sexta-feira, 13 de maio de 2011

Os Irmãos Corsos - Capítulos 10 ao 18

CAPÍTULO 10


O PACTO ESTRANHO DOS DE FRANCHI



O sino da igreja despertou-me pela manhã, já bastante descansado e com um humor excelente.
Espreguicei-me e puxei a campainha para chamar o criado: Luís era tão requintado a ponto de ter ao alcance da mão um objeto daqueles, provavelmente a única e solitária campainha da aldeia.
Grifo apareceu logo em seguida, de pé enfaixado e mancando ligeiramente, mas com um grande jarro de água quente na mão.
  Então, como vai o tornozelo, Grifo?
  Bem melhor, obrigado, senhor —   sorriu ele. — Já posso andar, ainda que com cautela.
  Ótimo. Luciano já acordou?
  Há muito tempo, senhor.
  Ele está bem?
  Nem parece que foi ferido.
Pedi a Grifo que me trouxesse chá, enquanto eu fazia jus ao jarro de água quente. Depois de lavar-me, e como fosse ainda bem cedo, apanhei as Orientais de Victor Hugo na estante do futuro advogado e voltei para a cama, contentíssimo.
Saboreei o chá que me foi trazido, enquanto lia pela centésima vez o Fogo do Céu, que sempre me dava grande prazer. Um ruído de passos no corredor avisou-me da presença de Luciano.
  Entre! — exclamei, quando bateu à porta.
Luciano estava elegantíssimo. Vestia-se à francesa e como um verdadeiro aristocrata: trazia sobrecasaca preta, colete de fantasia e calças brancas, pois em meados de março já se usam calças brancas na Córsega.
Percebeu que eu o observava com certa surpresa.
  Está admirado da minha elegância? — perguntou, sorrindo. — É uma nova prova de que me vou civilizando.
— Não há dúvida, e confesso que estou surpreendido por encontrar um alfaiate desta categoria em Ajácio. Infelizmente eu, com minhas pobres roupas de veludo, vou fazer uma triste figura perto de você.
Luciano riu.
  Este conjunto é nada menos que puro Humann, meu caro hóspede. O grande alfaiate que vocês têm na França. Como Luís e eu somos da mesma altura, ele se divertiu em remeter para mim um enxoval completo, o qual, diga-se a verdade, só ponho nas grandes ocasiões. Isto é, quando o prefeito passa por aqui, quando o general comandante do octogésimo sexto departamento faz a sua visita de inspeção ou então quando recebo um hóspede de sua categoria. Por acaso, essa feliz circunstância coincide com uma cerimônia tão solene e rara como a que se vai realizar daqui a pouco.
Pronto, agora era Luciano quem estava sendo irônico! Entretanto, como sua ironia não ultrapassasse os limites necessários, limitei-me a baixar a cabeça em sinal de agradecimento.
Luciano calçou lentamente um par de luvas amarelas talhadas para a sua mão por Boivin ou Rousseau, dois fabricantes de primeira classe em Paris.
Com aquela roupa e aquelas luvas, ele parecia ter saído de uma dessas revistas elegantes em que a alta sociedade se exibe.
Impressionado com o exemplo de Luciano levantei-me da cama de um salto e comecei a me vestir.
  Desculpe — disse ele — se na noite passada respondi de modo um pouco impaciente às suas perguntas. Peço-lhe que me perdoe e saiba que estou ao seu dispor, caso ainda queira saber alguma coisa sobre a nossa família ou sobre a Córsega.
   Não há motivo para desculpar-se, Luciano — respondi. — Ao contrário, graças à sua gentileza venho sendo informado de tudo o que desejava saber, embora, na verdade, restem-me algumas perguntas.
  Pois faça-as.
  Não. Seria uma verdadeira indiscrição. Entretanto previno-o de que não insista muito, pois não respondo por mim.
  Pode fazê-las. A curiosidade insatisfeita é uma coisa perigosa; desperta naturalmente suspeitas e, sobre três suspeitas, há sempre duas pelo menos mais prejudiciais ao interessado do que seria o conhecimento da verdade.
   Quanto a isso, fique sossegado. A minha pior suspeita não vai além de achar que você é um feiticeiro.
Luciano pôs-se a rir.
  Puxa! — exclamou ele. — Agora estou ficando tão curioso quanto você. Diga logo o que deseja saber, agora quem o pede sou eu!
  Muito bem: você teve a amabilidade de explicar-me tudo o que me parecia obscuro, menos num ponto. Mostrou-me aquelas belas armas históricas, que peço licença para ver de novo antes de ir embora.
  Concedido.
  Explicou-me o significado da dupla inscrição na coronha das carabinas.
  Certo.
  Entretanto, quando sua mãe lhe perguntou se tinha a certeza de que Luís não estava morto, pois vinha achando que Luís não andava bem, sua resposta foi: "Não, se ele estivesse morto eu já o teria visto".
  É verdade — disse Luís. — Foi isso o que respondi.
  Pois se a explicação desse mistério pode entrar em ouvidos profanos, pode contar-me?
Luciano ficou repentinamente tão sério que pronunciei com hesitação essas últimas palavras.
O profundo silêncio que ele me devolveu fez com que me arrependesse de ter aberto a boca.
  Pronto! — disse eu. — Vejo que fui indiscreto mesmo. Vamos fazer de conta que eu não disse nada.
  Não — retrucou. — O caso é que o senhor, como homem de sociedade, deve ser um tanto incrédulo. Temo que considere como superstição uma tradição de família que subsiste entre nós há quatrocentos anos.
  Por favor, Luciano — repliquei. — Deixe que eu lhe faça um juramento: não existe ninguém tão crédulo quanto eu em matéria de lendas e tradições.
Continuei, depois de uma pausa:
   Há certas coisas então em que acredito especialmente: são as coisas impossíveis.
  Crê em aparições? — perguntou ele.
  Quer que lhe conte o que me sucedeu quando ainda era criança?
 Sim, sim. Isso me dará coragem — disse Luciano.
  Pois bem. Meu pai morreu em 1807, quando eu tinha menos de quatro anos de idade; poucas horas antes o médico declarara que seu fim estava próximo, e fui levado então para a casa de uma velha prima que morava perto. Ela armou uma cama para mim em frente à sua, deitou-me à hora em que eu estava acostumado a dormir e, por não ter consciência da gravidade do momento, adormeci logo. De repente soaram três violentas pancadas na porta do nosso quarto. Acordei é desci da cama.
"Aonde vais?" — perguntou minha prima, que costurava perto de mim.
  Vou abrir a porta a papai que vem me dizer adeus — respondi. — Minha prima, é claro, ficou aterrorizada; pulou da cama e obrigou-me a deitar novamente apesar da minha resistência. Eu chorava alto e gritava: — Papai está do outro lado da porta! Quero ver papai antes que vá embora para sempre!
  E nos anos seguintes essa aparição se renovou? — perguntou Luciano, cujos olhos brilhavam de interesse.
— Não — respondi —, embora eu mesmo a tenha invocado muitas vezes; pode ser que Deus conceda à pureza das crianças um privilégio que ele nega à corrupção dos adultos.
  Na nossa família — disse Luciano rindo —, somos mais felizes do que o senhor.
  Vocês ainda têm essas visões?
  Sim. Todas as vezes que um grande acontecimento está prestes a se realizar ou já se realizou.
  E como explica esse privilégio dos De Franchi?
  Vou lhe contar o que sabemos: já lhe disse, Savília de Franchi morreu deixando dois filhos.
  Sim, eu me lembro.
  Esses dois filhos cresceram e, habituados a contar apenas um com o outro, estimavam-se muito. Juraram entre si que nada os poderia separar, nem mesmo a morte. Um dia, resolveram escrever, com o próprio sangue, num pedaço de pergaminho que trocaram, o seguinte juramento:
O primeiro a morrer aparecerá ao outro, quer no instante de sua morte, quer depois, nos momentos mais importantes da vida do outro.
  Daí a três meses um dos irmãos foi morto numa emboscada, justamente quando o outro fechava uma carta que lhe era destinada; entretanto, ao apoiar o anel de sinete sobre o lacre ainda quente, ouviu um suspiro atrás de si.
"Estranhando o ruído — continuou Luciano —, o irmão que sobrevivera voltou-se e viu o irmão de pé, com a mão pousada em seu ombro, embora não sentisse nenhum peso vindo dessa mão. Então, num movimento maquinal, estendeu-lhe a carta que lhe era destinada: o outro a recebeu e desapareceu.
"Na véspera de sua morte — continuou ele —, o irmão sobrevivente recebeu a visita do outro. Essa ocorrência se estendeu aos descendentes deles: não só às vésperas da morte ou às vezes no mesmo minuto dela, como também na véspera de todos os grandes acontecimentos da vida de quem recebe a visita."
  E você, Luciano, já recebeu alguma visita desse tipo?
 Eu não; mas como meu pai, durante a noite que antecedeu sua morte, foi avisado pelo pai dele de que iria morrer, penso que tanto eu como meu irmão teremos o mesmo privilégio de nossos ancestrais, uma vez que nada fizemos para desmerecer esse favor.
  E essas visões ocorrem a todos? — perguntei. — Tanto às mulheres quanto aos homens?
  Não, somente aos homens.
  É estranho!
  Talvez, mas é assim.
Observei atentamente Luciano que, calmo e sério, contava-me uma coisa considerada impossível.
Em Paris, teria tomado aquele homem por um mistificador. Mas no fundo da Córsega, numa pequena aldeia ignorada, tinha simplesmente de considerá-lo como um louco que se engana de boa fé, ou como um homem privilegiado, mais feliz ou desgraçado que os outros homens.
Ficamos durante um longo tempo em silêncio.
  Agora já sabe tudo o que queria saber? — perguntou finalmente Luciano.
— Tudo. Agradeço-lhe a confiança que depositou em mim ao contar-me esse fato. Pode ter a certeza de que guardarei segredo sobre ele.
  Oh, por favor, não há nisso o menor segredo! — disse sorrindo Luciano. — Qualquer habitante da aldeia lhe contaria essa história, pois todos a conhecem.
  Espero somente que, em Paris, meu irmão não se gabe desse privilégio, pois o tomariam por um doido: os homens se ririam dele em sua cara e as mulheres teriam ataques de nervos em pleno jantar. Não sei qual seria a reação de Luís.
Ri com vontade, pois de certo modo Luciano havia adivinhado o meu pensamento.
Conversávamos ainda sobre o mesmo assunto quando o sino da igreja bateu a hora.
   Quinze para as dez, meu Deus! — exclamou Luciano. — Se deseja assistir ao espetáculo, acho que é tempo de nos sentarmos para um pequeno almoço.
  Ótimo. Estou com uma fome de lobo.
  O tiroteio de ontem deve lhe ter aberto o apetite — disse Luciano sorrindo.
  Sim, mas para a comida — respondi. — Não para outros tiroteios. Vim à Córsega de visita, não para ser enterrado.
A gargalhada de Luciano ainda era ouvida quando entramos na sala de jantar iluminada pelo sol que penetrava pelas janelas. A Sra. de Franchi, como de hábito, já se encontrava à cabeceira da mesa.
Cumprimentei-a com uma inclinação de cabeça, perguntando se havia dormido bem.
  Eu, sim. E o senhor? — perguntou ela, com um sorriso. — Não teve sonhos desagradáveis, depois das ocorrências de ontem?
  Infelizmente sim. Mas consegui escapar novamente.
  Ótimo. Mas é melhor se sentarem e comerem, senão chegarão atrasados à cerimônia.
Luciano e eu não esperamos uma segunda sugestão. Sentamo-nos à mesa farta e, contentes, homenageamos a saborosa comida corsa.
Pouco antes das dez horas, caminhávamos ambos energicamente pela bonita praça de Sullacaro.
CAPÍTULO 11


