segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os Irmãos Corsos - Capítulos 19 ao 26

CAPÍTULO 19


O GRAVE PERIGO



A tarde estava límpida, com um grande céu azul-turquesa brilhando sobre nossas cabeças.
Entretanto, ao invés de me deixar alegre, todo aquele esplendor tornava-me o humor ainda pior: a idéia do grave perigo que Luís de Franchi corria não me abandonava um só instante.
Era hora de pôr em prática o que tinha em mente. Voltei-me para Giordano, que caminhava pela calçada com os passos ágeis de quem passa muito de seu tempo ao ar livre. Como eu já observara as reações do rapaz, sabia que não seria fácil convencê-lo, mas precisava de sua ajuda e portanto teria que tentar.
  Não concordo absolutamente com que Luís se deixe matar por Château-Renaud — comecei eu.
Giordano ficou em silêncio, provavelmente pensando no que eu dissera.
  Pode ser que fique apenas ferido — murmurou ele. — E talvez tenha até mesmo uma chance de acertar o adversário.
   Que chance, Giordano? — perguntei eu, controlando minha irritação. — Que chance terá Luís em se bater com um campeão de tiro?
  A chance da sorte — respondeu com voz triste. — Infelizmente só podemos contar com ela no momento.
Respirei fundo.
  Acho — disse eu — que deveríamos fazer qualquer coisa. Ou melhor, temos a obrigação de fazê-lo.
  Contudo — retrucou —, não há nada que possamos fazer.
  Não há nada?! Ouça, meu amigo, se ambos prezamos tanto a vida de Luís, temos que interferir o mais rapidamente possível nesse equívoco lamentável. Isto é, enquanto Luís ainda respira.
O jovem barão sentiu-se censurado e seu rosto moreno fechou-se.
  Conheço Luís de Franchi desde que éramos crianças. Brincamos juntos muitas vezes em Sullacaro e presenciei diversos acontecimentos importantes de sua vida, assim como ele me viu passar por inúmeros momentos bons e maus. Minha amizade por ele é sólida e acima de qualquer dúvida. Creio que o próprio Luís tem absoluta certeza disto. Portanto, se o senhor por acaso descobriu um milagre que possa resolver a atual situação, diga-me; estou pronto a colaborar.
  Nem por um momento duvidei de sua amizade a Luís, meu caro Giordano. Não se justifique, por favor, e peço-lhe que me perdoe se algo que disse o molestou. A verdade é que sinto o tempo cada vez mais curto e a vida de nosso amigo por um fio.
  Mas o que poderíamos fazer? — perguntou Giordano parando na rua.
Parei também e olhei para ele.
  Poderíamos tentar desfazer o duelo.
A fisionomia do barão carregou-se de novo.
  E de que modo? Sabe perfeitamente que Luís jamais aceitaria uma acomodação. Além disso, confesso que eu próprio detestaria interferir nos assuntos de honra de meu amigo. Não temos o menor direito de fazer tal coisa.
  Em primeiro lugar, Giordano, não tentaríamos uma acomodação por parte de Luís e sim de Château-Renaud, que foi o desafiador. Quanto a interferir nos assuntos de honra de Luís de Franchi, seria apenas para que permaneça vivo: qualquer pessoa que olhe de fora esse duelo constatará tratar-se o mesmo de uma covardia. De um lado, alguém totalmente inexperiente; de outro, um homem tão habituado à pistola que venceu vários torneios de tiro. Pense um pouco, Giordano.
A cara do jovem capitão não se desamarrou.
  Se conheço Luís, ele não aceitará tal solução. No que fará muito bem, a meu ver.
Aquele diabo de corso cabeçudo punha as questões de honra até mesmo acima de sua afeição por Luís, mas eu haveria de convencê-lo! A atitude de Giordano não me espantava, aliás: eu conhecera Luciano de Franchi.
  Bem, de qualquer modo — resmunguei —, acho que é obrigação nossa tentar. E sem que Luís saiba. Nós lhe apresentaremos apenas o resultado.
O barão pensou durante um momento e finalmente concordou.
  Temos de deixar bem claro, entretanto, que Luís nada sabe a respeito dessa tentativa. Seria imperdoável de nossa parte que pudessem pensar em qualquer sinal de covardia vindo dele — disse Giordano.
   Quanto a isso não se preocupe. Então, se concorda, visitemos primeiro Renê de Châteaugrand, que mora mais perto.
Pouco depois chegávamos à rua de La Paix, número 12.
A entrada estava interditada a quem não se apresentasse da parte de Luís de Franchi.
Entretanto, quando o criado leu nossos nomes nos cartões, fomos imediatamente introduzidos na casa.
O Sr. de Châteaugrand nos esperava. Era um rapaz alto, de olhos muito azuis, vestido certamente pelos melhores alfaiates de Paris. Levou-nos para uma aconchegante e luxuosa sala de estar, onde nos sentamos.
  Bem, senhores, estou à sua disposição — começou ele. — Entretanto, se quiserem ter a bondade de aguardar uns poucos instantes, Adriano de Boissy estará aqui. Pedi a um criado que fosse avisá-lo, para poupar aos senhores o trabalho de terem de passar depois em casa dele.
  Nesse caso, senhor — disse eu —, creio que é melhor esperar sua chegada antes de tocarmos no assunto que aqui nos traz.
  Também o creio.
Enquanto aguardávamos, o Sr. de Châteaugrand nos ofereceu bebidas e charutos. Conversamos sobre corridas, caças e a Ópera, embora a preocupação por Luís não me permitisse um estado de espírito agradável.
Felizmente Adriano de Boissy chegou após quinze minutos.
Após as apresentações, Châteaugrand esperou um momento, depois declarou para Giordano e eu:
  Estamos ao seu dispor, cavalheiros.
  Bem — comecei —, como os senhores não ignoram, estamos aqui na qualidade de padrinhos de Luís de Franchi no duelo para o qual foi desafiado pelo Sr. de Château-Renaud. Um duelo sempre me pareceu uma forma excessivamente drástica de resolver diferenças, pois muitas vezes causa a morte de um dos contendores. E além de drástica se torna injusta, quando um dos adversários está habituado a lidar com armas e o outro não tem nem a mais leve idéia de seu manuseio.
Châteaugrand e De Boissy olhavam-me atentamente, procurando entender aonde queria eu chegar. Quanto ao pobre Giordano, via-se que estava muito pouco à vontade, desejando naturalmente encontrar-se a léguas de distância daquela sala.
  Bem sabem, senhores, que a responsabilidade dos padrinhos é muito grande — continuei —, e creio estar em nossas mãos fazer o possível   para  evitar  um  ato  violento  que  certamente  provocará derramamento de sangue e talvez a morte de um dos contendores.
Respirei fundo e prossegui.
  Sr. de Châteaugrand e Sr. De Boissy, o barão Martelli e eu viemos solicitar-lhes algo que pode parecer extravagante, mas que é apenas razoável: convencer o Sr. de Château-Renaud de que a realização do duelo seria absurda, dado o pequeno motivo que o causou.
Châteaugrand e De Boissy se entreolharam.
   Antes que nos respondam — atalhei — desejo esclarecer que Luís de Franchi nada sabe de nossa iniciativa. Sobre isso faço questão absoluta de lhes dar a minha palavra de honra, assim como peço a do barão Martelli.
Giordano assentiu com a cabeça.
  A bravura de Luís de Franchi — sublinhei — faria com que ele nos impedisse qualquer tentativa nesse sentido. Peço-lhes que acreditem nisto pois é a mais límpida verdade.
Châteaugrand cruzou as pernas.
  Nós o acreditamos, senhores — disse ele. — Penso, entretanto, que será uma interferência indevida de nossa parte nos negócios de Château-Renaud se solicitarmos a ele que suspenda o duelo. Acho mesmo que receberá muito mal uma iniciativa dessas, coisa perfeitamente compreensível.
  Mas pensem um pouco no gesto que originou o desafio de Château-Renaud — retruquei — e vejam se não há uma grande desproporção entre esse gesto e a morte de um homem.
  Desproporcionado ou não — interveio o tenente Adriano de Boissy —, Château-Renaud sentiu-se ofendido por ele. Não cabe a nós, creio eu, julgar de sua validade ou invalidade. Além do mais, não será o primeiro duelo causado por algo aparentemente sem importância.
  Para o senhor é fácil dizer isso — tentei controlar a voz que me saía metálica. — Não é o seu amigo quem vai morrer.
— Ora, vamos, meu caro senhor — replicou Adriano de Boissy batendo a ponta do cigarro na cigarreira de prata de onde o retirara. —Somos por acaso adivinhos para saber de antemão quem morrerá? A situação é simples: alguém fez algo; outro alguém julgou-se ofendido. O que há de mais justo para se resolver esta diferença do que um duelo, onde dois adversários têm oportunidades iguais de ataque e defesa?
Por um momento tive impulsos de amassar aquela cara com um bom soco, mas tal atitude poria nossa tentativa a perder.
   Acha, então — perguntei lentamente —, que nesse duelo haverá oportunidades iguais? Luís é um homem voltado para o estudo, nunca pegou numa arma em toda a sua vida, enquanto que Château-Renaud é exímio na pistola e no florete. Isso não será um duelo e sim assassinato.
  Oh! o senhor exagera! — disse Châteaugrand.
  Infelizmente não — retruquei. — Meu amigo tranqüilamente se fará matar, porque é um homem cioso de sua honra. Quanto aos senhores, se se recusarem a falar com Château-Renaud, serão os responsáveis pela morte de Luís de Franchi. Eis o que tínhamos a dizer.
Durante um longo momento o silêncio se instalou na sala.
De Boissy e Châteaugrand trocaram um olhar, após o que o último falou:
  Peço-lhes licença, senhores, para dar uma palavra em particular com De Boissy sobre o assunto.
  Pois não — respondemos Giordano e eu quase ao mesmo tempo.
Châteaugrand e De Boissy retiraram-se da sala durante alguns minutos. Quando voltaram haviam decidido falar com Château-Re­naud.
  Dentro de duas horas podemos nos encontrar aqui mesmo ou onde os senhores quiserem — disse Châteaugrand. — Então já teremos uma resposta.
  Muito bem — disse eu. — Voltaremos a esta casa dentro de duas horas. Concorda, Giordano?
  Sim, claro.
  Ah! Outra coisa — lembrou Châteaugrand. — Caso meu amigo não concorde com a suspensão do duelo, que arma preferiria o Sr. Luís de Franchi?
A pergunta me fez estremecer, mas tinha de ser respondida. Giordano deve ter notado minha consternação e tomou a palavra:
— Luís de Franchi cede a escolha da arma ao Sr. de Château-Renaud — disse o jovem corso altivamente.
Depois de um momento nos levantamos, estendendo a mão para os dois homens.
  Creio que é só, senhores — falei. — Até já.
  Faremos o que for possível, meu caro — disse Châteaugrand com um sorriso. — Tudo dependerá de Château-Renaud.
  Sim, sim — concluí, enquanto nos encaminhávamos para a saída. — Nossa responsabilidade cessa na tentativa: a partir daí já não está em nossas mãos.
Na rua, agradecemos aos padrinhos de Château-Renaud e partimos, Giordano e eu, à procura de um café. Tinha a garganta Seca, mas minha consciência aliviada recebeu agradavelmente o sol da tarde: eu tentara tudo.


