domingo, 1 de maio de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Capítulos 26 ao 34

CAPíTULO XXVI
Já o Verão ia a meio, quando Mr. Edgar cedeu, ainda que com
relutância, aos pedidos deles, e Miss Catherine e eu fomos dar
o nosso primeiro passeio para nos encontrarmos com o primo.
Estava um dia enfadonho e carregado; o sol não brilhava,
mas as nuvens que salpicavam o céu não ameaçavam chuva.
Tínhamos marcado o encontro junto ao marco de pedra da
encruzilhada. Contudo, ao chegarmos, um pastorinho enviado por
ele disse-nos:
-- Master Linton está acolá, na banda de cá do Alto, e fica
muito agradecido se forem ter com ele.
-- Master Linton ignorou a primeira recomendação do tio
disse eu -- o seu pai disse-nos para não sairmos da Granja e
nós acabámos de sair dela.
-- Não faz mal, viramos os nossos cavalos para este lado
assim que chegarmos ao pé dele -- respondeu a minha
companheira -- e damos o passeio em direcção a
casa.
Mas quando o encontramos, a pouco mais de um quarto de
milha da casa dele, descobrimos que não tinha vindo a cavalo e
vimo-nos forçadas a desmontar e a deixar os cavalos a pastar.
Estava deitado sobre a urze, à espera de que nos
aproximássemos e só se levantou quando já estávamos muito
perto dele. Caminhava com tanta dificuldade e estava tão
pálido que exclamei de imediato:
-- Master Heathcliff, o menino não está em condições de
passear. Está com muito má cara! -- A menina olhou-o com
tristeza e espanto, e a expressão de alegria que se desenhava
nos seus lábios transformou-se em preocupação e a satisfação
do reencontro deu lugar à pergunta ansiosa: estás pior?
-- Não, estou melhor, muito melhor -- disse ele, ofegante
e :, trémulo, segurando-lhe a mão como se precisasse de
apoio, enquanto os seus grandes olhos azuis a miravam de alto
a baixo; as fundas olheiras tinham transformado o olhar
languido de outros tempos num olhar selvagem e vazio.
-- Mas tu pioraste! -- insistia a prima -- Pioraste desde a
última vez que te vi: estás mais magro e...
-- Estou cansado -- interrompeu ele, precipitadamente. --
Está muito calor para andar a pé; descansemos aqui um
bocadinho. De manhã sinto-me muitas vezes mal. O meu pai diz
que é de eu crescer muito depressa.
Pouco convencida, a menina sentou-se e ele deitou-se a seu
lado.
-- Isto aqui é parecido com o teu paraíso -- disse ela,
tentando simular alguma alegria. -- Lembras-te dos dois dias
que concordámos em passar juntos, no lugar e da forma que
mais nos aprouvesse? Este parece quase o teu lugar; a não ser
pelas nuvens, mas são tão vaporosas e suaves que ainda é
melhor que um sol aberto. Na próxima semana, se puderes,
iremos a cavalo até ao parque da Granja e experimentarás o meu
paraíso.
O primo parecia não fazer ideia do que a prima estava a
falar e tinha dificuldade evidente em manter uma conversa. O
desinteresse mostrado por todos os temas que ela trazia à
baila e uma igual incapacidade para a distrair eram tão
óbvios que Cathy não conseguia esconder o seu desapontamento.
Tinha-se operado nele uma transformação completa. A rabugice,
que poderia ter sido sublimada em afecto através de muito
carinho, tinha-se tornado numa lânguida apatia. Tinha menos do
temperamento rabugento da criança que se irrita e se arrelia
para depois ser mimada e mais da melancolia do inválido
inveterado que repele qualquer consolo e está sempre pronto a
considerar o riso bem-humorado dos outros como um insulto.
Catherine, apercebendo-se, tal como eu, de que a nossa
companhia era para ele mais um castigo do que uma benção, não
teve escrúpulos em sugerir a nossa partida.
Esta proposta inesperada tirou Linton da letargia em que se
encontrava e provocou-lhe uma estranha agitação. Lançou um
olhar receoso em direcção ao Alto e implorou-lhe que ficasse
pelo menos mais meia hora.
-- Acho que estarias mais confortável em casa do que aqui
sentado -- disse Cathy. Hoje não te consigo distrair, nem
contando :, histórias, nem cantando, nem conversando.
Amadureceste mais do que eu nestes seis meses e agora não
gostas das minhas brincadeiras. É claro que se te conseguisse
entreter, de bom grado ficaria.
-- Fica, para descansares -- sugeriu ele. -- Olha,
Catherine, não penses que estou *muito* doente. E não fales
disto a ninguém. Estou assim porque o tempo e o calor que me
põem mole; além disso fartei-me de andar a pé muito antes de
vocês chegarem. Diz ao tio Edgar que vou sobrevivendo, está
bem?
-- Dir-lhe-ei que foi isso que *tu* disseste, Linton, mas
não sou da mesma opinião observou a minha jovem patroa, sem
entender o porquê da sua pertinaz insistência no que era
obviamente uma mentira.
-- Estarei aqui novamente na próxima quinta-feira --
continuou ele, evitando o olhar perplexo da prima. -- E
agradece ao teu pai ter permitido que tu viesses; os meus mais
sinceros agradecimentos, Catherine. E, se por acaso
encontrares o meu pai e ele perguntar por mim, não o deixes
perceber que estive sempre calado e amuado. Não te mostres
triste e abatida como estás agora, senão ele fica zangado.
-- Pouco me importo que ele se zangue -- exclamou Cathy,
supondo-se ela o alvo.
-- Mas importo-me eu! -- disse o primo, estremecendo. --
*_Não* o provoques, Catherine, nem o ponhas contra mim, que
ele é muito severo.
-- Ai ele é muito severo com o menino? -- perguntei. -- Já
se fartou de ser indulgente e revolveu passar do ódio
silencioso às acções?
Linton olhou para mim mas não respondeu. E Cathy, depois de
se ter mantido sentada ao lado do primo durante mais de dez
minutos, durante os quais ele adormeceu encostado ao seu
peito, abrindo apenas a boca para emitir gemidos de exaustão
ou dor, começou a procurar distracções colhendo mirtilos e
dividindo-os comigo. Não os oferecia ao primo, pois já sabia
que o ia aborrecer.
-- Já passou meia-hora, Ellen! -- sussurrou por fim ao meu
ouvido. -- Não vejo razão para ficarmos aqui mais tempo. Ele
adormeceu e o papa deve achar que são horas de voltarmos.
-- Mas não podemos deixá-lo aqui a dormir respondi. --
Espere até ele acordar, tenha paciência. A menina estava
desejosa por este momento, mas a sua vontade de ver o pobre
Linton desaparecera bem depressa. :,
-- Por que é que *ele* me quis ver? -- perguntou Catherine.
-- Gostava mais dele no auge do mau humor do que agora.
Parece que este encontro é uma obrigação que tem de cumprir
com medo de que o pai lhe ralhe. Mas a verdade é que não vou
voltar aqui só para agradar a Mr. Heathcliff, sejam quais
forem as razões que ele tem para obrigar o Linton a
submeter-se a esta penitência. E, apesar de estar contente por
ver que está melhor, tenho pena de o vir encontrar muito
menos simpático e muito menos afeiçoado a
mim.
-- Acha então que a saúde *dele* melhorou? --
perguntei.
-- Acho -- respondeu. -- Porque ele sempre fez questão de
empolar o sofrimento. Talvez não esteja *muito* melhor, como
me pediu para eu dizer ao papa, mas está melhor.
-- Nesse ponto não estamos de acordo, Miss Cathy --
sublinhei. -- A mim parece-me muito pior.
Nessa altura, Linton acordou estremunhado e perguntou se
alguém tinha chamado pelo seu nome.
-- Não -- respondeu a prima. -- Só se tivesse sido em
sonhos. Não consigo perceber como consegues adormecer ao ar
livre e a meio da manhã.
-- Pareceu-me ouvir o meu pai -- disse, respirando com
dificuldade e erguendo o olhar para a encosta sombria. -- Têm
a certeza de que ninguém chamou por mim?
-- A certeza absoluta -- assegurou a prima. Só a Ellen e eu
é que falávamos do teu estado de saúde. Sentes-te realmente
mais forte do que quando nos separamos no Inverno? Se assim é,
tenho a certeza de que uma coisa não melhorou: a tua
consideração por mim. Mas diz lá, estás ou não estás melhor?
À medida que falava, as lágrimas corriam-lhe pelas faces:
-- Estou melhor, sim!
E, ainda influenciado pela voz imaginária, ergueu os olhos
para procurar o pai.
Miss C athy levantou-se.
-- Por hoje chega. Temos de partir e não vou esconder que
fiquei extremamente desapontada com o nosso encontro, embora
só to diga a ti; e não penses que é por ter medo de Mr.
Heathcliff.
-- Cala-te -- murmurou o primo. -- Cala-te, por amor de
Deus! Ele vem aí. -- E agarrou-se ao braço da menina, tentando
detê-la; mas, quando esta o ouviu dizer que o pai vinha aí,
libertou-se apressadamente da mão do rapaz e chamou a Minny
que acorreu, obediente como um
cão. :,
-- Estarei aqui outra vez na próxima quinta-feira disse
ela, saltando para a sela. Adeus. Depressa, Ellen!
E foi assim que o deixámos. Mal se apercebeu da nossa
partida, preocupado como estava com a aproximação do
pai.
Antes de chegarmos a casa, o descontentamento de Catherine
transformou-se numa sensação confusa e complexa, misto de
piedade e desgosto, salpicada de incertezas e receios sobre a
verdadeira situação de Linton, tanto física como familiar. Eu
compartilhava as suas dúvidas, embora a tivesse convencido a
não falar nesse assunto, uma vez que teríamos um segundo
encontro para as comprovarmos.
O meu patrão pediu-nos que lhe relatássemos o encontro: os
agradecimentos do sobrinho foram-lhe devidamente transmitidos,
Miss Cathy contou o resto sem entrar em grandes detalhes e eu
também falei do passeio muito por alto, pois não sabia o que
devia contar e o que devia omitir.
CAPÍTULO XXVII
Sete dias se passaram, cada qual marcado pelo acelerado
agravamento do estado de saúde de Edgar Linton. A doença que,
durante meses, o fora consumindo lentamente, apossara-se agora
dele com avassaladora rapidez.
Se dependesse de mim, de bom grado teria iludido Catherine,
mas a sagacidade do seu espírito não a deixava enganar.
Instintivamente, pressentia a terrível probabilidade que a
pouco e pouco se avolumava em certeza, e nela cismava dia e
noite.
Quando chegou a quinta-feira, não teve coragem para
mencionar o passeio a cavalo; fui eu a fazê-lo e a obter
permissão para a nossa saída; o quarto do pai e a biblioteca,
onde ele passava os breves momentos que lhe era possível
estar a pé, eram agora todo o mundo de Catherine: lamentava
cada momento que não pudesse estar à sua cabeceira ou sentada
junto dele. Andava tão pálida e abatida, das vigílias e do
sofrimento, que o meu patrão de bom grado a libertou para o
que pensava ser uma agradável mudança de cenário e de
companhia, servindo-lhe de algum conforto a esperança de que
ela não ficaria completamente sozinha após a sua morte.
Agarrava-se à ideia (digo-o por vários comentários que
deixou escapar) de que o sobrinho aliava à semelhança física
que tinha com ele também uma semelhança moral; na verdade, as
cartas de Linton pouco ou nada davam a conhecer do seu
carácter arrevesado, e eu, por desculpável fraqueza, sempre me
abstive de corrigir esse erro, perguntando-me de que serviria
perturbar os seus últimos momentos com coisas que ele não
tinha: possibilidade nem oportunidade de constatar.
Adiámos a nossa excursão para a parte da tarde; uma
tarde :, dourada de Agosto: o ar das colinas chegava até nós
tão cheio de vida que parecia que quem o respirasse, ainda que
moribundo, ganharia novo alento.
O rosto de Catherine condizia com a paisagem -- sombras e sol
alternando-se em rápida sucessão; porém, as sombras
demoravam-se mais que os fugazes raios de sol, e o seu pobre
coração censurava-se até mesmo por se permitir este breve
alheamento dos seus cuidados.
Avistámos Linton à nossa espera no mesmo lugar que tinha
escolhido da outra vez. A minha menina apeou-se e disse-me
que, como estava disposta a demorar-se muito pouco tempo,
seria melhor que eu ficasse a segurar o cavalo e não
desmontasse; não concordei, pois não me arriscaria a perder de
vista, por um minuto que fosse, quem me fora confiado. De modo
que subimos juntas a encosta coberta de
urzes.
Desta vez, Master Heathcliff acolheu-nos com grande
animação; não a animação própria da felicidade ou mesmo da
alegria, mas algo mais parecido com o medo.
-- Já é tão tarde! -- censurou-a ele, com a voz
entrecortada, custando-lhe a falar. -- É verdade que o teu
pai está muito doente? Até pensei que não viesses.
-- *_Por que* não és sincero? -- exclamou Catherine,
engolindo a sua saudação. -- Por que não dizes de uma vez que
não me queres? É estranho, Linton, que pela segunda vez me
tivesses chamado aqui propositadamente sem outra razão, ao que
parece, que a de nos atormentarmos um ao outro!
-- Linton estremeceu e lançou-lhe um olhar meio suplicante,
meio envergonhado, mas a prima não estava
com paciência para tolerar um comportamento tão enigmático.
-- O meu pai está muito doente -- continuou. -- Por que
razão me fizeste sair do seu lado; por que não me desobrigaste
da minha promessa, quando o teu desejo era que eu não a
cumprisse? Vá, exijo uma explicação! Não estou com cabeça para
brincadeiras ou frivolidades, nem hoje estou com disposição
para aturar os teus
caprichos!
-- Os meus caprichos! -- murmurou -- E quais são eles? Por
amor de Deus, Catherine, não fiques tão zangada! Despreza-me
quanto queiras; sou um desgraçado, um inútil e um cobarde!
Todo o desdém será pouco. Mas sou demasiado insignificante
para tanta fúria -- odeia o meu pai e limita-te a
desprezar-me! :,
-- Só dizes disparates! -- repontou Catherine furiosa. --
Que grande palerma! Vejam só! Treme como se eu fosse
bater-lhe! Não precisas de pedir que te desprezem, Linton; é
uma graça que todos te concederão espontaneamente. Desaparece!
Vou mas é voltar para casa. É parvoíce arrastar-te para longe
da lareira e fingir... que fingimos nós, afinal? Larga-me o
vestido! Se tivesse pena de ti por chorares e te mostrares tão
assustado, deverias recusar semelhante piedade! Ellen, faz-lhe
ver como a sua conduta é vergonhosa. Levanta-te e não desças
ao nível de um réptil abjecto. Isso não!
Banhado em lágrimas e com a agonia estampada no rosto,
Linton atirou-se para o chão, sacudido por convulsões de
refinado terror.
-- Oh! -- soluçou -- Não posso suportar isto por mais
tempo! Catherine, Catherine, eu sou também um traidor, e não
me atrevo a revelar-te a minha traição! Mas, se me abandonas,
ele mata-me! *_Minha querida* Catherine, a minha vida está nas
tuas mãos... E tu disseste que me amavas... Que mal te poderia
isso fazer? Já não te vais embora, pois não? Minha gentil,
minha doce e generosa Catherine! E tu talvez *concordes*... e
ele me deixe morrer contigo!