RECONCILIAÇÃO


A praça, na verdade, já fora avistada por mim do alto da escada de oito degraus pela qual se chegava à porta da semifortaleza habitada pela Sra. de Franchi e seu filho.
Ao contrário da véspera, entretanto, essa mesma praça formigava; pessoas iam e vinham em todas as direções. Curiosamente não havia quase homens, mas sim uma multidão de mulheres e crianças mais ou menos de doze anos para baixo.
Um homem de fraque preto e faixa tricolor que lhe atravessava o peito detinha-se no primeiro degrau da igreja: era o prefeito, consciente da solenidade da hora.
Consegui descobrir outro homem de preto sentado a uma mesa, colocada especialmente logo abaixo da escada da igreja: era ali que a cerimônia ia se realizar. O homem de preto — que era notário de Sullacaro — tinha um papel ao alcance da mão, provavelmente a ata de paz.
  Ei, Luciano — perguntei eu —, onde estão os homens da aldeia? Foram tragados por um terremoto?
  Já os verá — disse ele com um sorriso. — Não seja impaciente. A coisa é mais complicada do que você pensa.
Coloquei-me a um lado da mesa com os padrinhos de Orlandi. Do outro lado, bem em frente a nós, ficaram os padrinhos de Colona; Luciano, como mediador entre os dois brigões, postou-se atrás do notário, para atender ao mesmo tempo às duas partes.
Dei uma olhadela para o interior da igreja; ao fundo viam-se os padres, prontos para celebrarem a missa de comemoração. Tudo estava pronto para o grande acontecimento.
O relógio bateu lentamente dez horas.
No mesmo instante, todos os olhares se voltaram para as duas extremidades da rua. Um frêmito percorreu a multidão.
Imediatamente surgiu Orlandi do lado da montanha, acompanhado de seus partidários; dois segundos depois chegava Colona pelo outro lado da rua, se é que se pode chamar de rua um intervalo irregular deixado pela fantasia e a bondade dos donos das casas construídas às margens do intervalo.
Tanto Orlandi e seus adeptos quanto Colona e seus amigos vinham sem armas, como fora combinado. À parte seus rostos um pouco truculentos, mais pareciam um bando de camponeses acompanhando uma procissão.
Os chefes das duas famílias eram muito diferentes um do outro quanto ao físico.
Orlandi, como já foi dito, era alto, magro, moreno e levemente desengonçado.
Já Colona era baixo, atarracado, vigoroso; tinha a barba e os cabelos ruivos e encrespados.
Ambos traziam na mão um ramo de oliveira, simbolizando a paz que iam celebrar. O prefeito, na verdade, tivera que lutar um pouco com os dois camponeses para que aceitassem sua poética idéia.
Colona, além do ramo de oliveira, trazia na outra mão uma galinha branca segura pelos pés. Com esta nova galinha, que ele ofereceria a Orlandi a título de perdas e danos, se substituiria a antiga, causadora da feroz vendetta de dez anos.
A galinha, não é preciso dizer, estava viva e bem viva. Não sei se concordava ou não com que a paz se fizesse à sua custa: o fato é que dava de vez em quando violentos repelões na mão de Colona.
— Trata-se de uma autêntica ave corsa — murmurei para Luciano entre dentes.
Ele sufocou o riso como pôde, uma vez que este não combinava com a solenidade do momento.
A galinha parece que adivinhou meu pensamento: numa sacudidela mais vigorosa, aproveitou-se do nervosismo de Colona para escapar de sua mão. Foi a conta. Puseram-se todos a correr atrás da ave, que disparou pela praça de Sullacaro como um bólido!
Finalmente, padrinhos e partidários de Colona, com as caudas dos fraques flutuando atrás de si, conseguiram encurralá-la num canto e a fujona foi agarrada de novo pela manopla de um deles.
Na verdade, o fato de a galinha estar viva fora longamente discutido e quase estragava tudo, pois Colona considerava uma dupla humilhação ter de devolver viva uma galinha que sua tia jogara morta à face da prima de Orlandi.
Contudo, depois de usar todos os argumentos que conhecia, Luciano conseguiu convencer Colona a dar a galinha, do mesmo modo que se esgotou para convencer Orlandi a recebê-la. Os dois cabeças-duras, a princípio, nem queriam ouvir falar de tal coisa! Mas o meu amigo considerou que esse gesto daria mais peso à cerimônia da paz e tinha razão: os corsos dão muita importância às coisas concretas.
Quando os dois inimigos estavam a poucos metros de distância, os sinos da igreja começaram furiosamente a badalar, todos ao mesmo tempo.                                                    
No instante em que se avistaram, Orlandi e Colona tiveram o mesmo movimento de repulsa recíproca; no entanto, continuaram a caminhar valentemente um para o outro. Ambos vestiam provavelmente suas roupas de domingo, engomadas para a ocasião: velhos fraques escuros. Orlandi parecia engolido pela roupa, enquanto Colona lutava contra as costuras que o apertavam em demasia.
Exatamente diante da porta da igreja os dois pararam, a quatro passos um do outro.
Três dias atrás, se esses dois homens se encontrassem na rua a uma distância de cem passos, um deles com toda a certeza deixaria de existir.
Durante cinco minutos houve, não só em ambos os grupos mas em toda a assistência, um silêncio que nada tinha de tranqüilizador, apesar da paz que ia ser celebrada.
O prefeito tomou a palavra.
— Bem, Colona, é a você que compete falar primeiro — disse ele.
Colona ficou ainda mais vermelho e congestionado do que já era. Fazendo um tremendo esforço sobre si mesmo, pronunciou algumas palavras em dialeto corso.
Eu não compreendi coisa alguma do que falou, mas imagino que exprimia seu pesar por ter andado por dez longos anos em vendetta com seu bom vizinho Orlandi, oferecendo-lhe como reparação a galinha branca que trazia consigo.
Orlandi esperou que as últimas palavras pronunciadas por Colona fossem ouvidas por todos. Então respondeu com outras frases corsas, provavelmente querendo dizer que prometia esquecer a antiga ofensa, que se reconciliaria com o seu vizinho neste momento, compromisso que seria celebrado pelo Sr. prefeito, redigido pelo Sr. notário e sob a arbitragem do Sr. Luciano.
Em seguida, novo silêncio se instalou na praça.
— Então, senhores — interveio o notário dirigindo-se a Orlandi e Colona —, acho que estava combinado que se apertariam as mãos!
Num movimento instintivo, os dois ex-inimigos esconderam as mãos atrás das costas.
A coisa estava malparada. Olhei para Luciano e vi que tentava encontrar rapidamente uma solução para o momento.
O prefeito, contudo, foi mais rápido: desceu do degrau onde estava, pegou a mão de Colona, fez o mesmo com a de Orlandi e, após alguns esforços que tentava esconder de seus administrados por meio de um sorriso, conseguiu juntar as duas mãos.
Luciano e eu respiramos aliviados.
O notário viu que não podia perder um minuto: aproveitou o momento e, levantando-se, enquanto o prefeito segurava firmemente as duas mãos que a princípio fizeram tudo para se desprenderem, mas que finalmente se resignaram a permanecer unidas, leu o seguinte papel:

"Diante de nós, Giuseppe-Antonio Sarrola, notário real em Sullacaro, província de Sartene;
Na praça principal da povoação, em frente à igreja, em presença do Sr. prefeito, dos padrinhos e de toda a população;
Entre Marco-Vicenzio Colona, chamado Schioppone;
e Gaetano-Orso Orlandi, chamado Orlandini;
foi resolvido solenemente o que se segue:
A partir de hoje, 4 de março de 1841, a vendetta declarada entre eles há dez anos cessará;
a partir deste mesmo dia viverão juntos como bons vizinhos e compadres, como viviam seus pais antes da lamentável ocorrência que provocou a desunião entre as suas famílias e amigos.
Ambos assinam o presente compromisso sob o pórtico da igreja do povoado, juntamente com o Sr. Polo Arbori, prefeito da comuna, o Sr. Luciano de Franchi, árbitro, os padrinhos de cada um dos contratantes e nós, notário.
Sullacaro, 4 de março de 1841".

Notei com admiração o grande tato do notário, que não fizera a menor referência à galinha, coisa que deixaria Colona em tão má posição perante Orlandi.
Os dois personagens principais da cerimônia também notaram a mesma coisa. O rosto de Colona se iluminou, ao passo que o de Orlandi se tornou mais carregado. Este último olhou para a galinha que segurava na mão com um ar tão furioso que, por um momento, pensei: vai atirá-la à cara de Colona.
Felizmente Luciano o observava, e deu-lhe um olhar tão severo que Orlandi desistiu da idéia.
O prefeito, vendo tudo aquilo, apressou-se: tornou a subir de costas a escada da igreja, segurando sempre as duas mãos entre as suas e sem perder um instante de vista os recém-conciliados.
Depois, percebendo que nenhum dos adversários apreciaria o privilégio de assinar primeiro, e a fim de evitar um novo problema, o prefeito pegou a caneta e assinou ele próprio em primeiro lugar.
Transformando desse modo a vergonha em honra, passou a caneta a Orlandi, que a recebeu de suas mãos, assinou e passou-a a Luciano. Este empregou o mesmo truque do prefeito: assinou em primeiro lugar, entregando depois a caneta a Colona.
Imediatamente ressoaram os cânticos litúrgicos, do mesmo modo que se canta o Te Deum[1]  após uma vitória.
Em seguida assinaram os padrinhos acompanhados de toda a população, sem distinção de categoria ou título, exatamente como a nobreza da França assinara, cento e vinte três anos antes, o protesto contra o Duque de Maine.
Os dois heróis do dia entraram então na igreja e foram ajoelhar-se em ambos os lados do coro, cada um no lugar que lhe fora destinado.
Olhei para Luciano e vi que a partir desse instante ele se sentia tranqüilo: a vendetta acabara, a reconciliação fora celebrada, e não somente diante dos homens mas diante de Deus. O que, para um corso, era importantíssimo.
A missa decorreu como todas as outras missas, sem nada que me chamasse a atenção.
Uma vez terminada a cerimônia, Orlandi e Colona saíram, acompanhados pelo mesmo séquito com que haviam chegado. À porta, o prefeito obrigou-os, mais uma vez, a apertarem-se as mãos, e cada qual, acompanhado de parentes e amigos, encaminhou-se para suas respectivas casas, onde não entravam, por conta da briga, há mais de três anos.
  Então, Luciano. Contente? — perguntei, quando o vi acompanhar com os olhos os brigões apaziguados.
  Sim — respondeu ele, sorrindo: — Afinal de contas, cumpri meu dever.
Notei nele, entretanto, uma certa melancolia. No fundo, Luciano achava que a Córsega se desfigurava aos poucos, perdia a selvageria que lhe era tão querida. Civilizava-se, enfim.
  Assunto resolvido, meu caro. Não pensemos mais nisso e sim na refeição que nos aguarda em casa. Meu estômago parece não se ter convencido com tanta paz e acaba de me declarar guerra! — disse ele alegremente.
Chegamos, e um lauto almoço nos esperava.
Compreendi, pelo excesso de atenção de que era alvo, que Luciano lera meu nome completo por cima do meu ombro quando eu assinara o compromisso de paz, e que esse nome não lhe devia ser totalmente desconhecido.
À mesa, a Sra. de Franchi confirmou as minhas suspeitas.
  Então — disse ela sorrindo —, já sabemos quem é o nosso hóspede. Saiba que li todos os seus livros.
  Agradeço-lhe a bondade e a paciência, Sra. de Franchi — respondi eu.
   O senhor está escrevendo algum livro no momento? Quais são os seus planos quando voltar a Paris?
   Bem, no momento, como já disse a Luciano, devo voltar urgentemente para acompanhar os ensaios da peça Um Casamento no Reinado de Luís XV. Aliás, serei obrigado a partir nesta mesma noite, após o jantar, embora contra a vontade. Eu...
Fomos interrompidos repentinamente por Grifo.
  Sra. Savília — disse ele —, a jovem Graziella Colona está aqui e pede para falar-lhe.
  Faça-a entrar, Grifo — respondeu a mãe de Luciano, lançando-nos um olhar.
Pouco depois Graziella Colona entrou na sala de jantar, estacando ao ver-nos em torno da mesa:
  Boa tarde, Sra. Savília. Boa tarde, senhores. Perdoem-me por interrompê-los. Eu esperarei na outra sala até que acabem.
  Por que não se senta conosco, Graziella? Já almoçou? — perguntou a Sra. de Franchi, enquanto fazia um sinal a Grifo.
  Sim, sim, obrigada.
A Sra. de Franchi a observava com um sorriso.
  O que você quer me falar é segredo ou pode ser dito aqui mesmo? — perguntou ela.
A moça hesitou.
  Não, não é segredo. Ou, pelo menos, quero que todos o saibam o mais rápido possível.
  Grifo — disse a Sra. de Franchi —, pegue uma cadeira e ponha-a perto de mim. Graziella, sente-se aqui e diga-me de que modo posso ajudá-la.
Graziella Colona sentou-se. Era uma moça pequena, morena e de olhos extraordinariamente bonitos e vivos.
  O  caso  é  que. . .     começou nervosamente. —  Quer dizer... Bonomi Orlandi e eu nos amamos. . .
  Sim — encorajou-a a Sra. de Franchi. — O amor é sempre uma boa coisa.
  É — concordou ela desanimadamente —, mas acho que papai me arrancará os olhos quando souber que nos amamos e queremos casar.
Por um momento veio-me à memória a figura atarracada e decidida de Colona. Graziella tinha razão: eu não queria estar na pele dela nem um segundo quando o pai fosse informado da novidade. A moça suspirou.
   E isso — continuou ela — sem falar na gritaria que Orlandi fará nos ouvidos de meu Bonomi. . .
   Mas, Graziella — aparteou a Sra. de Franchi —, é bem possível que, após o compromisso de paz, tanto Colona como Orlandi vejam esse casamento de modo mais aceitável. Lembro-me de como reagiram quando Colona descobriu você de mão dada com Bonomi, alguns anos atrás. Mas agora as coisas mudaram, não acha?
  É o que a senhora pensa — falou tristemente Graziella. — Sim, é bem possível que não haja mais tiroteios. Entretanto, é difícil que os inimigos virem amigos de um dia para o outro, se é que algum dia se tornarão amigos. . .
Ficamos calados. O que ela dizia era a verdade pura.
  Será que. . . — começou Graziella. — Isto é, gostaria, se fosse possível, que a senhora ou Luciano falasse com meu pai.
   Você quer — disse a Sra. de Franchi — que nós tentemos convencê-lo a permitir o namoro?
  Sim — respondeu Graziella. — E o casamento também, pois já nos namoramos desde os quinze anos.
   Pois bem — concordou a Sra. de Franchi. — Mas vamos fazer assim: Luciano falará com seu pai, enquanto eu tratarei de colocar sua mãe a nosso favor. O que acha, Luciano?
  Só espero — disse Luciano sorrindo — que desta vez Colona não me mate, por viver interferindo em seus negócios. Mas estou pronto a ajudar, embora não garanta os resultados. Tentarei fazer o melhor que puder.
Graziella olhou radiante para mãe e filho.
  São tão bons! — exclamou. — Como posso agradecer-lhes? Falarão com meus pais amanhã mesmo?
  Sim — disse a Sra. de Franchi, segurando a mão de Gra­ziella nas suas. — Mas sabe que não será fácil.
   Nós conseguiremos! — falou a moça, confiante.
  Bem — interrompi eu —, é com grande pesar que abandono tão amável companhia, mas tenho que subir para arrumar a minha mala. Sra. de Franchi, Luciano e Graziella, se me dão licença. . .
  Como? ! — exclamou Graziella. — O senhor vai deixar-nos?
  Sim — respondi, surpreendido com aquela reação. — Tenho compromissos em Paris.
  Por favor, não vá agora — pediu Graziella com olhos suplicantes.
  Por quê? — perguntei eu espantado.
  Sua presença nos deu sorte — falou ela muito séria. — O senhor trouxe a paz consigo. Por que não fica mais um dia para ajudar-nos a convencer meus pais?
Lá estava a velha e infalível superstição corsa!
  Por que acha que eu poderia ajudar? — perguntei, achando graça nas palavras de Graziella.
  Sei que poderia — disse ela. — Por favor, fique, senhor!
Hesitei um momento. Por fim me decidi:
  Está bem, Graziella. Ao diabo com Um Casamento no Reinado de Luís XV! Verei um casamento corso, que deve ser muito mais interessante!
   Quer dizer que fica? — perguntou ela, ansiosa.
  Sim.
  Que maravilha! — exclamou. — Agradeço-lhe do fundo do coração!
  Amanhã, às cinco horas, falarei então com seu pai, Graziella — disse Luciano. — E que Deus me proteja!