CAPÍTULO 20


LUCIANO VINGARÁ



Sentamo-nos ante um refrescante copo de vinho branco, enquanto víamos desfilar a apressada e colorida população parisiense.
  Não quero desanimá-lo — disse-me Giordano repentinamente —, mas penso que Château-Renaud não aceitará desistir do duelo.
Pousei o copo em que bebia na mesa.
  Talvez — respondi. — Para ele, o combate não implica risco algum.
  Mas tranqüilize-se ao menos quanto a uma coisa — acrescentou Giordano —: se Luís morrer, sua morte será vingada sem demora.
  Como?
Giordano ficou um momento em silêncio.
  Adivinhe — disse ele finalmente.
  Luciano?
Giordano assentiu.
  Crê então que Luciano deixaria a Córsega e viria em busca de Château-Renaud aqui em Paris?
  Tenho  certeza,  se bem o conheço. Ainda que Château-Renaud estivesse no inferno Luciano o perseguiria. Lembro-me de um episódio curioso: certa vez, quando Luciano, Luís e eu éramos ainda crianças, esteve em Sullacaro um grupo de meninos que eram primos uns dos outros. Insolentes e arruaceiros, esses meninos viviam procurando motivos de briga. Um dia Luís lia debaixo de uma árvore da praça quando chegaram os garotos. Estes, mais que depressa, puseram-se a implicar com Luís, que, calmo, não lhes dava importância. Entretanto,  quando dirigiram  uma ofensa  a Luciano (que nesse momento estava ausente), Luís atirou-se subitamente contra o que estava mais perto, esmurrando-o com todas as forças.
"É claro — prosseguiu o jovem corso — que Luís levou a pior; os outros primos o agarraram e o deixaram roxo, com o nariz sangrando. Pensa que Luís disse algo a Luciano sobre a briga? Coisa nenhuma! Afirmou que havia caído de uma escada, mas Luciano, evidentemente, não acreditou. Eu, que soubera da briga por intermédio de uma tia que afugentara os meninos quando estes batiam em Luís, contei a verdade a Luciano, que imediatamente mostrou-se disposto a partir e dar uma lição nos atrevidos em sua própria terra.
"Ofereci-me para ajudá-lo nesta vingança, mas Luciano recusou — acrescentou Giordano. — Terei que resolver isso sozinho! — declarou, com fúria nos olhos. — Por mais que eu tentasse convencê-lo da temeridade de tal atitude, não o consegui. Pois bem: Luciano ficou ausente durante três dias. A família, preocupadíssima, não sabia mais onde procurá-lo e já temia o pior quando o meu amigo aparece com manchas de sangue na roupa e equimoses pelo corpo.
"Então, meu velho?" — perguntei, penalizado ante o seu aspecto.
   Acertei um por um — respondeu com um sorriso no rosto inchado. — Acho que aprenderam a lição.
  Eis como são os dois De Franchi — concluiu Giordano com orgulho. — Corsos até debaixo d'água. Se Luciano fosse morto num duelo, provavelmente Luís teria a mesma atitude, apesar de sua ignorância das armas. São tremendamente leais um ao outro.
  Sim. De qualquer modo, esperemos que não seja necessária a intervenção  de  Luciano.  Diga-me,  Giordano, você conhece bem Emília?
  Freqüento sua casa há um par de anos.
  Saberá ela que Luís vai se bater contra Château-Renaud?
Giordano hesitou.
  Bem — murmurou ele —, Emília pediu-me que nada dissesse a Luís, mas eu o direi a você: ela esteve hoje em minha casa, muito nervosa e extremamente preocupada com a sorte de Luís, pois sabe da disparidade de forças entre os dois adversários.
Permanecemos pensativos durante um longo momento. De repente lembrei-me da hora e consultei o relógio.
— Céus, Giordano! Temos exatamente o tempo de pagar a conta e voar!
Precipitamo-nos para o coche de meu companheiro e, poucos minutos depois, estávamos novamente na rua de La Paix.


CAPÍTULO 21


DUELO A PISTOLA


Châteaugrand e De Boissy nos esperavam na biblioteca, levantando-se o dono da casa quando entramos.
A fisionomia dos dois homens estava séria, sendo que a de Châteaugrand mostrava um vinco de preocupação na fronte que me fez esperar o pior.
  Tomam um licor, senhores? — perguntou ele. — Ou talvez um copo de vinho?
Recusamos o oferecimento, desejando saber o mais rápido possível a resposta de Château-Renaud.
  Muito bem — começou afinal Châteaugrand. — Infelizmente, meus amigos, Château-Renaud negou-se a suspender o duelo.
Pronto, ali estava o que eu temia! Senti um baque no coração.
  Tratei de expor-lhe todas as razões que já havíamos comentado aqui nesta casa, mas Château-Renaud mostrou-se inflexível.
"Ora meu caro — disse ele —, fui ofendido publicamente por Luís de Franchi. Seria uma grande covardia de minha parte esquivar-me a esse ajuste de contas."
   De nada adiantou minha sugestão de que Luís não tivera intenção de ofendê-lo:
"Ouça, Châteaugrand — respondeu ele com irritação —, minha decisão é inarredável. Por favor, não interfira em assuntos que dizem respeito à minha honra. Contudo, se não quiser servir-me de padrinho é só dizer: tratarei de escolher outro!"
Meus maxilares doíam, tanto eu os cerrava com força ante a má-fé de Château-Renaud.
  Espero que não tenham deixado dúvidas em seu amigo quanto à bravura de Luís de Franchi e sua ignorância de nossa tentativa — disse eu, procurando controlar o ódio e a frustração que ferviam dentro de mim.
  Isso foi a primeira coisa que esclareci, fique descansado — respondeu Châteaugrand. — Além do mais, Luís de Franchi é conhecido em Paris como um homem honrado e de atitudes corajosas.
Ficamos os quatro em silêncio durante um momento, depois levantei-me, acompanhado por Giordano.
  Bem — disse eu —, creio que só nos resta agradecer-lhes.
— Fizemos tudo que nos foi possível — murmurou Château­grand. — Infelizmente Château-Renaud é muito cioso em suas questões de honra.
Fuzilei-o com um olhar que não deixava dúvidas quanto ao que eu pensava de suas palavras.
  Antes que partam — interveio De Boissy, até então calado —, precisamos resolver a questão da arma a ser escolhida. Como para Château-Renaud também é indiferente o uso do florete ou da pistola, sugiro que tiremos a sorte.
De Boissy extraiu do bolso uma moeda.
  Cara para espada, coroa para pistola — disse ele, jogando a moeda para o ar.
A moeda rodopiou e imobilizou-se do lado da coroa.
  O duelo será a pistola — salientou De Boissy, olhando para Giordano e para mim.
Talvez fosse uma impressão de minha parte, mas notei certa excitação nos olhos de Adriano de Boissy, como se a perspectiva do duelo o alegrasse.
Aquilo me encheu de uma tal fúria fria, que estive mesmo ao ponto de provocá-lo para um duelo, embora, como Luís, eu deteste violência.
A voz de Châteaugrand interrompeu meus pensamentos:
  Que acham os senhores de marcarmos o duelo para amanhã, às nove horas, no bosque de Vincennes?
Giordano e eu nos entreolhamos. Ele balançou a cabeça afirmativamente.
  Está bem, então — concordei eu.
  Os adversários ficarão colocados a vinte passos de distância —  acrescentou Châteaugrand. — Um dos padrinhos dará três sinais com as mãos e, ao terceiro, os adversários atirarão.
  Está combinado — estendi a mão a um e a outro padrinho. — Até amanhã.
Giordano despediu-se também e nos dirigimos à porta, acompanhados por Châteaugrand.
Grande depressão tomou conta de mim quando deixei aquela casa. Olhei para Giordano, que tinha a fisionomia também bastante sombria.
  Estarei em casa de Luís às oito da noite — murmurei, sem conseguir dizer mais nada.
  Nós nos encontraremos lá, então — respondeu Giordano. Sua tristeza era agora visível.