Perante tão exacerbada angústia, Catherine inclinou-se para
o ajudar a pôr-se de pé. A velha ternura indulgente
sobrepôs-se à irritação, deixando-a profundamente alarmada e
comovida.
-- Concordar com quê? -- quis ela saber. -- Em ficar?
Explica-me o significado desta estranha conversa e ficarei.
Contradizes as tuas próprias palavras e confundes-me!
Acalma-te, sê sincero e confessa de uma vez todos os teus
pesares. Não serias capaz de me fazer mal, pois não Linton?
Nem deixarias que nenhum inimigo me prejudicasse, se o
pudesses evitar? Acredito que sejas um cobarde perante ti
próprio, mas nunca um cobarde, traidor da tua melhor
amiga.
-- Mas o meu pai ameaçou-me -- balbuciou o rapaz,
entrelaçando os dedos magros, -- e eu tenho medo dele. Tenho
medo dele! Não me *atrevo* a contar-te!
-- Pois muito bem! -- volveu Catherine, com desdenhosa
compaixão. -- Guarda o teu segredo, eu não sou cobarde --
salva-te tu. Eu não tenho medo!
A sua magnanimidade provocou as lágrimas do rapaz; chorava
desenfreadamente, beijando as mãos dela, que o amparavam;
porém, não conseguia ganhar coragem para falar.
Eu tentava descortinar qual seria o mistério, decidida a
que, se dependesse de mim, Catherine nunca iria sofrer para o
beneficiar a ele ou a quem quer que fosse. Nisto, escutei um
rumor por entre as :, urzes, olhei para cima e deparei com Mr.
Heathcliff, que se aproximava de nós, vindo das b andas do
Alto dos Vendavais. Não se dignou sequer olhar para os meus
companheiros, embora estes estivessem demasiado próximos para
que os soluços de Linton passassem despercebidos. Saudando-me
num tom quase caloroso, que não dirigia a mais ninguém, e de
cuja sinceridade eu não podia deixar de duvidar, disse:
-- Que surpresa ver-te tão perto de minha casa, Nelly! Como
vão as coisas na Granja? Ora conta lá! Corre o rumor -
acrescentou, baixando o tom, -- de que Edgar Linton está à
beira da morte; talvez exagerem o seu mal?
-- Não. É verdade. O meu patrão está a morrer --
respondi-lhe. -- Será uma tragédia para todos nós, mas uma
benção para ele!
-- Quanto tempo achas que pode durar? -- perguntou.
-- Francamente, não sei -- repliquei.
-- Se faço a pergunta -- continuou, olhando para os dois
jovens, imóveis sob o seu olhar (_Linton parecia não ousar
mover-se ou levantar a cabeça sequer e, por sua causa,
Catherine também não podia mexer-se) -- é porque este rapaz
parece disposto a contrariar-me e convinha-me que o seu tio
se fosse antes dele. Então, este palerma tem-se portado sempre
assim? Mas eu já lhe dei uma boa ensinadela por causa das suas
choradeiras. Ele mostra-se geralmente ` animado com Miss
Lineon?
Animado? Não senhor, pelo conerário, está sempre muito abatido
-- respondi. -- Basta olhar para ele para se ver que, em vez
de andar a vaguear pelos montes com a namorada, devia estar na
cama, nas mãos de um médico.
-- Para lá há-de ir, daqui a um dia ou dois -- murmurou
Heathcliff. -- Mas antes... Levanta-te, Linton! Levanta-te!
gritou-lhe. -- Não te rojes no chão! Levanta-te imediatamente!
Linton afundou-se novamente num paroxismo de terror
incontrolável, causado pelo olhar do pai, creio eu. Nenhuma
outra coisa poderia provocar semelhante humilhação. Fez várias
tentativas para obedecer, mas a sua pouca resistência estava
de momento aniquilada e voltou a tombar com um gemido.
Mr. Heathcliff avançou para ele e ergueu-o, encostando-o a
um montículo relvado.
-- Agora é que me vou zangar! -- vociferou com contida
ferocidade. -- E se não dominares essa fraqueza de
espírito... *_Maldito* sejas! Levanta-te imediatamente! :,
-- Eu levanto-me, papá! -- ofegou Linton. -- Mas deixe-me
em paz, senão desmaio! Juro que cumpri as suas ordens.
Catherine, dá-me a tua mão.
-- Apoia-te na minha -- disse-lhe o pai -- e põe-te de pé!
Pronto! Apoia-te no braço da tua prima... isso, olha para
*ela*. A menina há-de pensar, Miss Linton, que sou o próprio
Diabo para provocar semblante terror. Seja gentil e
acompanhe-o até casa, sim? Todo ele treme se lhe toco.
-- Linton, querido! -- sussurrou Catherine. -- Eu não posso
ir contigo até ao Alto dos Vendavais... O papá proibiu-me... O
teu pai não te vai maltratar; de que tens tanto medo?
-- Não posso voltar àquela casa... -- explicou o rapaz. --
Não *posso* voltar a entrar naquela casa sem ti!
-- Acaba já com isso... -- gritou-lhe o pai. -- Respeitemos
os escrúpulos filiais de Catherine. Nelly, leva-o para casa,
que eu vou, sem demora, seguir o teu conselho e chamar o
médico.
-- Pois faz o senhor muito bem -- respondi, -- mas é minha
obrigação ficar com a minha patroa. Cuidar do seu filho não é
tarefa minha.
-- Já sei que és muito teimosa! -- resmungou Heathcliff. --
Não me digas que vou ter de dar um beliscão no menino e pô-lo
a gritar para despertar a tua caridade. Vamos lá, herói. Estás
disposto a voltar escoltado por mim?
Aproximou-se dele outra vez e esboçou o gesto de agarrar a
frágil criatura; mas, recuando, Linton agarrou-se à prima e
implorou-lhe que o acompanhasse, com uma impertinência que
não admitia recusa.
Por mais que discordasse, eu não podia impedi-la; na
verdade, como poderia ela recusar-se? Não conseguíamos
descortinar o que o enchia de pavor; mas ele ali estava, e tão
impotente que a mais pequena contrariedade parecia capaz de o
levar à loucura.
Quando chegámos à porta, Catherine entrou e eu fiquei à
espera cá fora até que ela amparasse o inválido até uma
cadeira e voltasse a sair, mas Mr. Heathcliff empurrou-me para
dentro, dizendo:
-- A minha casa não está empestada, Nelly; e hoje sinto-me
muito hospitaleiro; senta-te e deixa-me fechar a porta.
Fechou a porta e trancou-a logo de seguida. Estremeci.
-- Vão tomar chá antes de voltarem para casa --
acrescentou. -- Estou sozinho. O Hareton foi levar umas
cabeças de gado aos Lees, e a Zilah e oJoseph saíram para
gozar um dia de folga. E, apesar de :, estar acostumado a
ficar sozinho, quando posso, prefiro ter uma companhia
interessante. Miss Linton, sente-se ao lado *dele*. Dou-lhe
aquilo que tenho; não é que o presente valha muito, mas é tudo
o que tenho para lhe oferecer. Estou a falar do Linton. Como
ela me olha fixamente! É estranho o sentimento selvagem que me
despertam todos os que parecem ter medo de mim! Se tivesse
nascido num lugar onde as leis fossem menos severas e os
gostos menos delicados, passaria uma noite bem divertida com a
lenta dissecação daqueles dois.
Respirou fundo, deu um murro na mesa e praguejou para si
mesmo:
Que inferno. Como os odeio!
-- Eu não tenho medo de si! -- exclamou Catherine, que não
pôde ouvir a última parte do discurso.
Avançou para ele com os olhos negros faiscando de cólera e
resolução.
-- Dê-me essa chave! Dê-ma já! Nem que estivesses fome,
comeria ou beberia o que quer que fosse nesta casa.
Mr. Heathcliff segurava a chave com a mão que tinha em cima
da mesa. Ergueu os olhos, algo surpreendido pela ousadia de
Catherine, ou talvez recordado, pela voz e pelo olhar, de quem
ela herdara essa tenacidade.
Ela, entretanto, agarrou na chave e quase conseguiu
arrancá-la aos seus dedos frouxos; mas este gesto trouxe-o de
volta ao presente e ele recuperou a chave de
imediato.
-- Agora, Catherine Linton -- advertiu ele -- saia da minha
frente ou serei forçado a atirá-la ao chão, o que deixaria
Mrs. Dean furiosa.
Sem fazer caso do aviso, Catherine agarrou-lhe outra vez a
mão fechada, tentando aliviá-la do seu conteúdo.
-- *_Nós vamo-nos* embora! -- repetia, fazendo os mais
denodados esforços para afrouxar aqueles músculos de ferro;
mas, vendo que as unhas não surtiam grande efeito, aplicou-lhe
os dentes ferozmente.
Mr. Heathcliff lançou-me um olhar que, por momentos, me
impediu de interferir. Catherine estava demasiado atenta à mão
dele para se dar conta da expressão do seu rosto. Subitamente,
ele abriu a mão, libertando o objecto de disputa; porém, antes
que Catherine conseguisse apanhá-lo, ele agarrou-a com a mão
livre e, :, puxando-a para cima dos joelhos, deu-lhe com a
outra mão uma série de bofetadas de um e outro lado da cabeça,
das quais uma só seria suficiente para cumprir a ameaça de a
atirar ao chão, não estivesse ela firmemente segura entre as
suas pernas.
Avancei para ele, furiosa perante violência tão demoníaca.
-- Pare! -- gritei-lhe -- Grande patife!
Um murro no peito fez-me calar (eu sou gorda e depressa
perco o fôlego). Com o soco e a raiva, cambaleei entontecida,
com a impressão de que estava prestes a sufocar ou que me ia
rebentar alguma veia.
A cena acabou em dois minutos. Catherine, já liberta,
apertava as têmporas entre as mãos, como se não tivesse a
certeza de ainda possuir as orelhas. Tremia como varas verdes,
a pobrezinha, e apoiou-se na mesa, completamente aturdida.
-- Como vê, sei como castigar as crianças... -- disse o
malvado, inclinando-se para apanhar a chave, que entretanto
caíra no chão. -- Vá ter com o Linton, como lhe ordenei e
chore à vontade! Amanhã serei seu pai o -- único pai que terá
daqui a alguns dias... e, então, apanhará muito mais. Mas a
menina aguenta, não é nenhuma fracalhota. Terá uma dose
diária, se eu voltar a vislumbrar esse génio diabólico no seu
olhar!
Em vez de se refugiar junto do primo, Cathy correu para
mim, ajoelhou-se e escondeu as faces ardentes no meu regaço,
chorando alto. Linton encolhera-se num canto do banco, calado
como um rato, congratulando-se decerto pelo correctivo ter
sido aplicado a alguém que não ele.
Vendo-nos a todos perturbados, Mr. Heathcliff levantou-se e
fez rapidamente um bule de chá. As chávenas estavam já
dispostas sobre a mesa. Encheu-as e trouxe-me uma.
-- Toma e lava aí as tuas mágoas! -- disse. -- E vê se
ajudas essas crianças malvadas, a tua e a minha. O chá não
está envenenado, embora tivesse sido eu a fazê-lo. Vou lá fora
procurar os vossos cavalos.
Assim que ele saiu, o nosso primeiro pensamento foi tentar
fugir dali imediatamente. Experimentámos a porta da cozinha,
mas estava trancada por fora. Olhámos para as janelas, mas
eram demasiado estreitas, até mesmo para o corpo esguio de
Cathy.
-- Master Linton -- gritei, vendo-nos prisioneiras -- o
menino sabe o que o diabólico do seu pai pretende, e vai
dizer-nos o que é. :,
Senão, deixo-lhe as orelhas tão quentes como ele deixou as
da sua prima.
-- Vá, Linton, tens de nos dizer... -- implorou Catherine.
-- Foi por tua causa que aqui vim, e será uma grande maldade
da tua parte se te recusares a dizer-nos o que se passa.
-- Tenho sede. Dá-me um pouco de chá e depois te direi --
exigiu ele. -- Afaste-se, Mrs. Dean. Detesto que se debruce
sobre mim. Catherine, estás a deixar cair as tuas lágrimas
dentro da minha chávena! Já não bebo isso. Traz-me
outra!
Catherine assim fez e enxugou as faces. Enojava-me o
comportamento daquele infeliz a partir do momento em que se
sentiu em segurança. O pavor que manifestara no urzal
desaparecera assim que entrara no Alto dos Vendavais.
Depreendi que fora ameaçado com os mais terríveis castigos se
não conseguisse atrair-nos até ali, e agora, conseguido o seu
propósito, os medos haviam desaparecido.
-- O meu pai quer que nos casemos... -- começou ele, depois
de beberricar um pouco de chá. -- Mas ele sabe que o teu pai
não consentira que nos casemos já e receia que eu morra antes
se esperarmos. Por isso, vamos casar-nos amanhã de manhã e,
por isso, tens de passar aqui a noite. Se fizeres o que ele
deseja, voltarás para casa de seguida levando-me contigo.
-- Levá-lo com ela, seu infeliz? -- exclamei. --
*_Casarem-se*? O homem está é doido! Ou toma-nos a todos por
tolos. E o menino imagina que esta menina tão linda, saudável
e bondosa se vai amarrar a um mono moribundo como o menino?
Acredita de verdade que *alguém*, e muito menos Miss
Catherine, o quererá para marido? O menino merecia era uns
açoites por nos ter atraído aqui com as suas intrujices. E não
me olhe com esse ar apatetado! Sou muito bem capaz de lhe dar
uns bons abanões pela sua traição desprezível e presunção
imbecil.
Ainda o sacudi ligeiramente, o que lhe provocou um ataque
de tosse e o fez recorrer aos habituais gemidos e prantos, o
que me valeu um olhar de censura de Catherine.
-- Ficar aqui toda a noite? Não! -- exclamou ela, olhando à
sua volta. -- Ellen, nem que eu tenha de deitar fogo à porta,
eu hei-de sair daqui.
E teria começado a cumprir de pronto essa ameaça, se
Linton, alarmado, não se tivesse levantado temendo novamente
pela sua segurança, prendendo-a nos seus braços débeis e
soluçando:
-- Não me queres salvar... não me queres levar para a
Granja? :, Oh, querida Catherine! Não podes ir-te embora e
deixar-me aqui. *_Tens* de obedecer ao meu pai, *deves*
obedecer-lhe!
-- Devo é obedecer ao meu pai -- replicou ela. -- E
poupá-lo a esta angústia cruel Toda a noite! Que irá pensar?
Já deve estar aflito. Nem que eu tenha de deitar alguma coisa
abaixo ou incendiar a casa para achar uma saída. Está calado!
Tu não corres perigo, mas se me impedires, Linton... Olha que
eu amo o meu pai mais do que te amo a ti!
O terror mortal que a fúria de Mr. Heathcliff nele
despertava restituiu ao rapaz a eloquência da cobardia.
