arcadas deitavam de um lado para a galeria onde estavam o conde e Franz e do outro para uma grande sala quadrada, toda cercada de nichos idênticos àqueles a que já nos referimos. No meio da sala erguiam-se quatro pedras que noutros tempos tinham servido de altar, como indicava a cruz que ainda as encimava.
            Uma única lanterna pousada num fuste de coluna iluminava com uma luz pálida e vacilante a estranha cena que se oferecia aos olhos dos dois visitantes ocultos na sombra. Um homem estava sentado, com o cotovelo apoiado na coluna, e lia de costas voltadas para as arcadas, pela abertura das quais os recém-chegados o observavam.
            Era o chefe da quadrilha, Luigi Vampa.
            À roda dele, reunidos a seu bel-prazer, deitados nas suas capas ou encostados a uma espécie de banco de pedra que rodeava por completo o columbário, distinguia-se uma vintena de bandidos. Todos tinham o rostobina ao alcance da mão.
            Ao fundo, silenciosa, quase invisível e como se fosse, uma sombra, uma sentinela passeava de um lado para o outro diante de uma espécie de abertura que só se distinguia porque as trevas pareciam mais espessas nesse lugar.
            Quando o conde achou que Franz já apreciara suficientemente aquele quadro pitoresco, levou o dedo aos lábios para lhe recomendar silêncio, subiu os três degraus que levavam da galeria ao columbário, entrou na sala pela arcada do meio e dirigiu-se para Vampa, que estava tão profundamente absorto na leitura que não ouviu o ruído dos seus passos.
            - Quem vem lá? - gritou a sentinela, maquinalmente, ao ver à luz da lanterna uma espécie de sombra crescer atrás do chefe.
            Ao ouvir este grito, Vampa levantou-se vivamente e tirou ao mesmo tempo uma pistola da cintura. Num  ápice todos os bandidos estavam de pé e vinte canos de carabina visavam o conde.
            - Então - disse este tranquilamente, numa voz cheia de calma, e sem que um só músculo do seu rosto estremecesse –, então, meu caro Vampa, parece-me demasiado aparato para receber um amigo!
            - Baixem as armas! - gritou o chefe, fazendo um gesto imperioso com uma das mãos, enquanto com a outra tirava respeitosamente o chapéu. Depois, virando-se para a singular personagem que dominava toda a cena:
            - Perdão, Sr. Conde, mas estava tão longe de esperar a honra da sua visita que não o reconheci. 
            - Em todo o caso, parece-me que tem a memória curta, Vampa - perguntou o Conde –, pois não só se esquece do rosto das pessoas como também das condições estabelecidas com elas.
            - Que condições esqueci, Sr conde? - perguntou o bandido, como um homem que cometeu um erro só deseja repará-lo.
            - Não combinamos - disse o conde – que tanto a minha pessoa como a dos meus amigos seriam sagradas para si?
            – E em que faltei ao tratado, Excelência?
            - Raptou esta noite e trouxe para cá o visconde Albert de Morcerf. Pois bem - prosseguiu o conde num tom que fez estremecer Franz –, esse jovem é um dos meus amigos, esse jovem está hospedado no mesmo hotel que eu, esse jovem andou no Corso durante oito dias na minha própria caleça, e no entanto, repito-lhe, você raptou-o, trouxe-o para cá e - acrescentou o conde tirando a carta da algibeira - pediu resgate por ele como se fosse um qualquer.
            - Porque não me preveniram disso? - perguntou o chefe, virando-se para os seus homens, que recuaram todos diante do seu olhar. - Porque me expuseram assim a faltar à minha palavra para com um homem como o Sr. Conde, que tem a vida de todos nós nas suas mãos? Pelo, sangue de Cristo, se tivesse a
certeza de que um de vocês sabia que o rapaz era amigo de Sua Excelência, estourava-lhe os miolos por minha própria mão!
            - Vê? - disse o conde virando-se para Franz. - Bem lhe disse que havia qualquer equívoco nisto.
            - Não está sozinho? - perguntou Vampa, com inquietação.
            - Estou com a pessoa a quem esta carta foi dirigida e a quem quis provar que Luigi Vampa é homem de palavra. Aproxime-se, Excelência - disse a Franz –, aqui está Luigi Vampa que lhe vai dizer pessoalmente que está arrependido do erro que acaba de cometer.
            Franz aproximou-se. O chefe deu alguns passos ao seu encontro.
            - Seja bem-vindo entre nós, Excelência - cumprimentou. - Ouviu o que acaba de dizer o conde e o que lhe respondi. Acrescentarei que não desejaria, pelas quatro mil piastras em que fixei o resgate do seu amigo, que semelhante coisa tivesse acontecido.
            - Mas onde está o prisioneiro? - perguntou Franz, olhando à sua volta com inquietação. - Não o vejo...
            - Espero que não lhe tenha acontecido nada - disse o conde, franzindo o sobrolho.
            - O prisioneiro está ali - informou Vampa, indicando com a mão o recanto diante do qual passeava o bandido que se encontrava de sentinela - e eu próprio vou lhe anunciar que está livre.
            O chefe dirigiu-se para o local designado por si como sendo o que servia de prisão a Albert e Franz e o conde seguiram-no.
            - Que faz o prisioneiro? - perguntou Vampa à sentinela.
            - Garanto ao meu capitão que não sei - respondeu o interpelado: - há uma hora que não o ouço mexer-se.
            - Venha, Excelência! - disse Vampa.
            O conde e Franz subiram sete ou oito degraus, sempre precedidos pelo chefe, que correu um ferrolho e empurrou uma porta. Então, à luz de uma lanterna idêntica à que iluminava o columbário, viram Albert, envolto numa capa que lhe emprestara um dos bandidos, deitado a um canto e dormindo profundamente.
            - Sim, senhor! - exclamou o conde sorrindo com o sorriso que lhe era peculiar. - Nada mal para um homem que devia ser fuzilado às sete horas da manhã.
            Vampa olhava Albert adormecido, com certa admiração. Via-se que não era insensível àquela prova de coragem.
            - Tem razão, Sr Conde - declarou –, este homem deve ser seu amigo.
            Depois, aproximou-se de Albert e tocou-lhe no ombro
            - Excelência! - chamou. - Quer fazer o favor de acordar?
            Albert estendeu os braços, esfregou os olhos e abriu-os.
            - Ah, ah! - bocejou. - É você, capitão? Demônio, não lhe custava nada deixar-me dormir Estava vivendo um sonho encantador: sonhava que dançava o galope em casa de Torlonia com a condessa G...!
            Puxou o relógio, que conservara, para saber as horas.
            - Uma e meia da madrugada! - exclamou. - Mas por que diabo me acordara a esta hora?
            - Para lhe dizer que está livre, Excelência.
            - Meu caro - perguntou Albert com uma tranquilidade de espírito perfeita - fixe bem daqui em diante esta máxima de Napoleão, o Grande: “Acordem-me só se houver más notícias." Se me tivesse deixado dormir, terminava o meu galope e lhe ficaria reconhecido toda a vida... Pagaram o meu resgate?
            - Não, Excelência
            - Então como é que estou livre?
            - Alguém a quem não posso recusar nada veio reclamá-lo.
            - Aqui?
            - Aqui.
            - Por Deus, que pessoa tão amável!
            Albert olhou à sua volta e viu Franz.
            - Como, foi você, meu caro Franz, que levou a sua dedicação a este ponto? - perguntou.
            - Não fui eu - respondeu Franz –, mas sim o nosso vizinho, o Sr. Conde de Monte-Cristo.
            - Com a breca, Sr. Conde - disse alegremente Albert, endireitando a gravata e os punhos –, o senhor é um homem realmente precioso, e espero que me considere um seu devedor eternamente grato, primeiro pelo empréstimo da carruagem e depois por isto! - e estendeu a mão ao conde, que estremeceu no momento de lhe dar a sua, mas que mesmo assim não a recusou.
            O bandido olhava toda esta cena com ar estupefato. Estava evidentemente habituado a ver os seus prisioneiros tremer diante dele, mas havia ali um cujo temperamento brincalhão não se alterara absolutamente nada. Quanto a Franz, estava encantado por Albert ter sustentado, mesmo perante um bandido, a honra nacional.
            - Meu caro Albert - disse-lhe –, se se despachar, ainda teremos tempo de ir acabar a noite em casa de Torlonia. Retomará o seu galope no ponto em que o interrompeu, de modo que não guardará nenhum rancor ao Sr. Luigi, que  em todo este caso se comportou realmente como um cavalheiro.
            - Ah, não há dúvida que tem razão! - concordou Albert.
            - Poderemos estar lá antes das duas horas. Sr Luigi - continuou –, há alguma formalidade a cumprir para se despedir de Vossa Excelência?
            - Nenhuma, senhor - respondeu o bandido. - está livre como o ar.
            - Nesse caso, boa e alegre vida. Venham, senhores, venham!
            E Albert, seguido de Franz e do conde, desceu a escada e atravessou a grande sala quadrada. Todos os bandidos estavam de pé e de chapéu na mão.
            - Peppino - disse o chefe –, de-me o archote.
            - Que vai fazer? - perguntou o conde.
            - Acompanhá-los - respondeu o capitão. - É a mais pequena honra que posso prestar a Vossa Excelência.
            E tomando o archote das mãos do pastor, caminhou adiante dos visitantes, não como um criado que se desempenha de uma tarefa servil, mas sim como um rei que precede embaixadores.
            Chegado à porta, inclinou-se.
            - E agora, Sr. Conde - disse –, renovo-lhe as minhas desculpas e espero que me não guarde qualquer ressentimento pelo que acaba de acontecer.
            - Não, meu caro Vampa - respondeu o conde. - De resto, resgata os seus erros de forma tão galante que quase nos sentimos tentados a agradecer-lhe tê-los cometido.
            - Meus senhores - prosseguiu o chefe virando-se para os jovens –, talvez o convite não lhes pareça muito atraente, mas se alguma vez lhes apetecer fazerem-me segunda visita onde quer que esteja serão bem-vindos.
            Franz e Albert cumprimentaram. O conde foi o primeiro a sair e Albert seguiu-o. Franz ficou para trás.
            - Vossa Excelência tem alguma coisa a pedir-me? - perguntou Vampa, sorrindo.
            - Tenho, confesso - respondeu Franz. - gostaria de saber que obra lia com tanta atenção quando chegamos.
            - Os Comentários de César - respondeu o bandido. É o meu livro predileto.
            - Então, não vem? - perguntou Albert.
            - Pronto, aqui estou! - respondeu Franz.
            E saiu por seu turno do respiradouro. Deram alguns passos na planície.
            - Ah, perdão! - exclamou Albert, voltando para trás - Dá-me licença, capitão?
            E acendeu o charuto no archote de Vampa.
            - Agora, Sr. Conde, o mais depressa possível - pediu. - Tenho uma vontade enorme de ir acabar a noite em casa do duque de Bracciano.
            Encontraram a carruagem onde a tinham deixado. O conde disse uma única palavra em árabe a Ali e os cavalos partiram a galope. Eram precisamente duas horas no relógio de Albert quando os dois amigos entraram na sala de dança.
            A sua entrada foi um acontecimento. Mas como vinham juntos, todas as preocupações que pudessem existir acerca de Albert cessaram imediatamente
            - Minha senhora - disse o visconde de Morcerf dirigindo-se à condessa –, ontem teve a bondade de me prometer um galope. Venho um bocadinho tarde  pedir o cumprimento dessa graciosa promessa, mas está aqui o meu amigo, que é incapaz de mentir como sabe, que lhe garantirá que a culpa não foi minha.
            E como neste momento a música dava o sinal da valsa, Albert passou o braço à roda da cintura da condessa e desapareceu com ela no turbilhão dos dançarinos. Entretanto, Franz pensava no singular arrepio que percorrera todo o corpo do conde Monte-Cristo no momento em que fora de certo modo obrigado a dar a mão a Albert.


Capítulo XXXVIII

O encontro


            No dia seguinte, mal se levantou, as primeiras palavras de Albert foram para propor a Franz irem visitar o conde. Já lhe agradecera na véspera, mas compreendia que um favor como o que lhe prestara valia bem dois agradecimentos.
            Franz, a quem uma inclinação laivada de terror atraía para o conde de Monte-Cristo, não o quis deixar ir sozinho aos aposentos do vizinho e acompanhou-o. Introduziram-nos na sala. Passados cinco minutos o conde apareceu.
            - Sr. Conde - disse-lhe Albert indo ao seu encontro –, permita-me que lhe repita esta manhã o que tão mal lhe disse ontem: que nunca esquecerei as circunstâncias em que correu em meu auxílio e me recordarei sempre que lhe devo a vida ou quase.