CAPÍTULO 12


GRAZIELLA E BONOMI



O dia seguinte amanheceu ensolarado, e seria como todos os outros para mim se não fosse a curiosidade com que eu aguardava o encontro entre Luciano e Colona.
Às quatro horas, jantávamos em torno da grande mesa, a Sra. de Franchi, Luciano e eu, pois na Córsega almoça-se e janta-se muito mais cedo que em outros lugares.
   Alexandre, se não fosse um incômodo para você, gostaria que viesse comigo ao encontro de Colona — falou Luciano.
  Claro, meu amigo — respondi. — Estou ao seu dispor. Afinal, sou ou não sou a mascote de Graziella?
Ele sorriu.
   Não é por isso — respondeu. — O fato é que um estrangeiro temperará o ânimo de Colona. Ele não terá a mesma coragem de expandir o seu mau humor. Além disso, como você não entende o dialeto corso, não será indiscrição discutirmos o assunto na sua frente.
A Sra. de Franchi acrescentou:
  Irei pouco depois de você, Luciano. Esperemos que tudo dê certo.
Uns dez minutos antes das cinco horas, Luciano e eu nos dirigimos à casa dos Colona. Meu companheiro ia calado, provavelmente pensando qual seria o melhor modo de abordar a delicada questão com o pai de Graziella.
Quando chegamos diante da pesada porta da casa de Colona, Luciano tocou o sino que anunciava os visitantes.
Um menino de seus oito anos de idade veio atender.
   Olá, Mássimo! — cumprimentou Luciano. — Este aqui é meu amigo Alexandre. Teu pai está em casa?
O menino estendeu-me a mão, que apertei. Seu cabelo, negro e luzidio, assemelhava-se muito ao da irmã Graziella. Respondeu algo em dialeto que não compreendi, mas acompanhando suas palavras com um movimento afirmativo de cabeça.
Luciano e eu entramos na sala dos Colona, enquanto o menino desaparecia num dos quartos. A casa, simples mas espaçosa, estava mobiliada com os típicos móveis de madeira escura da região: cadeiras de alto espaldar, a grande mesa de refeições e o guarda-comida.
Estava eu nessa observação quando a Sra. Colona entrou na sala. Dirigiu-se a Luciano, que nos apresentou, e pediu que nos sentássemos.
   Gostaria de falar com Colona, minha senhora — disse Luciano, enxugando a testa com um lenço branco. — Ele está?
  Sim — respondeu ela, com os olhos interrogativos fixados em meu companheiro, mas sem fazer nenhuma pergunta, como era norma entre as mulheres da Córsega quando os homens tinham assuntos a tratar entre eles. — Já mandei que Mássimo o avisasse no pomar.
Dois minutos depois chegava Colona, com o rosto vermelho aberto num sorriso:
  Sr. Luciano, como está? E o senhor? — perguntou dirigindo-se a nós ambos, enquanto nos apertava as mãos com sua grande pata de urso.
Depois dos cumprimentos houve um silêncio. Luciano limpou a voz:
  Tenho algo para falar-lhe, Colona. Alexandre, você não se importa que conversemos em dialeto, não é? Trata-se de um assunto particular que apenas o enfadaria.
Luciano desejava deixar bem claro ao camponês que eu não entenderia uma palavra do que iriam dizer. Sentaram-se no outro canto da sala, um defronte ao outro.
Meu amigo começou a falar pausadamente, sem nenhuma pressa. Devia estar tateando o terreno antes de despejar a bomba na cabeça de Colona, que o ouvia com toda a atenção.
Luciano respirou fundo, fazendo uma pausa. Pensei comigo mesmo que ele preferiria enfrentar o tiroteio de duzentas vendettas a dar aquela notícia a Colona.  
Como o único jeito era continuar, meu amigo assim o fez. Após mais algumas frases, o rosto de Colona foi passando do vermelho habitual a um púrpura carregado.
Interrompeu Luciano com uma enxurrada em dialeto capaz de espantar o próprio demônio pela sua rapidez, enquanto sacudia vigorosamente a cabeça. Se algum artista corso quisesse fazer a Estátua do Não poderia inspirar-se maravilhosamente em Colona naquele instante: todo o seu corpo era um retrato vivo e indignado da negativa absoluta.
Luciano calou-se, esperando calmamente que Colona esgotasse o que tinha a dizer, como alguém que finca o pé na areia e espera a onda passar.
Quando o camponês diminuiu a catadupa de palavras, Luciano recomeçou suavemente sua cantilena, travando-se entre os dois um dueto falado em voz normal por Luciano e berrado por Colona.
Por momentos, eu tinha a impressão de que Colona ia agredir meu amigo ou que teria um ataque de coração. De vez em quando entendia o nome de Graziella e o de Bonomi, interrompidos pela gritaria do furibundo pai.
De repente, Colona abandonou a sala e pôs-se a gritar por Graziella. Felizmente a Sra. de Franchi tinha sugerido à moça que ficasse na casa dos De Franchi enquanto Luciano se entrevistava com Colona: não sei o que teria acontecido com ela se o pai a pilhasse em casa naquele momento.
Luciano tratou de explicar a Colona que a moça estava tranqüilamente em sua casa, conversando com a Sra. de Franchi. Aquele pai corso fixou os olhos desconfiados em meu amigo, mas depois pareceu convencer-se de que Luciano falava a verdade.
Este último tirou mais uma vez o lenço do bolso, passando-o pela testa, e voltou à carga. Colona continuava a sacudir a cabeça em negativa, mas o pior, isto é, o conhecimento do fato, já havia passado.
Discutiram o assunto ainda uma boa meia hora, finda a qual o tom de voz de Colona foi-se tornando menos alto embora continuasse enérgico.
Luciano esperou que uma pausa maior se instalasse entre eles para levantar-se vagarosamente. Pronunciou algumas palavras que me pareceram um pedido de desculpas, acompanhado da justificativa pela sua intervenção. Despediu-se com um amigável aperto de mão, recomendou-se à Sra. Colona e atravessou a sala.
  Vamos? — disse-me.
Levantei-me e, após cumprimentar Colona, saímos pela larga porta.
Quando já estávamos na rua, virei-me para Luciano.
   A coisa foi difícil, hem? É claro que ele não quer nem ouvir falar de tal casamento. . .
  Esta é a primeira etapa, Alexandre, e a mais importante. Até que a reação não foi tão ruim quanto eu esperava. Que quer você? O pobre homem vai precisar de tempo para acostumar-se à idéia de ter a filha casada com o filho de seu inimigo.
   Quer dizer então que há esperança, apesar da gritaria de Colona?
  Bem, ele não concordou, é verdade. Mas acabará achando melhor abençoar o casamento de Graziella do que saber que ela fugiu com Bonomi Orlandi.
 Tem razão. Espero que isso não demore a entrar em sua cabeça dura. E quanto a Orlandi pai, Luciano? O que acha que pensará de tudo isso?
  É outro cabeçudo. Terei que repetir — com poucas variações — a mesma lengalenga que fiz entrar nos ouvidos de Colona. Não sei se você sabe mas. . .
Um rapaz destacou-se da árvore onde estava encostado e postou-se à nossa frente.
  Sr. Luciano. . . Senhor... — cumprimentou-nos ele.
   Bonomi Orlandi! Como vai? — falou Luciano, tomando-lhe a mão. O rapaz tinha o rosto tenso. Seu corpo alto e magro movia-se com agilidade dentro das calças e da camisa de algodão.
  Então, senhor? — perguntou ele ansioso. — O pai de Graziella concordou com o casamento?
  Bem, Bonomi... — começou Luciano. — Não concordou, mas essas coisas às vezes levam tempo. Se vocês realmente se amam vão acabar convencendo Colona a dar-lhes a bênção.
O rapaz chutou uma pedra, irritado.

  Eu sabia que o raio de velho não ia concordar. Mas não precisamos dele.
  Tenha calma, Bonomi — disse Luciano, pousando-lhe uma mão no ombro. — O importante é não perder a cabeça. Hoje, Colona soube da coisa; amanhã estará mais acostumado com a idéia e depois de amanhã concordará.
O rapaz enfiou as mãos nos bolsos com amargura.
   Ficaremos velhos esperando o consentimento dele. Não, não ficaremos: Graziella e eu vamos tomar nossas próprias providências.
Permanecemos em silêncio, pensando naquelas palavras; eu olhava os maxilares contraídos de Bonomi Orlandi e via que ele não falava por falar.
   E seu pai? — perguntou Luciano. — Já conversou com ele a respeito?
  Também não quer nem ouvir falar no assunto. Pensei que depois de ter feito as pazes com Colona ele concordaria; qual nada!
Luciano calou-se. Ficamos os três ali em pé, sem nada dizer, enquanto o sino da igreja batia as horas.
  Escute, Bonomi — disse meu amigo. — Você gostaria que eu falasse com seu pai? Como estou fora da situação, acho que teria mais calma e argumentos para tentar convencer o teimoso. Que acha?
Bonomi hesitou.
  Ele não concordará, como o outro.
   Alguém terá que ser o primeiro a consentir, não é? E por que não Orlandi?
  Está bem, Sr. Luciano —  disse Bonomi com os olhos brilhantes. — Agradeço-lhe muito! Meu pai foi tomar um copo de vinho na taberna agora.
   Vou falar com ele, então. Mas ouça, Bonomi: você me promete esperar dez dias antes de fazer alguma loucura?
  Prometo-lhe que não fugiremos antes desse prazo terminar.
  Pois bem. Então até já— disse Luciano. — Passe na minha casa mais tarde para saber o que aconteceu.
  Sim, senhor. Até já.
Apertamos a mão de Bonomi e continuamos descendo a rua. Quando chegamos à porta da taberna, Luciano falou, sorrindo:
  Convido-o para tomar alguma coisa, enquanto prossigo na minha via crucis[2] com os pais corsos.
   Obrigado, Luciano. Mas acho que vou dar uma volta pela cidade. Encontramo-nos em casa, está bem?
  Certo — suspirou meu amigo. E tirou mais uma vez o lenço do bolso para enxugar a testa antes de entrar na taberna.