CAPÍTULO 22


A APARIÇÃO DO PAI


Às oito da noite apresentei-me em casa de Luís de Franchi. Recebeu-me com a alegria costumeira, sem tocar nem por um momento no duelo.
Disse-lhe então que combináramos este para a manhã seguinte, às nove horas.
  Quer fazer-me alguma recomendação, Luís? — perguntei. — Encarregar-me de algo?
  Não, meu amigo. Esperemos até amanhã. A noite é boa conselheira — respondeu Luís, num tom que me pareceu um pouco estranho.
Giordano chegou no momento seguinte e, após conversarmos sobre os assuntos mais variados, deixei-os sozinhos e voltei para o meu apartamento. Uma coisa não me saía da cabeça: que teria querido dizer Luís com aquele "a noite é boa conselheira"?
Na manhã seguinte — dia do duelo — cheguei à casa de meu amigo às sete e meia. O sol principiava a dissipar o nevoeiro da madrugada e o céu já se mostrava azul.
  O Sr. de Franchi está na biblioteca, escrevendo — disse-me o criado.
Caminhei rapidamente naquela direção e bati à porta fechada com uma grande apreensão dentro do peito.
  Entre — ouvi a voz de Luís.
Girei a maçaneta e entrei na sala. Espantei-me de imediato com a extrema palidez de meu amigo.
  Peço-lhe desculpas, Alexandre — disse ele —, mas estou acabando de escrever a minha mãe. Sente-se, leia os jornais; a Impren­sa, por exemplo, traz um ótimo folhetim de Méry.
Sentei-me, observando perplexo o contraste entre a palidez quase lívida de Luís e sua voz doce, grave e calma.
Peguei o jornal e procurei a página indicada, mas meus olhos deslizavam pelas letras sem conseguir apreender o que diziam.
Ao fim de cinco minutos Luís levantou a cabeça.
  Pronto, acabei — disse ele.
Tocou a campainha para chamar o criado e arrumou alguns papéis na mesa.
  Escute, José — recomendou, quando o criado entrou na sala — eu não estou para ninguém. Nem mesmo para Giordano. Se ele chegar, faça-o esperar na sala da frente. Não quero ser interrompido por quem quer que seja pelo menos durante dez minutos, entendido?
  Sim, senhor.
  Pode ir.
O criado saiu, fechando cuidadosamente a porta. Luís virou-se para mim com um sorriso.
  Giordano é corso e portanto tem idéias corsas. Em outras palavras, é um cabeça-dura, como todos os que nasceram na ilha. Não posso contar com ele para fazer o que pretendo. Ele me prometeria segredo e nada mais. Para um amigo parisiense, entretanto, posso pedir esse favor. O senhor terá de me prometer que vai seguir rigorosamente as minhas instruções. . .
  Tudo o que quiser, Luís. O dever de um padrinho não é fazer tudo para auxiliar o seu afilhado?.
  Sim — murmurou o rapaz. — Principalmente quando se trata de poupar uma segunda desgraça à nossa família.
  Uma segunda — repeti, sem compreender o que significava.
Ele ficou um momento em silêncio. Depois foi à escrivaninha e dali trouxe a carta que escrevia quando cheguei.
  Veja — mostrou-me ele. — Eis o que mando dizer à minha mãe.
Tomei a carta de suas mãos e a li rapidamente, com um espanto cada vez maior. Dizia o seguinte:

"Minha boa mãe:
Se eu não a soubesse ao mesmo tempo forte como uma espartana e resignada como uma cristã, não saberia como lhe dar a notícia terrível: quando receber esta carta terá apenas um filho.
Há dois dias atrás fui atingido por uma febre cerebral. Dei pouca atenção aos sintomas e continuei normalmente as minhas atividades; entretanto, como meu mal-estar se agravasse cada vez mais, vi-me obrigado a chamar o médico: infelizmente era tarde demais.
Minha querida mãe, não há esperança para mim. A não ser que haja um milagre, minhas horas na terra estão contadas.
Aproveito um momento de lucidez para lhe escrever. Esta carta será colocada no correio logo após a minha morte. Lamento como nada no mundo não ter podido despedir-me dos dois seres que me são mais caros, minha mãe e meu irmão.
A partir de agora, o meu querido Luciano será o único a velar pela senhora, e sei que o fará por nós ambos.
Minha saudade é grande, mas consola-me lembrar a ternura que recebi desses dois entes tão queridos. Não chorem. Onde quer que eu esteja, continuarei a amá-los do mesmo modo como eu o fazia em vida.
Adeus, minha mãe. Adeus, Luciano. Lembra-te de que nossa mãe agora só tem a ti.
Com todo o amor,
Luís".