            - Meu caro vizinho - respondeu o conde, rindo –, exagera as suas obrigações para comigo. Deve-me apenas uma pequena economia de uns vinte mil francos no seu orçamento de viagem e mais nada. Bem vê que não vale a pena falar disso. Pela sua parte - acrescentou - receba os meus maiores cumprimentos; foi
adorável de sem-cerimônia e naturalidade.
            - Que quer, conde - perguntou Albert –, imaginei que provocara uma questão, a que se seguira um duelo, e quis que esses bandidos compreendessem uma coisa: que os homens se batem em todos os países do mundo, mas que só os Franceses se batem rindo. Contudo, com a minha dívida de gratidão para consigo nem por isso é menor, venho perguntar-lhe se por mim, pelos meus amigos e pelos conhecimentos lhe poderei ser útil em alguma coisa. Meu pai, o conde de Morcerf, que é de origem espanhola, tem uma alta posição na França e na Espanha. Por isso, eu e todos aqueles que me estimam estamos ao seu dispor.
            - Bom - declarou o conde –, confesso-lhe Sr. de Morcerf, que esperava a sua oferta e que a aceito de boa vontade. Já tinha pensado em si para lhe pedir um grande favor...
            - Qual?
            - Nunca fui a Paris! Não conheço Paris...
            - Deveras?! - exclamou Albert. - Conseguiu viver até  agora sem ver Paris? É incrível!
            - Mas, é verdade. No entanto, sinto como o senhor que um mais prolongado desconhecimento da capital do mundo do espírito é impossível. Mas há mais:  mesmo assim, talvez tivesse feito já essa viagem indispensável se conhecesse alguém que me pudesse introduzir numa sociedade onde não tenho quaisquer
relações.
            - Um homem como o senhor?! - exclamou Albert.
            - O senhor é muito generoso, mas como não reconheço a mim próprio outro mérito além do de poder competir como milionário com o Sr. Aguado ou com o Sr. Rothschild, e como não vou a Paris para jogar na Bolsa, essa pequena circunstância reteve-me. Mas agora a sua oferta decide-me. Vejamos, meu caro
Sr. de Morcerf; compromete-se - e o conde acompanhou estas palavras com um sorriso singular –, compromete-se, quando eu for a Paris, a abrir-me as portas dessa sociedade onde serei tão estranho como um hurão ou um cochinchinês?
            - Oh, quanto a isso Sr. Conde, facilmente e da melhor vontade! - respondeu Albert. - E com tanta maior boa vontade (meu caro Franz, não troce demasiado de mim!) quanto é certo que sou chamado a Paris por uma carta que recebi esta mesma manhã e que me falam de uma aliança com uma casa muito importante e
que tem as melhores relações na sociedade parisiense.
            - Aliança por casamento? - perguntou Franz, rindo.
            - Oh, meu Deus, sim! Assim, quando você regressar a Paris me encontrará  instalado e talvez pai de família, o que irá  bem com a minha gravidade natural, não acha? Seja como for, conde, repito-lhe: eu e os meus estamos ao seu dispor de corpo e alma.
            - Aceito - disse o conde –, porque juro-lhe que só me faltava uma oportunidade assim para realizar projetos que há muito trago em mente.
            Franz nem por um instante duvidou que tais projetos não fossem aqueles de que o conde deixara escapar umas palavras na gruta de Monte-Cristo, e olhou-o enquanto falava para tentar descobrir-lhe na fisionomia qualquer revelação acerca desses projetos que o levariam a Paris. Mas era muito difícil penetrar no espírito daquele homem, sobretudo quando o velava com um sorriso.
            - Mas vejamos, conde - prosseguiu Albert, encantado com a eventualidade de exibir um homem como Monte-Cristo –, não se trata de um desses projetos no ar, como se fazem mil em viagem, e que construídos na areia se desfazem ao primeiro pé-de-vento, pois não?
            - Palavra de honra que não - respondeu o conde. - Quero ir a Paris e tenho de ir.
            - Quando?
            - Quando o senhor estiver lá.
            - Eu? - disse Albert. - Oh, meu Deus, dentro de quinze dias ou três semanas, o mais tardar o tempo de voltar.
            - Pois bem, concedo-lhe três meses - declarou o conde. - Como vê, não sou mesquinho.
            - E dentro de três meses irá  bater-me à porta? - perguntou Albert?
            - Quer que marquemos encontro com dia e hora? - inquiriu o conde. - Previno-o de que sou de uma pontualidade exasperante.
            - Com dia e hora... - repetiu Albert - Agrada-me!
            - Então seja - disse o conde, estendendo a mão para um calend rio pendurado ao pé do espelho. - Estamos hoje a 21 de Fevereiro e são... - puxou o relógio - dez e meia da manhã. Quer esperar-me no dia 21 de Maio próximo às dez e meia da manhã? 
            - Excelente! - exclamou Albert. - O café da manhã estará pronto.
            - Onde mora?
            - Na Rua do Helder, nº  27.
            - Vive sozinho? Não o incomodarei?
            - Moro no palácio do meu pai, mas num pavilhão ao fundo do pátio, inteiramente independente.
            - Muito bem.
            O conde pegou na sua agenda e escreveu: “Rua do Helder, nº  27, 21 de Maio às dez e meia da manhã."
            - E agora - disse, guardando a agenda na algibeira –, fique tranquilo: os ponteiros do seu relógio não serão mais exatos do que os do meu.
            - Tornarei a vê-lo antes da minha partida? - perguntou Albert.
            - Depende. Quando parte?
            - Amanhã, às cinco da tarde.
            - Nesse caso, despeço-me. Tenho assuntos a tratar em Nápoles e só regressarei no sábado à noite ou no domingo de manhã. E o senhor também parte, Sr. Barão? - perguntou o conde a Franz.
            - Também.
            - Para França?
            - Não, para Veneza. Fico ainda um ou dois anos na Itália.
            - Não nos veremos portanto em Paris?
            - Não creio ter essa honra.
            - Então, meus senhores, boa viagem - disse o conde aos dois amigos, estendendo-lhes a mão.
            Era a primeira vez que Franz tocava na mão daquele homem.  Estremeceu, pois estava gelada como a de um morto.
            - Da última vez - disse Albert –, está bem assente, sob palavra de honra, não é verdade? Rua do Helder, nº  27, em 21 de Maio às dez e meia da manhã?
            - Em 21 de Maio às dez e meia da manhã, Rua do Helder, nº  27 - repetiu o conde.
            Em seguida, os dois jovens cumprimentaram o conde e  saíram.
            - Que tem? - perguntou Albert a Franz, quando entraram nos seus aposentos. - Tem um ar muito preocupado.
            - E estou, confesso-o – declarou Franz. - O conde é um homem singular e vejo com inquietação esse encontro que marcou em Paris.
            - Este encontro... com inquietação... Ora essa! Enlouquece meu caro Franz? - perguntou Albert.
            - Que quer - respondeu Franz –, louco ou não, é assim.
            - Escute - volveu-lhe Albert –, e ainda bem que tenho oportunidade de lhe dizer isto: tenho-o achado sempre muito frio com o conde, que pelo contrário tem sido sempre impecável conosco. Tem alguma coisa especial contra ele?
            - Talvez.
            - Já o tinha visto em algum lugar antes de encontrá-lo aqui?
            - Já.
            - Onde?
            - Promete-me não dizer a ninguém uma palavra do que lhe vou contar?
            - Prometo.
            - Palavra de honra? 
            - Palavra de honra.
            - Está bem. Escute então.
            E Franz contou a Albert a sua excursão à ilha de Monte-Cristo, onde encontrara uma tripulação de
contrabandistas e no meio dessa tripulação dois bandidos corsos. Salientou por todos os meios a hospitalidade feérica que o conde lhe concedera na sua gruta das Mil e Uma Noites, falou-lhe da ceia, do haxixe, das estátuas, da realidade e do sonho, e como ao despertar só encontrara como prova e recordação de todos aqueles acontecimentos o iatezinho navegando no horizonte para Porto-Vecchio.
            Depois passou a Roma, à noite do Coliseu, à conversa que ouvira entre ele e Vampa, conversa relativa a Peppino, e na qual o conde prometera obter o perdão do bandido, promessa que cumprira integralmente, - como os nossos leitores verificaram.
            Por fim, chegou à aventura da noite anterior, à atrapalhação em que se vira ao verificar que lhe faltaram seiscentas ou setecentas piastras para completar a importância do resgate, e depois a idéia que tivera de se dirigir ao conde, idéia de que resultara ao mesmo tempo uma solução tão pitoresca como satisfatória
            Albert escutou Franz com toda a atenção.
            - Bom - disse-lhe quando terminou –, onde vê em tudo isso algo censurável? O conde gosta de viajar, o conde possui um navio porque é rico. Vá  a Portsmouth ou a Southampton e verá os portos cheios de iates pertencentes a ricos ingleses que têm a mesma fantasia. Para saber onde se deterá nas suas excursões; para não comer essa horrível cozinha que nos envenena, a mim há quatro meses e você há quatro anos; para
não dormir nessas camas abomináveis onde se não consegue sossegar, manda mobiliar uma gruta em Monte-Cristo; quando a gruta está mobilada, receia que o Governo toscano lhe levante obstáculos e que tenha gasto o seu dinheiro em pura perda, e que faz? Compra a ilha e toma o seu nome. Meu caro, procure nas suas recordações e diga-me quantas pessoas das suas relações adotaram o nome de propriedades que nunca lhes pertenceram.
            - Mas os bandidos corsos que se encontravam entre a sua tripulação? - lembrou Franz a Albert.
            - Que há de extraordinário nisso? Você sabe melhor do que ninguém, não é verdade, que os bandidos corsos não são ladrões, mas pura e simplesmente fugitivos que qualquer vendetta exilou da sua cidade ou da sua aldeia Podemos portanto aceitá-los sem nos comprometermos. Quanto a mim, declaro que se alguma vez for à Côrsega, antes de me apresentar ao governador e ao prefeito me apresentarei aos bandidos de Colomba, se conseguir encontrá-los. Acho-os encantadores.
            - Mas e Vampa e a sua quadrilha? - insistiu Franz. - Esses são bandidos que assaltam para roubar. Espero que o não negue. Que me diz à influência do conde sobre semelhantes homens?
            - Digo, meu caro, que como segundo todas as probabilidades devo a vida a essa influência, não serei eu que a criticarei com demasiada severidade. Portanto, em vez de a considerar, como você, um crime capital, permita-me que a desculpe, senão por me ter salvo a vida, o que talvez fosse um bocadinho
exagerado, pelo menos por me ter permitido poupar quatro mil piastras, que equivalem nem  mais nem menos a vinte e quatro mil libras na nossa moeda, importância em que com certeza não teriam me avaliado na  França, o que prova - acrescentou Albert, rindo - que ninguém é profeta na sua terra.
            - Ora aí está! De que terra é o conde? De que país? Que língua fala? Quais são os seus meios de existência? Donde lhe vem a sua imensa fortuna? Qual foi a primeira parte da sua vida misteriosa e desconhecida que espalhou sobre a segunda aquela “cor" sombria e misantrópica? Aqui tem o que, no seu lugar, eu gostaria de saber.
            - Meu caro Franz - perguntou Albertb–, quando recebeu a minha carta e viu que necessitávamos da influência do conde, foi-lhe dizer: “Albert de Morcerf; meu amigo, corre perigo. Ajude-me a tirá-lo desse perigo!" É ou não é verdade?
            - É.
            - Nessa altura ele perguntou-lhe: “Quem é o Sr. Albert de Morcerf? De onde lhe vem o seu nome? De onde lhe vem a sua fortuna'! Quais são os seus meios de existência? Em que país nasceu? De que terra é?" Perguntou-lhe tudo isto? Vamos, diga!
            - Não, confesso.
            - Pôs-se simplesmente à sua disposição e tirou-me das mãos do Sr. Vampa onde, apesar dos meus ares cheios de desenvoltura, como você diz, eu fazia muito má figura, confesso. Bom, meu caro, quando em troca de semelhante serviço ele me pede que faça por si o que se faz todos os dias pelo primeiro príncipe
russo ou italiano que passa por Paris, isto é, que o apresente na sociedade, quer que lhe recuse isso? Se quer, está louco!
            Devemos reconhecer que, contrariamente ao que era hábito, todas as boas razões estavam desta vez do lado de Albert.
            - Enfim - perguntou Franz, com um suspiro –, faça como quiser, meu caro visconde. Porque tudo o que me diz está muito certo, confesso, mas nem por isso é menos verdade que o conde de Monte-Cristo é um homem estranho.