CAPÍTULO 13


PERIPÉCIAS DE UM NOIVADO


Flanei durante muito tempo pelas ruelas de Sullacaro, pelas duas praças e por entre as frondosas árvores espalhadas por toda a aldeia. Quando voltei para casa, Luciano e a Sra. de Franchi já haviam chegado.
   Boa noite, Sra. de Franchi. Boa noite, Luciano. Então, meu velho, como foram as coisas com Orlandi?
  Fez cara feia, também — respondeu ele —, mas no fim já o achei mais macio. Penso que acabará por concordar.
   A mulher de Colona, depois de hesitar um pouco, ficou finalmente a nosso favor — acrescentou a Sra. de Franchi. — E nos ajudará a influenciar o marido. Ela e Graziella iam conversar com Colona ainda hoje.
Falávamos sobre o assunto ainda à ceia quando Grifo apareceu:
  Sr. Luciano, Bonomi Orlandi pergunta se pode recebê-lo.
  Claro, claro! — exclamou Luciano. — Traga-o para cá.
O rapaz entrou e cumprimentou-nos, visivelmente nervoso.
  Sente-se e ceie conosco, Bonomi. Houve algo de errado? — perguntou a Sra. de Franchi, observando atentamente seu rosto.
  Sim — conseguiu articular o rapaz. — Colona trancafiou a filha e diz que não a deixará mais sair.
Olhamos para ele emudecidos.
  Não sei o que farei agora. . . — murmurou. — E meu pai, Sr. Luciano?
  Seu pai acabará dizendo sim.
  Tenho uma idéia — falou calmamente a Sra. de Franchi. — É um pouco arriscada, quer dizer, para nós, mas talvez dê certo. Vamos conseguir com que Graziella fuja de casa e venha para cá. Tenho certeza de que a Sra. Colona nos ajudará em nosso plano. Pode ser que isso convença finalmente Colona de que a filha fará qualquer coisa para casar-se com Bonomi, mesmo indo contra a vontade do pai.
Depois acrescentou:
  Entretanto, depois que Graziella ficar aqui um ou dois dias, tempo suficiente para deixar Colona nervoso, eu o procurarei e lhe contarei a verdade; isto é, que ela está em nossa casa, sã e salva. Aproveito então para interceder pela causa mais uma vez. Que tal?
  Espero que Colona não nos declare uma vendetta, minha mãe — respondeu Luciano, rindo. — Mas sua idéia parece boa.
   Concorda, Bonomi? — perguntou a Sra. de Franchi.
  Sim, sim — respondeu ele, com nova esperança refletida no rosto. — Acho que pode dar resultado.
Na manhã seguinte, a Sra. de Franchi dirigiu-se à casa de Colona para pôr a mãe de Graziella a par do plano e saber sua opinião. Diante dos argumentos que lhe foram expostos, a Sra. Colona concordou, e nesta mesma tarde sua filha foi levada para a casa dos De Franchi.
No dia seguinte espalhava-se na aldeia que Graziella Colona havia fugido de casa. O pai, enfurecido, depois de procurá-la em toda a parte, colocara uma pistola no cinto e se dirigira para a casa de Orlandi, certo de que Bonomi partira com Graziella.
A atitude de Colona nos fez gelar o sangue nas veias, embora felizmente nada de grave houvesse ocorrido. Eis o que houve, segundo o que nos contou mais tarde a Sra. Colona:
   Quando viu que Graziella tinha fugido, Marco apanhou a pistola decidido a matar Orlandi, pai.
"Onde está minha filha, seu tratante?" — berrou Marco do lado de fora da casa, dando violentos pontapés na porta. — Eu, que largara minhas panelas para impedir meu marido de cometer alguma loucura, tratei de puxar-lhe o braço. De nada adiantou: sabem como fica Marco quando se enfurece. É um bom homem, mas tem um gênio de meter medo!
  Finalmente — continuou ela —, Orlandi pai não agüentou a gritaria e veio abrir a porta.
"Que quer, Colona?" — perguntou ele irritado. — Confesso que quando vi a má catadura de Orlandi minhas pernas tremeram — disse a Sra.   Colona — e  pensei:   pronto,  vamos   ter briga  novamente. Graças à Madona eu me lembrara de mandar Giácomo pedir auxílio ao Sr. Luciano, que veio um minuto depois.
Sim, Luciano e eu partimos imediatamente para a casa de Orlan­di, com o coração aos pulos, preocupadíssimos com o que pudesse acontecer. Quando chegamos, Orlandi se dirigiu a Luciano:
— Quer dizer a este maluco que Bonomi está aqui, almoçando, e que nada tem a ver com o desaparecimento da filha dele?
Colona mostrou-se um pouco desconcertado ao ver Bonomi chegar até a porta, mesmo assim gritou:
  Onde está minha filha, malandro? Diga, ou arranco-lhe a cabeça.
Luciano, vendo que a situação ficava cada vez pior, resolveu interferir:
  Se julga que Graziella está escondida aqui, Colona, sei que Orlandi permitirá a você examinar toda a casa. Assim sua desconfiança se dissipará. Tenho certeza de que Bonomi Orlandi é um cavalheiro e jamais raptaria Graziella. Colona pode entrar um momento, Orlandi? — perguntou Luciano.
Durante um longo minuto Orlandi olhou para Colona como se observasse um verme. Depois resmungou: — Pode.
Enquanto Colona revistava a casa, Luciano e eu nos entreolhamos. Meu amigo estava pálido e aborrecido; agora, como contar a Colona que Graziella se encontrava na casa dos De Franchi?
  Ouça, meu caro — disse eu. — Penso que é melhor sua mãe falar com Colona.
  Tem razão — respondeu Luciano. — Talvez acabe se comovendo com os argumentos dela. Ou usando a inteligência.
Quando Colona saiu de dentro da casa, resmungou para Luciano:
— Não está. Mas isso não fica assim!
Luciano franziu a testa:
  Temos que agir logo, senão esta brincadeira pode se transformar em barulho grosso. Vamos avisar minha mãe.
A Sra. de Franchi, informada do que acontecia, partiu imediatamente em busca de Colona. Luciano e eu a esperamos durante a tarde inteira sem que desse sinal de vida. Ao anoitecer, já começávamos a ficar seriamente preocupados quando ela surgiu:
  Luciano, Sr. Alexandre, boa noite. Grifo, chame Graziella. Ufa! — fez ela, sentando-se numa cadeira. — Estou exausta.
  Então, minha mãe? — perguntou Luciano. — Qual foi a reação de Colona?
Ela deu um largo sorriso.
  Nada direi enquanto não chegar a principal interessada. Ah! Cá está ela!
A moça correu para a Sra. de Franchi, interrogando-a com os olhos.
  Menina, que trabalheira eu tive para convencer seu pai! É o maior teimoso de Sullacaro, disso não há a menor dúvida.
   Quer dizer que ele concordou, Sra. Savília? — perguntou Graziella cautelosamente, sem querer acreditar numa ilusão.
  Sim — respondeu a Sra. de Franchi. — Isto é, depois de me ter feito falar durante horas. Eu já estava a pique de apanhar a minha velha carabina aqui em casa e tratar de convencê-lo a tiro!
Graziella jogou-se ao pescoço da Sra. de Franchi, abraçando-a.
  Ah! Que felicidade! Como vocês são bons! Serão os meus padrinhos. Aceitam?
Abraçou também Luciano e a mim com uma alegria que se espalhou pela sala.
   Aceitamos — disse a Sra. de Franchi. — Grifo, trate de buscar o melhor vinho que tivermos na adega: vamos tomar um copo para comemorar. Depois disso, Graziella, prometi a Colona que Luciano e Maria acompanhariam você até sua casa. Nem sequer tente ver Bonomi Orlandi hoje! Eu o avisarei. Lembre-se de que minha palavra está empenhada.


CAPÍTULO 14


DESPEDIDA



Depois de assistir ao casamento de Bonomi e Graziella, marquei a minha partida da Córsega para o dia seguinte.
  Alexandre — perguntou Luciano —, será que poderia entregar uma carta a Luís?
  Tudo o que quiserem — respondi.
  Peço-lhe, Sr. Alexandre, que a entregue pessoalmente — pediu-me a Sra. de Franchi. — Assim terei certeza de que a receberá.
  Está prometido, minha senhora. Aliás, será um prazer para mim, pois conhecerei finalmente Luís de Franchi.
Ao ler o envelope, notei que Luís, como um autêntico parisiense, morava na rua do Helder, número 7.
No dia seguinte, pouco antes de minha partida, perguntei a Luciano se poderia ver seu quarto novamente.
  Pois claro — respondeu ele, enquanto subíamos a escada. — E se gostou de algum dos objetos que estão dentro dele, é só levá-lo.
Já no quarto, meu olhar passeou pelos belos e sólidos móveis, cortinas e paredes cobertas de armas que lá havia. Fui desprender um pequeno punhal colocado num ponto bastante escuro, indicando-me que a arma não tinha grande valor. Ia levá-lo como lembrança.
Como vira Luciano olhar com curiosidade o meu cinturão de caça e elogiá-lo pelo arranjo, pedi-lhe que o aceitasse; ele teve o bom gosto de aceitá-lo sem que me fosse necessário oferecê-lo duas vezes.
Neste momento, Grifo apareceu à porta.
   O cavalo está selado, senhor.
   Muito bem, Grifo. É hora de partir.
Entreguei-lhe então o presente que separara para ele, uma espécie de facão de caça com duas pistolas adaptadas ao comprido da lâmina e cujos gatilhos escondiam-se no cabo.
Grifo ficou contentíssimo com o presente; agradeceu-me tanto que quase tomei as pistolas de volta para que se calasse.
Quando desci as escadas, lá estava a Sra. de Franchi para despedir-se e desejar-me boa viagem. Beijei-lhe a mão, cheio de respeito por aquela mulher tão simples e ao mesmo tempo tão digna.
Luciano também me esperava.
  Bem, meu amigo — disse-lhe eu —, chegou a hora de deixá-los. Sabe o quanto foi empolgante e maravilhoso o tempo que passei aqui. Além do mais, felicito-me por ter assistido a uma cerimônia tão rara na Córsega: uma reconciliação.
  Com efeito — concordou ele —, é caso para felicitar-se; você viu algo que deve ter feito os ossos de nossos avós rangerem nos túmulos.
  Compreendo — disse eu. — No tempo deles, a palavra era bastante   sagrada para  dispensar  que um notário  interviesse na reconciliação.
  Nada disso. O fato é que antigamente jamais se reconciliavam. O fim da vendetta era o fim de uma das famílias.
Estendeu-me a mão.
  Não quer mandar um abraço a seu irmão? — perguntei.
  Naturalmente, se isso não lhe custa.
  Pois então venha daí o abraço; não posso entregar uma coisa que não recebi.
Abraçamo-nos fortemente.
  Eu o tornarei a ver algum dia, não é? — perguntei.
  Talvez, se você voltar à Córsega, Alexandre.
   Ou você for a Paris — retorqui.
  Não, nunca irei a Paris — disse ele.
  De qualquer modo, achará cartões meus sobre a lareira do quarto de Luís. Não se esqueça do endereço.
  Prometo-lhe que, se um motivo qualquer me levar ao continente, o senhor será o primeiro a quem visitarei — disse Luciano.
  Está combinado.
Separamo-nos após o último aperto de mão. Virei-me mais uma vez para trás enquanto descia a rua e acenei; Luciano me respondeu. Depois, uma esquina me fez perdê-lo de vista.
Estava tudo em sossego na aldeia, embora se pudesse notar ainda essa espécie de agitação que subsiste aos grandes acontecimentos. Eu observava cada porta à medida que passava, esperando sempre ver surgir o meu afilhado Orlandi. Afinal eu fora seu padrinho na reconciliação: podia esperar um agradecimento.
Entretanto, ultrapassei a última casa de Sullacaro e penetrei no campo sem que vivalma aparecesse.
Já me acreditava inteiramente esquecido — e perdoava a Orlandi essa falta devido às fortes emoções por que ele passara — quando de repente, ao chegar à mata de Biechisano, vi surgir do cerrado um homem que se plantou no meio do caminho.
Lá estava Orlandi, que minha impaciência francesa acusara de ingratidão.
Usava as mesmas roupas com que aparecera nas ruínas de Vicentello d'Istria; trazia ainda sua cartucheira, na qual estava pendurada uma grande pistola, e carregava na mão uma espingarda.
Quando me aproximei a uma distância de vinte passos, ele tirou o chapéu.
  Senhor... — começou ele. — Não quis que partisse de Sullacaro sem lhe agradecer a honra que concedeu a um pobre camponês como eu, servindo-me de padrinho. Como lá na aldeia não tinha o coração à vontade nem a língua livre, preferi esperá-lo aqui.
— Fico-lhe muito agradecido, Orlandi, por se incomodar comigo. Mas a honra foi minha.
— Além disso — prosseguiu o bandido em sua explicação —, não é fácil perder um hábito de tantos anos. O ar da montanha é incrível. Quando a gente já o respirou uma vez, sente-se sufocar em qualquer outro lugar. Ainda ontem, durante o casamento, eu esperava a cada instante que o teto da igreja fosse cair em minha cabeça.
  Mas agora o senhor vai retomar sua vida habitual. Disseram-me que possui um campo e um vinhedo.
  Sim, realmente — concordou Orlandi. — A casa está bem guardada por minhas irmãs, noras e sobrinhas; para lavrar as terras e vindimar as uvas tenho alguns luquenses a meu serviço. Nós, os corsos, não trabalhamos.
   Que fazem, então?
  Vigiamos os trabalhadores, passeamos de espingarda no ombro, vamos à caça.                          
— Bem, nesse caso, Orlandi, boa caçada! — disse-lhe, estendendo a mão. — E não se esqueça: minha honra está tão empenhada quanto a sua no compromisso de paz. De agora em diante você só atirará nos cabritos monteses, gamos, javalis, faisões e perdizes. Orlandis e Colonas estão unidos agora até pelos laços do casamento.
— Ah, senhor. . . — disse meu afilhado com expressão nostálgica — a galinha que Colona me devolveu era magra demais!
E sem acrescentar outra palavra, embrenhou-se no mato e desapareceu.
Continuei meu caminho, pensando nesse provável motivo para nova ruptura entre Orlandis e Colonas, brigões para quem nem uma aliança de família era garantia de sossego.
Uma semana depois estava em Paris.