Catherine estava desnorteada; não obstante, continuava
agarrada à ideia de voltar para casa e tentou, por seu turno,
convencer o primo a dominar o seu pavor egoísta.
Enquanto assim altercavam, reapareceu o nosso
carcereiro.
-- Os vossos cavalos fugiram -- anunciou. -- Então, Linton!
A choramingar de novo? Que te fez ela? Acaba lá com isso e
vai-te deitar. Dentro de um mês ou dois, meu rapaz, poderás
devolver-lhe as tiranias de agora com mãos vigorosas. Anseias
pelo amor verdadeiro, nada mais. Ela receber-te-á! Agora,
para a cama! A Zillah não está cá hoje e terás de te despir
sozinho. Caluda! Não quero caramunhas! Assim que estiveres no
teu quarto, não te incomodarei mais e já não precisas de ter
medo. Por sorte, portaste-te menos mal. Agora eu trato do
resto.
Proferiu estas palavras, segurando a porta para o filho
passar; este saiu, como um cachorro que desconfiasse que o
propósito do dono naquele instante era esborrachá-lo.
A porta foi de novo trancada. Mr. Heathcliff aproximou-se
da lareira, onde nós duas permanecíamos em silêncio. Catherine
ergueu os olhos, levando instintivamente a mão à cara, como se
aquela proximidade lhe reavivasse a sensação dolorosa.
Qualquer pessoa seria incapaz de se insurgir com severidade
contra aquele gesto infantil, mas ele lançou-lhe um olhar
carrancudo e resmungou:
-- Com que então não tem medo de mim? Disfarça bem a sua
coragem, pois *parece* perfeitamente aterrorizada!
-- Agora *tenho* -- retorquiu Catherine -- porque, se eu
continuar aqui, o papá vai ficar aflitíssimo; e como posso eu
tolerar a ideia de o afligir quando ele... quando ele... Mr.
Heathcliff, deixe-me voltar para casa! Eu prometo casar me com
o Linton -- o papá assim o deseja e eu também, porque o amo.
Por que razão há-de forçar-me a fazer algo que eu estou
disposta a fazer de livre vontade? :,
-- Ele que se atreva a obrigá-la! -- gritei eu. -- Ainda
existem leis neste país, graças a Deus, embora a gente esteja
no fim do mundo. Denunciá-lo-ia, mesmo que ele fosse
meu filho. Isto é um crime de que ninguém pode ser absolvido!
-- Basta! -- vociferou o desalmado. -- Estou farto dos teus
estardalhaços! *_Tu* estás proibida de falar. Miss Linton,
agrada-me deveras a ideia de o seu pai ficar aflito; nem vou
dormir com tanta satisfação. Não poderia consolidar mais o meu
propósito de a reter em minha casa nas próximas vinte e quatro
horas do que dizendo-me que o seu pai se vai afligir. Quanto
à sua promessa de desposar o Linton, tomarei providências para
que a cumpra, pois não deixará este lugar sem que o faça.
-- Pelo menos, deixe a Ellen ir avisar o meu pai de que me
encontro bem! -- implorou Catherine, chorando amargamente. --
Ou, então, case-me já. Pobre papá! Vai pensar que nos
perdemos, Ellen. Que havemos de
fazer?
-- Não! Vai é pensar que a menina está farta de tratar dele
e se escapou, para se distrair um pouco -- respondeu
Heathcliff. -- Não pode negar que entrou em minha casa de
livre vontade, desrespeitando as suas ordens em contrário. E
é muito natural que na sua idade deseje divertir-se e que se
cansasse de cuidar de um homem doente, sendo esse homem
*apenas* o seu pai. Catherine, os dias mais felizes da vida
dele acabaram quando os seus começaram. Suponho que a deve ter
amaldiçoado por ter vindo ao mundo. Eu, pelo menos assim fiz.
E há-de amaldiçoá-la quando morrer. Nesse ponto, estou de
acordo com ele. Não gosto de si! Por que havia de gostar?
Chore pr.aí. Pelo que vejo, será esse o seu passatempo
favorito a partir de hoje, a menos que o Linton a compense
das suas perdas. O seu previdente progenitor parece
convencido de que ele o fará. As suas cartas cheias de
conselhos e palavras de conforto divertiram-me bastante. Na
última recomendava ao meu tesouro para cuidar tem do dele; e
que fosse bondoso para com ele quando ele lhe pertencesse.
Cuidadoso e bondoso. Que paternal! Mas o Linton gasta em
proveito próprio todo o seu arsenal de cuidados e bondade.
Sabe ser um perfeito tirano. Torturaria todos os gatos, se
antes lhe arrancassem os dentes e as garras. Pode ter a
certeza de que terá belas histórias da sua *bondade* para
contar ao tio dele, quando voltar para
casa.
-- Ora assim é que é falar! -- volvi eu. -- Mostre o
carácter do :, seu filho e as semelhanças que tem consigo.
Talvez Miss Cathy pense duas vezes antes de aceitar para
marido semelhante réptil!
-- Chega de falar das *louváveis* qualidades dele! --
atalhou Heathcliff. -- Ou ela o aceita, ou fica aqui presa
contigo até à morte do teu patrão. Posso manter-vos aqui
perfeitamente ocultas. Se duvidas, incentiva-a a faltar à sua
palavra e terás oportunidade de julgares por ti própria!
-- Não faltarei à minha palavra! -- disse Catherine. --
Casarei com ele agora mesmo, se puder voltar à Granja dos
Tordos em seguida. Mr. Heathcliff, o senhor é um homem cruel,
mas não é nenhum demónio, e decerto não quererá, por *mera*
maldade, destruir irremediavelmente toda a minha felicidade.
Se o papá pensar que eu o abandonei de propósito e morrer
antes do meu regresso, como poderei eu continuar a viver? Já
sei que de nada serve chorar, mas vou ajoelhar-me aqui e não
me levantarei nem desviarei o olhar do seu rosto sem que os
seus olhos encontrem os meus! Não, não se vá embora! *_Olhe*
para mim! Não verá nos meus olhos nada que o provoque. Eu não
o odeio. Nem estou zangada por me ter batido. Nunca na sua
vida amou
*ninguém*, tio? *_Nunca*? Olhe-me uma vez só -- estou tão
aflita que não poderá deixar de ter pena de mim.
-- Afaste de mim esses seus dedos de lagartixa e saia da
minha frente se não quer levar um pontapé! bradou Heathcliff,
repelindo-a brutalmente. -- Preferia ser abraçado por uma
serpente. Como diabo pensou que pudesse bajular-me? Odeio-a!
Encolheu os ombros, ou melhor, estremeceu todo como se a
pele se lhe arrepiasse de aversão, e atirou a cadeira para
trás, enquanto eu me levantei e abri a boca, afivelando um
chorrilho de insultos. Emudeci, contudo, no meio da primeira
frase, com a ameaça de que seria fechada num quarto sozinha se
proferisse mais uma sílaba que fosse.
Lá fora, a noite principiava a cair. Ouvimos o som de vozes
no portão do jardim. O nosso anfitrião precipitou-se lá para
fora. Ele não perdera a serenidade; nós estávamos
completamente desnorteadas. Escutámos uma conversa de alguns
minutos e ele voltou sozinho.
-- Julguei que fosse o seu primo Hareton. -- observei para
Catherine. -- Quem me dera que ele chegasse! Quem sabe, talvez
tomasse o nosso partido...
-- Eram três criados da Granja, mandados à vossa procura.
-- :, disse Heatheliff, ouvindo o meu desabafo. -- Deverias
ter aberto uma janela e gritado; mas podia jurar que a pequena
esta contente por não o teres feito. Estou certo de que se
sente feliz por ser obrigada a ficar.
Ao sabermos da oportunidade que havíamos perdido, demos
largas ao nosso desgosto. Ele deixou-nos chorar à vontade até
às nove horas; depois, ordenou-nos que subíssemos pela escada
da cozinha até ao quarto da Zillah. Segredei à minha
companheira que obedecesse; talvez conseguíssemos fugir pela
janela ou alcançar o sótão e sair pela clarabóia.
Contudo, a janela era estreita, como as do piso inferior, e
ao alçapão do sótão não nos era possível chegar. De modo que
continuávamos tão prisioneiras como dantes.
Nenhuma de nós se deitou. Catherine sentou-se à janela e
esperou ansiosa pela manhã. Em resposta às minhas constantes
súplicas de que deveria tentar descansar um pouco, deu apenas
um profundo suspiro.
Eu sentei-me numa cadeira e aí me deixei ficar, balançando
para a frente e para trás e repreendendo-me severamente pelas
muitas transgressões ao meu dever, das quais, como então
verifiquei, haviam resultado todos os infortúnios dos meus
patrões. Sei agora que não era assim, mas assim se afigurava à
minha imaginação, naquela noite triste, de tal forma que
cheguei a considerar Mr. Heathcliff menos culpado do que eu.
Ele apareceu às sete da manhã e perguntou se Miss Linton já
se levantara.
Ela correu para a porta e respondeu:
-- Sim.
-- Então, vamos lá! -- ordenou ele, abrindo a porta e
puxando a menina para fora.
Levantei-me para a acompanhar, mas ele fechou a porta
novamente, não fazendo caso das minhas reclamações.
-- Sê paciente! -- retorquiu-me. -- Daqui a pouco mando-te
o pequeno almoço -- Dei socos na porta e abanei o ferrolho,
furiosa. Catherine perguntou por que me encontrava ainda
presa, ao que ele respondeu que eu ainda teria de esperar mais
umas horas, e afastaram-se.
Esperei duas ou três horas; por fim, escutei passos e pude
perceber que não eram os de Mr. Heathcliff. :,
-- Trouxe-lhe alguma coisa para comer -- disse uma voz --
pote dar a volta ao puxador!
Obedeci de pronto e deparei-me com Hareton, carregado de
comida para todo o dia.
-- Tome lá acrescentou, colocando-me o tabuleiro nas mãos.
-- Espera um instantinho... -- disse eu.
-- Não! -- esquivou-se ele, retirando-se, insensível a
todas as súplicas com que tentei detê-lo.
E ali fiquei fechada todo aquele dia e toda a noite
seguinte; e ainda outra e mais outra. Cinco noites e quatro
dias ali permaneci, sem ver ninguém a não ser o Hareton, que
aparecia todas as manhãs. Era um carcereiro exemplar:
taciturno, mudo e surdo a todas as minhas tentativas de
despertar o seu sentido de justiça e compaixão.
CAPíTULO XXVIII
Na manhã, ou melhor, na tarde do quinto dia, senti passos
diferentes a aproximarem-se, mais leves e mais curtos, e desta
vez a pessoa em questão entrou no quarto. Era Zillah, envolta
no seu xaile vermelho, de touca de seda preta na cabeça e um
cabaz enfiado no braço.
-- Credo, Mrs. Dean! -- exclamou ela. -- Que falatório vai
a seu respeito em Gimmerton! Eu pensava que a senhora se tinha
afogado no pântano de Blackhorse, e a sua menina também, até
o patrão me dizer que as tinha encontrado e trazido para aqui!
Decerto conseguiram alcançar alguma ilha, não? E quanto tempo
ficaram nas poças? Foi o meu patrão que a salvou, Mrs. Dean?
Mas nem por isso está mais magra... podia ter sido pior, não
é?
-- O teu patrão é o pior patife que existe à face da terra!
-- respondi-lhe eu. Mas ele vai pagar pelo que fez. E
escusava bem de inventar essa história, pois tudo se virá a
saber!
-- Que quer dizer com isso? -- quis saber Zillah. -- Ele
não inventou nada. É a história que se conta na aldeia: que a
senhora se perdeu no pântano. Eu, quando cheguei a casa; até
disse a Mr. Earnshaw: Ah, Mr. Hareton, que coisas estranhas
aconteceram enquanto andei por fora. Tenho tanta pena daquela
linda menina, e da Nelly Dean. -- E ele olhou-me espantado e
eu pensei que não soubesse de nada e contei-lhe os rumores que
corriam em Gimmerton. O patrão ouviu, sorriu-se e disse:
-- Se elas estiveram no pântano, já de lá saíram, Zillah. A
Nelly Dean está, neste preciso momento, no teu quarto. Quando
subires, podes dizer-lhe que saia. Aqui tens a chave. A água
do pântano deu-lhe a volta ao miolo e ficou a imaginar coisas;
mantive-a aqui fechada até que recuperasse o juízo. Podes
mandá-la para a Granja, :, se ela estiver capaz, e leva-lhe um
recado da minha parte: que a menina seguirá para lá a tempo de
assistir ao funeral do pai.
-- Mr. Edgar morreu? -- balbuciei, -- Oh, Zillah, Zillah!
-- Não, não. Sente-se, Mrs. Dean. Vê-se que ainda está
doentinha -- disse ela. Mr. Edgar não morreu. O Dr. Kenneth
pensa que ele pode durar ainda mais um dia; encontrei-o na
estrada e perguntei-lhe.
Em vez de me sentar, peguei nas minhas coisas e saí pela
porta fora, já que o caminho estava livre.
Ao entrar na sala, olhei em volta tentando encontrar alguém
que me informasse do paradeiro de Catherine.
O aposento estava inundado de sol e a porta escancarada,
mas não se via vivalma.
Enquanto hesitava entre sair dali de imediato ou voltar
atrás para procurar a minha menina, a minha atenção foi
atraída por uma tossidela vinda das bandas da lareira.
Aproximei-me. Deitado no banco, Linton, a única presença na
sala, chupava um pauzinho de rebuçado e seguia os meus
movimentos com um olhar apático.
-- Onde está Miss Catherine? -- inquiri severamente,
pensando que poderia assustá-lo a ponto de obter
dele alguma informação, agora que o apanhava
sozinho.
Ele continuou a chupar o rebuçado, inocentemente.
-- Foi-se embora? -- insisti eu.
-- Não -- respondeu. -- Está lá em cima -- ela não pode ir
para casa; nós não deixamos.
-- Qual não deixam, seu idiota! -- exclamei. -- Leve-me já
ao quarto dela, ou chego-lhe a roupa ao pêlo.
-- O meu pai é que lhe chega a si a roupa ao pêlo, se
tentar lá entrar -- replicou. -- Ele diz que eu não devo ser
brando com a Catherine, pois ela é minha mulher e é vergonhoso
que queira abandonar-me! Ele diz que ela me odeia e que quer
que eu morra, para poder ficar com o meu dinheiro, mas isso
ela não há-de conseguir; e também não voltará para casa! Nunca
mais! Pode chorar e adoecer à vontade!
E prosseguiu a sua ocupação anterior, fechando os olhos,
como se tencionasse dormir.
-- Master Heathcliff -- tornei eu -- já se esqueceu de toda
a bondade de Catherine para consigo, no Inverno passado,
quando o menino afirmou que a amava? E quando ela trouxe
livros e cantou para si e mais de uma vez enfrentou o vento e
a neve só para o vir :, ver? Chegava a chorar se falhasse uma
única noite, pois sabia que o menino ficaria desapontado;
nessa altura achava que ela era cem vezes melhor que o menino.
E, agora, acredita nas mentiras que o seu pai lhe conta, mesmo
sabendo que ele vos detesta a ambos? E o menino aliado ao seu
pai contra ela! Bonita gratidão a sua, não haja dúvida!