            - O conde de Monte-Cristo é um filantropo. Não nos disse com que fim vai a Paris, mas eu sei-o: vai para concorrer ao Prêmio Montyon! E se para o obter apenas precisar do meu voto e da influência desse cavalheiro tão feio que permite obtê-lo, pois bem, lhe darei um e lhe garantirei a outra. E agora, meu caro Franz, não falemos mais a tal respeito. Nos sentemo à mesa e façamos uma derradeira visita a S. Pedro.
            Assim se fez, de fato, e no dia seguinte, às cinco da tarde, os dois jovens separaram-se: Albert de Morcerf para regressar a Paris e Franz de Epinay para ir passar quinze dias em Veneza.
            Mas antes de subir para a carruagem, Albert ainda entregou ao mandarete do hotel, de tal modo receava que o seu convidado faltasse ao encontro, um cartão para o conde de Monte-Cristo, na qual por baixo destas palavras: “Visconde Albert de Morcerf", escrevera a lápis:
            21 de Maio, às dez e meia da manhã,
            Rua do Helder, 27.


Capítulo XXXIX

Os convivas

            Na casa da Rua Helder em que Albert de Morcerf marcara encontro em Roma com o conde de Monte-Cristo, tudo se preparava na manhã de 21 de Maio para honrar a palavra do jovem.
            Albert de Morcerf habitava num pavilhão situado a um canto de um grande pátio e defronte de outro edifício destinado às dependências de serviço. Apenas duas janelas do pavilhão davam para a rua; as outras abriam, três para o pátio e as duas restantes para o jardim.
            Entre o pátio e o jardim erguia-se, construída com o mau gosto da arquitetura imperial, a residência moderna e ampla do conde e da condessa de Morcerf.
            A toda a largura da propriedade erguia-se, dando para a rua, um muro encimado, de distância em distância, por vasos de flores, e cortado ao meio por um grande portão de lanças douradas, que servia para os ocasiões solenes. Uma portinha quase pegada ao cubículo do porteiro dava passagem ao pessoal e aos donos da casa, quando entravam ou saíam a pé.
            Na escolha do pavilhão destinado a residência de Albert adivinhava-se a delicada precaução de uma mãe que, não querendo separar-se do filho, compreendera no entanto que um rapaz da idade do visconde necessitava de completa liberdade. Por outro lado, devemos dizê-lo, também se reconhecia nisso o egoísmo inteligente do rapaz, a quem agradava a vida livre e ociosa dos filhos-família, aos quais douravam, como aos
pássaros, a gaiola.
            Pelas duas janelas que deitavam para a rua, Albert de Morcerf podia proceder às suas explorações exteriores. A vista do exterior é tão necessária aos jovens que querem ver sempre o mundo atravessar-lhes o horizonte, ainda que esse horizonte seja apenas o da rua! Depois, uma vez a exploração concluída, se essa exploração lhe parecia merecer um exame mais aprofundado, Albert de Morcerf podia, para se dedicar às suas investigações, sair por uma portinha que emparelhava com a que indicamos junto do cubículo do porteiro, e que merece uma menção especial.
            Era uma portinha que se diria esquecida de todos gente desde o dia em que a casa fora construída, e que se julgara condenada para sempre, de tal modo parecia discreta e poeirenta, mas cuja fechadura, assim como os gonzos, cuidadosamente lubrificados, denunciavam uma serventia misteriosa e continuada. Aquela portinha dissimulada fazia concorrência às outras duas e zombava do porteiro, à vigilância e jurisdição do qual escapava, pois abria-se como a famosa porta da caverna das Mil e Uma Noites, como o Sésamo
encantado de Ali-Bab , por meio de algumas palavras cabalísticas ou de algumas arranhadelas  convencionadas, pronunciadas pelas mais meigas vozes ou dadas pelos dedos mais afilados deste mundo.
            Ao fim de um corredor vasto e calmo, com o qual comunicava a portinha e que fazia de antecâmara, abria-se à direita a sala de jantar de Albert, que dava para o pátio, e à esquerda a sua salinha de visitas, que dava para o jardim. Maciços de plantas trepadeiras abriam-se em leque diante das janelas e ocultavam do Pátio e do jardim o interior de ambas as divisões, as únicas que, por se situarem no térreo, estavam expostas aos olhares indiscretos.
            No primeiro andar havia, além das duas divisões correspondentes às do térreo, uma terceira situada sobre a antecâmara. As três divisões serviam de sala, quarto de dormir e boudoir. A sala de baixo não passava de uma espécie de divã argelino destinado aos fumadores.
            O boudoir do primeiro andar comunicava com o quarto de dormir e, através de uma poria invisível, com a escada. Como se vê, estavam tomadas todas as precauções.
            Por cima do primeiro andar ficava um vasto atelier, que se aumentara deitando abaixo paredes e tabiques, pandemônio que o  artista disputava ao dandy. Aliás se refugiavam e empilhavam todos os sucessivos caprichos de Albert: as trombetas de caça, os baixos e as flautas, uma orquestra completa, pois Albert tivera por instantes, não o gosto, mas sim o capricho da música; os cavaletes, as paletas e os pastéis, porque à fantasia da música sucedera a fatuidade da pintura; finalmente, os floretes, as luvas de boxe, os espadões e as bengalas de todos os gêneros. Porque, enfim, seguindo as tradições dos jovens à moda da época em que nos encontramos,  Albert de Morcerf cultivava com infinitamente mais perseverança do que dedicara à música e à pintura as três artes que completam a educação masculina, ou seja, a esgrima, o boxe e o pau, e recebia sucessivamente naquela divisão, destinada a lodos os exercícios do corpo, Grisicr, Cooks e Charles Leboucher.
            O resto dos móveis daquela sala privilegiada eram velhas arcas do tempo de Francisco I, cheias de porcelanas da China, de vasos do Japão, de faianças de Luca della Robbia e de travessas de Bernard de Palissy, poltronas antigas onde talvez se tivessem sentado Henrique IV ou Sully, Luís XIII ou Richelieu, porque duas dessas poltronas, ornadas com um brasão de armas onde brilhavam sobre azul as três flores-de-lis da
França, encimadas por uma coroa real, tinham vindo, visivelmente, dos armazéns do Luvre, ou pelo menos do de algum palácio real. Para cima dessas poltronas, de fundos escuros e severos, encontravam-se atirados em desordem ricos tecidos de cores vivas, tingidos ao sol da Pérsia ou saídos dos dedos de mulheres de Calcutá ou Chandernagor. O que faziam ali aqueles tecidos não sabemos dizer; esperavam, recreando os olhos, um destino que o seu próprio proprietário desconhecia, e enquanto esperavam iluminavam o apartamento com os seus reflexos sedosos e dourados.
            No lugar mais em evidência via-se um piano de pau-rosa construído por Roller & Blanchet, um desses pianos à medida das nossas salas liliputianas, mas que apesar disso encerram uma orquestra no seu pequeno e sonoro arcaboiço e gemem sob o peso das obras-primas de Beethoven, Weber, Mozart, Haydn,
Grétry e Porpora.
            Depois, por toda a parte, ao longo das paredes, por cima das portas e no teto, espadas, punhais, adagas, maças, machados e armaduras completas, douradas, marchetadas e embutidas; herbários, blocos de minerais e aves empalhadas que abriam para um vôo imóvel as asas cor de fogo e o bico que nunca
fechavam. Desnecessário dizer que aquela sala era a divisão predileta de Albert.
            Contudo, no dia do encontro, o jovem, em falo de meia cerimônia, estabeleceu o seu quartel-general na salinha do térreo. Ali, em cima de  uma mesa rodeada à distancia por um divã largo e fofo, encontravam-se todos os tabacos conhecidos, desde o tabaco louro de Sampetersburgo até  ao tabaco negro do Sinai, passando pelo marilândia, pelo porto-rico e pelo latakieh, os quais resplandeciam em boiões
de faiança craquel‚e, como preferem os Holandeses. Ao lado deles, em caixas de madeira aromática, alinhavam-se por ordem de tamanho e qualidade os puros, os regalas, os havanos e os manilas; finalmente, num armário aberto, uma coleção de cachimbos alemães, de chibuques de pipo de âmbar e ornados de coral e de narguilés incrustados de ouro, com longos tubos de marroquim enrolados como serpentes esperavam o capricho ou a preferência dos fumadores. Albert presidira pessoalmente ao arranjo, ou antes à desordem simétrica que depois do café os convivas de um almoço moderno gostam de contemplar através do fumo que lhes sai da boca e sobe ao teto em longas e caprichosas espirais.
            Às dez horas menos um quarto entrou um criado, um pequeno groom de quinze anos que só falava inglês e se chamava John, único criado de Morcerf. Claro que nos dias comuns o cozinheiro do palácio estava à sua disposição, e nas grandes ocasiões o mandarete do conde também o estava.
            O criado, que gozava de plena confiança do seu jovem amo, trazia na mão um maço de jornais, que depositou numa mesa, e uma porção de cartas, que entregou a, Albert.
            Este deitou um olhar distraído às diversas missivas, escolheu duas de caligrafia elegante e sobrescritos perfumados, abriu-as e as leu com certa atenção.
            - Como vieram estas cartas? - perguntou.
            - Uma veio pelo correio e a outra foi trazida pela, criada de quarto da Sra Danglars.
            - Manda dizer à Sra Danglars que aceito o lugar que me oferece no seu camarote... Espere... Depois, durante o dia, passará pela casa da Rosa; lhe dirá que, como me convida, irei cear com ela quando sair da ópera. Leva-lhe seis garrafas de vinho sortidas, de Chipre, de Xerez e de Málaga, e um barril de ostras de Ostende... Compra as ostras no Borel e não te esqueças de dizer que são para mim.
            - A que horas quer o senhor ser servido?
            - Que horas são?
            - Dez horas menos um quarto.
            - Bom, serve às dez e meia exatas. Debray talvez seja obrigado a ir ao seu ministério... De resto...- Albert consultou a sua agenda - é exatamente a hora que indiquei ao conde, 21 de Maio às dez e meia da manhã, e embora não confie muito na sua promessa quero ser pontual. A propósito, sabe se a Sra Condessa está acordada?
            - Se o Sr. Visconde deseja, irei informar-me.
            - Pois sim... Peça-lhe uma das suas frasqueiras, porque a minha está incompleta, e diga-lhe que terei a honra de passar pelos seus aposentos por volta das três horas, a fim de lhe pedir licença para lhe apresentar uma pessoa.
            O criado saiu, Albert atirou-se para cima do divã, rasgou a cinta de dois ou três jornais, viu os espetáculos, fez uma careta ao verificar que se representava uma ópera e não um bailado, procurou em Vão um opiato para os dentes de que lhe tinham falado e pôs de parte os três jornais mais lidos de Paris, murmurando no meio de um bocejo prolongado: 
            - Na verdade, estes jornais estão cada vez mais maçantes.
            Neste momento parou à porta uma carruagem ligeira e passado um instante o criado voltou para anunciar o Sr. Lucien Debray. Tratava-se de um rapagão louro, pálido, de olhos cinzentos e ousados, lábios delgados e frios, casaca azul de botões de ouro cinzelados, gravata branca e monóculo de tartaruga
suspenso de um fio de seda, e que devido a um esforço do nervo superciliar e do nervo zigomático conseguia fixar de vez em quando na cavidade do olho direito. Entrou sem sorrir, sem falar e com ar semioficial.
            - Bom dia, Lucien... Bom dia! - cumprimentou-o Albert. - Assusta-me, meu caro, com a sua pontualidade!  Que digo? Pontualidade?... Você, que esperava fosse o último a chegar, aparece às dez menos cinco, quando o encontro está  marcado para as dez e meia! É miraculoso! Terá por acaso caído
o ministério?
            - Não, caríssimo -  respondeu o rapaz, enterrando-se no divã. - Sossegue, continuamos a cambalear, mas nunca caímos, e começo a crer que vamos muito simplesmente a caminho da inamovibilidade, sem contar que os negócios da Península acabarão por nos consolidar por completo.
            - Ah, sim, é verdade, vão expulsar D. Carlos de Espanha!
            - Não, caríssimo, não confundamos as coisas. Levamo-lo apenas para o outro lado da fronteira da França e lhe oferecemos uma hospitalidade real em Burges.
            - Em Burges?
            - Sim, e não tem de que se queixar, que diabo! Burges foi a capital de Carlos VII. Como, não sabia? Em Paris todos sabem disso desde ontem, e anteontem já a coisa transpirara na Bolsa, pois o Sr. Danglars (não faço a mais pequena idéia por que meio esse homem sabe as notícias ao mesmo tempo que nós), pois o Sr. Danglars jogou na alta e ganhou um milhão.
            - E você uma nova condecoração, ao que parece, pois vejo-lhe mais uma fita, azul, ao peito.