Olhei perplexo para meu amigo.
  O que significa isto, Luís?
  Não compreendeu, então? — perguntou-me ele.
  Não.
  Creio que não vai acreditar no que vou dizer: sei que serei morto às nove horas e dez minutos de hoje.
  Como? — disse eu, levantando-me da poltrona.
  Exatamente o que ouviu; serei morto por Château-Renaud às nove e dez desta manhã.
  Você está louco, Luís. Por que atormentar-se com essa idéia? — falei, nervoso.
  Não estou louco nem me sinto atormentado, meu amigo. Apenas lhe digo a verdade. Fui prevenido...
  Prevenido!. . . Por quem?
  Luciano não lhe contou que os homens de nossa família possuem um estranho privilégio?
  Sim — respondi, estremecendo sem querer. — Ele me falou de aparições.
  Justamente — murmurou Luís. — Pois meu pai apareceu-me esta noite e é por isso que você me vê tão pálido; a presença dos mortos empalidece os vivos.
Olhei-o com espanto misturado a um vago terror. Teria a proximidade da morte afetado Luís?
  Você quer dizer que viu seu pai esta noite? — perguntei.
  Sim.
  E ele lhe disse alguma coisa?
  Anunciou minha morte — respondeu tranqüilamente meu amigo.
  Deve ter sido um pesadelo e. . .
  Não, Alexandre, foi absolutamente real.
  Tem certeza mesmo de que estava acordado?
  Tenho. Não acredita que tal coisa possa acontecer, não é? Acha impossível que meu pai tenha vindo me visitar?
Fiquei calado, pensando. A verdade é que eu acreditava totalmente naquela possibilidade; eu mesmo passara por uma experiência semelhante quando criança, fato que já havia contado a Luciano.
  E como se deu a visita? — perguntei.
  Ah! Da maneira mais simples e natural. Eu estava lendo aqui nesta mesma cadeira, sabendo que, se corresse algum perigo, meu pai acabaria por aparecer. É claro, Alexandre, que eu esperava — no fundo todos somos otimistas — ser poupado dessa visita devido ao seu terrível significado.
O rapaz suspirou.
  Por volta da meia-noite — prosseguiu ele — notei que a luz bruxuleava. Minha tensão era grande, o que me fazia continuar a leitura com grande dificuldade. Contudo, não sentia nenhuma espécie de medo, acredite ou não. Talvez pelo fatalismo com que sempre me habituei a encarar todas as coisas desta vida. Segundos depois a luz tornou a diminuir, quase se apagando então; no momento seguinte, a porta se abriu lentamente e meu pai apareceu.
  E como se mostrava ele? Qual era a sua aparência?
  Idêntica à de quando estava vivo — respondeu Luís. — Usava a mesma roupa que costumava vestir. A única diferença é que estava mais pálido e seus olhos não tinham brilho.
  Meu Deus. . .
  Ficou por um instante parado à porta e depois se aproximou vagarosamente de mim, detendo-se bem diante desta cadeira.
"Seja bem-vindo, meu pai — disse-lhe eu em voz baixa."
— Ele se aproximou bastante — continuou Luís —, olhou-me fixamente e tive a impressão de que esse olhar mortiço se animava com a força do amor que sentia por mim.
  Continue, Luís! Que coisa incrível!
  Seus lábios moveram-se — disse meu amigo, com os olhos fixados nos meus —, mas não produziram nenhum som. Entretanto sentia suas palavras nitidamente ressoando dentro de mim, claras e vibrantes como um eco.
  E que disse ele? — perguntei.
  Disse-me: "Pensa em Deus, meu filho!"
"Morrerei neste duelo?" — perguntei.
  Vi duas lágrimas escorrerem daqueles olhos sem brilho para o rosto muito pálido.
"A que horas?" — insisti eu.
  Meu pai levantou lentamente a mão e apontou para o relógio. Acompanhei seu gesto com o olhar: o relógio marcava exatamente nove horas e dez minutos. Nesse instante, Alexandre, um calafrio me percorreu: é uma sensação estranha saber-se a hora da própria morte.
"Está bem, meu pai" — respondi-lhe então. "Seja feita a vontade de Deus. Sé deixo minha mãe, por outro lado me reúno ao senhor."
  Ele teve um sorriso muito triste — continuou Luís — e fazendo um gesto de despedida afastou-se. A porta abriu-se por si mesma diante dele, tornando a fechar-se logo após sua saída. Durante longo tempo eu permaneci imóvel, tentando pôr uma certa ordem na minha pobre cabeça convulsionada.
Permanecemos em silêncio durante algum tempo.
Eu, na verdade, não sabia o que dizer. Luís contara a história tão naturalmente e de um modo tão simples que das duas uma: ou tudo aquilo acontecera realmente, ou ele fora vítima de uma terrível ilusão devida à angústia provocada pela proximidade do duelo.
Tirei o lenço do bolso e enxuguei a testa.
  Você conhece Luciano, não é? — perguntou Luís de repente.
  Sim — respondi, sem saber aonde o rapaz queria chegar.
  Pois bem. O que pensa que fará quando souber que fui morto num duelo?
   Giordano acha que Luciano virá imediatamente de Sullacaro para bater-se com aquele que o matou — respondi. — E acho que Giordano tem razão.
  Exatamente. E se ele por acaso for morto, minha mãe terá perdido dois filhos em vez de um. Ficará inteiramente só naquela grande casa. . .
  Compreendo, meu amigo. . . — murmurei, profundamente desolado.
Luís parou, quase dominado pela emoção. Mas respirou fundo e continuou:
  É precisamente isso, caro Alexandre, que desejo evitar. Por isso escrevi esta carta. Se Luciano acreditar que morri de uma febre cerebral, ele não poderá culpar ninguém de minha morte e, desse modo, não correrá nenhum risco. Quanto à minha mãe, se resignará muito mais facilmente se me souber atingido pela vontade de Deus do que fulminado pela mão de um homem. A não ser que. . .
  A não ser o que, Luís?
  Oh, nada. Espero que isso não aconteça. . .
Percebi que ele não desejava falar sobre esse novo temor e não insisti.
Nesse exato momento bateram na porta.
  Entre! — exclamou Luís.
— Meu caro — disse Giordano abrindo a porta —, respeitei tua vontade até quando foi possível, mas já são oito horas. Se quisermos estar em Vincennes às nove horas temos de partir. Temos légua e meia a fazer. Desculpa-me a interrupção.
   Não peça desculpas, meu amigo. Agradeço-te por me lembrares a hora. Já disse a Alexandre o que tinha a dizer.
Luís lançou-me um olhar de cumplicidade e depois voltou-se para o barão.
   Quanto a ti, Giordano, peço que me faças um favor — falou, pegando uma carta em cima de sua escrivaninha. — Se me suceder algum mal, lê esta carta e cumpre as indicações que ela contém. Sei que o farás, ainda que possas não concordar com minhas indicações.
  Fica tranqüilo — respondeu Giordano, cujo rosto se mostrava grave.
  Trouxe as armas? — perguntou Luís.
  Sim — respondeu ele. — Mas ao sair notei que um dos gatilhos funcionava mal. De passagem levaremos uma caixa de pistolas da casa Devisme.
Ficamos os três de pé por um longo minuto, sem saber exatamente o que dizer.
Luís sorriu corajosamente para nós.
  Bem — disse ele —, acho que é melhor irmos andando. Tua carruagem está aí embaixo, Giordano, ou mando José buscar uma?
— Não, não. A minha está em frente à porta — respondeu o barão. — Direi ao cocheiro que se apresse, pois já estamos um pouco atrasados.
  Então vamos — disse Luís, dando um último olhar pela casa. Tinha um olhar profundamente triste, mas seu controle era admirável.
Descemos. José nos esperava à porta com uma grande ansiedade no rosto, embora Luís nada lhe houvesse dito. Teria pressentido algo?
  Devo ir com o senhor? — perguntou ele.
  Não, José — respondeu Luís —, é inútil, não preciso de ti.
Em seguida deixou que nos adiantássemos um pouco, ficou para trás e pôs na mão de José um pequeno rolo de moedas de ouro.
  Toma, amigo. Se por acaso te tratei com secura nos meus momentos de mau humor, desculpa-me.
   Oh, senhor! — exclamou José com lágrimas nos olhos —, que quer dizer com isso?
Luís  levou  um dedo  aos  lábios  pedindo  silêncio,  sorriu e, entrando no carro, instalou-se entre nós.
A carruagem pôs-se em movimento.
  É um bom homem — disse Luís, atirando um último olhar a José pela janela. — Se um de vocês lhe puder ser útil, será mais um grande favor que me farão.
  Despede-o? — perguntou Giordano.
  Não — respondeu Luís sorrindo. — Deixo-o, apenas.
Paramos à porta da casa Devisme rapidamente, para adquirirmos um novo estojo de pistolas, pólvora e balas. Em seguida voamos para o local do duelo.
CAPÍTULO 23