Os cantos da boca de Linton descaíram e ele afastou dos
lábios o chupa-chupa.
-- Acha que Catherine veio ao Alto dos Vendavais porque o
odiava? -- continuei. -- Ora pense pela sua cabecinha! Quanto
ao seu dinheiro, ela nem sabe se o menino alguma vez terá
algum. Disse que ela está doente e, no entanto, deixou-a
sozinha lá em cima numa casa estranha! E logo o *menino*, que
sabe o que é sentir-se abandonado! Quando se queixava dos seus
sofrimentos, ela sofria por si, e agora o menino não tem pena
dela! Eu, que sou velha e não passo de uma criada, choro por
ela, como vê... e o menino, depois de fingir uma grande
afeição e tendo tantas razões para a adorar, guarda todas as
lágrimas para si e fica aí deitado, muito calmo. Ah, o menino
é um egoísta sem coração!
-- Não consigo estar ao pé dela -- afirmou contrariado.
--Prefiro ficar sozinho. Ela chora tanto que eu não consigo
suportar. E não se cala, nem que eu ameace chamar o meu pai.
Uma vez chamei-o mesmo e ele ameaçou estrangulá-la se ela não
se calasse, mas ela recomeçou no mesmo instante em que ele
saiu do quarto. E chorou e gemeu toda a noite, embora eu lhe
gritasse que não me deixava dormir.
-- Mr. Heathcliff saiu? -- perguntei, percebendo que a
desprezível criatura era incapaz de ter dó da tortura mental
da prima.
-- Está no pátio a falar com o Dr. Kenneth que diz que o
tio está a morrer -- respondeu. -- Finalmente! Estou contente,
pois serei eu o dono da Granja depois da morte dele. E
Catherine sempre se referiu a ela como a *sua* casa. Mas não é
dela. É minha! O meu pai diz que tudo o que ela possui é meu,
todos os seus belos livros são meus. Ela até me disse que mos
dava, mais os seus lindos pássaros e a Minny, se eu
conseguisse apanhar a chave do quarto e a deixasse fugir, mas
eu disse-lhe que ela não podia dar-me nada, porque tudo
isso já era meu. Então, ela chorou e tirou um pequeno medalhão
do fio que tinha ao pescoço, dizendo que seria meu: dois
retratos numa moldura dourada; de um; lado a mãe e do outro o
meu tio, quando eram novos. Isto passou-se ontem; disse-lhe
que eram meus :, também e tentei tirar-lhos, mas ela,
despeitada, não me deixou: empurrou-me e magoou-me. Desatei a
gritar, o que a assusta sempre muito, e ela, ao ouvir os
passos do meu pai, quebrou as dobradiças do medalhão,
partindo-o em dois, e deu me o retrato da mãe, procurando
esconder o outro. Mas o meu pai perguntou o que se passava e
eu contei-lhe tudo. Ele tirou-me o retrato que eu tinha na mão
e ordenou-lhe que me desse o outro. Ela recusou e ele
bateu-lhe e arrancou-lhe o retrato da corrente, calcando-o em
seguida com o pé.
-- E o menino ficou muito contente de a ver espancada? --
indaguei eu, com o propósito de o incitar a prosseguir.
-- Fechei os olhos... -- retrucou. -- É o que eu faço
quando vejo o meu pai a bater num cão ou num cavalo... E com
que força ele o faz! No entanto, a princípio fiquei contente,
pois ela merecia ser castigada por me castigar a mim; mas
quando o meu pai se foi embora, a Catherine levou-me à janela
e mostrou-me a face cortada pelo lado de dentro, contra os
dentes, e a boca cheia de sangue. Depois, apanhou os bocados
do retrato e foi sentar-se virada para a parede e não voltou a
falar comigo. Por vezes, penso que ela não pode falar com as
dores. Não gosto de pensar nisso! Mas ela é muito má por
chorar continuamente; está tão pálida e desvairada que chego a
ter medo dela!
-- O menino, se quisesse, podia conseguir a chave, não
podia? -- quis eu saber.
-- Pois podia, quando estou lá em cima -- retorquiu. -- Mas
agora não posso ir a acima.
-- Em que quarto está ela? -- inquiri.
-- Oh -- exclamou -- isso não posso dizer! É segredo.
Ninguém sabe. Nem mesmo o Hareton ou a Zillah podem saber.
Bem, já me cansou bastante; vá-se embora, vá-se embora! -- e,
dizendo isto, escondeu o rosto no braço e fechou os olhos
novamente.
Achei melhor partir sem me encontrar com Mr. Heathcliff e
ir à Granja buscar ajuda para a minha menina.
Ao verem-me chegar, os outros criados não cabiam em si de
espanto e alegria. E quando souberam que a menina estava sã e
salva, dois ou três prepararam-se logo para correrem escada
acima e darem a boa nova a Mr. Edgar, mas não deixei: queria
ser eu mesma a fazê-lo.
Como ele tinha mudado neste curto espaço de poucos dias!
Jazia na cama, qual imagem da tristeza e resignação, esperando
a morte. :, Parecia ainda tão novo! Apesar de já ter trinta e
nove anos, dir-se-ia dez anos mais novo, pelo menos. Estava a
pensar em Catherine, pois ouvi-o balbuciar o seu nome.
Toquei-lhe na mão e sussurrei:
-- Miss Catherine está a chegar, meu querido senhor! A
menina está viva e de boa saúde e estará aqui, se Deus quiser,
ainda esta noite.
Estremeci ao ver o efeito que esta notícia produziu: o meu
patrão soergueu-se, correu os olhos pelo quarto, ansioso, e
voltou a cair para trás, sem sentidos.
Assim que recuperou o conhecimento, relatei-lhe a nossa
visita forçada e posterior detenção no Alto dos Vendavais.
Disse-lhe que Mr. Heathcliff me forçara a entrar, o que não
era inteiramente verdade. Falei o menos possível contra
Linton e não descrevi em pormenor a conduta brutal do pai, já
que a minha intenção era, se possível, não acrescentar mais
amargura à taça já tão cheia do meu patrão.
Ele adivinhava que um dos propósitos do seu inimigo era
garantir ao filho, ou seja, a si próprio, a posse, não só dos
seus bens móveis, mas também dos bens de raiz. Mas a razão por
que Mr. Heathcliff não esperava pela sua morte era algo que o
meu patrão não compreendia, pois ignorava que tanto ele como o
sobrinho deixariam o mundo quase ao mesmo tempo.
Contudo, considerou que seria melhor alterar o seu
testamento: em vez de deixar a fortuna de Catherine à
disposição dela, pretendia deixá-la ao cuidado de
testamenteiros, para seu usufruto, passando depois para os
seus filhos, caso viesse a ter alguns. Desta forma, a herança
não poderia ir parar às mãos de Mr. Heathcliff, caso Linton
morresse.
Obedecendo às ordens recebidas, mandei um homem buscar o
tabelião e ordenei a mais quatro que se munissem de armas e
fossem, resgatar a menina à sua prisão. Tanto um como os
outros se demoraram. O criado que tinha partido sozinho foi o
primeiro a chegar.
Disse que Mr. Green, o tabelião, não se encontrava em casa
quando ele lá chegara e que tivera de esperar duas horas até
ele voltar e que, ao chegar, ele lhe dissera que tinha um
assunto a tratar na vila, mas que passaria pela Granja dos
Tordos antes do amanhecer.
Os quatro homens voltaram igualmente desacompanhados.
Traziam o recado de que Catherine se encontrava demasiado
doente :, para deixar o quarto e que M,. Heathcliff não lhes
havia permitido vê-la.
Ralhei com os idiotas por acreditarem em semelhante
patranha, que não pode contar ao meu patrão. Resolvi então
que, ao romper da manhã, levaria comigo um bando de gente até
ao Alto e tomaríamos a casa de assalto, se a prisioneira não
nos fosse entregue de
imediato.
Jurei e tornei a jurar que o pai *tinha* de ver a filha,
nem que para isso tivéssemos de matar aquele demónio à sua
própria porta, por nos impedir de entrar.
Felizmente, foi-me poupada a viagem e o incómodo.
Por volta das três horas, desci ao piso inferior para ir
buscar um jarro de água e, ao passar pelo vestíbulo, já com o
jarro na mão, ouvi umas pancadas na porta da frente que me
fizeram sobressaltar.
«_Oh! Deve ser o tabelião» -- pensei, recompondo-me. --
«_Só pode ser Mr. Green», e continuei o meu caminho,
tencionando mandar alguém abrir a porta; mas as pancadas
continuaram, não muito fortes, mas insistentes. Pousei o jarro
no corrimão e apressei-me a ir eu mesma abri-la.
Lá fora brilhava a lua cheia. Afinal, não era o tabelião.
Era a minha querida menina que se atirou ao meu pescoço a
soluçar...
-- Ellen, Ellen! O papá está vivo?
-- Está, sim! -- afirmei -- Está sim, meu anjo! Deus seja
louvado, a menina está connosco outra vez!
Ela quis logo correr pela escada acima e ir ao quarto do
pai, mesmo ofegante como estava, mas eu obriguei-a a sentar-se
numa cadeira, fi-la beber um pouco de água e lavei-lhe o rosto
empalidecido, friccionando-o com o avental para lhe trazer
alguma cor às faces. Depois, disse-lhe que era melhor ir eu
primeiro dizer a Mr. Edgar que ela chegara e implorei-lhe que
se declarasse feliz com Master Heathcliff. Ela olhou-me
espantada, mas logo compreendeu o motivo pelo qual a
aconselhava a mentir, e prometeu-me que
não se queixaria.
Eu não suportei assistir àquele encontro. Esperei do lado
de fora do quarto durante um quarto de hora e só então entrei,
mal me atrevendo a aproximar-me do leito.
Mas tudo estava sereno: o desespero de Catherine era tão
silencioso como a alegria do pai. Ela amparava-o com aparente
:, serenidade e ele fixava no rosto da filha uns olhos, que
pareciam dilatados pelo êxtase.
E assim morreu em paz, Mr. Lockwood. Morreu feliz. Beijou a
face da filha e murmurou:
-- Vou reunir-me a ela, e tu, minha querida filha, um dia
te juntarás a nós. Não disse mais nada, não se mexeu mais;
continuou com aquele olhar extasiado até que,
imperceptivelmente, o seu coração deixou de bater e a sua alma
se elevou. Ninguém poderia dizer o momento exacto da sua
morte, pois não houve um só estremecimento que o denunciasse.
Ou porque tivesse já esgotado todas as lágrimas, ou porque
a dor fosse tão intensa que lhe refreava o pranto, Catherine
ali ficou sentada de olhos enxutos até ao romper da aurora; e
no mesmo lugar permaneceu até ao meio-dia, e ali teria ficado,
meditando junto ao leito de morte, se eu não tivesse insistido
para que ela descansasse um pouco.
Ainda bem que consegui tirá-la de lá, pois à hora do jantar
apareceu o tabelião, que havia passado primeiro pelo Alto dos
Vendavais, para receber instruções quanto às medidas a tomar.
Tinha-se vendido a Mr. Heathcliff e essa havia sido a causa da
sua demora em acorrer ao chamado do meu patrão. Felizmente que
esta preocupação não veio atormentá-lo à hora da sua morte,
tão feliz estava com a chegada da filha.
Mr. Green chamou a si a tarefa de dirigir tudo e todos.
Despediu todos os criados, menos eu, e teria usado a
autoridade que lhe fora delegada para ordenar que Edgar Linton
fosse enterrado, não ao lado da mulher, mas sim na capela,
junto da família. Havia, porém, o testamento para impedir tal
propósito, bem como os meus protestos veementes contra
qualquer infracção às suas
disposições.
O funeral foi realizado a pressa e Catherine, agora Mrs.
Linton Heathcliff, teve autorização para permanecer na Granja
até à saída do féretro.
Segundo me contou depois, a sua angústia tinha finalmente
compelido Linton a correr o risco de a libertar. Ela tinha
ouvido os homens que eu enviara a discutirem à porta e
adivinhara a resposta de Mr. Heathcliff, o que a deixara
desesperada. Linton, que fora mandado lá para cima para a
saleta logo que eu o deixara, ficou tão assustado que foi
buscar a chave antes que o seu pai voltasse.
Teve a astúcia de abrir a porta e deixá-la encostada,
tornando a :, dar a volta à chave; quando chegou a hora de
deitar, pediu que o deixassem dormir no quarto de Hareton, o
que lhe foi concedido, por essa vez.
Catherine escapuliu-se do quarto antes do amanhecer. Não se
atrevera a tentar abrir as portas com medo de que os cães
dessem o alarme. Percorreu os aposentos desocupados e
experimentou as janelas. Por sorte, pôde passar com facilidade
pela janela do antigo quarto da mãe, descendo pelo abeto que
se encontra encostado à casa e num instante alcançou o jardim.
Quanto ao seu cúmplice, acabou por ser castigado pela sua
participação na fuga, apesar das manhas utilizadas.
CAPíTULO XXIX
Na noite seguinte ao funeral, a minha jovem patroa e eu
estávamos sentadas na biblioteca, chorando tristemente a nossa
perda e fazendo conjecturas para um futuro que se apresentava
pouco risonho.
Tínhamos chegado à conclusão de que a melhor coisa que
poderia acontecer a Catherine era ser-lhe concedida permissão
para continuar a residir na Granja, pelo menos enquanto
Linton vivesse; isto, no caso de o pai lhe dar autorização a
ele para vir viver connosco e, a mim, para continuar como sua
governanta. Esta solução parecia-me boa demais para depositar
nela grandes esperanças e, no entanto, tinha fé que assim
fosse, e comecei até a animar-me com a perspectiva de
conservar o meu lugar e, acima de tudo, de poder continuar a
cuidar da minha querida menina. Assim pensava, quando um dos
criados que havia sido despedido, mas que não partira ainda,
entrou apressado na sala dizendo que «aquele demónio do
Heathcliff» vinha a atravessar o pátio e perguntava se lhe
deveria fechar a porta na
cara.
Mesmo que fôssemos suficientemente loucas para o fazer, não
teríamos tido tempo. Mr. Heathcliff não se deu ao trabalho de
bater ou de se fazer anunciar; era dono e senhor de tudo e
usou esse privilégio para entrar em casa sem dizer palavra.
O som da voz do criado guiou-o directamente até à
biblioteca. Entrou e, dando-lhe ordem para sair, fechou a
porta.
Era esta a mesma sala onde ele, há dezoito anos atrás,
entrara como visita; pela janela entrava o mesmo luar e, lá
fora, estendia-se a mesma paisagem de Outono. Não tínhamos
ainda acendido as velas, mas todo o aposento se distinguia
claramente, mesmo os :, retratos na parede: o
rosto altivo de Mrs. Linton ao lado do do marido, mais afável.
Mr. Heathcliff avançou para a lareira. O tempo pouco havia
modificado a sua aparência. Era o mesmo homem: o rosto escuro,
talvez mais pálido e mais sereno agora, o corpo um pouco mais
pesado; e as diferenças ficavam-se por
aqui.
Ao vê-lo, Catherine levantara-se, obedecendo ao impulso de
se escapar.
-- Espere! -- ordenou ele, prendendo-a pelo braço.