            - Ora, mandaram-me o crach  de Carlos III - respondeu negligentemente Debray.
            - Vamos, não arme em indiferente e confesse que teve prazer em a receber.
            - Reconheço que sim. Como complemento de toilette, um crach  fica bem numa casaca preta abotoada; é elegante.
            - E - acrescentou Morcerf sorrindo -  dá um ar de Príncipe de Gales ou de duque de Reichstadt.
            - Aqui tem porque me vê tão cedo, caríssimo.
            - Porque tem o crach  de Carlos III e queria dar-me essa boa notícia?
            - Não, porque passei a noite a expedir cartas: vinte e cinco despachos diplomáticos. Regressei para casa de manhã, ao romper do dia, e quis dormir, mas começou-me a doer a cabeça e levantei-me para montar a cavalo uma hora. No Bosque de Bolonha o aborrecimento e a fome apoderaram-se de mim, dois
inimigos que raramente andam juntos, mas que no entanto se aliaram contra mim, uma espécie de aliança carlo-republicana. Lembrei-me então de que havia banquete em sua casa, esta manhã e cá estou: tenho fome, alimente-me; aborreço-me, divirta-me.
            - É o meu dever de anfitrião, caro amigo - declarou Albert, tocando para chamar o criado, enquanto Lucien fazia saltar com a ponta do pingalim de castão  de ouro, com uma turquesa incrustada, os jornais desdobrados. - Entretanto, meu caro Lucien, aqui tem charutos de contrabando, claro. Convido-o a saboreá-los e a convidar o seu ministro a vender-nos uns assim, em vez dessa espécie de folhas de nogueira que condena os bons cidadãos a fumar.
            - Nessa não caio eu! Desde o momento que lhes viessem do Governo, não quereriam mais e achá-los-iam execráveis. Aliás, isso não é da conta do Interior, é da conta das Finanças. Dirija-se ao Sr. Humann, Seção de Impostos Indiretos, corredor A, nº  26.
            - Na verdade - disse Albert –, você surpreende-me com toda a vastidão dos seus conhecimentos... Mas tire um charuto!
            - Ah, caro visconde - observou Lucien, acendendo um manila numa vela cor-de-rosa que ardia num castiçal de prata dourada e recostando-se no divã -, ah, meu caro visconde, como é feliz por não ter nada que fazer! Na verdade, não avalia a sua felicidade!
            - E que faria você, meu caro pacificador de reinos - perguntou Morcerf com ironia, se não fizesse nada? Como secretário particular de um ministro, lançado simultaneamente na grande cabala europeia e nas pequenas intrigas de Paris; com reis e, melhor do que isso, rainhas a proteger, partidos a reunir, eleições a dirigir; fazendo mais do seu gabinete, com a sua pena e o seu telegrafo, do que Napoleão fazia dos seus campos de batalha, com a sua espada e as suas vitórias; possuidor de vinte e cinco mil libras de rendimento, além do seu lugar; de um cavalo pelo qual Château-Renaud lhe ofereceu quatrocentos luíses e que você lhe não quis vender; de um alfaiate que nunca lhe estraga umas calças; frequentador da ópera, do Jockey-Club e do Teatro das Variedades... Como, será  possível que não encontre em tudo isso com que se distrair? Seja,
distraí-lo-ei eu!
            - De que maneira?
            - Proporcionando-lhe um novo conhecimento.
            - De homem ou de mulher?
            - De homem.
            - Oh, já conheço muitos!
            - Mas não conhece nenhum como este a que me refiro.
            - De onde vem? Do fim do mundo?
            - Talvez de mais longe.
            - Diabo, espero que não seja ele quem traz o nosso almoço!
            - Não, esteja tranquilo. O nosso almoço está sendo feito nas cozinhas maternas. Mas está de fato com fome?
            - Estou, confesso, por mais humilhante que seja dizê-lo. Mas jantei ontem em casa do Sr. de Villefort... e não sei se já reparou, meu caro amigo, que se janta muito mal em casa de toda essa gente dos tribunais; diria-se estão sempre com remorsos.
            - Meu Deus, deprecia os jantares dos outros como se jantasse bem em casa dos seus ministros!
            - Pois sim, mas ao menos não convidamos pessoas de categoria, e se não fossemos obrigados a fazer as honras da nossa mesa a alguns labregos que pensam e sobretudo que votam bem, fugiríamos como da peste de comer em nossa casa, acredite.
            - Então, meu caro, beba segundo copo de xerez e coma outro biscoito. 
            - Com muito prazer. O seu vinho de Espanha é excelente. Como vê fizemos muito bem em pacificar esse país.
            - Pois sim, mas D. Carlos?
            - Ora, D. Carlos beberá vinho de Bordéus e daqui a dez anos casaremos o filho com a rainhazinha.
            - O que lhe valerá o Tosão de Ouro, meu caro, se ainda estiver no ministério.
            - Parece-me, Albert, que você adotou por sistema, esta manhã, alimentar-me de fumo.
            - Veja que é ainda o que melhor entretem o estômago, concorde. Mas olhe, acabo precisamente de ouvir a voz de Beauchamp na antecâmara. E como, decerto, não tardarão a discutir, esperará com mais paciência.
            - Discutir a propósito de quê?
            - A propósito dos jornais.
            - Oh, caro amigo - disse Lucien com soberano desprezo mas eu leio os jornais!
            - Mais uma razão para discutirem ainda mais.
            - O Sr. Beauchamp! - anunciou o criado.
            - Entre, entre! Que pena terrível! - disse Albert, levantando-se e indo ao encontro do rapaz. - Olhe, aqui tem Debray, que o detesta sem o ler, pelo menos segundo diz.
            - E tem toda a razão - perguntou Beauchamp. - É como eu, critico-o sem saber o que ele faz. Bons dias, comendador.
            - Ah, já sabe disso?! - respondeu o secret rio particular, trocando com o jornalista um aperto de mão e um sorriso.
            - Pois claro! - volveu-lhe Beauchamp.
            - E que dizem por ai a tal respeito?
            - Por ai, onde? O que não falia são curiosos neste ano da graça de 1838.
            - Ora, nos meios crítico-políticos de que você é um dos expoentes.
            - Diz-se que é justíssimo e que você semeou suficiente vermelho para que nascesse um bocadinho de azul.
            - Vamos, vamos, nada mal - disse Lucien. - Porque não é dos nossos, meu caro Beauchamp? Com o espírito que possui, faria carreira em três ou quatro anos.
            - Por isso só espero uma coisa para seguir o seu conselho: um ministério que se aguente seis meses. Agora, apenas uma palavrinha, meu caro Albert, para deixar respirar o pobre Lucien. Almoçamos ou jantamos? Tenho de ir à Câmara. Como vêem, nem tudo são rosas na nossa profissão.
            - Almoçaremos apenas. Esperamos unicamente mais duas pessoas e nos sentaremos à mesa assim que chegarem.
            - Que espécie de pessoas espera você para almoçar? -  perguntou Beauchamp.
            - Um gentil-homem e um diplomata - respondeu Albert.
            - Então, é caso para termos de esperar duas horinhas pelo gentil-homem e duas horonas pelo diplomata. Voltarei à sobremesa. Guardem-me morangos, café e charutos. Comerei uma costeleta na Câmara.
            - Não vale a pena, Beauchamp, porque ainda que o gentil homem fosse um Montmorency e o diplomata um Metternich, almoçaremos às dez e meia precisas.  Entretanto, faça como Debray, saboreie o meu xerez e os meus biscoitos. 
            - Pronto, seja, fico. Tenho absoluta necessidade de me distrair esta manhã. - Bom, aí está você como Debray! No entanto, parece-me que quando o ministério está triste a oposição deve estar alegre.
            - E porque, caro amigo, não imagina o que me ameaça. Tenho de ouvir esta manhã um discurso do Sr. Danglars na Câmara dos Deputados e à noite a mulher dele falar da trag‚dia de um par de França. Diabo leve o governo constitucional! Se tínhamos, como se diz, o direito de escolha, por que carga de água escolhemos este governo?
            - Compreendo, você precisa se abastecer de hilaridade.
            - Não diga mal dos discursos do Sr. Danglars - interveio Debray. - Ele vota em vocês, faz oposição
            - Infelizmente, muito mal! Por isso, espero que o mandem discursar para o Luxemburgo, para que toda a gente ria à vontade.
            - Meu caro - disse Albert a Beauchamp –, bem se vê que os negócios da Espanha estão resolvidos; você está esta manhã de um azedume revoltante. Lembre-se, porém, de que a crônica parisiense fala de um casamento entre mim e Mademoiselle Eugênie Danglars. Em consciência, não posso pois deixá-lo falar mal da eloquência de um homem que me deve dizer um dia: “Sr. Visconde como sabe, dou dois milhões à minha filha."
            - Fique calado! - replicou Beauchamp. - Esse casamento nunca se realizará. O rei pode fazê-lo barão e poderá fazê-lo par, mas não o fará gentil-homem e o conde de Morcerf é uma espada demasiado aristocrática para consentir, em troca de dois pobres milhões, num casamento desigual. O visconde de Morcerf só deve casar com uma marquesa.
            - Dois milhões! Não deixa de ser uma bonita maquia... - observou Morcerf.
            - E o capital social de um teatro de bulevar ou de um caminho de ferro do Jardim Botânico à Rapée.
            - Deixe-o falar, Morcerf, e case-se - aconselhou negligentemente Debray. - Casa com a etiqueta de um saco, não é verdade? Pois que lhe importa! É preferível que a etiqueta tenha um brasão a menos e um zero a mais. Você tem sete melras nas suas armas; dá três à sua mulher e ainda fica com quatro. É uma a mais do que o Sr. de Guise, que foi quase rei de França e cujo primo co-irmão era imperador da Alemanha.
            - Palavra que me parece que você tem razão, Lucien - respondeu distraidamente Albert.
            - Tenho com certeza! De resto, todo o milionário é nobre como um bastardo, isto é, pode sê-lo...
            - Cale-se! Não diga isso, Debray - interveio, rindo, Beauchamp –, pois acaba de chegar Château-Renaud, que, para o curar da sua mania de paradoxar, lhe traspassará o corpo com a espada de Reinaldo de Montauban, seu antepassado.
            - Isso seria rebaixar-se - perguntou Lucien –, pois eu sou plebeu e bem plebeu.
            - Bom, se o ministério se põe a querer cantar como Béranger, aonde iremos parar, meu Deus? - observou Beauchamp.
            - O Sr. de Château-Renaud! O Sr. Maximilien Morrel! -   disse o criado anunciando dois novos convivas. 
            - Completos então! - exclamou Beauchamp. - Podemos então almoçar, porque, se me não engano, só esperava mais duas pessoas, não é verdade, Albert?
            - Morrel! - murmurou Albert, surpreendido. -  Morrel! Quem será?
            Mas antes de chegar a qualquer conclusão, o Sr. de Château-Renaud, um simpático rapaz de trinta anos, gentil-homem da cabeça aos pés, isto é, com a figura de Guiche e o espírito de um Mortemart, pegara na mão de Albert e dizia-lhe:
            -  Permita-me, meu caro, que lhe apresente o Sr. Capitão de Sipaios Maximilien Morrel, meu amigo e meu salvador. Aliás, o homem apresenta-se bastante bem por si mesmo.  Cumprimente o meu herói, visconde.
            E afastou-se para deixar ver o alto e nobre rapaz de testa ampla, olhar penetrante e bigodes negros, que os nossos leitores se lembram de ter visto em Marselha numa circunstância bastante dramática para que ainda a não tenham esquecido. Um rico uniforme, meio francês, meio oriental, admiravelmente envergado, salientava-lhe o peito amplo, condecorado com a cruz da Legião de Honra, e a curva audaciosa da cintura. O jovem oficial inclinou-se com elegante delicadeza. Morrel era gracioso em cada um dos seus movimentos
porque era forte.
            - Senhor - disse Albert com afetuosa cortesia –, o Sr. Barão de Château-Renaud sabia  antecipadamente todo o prazer que me proporcionaria apresentando-me. Uma vez que é um dos seus
amigos, seja também dos nossos.
            - Ótimo! - declarou Château-Renaud. - E deseje, meu caro visconde, que se a ocasião se proporcionar ele faça por si o que fez por mim.
            - Que foi que fez? - perguntou Albert.
            - Oh, não vale a pena falar disso! - protestou Morrel. - Este senhor exagera.
            - Como, não vale a pena falar disto?! - indignou-se Château-Renaud. - Não vale a pena falar da vida?... Na verdade, o que diz é demasiado filosófico, meu caro Sr. Morrel... Bom, para si, que expõe a vida todos os dias, está bem, mas para mim, que a exponho um vez por acaso...