CAPÍTULO 15


LUÍS DE FRANCHI

No mesmo dia de minha chegada apresentei-me em casa de Luís de Franchi, que havia saído.
Deixei meu cartão, acompanhado de algumas frases: anunciava-lhe que vinha diretamente de Sullacaro e que precisava entregar-lhe uma carta de seu irmão. Pedia-lhe também que indicasse uma hora para receber-me, uma vez que eu assumira o compromisso de dar-lhe a carta pessoalmente.
Para que eu escrevesse esse bilhete, o criado de Luís levou-me à biblioteca de seu patrão; atravessamos a sala de jantar e a sala de visitas, onde pude constatar o mesmo gosto que já observara na distante aldeia da Córsega.
Luís possuía um encantador apartamento de rapaz, decorado dentro do rigor da moda parisiense.
Quadros do maior bom gosto forravam as paredes. Na biblioteca, os livros de direito competiam com os de poesia ou romance. Viam-se aqui, ainda mais acentuadas, as mesmas diferenças que eu notara nos quartos de Luís e de seu irmão.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, estava eu me vestindo quando meu criado anunciou-me a visita de Luís de Franchi.
  Leve-o à sala de visitas, Vítor. Diga-lhe que dê uma espiada nos jornais enquanto acabo de me vestir.
Cinco minutos depois entrei na sala.
Quando ouviu o barulho de meus passos, Luís, que talvez por amabilidade pusera-se a ler um de meus folhetins publicados nessa época pela Imprensa, ergueu a cabeça.
Fiquei petrificado com a semelhança entre os dois irmãos.
  Senhor — começou ele —, mal acreditei na minha boa sorte ao ler o bilhete que deixou em minha casa. Sou um antigo admirador de sua obra e sempre quis conhecê-lo; temendo um engano, obriguei meu criado a repetir inúmeras vezes os seus traços, para ver se coincidiam com os retratos que me acostumei a ver.
  É muita bondade sua — disse eu, sorrindo. — E coincidem?
  Felizmente sim — respondeu ele, também sorrindo. — Bem, esta manhã, a dupla impaciência de conhecê-lo e de saber notícias de minha família obrigou-me a vir importuná-lo a esta hora da manhã.
  Não me importuna absolutamente. É um grande prazer recebê-lo em minha casa. Mas confesso que me sinto estarrecido com a semelhança entre o senhor e seu irmão. Já não sei se estou falando com um ou com o outro.
  A semelhança é tremenda, não é? — concordou Luís com os olhos brilhantes. — Quando eu estava em Sullacaro, praticamente todos na aldeia se enganavam. Entretanto, se após a minha partida ele não desistiu dos hábitos corsos, deve tê-lo visto com roupas que põem entre nós alguma diferença.
   No dia anterior à minha partida, contudo, Luciano estava exatamente como o senhor agora, com exceção das calças brancas que usava. Portanto, na minha confusa cabeça, não disponho nem sequer desta diferença para distingui-los.
"Mas aqui está sua carta — continuei, puxando a carteira e dali tirando o envelope branco. — Compreendo perfeitamente sua pressa em saber notícias da família e teria deixado o envelope ontem em sua casa se a Sra. de Franchi não me fizesse prometer que a entregaria pessoalmente."
  Quando os deixou estavam passando bem? — perguntou Luís.
  Sim, embora um tanto preocupados com o senhor.
  Por favor, chame-me de você — disse Luís, cruzando as pernas envoltas em caro tecido cinzento. — Afinal, sou seu leitor há tanto tempo que é como seja o conhecesse.
  Eu o farei se fizer o mesmo — respondi. — Está combinado?
  Sim — disse Luís, satisfeito. — Mas você dizia que estavam preocupados. Seria por minha causa?
  Sim. Mas, por favor, leia a carta.
  Dá-me licença?
  Claro. Fique à vontade.
Enquanto Luís de Franchi abria a carta e punha-se a ler, acendi um cigarro.
Fiquei a observá-lo, vendo seu olhar percorrer rapidamente as linhas que Luciano escrevera. De vez em quando sorria e murmurava:
  Sim. . . sim. . . compreendo. . .
Ainda não me refizera do espanto que a semelhança entre os dois irmãos me causara; notava, entretanto, como me dissera Luciano, uma pele mais clara em Luís e sua pronúncia mais nítida da língua francesa.
Vendo-o acabar de ler, ofereci-lhe um cigarro, que ele acendeu no meu.
  Então? — disse eu. — Como vê, sua família está inquieta, mas fico feliz de constatar que não há o menor motivo para isso.
  Não — concordou Luís, com uma leve hesitação —, absolutamente nenhum. Estou muito bem de saúde. É verdade que há pouco tempo tive um grande desgosto, aumentado ainda pela preocupação de que estaria fazendo sofrer também o meu irmão.
  Luciano já me havia falado sobre isso. Quer dizer então que existe realmente essa estranha troca de percepções entre vocês? Acredita mesmo que o mal-estar sentido por seu irmão na Córsega era proveniente do desgosto que você experimentava aqui em Paris?
  Não tenho dúvida — disse Luís.
  Bem, nesse caso — acrescentei —, permita-me perguntar, já que seu bem-estar me preocupa, se o desgosto de que me falou há pouco já passou, se já está mais tranqüilo.
  Você sabe... — começou Luís — a dor mais viva termina por se abrandar com o tempo, e se nenhum acidente piorar a situação, ela sangrará ainda um pouco, mas acabará cicatrizando. De qualquer modo, obrigado por seus cuidados e pela carta. Será que poderíamos nos ver de vez em quando? Há muita coisa que precisa me contar sobre Sullacaro.
  Com o maior prazer, Luís. — Mas por que não continuamos agora mesmo uma conversa tão agradável? Olhe, aí vem meu criado anunciar-me que o almoço está na mesa. Coma uma costeleta comigo e eu lhe contarei as minhas desditas sobre os telhados de sua terra, onde por um triz não fui enterrado. . .
Luís deu uma gargalhada.
   Ah! Gostaria tanto! Infelizmente agora é impossível, pois recebi uma carta do ministro da Justiça pedindo-me que passasse hoje ao meio-dia pelo Ministério. Como facilmente compreenderá, um advogadozinho ambicioso como eu não pode fazer esperar uma personagem tão importante.
  Com certeza é devido à briga entre Colonas e Orlandis que o ministro o manda chamar.
  Penso que sim; e como Luciano diz na carta que a vendetta terminou. . .
   Aqui está em sua frente uma testemunha disso: o compromisso de paz foi feito em presença do notário e eu mesmo assinei, como padrinho de Orlandi.
Luís olhou-me com expressão risonha. Via-se que se divertia com a idéia.
  Para um parisiense — comentou — deve ter sido uma experiência engraçada.
  Foi engraçada e também apavorante — disse eu. — Antes de assinarem a paz houve um mal-entendido que fez as balas choverem à nossa volta.
  Luciano me fala disso.
  Ele próprio foi ferido no ombro, embora sem gravidade.
  Isso não me contou, embora eu soubesse: um dia desses sofri um violento impacto no ombro e imaginei logo algo como um ferimento ou uma queda. Contudo, vi pelo local que não era nada de grave. Escrevi a Luciano, mas as cartas levam uma eternidade para chegar a Sullacaro.
Puxou o relógio do bolso e sobressaltou-se.
  Deus do céu! É quase meio-dia. Tenho que voar para anunciar a boa nova ao ministro.
  Graças a Luciano, que insistiu com os dois cabeçudos.
— Querido irmão! Eu bem sabia que, mesmo contrariando seus sentimentos, ele faria isso por mim.
  Garanto-lhe que não foi fácil.
— Falaremos disso em outra ocasião. Infelizmente, agora tenho que ir. Você compreende, é uma grande felicidade para mim rever minha família, Sullacaro, seus hábitos e manias, ainda que através de seus olhos! Se quiser marcar-me um outro encontro. . .
  No momento vai ser difícil, Luís. Nestes primeiros dias após o regresso terei de vagabundear um pouco, resolver mil coisas. Mas diga-me: onde poderei encontrá-lo?
  Espere. Amanhã é sábado de Aleluia, não é?
  Sim.
Luís parou, pensando em algo.
  Você vai ao baile da Ópera? — perguntou ele.
  Vou e não vou. Se você quiser encontrar-se comigo lá, irei. Caso contrário, não terei o menor interesse em ir.
 Eu preciso ir, sou obrigado a ir.
  É como você disse — comentei eu sorrindo —, o tempo adormece as dores mais vivas e cicatriza os ferimentos do coração. O baile provavelmente o ajudará nisso.
  Engana-se. É mais do que certo que encontrarei lá novas fontes de aborrecimento.
  Nesse caso, não vá.
  Ah, meu Deus! Por acaso faz-se o que se quer neste mundo? Sou arrastado, impelido para o baile, sem o querer. Sei perfeitamente que seria mais sábio não ir, e no entanto vou.
  Desse modo, nós nos encontraremos amanhã na Ópera.
  Então vai? Ótimo!
  A que horas?
  À meia-noite e meia, se está bem para você.
   Onde?
  Na sala de espera. À uma hora tenho um encontro em frente ao relógio.
  Está combinado.
Apertamos as mãos e ele saiu rapidamente.
Gastei essa tarde e todo o dia seguinte tomando providências e pondo ordem em meus assuntos. Afinal, eu passara dezoito meses viajando, e estava tudo de pernas para o ar.
À meia-noite e meia dirigi-me para a sala de espera da Ópera.
Cinco minutos se passaram sem que Luís aparecesse. Consultei minha memória: seria aquele mesmo o lugar marcado?
Uma voz atrás de mim me tranqüilizou.
  Desculpe-me — disse Luís sorrindo. — Atrasei-me por ter seguido pelos corredores do teatro um mascarado que pensei conhecer, mas ele se perdeu na multidão e não houve meio de encontrá-lo.
  Como vai, meu caro? — cumprimentei eu. — Vamos entrar. Conheço um lugar tranqüilo aí dentro onde poderemos conversar com calma, enquanto espera o seu encontro.
  Se não se importa — disse Luís, nervoso — prefiro ficar aqui. Venha, sentemo-nos nessas poltronas.
Tentei então falar sobre a Córsega, mas Luís mostrava-se tão distraído que não consegui fazê-lo conversar muito. Erguia constantemente os olhos para o relógio da entrada e de repente largou-me, exclamando:
  Lá está o meu ramo de violetas!
Meteu-se entre a multidão para chegar até uma mulher que, realmente, segurava na mão um enorme ramo de violetas.
Felizmente para os presentes havia na sala ramos de todas as espécies: eu próprio fui logo abordado por um ramo de camélias, que muito amavelmente me saudou pelo meu regresso a Paris.
Depois das camélias surgiu um ramo de delicadas rosas, e após este um outro de heliotrópios.
Já ia eu no quinto ramo quando encontrei um amigo meu.
  Ah, vejam só quem está aí! — exclamou ele, contente. — Seja benvindo à nossa velha cidade! Aliás, você chegou mesmo na hora certa: vamos cear esta noite em minha casa com fulano, beltrano e sicrano (nomeou três ou quatro de nossos amigos comuns), e contamos com você.
  Muito obrigado, meu amigo — respondi. — Mas, apesar do grande desejo de aceitar o seu convite, estou impedido de fazê-lo: tenho companhia.
  É esse o problema? Ora essa! Pois traga a sua companhia. Cada qual terá direito de levar a pessoa que quiser: haverá sobre a mesa seis vasos de água destinados a manter frescos os ramos de flores que chegarem.
  Não, não, está enganado — respondi. — Não tenho ramo nenhum para colocar no vaso. Estou com um amigo.
  Pois traga o seu amigo! — insistiu D. — Não ignora o provérbio que diz: "Os amigos de nossos amigos..."
  É alguém que você não conhece.
  Tanto melhor! Passarei a conhecê-lo.
   Muito bem. Vou transmitir a ele o seu convite.
  E se ele recusar — disse D., fazendo o gesto de quem estrangula uma pessoa—, leve-o à força!
  Prometo fazer o que puder. A que horas é a ceia?
  Às três. Mas como ficaremos à mesa até as seis, pode chegar um pouco atrasado.
  Certo.
Nesse momento fomos interrompidos por um ramo de miosótis. Tomando familiarmente o braço de D., afastou-se com ele, depois que meu amigo acenou em despedida.
Procurei Luís por entre a multidão que passava e finalmente o encontrei. Estava sozinho. Provavelmente já conversara o suficiente com seu ramo de violetas.
Felizmente o dominó que me acompanhava nesse momento e que me parecia pessoa sem grande interesse foi atraído por um grupo alegre e brincalhão.
Aproximei-me de Luís, que exibia um rosto bastante tenso.
  Então, meu amigo — perguntei-lhe. — Não foram boas as notícias?
— Infelizmente, não — respondeu. — Nos bailes de máscaras sempre nos dizem coisas que preferiríamos ignorar.
  Luís. . . Sei que está sofrendo — disse eu. — Desculpe-me a intrusão, mas é que, tendo conhecido Luciano, parece-me que o conheço tão bem quanto a ele. Sente-se infeliz, não é? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
   Oh! meu Deus! Não se preocupe — disse Luís com uma leve irritação. — Não é nada de importante.
Vendo que desejava guardar segredo sobre a causa de sua angústia, achei melhor calar-me.
Demos duas ou três voltas em silêncio. Eu, bastante indiferente ante o espetáculo daquelas pessoas mascaradas; ele agitado, olhando em todas as direções, observando atentamente cada dominó que passava ao alcance de sua vista.
O nervoso de Luís era tão grande que não me contive:
  Escute — disse —, sabe o que devia fazer?
Ele teve um sobressalto.
  Eu?. . . Não!. . . Perdão, o que estava dizendo?
  Que tal se fôssemos cear à casa de um amigo meu? Poderia ser divertido e me parece que você está precisando de uma boa distração.
   Não, não.
  Por que não, Luís?
  Porque eu seria hoje uma péssima companhia.
  Ora, que bobagem! Venha comigo! Coragem!
   Não, meu amigo. Além disso, eu não fui convidado.
  Engano   seu.   Foi   convidado   e   com   muita   insistência. Recomendaram-me até mesmo que eu o levasse à força.
  Seu amigo foi muito amável, mas, palavra de honra, Alexandre, hoje não me sinto. . .
Nesse instante cruzamo-nos com D., que parecia achar muito divertido o seu ramo de miosótis.
Vendo-me, D. gritou:
  Então está combinado, hem? Às três horas.
  Não está nada combinado — repliquei eu. — Infelizmente não posso ir.
  Então vá para o diabo!
Dizendo isso prosseguiu seu caminho.
  Quem é ele? — perguntou Luís.
  É D. — respondi —, um amigo meu. Rapaz muito inteligente, além de ser administrador de um dos nossos mais importantes jornais...
   O Sr. D.! — exclamou Luís. — Então conhece-o bem?
  Sim. Há dois ou três anos mantenho relações profissionais e sobretudo de amizade com ele.
  E é na casa dele que você irá cear esta noite?
  Sim.
  Foi para esta ceia que me convidou?
  Exatamente.
  Nesse caso — disse Luís —, a coisa muda de figura. Aceito com grande prazer o seu convite.
   Até que enfim!
   Na verdade — acrescentou Luís, com tristeza — eu não deveria aparecer lá, se fosse um pouco mais prudente. Mas como já lhe disse ontem, nós nunca vamos aonde deveríamos, e sim para onde o destino nos impele. Por exemplo, eu não deveria ter vindo aqui hoje em hipótese alguma.
Nesse momento, D. passou novamente por nós. Segurei-o pela manga:
  Meu amigo — disse eu —, mudei de opinião. Ainda aceita a meu companheiro e a mim como convidados em sua ceia?
  Claro que sim! Irá então?
  Sem dúvida.
  Ótimo. Mas devo avisá-lo de uma coisa: quem cear conosco esta noite terá que cear com as mesmas pessoas depois de amanhã.
  Porquê?
  Devido a uma aposta feita com Château-Renaud.
Notei que Luís estremecera nitidamente ao ouvir aquele nome. Estava ainda mais pálido do que antes, embora seu rosto permanecesse impassível.
  E qual é a aposta? — perguntei.
   Ah! É muito complicada para explicar. Além disso, há uma pessoa que poderia fazer Château-Renaud perder a aposta, se soubesse do que se trata.
  Muito bem. Então, às três horas — disse eu, despedindo-me.
  Às três horas.
D. seguiu seu caminho. Ao passar diante do relógio, ergui os olhos: eram duas horas e trinta e cinco minutos. Luís fixou os olhos em mim.
  Conhece esse Château-Renaud? — perguntou-me com olhos brilhantes, embora tentando disfarçar a emoção.
  Apenas de vista — respondi. — Tenho-o encontrado uma ou outra vez em certas reuniões.
  Não é seu amigo?
  Não. Nem ao menos um simples conhecido.
  Ah! Tanto melhor!                                             
Notei a animosidade de Luís em relação a Château-Renaud, mas nada disse a respeito.
  O senhor o conhece, por acaso? — perguntei.
  Indiretamente.
Apesar da resposta evasiva, pude perceber que entre Château-Renaud e meu amigo Luís havia um desses laços causados por uma mulher. E compreendi também, de repente, que talvez fosse muito melhor para Luís não ir à ceia de D.
  Ouça, meu amigo — murmurei eu. — Quer aceitar uma sugestão de minha parte?
  Pode dizer — respondeu Luís, curioso.
  Não vamos à casa de D.
  Por  que  motivo?   Você  não  lhe  disse  que levaria um convidado?
  Sim, claro. Não é por isso.
  Então, por que é?
Hesitei.
  Por que penso que não será divertido.
  Mas como? Há pouco você fez tudo para me convencer a ir, dizendo que o grupo que lá estará é alegre e brincalhão. . . Não, Alexandre, deve haver um motivo para fazê-lo mudar de opinião tão repentinamente.
  Não pensei que fossemos encontrar Château-Renaud em casa de meu amigo.
  E o que tem isso de errado? — perguntou Luís, exagerando uma naturalidade que não sentia. — Dizem que é uma pessoa muito amável e ficarei encantado em conhecê-lo melhor.
Ele notou o meu silêncio e também se calou. Depois de um longo momento, resolvi desistir:
  Está bem, Luís. Vamos então, já que assim o deseja.
Apanhamos nossos sobretudos e saímos para a rua.
Como D. morasse a dois passos da Ópera e a noite estava bonita, sugeri que fôssemos a pé. Luís aceitou. Talvez o ar fresco e uma boa caminhada acalmassem os nervos do jovem corso, pensei comigo mesmo.