NOVE HORAS E DEZ MINUTOS


As árvores passavam velozmente por nós no caminho que nos conduzia a Vincennes. Graças à rapidez dos cavalos chegamos ao bosque exatamente quando faltavam dez minutos para as nove horas.
Nesse mesmo momento chegava também a carruagem de Château-Renaud, vinda por um caminho diferente.
Saltamos. Eu sentia na boca um gosto de cinza, enquanto certa náusea contraía-me o estômago.
Luís voltou-se para nós:
  Meus amigos: como sabem, nada de apaziguamento.
  Contudo... — comecei eu, numa última tentativa.
  Alexandre, lembre-se de que, após a confidencia que lhe fiz, você é a pessoa que menos deveria insistir nisso.
Resolvi aceitar sua inabalável vontade e calei-me.
Giordano e eu deixamos Luís junto à carruagem e fomos ao encontro de Châteaugrand e de Adriano de Boissy. O barão levava na mão o estojo das pistolas.
  Bom dia, senhores — cumprimentamos nós.
De Boissy e Chateaugrand estenderam-nos a mão. Ambos estavam mais uma vez elegantíssimos, embora vestidos com a sobriedade que o momento exigia.
  Senhores — falou Giordano —, nas circunstâncias em que nos encontramos, quanto mais rapidamente efetuarmos as cerimônias necessárias, melhor, pois a qualquer momento poderemos ser perturbados pela polícia.
Fez uma pausa e continuou:
  Aqui estão as armas que nos encarregamos de trazer. Acabaram de ser compradas; queiram examiná-las, por favor. Garantimos sob palavra que o Sr. Luís de Franchi nem sequer as viu.
  Tal garantia é desnecessária, senhor — respondeu o visconde de Châteaugrand. — Sabemos perfeitamente com quem estamos lidando.
Tomou então uma pistola, enquanto De Boissy apanhava a outra. Os dois homens fizeram funcionar o gatilho de cada arma, examinaram os calibres e os canos.
— São pistolas de tiro comum, inteiramente novas — frisou Giordano. — O que os adversários poderão fazer, ou não, será utilizarem-se do duplo gatilho.
  A minha opinião — interveio De Boissy — é que devemos agir segundo o costume, isto é, cada qual fará o que melhor lhe convier.
  Muito bem — concordou Giordano. — Todas as oportunidades iguais serão aceitáveis.
  Queiram então prevenir o Sr. de Franchi enquanto nós falamos ao Sr. de Château-Renaud — disse Châteaugrand.
  Certo — respondeu Giordano. — E como fomos nós que trouxemos as pistolas, cabe aos senhores carregá-las.
  Muito bem — respondeu De Boissy.
Os dois homens pegaram cada qual uma pistola, mediram cuidadosamente a mesma quantidade de pólvora, apanharam ao acaso duas balas e as colocaram nas respectivas armas.
Durante essa operação — à qual eu não quisera assistir — aproximei-me de Luís. O rapaz sorriu.
  Não se esqueça de nada que lhe pedi — disse ele —, e faça com que Giordano, a quem também peço segredo na carta, não diga absolutamente nada a minha mãe nem a meu irmão. Ah, outra coisa: veja se consegue o maior silêncio possível dos jornais; ou, se falarem do duelo, que pelo menos omitam os nomes dos participantes. Está bem?
Concordei com a cabeça.
  Quer dizer que continua acreditando que morrerá neste duelo? — perguntei.
  Estou mais convencido do que nunca — respondeu. — E, reconheça, vejo aproximar-se a morte como um verdadeiro corso.
  Sua calma é tão grande, Luís, que talvez ela mesma convença o destino de que sua morte seria absurda.
   Não creio que tal coisa seja possível, meu amigo — disse Luís puxando o relógio. — Tenho ainda sete minutos de vida.
Eu o olhava fixamente, tentando compreender a estranheza do momento.
Luís balançou por um instante o relógio no ar, pensativamente. Depois disse:
  Fique com meu relógio, Alexandre. Peço-lhe que o guarde como lembrança. É um excelente Bréguet.
Recebi o relógio e, muito comovido, fiquei alguns segundos sem poder falar coisa alguma.
  Daqui a oito minutos espero poder devolvê-lo — disse eu finalmente.
De súbito, ouvimos o ruído de vozes a distância. Seria a polícia que se aproximava para impedir o duelo? Quem nos teria denunciado?
  Depressa! — exclamou De Boissy — Escondamos as armas e voltemos para as carruagens!
Luís, Giordano e eu corremos para nosso carro, e nos sentamos rapidamente, enquanto Château-Renaud, Châteaugrand e De Boissy faziam o mesmo.
  Acho melhor sairmos daqui por enquanto — falou Giordano, dando ordem ao  cocheiro para que pusesse os cavalos em movimento.
O chicote estalou no ar e nos distanciamos do local, acompanhados de perto pela carruagem que conduzia Château-Renaud. Enquanto dávamos uma volta pela alameda margeada de árvores, falei para Giordano e Luís:
  Penso que devemos combinar com Château-Renaud a escolha de outro lugar. Que acham?
  Creio que é melhor — respondeu Luís.
Desci do carro e fiz sinal para o cocheiro de Château-Renaud. Aproximei-me do carro parado e abri a portinhola:
  Senhores — falei —, talvez fosse melhor procurarmos um outro local.
  Sim, sim — respondeu Châteaugrand —, já estávamos pensando nisso. Existe aqui à direita uma clareira muito mais propícia ao presente encontro do que aquele lugar que íamos utilizar. Lá não seremos perturbados. Podemos deixar os carros aqui mesmo.
  De acordo — falei. — Nós os seguiremos.
Voltei ao nosso carro para avisar Luís e Giordano. Pouco depois seguíamos a pé Châteaugrand e seu grupo.
Após uma descida quase imperceptível de uns trinta passos, nos encontramos em meio a uma clareira que fora outrora, sem dúvida, uma espécie de charco, mas que agora se mostrava totalmente seca. A clareira, cercada por todos os lados por um talude, parecia o lugar ideal para abrigar um duelo.                                             
  Sr. Martelli — disse o visconde de Châteaugrand —, quer medir os passos comigo?
Giordano concordou com a cabeça e, colocando-se de costas junto a Châteaugrand, deu dez passos para a frente, fazendo o visconde outro tanto.
Fiquei ainda alguns segundos com Luís, sem saber o que fazer. Tudo aquilo me parecia um sonho mau, apesar do ar fresco e estimulante da manhã.
  A propósito — disse Luís —, encontrará meu testamento sobre a mesa onde eu estava escrevendo quando você entrou.
  Certo — respondi. — Fique tranqüilo.
  Muito bem, senhores — disse Châteaugrand se aproximando. — Prontos?
  Sim — disse Luís. — Adeus, meu amigo. Obrigado por tudo o que tem feito por mim e pelo que ainda fará.
O rapaz teve um sorriso triste.
Apertei-lhe a mão, que estava fria, mas sem nenhum tremor.
  Vamos, Luís — falei —, esqueça a aparição desta noite e aponte o melhor que for possível.
  Você não sabe que cada bala tem o seu destino, Alexandre? Então? — perguntou-me, fixando os olhos escuros nos meus. — Adeus!
Caminhou em direção a Giordano, que segurava a pistola a ele destinada. Segurou-a, abriu o gatilho e sem a olhar pela segunda vez foi colocar-se no lugar marcado por um lenço.
Château-Renaud, impecavelmente vestido, já se encontrava no lugar dele.              
Houve um momento de profundo silêncio; os dois homens saudaram então os próprios padrinhos, em seguida os do adversário e por fim cumprimentaram-se um ao outro.
Château-Renaud parecia sentir-se totalmente à vontade ao participar do duelo, sorrindo levemente como alguém seguro de sua habilidade. É quase certo que não ignorasse o desconhecimento de Luís de qualquer tipo de arma.
Olhei para o meu amigo. Luís de Franchi mostrava-se calmo e frio. Imóvel, sua bela cabeça dava a impressão de ter sido talhada em mármore.
  Senhores — gritou Château-Renaud, impaciente —, estamos esperando!
Luís atirou-me um último olhar com um sorriso, fixando depois os olhos no céu.
  Preparem-se, então, por favor! — comandou Châteaugrand.
Em seguida, batendo uma das mãos contra a outra, contou:
  Um!. . . Dois!. . . Três!. . .
Os dois tiros estouraram ao mesmo tempo.
Luís de Franchi fez meia-volta sob o impacto da bala e caiu sobre uni joelho.
Château-Renaud, impassível, esperava de pé, com a arma ainda fumegante na mão.
Corri para Luís imediatamente, em pânico ante seu ferimento. Giordano me acompanhou.
  Como se sente? — perguntei, sustentando-o.
Ele tentou me responder sem o conseguir; o esforço fez com que uma espuma sangrenta aparecesse em sua boca. Ao mesmo tempo deixou cair a pistola e levou a mão ao lado direito do peito.
Antes disso eu pudera notar um pequeno orifício em sua sobrecasaca, por onde saía agora uma golfada de sangue. Provavelmente, Luís tivera o pulmão atingido, pensei com horror.
  Giordano — falei —, corra e traga um médico o mais rápido possível!
Luís, entretanto, conseguiu reunir as forças que lhe restavam e segurou Giordano pela manga, balançando a cabeça negativamente. Ao mesmo tempo seu corpo pareceu relaxar-se mais ainda.
Château-Renaud afastou-se imediatamente, dirigindo-se à sua carruagem. De Boissy e Châteaugrand, contudo, aproximaram-se de nós.
  Podemos fazer algo? — perguntou Châteaugrand, cuja consternação era visível.
Balancei a cabeça para dizer que não, enquanto Giordano e eu desabotoávamos a sobrecasaca do ferido, rasgando seu colete e camisa.
Tive um choque ao ver o corpo de Luís rasgado pela bala; esta entrara por baixo da sexta costela direita e saíra um pouco acima do quadril esquerdo.
A cada expiração do rapaz o sangue jorrava dos dois ferimentos. Evidentemente não havia salvação.
  Sr. de Franchi — disse o visconde de Châteaugrand —, creia que estamos profundamente entristecidos com o desenlace desse caso. Esperamos que não odeie o Sr. de Château-Renaud.
  Não, não. . . — murmurou o ferido — perdôo-lhe; mas ele que se retire, que se retire. . .
Em seguida, virando a cabeça para mim com grande esforço, acrescentou:
  Lembre-se da promessa que me fez.
  Juro que tudo será feito como deseja.
  Agora — disse Luís num sussurro —, consulte o relógio.
Depois disso, seu corpo teve um forte estremecimento e se imobilizou. Luís de Franchi estava morto.  
O relógio marcava precisamente nove horas e dez minutos. Fiquei ainda algum tempo sustentando o corpo de Luís, totalmente arrasado pelo absurdo daquela morte, sem saber o que pensar ou fazer.
Giordano tocou-me o braço e pude ver as lágrimas em seus olhos.
  Vamos, Alexandre — murmurou ele com voz embargada —, temos que levá-lo para casa.
Conduzimos o corpo de Luís para a carruagem, acomodei-o em meu colo e pouco depois estávamos à porta do número 7, rua do Helder.
  Ouça, Alexandre, vou chamar José para que o ajude — disse Giordano. — Preciso fazer a comunicação do falecimento ao comissário de polícia do bairro.
Quando José desceu chorava amargamente.
Retiramos o corpo de Luís da carruagem, subimos as escadas e o colocamos no quarto. Ao passar pela sala, meus olhos caíram sem querer sobre o relógio de parede. Marcava também, estranhamente, nove horas e dez minutos. Decerto tinham-se esquecido de lhe dar corda e ele parara exatamente naquele momento sombrio.
Instantes depois Giordano voltou, acompanhado por um oficial de polícia e seus ajudantes.
O barão queria enviar participações aos amigos e conhecidos de Luís de Franchi, sem contar, é claro, que se preparava para avisar à família do morto o mais rápido possível.
— Por favor, Giordano — pedi —, leia antes a carta que Luís lhe deixou.
Essa carta incluía o pedido de que Giordano nada dissesse a Luciano sobre a verdadeira causa da morte de Luís. Solicitava também que o enterro fosse realizado da maneira mais simples, sem qualquer pompa ou ruído.
Bastou que Giordano a lesse para cumprir todas as vontades de Luís. Encarregou-se de todos os detalhes do enterro, enquanto eu me dirigia às casas de Châteaugrand e De Boissy. Era importantíssimo que os dois padrinhos nos garantissem silêncio a respeito do caso, pois, de outro modo, nosso esforço ficaria reduzido a zero.
Felizmente os dois homens concordaram com o pedido de Luís, assim como aceitaram também minha sugestão de que convidassem Château-Renaud a se ausentar de Paris durante algum tempo — sem lhes dizer, evidentemente, por que motivo desejava essa partida.
Enquanto se dirigiam à casa de Château-Renaud, fui expedir a carta que anunciava à Sra. de Franchi a morte de seu filho Luís, vitimado por uma febre cerebral.