            - O que vejo de mais claro em tudo isso, barão, é que o Sr. Capitão Morrel lhe salvou a vida.
            - Oh, meu Deus, sim, sem dúvida nenhuma! - confirmou Château-Renaud.
            - E em que ocasião? - perguntou Beauchamp.
            - Beauchamp, meu amigo, bem sabe que morro de fome - atalhou Debray. -  Não me venha pois com histórias...
            - De acordo - respondeu Beauchamp. - Mas eu não impeço ninguém de se sentar à mesa... Château-Renaud nos contará-  o que se  passou enquanto comemos.
            - Meus senhores - interveio Morcerf –, são apenas dez e um quarto, notem bem, e esperamos um último conviva.
            - Ah, é verdade, um diplomata! - exclamou Debray.
            - Um diplomata ou outra coisa, não sei. O que sei é que o encarreguei por minha conta de uma embaixada de que se desempenhou tanto a meu contento que, se eu fosse rei, o teria feito imediatamente cavaleiro de todas as minhas ordens, ainda que tivesse ao mesmo tempo à minha disposição o Tosão de Ouro e a Jarreteira. 
            - Bom, já que não vamos ainda para a mesa - disse Debray –, sirva-se de um copo de xerez como nós e conte-nos isso, barão.
            - Como todos sabem, tive a idéia de ir a África.
            - Foi um caminho que os seus antepassados lhe traçaram, meu caro Château-Renaud - observou galantemente Morcerf.
            - Pois sim, mas duvido que fosse, como eles, para libertar o túmulo de Cristo.
            - Tem razão, Beauchamp - concordou o jovem aristocrata. - A minha intenção era simplesmente dar uns tirinhos de pistola como amador. O duelo repugna-me, como sabe, desde que as duas testemunhas que escolhera para conciliar uma questão me obrigaram a partir o braço a um dos meus melhores amigos,
exatamente ao pobre Franz de Epinay, que todos conhecem.
            - Ah, sim, é verdade! - exclamou Debray. - Vocês bateram-se há tempo... A que propósito?
            - Diabo me leve se me recordo! - respondeu Château-Renaud. - Mas do que me lembro perfeitamente é que, envergonhado de deixar dormir um talento como o meu, quis experimentar contra os  árabes umas pistolas novas que acabavam de me oferecer. Consequentemente, embarquei para Orão. De orão. segui para Constantina e cheguei exatamente a tempo de ver levantar o cerco. Retirei, como os outros. Durante quarenta e oito horas suportei bastante bem a chuva de dia e a neve de noite. Por fim, na manhã do terceiro dia, o meu cavalo morreu de frio. Pobre animal, acostumado às mantas e ao fogão de aquecimento da cavalariça!... Um cavalo árabe que se sentiu, nem mais, nem menos, um bocadinho deslocado quando  reparou com dez graus de frio na Arábia.
            - É por isso que você me quer comprar o meu cavalo inglês - comentou Debray. - Julga que suportará  melhor o trio do que o seu árabe.
            - Engana-se, porque jurei nunca mais voltar a  África.
            - Quer dizer que teve medo? - perguntou Beauchamp.
            - Palavra que tive, confesso - respondeu  Château-Renaud. - E havia motivo para isso! O meu cavalo
morrera; eu retirava portanto a pé. Apareceram seis árabes a galope dispostos a cortar-me a cabeça; abati dois com os meus dois tiros de espingarda, outros dois com os meus dois tiros de pistola, tiros em cheio, mas restavam dois e estava desarmado. Um agarrou-me pelos cabelos (é por isso que os uso curtos agora; nunca se sabe o que pode acontecer ...) e o outro encostou-me o iatagã ao pescoço. Sentia já o frio agudo
do ferro quando o cavalheiro que vêem aqui carregou por seu turno sobre eles, matou o que me agarrava pelos cabelos com um tiro de pistola e rachou a cabeça ao que se preparava para me cortar o pescoço com uma sabrada. O cavalheiro resolvera salvar um homem naquele dia e o acaso quis que fosse eu. Quando for rico, encarregarei Klagmann ou Marochetti de fazerem uma estátua ao Acaso.
            - É verdade - confirmou Morrel, sorrindo. - Estavamos a 5 de Setembro, isto é, no aniversário do dia em que o meu pai foi miraculosamente salvo. Por isso, tanto quanto me é possível, comemoro todos os anos esse dia com qualquer ação...
            - Heróica, não é verdade? - interrompeu-o  Château-Renaud. - Em resumo, fui eu o escolhido. Mas isto não é tudo. Depois de me salvar do ferro, salvou-me do frio, dando-me, não metade da sua capa, como fazia S. Martinho, mas sim toda inteira. E depois salvou-me da tome dividindo comigo... adivinham o quê? 
            - Uma empada do Félix! - perguntou Beauchamp.
            - Não, o seu cavalo, do qual comemos ambos um naco deveras apetitoso. Que duro!
            - O quê, o cavalo? - perguntou, rindo, Morcerf.
            - Não, o sacrifício - respondeu Château-Renaud.  - Perguntem a Debray se sacrificaria o seu inglês por um estranho.
            - Por um estranho, não; mas por um amigo, talvez - disse Debray.
            - Adivinhei que se tornaria meu amigo, Sr. Barão  - declarou Morrel.  - Aliás, como já tive a honra de lhes dizer, heroísmo ou não, sacrifício ou não, naquele dia devia uma oferenda à má  sorte em recompensa do  favor que outrora nos fizera a boa.
            - A história a que o Sr. Morrel se refere - continuou Château-Renaud - é uma história admirável que ele lhes contará um dia, quando o conhecerem melhor. Por hoje, abasteçamos o estômago e não a memória. A que horas almoça você, Albert?
            - Às dez e meia.
            - Exatas? - perguntou Debray, puxando do relógio.
            - Oh, espero que me concedam os cinco minutos da praxe, porque também espero um salvador! - perguntou Morcerf.
            - De quem?
            - Meu, ora essa! - respondeu Morcerf - Ou julgam que não posso ser salvo como qualquer outro e que só os árabes cortam cabeças? O nosso almoço é um almoço filantrópico e teremos à mesa, pelo menos assim espero, dois benfeitores da humanidade.
            - Como havemos de resolver isso se só temos um Prêmio Montyon?
- perguntou Debray.  
            - Ora, o darão a alguém que não tenha feito nada para merece-lo - sugeriu Beauchamp. - Não é assim que habitualmente a Academia se tira de apuros?
            - E de onde vem ele? - perguntou Debray. - Desculpe a insistência, bem sei que já respondeu a esta pergunta, mas tão vagamente que me permito fazê-la segunda vez.
            - Na realidade, não sei - confessou Albert. - Quando o convidei, há três meses, estava em Roma. Mas desde então sabe-se lá onde terá andado!
            - E acha-o capaz de ser pontual? - perguntou Debray.
            - Acho-o capaz de tudo - respondeu Morcerf.
            - Note que com os cinco minutos de tolerância já só faltam dez minutos.
            - Bom, eu os aproveitarei para lhes dizer qualquer coisa acerca do meu conviva.
            - Perdão - atalhou Beauchamp haverá assunto para um folhetim no que vai contar?
            - Sem dúvida, e dos mais curiosos - respondeu Morcerf.
            - Diga então, pois já vi que não ponho os pés na Câmara e preciso de qualquer coisa que me compense.
            - Eu estava em Roma no último Carnaval... - começou Albert.
            - Já sabemos isso - interrompeu-o Beauchamp.
            - Sim, mas o que não sabem é que fui raptado por bandidos.
            - Já não há bandidos - interveio Debray. 
            -  Isso é que há, e até  hediondos, isto é, admiráveis, pois achei-os belos a ponto de meterem medo.
            - Vamos, meu caro Albert - tornou a intervir Debray confesse que o seu cozinheiro está atrasado, que as ostras não chegaram ainda de Marennes ou de Ostende e que a exemplo da Sra de Maintenon pretende substituir o prato por uma história. Seja franco, meu caro, pois somos suficientemente bons amigos para lhe perdoar e escutar a sua história, por mais fabulosa que seja.
            - E eu repito que por mais fabulosa que seja lhes garanto que é verdadeira de uma ponta a outra. Os bandidos tinham-me portanto raptado e conduzido para um lugar tristíssimo a que chamam as catacumbas de S. Sebastião.
            - Conheço-as - declarou Château-Renaud. - Estive quase a apanhar a febre la.
            - Pois eu fiz melhor do que isso - perguntou Morcerf -  apanhei-as realmente. Disseram-me que era seu prisioneiro e que teria de pagar um resgate, uma miséria, quatro mil escudos romanos, vinte e quatro mil libras tornesas... Infelizmente, eu não tinha mais de mil e quinhentos; encontrava-me no fim da viagem e o meu crédito estava esgotado. Escrevi a Franz... (Por Deus, já me esquecia, Franz estava lá e podem perguntar-lhe se altero uma vírgula!) Escrevi pois a Franz dizendo-lhe que se não chegasse até  às seis da manhã com os
quatro mil escudos, às seis e dez iria me juntar aos bem-aventurados santos e aos gloriosos mártires na companhia dos quais tinha a honra de me encontrar. Porque o Sr. Luigi Vampa, assim se chamava o meu chefe de bandidos, cumpriria, peço-lhos que acreditem, escrupulosamente a sua palavra.
             - Mas Franz chegou com os quatro mil escudos? - perguntou Château-Renaud. - Que diabo, ninguém se atrapalha por causa de quatro mil escudos quando se chama Franz de Epinay ou Albert de Morcerf!
            - Não, chegou pura e simplesmente acompanhado do conviva que lhes anunciei e que espero apresentar-lhes.
            - Bom, mas então esse cavalheiro era algum Hércules matando Caco ou algum Perseu libertando Andrômeda?
            - Não, é um homem pouco mais ou menos da minha estatura.
            - Armado até  aos dentes?
            - Nem sequer tinha uma agulha de fazer malha.
            - Mas tratou do seu resgate?
            - Disse duas palavrinhas ao ouvido do chefe e fiquei livre.
            - E ainda por cima lhe apresentou desculpas por o ter raptado - insinuou Beauchamp.
            - Exatamente - confirmou Morcerf.
            - Mas então esse homem era Ariosto?
            - Não, era simplesmente o conde de Monte-Cristo.
            - Não existe nenhum conde de Monte-Cristo - declarou Debray.
            - Pois não - acrescentou Château-Renaud, com o sangue-frio de um homem que sabe de cor e salteado o nobiliário europeu. - Quem é que conhece de alguma parte um conde de Monte-Cristo?
            - Talvez venha da Terra Santa - disse Beauchamp. - Um dos seus avôs pode ter possuído o Calvário, como os Mortemarts foram senhores do mar Morto.
            - Perdão - interveio Maximilien –, mas creio poder tirá-los de apuros, meus senhores. Monte-Cristo é uma ilhazinha de que ouvi muitas vezes falarem  os marinheiros ao serviço do meu pai; um grão de areia no meio do Mediterrâneo, um átomo no infinito.
            - É perfeitamente isso, senhor - confirmou Albert. - Pois bem, desse grão de areia, desse  átomo, é senhor e rei aquele de quem lhes falo. Talvez tenha comprado o título de conde em qualquer parte da Toscana.
            - É portanto rico o seu conde?
            - Creio que sim.
            - Mas isso é coisa que se deve ver, parece-me...
            - Engana-se, Debray.
            - Não compreendo.
            - Leu As Mil e Uma Noites?
            - Meu Deus, que pergunta!
            - Sabe porventura se as pessoas que aparecem na obra são ricas ou pobres? Se os seus grãos de trigo não são rubis ou diamantes? Têm o ar de pescadores miseráveis, não  é verdade? Consideramo-los como tal e de repente abrem-nos uma caverna misteriosa onde encontramos um tesouro capaz de comprar a
índia?
            - E depois?
            - Depois, o meu conde de Monte-Cristo é um desses pescadores. Tem mesmo um nome derivado disso: chama-se Shimbad, o Marinheiro, e possui uma caverna cheia de ouro.
            - E você viu essa caverna, Morcerf? - perguntou Beauchamp.
            - Eu, não, mas Franz a viu. No entanto, cale-se! Não se deve tocar nesse assunto diante dele. Franz desceu à caverna de olhos vendados e foi servido por mudos e mulheres ao pé das quais parece que Cleópatra não passaria de uma reles cortesã. Apenas a respeito das mulheres ficou com as suas dúvidas, pois elas só entraram depois de ele comer haxixe. Portanto, é muito possível que o que tomou por mulheres não fosse mais do que um mero grupo de estátuas.
            Os presentes olharam Morcerf com uma expressão que queria dizer. “Então, meu caro, endoideceu ou está brincando conosco?"