Acabaram-se as fugas! Onde pensa que vai? Vim para a levar
para casa e espero que seja uma filha submissa e não encoraje
o meu filho a mais desobediências. Quando descobri o papel
dele nesta história, fiquei sem saber que castigo lhe aplicar
ele é tão frágil que um simples beliscão é capaz de o matar.
Mas, como poderá avaliar pela cara dele, recebeu o que lhe era
devido! Trouxe-o para baixo uma noite, antes de ontem, e
sentei-o numa cadeira... Não lhe toquei mais. Mandei sair o
Hareton, para ficarmos a sós na sala. Ao fim de duas horas,
chamei o Joseph para o levar para cima. Desde aí, a minha
presença tem um tal poder sobre os seus nervos como se de um
fantasma se tratasse. Acho que me vê constantemente, mesmo
que eu não me encontre por perto. O Hareton diz que ele acorda
de noite em sobressalto, a chamar por si para o proteger de
mim. E, goste ou não do seu precioso marido, vai ter de
voltar. É essa a sua obrigação. Transfiro para si todo o meu
interesse nele.
-- Por que não deixa Miss Catherine ficar aqui? -- implorei.
-- E manda Master Linton para junto dela? Já que detesta os
dois, não lhes sentirá muito a falta... Eles serão apenas um
tormento diário para o seu coração desnaturado.
-- Estou à procura de um inquilino para a Granja --
explicou ele -- e quero os meus filhos junto de mim, para
estar seguro. Além disso, esta rapariga tem de trabalhar para
ganhar o seu sustento. Não vou mantê-la no luxo e ociosidade
depois de o Linton morrer. Despache-se e vá-se preparar. E não
me faça usar a força!
-- Eu vou -- aquiesceu Catherine. -- Linton é tudo quanto
me resta neste mundo a quem amar e, apesar de o senhor ter
feito tudo para o tornar odioso aos meus olhos, e eu odiosa
aos olhos dele, não :, *conseguirá* fazer que nos odiemos! E
desafio-o a maltratá-lo na minha presença ou a tentar
assustar-me!
-- Quanta bazófia p.raí vai! -- retrucou Heathcliff. Mas
não gosto de si o suficiente para o maltratar. Enquanto ele
durar, o privilégio do tormento será todo seu. Não serei eu a
torná-lo odioso a seus olhos; o seu feitio *encantador*
encarregar-se-á disso; Depois da sua fuga e das consequências
que isso lhe trouxe, está tão amargo que a aviso desde já para
não esperar agradecimentos pela sua nobre devoção. Ouvi-o
descrever à Zillah um quadro muito agradável do que lhe faria
se fosse tão forte como eu; inclinação não lhe falta, e a
própria fraqueza lhe aguçará o espírito para encontrar um
substituto para a força.
-- Eu sei que a natureza dele é ruim -- argumentou
Catherine. Ele é seu filho; mas ainda bem que a minha é
melhor, para lhe poder perdoar. Tenho a certeza de que ele
gosta de mim, o que é razão suficiente para que eu lhe
corresponda. Mr. Heathcliff, o senhor não tem quem o estime e,
por mais infelizes que nos tome, teremos sempre a consolação
de saber que a sua crueldade é apenas resultado da sua imensa
infelicidade! O senhor é muito infeliz, não é? Solitário como
o demónio e, como ele, invejoso. *_Ninguém* gosta de si,
*ninguém* o chorará quando morrer! Não queria estar na sua
pele!
Catherine falou com uma espécie de triunfo melancólico.
Parecia estar decidida a adaptar-se ao espírito da sua futura
família, disposta a retirar prazer das mágoas dos seus
inimigos.
-- Acabará por lastimar ser quem é... -- ameaçou o sogro,
-- se permanecer aí mais um minuto que seja. Vá, sua bruxa,
traga as suas coisas!
Ela saiu, emanando arrogância.
Na sua ausência, aproveitei para implorar para mim o lugar
de Zillah no Alto dos Vendavais, propondo trocá-lo com o meu,
mas ele não me atendeu e mandou-me estar calada. Então, pela
primeira vez, permitiu-se correr o olhar por toda a sala até
encontrar os retratos. Depois de examinar o da senhora, disse:
-- Levarei este comigo para casa. Não porque necessite
dele, mas...
Virou-se bruscamente para o fogo e continuou, com o que, a
falta de melhor descrição, classificarei de sorriso:
-- Vou contar-te o que fiz ontem! Convenci o coveiro, que
:, estava a tratar da sepultura do Edgar Linton, a remover a
terra de cima do caixão dela, e abri-o. Por um momento, pensei
que ficaria ali para sempre... quando lhe vi o rosto
novamente... é ainda o seu rosto... foi difícil o homem
conseguir arrancar-me daquela contemplação; mas disse-me que
o aspecto se alteraria com o ar e então eu abri um dos lados
do caixão... e voltei a tapá-lo.... não do lado daquele do
Linton, diabos o levem! Quem dera que ele estivesse soldado
num caixão de chumbo... e gratifiquei o coveiro para que
arranque aquela parte do caixão quando eu ali for enterrado, e
faça o mesmo ao meu. É assim que vai ser, e depois, quando o
Linton nos alcançar, não vai saber distinguir-nos.
-- Isso não se faz, Mr. Heathcliff! -- exclamei. -- Não tem
vergonha de andar a perturbar os mortos?
-- Não perturbei ninguém, Nelly -- respondeu. -- E trouxe a
mim mesmo alguma paz; e tu, assim, terás mais hipóteses de me
manteres debaixo da terra quando chegar a minha vez.
Perturbá-la? Não! Ela é que me tem perturbado dia e noite ao
longo destes dozoito anos... incessantemente... sem
remorsos... até ontem à noite... mas ontem à noite dormi
tranquilo. Sonhei que dormia o meu último sono ao lado dela,
também adormecida, com o coração parado e o rosto frio colado
ao seu.
-- E se ela se tivesse desfeito em pó, ou pior ainda, com
que teria então sonhado? -- perguntei.
-- Que me desfazia em pó com ela, e que era ainda mais
feliz! -- retorquiu. -- Pensas que temo essa transformação?
Esperava por essa mudança quando levantei a tampa do caixão,
mas alegra-me que ela só se inicie quando eu a partilhar com
ela. Além disso, se o seu rosto impassível não me tivesse
causado uma impressão tão forte, dificilmente me teria
libertado daquele estranho sentimento que começou de forma tão
singular. Tu sabes como a sua morte me deixou enlouquecido
para todo o sempre, de uma madrugada a outra, implorando-lhe
que voltasse para mim... invocando o seu espírito... que eu
tenho muita fé nas almas do outro mundo; estou convencido de
que, não só podem andar, como de facto andam entre nós!
-- No dia em que foi sepultada, caiu um nevão. À noite fui
ao cemitério. Soprava um vento agreste. Tudo era solidão. Não
:, receava que o paspalho do marido vagueasse por ali até tão
tarde, e ninguém mais tinha motivos para ali
aparecer.
-- Sozinho e consciente de que apenas um amontoado de terra
solta nos separava, disse para mim mesmo: «Tê-la-ei nos meus
braços novamente! Se estiver fria, pensarei que é deste vento
norte que me gela; e, se inerte, julgá-la-ei adormecida.»
-- Tirei uma pá da arrecadação e comecei a retirar a terra
com todas as minhas forças. A pá bateu no caixão. Caí de
joelhos e trabalhei com as mãos; a madeira principiou a
estalar junto aos parafusos e estava já prestes a alcançar o
meu objectivo, quando me pareceu ouvir um suspiro vindo de
cima, da abertura da cova, como de alguém que se inclinava
sobre mim. «_Se ao menos conseguisse tirar isto.» Murmurei.
«_Depois... que deitassem pazadas de terra sobre nós ambos!»;
e esforcei-me ainda mais. Ouvi outro suspiro, este perto do
meu ouvido. Quase podia sentir o seu sopro quente deslocando o
ar gélido. Eu sabia que não estava ali nenhum ser vivo e, no
entanto, tal como nos apercebemos da proximidade de um corpo
material na escuridão, mesmo sem podermos vê-lo, senti que a
Cathy estava ali, não sob mim, mas acima da terra.
-- Do coração fluiu-me um súbito sentimento de alívio, que
se espalhou a todos os meus membros. Renunciei à minha tarefa
angustiante e senti-me imediatamente consolado, infinitamente
consolado. A sua presença estava comigo e comigo ficou
enquanto voltei a encher a sepultura, para me guiar depois até
casa. Podes rir-te, se quiseres, mas tinha a certeza de que a
encontraria lá. Estava certo de que ela estava comigo e não
podia deixar de lhe falar.
-- Ao chegar ao Alto dos Vendavais, corri ansioso para a
porta, mas encontrei-a trancada. Recordo-me de que o maldito
do Earnshaw e a minha mulher não me deixaram entrar.
Lembro-me também de ter dado uns valentes pontapés ao
Earnshaw que o deixaram quase morto, e de correr depois pela
escada acima, para o meu quarto, e também dela... olhar à
minha volta impaciente... senti-la junto de mim; *quase* podia
vê-la e, no entanto *não a via*! Devo ter suado sangue, da
angústia do meu desejo e do fervor das minhas súplicas para a
ver só que fosse num relance! Mas nada vi. Ela comportou-se,
como tantas vezes
o fizera em vida, como um demónio para comigo! E, desde então,
umas vezes mais e outras menos, tenho sido o joguete dessa
tortura insuportável! Tortura infernal :,
que me põe os nervos tão tensos que se não fossem resistentes
como cordas de violino, há muito teriam ficado tão frouxos
como os do Linton.
-- Quando estava na sala com o Hareton, tinha a impressão
de que, se saísse, a encontraria. Quando andava pelo brejo,
que a encontraria a voltar para casa. Quando saía,
apressava-me a regressar, pois ela devia estar algures no Alto
dos Vendavais; disso tinha eu a certeza. E quando ia dormir
para o seu quarto... era de lá escorraçado... não podia
descansar; pois, no momento em que fechasse os olhos, via-a do
lado de fora da janela, ou a abrir os painéis da cama, ou a
entrar no quarto ou até com a cabeça delicada pousada na mesma
almofada dos tempos de criança. Mas tinha de abrir os olhos
para ver. Cem vezes os abria e fechava durante a noite... e
sofria sempre a mesma desilusão! Destroçava-me
o coração! Por vezes gemia em voz alta e, daí, aquele velho
tonto do Joseph se ter convencido de que a minha consciência
estava possuída pelo demónio.
-- Agora que a vi, tenho paz... um pouco mais de paz. Foi
uma estranha forma de matar, não aos poucos, mas em fracções
ínfimas, iludindo-me com o espectro de uma esperança durante
dezoito anos!
Mr. Heathcliff fez uma pausa e limpou a fronte. O cabelo
colava-se-lhe à testa, húmido da transpiração; os olhos
estavam fixos nas brasas da lareira; as sobrancelhas
descontraídas, mas ligeiramente erguidas nas têmporas, o que
amenizava o aspecto endurecido do seu semblante, mas lhe
conferia uma expressão peculiar e perturbada e a dolorosa
aparência de quem vive obcecado por alguma coisa. O seu
desabafo fora-me dirigido apenas em parte e, como tal,
mantive-me em silêncio, pois não estava a gostar de o ouvir
falar!
Passados alguns instantes, retomou o exame do retrato;
retirou-o da parede e encostou-o ao sofá para melhor poder
contemplá-lo. Enquanto assim se ocupava, entrou Catherine
declarando que estava pronta para partir assim que lhe dessem
o cavalo.
-- Manda entregar isto amanhã -- ordenou Heathcliff.
Depois, dirigindo-se a ela, acrescentou -- Pode bem passar sem
o cavalo; a noite está agradável e não vai precisar de cavalos
no Alto dos Vendavais; para os passeios que irá dar,
chegam-lhe muito bem as pernas. Vamos.
-- Adeus, Ellen! -- murmurou a minha querida menina. :,
Quando me beijou, os seus lábios estavam frios como gelo. --
Vem visitar-me, Ellen, não te esqueças.
-- Não penses em tal coisa, Ellen Dean! -- disse o seu novo
pai. -- Quando desejar falar contigo, eu próprio cá virei. Não
quero ninguém a meter o nariz em minha casa!
Fez sinal a Catherine para que o precedesse, e ela,
lançando para trás um olhar que me partiu o coração, obedeceu.
Fiquei a vê-los da janela, a descerem o jardim: Mr.
Heathcliff agarrava-lhe o braço, embora a princípio ela se
esquivasse; mas ele, estugando o passo, fê-la entrar na
alameda do parque, e perderam-se por detrás das
árvores.
CAPíTULO XXX
Fui uma vez ao Alto dos Vendavais, mas não mais vi a menina
desde que se foi embora. Quando lá fui para saber dela, Joseph
segurou a porta e não me deixou entrar. Disse que Mrs. Linton
tinha que fazer e que o patrão não estava em casa. Se não
fosse Zillah ter-me contado alguma coisa, eu não saberia se
estavam vivos ou mortos.
Pela conversa dela, percebi que achava Catherine muito
arrogante e que não gostava dela. A princípio, a menina
queria que Zillah lhe prestasse uns serviços, mas Mr.
Heathcliff ordenou-lhe que tratasse apenas das suas coisas
e deixasse a nora cuidar de si própria, ao que ela, tacanha e
egoísta como é, acedeu de pronto. Isto fez Catherine amuar e
pagar-lhe a indiferença com desprezo, inscrevendo, assim, a
minha informante na lista dos seus inimigos, como se lhe
tivesse feito um grande mal.
Tive uma longa conversa com Zillah há cerca de seis
semanas, pouco antes de o senhor chegar, num dia em que nos
encontramos na charneca e ela me contou o
seguinte:
-- A primeira coisa que Mrs. Linton fez quando chegou ao
Alto dos Vendavais foi correr escada acima, sem dar sequer as
boas-noites a mim e ao Joseph. Fechou-se no quarto de Linton
e ai ficou até de manhã. Depois, quando o patrão e Earnshaw
tomavam o pequeno-almoço, ela entrou na sala e perguntou, toda
a tremer, se poderíamos chamar o médico, pois o seu primo
estava muito doente.
-- «_Já sabemos disso!» resmungou Heathcliff. «_Mas a sua
vida não vale um vintém e eu não vou gastar um vintém com
ele».
-- «_Mas eu não sei o que fazer...» balbuciou ela «_E, se
ninguém me ajudar, ele morrerá!»
«_Sai já daqui!» vociferou o meu patrão. «_E não me maces
com :, mais notícias a seu respeito. Ninguém aqui se rala com
o que lhe possa acontecer, se tu te ralas tanto. trata tu
dele, se não, tranca-o no quarto e deixa-o lá ficar».
-- Depois, ela começou a incomodar-me e eu respondi-lhe que
já tivera a minha cruz com o desgraçado. E que cada qual tinha
as suas obrigações e a dela era cuidar do marido, uma vez que
o patrão me ordenara que lhe entregasse essa tarefa.