CAPÍTULO 24


OS MOR TOS ANDAM DEPRESSA



O duelo não teve a repercussão esperada nessa espécie de caso, o que foi uma sorte. Os próprios jornais, geralmente tão estridentes, se calaram.
Apenas alguns amigos íntimos acompanharam o corpo de Luís ao cemitério de Père-Lachaise, e os poucos que tiveram conhecimento da verdade guardaram segredo.
Contudo, apesar da insistência de seus dois padrinhos, Château-Renaud recusou-se terminantemente — não sei por que motivo — a deixar Paris.
Após ter enviado a carta de Luís à sua família, pensei em fazê-la acompanhar por uma outra, escrita por mim, expressando aos De Franchi a tristeza que eu sentia pelo terrível acontecimento.
Entretanto, embora a intenção fosse excelente, senti uma certa repugnância em me ver obrigado a mentir a Luciano e sua mãe. O próprio Luís provavelmente hesitara em fazê-lo, e só as importantes razões que me contara o tinham afinal decidido.
Assim, resolvi ficar em silêncio, arriscando-me a ser acusado de indiferença e mesmo de ingratidão. Penso que Giordano agiu do mesmo modo.
Cinco dias após o enterro de Luís, estava eu às onze horas da noite trabalhando à minha mesa, perto da lareira, sozinho e bastante deprimido, quando meu criado bateu à porta.
  Entre! — gritei.
Vítor entrou como um pé de vento e bateu a porta com força.
— O que houve? — perguntei espantado, erguendo a cabeça de meus papéis.
Quando meus olhos pousaram sobre ele notei que estava tremendamente pálido.
Vítor pôs-se a gaguejar, sem conseguir articular palavra alguma.
Eu não entendia o mistério e tornei a perguntar o que havia.
  O... o Sr. de Franchi está aqui — conseguiu balbuciar afinal —, e quer falar-lhe.
  Que estás dizendo, Vítor? — perguntei.
  A pura verdade, senhor — insistiu ele, com os olhos arregalados. — Eu mesmo não entendo.
   A que Sr. dê Franchi te referes? — perguntei, um pouco irritado com a tremedeira que via.
— Àquele seu amigo, senhor. . . o que veio aqui uma ou duas vezes.        
  Estás louco! Não sabes então que o perdemos há seis dias?
  Sei, senhor! Por isso é que estou tão nervoso. Ele tocou a campainha: quando abri a porta, dei um pulo para trás. Pediu licença, entrou e perguntou se o senhor estava em casa. Fiquei tão atrapalhado que respondi que sim. Ele acrescentou: "Vá dizer-lhe que De Franchi deseja falar-lhe". Não tive outro remédio senão vir.
Esfreguei os olhos num grande cansaço.
  Decididamente não estás bom da cabeça, Vítor! O vestíbulo mal iluminado fez com que tomasses gato por lebre. Ou dormiste mal esta noite e não entendeste direito o que te disseram. Volta e pergunta-lhe outra vez o nome.
  Não é necessário, senhor! Juro-lhe que não me enganei. Vi e ouvi muito bem.
  Nesse caso manda-o entrar.
Vítor olhou-me apavorado; encaminhou-se para a porta, abriu-a e, conservando-se dentro de meu quarto disse alto:   
— Tenha a bondade de entrar.
Eu não sabia o que pensar e esperava, entre curioso e apreensivo, o meu visitante. Imediatamente ouvi passos abafados pelo espesso tapete, passos que atravessaram toda a sala e se aproximaram do meu quarto.
Logo depois De Franchi aparecia realmente à porta do quarto.
Minha primeira impressão, confesso, foi de terror; levantei-me e dei um passo para trás.
  Peço desculpas por incomodá-lo a esta hora — disse ele —, mas acabo de chegar a Paris e não quis esperar até amanhã para falar-lhe.
Subitamente, minha estupidez recuou e fez-se luz no meu cérebro.
  Luciano! — exclamei, correndo para ele e dando-lhe um forte abraço. — É você mesmo! É você mesmo!
Não consegui impedir algumas lágrimas.
  Sim — respondeu ele —, sou eu mesmo.
De repente levei um choque: pelo tempo decorrido, a carta de Luís mal teria chegado a Ajácio, quanto mais a Sullacaro.
  Meu Deus! — exclamei. — Então você não sabe de nada!
  Sei de tudo.
  Como, tudo?
  Tudo o que aconteceu.
Virei-me para Vítor, que nos olhava ainda desconfiadamente:
  Retira-te e volta daqui a quinze minutos com uma bandeja bem servida. Você ceará aqui e dormirá aqui também, não é, Luciano?
  Aceito — respondeu o rapaz. — Não comi nada desde Auxerre. Além disso, como ninguém me conhece, ou melhor, como todos pareciam me reconhecer em casa de meu pobre irmão, não quiseram me  deixar entrar.  Saí de lá deixando a casa inteira em polvorosa.
  Na verdade, meu querido Luciano, a sua semelhança com Luís é tão grande que eu mesmo, há pouco, pensei estar enlouquecendo.
  Ah! — exclamou Vítor, que não conseguia deixar de olhar pára Luciano com os olhos arregalados. — Este senhor é o irmão. . .
  É, mas vai embora e trata de nos trazer a ceia — falei. Vítor saiu e nós ficamos sozinhos.
Tomei Luciano pelo braço, conduzi-o a uma poltrona e ofereci-lhe uma bebida, que não aceitou. Sentei-me numa pequena banqueta junto a ele.
  Então, Luciano — comecei, ainda bastante surpreendido de o ver ali —, você já estava viajando quando recebeu a notícia?
  Não, estava em Sullacaro.
  Mas isso é impossível. A carta de seu irmão não poderia ter chegado.
Luciano teve um sorriso amargo.
  O senhor esqueceu a balada de Bürger, meu caro Alexandre; os mortos andam depressa.
Estremeci.
   Que quer dizer com isso, Luciano?
  Esqueceu o que lhe contei a respeito de nossa família? As visitas que os De Franchi recebem quando algo de muito grave está para acontecer?
  Então você viu seu irmão!
  Sim.
  Quando?
   Na noite de 16 para 17.
  Ele lhe contou tudo? — sondei.
  Tudo, tudo.
  Disse-lhe que estava morto?
  Disse-me que havia sido morto; os mortos não podem mentir.
  Também lhe disse como?
  Num duelo.
  Por quem?
  Por um homem que se chama Château-Renaud.
  Mas não é possível! — atalhei. — Você soube disso de qualquer outra maneira!
  Acha que tenho vontade de brincar?
  Perdão, Luciano! Mas o que acontece entre você e seu irmão é tão estranho que fico sem saber o que pensar!
  Você se recusa a acreditar, não é assim? Eu compreendo. Mas vou lhe mostrar uma coisa — disse ele, abrindo a camisa e mostrando-me uma mancha azul visível na pele, exatamente acima da sexta costela direita. — O que acha disto?
Intrigado, examinei cuidadosamente a mancha.
  Foi justamente neste lugar que a bala entrou em seu irmão!
  E saiu por aqui, não foi? — continuou Luciano, pousando o dedo sobre o quadril esquerdo.
  É incrível! — exclamei.
  E agora, quer que lhe diga a hora exata em que ele morreu?
  Diga.
  Às nove horas e dez minutos.
Olhei-o durante um longo momento, completamente perplexo.
  Bem, Luciano, conte-me tudo desde o princípio — disse eu afinal.
CAPÍTULO 25