            - Com efeito - interveio Morrel, pensativo –, também ouvi contar a um velho marinheiro chamado Penelon qualquer coisa semelhante ao que acaba de dizer o Sr. de Morcerf.
            - Ora ainda bem que o Sr. Morrel me ajuda! -  exclamou Albert. - Contraria-os, não é verdade, que ele atire assim um novelo de fio para o meu labirinto?
            - Perdão, caro amigo, mas é que você conta-nos coisas tão inverossímeis... - murmurou Debray.
            - Porquê? Porque os vossos embaixadores e os vossos cônsules não vos disseram nada a tal respeito? Coitados, não lhes chega o tempo para incomodarem os seus compatriotas que viajam.
            - Bom, agora zanga-se e atira-se aos nossos pobres agentes. Meu Deus, com que quer que o protejam? A Câmara diminui-lhos todos os dias os honorários, a ponto de já se não arranjar ninguém para tais cargos. Quer ser embaixador, Albert? Posso mandar nomeá-lo para Constantinopla.
            - Não! Para que à primeira intervenção que fizesse a favor de Maomé Ali o sultão me mandar o cordão e os meus secretários me estrangularem?
            - Bem vê... - começou Debray. 
            - Pois vejo, mas tudo isso não impede o meu conde de Monte-Cristo de existir!
            - Por Deus, toda a gente existe... Olha o grande milagre!
            - Toda a gente existe, sem dúvida, mas não em semelhantes condições. Nem toda a gente possui escravos negros, galerias de quadros principescas, armas riquíssimas, cavalos de seis mil francos cada um, amantes gregas!
            - Viu-a, a amante grega?
            - Vi. Vi-a e ouvi-a. Vi-a no Teatro Vallo e ouvi-a um dia em que almocei em casa do conde.
            - Come, portanto, o seu homem extraordinário?
            - Palavra que se come é tão pouco que nem vale a pena falar disso.
            - Verão, é um vampiro...
            - Riam à vontade. Essa era também a opinião da condessa G... que, como sabem, conheceu Lorde Ruthwen.
            - Bonito! - exclamou Beauchamp. - Ora aí está como um homem que não é jornalista conseguiu descobrir o equivalente da famosa serpente do mar Constitutionnel. Um vampiro! Não há dúvida que é perfeito.
            - Olhos amarelados, cuja pupila diminui e se dilata à vontade - disse Debray. - ângulo facial desenvolvido, testa magnifica, tez lívida, barba preta, dentes brancos e agudos, cortesia a condizer...
            - Ora aí está é precisamente isso, Lucien! - confirmou Morcerf. - Descreveu-o com toda a exatidão. Sim, e cortesia fria, incisiva. Esse homem causou-me muitas vezes arrepios. Um dia, por exemplo, quando assistíamos juntos a uma execução, senti-me mal mais de ve-lo e ouvir falar friamente de todos os suplícios do mundo do que de ver o  carrasco cumprir a sua função e ouvir os gritos do supliciado.
            - Não o levou às ruínas do Coliseu para lhe sugar o sangue, Morcerf? - perguntou Beauchamp.
            - Ou, depois de libertá-lo, não o obrigou a assinar qualquer pergaminho cor de fogo pelo qual lhe cedesse a sua alma, como Esaú, o seu morgadio?
            - Zombem! Zombem à vontade, meus senhores! - exclamou Morcerf um bocadinho irritado. - Quando olho para vocês, belos parisienses, frequentadores assíduos do Bulevar de Gand, passeantes do Bosque de Bolonha, e me lembro daquele homem... Bom, parece-me que não somos da mesma espécie.
            - O que muito me agrada! - declarou Beauchamp.
            - A verdade - acrescentou Château-Renaud - é que o seu conde de Monte-Cristo me parece um perfeito cavalheiro nas horas vagas, excetuando os seus pequenos entendimentos com os bandidos italianos.
            - Não há bandidos italianos! - exclamou Debray.
            - Nem vampiros! - acrescentou Beauchamp.
            - Nem conde de Monte-Cristo!-insistiu Debray. - Ouça, meu caro Albert, estão a dar dez e meia.
            - Confesse que teve um pesadelo e vamos almoçar - sugeriu Beauchamp.
            Mas a vibração do relógio ainda se não extinguira quando a porta se abriu e Germain, o mandarete do conde de Morcerf que este pusera à disposição do filho, anunciou:
            – Sua Excelência o conde de Monte-Cristo! 
            Todos os presentes deram, mal-grado seu, um salto denunciador da preocupação que a história de Morcerf lhes insinuara na alma. O próprio Albert não conseguiu conter uma emoção súbita.
            Ninguém ouvira carruagem na rua, nem passos na antecâmara; a própria porta se abrira sem ruído.
            O conde apareceu no limiar, vestido com a maior simplicidade, mas o leão mais exigente não encontraria na sua indumentária nada que lhe pudesse criticar. Era tudo de um gosto requintado, tudo provinha das mãos dos mais elegantes fornecedores, tanto a casaca e o chapéu como a camisa.
            Parecia contar apenas trinta e cinco anos e o que mais impressionou toda a gente foi a extrema semelhança com o retrato que dele traçara Debray.
            O conde avançou, sorrindo, para o meio da sala, direito a Albert, o qual foi ao seu encontro e lhe estendeu a mão rapidamente.
            - A pontualidade - disse Monte-Cristo - é a cortesia dos reis, segundo afirmava, creio, um dos vossos soberanos. Mas seja qual for a sua boa vontade, nem sempre é a dos viajantes. Espero no entanto, meu caro visconde, que desculpe, em benefício da minha boa vontade, os dois ou três segundos de atraso com que julgo comparecer ao encontro. Quinhentas léguas não se percorrem sem qualquer contrariedade, sobretudo na França, onde, ao que parece, é proibido bater nos postilhões.
            - Sr. Conde - respondeu Albert –, estava a anunciar a sua visita a alguns dos meus amigos que reuni a propósito da promessa que se dignou fazer-me, e que tenho a honra de lhe apresentar. O Sr. Barão de Château-Renaud, cuja nobreza remonta aos doze pares e cujos antepassados se sentaram à Távola Redonda; o Sr. Lucien Debray, secretário particular do ministro do Interior; o Sr. Beauchamp, terrível jornalista, o terror do Governo francês, mas de quem por certo, apesar da sua celebridade nacional, nunca ouviu falar na Itália, atendendo a que o seu jornal não entra lá; finalmente, o Sr. Maximilien Morrel, capitão dos sipaios.
            Ao ouvir este nome, o conde, que até  ali cumprimentara cortesmente, mas com frieza e uma impassibilidade muito inglesa, deu, mal-grado seu, um passo em frente, e um leve tom de vermelhão passou como um relâmpago pelas suas faces pálidas.
            - O senhor usa o uniforme dos novos vencedores franceses; é um belo uniforme - disse.
            Seria impossível dizer que sentimento dava à voz do conde tão profunda vibração e que fazia brilhar, como que a seu pesar, os seus olhos tão belos, tão calmos e tão límpidos, quando não havia qualquer motivo para os velar.
            - Nunca tinha visto os nossos africanos, senhor? - perguntou Albert.
            - Nunca - respondeu o conde, de novo perfeitamente senhor de si.
            - Pois, senhor, sob aquele uniforme pulsa um dos corações mais bravos e nobres do Exército.
            - Oh, Sr. Visconde! - protestou Morrel.
            - Não me interrompa, capitão... - perguntou Albert, que continuou: - De fato, acabamos de saber que este senhor praticou uma proeza tão heróica que, embora o tenha visto hoje pela primeira vez, lhe peço o favor de me deixar apresentar-lhe como meu amigo. 
            E mais uma vez, ao serem proferidas estas palavras, se pode notar em Monte-Cristo o olhar estranhamente fixo, o rubor furtivo e a leve tremura de pálpebras que nele denotavam emoção.
            - Ah, senhor, se é um nobre coração, tanto melhor! - exclamou o conde.
            Esta espécie de fervor, que se devia mais ao próprio pensamento do conde do que ao que acabava de dizer Albert, surpreendeu toda a gente e sobretudo Morrel, que olhou atônito para Monte-Cristo. Mas ao mesmo tempo a intonação era tão delicada e por assim dizer tão suave que, por muito estranha que fosse a exclamação, era impossível alguém zangar-se por via dela.
            - Por que duvidaria? - perguntou Beauchamp a Château-Renaud.
            - Na verdade - respondeu este, que com a sua experiência da sociedade e a perspicácia do seu olhar aristocrático devassara em Monte-Cristo tudo o que era devassável nele -, na verdade, Albert não nos enganou: o conde é uma pessoa singular... que lhe parece, Morrel?
            - Para dizer o que sinto - respondeu este –, tem um olhar tão franco e uma voz tão simpática, que me agrada, apesar da observação extravagante que fez a meu respeito.
            - Meus senhores - disse Albert –, Gemain anuncia-me que estão servidos. Meu caro conde, permita-me que lhe indique o caminho.
            Passaram silenciosamente à sala de jantar e cada um ocupou o seu lugar.
            - Meus senhores - disse o conde ao sentar-se –, permitam-me uma confissão, que será  a minha desculpa por todas as inconveniências que poderei dizer: sou estrangeiro, mas estrangeiro a tal ponto que é a primeira vez que venho a Paris. A vida francesa ‚-me portanto completamente desconhecida e até  agora quase só tenho praticado a vida oriental, a mais antipática às boas tradições parisienses. Peço-lhes pois que me desculpem se encontrarem em mim alguma coisa demasiado turca, demasiado napolitana ou demasiado
árabe. E agora, meus senhores, almocemos.
            - Como diz tudo aquilo! - murmurou Beauchamp. -  É decididamente um grande senhor.
            - Sim, um grande senhor - concordou Debray.
            - Um grande senhor de todos os países, Sr. Debray - sublinhou Château-Renaud. 

Capítulo XL

O almoço

            O conde, como recordamos, era um conviva sóbrio. Albert salientou o fato, manifestando o receio de que, desde o princípio, a vida parisiense desagradasse ao viajante através do seu aspecto mais material, mas ao mesmo tempo mais necessário.
            - Meu caro conde - disse –, ao vê-lo comer assaltou-me um receio: que a cozinha da Rua Helder não lhe agrade tanto como a da Praça de Espanha. 
            Deveria ter-lhe perguntado de que gostava e mandar preparar alguns pratos à sua escolha.
            - Se me conhecesse melhor, senhor-respondeu o conde, sorrindo -, não se preocuparia com um pormenor quase humilhante para um viajante como eu, que comeu sucessivamente macaroni em Nápoles, polenta em Milão, olla podrida em Valência, pilau em Constantinopla, karrick na índia e ninhos de andorinha na China. Não existe cozinha para um cosmopolita como eu. Como de tudo e em toda a parte, simplesmente como pouco; e hoje, que me censura a minha sobriedade, estou num dos meus dias de apetite, pois desde ontem de manhã que não comia.
            - Desde ontem de manhã! - exclamaram os convivas. - Não comia nada há vinte e quatro horas?
            - Não - respondeu o conde.- Fui obrigado a desviar-me do meu caminho para obter informações nos arredores de Nímes, de forma que me atrasei um pouco e não quis parar.
            - E comeu na sua carruagem? - perguntou Morcerf.
            - Não, dormi, como me acontece quando me aborreço sem ter a coragem de me distrair ou quando tenho fogo e não me apetece comer.
            - Quer dizer que comanda o sono, senhor? - perguntou Morrel.
            - Mais ou menos.
            - Possui alguma receita para isso?
            - Infalível.
            - Aí está uma coisa que seria excelente para nós, africanos, que nem sempre temos de o comer e raramente temos o que beber - declarou Morrel.
            - Decerto - respondeu Monte-Cristo. - Infelizmente, a minha receita excelente para um homem como eu, que leva uma vida muito excepcional, seria perigosíssima aplicada a um exército, que não acordaria quando fosse necessário.
            - E pode-se saber qual é essa receita? - perguntou Debray.
            - Oh, meu Deus, claro que pode! - respondeu Monte-Cristo. - Não faço segredo dela. É uma mistura de excelente ópio, que eu próprio fui buscar em Cantão, para ter a certeza de ser puro, e do melhor haxixe que se colhe no Oriente, isto é, entre o Tigre e o Eufrates. Juntam-se os dois ingredientes em partes iguais e faz-se uma espécie de pílulas, que se engolem quando necessárias. Passados dez minutos é efeito garantido.
Perguntem ao Sr. Barão Franz de Epinay; creio que as provou um dia.
            - Sim, ele disse-me qualquer coisa a esse respeito e até  ficou com uma agradável recordação da experiência - declarou Morcerf.