CAPÍTULO 16


A DESCONHECIDA


Ao entrar na sala de D., encontrei vários amigos meus, freqüentadores habituais da Ópera. Havia também dois ou três dominós sem máscaras, com os respectivos ramos de flores nas mãos, à espera do momento de os colocarem nos vasos.
Apresentei Luís de Franchi a todos os presentes, que o acolheram com toda a amabilidade.
A conversa transcorria animada, quando D. entrou na sala, acompanhado pelo ramo de miosótis; este tirou a máscara com uma desenvoltura e graça que revelavam uma mulher bonita.
Realmente, uma magnífica morena exibiu-se aos nossos olhos. Olhei para Luís, mas seu rosto continuava distraído e tenso. Apresentei-o ao dono da casa, que depois disse:
  Bem, agora que todos já se conhecem, só nos resta ir para a mesa.
Ouviu-se um murmúrio de aprovação.
  Diabo! Não é que ia me esquecendo de Château-Renaud! — disse D.
  Falta só ele? — perguntou um dos convidados.
— Sim — respondeu D.
  A aposta continua de pé? — perguntou seu interlocutor.
  É claro.
  Se ele perder pagará o quê?
  Uma ceia para doze pessoas, as mesmas que aqui estão, se não conseguir trazer para cá uma certa senhora.
  E quem é essa senhora tão esquiva que provoca semelhante aposta? — perguntou o ramo de miosótis.
Olhei para Luís; estava aparentemente calmo, mas pálido como um morto.
   Que diabo — respondeu D. — Penso que não há grande indiscrição em dizer o nome de tal pessoa, tanto mais que provavelmente ninguém aqui a conhece. É a senhora. . .
Luís pousou a mão no braço de D.
  Senhor — murmurou ele —, em nome do nosso conhecimento recente, conceda-me um favor. . .
  Pois não, meu amigo — respondeu D. virando-se para Luís.
   Não diga o nome da pessoa que deve vir com Château-Re­naud. Sabe, sem dúvida, que se trata de uma mulher casada.
  Sim, mas cujo marido está em Esmirna, nas índias ou no México, não sei. E quando um marido está tão longe assim, é quase como se não existisse.
As pessoas riram discretamente, mas Luís não se deixou abalar.
   O marido regressará dentro de alguns dias; conheço-o, é um excelente rapaz e eu gostaria, se fosse possível, de lhe poupar o desgosto   de   saber,   logo   à   chegada,  que   sua   esposa  cometeu  tal imprudência.
   Ah! meu caro senhor, desculpe-me — retorquiu D. — Ignorava que conhecesse essa senhora; até duvidava que fosse casada, mas uma vez que o senhor a conhece e conhece também seu marido. . .
  Conheço-o perfeitamente.
  Sejamos discretos, então. Senhores e senhoras, venha ou não Château-Renaud, chegue sozinho ou acompanhado, perca ou ganhe sua aposta, peço-lhes  o mais completo segredo  a respeito deste episódio.
O segredo foi unanimemente prometido. Não porque as pessoas que lá estavam fossem especialmente discretas, mas sim porque sentiam fome e desejavam ir para a mesa o mais cedo possível.
  Obrigado, senhor — disse Luís a D., estendendo-lhe a mão. — Sua atitude foi extremamente elegante.
Passamos à sala de jantar e cada qual sentou-se no lugar que lhe foi designado. Notei que havia dois lugares vazios, imaginando que fossem os de Château-Renaud e de sua acompanhante.
O criado quis retirar os talheres dos lugares vagos.
   Não — disse o dono da casa —, deixe ficar. Château-Renaud tem prazo até as quatro horas. Se depois desta hora não chegarem, retire-os; então ele terá perdido a aposta.
Eu não tirava os olhos de Luís. Vi-o consultar o relógio da sala, que marcava três horas e quarenta minutos.
  Estará certo? — perguntou Luís friamente.
  Bem, isso não me interessa — disse D. sorrindo. — Interessa apenas a Château-Renaud; de qualquer modo, mandei acertar esse relógio pelo seu, para que não se queixe de qualquer diferença.
  Então, senhores — interveio o ramo de miosótis —, se não se pode falar de Château-Renaud ou da desconhecida que trará, nada de alusões indiretas; do contrário cairemos nos símbolos, nas alegorias e nos enigmas, o que seria mortalmente aborrecido.
  Tem razão — concordou V. — Há muitas mulheres de que se pode falar e que não desejam outra coisa senão que se fale delas.
  Então, à saúde dessas! — propôs D.
Os copos foram enchidos com champanha gelado. Cada conviva tinha uma garrafa perto de si.
Notei que Luís praticamente não bebia.
  Por que não bebe? — perguntei. — É claro que ele não virá.
  Faltam ainda quinze minutos para as quatro — disse ele. — Às quatro horas prometo-lhe alcançar o que tiver bebido mais, apesar do meu atraso.
  Está bem.
Enquanto trocávamos essas palavras em voz baixa, a conversa em torno da mesa tornava-se geral e ruidosa. Os risos espocavam daqui e dali, acompanhando as frases mais engraçadas.
De vez em quando, D. e Luís atiravam olhares ao relógio, que continuava sua marcha indiferente à impaciência dos dois homens.
Eu torcia silenciosamente para que as quatro horas chegassem logo, a fim de que a tensão de Luís desaparecesse.
Quando faltavam apenas cinco para as quatro, olhei para meu amigo.
  A sua saúde! — disse-lhe.
Ele sorriu, ergueu a taça diante de si e levou-a aos lábios.
Não bebera nem ao menos a metade dela quando se ouviu um toque de campainha.
Nunca pensei que Luís pudesse tornar-se mais pálido do que já era, mas me enganava.
  Château-Renaud chegou — disse ele.
  Sim, mas talvez venha só — animei-o.
  É o que veremos — murmurou Luís numa voz quebrada.
O toque da campainha chamara a atenção de todos os presentes e a conversação cessou. Um silêncio profundo desceu sobre a mesa que, curiosa, mantinha-se em expectativa.
Ouviu-se uma espécie de discussão no vestíbulo.
D. ergueu-se imediatamente e foi abrir a porta.
  Reconheci a voz dela — murmurou Luís agarrando com força o meu braço.
  Vamos, coragem, meu amigo — falei em voz baixa. — Se esta pessoa vem cear à casa de alguém que não conhece, com pessoas que lhe são igualmente desconhecidas, e acompanhada de Château-Renaud, cuja fama de conquistador é notória em toda a cidade, não se trata de uma pessoa muito séria. E já que é assim, seria melhor que você a esquecesse.
Luís fixava um ponto qualquer da mesa, terrivelmente abalado.
  Entre, por favor, minha senhora — ouviu-se D. dizer no vestíbulo.
   Estamos entre amigos.
  Vamos entrar, querida Emília — disse Château-Renaud —; pode conservar a máscara, se quiser.
  Miserável! — murmurou Luís a meu lado.
Nesse momento, entrou na sala onde estávamos sentados uma mulher, mais arrastada do que conduzida por D., acompanhada por Château-Renaud.
  Três minutos para as quatro horas — observou em voz baixa Château-Renaud para D.
Este último alisou o bigode.
  Perfeitamente, meu caro. Ganhou a aposta.                          
A mulher levantou a cabeça com altivez.
  Ainda não, senhor — falou ela com voz trêmula, dirigindo-se a Château-Renaud. — Agora compreendo a sua insistência... O senhor tinha apostado que me traria aqui, não é?
Château-Renaud ficou em silêncio.
Ela então se dirigiu a D. com a voz mais firme:
  Já que ele não responde, responda o senhor: não é verdade que o Sr. de Château-Renaud havia apostado trazer-me para cear nesta casa?
D. mostrou-se embaraçado.
  Não posso negar-lhe, minha senhora, que ele nos acenara com essa esperança.
  Nesse caso o Sr. de Château-Renaud perdeu a aposta, pois eu ignorava para onde vinha. Acreditava ir cear em casa de uma das minhas amigas. Como não vim aqui voluntariamente, parece-me que ele deve perder a aposta.
  Mas agora que já está aqui, querida Emília — disse suavemente Château-Renaud —, vai ficar, não é verdade? Como vê, formamos um grupo alegre e divertido.
  Agora que estou aqui — revidou a desconhecida — agradeço ao dono da casa a gentil acolhida que me deu, mas, como infelizmente não posso aceitar o seu amável convite, pedirei ao Sr. Luís de Franchi que me ofereça o seu braço e me acompanhe até minha casa.
Luís de Franchi levantou-se num segundo, colocando-se entre Château-Renaud e a desconhecida.
  Devo observar-lhe, minha senhora — disse o último com os maxilares cerrados pela cólera —, que fui eu quem a trouxe. Portanto, compete a mim levá-la embora.
  Cavalheiros — disse a desconhecida —, estou vendo aqui cinco homens, confio-me à proteção de todos; espero que impeçam o Sr. de Château-Renaud de usar qualquer violência comigo.
Château-Renaud fez um movimento e todos nós nos erguemos.
  Perfeitamente, senhora — disse ele. — Deixo-a livre. Sei com quem terei de entender-me.
  Se é comigo, senhor — disse Luís, com uma altivez e frieza impossível de serem descritas —, poderá encontrar-me durante todo o dia na rua do Helder, número 7.
  Muito bem, cavalheiro; talvez eu não tenha a honra de me apresentar pessoalmente em sua casa, mas espero que em meu lugar possa receber dois amigos meus.
  Poderia ter evitado, senhor, anunciar-me semelhante visita diante de uma mulher — censurou-o Luís numa voz gelada. — Venha, minha senhora — acrescentou ele, tomando o braço da desconhecida - e creia que lhe agradeço profundamente a honra que me dá.
Ambos saíram em meio ao silêncio da sala.
Château-Renaud deu uma risada sem vontade.
— Que se há de fazer, senhores? — disse ele, depois que a porta da rua foi fechada. — Perdi a aposta e o jeito é pagá-la. Depois de amanhã à noite, todos os que estão aqui são convidados a comparecer aos Irmãos Provençais, às 22 horas.
Sentou-se num dos lugares vazios e estendeu sua taça a D., que a encheu da champanha.
Contudo, apesar das brincadeiras de Château-Renaud e da excelência da comida, o resto da ceia, como não podia deixar de ser, foi bastante aborrecido.


CAPÍTULO 17


CAUSAS DO DUELO


Depois de dormir durante três horas, acordei preocupado com os acontecimentos da madrugada anterior. Aquela troca de palavras resultaria mesmo num duelo? Assim pensando, estava eu às dez horas da manhã ante a porta de Luís de Franchi.
Quando subia a escada cruzei com dois homens que desciam: ambos elegantes, sendo que um certamente pertencia à sociedade. O outro, condecorado com a Legião de Honra, apesar de vestido à paisana, parecia um militar.
Desconfiei que os dois estivessem saindo da casa de Luís. Torci com todas as minhas forças para que não fossem padrinhos mandados por Château-Renaud.
Acompanhei-os com os olhos até o fim da escada; então continuei a subir e toquei a campainha.
O criado abriu-me a porta, conduzindo-me ao gabinete.
Quando entrei, Luís, que estava escrevendo, levantou a cabeça:
   Ora veja! Este bilhete era para você — disse ele, amassando o papel e atirando-o ao fogo. — Ia mandá-lo agora à sua casa. José — acrescentou, virando-se para o criado —, não estou para ninguém.
O criado saiu.
  Ouça, não encontrou ninguém quando vinha subindo? — perguntou Luís, puxando uma poltrona para perto de sua mesa.
Sentei-me com um suspiro.
  Um deles condecorado?
  Imaginei que estivessem saindo de sua casa.
  E estavam.
  Foi Château-Renaud quem os mandou?
  São padrinhos dele — disse Luís, oferecendo-me um cigarro.
   Que diabo! Quer dizer que ele levou a coisa a sério!
  Nem podia ser de outro modo — comentou Luís, tirando uma baforada do cigarro.
  E o que disseram? — perguntei eu, vendo que meus temores se concretizavam.