-- Como se arranjaram os dois, isso eu não sei. Calculo que
o marido fosse bastante rabugento e gemesse dia e noite, não a
deixando descansar; isso via-se bem pelo seu rosto pálido e
pelas olheiras profundas. Por vezes, aparecia na cozinha como
se quisesse pedir ajuda, mas eu não ia desobedecer ao patrão,
que eu nunca me atrevi a desobedecer-lhe, Mrs. Dean, e, embora
achasse que estava errado não mandar chamar o Dr. Kenneth,
também não era da minha conta dar conselhos ou opiniões, e
também nunca me quis envolver nesse assunto.
-- Uma ou duas vezes, depois de nos deitarmos, abri a porta
do meu quarto e vi-a sentada ao cimo das escadas a chorar. Mas
meti-me logo para dentro, com medo de ser obrigada a
intervir. Eu tinha peninha dela, pois decerto que tinha! Mas,
bem vê, eu não podia perder o meu lugar.
-- Finalmente, uma noite ela veio ao meu quarto e fiquei
com os cabelos em pé com as suas palavras:
_ Vai dizer a Mr. Heathcliff que o filho está a morrer; desta
vez tenho a certeza. Levanta-te imediatamente e vai avisá-lo.»
-- Dito isto, desapareceu. Fiquei um quarto de hora à
escuta; toda eu tremia; não se ouvia nada; a casa estava
silenciosa.
-- «_Enganou-se» disse de mim para mim. «_Ainda não foi
desta. Não vale a pena incomodar o patrão». E voltei a pegar
no sono. Mas fui de novo acordada pelo som estridente da
campainha, a única que nós temos, instalada de propósito no
quarto do Linton, e pelo chamado do meu patrão para que fosse
ver o que estava a acontecer e lhes dissesse que não queria
que aquele barulho continuasse.
-- Dei-lhe então o recado de Catherine. Praguejou entredentes
e não tardou a sair do quarto com uma vela na mão,
dirigindo-se para o quarto deles. Fui atrás dele. A senhora
estava sentada à cabeceira, com as mãos entrelaçadas no
regaço. O sogro entrou, aproximou a luz da cara do filho,
olhou para ele e tocou-lhe. Depois, virou-se para ela:
-- «_E agora, Catherine» perguntou-lhe, «como te sentes?».
:,
-- Ela emudecera.
-- «_Como te sentes, Catherine?» insistiu ele.
-- «_Ele está em paz e eu estou livre...» volveu ela.
«_Deveria sentir-me bem, mas...» continuou, com uma amargura
que não podia esconder. «_O senhor deixou-me tanto tempo
sozinha a lutar contra a morte, que é apenas morte o que vejo
e sinto! Sinto-me morta!»
-- E bem o parecia! Dei-lhe um pouco de vinho. O Hareton e
o Joseph, que tinham sido acordados pela campainha e pelo som
dos passos, entraram no quarto depois de escutarem a nossa
conversa do lado de fora. O Joseph ficou, creio eu,
indiferente à morte do rapaz; o Hareton parecia um tanto
perturbado, embora estivesse mais ocupado a olhar para a
senhora do que a pensar no primo. Mas o patrão ordenou-lhe que
voltasse para a cama, pois não queríamos a sua ajuda. Mais
tarde, mandou o Joseph levar o corpo para o seu quarto e
disse-me para voltar para o meu, de maneira que a senhora
ficou sozinha.
-- De manhã, o patrão mandou-me ir dizer-lhe que deveria
descer para tomar o pequeno-almoço. Ela tinha-se despido e
parecia preparar-se para dormir; disse-me que estava doente, o
que não estranhei nada. Levei o recado a Mr. Heathcliff e ele
respondeu-me:
-- «_Bem, que se deixe estar até depois do funeral. Vai lá
acima de vez em quando ver se ela precisa de alguma coisa; e
assim que a vires melhor, vem dizer-me».
Segundo Zillah contou, Cathy permaneceu no quarto duas
semanas. A criada ia vê-la duas vezes por dia e mostrava
vontade de se tornar sua amiga, mas as suas amabilidades eram
imediatamente repelidas com arrogância.
Mr. Heathcliff visitou-a numa única ocasião para lhe dar a
conhecer o testamento de Linton. Nele, o filho deixava ao pai
todos os seus bens, incluindo os bens móveis da mulher. A
pobre criatura fora ameaçada, ou coagida, a assinar aquele
documento na semana em que Cathy estivera ausente, por altura
da morte do pai. Sendo menor, Linton não podia dispor dos seus
bens. No entanto, Mr. Heathcliff reclamou-os e entrou na posse
deles em nome da mulher, e em seu próprio (suponho que
legalmente); fosse como fosse, Catherine, destituída de bens e
amigos, não podia contestar a usurpação.
-- Ninguém a não ser eu -- disse Zillah -- se aproximou do
quarto dela além dessa vez... e também ninguém veio perguntar
por ela. A primeira vez que desceu à sala foi num domingo à
tarde. :,
-- Quando lhe levei o jantar, tinha resmungado que não
suportava mais o frio e eu disse-lhe que o patrão ia à Granja
dos Tordos e que eu e Earnshaw não nos opúnhamos a que ela
descesse. Assim, logo que escutou o cavalo de Mr. Heathcliff a
afastar-se, apareceu toda vestida de negro e com os caracóis
loiros despretensiosamente penteados para trás das orelhas.
-- O Joseph e eu costumamos ir à capela aos domingos.
(_Como o senhor sabe, explicou Mrs. Dean, a igreja agora não
tem padre e em Gimmerton chamam capela ao templo metodista ou
baptista, não sei muito bem). O Joseph tinha ido para lá --
continuou Zillah -- mas eu achei mais conveniente ficar em
casa. Os jovens devem ser sempre vigiados pelos mais velhos, e
o Hareton com todo o seu acanhamento, não é um modelo de bom
comportamento. Disse-lhe que era provável que a prima se
juntasse a nós e que, como sempre se acostumara a ver
respeitado o Dia do Senhor, ele deveria deixar em paz as
espingardas e o trabalho enquanto ela ali estivesse.
-- Ficou ruborizado ao ouvir a notícia e olhou para as suas
próprias mãos e roupas. A pólvora e o óleo de baleia num
instante desapareceram da vista. Percebi que tencionava
fazer-lhe companhia e, pela sua atitude, adivinhei que
gostaria de se mostrar apresentável. Ri-me como não me
atrevia a rir quando o patrão estava presente e ofereci-mepara o ajudar, divertindo-me com a sua atrapalhação. Ele
amuou e começou a praguejar.
-- Eu sei que a senhora, Mrs. Dean -- prosseguiu ela, vendo
que eu não ficara muito satisfeita com o seu procedimento --
pensa que a sua querida menina é fina demais para Mr. Hareton,
e não deixa de ter razão, mas eu gostava de lhe acabar com o
orgulho. Afinal, de que lhe valem agora os estudos e as
finuras? É tão pobre como a senhora ou como eu, ou ainda mais,
porque nós sempre vamos tendo o nosso pé-de-meia.
Hareton acabou por deixar que Zillah lhe desse uma ajuda e
ela conseguiu, com os seus galanteios, pô-lo de bom humor. Por
isso, quando Catherine chegou, o rapaz esqueceu-se dos
insultos anteriores e, segundo contou a governanta, tentou
mostrar-se amável.
-- A senhora entrou na sala -- contou ela -- fria como o
gelo e altiva como uma princesa. Levantei-me e ofereci-lhe o
meu lugar no cadeirão. Pois ela torceu o nariz à minha
delicadeza. O Earnshaw também se levantou e convidou-a a
sentar-se no banco defronte do lume, dizendo que ela devia
estar enregelada. :,
-- «_Enregelada ando eu há mais de um mês. respondeu ela,
pronunciando cada palavra com desdém.
-- E, indo ela mesmo buscar uma cadeira, sentou-se afastada
de nós dois.
-- Depois de se aquecer um pouco, olhou em volta e
descobriu uma série de livros dentro do armário. Levantou-se
de pronto para os ir buscar, esticando-se para os alcançar,
mas estavam muito altos.
-- O primo, depois de observar os seus esforços por alguns
instantes, ganhou finalmente coragem para a ir ajudar; ela
estendeu o vestido e ele encheu-lhe o regaço com os primeiros
livros a que deitou a mão.
-- Aquilo foi um grande progresso para o rapaz; ela nem lhe
agradeceu, mas o Hareton sentiu-se de tal forma agradecido por
ela não ter recusado a sua ajuda, que se aventurou a pôr-se
atrás da prima enquanto ela folheava os livros, chegando mesmo
a debruçar-se sobre o seu ombro e a apontar para o que mais
lhe chamava a atenção em certas ilustrações. Nem se ofendia
com a maneira insolente como ela afastava a página do seu
dedo; contentava-se em recuar um pouco e ficar a contemplar a
prima em vez do
livro.
-- Ela continuou a ler, ou a procurar alguma coisa para
ler. A pouco e pouco, a atenção do rapaz foi-se concentrando
nos seus espessos caracóis acetinados. Na posição em que
estavam, nem ele podia ver o rosto dela, nem ela podia ver o
dele. E então, talvez não muito consciente do que fazia, mas
mais como uma criança atraída pela chama de uma vela, passou
da contemplação ao toque: estendeu a mão e tocou num caracol,
tão delicadamente como se de um passarinho se tratasse. Se o
rapaz lhe tivesse espetado uma faca no pescoço, a senhora não
teria reagido com mais violência.
-- «_Sai já daqui! Como te atreves a tocar-me? Por que
estás aí especado?» gritou ela, enfadada. «_Não te suporto!
Volto já lá para cima? se te aproximas de mim!»
-- Master Hareton encolheu-se e, com o ar mais comprometido
deste mundo, foi sentar-se no banco, em silêncio. Ela
continuou a folhear os livros por mais meia hora; por fim, o
primo atravessou a sala e
segredou-me:
-- «_Pede-lhe que nos leia alguma coisa, Zillah. Já não
posso estar sem fazer nada e gostava... gostava tanto de a
ouvir! Mas não lhe digas que fui eu que te pedi, finge que és
tu que queres».
-- «_Master Hareton gostaria que lesse para nós, minha
senhora» :, disse eu logo de seguida. «_veria isso como um
grande favor... e ficar-lhe-ia muito agradecido».
Ela franziu o sobrolho e, erguendo os olhos, respondeu:
-- «_Master Hareton e todos os demais façam-me o favor de
entender que rejeito qualquer simulação de bondade que,
hipocritamente, me possam dirigir! Desprezo-vos a todos e não
tenho nada para vos dizer! Quando era capaz de dar a minha
vida por uma palavra amiga, ou mesmo para ver a cara de um de
vós, todos se afastaram de mim. Mas não me queixo! Vim até cá
abaixo porque tenho frio, não para vos distrair ou para
desfrutar da vossa companhia».
-- «_Que foi qu.eu fiz?» volveu-lhe o primo. «_De qu.é que
m.acusa?»
-- «_Oh, tu és uma excepção!» respondeu-lhe Mrs. Heathcliff
«_Nunca dei pela tua falta».
-- «_Mas eu ofereci-me mais de uma vez e pedi a Mr.
Heathcliff que me deixasse cuidar de...» argumentou ele,
animando-se com a petulância da prima.
-- «_Cala-te! Vou lá para fora, seja para onde for, só para
não ter de ouvir a tua voz!» disse a senhora.
-- O rapaz resmungou que, por ele, ela podia ir até para o
Inferno e, pegando na espingarda, voltou às suas ocupações
dominicais.
-- Falava agora sem peias e ela preferiu voltar para a sua
solidão. Mas no quarto devia estar um frio de rachar e, apesar
do seu orgulho, foi obrigada a aceitar a nossa companhia,
cada vez por mais tempo. Mas, daí em diante, tudo fiz para que
não voltasse a desdenhar da minha boa vontade, e tornei-me
muito rígida com ela. A senhora não tem entre nós quem a ame
ou estime, e também não o merece, pois à mais pequena coisa
que se lhe diga irrita-se e não respeita ninguém! Chega a
interromper o patrão, atrevendo-se a desafiá-lo para que a
castigue. E quanto mais sofre, mais peçonhenta se torna.
A princípio, ao ouvir o relato de Zillah, decidi deixar a
minha situação, procurar uma casinha e levar Catherine para
viver comigo; mas Mr. Heathcliff nunca o permitiria. E, de
momento, não vejo outro remédio senão um novo
casamento de Cathy, plano que está fora do meu alcance
realizar.
E, assim, terminou a história de Mrs. Dean. Apesar da
profecia do médico, as minhas forças estão a voltar
rapidamente e, embora esta seja apenas a segunda semana de
Janeiro, tenciono ir a cavalo :, ao Alto dos Vendavais dentro
de um ou dois dias, para informar o meu senhorio de que
passarei os próximos seis meses em Londres. E, se assim o
entender pode começar a procurar um novo inquino para a Granja
a partir de Outubro.
De forma nenhuma me seduz a ideia de passar aqui mais outro
Inverno.
CAPíTULO XXXI
O dia, ontem, esteve claro, sereno e gélido. Tal como tinha
decidido, fui ao Alto dos Vendavais. A minha governanta
convencera-me a levar um bilhete à sua menina, ao que eu não
me escusei, pois a boa mulher nada de estranho viu no seu
pedido.
A porta da frente estava aberta, mas a cancela
encontrava-se fechada, tal como na minha última visita; bati e
chamei por Earnshaw, que avistei entre os canteiros do
jardim; ele veio abrir o cadeado e entrei. Desta vez,
observei-o com atenção: apesar da sua aparência boçal, é na
verdade um belo rapaz; pena é que tudo faça para tirar o pior
partido possível dos seus predicados.
Perguntei se Mr. Heathcliff se encontrava em casa.
Respondeu-me que não, mas que voltaria para jantar. Eram onze
horas. Anunciei a Earnshaw a minha intenção de entrar e
esperar pelo meu senhorio, e ele de imediato abandonou as
ferramentas e me acompanhou, mais no papel de um cão de
guarda do que de substituto do dono da casa.
Entrámos juntos. Catherine estava na sala, ocupada a
arranjar uns legumes para a refeição que se aproximava.
Pareceu-me mais taciturna e menos altaneira que da primeira
vez que a vira. Com o seu já habitual desrespeito pelas mais
elementares regras de boa-educação, mal para mim olhou,
continuando o que estava a fazer sem se dignar responder, nem
ao meu cumprimento de cabeça, nem aos meus bons-dias.
«_Não me parece tão amável como Mrs. Dean me quis fazer
crer» pensei eu. «_E realmente uma beldade, mas não é nenhum
anjo».
Earnshaw disse-lhe com maus modos que levasse as coisas
dela para a cozinha. :,
Leva-as tu -- repontou ela, empurrando-as para longe assim
que deu a tarefa por terminada. Depois, foi sentar-se num
banco perto da janela, e entreteve-se a recortar figurinhas de
pássaros e de outros animais nas cascas dos nabos que tinha no
regaço.
Aproximei-me dela, fingindo apreciar a vista do jardim e,
disfarçadamente e sem que Hareton notasse, deixei-lhe cair no
colo o bilhete que me fora confiado por Mrs. Dean. Ela, porém,
perguntou em voz alta, sacudindo o papel para o chão:
-- Que é isto?