            - Mas então traz sempre essa droga consigo? - perguntou Beauchamp, que, na sua qualidade de jornalista, era muito incrédulo.
            - Sempre - respondeu Monte-Cristo.
            - Seria indiscreto se lhe pedisse para ver essas preciosas pílulas? - continuou Beauchamp, esperando apanhar o estrangeiro em falta.
            - Não, senhor - respondeu o conde.
            E tirou da algibeira uma caixinha de bombons maravilhosa, feita de uma única esmeralda e fechada por meio de uma porca de ouro, que, ao desenroscar-se, dava passagem a uma bolinha esverdeada, do tamanho de uma ervilha. Essa  bolinha linha um cheiro acre e penetrante. Havia quatro ou cinco idênticas
na esmeralda, que podia conter uma dúzia.
            A caixinha de bombons deu a volta à mesa, mas muito mais para que os convivas examinassem aquela esmeralda admirável do que para verem ou cheirarem as pílulas.
            - E é o seu cozinheiro que lhe prepara este petisco? -  perguntou Beauchamp.
            - Não, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Não deixo sem mais nem menos os meus verdadeiros prazeres à mercê de mãos indignas. Sou um químico razoável e preparo pessoalmente as minhas pílulas.
            - Que admirável esmeralda! É a maior que já vi, embora a minha mãe tenha algumas jóias de família bastante notáveis -  observou Château-Renaud.
            - Tinha três idênticas - informou Monte-Cristo. - Dei uma ao sultão, que a mandou montar no seu sabre, e a outra, ao nosso santo padre, o papa, que a mandou incrustar na sua tiara, ao pé de uma esmeralda mais ou menos idêntica, mas menos bela, que fora oferecida ao seu predecessor, Pio VII, pelo imperador Napoleão. Guardei a terceira para mim e mandei-a escavar, o que lhe tirou metade do seu valor, mas a tornou mais cômoda para o uso que desejava dar-lhe.
            Todos olhavam Monte-Cristo com espanto. Falava com tanta simplicidade que era evidente dizer a verdade ou estar louco. No entanto, a esmeralda com que ficara na mão levava-os a inclinarem-se naturalmente para a primeira suposição.
            - E que lhe deram esses dois soberanos em troca desse magnífico presente? - perguntou Debray.
            - O sultão, a liberdade de uma mulher - respondeu o conde. - O nosso santo padre, o papa, a vida de um homem. De modo que uma vez na minha existência fui tão poderoso como se Deus me tivesse feito nascer nos degraus de um trono.
            - E foi Peppino quem libertou, não é verdade? - perguntou Morcerf. - Foi a ele que aplicou o seu direito de graça?
            - Talvez - respondeu Monte-Cristo sorrindo.
            - Sr. Conde, não faz idéia do prazer que e experimento ao ouvi-lo falar assim! - disse Morcerf. - Anunciei-o antecipadamente aos meus amigos como um homem fabuloso, como um encantador das Mil e Uma Noites, como um feiticeiro da Idade Média. Mas os Parisienses são pessoas de tal modo subtis
em paradoxos que tomam por caprichos da imaginação as verdades mais incontestáveis, quando essas verdades não preenchem todas as condições da sua existência quotidiana. Por exemplo, temos aqui Debray que lê e Beauchamp que imprime todos os dias que assaltaram e roubaram no bulevar um membro do Jockey-Club;  que assassinaram quatro pessoas na Rua Saint-Germain; que prenderam dez, quinze, vinte ladrões, quer num café do Bulevar do Templo, quer nas Termas de Juliano, mas que contestam a existência dos bandidos das Maremmes, da campina de Roma ou dos Pântanos Pontinos. Diga-lhes portanto pessoalmente, Sr. Conde, peço-lhe, que fui raptado por esses bandidos e que sem a sua generosa intercessão esperaria, segundo todas as probabilidades, atualmente, a ressurreição eterna nas catacumbas de S. Sebastião, em vez de lhe oferecer de almoçar na minha indigna casa da Rua Helder.
            - Então! - exclamou o conde. - Tinha-me prometido nunca mais me falar dessa miséria!... 
            - Não fui eu, Sr. Conde! - protestou Morcerf. - Foi porventura qualquer outro a quem terá prestado o mesmo serviço que a mim e que decerto confundiu comigo. Falemos, pelo contrário, peço-lhe. Porque se se decidir a falar desse caso, talvez não só me repita um pouco do que sei, mas também muito do que não sei.
            - Mas parece-me - observou o conde, sorrindo - que o senhor desempenhou em todo esse caso um papel suficientemente importante para saber tão bem como eu o que se passou.
            - Quer me prometer, se eu disser tudo o que sei - propôs Morcerf -, dizer por sua vez tudo o que não sei?
            - É justíssimo! - respondeu Monte-Cristo.
            - Pois bem - prosseguiu Morcerf –, a despeito do meu amor-próprio, julguei-me durante três dias alvo das negaças de uma máscara, que tomava por qualquer descendente das Túlias ou das Popéias, quando na realidade era pura e simplesmente alvo das negaças de uma e contadine. E observo que digo e contadine para não dizer camponesa. O que sei é que como um ingênuo, mais ingênuo ainda do que aquele de quem falava há pouco, tomei por essa camponesa um jovem bandido de quinze ou dezesseis anos, de queixo imberbe e cintura fina, que, no momento em que pretendia adiantar-me e depositar um beijo no seu casto ombro, me encostou a pistola à garganta e, com o auxílio de sete ou oito dos seus companheiros, me conduziu, ou antes arrastou para o fundo das catacumbas de S. Sebastião, onde encontrei um chefe de bandidos muito letrado, palavra, o qual lia os Comentários de César, e que se dignou interromper a leitura para me dizer que se no dia seguinte, às seis horas da manhã, não tivesse depositado quatro mil escudos no seu cofre, nesse mesmo dia, às seis e um quarto, deixaria completamente de existir. A carta existe, está em poder de Franz, assinada por mim e com um post-scriptum de mestre Luigi Vampa. Se duvidam, escrevo a Franz, que mandará reconhecer as assinaturas. Eis o que sei. Agora o que não sei é como conseguiu, Sr. Conde, merecer tão grande respeito dos bandidos de Roma, que respeitam tão poucas coisas. Confesso-lhe que Franz e eu ficamos boquiabertos de admiração.
            - Nada mais simples, senhor - respondeu o conde. - Conhecia o famoso Vampa há mais de dez anos. Muito novo, e quando era ainda pastor, dei-lhe um dia já não sei que moeda de ouro por ter me indicado o meu caminho, e ele deu-me, para nada me ficar devendo, um punhal esculpido por ele e que o senhor deve
ter visto na minha coleção de armas. Mais tarde, quer porque tivesse esquecido essa troca de presentes que deveria manter a amizade entre nós, quer porque não tivesse me reconhecido, tentou capturar-me, mas fui eu, muito pelo contrário, que o apanhei com uma dúzia dos seus homens. Podia entregá-lo à justiça romana, que é expedita e que agiria ainda mais depressa no seu caso, mas não o fiz; soltei-o e aos seus.
            - Com a condição de não pecarem mais - observou o jornalista, rindo. - Vejo com prazer que antiveram escrupulosamente a sua palavra!...
            - Não, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Com a simples condição de que me respeitariam sempre, a mim e aos meus. Talvez o que lhes vou dizer lhes pareça estranho, senhores socialistas, progressistas e humanitários, mas nunca me preocupo com o meu próximo nem tento proteger a sociedade, que me não protege, e direi mesmo mais, que geralmente só se preocupa comigo para me  prejudicar. Por isso,  arredando-os da minha estima e mantendo a neutralidade em relação a eles, é ainda a sociedade e o meu próximo que me devem retribuição.
            - Até  que enfim! - exclamou Château-Renaud. - Aqui está o primeiro homem corajoso que ouço pregar leal e brutalmente o egoísmo. É muito belo isso! Bravo, Sr. Conde!
            - É franco, pelo menos - disse Morrel. - Mas estou certo de que o Sr. Conde se arrependeu de ter faltado uma vez aos princípios que acaba de expor de forma tão absoluta.
            - Quando é que faltei a esses princípios, senhor? - perguntou Monte-Cristo, que de vez em quando não se podia impedir de olhar Maximilien, e com tanta atenção que já por duas ou três vezes o ousado jovem baixara os olhos diante do olhar claro e límpido do conde.
            - A mim parece-me - respondeu Morrel - que libertando o Sr. de Morcerf, que o senhor não conhecia, servia o seu próximo e a sociedade...
            - Da qual é o mais belo ornamento - declarou gravemente Beauchamp, despejando de uma golada uma taça de champanhe.
            - Sr. Conde - interveio Morcerf –, caiu nas malhas do raciocínio, o senhor que é um dos mais argutos lógicos que conheço; só falta demonstrar-lhe claramente, o que não tarda, que longe de ser um egoísta‚ é pelo contrário, um filantropo. Ah, Sr. Conde, diz-se oriental, levantino, malaio, indiano, chinês, selvagem; chama-se Monte-Cristo de seu nome de família e Simbad, o Marinheiro, de seu nome de batismo, e eis que no dia em que põe pé em Paris revela possuir instintivamente o maior mérito ou o maior defeito dos nossos excêntricos Parisienses, isto é, usurpa os vícios que não tem e esconde as virtudes que tem!
            - Meu caro visconde - perguntou Monte-Cristo –, não vejo em nada do que disse ou fiz uma única palavra que me valha da sua parte ou da destes senhores o pretenso elogio que acabo de receber. O senhor não era um estranho para mim, Porque o conhecia, porque lhe cedera dois quartos, porque lhe oferecera
um almoço, porque lhe emprestara uma das minhas carruagens, porque víramos passar as máscaras juntos na Rua do Corso e porque tínhamos assistido de uma janela da Praça del Popolo àquela execução que tanto o impressionou que quase se sentiu indisposto. Ora, pergunto a todos estes senhores, podia deixar o meu convidado nas mãos daqueles horríveis bandidos, como lhe chamaram? De resto, como sabe, ao salvá-lo tinha um pensamento reservado; servir-me do senhor para me introduzir nos salões de Paris quando viesse a França. Houve tempo em que pode considerar esta resolução um projeto vago e fugaz; mas hoje, como vê, é uma autêntica realidade a que tem de se submeter, sob pena de faltar à sua palavra.
            - E a cumprirei - declarou Morcerf. - Mas receio muito que fique deveras decepcionado, meu caro conde, o senhor, que está habituado aos lugares acidentados, aos acontecimentos pitorescos, aos horizontes fantásticos. Entre nós não se verifica o mais pequeno episódio do gênero daqueles a que a sua vida aventurosa o habituou. O nosso Chimborazzo é Montmartre; o nosso Himalaia é o monte Valeriano; o nosso
Grande Deserto é a planície de Grenelle, só com a diferença de que abrimos lá um furo artesiano para que as caravanas tivessem água. Temos ladrões, muitos mesmo, embora não tenhamos tantos como dizem,  mas são ladrões que temem infinitamente mais o mais insignificante polícia do que o maior senhor -, enfim, a França é um país tão prosaico e Paris uma cidade tão civilizada que o senhor não encontrara, procurando nos nossos oitenta e cinco departamentos (digo oitenta e cinco departamentos porque, evidentemente. excetuo
a Côrsega da França), que não encontrará nos nossos oitenta e cinco departamentos a mais pequena montanha onde não haja um telégrafo nem a mais pequena gruta um pouco escura em que um comissário de polícia não tenha mandado colocar um bico de gás. Há pois um único serviço que lhe posso prestar, meu caro
conde, e para isso estou à sua disposição: apresentá-lo em toda a parte, ou mandá-lo apresentar pelos meus amigos. Aliás, o senhor não precisa de ninguém para isso; com o seu nome, a sua fortuna e o seu espírito –
Monte-Cristo inclinou-se com um sorriso levemente irônico -, uma pessoa apresenta-se a si mesma e é bem recebida em toda a parte. Na realidade, só posso portanto ser-lhe útil numa coisa: se alguma experiência da vida parisiense, algum hábito do conforto e algum conhecimento dos nossos bazares me podem recomendar, estou ao seu dispor para lhe arranjar uma casa conveniente. Não me atrevo a propor-lhe que compartilhe o meu alojamento como compartilhei o seu em Roma porque, embora não professe o egoísmo, sou egoísta por excelência, e porque em minha casa nem uma sombra se sentiria bem, a não ser que fosse uma sombra de mulher.
            - Ora aí está uma reserva muito conjugal! - exclamou o conde. - De fato, lembro-me de me ter dito em Roma algumas palavras acerca de um projetado casamento; devo felicitá-lo pela sua próxima felicidade?
            - O caso ainda continua em estado de projeto, Sr. Conde.