  Pediram-me que  lhes  mandasse dois amigos  meus para conversarem sobre os detalhes do duelo. Lembrei-me imediatamente de você.
  Sinto-me muito honrado, Luís, mas não posso apresentar-me sozinho em casa deles.
  Você estará acompanhado por outro amigo meu, o barão Giordano Martelli. Ele virá almoçar conosco daqui a pouco e depois vocês terão o trabalho de ir à casa dos padrinhos de Château-Renaud, que prometeram esperá-los até as três horas. Eis aqui seus nomes e endereço.
Peguei os dois cartões que Luís me estendia.
Num deles estava escrito: Visconde Renê de Châteaugrand, e no outro, Adriano de Boissy.
O primeiro morava na rua de La Paix, número 12; o segundo como eu desconfiara, era do Exército, ocupando o posto de tenente dos Caçadores, na África. Adriano de Boissy habitava o número 29 da rua de Lille.
Balancei pensativamente os dois cartões no ar.
  Então — perguntou Luís —, que é que o está preocupando?
Olhei-o nos olhos por um momento.
  Diga-me, Luís — falei finalmente —, e com toda a franqueza: considera esse duelo um assunto realmente sério, isto é, que terá de ser levado adiante? Parece-me que o motivo da contenda é excessivamente banal para tomar tal proporção.
  Banal ou não, o assunto é seriíssimo! — respondeu Luís gravemente. — Além disso, como você mesmo ouviu, fui eu quem me pus à disposição de Château-Renaud; já que mandou seus padrinhos, a única atitude que posso tomar é a de aceitar seu desafio.
  Sim,Luís,mas. . . — hesitei.
   Diga tudo — falou ele, sorrindo.
  Mas enfim. . . precisamos saber por que se batem. Afinal de contas dois homens não partem para se retalhar à espada sem que ao menos fique bem claro o motivo do duelo. Você sabe muito bem, Luís, que a responsabilidade de um padrinho é maior que a do duelista.
O rapaz pensou durante um momento.
— Vou dizer-lhe em poucas palavras a causa desse confronto. Quando cheguei a Paris um amigo meu, oficial da Marinha, apresentou-me a sua esposa. Era uma mulher jovem e extraordinariamente bonita. Pois bem, ela impressionou-me tanto, que eu, temendo apaixonar-me, resolvi recusar a maioria dos convites que me eram feitos com freqüência para almoçar ou jantar em casa deles.
"Meu amigo queixou-se de minha ausência — continuou Luís — e então resolvi dizer-lhe francamente a verdade: sua esposa era excessivamente fascinante para que eu me expusesse a visitá-la com muita freqüência. Ele, entretanto, sorriu, estendeu-me a mão e exigiu que eu fosse jantar em sua casa nesse mesmo dia.
"À sobremesa — prosseguiu Luís —, ele voltou-se para mim e disse: — Daqui a três semanas partirei para o México, ficando fora por três meses, seis meses ou até mais tempo. Nossa profissão, meu amigo, exige que a gente saiba a hora da partida, mas nunca a da chegada. Assim, recomendo-lhe Emília. Vele por ela durante a minha ausência. Emília, minha querida, peço-te que trates Luís de Franchi como se fosse teu irmão.
"Sua mulher sorriu e estendeu-me a mão como resposta. Eu me senti de tal modo embaraçado que não consegui pronunciar uma palavra, o que deve ter parecido bem tolo à minha nova "irmã". Três semanas depois meu amigo partiu, exigindo, antes de viajar, que eu jantasse em sua casa pelo menos uma vez por semana. Emília ficou com a mãe e a confiança depositada em mim por seu marido fez com que eu controlasse disciplinadamente qualquer rompante de paixão em relação a ela. Embora continuando a amá-la, nunca lhe dei a conhecer meus sentimentos.
"Passaram-se seis meses desde que meu amigo partira. Como ele quisera que a mulher continuasse a receber para pequenas reuniões, como era do hábito de ambos, Emília assim o fez. Tenho a impressão de que a coisa que meu amigo mais temia era a fama de homem ciumento. Na verdade, adorava Emília e nela depositava total confiança. A presença da mãe nas reuniões dadas pela filha desencorajava as más línguas. Há mais ou menos três meses, entretanto, Château-Renaud conseguiu ser apresentado a Emília, acabando por ser convidado a uma das reuniões em casa dela. O senhor acredita em pressentimentos?" — perguntou-me Luís.
  Claro que sim — respondi. — Já me alegraram e assustaram muitas vezes na vida, e quase todos se realizaram.
  Pois bem — prosseguiu ele. — Assim que vi Château-Renaud estremeci, assaltado por uma antipatia que aparentemente não tinha razão de ser. Disse-me boa noite, comportou-se como um homem de sociedade e nada fez que fosse exatamente desagradável. Apesar disso, entretanto, quando saiu eu já o odiava. Por que minha reação fora tão violenta? Não o sabia. Ou melhor, talvez percebesse que Château-Renaud tivera a mesma impressão que eu diante de Emília.
Meu amigo parou, atormentado pela lembrança. Depois de um momento prosseguiu:
   O pior é que Emília pareceu-me também entusiasmada por Château-Renaud. Seus olhos brilhavam com uma intensidade desconhecida, ela parecia achar uma graça enorme em tudo o que lhe era dito por ele. Apesar de observar tudo isso, quis, contudo, pensar que fora um engano de minha parte. Resolvi atribuir minha nova preocupação ao ciúme que sentia.
"Na reunião seguinte em casa de Emília, porém, não perdi de vista Château-Renaud. Ele deve ter notado minha insistência em segui-lo com os olhos, pois conversando em voz baixa com Emília penso que tentou ridicularizar-me. A vontade que tive foi de achar um pretexto qualquer para desafiá-lo a um duelo. E teria feito isso se uma parte sensata de mim mesmo não me alertasse a propósito de tal absurdo.
"A partir daí, entretanto, as sextas-feiras, dia em que Emília recebia, passaram a ser uma tortura para mim — continuou Luís. — É verdade que Château-Renaud é um perfeito homem de sociedade, elegante e bem-parecido. Contudo, penso que Emília o colocava ainda mais alto do que ele merecia, causando-me um sofrimento que só fazia aumentar cada vez que eu os via juntos. À medida que o tempo passava, outras pessoas além de mim começaram a notar o interesse fora do comum que Emília nutria por Château-Renaud. Esse interesse tornou-se tão visível que certo dia Giordano, tão amigo do marido de Emília quanto eu, falou-me sobre o assunto.
"Aquilo me deixou profundamente chocado. Se até Giordano, em geral muito distraído a respeito dessas intrigas, havia reparado no comportamento de Emília, o que não espalhariam por Paris as pessoas maldosas, ávidas de escândalo e sem nenhum afeto pelo marido e a mulher?
"A partir desse momento, resolvi tomar uma decisão: falaria com Emília, pois estava convencido de que sua atitude devia-se a um misto de leviandade e ingenuidade, sem que ela soubesse o quanto poderia ser mal interpretada pelas pessoas que a rodeavam. Pensei: no momento em que chamar-lhe a atenção para isso, Emília modificará imediatamente sua conduta. Meu pensamento incluía até mesmo o espanto e o choque de Emília ao pensar que seu comportamento desse margem a comentários."
Luís acendeu um cigarro.
— Para minha surpresa, porém, Emília riu muito do que eu lhe disse, declarando que eu devia estar louco para ter idéias semelhantes. E que também estavam loucos todos os que comentavam sobre ela. Voltei à carga, tentando convencê-la do perigo da situação, mas Emília revidou-me friamente, dizendo que já era crescida o bastante para tomar conta de si própria. Advertiu-me também de que eu estava levando excessivamente longe minha preocupação com o assunto. Além disso — declarou ela com voz cortante —, a opinião de um homem apaixonado é sempre parcial.
"Essa última frase fez-me silenciar de vez sobre a questão e deixou-me bastante confundido. Nunca poderia imaginar que o marido lhe houvesse contado sobre o amor que eu sentia por ela. A partir desse dia deixei de ir à casa de Emília, pois não podia suportar que ela me encarasse como um apaixonado infeliz e lastimoso, portanto ridículo.
"Entretanto — prosseguiu Luís —, embora não a visse mais, procurava manter-me informado de todos os seus passos. Sentia-me profundamente infeliz, porque então já se comentavam abertamente as relações entre ela e Château-Renaud. Um dia não pude mais controlar a insuportável tensão em que vivia: escrevi-lhe uma carta suplicando que fosse prudente, pois sua honra e a do marido eram espezinhadas em todos os salões da cidade. Nada adiantou. Emília nem sequer respondeu, o que me fez acreditar ter-se ela irritado comigo."
   O que podia eu fazer? — perguntou Luís, fixando seus olhos escuros nos meus. — Você sabe perfeitamente que o amor independe de nossa vontade. Do mesmo modo que ele me instigava a intrometer-me num assunto que só dizia respeito a Emília, afinal de contas, ele a tornava cega quanto à propriedade das minhas advertências. Ela estava apaixonada: assim, só o objeto de seu amor lhe interessava.
"Algum tempo depois, como era de se esperar, ouvi dizer alto e bom som que Emília era amante de Château-Renaud. O que sofri, meu amigo, só Deus sabe. Foi exatamente nessa época que Luciano sentiu a repercussão de meu sofrimento, preocupando-se com o que me estaria ocorrendo aqui em Paris. Daí para cá passaram-se umas duas semanas, tempo que procurei preencher com o maior número de divertimentos possíveis. Tentava de todos os modos esquecer Emília, quando, no próprio dia em que você chegou, recebi uma carta anônima.
"Vinha da parte de uma mulher desconhecida. Marcava-me ela um encontro no baile da Ópera, a fim de comunicar-me certa informação que dizia respeito a uma pessoa minha amiga. Limitava-se a dar o primeiro nome dessa pessoa: Emília. A desconhecida seria identificada por um ramo de violetas que traria na mão.
"Não preciso dizer — suspirou Luís — que a carta me transtornou. Até a noite do baile, pensei sem cessar nessa nova fonte de sofrimentos; não deveria ter ido à Ópera, como lhe disse, mas a fatalidade obrigava a ir. E fui. Encontrei o dominó com o ramo de violetas na mão, na hora e lugar indicados, obtendo a confirmação do que já suspeitava: Emília era de fato amante de Château-Renaud. Como eu pedisse uma prova, o dominó falou-me da aposta entre Château-Renaud e D. a respeito da ida de Emília à ceia daquela noite. O resto — disse ele —já sabe: o acaso quis que você conhecesse D. e acabamos indo cear em sua casa."
Ficamos em silêncio durante um longo momento.
Eu meditava na estranheza de tudo aquilo quando a voz de Luís me interrompeu:
  Agora, Alexandre, só me resta aguardar e aceitar as propostas que me forem feitas por Château-Renaud.
  Pelo que sei, meu amigo, Château-Renaud é um atirador exímio. Também no florete a sua fama é de campeão.
  Ouvi falar disso. Chegou mesmo a ganhar algumas vezes o torneio nacional de Saint-Cloud para pistola.
A situação era mais grave do que eu imaginara.
   Ouça, Luís. Estarei enganado ou terá Luciano me dito que você jamais tocou numa pistola ou florete em toda a sua vida?
  É a pura verdade.
  Nesse caso ficará inteiramente à mercê de seu adversário!
  Não importa — respondeu Luís com voz firme. — A única coisa que desejo é comportar-me com a lisura de um De Franchi. Isso me bastará.