LUCIANO EM AÇÃO


Luciano acomodou-se na poltrona, recusou o cigarro que eu lhe ofereci e prosseguiu:
  É tudo muito simples. No dia em que meu irmão foi morto, eu havia saído muito cedo a cavalo, para visitar nossos pastores de Carboni. Eu acabara de ver as horas e guardara novamente o relógio no bolso quando recebi uma pancada tão forte do lado direito que perdi os sentidos. Ao reabrir os olhos eu estava estendido no chão, amparado por Orlandi, que me borrifava água no rosto. Meu cavalo se encontrava a poucos passos de distância, resfolegando e relinchando.
"Então — perguntou Orlandi —, o que houve afinal?"
  Eu próprio não sei — respondi. — Você não ouviu um tiro?
"Não."
  Tenho a impressão de que recebi uma bala aqui — disse eu, pondo a mão sobre o local onde sentira a dor.
Orlandi cocou a cabeça.
"Eu não ouvi nenhum tiro de espingarda ou pistola; além disso, não vejo nenhum buraco em sua roupa."
  Então — falei —, é meu irmão que acaba de ser morto!
"Ah — exclamou Orlandi —, isso é outra coisa."
  Resolvi abrir a camisa e verificar se havia algum ferimento: lá estava a mancha, nessa ocasião bem viva e quase sangrando. Por um momento me senti tão abatido e tonto com o choque que experimentara — continuou Luciano —, que quase voltei para casa. Pensei, contudo, em minha mãe: se eu regressasse mais cedo, teria que dar-lhe uma explicação e não saberia o que dizer.
"Por outro lado — prosseguiu o rapaz —, não queria lhe dar a notícia da morte de Luís sem ter absoluta certeza da mesma. Assim, continuei meu caminho e só voltei para casa às dez horas da noite. Minha mãe recebeu-me do mesmo modo de sempre, sem desconfiar de nada. Por um breve minuto falou sobre o meu cansaço visível, atribuído à viagem, e sugeriu que eu repousasse bastante.
"Imediatamente após a ceia — continuou meu amigo — subi para o quarto. Quando passei pelo corredor que você conhece, o vento subitamente apagou meu castiçal. Ia descer para tornar a acendê-lo quando, através das fendas da porta, vi luz no quarto de Luís. Imaginei logo: na certa Grifo veio fazer algo aqui e esqueceu-se de levar o castiçal.
"Abri a porta do quarto. Um círio ardia junto ao leito de meu irmão, e nesse leito jazia Luís deitado, nu e ferido. Não preciso dizer — suspirou Luciano — que fiquei um bom instante imobilizado de terror; depois, recobrando o sangue-frio, aproximei-me do leito. Toquei o corpo de Luís: já estava frio. Fora atingido por uma bala no mesmo lugar onde eu sentira a dor repentina; algumas gotas ainda escorriam da ferida aberta.
"Meu irmão havia sido morto, não havia dúvida. O desespero me tomou. Ajoelhei-me e, apoiando a cabeça no leito, pus-me a rezar com todas as forças que me restavam. Quando tornei a abrir os olhos, o quarto estava mergulhado na escuridão. O círio apagara-se. Apalpei o leito, mas só encontrei o vazio: o corpo de Luís havia desaparecido."
  Considero-me tão corajoso quanto qualquer outro, Alexandre — disse meu amigo —, mas quando saí do quarto, tateando, um suor frio molhava minha testa. Parei um momento no corredor para recobrar-me e desci para buscar outra vela. Minha mãe, entretanto, deu um grito ao me ver.
"O que tem você, Luciano?" — perguntou, olhando-me assustada. "Por que está tão pálido?"
  Não tenho nada — respondi. — Estou cansado, apenas. Apanhei imediatamente outro castiçal e tornei a subir. Uma grande curiosidade — apesar de meu coração continuar a bater desesperada-mente — fez-me entrar de novo no quarto de Luís. Dessa vez estava vazio. O círio desaparecera e a roupa de cama não apresentava o menor indício de haver recebido algum peso.
"No chão estava a minha primeira vela, que tornei a acender. Sentei-me numa cadeira e lembrei-me da pancada que me fizera cair do cavalo e da hora que vira marcada no relógio. Meu irmão fora morto exatamente àquela hora, nove horas e dez minutos da manhã. Exausto e abatido pela dor, fui para meu quarto e deitei-me num esta­do de nervos deplorável. Levei muito tempo a dormir. Quando o can­saço me dominou, tive um longo sonho em que Luís me apareceu. Vi a cena do duelo, vi o homem que matou Luís e ouvi a voz de meu irmão pronunciar um nome: Château-Renaud."
  Infelizmente tudo isso é verdade, Luciano. Veio tratar dos negócios de Luís aqui?
  Vim simplesmente matar o homem que matou meu irmão.
  Matar Château-Renaud?
  Fique tranqüilo — disse Luciano. — Não o farei à maneira corsa, atrás de uma árvore ou por cima de um muro, e sim à maneira francesa, com luvas brancas e punhos de renda. Em suma, num duelo.
  Sua mãe sabe que você veio a Paris com essa intenção?
  Sim.
  E deixou-o vir?
  Beijou-me e disse: "Vai!" Para uma verdadeira corsa como minha mãe, eu não poderia ter outra atitude.
  E então você veio.
  Aqui estou.
Olhei pensativamente seu queixo determinado, sua ampla testa.
  Mas, quando estava vivo, seu irmão não queria ser vingado — falei. — Na carta que escreveu e que eu enviei, diz ter morrido de uma febre cerebral.
  Bem — disse Luciano com um sorriso amargo —, provavelmente mudou de opinião depois de morto.
Nesse momento Vítor veio nos avisar que a ceia estava servida, e nos dirigimos para a sala de jantar.
Luciano comeu com grande apetite, como um homem livre de preocupações.
Depois da ceia acompanhei-o até o quarto e desejei-lhe boa noite. Luciano agradeceu-me com um forte aperto de mão. Sua calma era aquela que nas pessoas fortes acompanha uma resolução inabalável.
Na manhã seguinte, logo que Luciano me deu por acordado, entrou em meu quarto.
  Ouça, Alexandre, não quer acompanhar-me a Vincennes? Quero ver o lugar onde tombou meu irmão. Contudo, se tiver algo importante a fazer, não se preocupe. Irei sozinho.
  E quem lhe mostrará o lugar? — perguntei.
  Eu mesmo saberei encontrá-lo. Não lhe disse que o vi em sonho?
Olhei-o estarrecido. Até onde iria a misteriosa capacidade dos De Franchi?
  Irei com você, Luciano.
   Nesse caso, vista-se, enquanto escrevo a Giordano. Seu criado poderia levar-lhe o bilhete?
  Claro que sim.
  Obrigado — disse Luciano, saindo do quarto.
Regressou dali a dez minutos com um envelope, que entregou a Vítor.
Depois, descemos e tomamos o cabriolé que eu mandara buscar. A paisagem de Paris se desenrolava velozmente pela janela e pouco depois chegamos ao cruzamento.
Luciano virou-se para mim:
  Estamos perto, não é?
  Sim, a vinte passos daqui alcançaremos o ponto onde entra­mos no bosque.
Alguns instantes depois ele mandou parar o carro.
  Chegamos — disse Luciano.
Era justamente o lugar onde tínhamos de descer.
Luciano penetrou no bosque sem qualquer hesitação, como se já tivesse estado ali muitas vezes. Caminhou reto em direção ao barranco; quando chegou àquele ponto, orientou-se um instante e caminhou resolutamente para o lugar exato onde Luís tombara.
  Foi aqui — disse ele olhando para mim.
Em seguida, abaixou-se e tocou com os lábios a relva que ali crescia.
Ergueu-se então com o olhar brilhante e, atravessando toda a clareira até o ponto onde estivera Château-Renaud, acrescentou:
  Era aqui que ele estava — bateu com o pé no chão — e é aqui que você o verá cair amanhã.
  Mas Luciano. . .

  Ou ele é um covarde ou amanhã me dará uma desforra! — atalhou o rapaz. .
  Ouça, meu amigo — procurei explicar —, sabe perfeitamente que o costume sobre os duelos na França não admite outras conseqüências além das naturais conseqüências de um duelo. A desforra não se coloca de maneira nenhuma. Château-Renaud provocou seu irmão, bateu-se com ele, mas nada tem a ver com você.
Luciano olhou-me com os olhos cintilando.
  Ah! Quer dizer então que Château-Renaud tem o direito de provocar meu irmão porque este levou uma senhora amiga dele para casa, a pedido desta, uma mulher a quem Château-Renaud havia sordidamente enganado, e você concorda com ele? Château-Renaud matou meu irmão sabendo que ele nunca havia tocado numa arma, acertou-o com tanta segurança como se estivesse atirando naquele cabrito que nos olha, e eu não tenho o direito de provocar Château-Renaud? Ora, francamente!
Fiquei em silêncio. Luciano tinha razão.
  De mais a mais, fique,tranqüilo — continuou ele. — Você não terá nenhum trabalho: escrevi a Giordano e ele se encarregará de tudo. Quando chegarmos a Paris o caso estará resolvido.
  Por favor, Luciano, tente compreender. Simplesmente não quero vê-lo morto.
  Então, prometo que não morrerei — disse ele com um leve sorriso. — Acha que Château-Renaud aceitará minha proposta?
  Infelizmente sim — respondi. — Ele tem tão grande reputação de coragem que não duvido nem por um momento que aceitará.
  Nesse caso, tanto melhor — disse Luciano. — Vamos almoçar.
  Cocheiro — ordenei —, vamos à rua de Rivoli.
  Não — disse Luciano. — Sou eu quem o convida. Não era no Café de Paris que meu irmão costumava fazer as refeições?
  Sim.
  Então, ao Café de Paris! Além disso, marquei encontro com Giordano nesse restaurante.
Meia hora depois o cabriolé parou à porta do lugar.