-- Uma carta de uma velha amiga sua, a governanta da Granja
-- esclareci, aborrecido por ela ter denunciado o meu gesto
generoso, e receoso de que o bilhete fosse tido como uma
carta minha.
Depois desta explicação, de bom grado ela teria apanhado o
papel, mas Hareton foi mais lesto. Apanhou-o e guardou-o no
colete, dizendo que Mr. Heathcliff teria de o ver
primeiro.
Perante isto, Catherine limitou-se a desviar o rosto para o
lado em silêncio e, furtivamente, tirou do bolso um lencinho
que levou aos olhos; e o primo, após breve luta para calar os
seus sentimentos, tirou o bilhete do bolso e deixou-o cair
indelicadamente aos pés de Catherine.
Ela apanhou-o e leu-o com avidez; depois, fez-me algumas
perguntas acerca dos habitantes e dos animais de estimação da
sua antiga morada. E, espraiando o olhar pelos montes,
murmurou, à guisa de solilóquio:
-- Quem me dera montar na Minny e cavalgar por aí abaixo! E
depois subir pelo outro lado. Oh, como estou cansada; sinto-me
*encurralada*, Hareton!
Apoiou a sua linda cabeça no parapeito da janela, com um
meio bocejo, um meio suspiro, e caiu numa espécie de
melancólica abstracção, sem saber, nem querer saber, se nós a
observávamos.
-- Mrs. Heathcliff -- comecei eu, depois de permanecer
sentado e calado por algum tempo -- a senhora não sabe, mas eu
sou seu amigo. E tão íntimo que estou a estranhar que não
queira vir conversar comigo. A minha governanta não se cansa
de falar de si e de lhe tecer os maiores elogios. E sei que
ficará muito desapontada, se eu voltar sem notícias suas além
de que se limitou a receber o bilhete e não disse
nada.
Pareceu-me admirada com este discurso e perguntou:
-- A Ellen gosta do senhor?
-- Gosta, sim. É muito minha amiga -- respondi, sem
hesitar. :,
-- Pois então diga-lhe que gostaria muito de responder à
carta que me mandou, mas que não disponho aqui do necessário
para escrever, nem sequer de um livro a que possa arrancar uma
folha.
-- Não há livros nesta casa? -- exclamei. -- Como aguenta
viver aqui sem eles, se me permite a pergunta. Eu, mesmo
dispondo de uma vasta biblioteca na Granja, aborreço-me
frequentemente. Se me tirassem os livros, ficaria desesperado!
-- Quando os tinha, lia-os constantemente -- explicou
Catherine. -- Mas Mr. Heathcliff nunca lê, e, por isso,
meteu-se-lhe na cabeça destruir os meus livros. Há semanas que
não lhes ponho a vista em cima. Uma vez ainda fui procurá-los
entre a colecção de livros teológicos do Joseph, para sua
grande indignação, e outra vez, Hareton, encontrei uns poucos
escondidos no teu quarto... uns em latim, outros em grego,
alguns contos e alguns poemas; tudo velhos amigos que eu
trouxera cá para casa. E tu apoderaste-te deles como uma pega
se adona das colheres de prata, pelo simples prazer de roubar!
A ti não te servem de nada; ou então escondeste-os por
maldade, para não deixares ninguém usufruir deles, já que tu
não podes fazê-lo. Talvez a tua *inveja* tenha aconselhado Mr.
Heathcliff a despojar-me dos meus tesouros? Mas eu tenho a
maior parte deles escritos na minha memória e impressos no meu
coração e desses não pode ninguém privar-me!
Earnshaw ruborizara-se com as revelações da prima sobre a
sua reserva literária privada e balbuciou umas quantas
negativas às acusações sofridas.
-- Mr. Hareton deseja muito provavelmente aumentar os seus
conhecimentos -- observei eu, vindo em socorro dele. Não se
trata de ter inveja, minha senhora, mas sim da *ambição* de
possuir os seus conhecimentos. Estou certo de que ele será
dentro de poucos anos uma pessoa
instruída!
-- E, entretanto, quer ver-me a mim afogada em estupidez
-- retorquiu Gatherine. -- Eu bem o oiço a tentar soletrar e
a ler sozinho, dando erros uns atrás dos outros! Gostava que
repetisses a balada de Chevy Chase da maneira que a leste
ontem; foi divertidíssimo! Eu ouvi-te... e também te ouvi
folhear o dicionário à procura das palavras difíceis, e
praguejares por não entenderes as explicações.
Como se calcula, o jovem não gostava de ser alvo de chacota
devido à sua ignorância e aos seus esforços para se instruir,
e eu concordava com ele; então, recordando o episódio contado
por :, Mrs. Dean acerca da sua primeira tentativa de dissipar
as trevas em que fora criado,
observei:
-- Se me permite, Mrs. Heathcliff, acho que todos nós
tivemos um dia de começar e todos nós tropeçámos e vacilámos
no início. Tivessem os nossos professores rido em vez de nos
ajudarem, e continuaríamos ainda hoje a tropeçar e a vacilar.
-- Ora! -- respondeu ela -- Não é meu desejo limitar a sua
aquisição de conhecimentos... Mas ele não tem o direito de se
apropriar do que me pertence e de torná-lo ridículo aos meus
ouvidos com os seus erros terríveis e aquela pronúncia
defeituosa! Esses livros, tanto em prosa como em verso, são
para mim sagrados pela associação de ideias que sugerem, e
detesto vê-los devassados e profanados pela boca dele! Além
disso, ele escolheu, de entre todas, as minhas obras
predilectas, as que mais gosto de reler, como se o fizesse
premeditadamente!
Por instantes, o peito de Hareton palpitou em silêncio;
via-se que lutava contra arreigados sentimentos de humilhação
e raiva, que só a muito custo controlava.
Com a intenção cavalheiresca de minimizar o seu embaraço,
levantei-me e dirigi-me para o limiar da porta, apreciando a
paisagem que daí se disfrutava.
Ele seguiu-me o exemplo e abandonou a sala, para reaparecer
pouco depois, trazendo nas mãos meia dúzia de volumes que
atirou para o regaço de Catherine, dizendo:
-- Fica com eles! Nunca mais os quero ler, nem falar deles,
nem pensar mais neles!
-- Agora não os quero! -- volveu ela. -- Lembrar-me-ia de
ti sempre que os abrisse e passaria a odiá-los!
Catherine abriu um volume que já tinha sido, sem dúvida,
bastante manuseado e leu um excerto ao jeito hesitante de um
principiante; depois, deu uma gargalhada e empurrou o livro
com repulsa.
-- Ora escuta -- continuou, provocante, começando a ler da
mesma maneira uma passagem de uma velha balada.
O amor-próprio do rapaz não aguentou mais este tormento:
bem o ouvi, e não se pode dizer que tenha discordado de todo
do método, aplicar-lhe um correctivo manual, calando, assim,
aquela língua viperina. A inãolente tudo fizera para ofender
os sentimentos delicados, ainda que incultos, do primo, e um
argumento físico foi o único meio ao seu alcance para ajustar
contas e pagar-lhe na mesma moeda a humilhação sofrida. :,
Em seguida, apanhou os livros e deitou-os para a fogueira.
Pude ver na sua expressão a angústia que esse sacrifício lhe
causava. Julgo que, ao vê-los consumirem-se, recordava o
prazer que outrora lhe haviam proporcionado e que esperara
poder continuar a disfrutar. E adivinhei também qual devia ser
a motivação dos seus estudos secretos: toda a vida se
contentara com a faina do dia a dia e as suas diversões
boçais, até Catherine se atravessar no seu caminho; a
vergonha de ser escarnecido por ela e a esperança de por ela
ser incentivado foram os seus primeiros estímulos para voos
mais altos. Porém, em vez de lhe evitarem uma coisa e lhe
proporcionarem a outra, os seus esforços de elevação aos olhos
dela tinham produzido o efeito contrário.
-- Sim, é só esse benefício que um bruto como tu pode
extrair deles! -- gritou Catherine, mordendo o lábio ferido e
seguindo o auto-de-fé com um olhar indignado.
-- Acho melhor que te cales! -- ameaçou furioso o rapaz,
mas a agitação impediu-o de continuar. Dirigiu-se rapidamente
para a saída, de onde rapidamente me afastei para lhe dar
passagem. Porém, assim que transpôs o umbral, encontrou-se com
Mr. Heathcliff, que vinha a subir os degraus e o agarrou
pelos ombros, perguntando:
-- Que tens tu, rapaz?
-- Nada, nada! -- respondeu Hareton, desenvencilhando-se
dele para ir sofrer sozinho a sua cólera e o seu desgosto.
Mr. Heathcliff seguiu-o com o olhar e suspirou.
-- Seria estranho que me contradissesse a mim próprio!
--murmurou, sem se dar conta de que eu estava mesmo atrás
dele. Mas quando procuro no rosto dele a imagem do pai, é cada
vez mais o rosto *dela* que lá vejo! Como diabo pode ele ser
tão parecido? Até me custa olhar para ele!
Pousou os olhos no chão e entrou em casa carrancudo. Havia
nele uma ansiedade e uma inquietação que eu não lhe notara
antes, e parecia até mais afilado. A nora, ao avistá-lo da
janela, tratou de se escapar para a cozinha, pelo que me achei
sozinho na sala.
-- Muito folgo em vê-lo de novo cá por fora, Mr. Lockwood
-- disse ele, em resposta à minha saudação -- Em parte, por
motivos egoístas; não creio que me fosse fácil substituir a
sua falta neste descampado. Já várias vezes me perguntei o
que o terá trazido a estas paragens. :,
-- Apenas um capricho, suponho eu -- respondi. -- O mesmo
desejo que me impele agora para longe daqui: parto para
Londres na próxima semana e estou aqui para lhe comunicar que
não renovarei o contrato de arrendamento da Granja dos Tordos
para além dos doze meses inicialmente acordados. Não tenciono
continuar a morar lá.
-- Muito me conta! Com que então, canãou-se de viver
exilado do mundo? -- comentou. -- Mas se veio aqui com o
propósito de pedir para ser desobrigado de pagar os meses que
faltam, por não ir ocupar a propriedade, digo-lhe desde já que
perdeu a viagem. Nunca deixo de exigir o que me é devido.
-- Não vim cá para pedir coisa nenhuma! -- exclamei, já
bastante irritado. -- Se quiser, fechamos já as nossas
contas; e tirei a carteira do bolso.
-- Não, não -- respondeu friamente. -- Sei que deixa ficar
o suficiente para saldar as suas dívidas, se resolver não
voltar... Não tenho assim tanta pressa. Sente-se e jante
connosco; afinal, um hóspede que se sabe que não volta pode
ser muito bem recebido... Catherine! Venha pôr a mesa. Onde
está, Catherine?
Catherine reapareceu, transportando um tabuleiro com facas
e garfos.
-- Hoje janta com o Joseph -- ordenou-lhe Heathcliff a meia
voz. -- E deixe-se ficar na cozinha até ele se ir embora.
Ela obedeceu sem pestanejar às ordens dele; talvez não se
sentisse tentada a transgredi-las. Vivendo, como vive, entre
labregos e misantropos, é bem provável que não saiba apreciar
a companhia de pessoas de uma outra classe quando a
oportunidade se lhe depara.
Com Mr. Heathcliff, sinistro e saturnino de um lado, e
Hareton, mudo e quedo do outro, a refeição decorreu sem
alegria e despedi-me assim que pude. Poderia ter saído pelas
traseiras e visto Catherine ainda mais uma vez, para irritar
o velho Joseph, mas Hareton recebera ordens para me trazer o
cavalo para a entrada principal, e o meu anfitrião fez questão
de me acompanhar ele próprio até à porta, pelo que não pude
satisfazer o meu desejo.
«_Como é triste e monótona a vida nesta casa!» pensava eu,
enquanto cavalgava estrada fora. «_Para Mrs. Heathcliff,
seria a realização de algo ainda mais romântico que um conto
de fadas, se eu e ela nos tivéssemos afeiçoado, como a sua boa
aia desejava, e dali partíssemos os dois para a atmosfera
borbulhante da cidade!»
CAPíTULO XXXII
1802 -- Em Setembro fui convidado para umas batidas na
propriedade de um amigo meu, situada no Norte, e, durante a
jornada, dei comigo inesperadamente a quinze milhas de
Gimmerton. Estava eu parado numa taberna de estrada, para
refrescar os cavalos, quando passou uma carroça carregada de
aveia verdinha, acabada de ceifar, e o moço de cavalariça que
segurava no balde de onde os cavalos bebiam comentou:
-- Só pode vir das bandas de Gimmerton! Fazem sempre a sega
três semanas depois de toda a gente.
-- Gimmerton? -- repeti. A minha estada nesse local já se
esbatera na minha memória como um sonho. Ah! Já sei! A que
distância fica?
-- Umas catorze milhas, por montes e vales. Muito mau
caminho! -- explicou ele.
Acometeu-me o súbito desejo de visitar a Granja dos Tordos.
Pouco passava do meio-dia e lembrei-me de que bem poderia
passar a noite debaixo do meu próprio tecto, em vez de
pernoitar numa estalagem. Além disso, poderia perfeitamente
dispor de um dia para acertar as contas com o meu senhorio,
poupando-me assim o incómodo de ter de voltar àquelas
paragens.
Depois de descansar um pouco, mandei o meu criado
informar-se do caminho para a vila, e, para grande canseira
dos nossos animais, conseguimos cobrir a distância em pouco
mais de três horas.
Deixei o criado em Gimmerton e desci ao vale sozinho. A
igreja de pedra cinzenta dir-se-ia ainda mais cinzenta, e o
cemitério, já de si tão isolado, mais isolado ainda. Na
descida, avistei uma ovelha tosando a erva rala entre as
sepulturas. O tempo estava bom e :, quente -- quente demais
talvez para viajar -- mas o calor não me impediu de apreciar a
paisagem encantadora que se estendia para cima e para baixo.
Se tivesse vindo em Agosto, estou certo de que me teria
sentido tentado a passar um mês no meio de toda aquela
solidão. No Inverno nada havia de mais desolador; porém, no
Verão, nada de mais divino que estes vales estreitos, cavados
entre colinas, e o tapete agreste de urze ondeando nas
colinas.
Cheguei à Granja antes do pôr-do-sol e bati à porta, mas, a
julgar pela espiral de fumo azulado que se elevava da chaminé
da cozinha, calculei que os moradores estivessem nas
traseiras da casa e não me ouvissem; entrei, por isso, no
pátio: sentada sob o alpendre, uma rapariguinha de nove ou dez
anos fazia malha, e, reclinada sobre os degraus da porta da
cozinha, uma mulher já velha fumava um pensativo cachimbo.
-- Mrs. Dean está? -- perguntei à mulher.
-- Mrs. Dean? Não! Já cá não mora. Foi p.ro Alto.
-- Então a senhora é a nova governanta?
-- Sim senhor, sou eu quem toma conta da casa! --
respondeu.
-- Pois eu sou Mr. Lockwood, o seu patrão. Haverá algum
quarto pronto onde me possa instalar? Gostaria de passar cá a
noite.
O patrão! -- exclamou ela, pasmada. -- Como é que eu ia
adivinhar que o senhor voltava? Por que não mandou dizer que
vinha? Não há um só lugar em condições nesta casa; não há, não
senhor!