CAPÍTULO 18


"QUE ARMA VOCÊ PREFERE? "


Nesse momento o criado anunciou o barão Giordano Martelli.
  Traga-o aqui — disse Luís.
Segundos depois, um rapaz moreno como Luciano entrou na biblioteca. Luís nos apresentou logo, tendo Giordano me dado um aperto de mão tão vigoroso que estremeci.
O jovem barão era também um corso da província de Sartene. Servia no 11.° Regimento, onde dois ou três atos de bravura o tinham promovido a capitão com a idade de vinte e três anos.
Não preciso dizer que estava à paisana.
  Bem, Luís — disse Giordano —, as coisas finalmente chegaram aonde tinham que chegar. Mais dia menos dia, era inevitável que esse duelo acontecesse. Segundo teu bilhete, terás provavelmente hoje a visita dos padrinhos de Château-Renaud.
  Já estiveram aqui — disse Luís.
  Deixaram nomes e endereço?
  Eis os seus cartões.
— Muito bem. Teu criado me disse que o almoço será logo servido. Almocemos de uma vez e vamos em seguida pagar-lhes a visita.
Passamos à sala de jantar, onde nos vimos diante de uma refeição digna do bom gosto de Luís.
Este ergueu o copo de vinho contra a luz.
  Guardava estas duas garrafas — que são a obra-prima de minha adega — para uma ocasião especial. E que melhor ocasião posso querer do que almoçar com dois amigos a quem estimo e admiro? — disse Luís, sorrindo.
A sombra do duelo desceu subitamente sobre mim; do mesmo modo, a consciência do perigo que o combate significaria para Luís causou-me um profundo mal-estar.
   Ouça, meu amigo...   — comecei, mas fui interrompido imediatamente pelo dono da casa.
  Se é para tentar convencer-me a não me bater, é inútil, Alexandre. Agradeço-lhe do fundo do coração a boa vontade e o cuidado, mas prefiro que falemos de outra coisa.
Ante aquela reação, decidi deixar para mais tarde uma nova investida. O almoço prosseguiu com as narrativas de Giordano sobre as peripécias da vida no Exército, enquanto fazíamos jus aos pratos deliciosos que chegavam à mesa.
Só então Luís interrogou-me a respeito de minha viagem à Córsega, contando-lhe eu todas as aventuras por que passara. O rapaz dava boas gargalhadas com as confusões entre Colonas, Orlandis e um pobre francês que nada tinha a ver com aquilo. Subitamente, pareceu-me que Luís assumia uma expressão melancólica: lembrara-se do duelo, e todos os sentimentos que abrigava sobre sua família e a terra em que nascera tornaram-se muito vivos.
Obrigou-me a repetir vinte vezes o que seu irmão e sua mãe me haviam dito. Seus olhos brilhavam, mas ele conteve a emoção como um verdadeiro corso o faria.
— É fantástico que Luciano tenha se empenhado tanto em terminar a contenda entre Colonas e Orlandis! Apenas sua grande afeição por mim o levaria a tal coisa. Luciano, como vocês sabem, é mais corso que a província de Sartene, e aprova totalmente a vendetta.
O relógio da sala de jantar deu doze badaladas.
Giordano e eu olhamos automaticamente para ele.
  Bem, meus amigos — disse Luís —, não quero apressá-los, mas talvez já seja hora de visitarem os padrinhos de Château-Renaud. Temo que, se demorarem, aqueles cavalheiros pensem que hesito ou julguem qualquer loucura semelhante.
  Não se preocupe, Luís — disse eu. — Eles saíram daqui há somente duas horas; além disso, você precisaria de tempo para nos prevenir.
  Mesmo assim — interveio Giordano —, penso que Luís tem razão. Podem julgar qualquer atraso uma negligência de nossa parte.
  Pois bem — disse eu a Luís. — Precisamos saber que arma você prefere. Florete ou pistola?
  Ah! meu Deus! — exclamou ele. — Isso me é perfeitamente indiferente, uma vez que nunca usei nem uma nem outra, como já lhe disse. Aliás, Château-Renaud me poupará o embaraço da escolha; como se considera a parte ofendida, a ele caberá escolher a arma que melhor lhe convier.
Troquei um olhar com Giordano, que terminava tranqüilamente o seu vinho. Como militar e como corso, o jovem barão parecia considerar as lutas partes naturais e inseparáveis da vida.
  Em todo o caso, Luís — disse eu —, a ofensa é discutível. Que diabo, você apenas se limitou a cumprir o pedido feito por uma amiga, cuja casa freqüentou várias vezes. Nada mais normal. Não me parece que. . .
  Desculpe-me, Alexandre — objetou Luís, num tom de voz que não admitia réplica —, qualquer discussão sobre o assunto poderia sugerir um desejo de acomodamento de minha parte. Sou uma pessoa muito pacífica, como sabe, e até hoje só utilizei armas de brinquedo, na Córsega, quando acompanhava Luciano em suas brincadeiras de infância. Estou muito longe de ser um duelista, e tanto isso é verdade que se trata da primeira aventura desse tipo que me sucede. Ora, é justamente devido à minha aversão à violência que pretendo agir sem qualquer rodeio.
Olhei-o firmemente.
  Isso é muito fácil de dizer, meu caro. Você está jogando apenas a vida, mas deixa-nos perante sua família com toda a responsabilidade pelo que acontecer.
  Oh! Quanto a isso fique tranqüilo, conheço minha mãe e meu irmão. A única coisa que lhe perguntarão é: "Luís comportou-se como um homem de bem?" Quando você lhes responder que sim, dirão apenas: "Está bem".
Naquele minuto tomei uma decisão que participaria mais tarde a Giordano.
  De qualquer modo, Luís, precisamos saber que arma você prefere — disse eu.
O rapaz soltou uma lenta baforada de fumaça que o envolveu numa nuvem cinzenta.
   Bem, se propuserem pistola, aceite — respondeu.
   Acho que terá mais chances com ela do que com o florete — observou Giordano.
  Bem, se ambos concordam, então está resolvido — retruquei. — Penso, contudo, que a pistola é uma arma traiçoeira.
Luís parecia pensativo.
  Existe algo que queira perguntar? — indaguei-lhe.
  Terei tempo de aprender alguns golpes de florete até amanhã de manhã? — e olhou para Giordano e para mim.
   Não — respondeu o jovem capitão, meneando a cabeça. — Em todo o caso, talvez com uma boa lição de Grisier possa chegar a se defender.
Luís sorriu.
  Não, é inútil — finalizou. — O que tiver de me acontecer já está escrito lá em cima, e nada do que eu vier a fazer modificará tal disposição.
Luís conduziu-nos até a porta, onde lhe apertamos a mão e descemos.                 



[1] Hino sacro de ação de graças que começava com "Te Deum laudamus " "A Ti, ó Deus, louvamos ". (N. do E.)
[2] Literalmente, "Via Sacra ". Aqui significa sofrimento. (N. do E.)

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