            - E quem diz projeto, quer dizer eventualidade - interveio Debray.
            - Não é bem assim - perguntou Morcerf. - O meu pai insiste e espero apresentar-lhes dentro de pouco tempo, senão a minha mulher, pelo menos a minha futura: Mademoiselle Eugênie Danglars.
            - Eugênie Danglars... - murmurou o conde de Monte-Cristo. - Um momento: o pai não é o Sr. Barão Danglars?
            - É sim - respondeu Morcerf. - Mas barão de nova criação.
            - E isso que importa - volveu-lhe Monte-Cristo –, se prestou ao Estado serviços que lhe mereceram essa distinção?
            - Enormes - confirmou Beauchamp. - Apesar de ser liberal de alma e coração, completou em 1829 um empréstimo de seis milhões a favor do rei Carlos X, que o fez barão e cavaleiro da Legião de Honra, de forma que usa a fita, não na algibeira do colete, como se poderia crer, mas sim na lapela da casaca.
            - Ah! - exclamou Morcerf, rindo. - Beauchamp, Beauchamp, guarde isso para le Corsaire e le Charivari, mas diante de mim poupe o meu futuro sogro.
            Depois, virando-se para Monte-Cristo:
            - Mas há pouco pronunciou o seu nome como se conhecesse o barão. Conhece-o, de fato?
            - Não, não o conheço - respondeu negligentemente Monte-Cristo -, mas provavelmente não tardarei a conhecê-lo, pois tenho um crédito aberto sobre ele pelas casas Richard & Blount, de Londres; Arstein & Eskeles, de Viena, e Thomson & French, de Roma. 
            E ao pronunciar estes dois últimos nomes, Monte-Cristo olhou pelo canto do olho para Maximilien Morrel.
            Se o estrangeiro pretendera produzir qualquer efeito em Maximilien Morrel, não se enganara. De fato, Maximilien estremeceu como se tivesse sido atingido por um choque elétrico.
            - Thomson & French... - murmurou. - Conhece essa casa, senhor?
            - São os meus banqueiros na capital do mundo cristão - respondeu tranquilamente o conde. - Posso ser-lhe útil em alguma coisa junto deles?
            - Oh, o Sr. Conde talvez nos pudesse ajudar numas pesquisas até aqui infrutíferas! Há tempos, essa casa prestou um serviço à nossa, mas não sei porquê sempre tem negado que nos prestou esse serviço.
            - Às suas ordens, senhor - respondeu Monte-Cristo, inclinando-se.
            - Mas - observou Morcerf - por causa do Sr. Danglars afastamo-nos singularmente do tema da nossa conversa. Tratava-se de encontrar uma habitação conveniente para o conde de Monte-Cristo. Vamos, meus senhores, procuremos ter uma idéia: onde instalaremos este novo hóspede do grande Paris?
            - No Arrabalde de Saint-Germain - sugeriu Château-Renaud - O senhor encontrar lá um encantador palacete com pátio e jardim.
            - Ora, ora, Château-Renaud - protestou Debray –, você só conhece o seu triste e desagrável Arrabalde de Saint-Germain. Não lhe dê ouvidos, Sr. Conde, e instale-se na Chauss‚e-d'Antin: é o verdadeiro centro de Paris.
            - Bulevar da Ópera - sugeriu Beauchamp. - No primeiro andar, uma casa com varanda. - O Sr. Conde mandar  levar para lá almofadas de tecido prateado e verá, fumando o seu cachimbo ou tomando as suas pílulas, toda a capital desfilar debaixo dos seus olhos.
            - Você não tem nenhuma idéia, Morrel? - perguntou Château-Renaud. - Não propõe nada?
            - Certamente - respondeu sorrindo o rapaz. - Pelo contrário, tenho uma, mas esperava que o senhor se deixasse tentar por qualquer das propostas brilhantes que acabam de lhe fazer. Mas como até  agora se não pronunciou, creio poder oferecer-lhe aposentos num palacete muito encantador, muito Pompadour, que a minha irmã alugou há um ano na rua Meslay.
            - Tem uma irmã? - perguntou Monte-Cristo.
            - Tenho, sim, senhor, é uma excelente irmã.
            - Casada?
            - Há quase nove anos.
            - Feliz? - perguntou de novo o conde.
            - Tão feliz quanto é permitido a uma criatura humana sê-lo - respondeu Maximillen. - Casou com o homem que amava, aquele que nos ficou fiel na nossa infelicidade: Emmanuel Herbaut.
            Monte-Cristo sorriu imperceptivelmente.
            - Resido lá durante o meu semestre - prosseguiu Maximilien - e estaria, assim como o meu cunhado Emmanuel, à disposição do Sr. Conde para todas as informações que necessitasse.
            - Um momento! - gritou Albert antes de Monte-Cristo ter tempo de responder. - Cuidado com o que faz, Sr. Morrel, olhe que vai enclausurar um viajante, Simbad, o Marinheiro, na vida familiar. Vai fazer um patriarca de um homem que veio para ver Paris. 
            - Oh, isso não! - respondeu Morrel, sorrindo. - A minha irmã tem vinte e cinco anos e o meu cunhado trinta; são jovens, alegres e felizes. Aliás, o Sr. Conde estará à vontade nos seus aposentos e só encontrará os seus anfitriões quando quiser descer aos aposentos deles.
            - Obrigado, senhor, obrigado - disse Monte-Cristo.- Me contentarei com ser apresentado pelo senhor à sua irmã e ao seu cunhado, se quiser conceder-me essa honra, mas não aceito a oferta de nenhum dos senhores porque já tenho a minha residência pronta.
            - Como?! - exclamou Morcerf. - Vai hospedar-se num hotel? Será muito desagrável para o senhor...
            - Esteve assim tão mal instalado em Roma? - perguntou Monte-Cristo.
            - Por Deus - perguntou Morcerf –, em Roma gastou cinquenta mil piastras mandando mobilar os seus aposentos; mas presumo que não está disposto a renovar todos os dias semelhante despesa.
            - Não foi isso que me deteve - respondeu Monte-Cristo mas sim ter resolvido possuir uma casa em Paris, uma casa minha, claro. Por isso, mandei na frente o meu criado de quarto, que já deve ter comprado a casa e mandado mobilá-la.
            - Quer dizer que tem um criado de quarto que conhece Paris? - admirou-se Beauchamp.
            - É a primeira vez, como eu, que vem a França; é negro e não fala - respondeu Monte-Cristo.
            - Então... é Ali? - perguntou Albert, no meio da surpresa geral.
            - E, sim, senhor, Ali, o meu núbio, o meu mudo, que viu em Roma, segundo creio.
            - Sim, certamente - respondeu Morcerf. - Lembro-me muito bem dele. Mas como encarregou um núbio de lhe comprar uma casa em Paris e um mudo de mobilá-la? Deve ter feito tudo às avessas, o pobre infeliz.
            - Engana-se, senhor. Estou certo, pelo contrário, de que escolheu todas as coisas a meu gosto; porque, como sabe, o meu gosto não é comum. Ali chegou há oito dias e deve ter corrido toda a cidade com esse instinto que possui um bom cão de caça quando caça sozinho. Conhece os meus caprichos, as minhas fantasias, as minhas necessidades; deve ter tudo organizado à minha vontade. Sabia que eu chegaria hoje às dez horas e esperava-me desde as nove na Barreira de Fontainebleau. Entregou-me este papel - é o meu novo endereço. Tome, leia.
            E Monte-Cristo passou um papel a Albert.
            - Campos Elísios, 30 - leu Morcerf.
            - Ora aí está uma coisa deveras original! - não pode impedir-se de dizer Beauchamp.
            - E muito principesca - acrescentou Château-Renaud.
            - Como, não conhece a sua casa?! – perguntou Debray.
            - Não - respondeu Monte-Cristo. já lhes disse que não queria chegar atrasado. Mudei de roupas na minha carruagem e apeei-me à porta do visconde.  
            Os jovens entreolharam-se. Ignoravam se tudo aquilo não seria uma farsa desempenhada por Monte-Cristo, mas tudo o que saía da boca daquele homem tinha, mal-grado o seu carater original, tal cunho de simplicidade que se não podia supor que mentisse. Aliás, porque mentiria?
            - Teremos portanto de nos contentar com prestar ao Sr. Conde todos os pequenos serviços que estão ao nosso alcance - disse Beauchamp.- Eu, na minha qualidade de jornalista, abro-lhe lodos os teatros de Paris.
            - Obrigado, senhor - atalhou, sorrindo, Monte-Cristo mas o meu intendente já tem ordem para me reservar um camarote em cada um.
            -E o seu intendente‚ também é um núbio, um mudo? - perguntou Debray.
            - Não, senhor, é simplesmente um compatriota vosso, se é que um corso pode ser compatriota de alguém Mas o meu amigo conhece-o, Sr. de Morcerf.
            - Ser  por acaso o excelente Signor Berluccio, que tão bem se saiu a alugar as janelas?
            - Justamente, e viu-o nos meus aposentos no dia em que tive a honra de receber o senhor para almoçar. É um excelente homem, que foi um pouco soldado, um pouco contrabandista, um pouco de tudo o que se pode ser, enfim. Não juraria mesmo que não tenha tido os seus desaguisados com a Polícia, por uma ninharia, qualquer coisa como uma punhalada...
            - E escolheu esse honesto cidadão do mundo para seu intendente, Sr. Conde? - perguntou Debray.- Quanto lhe rouba ele por ano?
            - Bom... palavra de honra, não mais do que qualquer outro, tenho certeza - respondeu o conde. - Mas serve-me bem, não conhece impossíveis e por isso conservo-o.
            - Portanto, tem a sua casa montada -  observou Château-Renaud. Um palácio nos Campos Elísios, criados, intendente... só lhe falta uma amante.
            Albert sorriu. Pensava na bela grega que vira no camarote do conde no Teatro Vallo e no Teatro Argentina.
            - Tenho melhor do que isso - respondeu Monte-Cristo.
            - Tenho uma escrava. Os senhores “alugam" as suas amantes no Teatro da Ópera, no Teatro do Vaudeville, no Teatro das Variedades; eu comprei a minha em Constantinopla. Ficou-me mais cara, mas a esse respeito não tenho de me preocupar com mais nada.
            - Esquece, porém - perguntou Debray, rindo –, que nós somos, como disse o rei Carlos, francos de nome e francos por natureza; que ao pôr os pés na terra da França a sua escrava se tornou livre?
            - Quem lhe dirá? - perguntou Monte-Cristo.
            - Ora essa, o primeiro que calhar!
            - Ela só fala o romaico.
            - Isso então é outra coisa.
            - Mas a veremos, ao menos? - perguntou Beauchamp. - Ou, assim como tem um mudo, também tem eunucos?
            - Juro-lhes que não - respondeu Monte-Cristo. - Não levo o meu orientalismo tão longe. Todos os que me rodeiam são livres de me deixar, e deixando-me não precisarão mais de mim nem de ninguém. Talvez seja por isso que me não deixam...
            Havia muito tempo que fora servida a sobremesa e tinham vindo os charutos.
            - Meu caro - disse Debray, levantando-se –, são duas e meia, o seu convívio é muito agrável, mas não há boa companhia que se não deixe, às vezes até  por uma má. Tenho de voltar ao ministério. Falarei do conde ao ministro, pois precisamos saber quem ele é.
            - Cuidado - observou Morcerf. - até  os mais espertos desistiram... 
            - Ora, temos três milhões para gastar com a nossa Polícia. É certo que são quase sempre gastos antecipadamente, mas não importa, ainda há-de haver uns cinquenta mil francos para gastar nisso.
            - E quando souberem quem ele é me dirão?
            - Prometo-lhe. Adeus, Albert. Meus senhores, sou um vosso humílimo criado...
            E depois de sair, gritou muito alto na antecâmara:
            - Mande avançar!
            - Bom - disse Beauchamp a Albert –, não vou à Câmara, mas tenho para oferecer aos meus leitores melhor do que um discurso do Sr. Danglars.
            - Por favor, Beauchamp - pediu Morcerf –, nem uma palavra, suplico-lhe. Não me roube o mérito de apresentá-lo e explicar. Não é verdade que é curioso?
            - E mais do que isso - respondeu Château-Renaud –, é realmente um dos homens mais extraordinários que já vi na minha vida. Vem, Morrel?
            - É só o tempo de dar o meu cartão ao Sr. Conde, que desejo me prometa fazer-nos uma visitinha na Rua Meslay, 14.
            - Esteja certo de que não faltarei, Senhor. - respondeu o conde, inclinando-se.
            E Maximilien Morrel saiu com o barão de Château-Renaud, deixando Monte-Cristo sozinho com Morcerf.

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