CAPÍTULO 26


"SEU FILHO FOI VINGADO "


A entrada de Luciano no restaurante causou grande sensação.
O rumor da morte de Luís finalmente espalhara-se e o aparecimento de Luciano deixava todos, clientes e garçons, absolutamente perplexos.
Para nos isolarmos da curiosidade e do barulho em torno, instalamo-nos num reservado.
Luciano pôs-se calmamente a ler os jornais do dia com um sangue-frio que poderia ser tomado por insensibilidade para quem não o conhecesse.
Giordano apareceu no meio do almoço, pedindo desculpas pelo atraso.
Apesar de não se verem há quatro ou cinco anos, a única demonstração de amizade que os dois jovens corsos deram foi um vigoroso aperto de mão.
  Então,   como   foram   as   coisas?     perguntou  Luciano ansiosamente.
  Está tudo arranjado — respondeu ele.
— Château-Renaud aceita?
  Sim, mas com a condição de que o deixem em paz depois desse duelo.
   Oh! Ele pode ficar sossegado. Eu sou o último dos De Franchi. Você esteve com ele próprio ou com as testemunhas?
  Com ele próprio. Ficou combinado que Château-Renaud avisaria Châteaugrand e De Boissy. Padrinhos, armas e lugar serão os mesmos.
  Ótimo — disse Luciano, tranqüilo. — Agora, sente-se e almoce.
O barão sentou-se e Luciano pôs-se a falar de outros assuntos.
Depois do almoço, pediu-nos, a Giordano e eu, que comparecêssemos com ele ante o comissário de polícia que selara a casa de Luís, para identificá-lo como irmão do morto e proprietário do local. Luciano resolveu ficar na casa, pois desejava passar no quarto de Luís a última noite que antecedia ao duelo.
Essas providências tomaram grande parte do dia e quando terminaram o relógio já marcava seis horas da tarde. Deixamos Luciano sozinho, para que descansasse.
Marcamos encontro para as oito horas da manhã seguinte no apartamento de Luís. Antes de sairmos, Luciano fez-nos uma estranha pergunta:
   Onde estão as pistolas que Luís usou no duelo?
  Tornei a vendê-las a Devisme — respondeu Giordano. — Não queria ter em casa as armas que mataram um amigo.
  Seria difícil consegui-las novamente?
Giordano olhou-me rapidamente.
  Bem — disse ele —, verei o que posso fazer.
  Obrigado, meu velho — disse Luciano, segurando-lhe o ombro.
Despedimo-nos de Luciano e fomos direto à casa Devisme, onde felizmente concluímos o negócio por seiscentos francos. As pistolas milagrosamente ainda estavam à venda.
No dia seguinte, quando faltavam quinze minutos para as oito horas, estava eu em casa de Luciano.
Ao entrar, imediatamente tive um grande choque: lá estava Luciano à mesma mesa do irmão, também escrevendo, como eu vira Luís de Franchi fazer antes do duelo. Também como ele, seu irmão estava muito pálido, embora calmo.
  Bom dia — disse Luciano, levantando a cabeça. — Estou escrevendo à minha mãe.
  Espero que lhe esteja enviando notícias melhores do que as enviadas por Luís.
  Sabe o que lhe digo? Que enfim pode ficar tranqüila, pois seu filho foi vingado.
  Como pode falar com esta certeza?
Luciano olhou-me gravemente.
— Meu irmão não lhe comunicou sua morte antecipadamente? Pois eu lhe anuncio também antecipadamente a de Château-Renaud.
Levantou-se e veio colocar-me um dedo na têmpora.
  Vou meter-lhe uma bala aqui.
  Nada acontecerá com você, não é?
  Nada. Eu não serei atingido.
  Mas não seria melhor esperar até o fim do duelo para remeter a carta?
  Não, não creio.
Em seguida tocou a campainha. Quando o criado apareceu, entregou-lhe a carta.
  José, leva isto ao correio.
  Tornou a ver Luís? — perguntei.
  Sim.
Que misteriosa força era aquela que fazia um dos adversários saber, nesses dois duelos, que um deles estava antecipadamente condenado?
O criado veio anunciar que Giordano chegara. Como já eram oito horas, nos apressamos a partir.
Luciano estava com tanta pressa de chegar e incentivou tanto a correria do cocheiro que chegamos a Vincennes dez minutos antes da hora.
Nossos adversários chegaram às nove horas em ponto, todos a cavalo. Desceram a uns vinte passos de nós, entregando as rédeas aos criados que os acompanhavam.
Château-Renaud não se aproximou. Entretanto, dirigiu um rápido olhar a Luciano, empalidecendo. Toda a segurança que exibira antes e durante o duelo com Luís desaparecera. Seu nervoso era mais do que evidente.
Virou-nos as costas e pôs-se a cortar, com o chicote que trazia na mão, as pequenas flores que nasciam entre a relva.
  Aqui estamos de novo, senhores — disse Châteaugrand quando chegou até nós, acompanhado de De Boissy. — Mas conhecem as condições: este será o último duelo de Château-Renaud contra parentes ou amigos de Luís ou Luciano de Franchi. Ele não pretende, de forma nenhuma, aceitar um outro.
  Está combinado — disse Giordano, enquanto concordava com a cabeça.
  Trouxeram as armas? — perguntou Châteaugrand.
   Aqui estão — disse Giordano. — São as mesmas do duelo anterior.
  O Sr. Luciano de Franchi então as conhece?
  Tanto quanto o Sr. de Château-Renaud, que também se serviu delas uma vez.
  Muito bem, cavalheiros. Vamos, Château-Renaud.
Penetramos imediatamente no bosque sem pronunciarmos mais qualquer palavra. Parecia-me estar vivendo um sonho, caminhando novamente em direção ao local onde vira Luís tombar morto e agora para assistir o seu irmão. Eu tinha a garganta cerrada e lutava contra a minha própria emoção.
Chegamos finalmente à clareira.
Château-Renaud tentava controlar-se, mas eu sentia a diferença entre sua atitude de agora e a certeza com que caminhara para o combate anterior. De vez em quando lançava um olhar a Luciano, e sua fisionomia exprimia uma grande preocupação.
Talvez a semelhança entre os dois irmãos o impressionasse, fazendo com que temesse Luciano como uma espécie de sombra vingadora de Luís.
Luciano, ao contrário de Château-Renaud, era a imagem do homem seguro de sua vingança.
Antes que lhe indicassem o lugar foi colocar-se exatamente no que seu irmão ocupara, dias atrás. Isto forçou Château-Renaud a parar também no mesmo lugar de antes.
Luciano recebeu sua arma com um leve sorriso de alegria. Château-Renaud, entretanto, segurou rigidamente a pistola que lhe ofereciam e tornou-se lívido. Em seguida, passou a mão entre a gravata e o pescoço, como se estivesse sufocando.
Eu olhava com curiosidade a cena em que um De Franchi batia-se contra Château-Renaud: agora, no entanto, tudo estava mudado. Era Château-Renaud quem parecia encurralado.
Ali estava aquele homem — jovem, rico, elegante, que na manhã anterior parecia ter longos anos de vida à sua frente; agora, contudo, com a fronte banhada de suor e a angústia no coração, sentia-se condenado.
  Estão preparados, senhores? — perguntou Châteaugrand.
  Perfeitamente — respondeu Luciano.
Château-Renaud assentiu com a cabeça.
Eu, temendo o pior, não quis assistir ao desenlace do duelo. Virei-me de costas. No momento seguinte, ouvi o sinal e dois disparos sucessivos.
Quando me voltei, Château-Renaud estava estendido no chão, imóvel. Aproximei-me dele: uma bala penetrara-lhe na têmpora, exatamente no lugar indicado por Luciano.
Este, com a pistola abaixada, permanecia silencioso e imobilizado. Ao ver-me chegar junto dele, entretanto, deixou cair a arma e rompeu em soluços.
  Meu irmão! Meu pobre irmão! — dizia entre lágrimas.
Talvez as primeiras derramadas por aquele bravo filho da Córsega.

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