Pousou o cachimbo e correu para dentro de casa toda
azafamada, seguida da rapariga. Entrei também e logo me
apercebi da veracidade da informação e do quanto a minha vinda
inesperada havia transtornado a pobre mulher.
Tranquilizei-a: iria primeiro dar um passeio e, entretanto,
bastava que me preparasse um canto na sala onde eu pudesse
cear, e um quarto para dormir. Nada de varridelas nem grandes
limpezas, contentava-me com uma boa fogueira e lençóis
lavados.
Ela parecia desejosa de fazer o seu melhor, embora tivesse
metido o cabo da vassoura na lareira em vez do atiçador e
utilizado também erradamente outros utensílios. Não obstante,
retirei-me confiante na sua boa vontade em me arranjar um
sítio onde, na volta, pudesse descansar.
O Alto dos Vendavais era o destino da excursão a que me
propusera. Ia a sair do pátio quando me ocorreu outra
ideia.
-- Está tudo a correr bem no Alto? inquiri. :,
-- Acho que sim. Pelo que sei... -- respondeu ela, saindo
apressada com uma panela cheia de brasas de braçado.
Ainda tentei perguntar por que razão Mrs. Dean tinha
abandonado a Granja, mas era impossível prender a atenção da
mulher no meio de tanta azáfama; de forma que saí e fui
andando devagar, com a incandescência do crepúsculo atrás de
mim e, à minha frente, a limpidez do luar: um esmorecendo, o
outro clareando, à medida que eu transpunha os limites do
parque e subia a ladeira pedregosa que conduz à propriedade de
Mr. Heathcliff.
Ainda não tinha conseguido avistar a casa e tudo o que
restava da luz do dia era uma claridade difusa em tons de
âmbar, que se esfumava a oeste na linha do horizonte; podia,
contudo, enxergar cada pedra do caminho e cada folhinha de
erva, graças à esplêndida luminescência do luar.
Não foi preciso saltar a cancela nem bater: esta cedeu ao
primeiro contacto da mão. «_Grandes progressos!» pensei para
comigo. E notei ainda um outro, com a ajuda do olfacto: uma
fragrância de goivos e flores de trepadeira, que inundava o
ar, vinda dos lados do pomar.
Tanto as portas como as janelas se encontravam abertas, o
que não obstava, segundo o uso nas regiões ricas em carvão, a
que um belo fogo rubro iluminasse a lareira. O conforto que se
tira de tal visão compensa largamente o excesso de calor; além
disso, a sala é tão grande que os que lá moram têm espaço de
sobra para fugirem aos seus efeitos; desta feita, os seus
ocupantes haviam procurado assento perto de uma das janelas.
Antes mesmo de entrar, pude vê-los e ouvi-los a falar e, como
tal, deixei-me ficar a observar e a escutar, movido por um
misto de curiosidade e inveja que se intensificava à medida
que o tempo ia passando.
-- Con-*trário*! -- disse uma voz metálica e cristalina. --
Já é a terceira vez que repito o mesmo, meu grande ignorante.
E olha que não volto a repeti-lo mais vez nenhuma. Ou decoras,
ou puxo-te os cabelos!
-- Contrário, pronto -- respondeu outra voz, esta cava,
mas suave. -- E agora dá-me um beijo por ter aprendido tão
depressa.
-- Não, primeiro tens de ler tudo de novo, correctamente,
sem um único erro.
O falante masculino começou a ler: tratava-se de um jovem
respeitavelmente vestido, sentado a uma mesa e com um livro
diante de si. As suas feições atraentes irradiavam prazer e o
seu olhar :, errava impaciente da página para
a mão pequena e branca poisada no seu ombro, que o repreendia
com uma leve palmada na face, se o aluno se mostrava
desatento.
A dona da mão conservava-se de pé, atrás do rapaz; os seus
caracóis leves e reluzentes misturavam-se às vezes com os
anéis de cabelo castanho quando ela se inclinava para examinar
de perto o trabalho dele. E o rosto... Por sorte ele não podia
ver-lhe o rosto, senão como poderia manter-se atento? Eu, que
o podia ver, mordi o lábio de despeito por ter perdido a
oportunidade de fazer algo mais do que pasmar diante de uma
beleza tão impressionante.
A lição acabou, não sem o aluno ter dado mais alguns erros
de palmatória, mas, mesmo assim, ele reclamou a recompensa e
recebeu pelo menos cinco beijos que, generosamente,
retribuiu. Em seguida, encaminharam-se para a porta e, pela
conversa, percebi que planeavam ir dar um passeio pelo brejo.
Ciente de que seria condenado,
se não pela boca, pelo coração de Hareton, às mais
negras profundezas do Inferno, caso expusesse aos
seus olhos a minha indesejável presença, dei meia volta, numa
atitude mesquinha e cobarde, e procurei refúgio na cozinha.
Também nas traseiras encontrei o caminho desimpedido
e, ao chegar à porta da cozinha, encontrei a minha velha amiga
Nelly Dean, sentada a costurar e a cantarolar uma canção,
interrompida amiúde por ásperas palavras de desdém e
intolerância, vindas lá de dentro e proferidas em tom muito
pouco musical.
-- Antes escutar pragas de manhã á noite! -- rezingava o
indivíduo que estava na cozinha, em resposta a algum
comentário de Nelly, que não consegui perceber. -- É uma
vergonha qu.eu não possa abrir o Livro Sagrado sem que
vossemecê se ponha p.raí a entoar louvores a Satanás e a toda
a ruindade do mundo! Vossemecê é uma criatura pecadora e ela
é outra que tal. Pobre rapaz, há-de perder-se por causa
d.ambas. Coitado! -- acrescentou com um resmungo. -- Está
enfeitiçado, disso tenh.eu a certeza! Oh, Senhor, julg.as Tu,
pois não há lei nem justiça entre os nossos governantes!
-- Pois, pois... ou então seríamos queimadas na fogueira.
não? -- retorquiu a cantadeira. -- Ora esteja lá calado e vá
lendo a sua Bíblia como um bom cristão, e não faça caso de
mim. Esta cantiga chama-se *_As Bodas da Fada Annie* e é tão
alegre e tão bonita que até faz pular o pé.
Mrs. Dean estava prestes a retomar a cantoria quando me :,
aproximei dela; reconheceu-me no mesmo instante e, pondo-se
de pé alvoroçada, exclamou:
-- Ora bons olhos o vejam, Mr. Lockwood! Então o que o traz
por cá? Está tudo fechado na Granja dos Tordos. Devia ter-nos
avisado!
-- Já dei ordens para me prepararem acomodação durante o
pouco tempo que por cá ficarei -- respondi. -- Vou-me embora
amanhã. Mas conte-me cá, Mrs. Dean, como venho encontrá-la
aqui?
-- Logo depois do senhor regressar a Londres, a Zillah
foi-se embora e Mr. Heathcliff mandou-me chamar e disse-me
para ficar aqui até o senhor voltar. Mas faça o favor de
entrar! Vem de Gimmerton?
-- Venho da Granja -- volvi-lhe. -- E enquanto me preparam
lá o quarto, quero arrumar um assunto com o seu patrão, pois
tão cedo não terei outra oportunidade.
-- Que assunto? -- inquiriu ela, conduzindo-me à sala. -- O
patrão saiu. Eles não devem voltar tão cedo.
-- É sobre o arrendamento. -- esclareci.
-- Ah! Então é com Mrs. Heathcliff que terá de falar --
observou. -- Ou melhor, comigo. Ela ainda não aprendeu a
tratar dos negócios e sou eu quem tem de o fazer no seu lugar,
pois não há mais ninguém para o fazer.
Olhei-a, surpreendido.
-- Pelo que vejo, não sabe da morte de Mr. Heathcliff! --
acrescentou.
-- Mr. Heathcliff morreu? -- exclamei, perplexo. Há quanto
tempo?
-- Há cerca de três meses; sente-se e dê-me o seu chapéu que
eu á lhe conto tudó. Mas... espere... o senhor ainda não comeu
nada, pois não?
-- Não, mas não quero nada, obrigado. Tenho a ceia à minha
espera lá na Granja. Sente-se a senhora aqui também. Não fazia
a mínima ideia de que ele tivesse morrido! Conte-me como tudo
se passou. Disse que não os espera tão cedo... referia-se aos
jovens?
-- Todas as noites ralho com eles por causa destes passeios
tardios, mas não me ligam nenhuma. O senhor vai ao menos
beber um pouco da nossa cerveja. Vai fazer-lhe bem! Está com
um ar muito cansado. :,
Apressou-se a ir buscar a dita cerveja sem me dar tempo
sequer a recusar, e ouvi Joseph rabujar se «não era um
escândalo dar-lhe agora para ter namorados naquela idade
e ainda por cima ir encher a caneca à adega do patrão para
lhes dar de beber?! Até se sentia envergonhado por ter de
assistir calado a um tal atrevimento».
Ela não lhe deu troco e voltou daí a instantes com uma
caneca de prata a transbordar de espuma, cujo contondo elogiei
com crescente entusiasmo. A seguir, contou-me então o
desfecho da saga de Heathcliff: um «fim bem estranho», como o
fez notar.
Quinze dias depois de o senhor nos deixar -- disse a Nelly
-- fui chamada ao Alto dos Vendavais. Claro que obedeci com o
maior prazer por causa de Catherine.
O nosso primeiro encontro entristeceu-me e impressionou-me
muito! Como ela tinha mudado desde a nossa separação! Mr.
Heathcliff não me explicou as razões que o haviam levado a
mudar de ideias acerca da minha vinda para aqui; disse-me
apenas que precisava de mim e que já estava farto de ver
Catherine à frente dele; que eu passasse os dias na saleta e a
conservasse junto de mim; a ele chegava-lhe ser obrigado a
enfrentá-la uma ou duas vezes por dia.
Catherine mostrou-se satisfeita com a situação e, aos
poucos, fui trazendo para cá às escondidas livros e outros
objectos que antigamente constituíam a sua distracção na
Granja; sentia-me feliz por termos, finalmente, algum
conforto.
Mas esta ilusão não durou muito: Catherine, que a princípio
parecia contente, não tardou a ficar inquieta e irritável; por
um lado, estava proibida de sair para o jardim, e aborrecia-a
ver-se confinada a um espaço tão exíguo à medida que a
Primavera se aproximava; por outro, a lida da casa obrigava-me
a deixá-la sozinha com frequência, e ela queixava-se de
solidão; preferia vir discutir com Joseph para a cozinha a
ficar em paz no seu isolamento.
Eu não ligava às zaragatas deles. Porém, o Hareton era
muitas vezes obrigado a refugiar-se também na cozinha quando o
patrão queria ficar sozinho na sala; e, embora a princípio ela
se afastasse ou me viesse ajudar nas minhas ocupações sempre
que ele entrava, para não ter de falar
com ele, e embora o Hareton andasse sempre o mais mal-humorado
e calado possível, a atitude dela mudou ao fim de algum tempo,
passando a mostrar-se incapaz de o deixar sossegado. Ralhava
com ele, criticava a sua indolência e a sua :, estupidez e
dizia que não sabia como ele podia levar semelhante
existência: como era possível que pudesse passar uma noite
inteira a olhar para o fogo e a dormitar.
-- É tal qual um cão, não achas, Ellen? -- observou uma
vez. -- Ou um cavalo de tiro: faz o que lhe mandam, come o que
lhe dão e põe-se a dormir, mais nada! Que vazio e apagado deve
ser o seu espírito! Costumas sonhar, Hareton? E, se sonhas, de
que são feitos os teus sonhos? Não tens língua?
Fitou-o, mas ele não abriu a boca, nem olhou para ela.
-- Se calhar neste momento está a sonhar... -- prosseguiu
Catherine. -- Olha, olha, sacudiu-se todo, como faz a Juno.
Pergunta-lhe, Ellen.
-- Olhe que Mr. Hareton ainda acaba por ir pedir ao patrão
que a mande lá para cima, se a menina se continuar a portar
desta maneira! adverti-a. É que ele tinha não só sacudido o
corpo, mas também cerrado os punhos, como se estivesse tentado
a usá-los.
-- Eu sei por que razão o Harteton nunca abre a boca quando
estou na cozinha -- exclamou ela numa outra ocasião. -- Tem
medo que eu troce dele. Que te parece, Ellen? Um dia começou a
aprender a ler sozinho e, só por eu me ter rido dele, queimou
os livros e desistiu. Não achas que foi uma parvoíce?
-- Ou não terá sido antes uma maldade sua? -- aventei. --
Ora diga lá!
-- Talvez eu tenha sido um pouco mazinha -- condescendeu, --
mas nunca imaginei que ele fosse tão tolo. Ouve, Hareton, se
eu te der um livro, aceita-lo desta vez? Vou
experimentar!
Catherine colocou-lhe na mão o livro que estava a ler.
Hareton atirou-o pelos ares, ameaçando entre dentes que, se
ela não o deixasse em paz, lhe torcia o pescoço.
-- Bem, vou deixá-lo aqui -- anunciou -- na gaveta da mesa
da cozinha. E agora vou-me deitar.
Segredou-me então que visse se ele tocava no livro e saiu.
O rapaz, no entanto, nem dele se acercou, o que a desiludiu
imenão quando lhe contei na manhã seguinte. Percebi que o mau
humor e a constante indolência de Hareton a penalizavam, pois
a consciência acusava-a de ter desencorajado a sua vontade de
se aperfeiçoar. E, de facto, a culpa era toda dela.
Todavia, teve artes de remediar o mal que fizera: enquanto
eu passava a ferro ou me ocupava de outras tarefas igualmente
estáticas :, que não podia fazer na saleta, Catherine ia
buscar um livro de leitura agradável e punha-se a lê-lo em voz
alta para me distrair. Se o Hareton estava presente, ela
interrompia geralmente a leitura numa passagem palpitante e
deixava ficar o livro aberto. Fez isto várias vezes, mas ele,
teimoso que nem um burro, em vez de morder o isco, ia fumar
para junto de Joseph, especialmente nos dias chuvosos. E ali
ficavam eles, como dois autómatos, um de cada lado da chaminé;
o mais velho era, felizmente, demasiado surdo para ouvir os
disparates maldosos de Catherine, como ele lhes chamava, e o
mais novo fingia não lhes dar atenção. Nas noites amenas,
Hareton ia para a caça e Catherine ficava a suspirar e a
bocejar e a insistir comigo para que conversasse com ela;
porém, assim que eu acedia e começava a falar, corria a
refugiar-se no pátio ou no jardim, ou, como último recurso,
punha-se a chorar e declarava-se farta daquela existência sem
sentido.
Mr. Heathcliff, cada vez mais arredio, banira Earnshaw dos
seus aposentos quase por completo, e, devido a um acidente
ocorrido no começo de Março, o rapaz foi obrigado a passar
alguns dias enfiado na cozinha: a espingarda rebentara-lhe nas
mãos quando ele se encontrava nas colinas e um estilhaço
ferira-lhe o braço e ele perdera muito sangue até chegar a
casa. Por conseguinte, viu-se condenado à tranquilidade da
lareira até se recuperar.
Escusado será dizer que, para Catherine, isto veio mesmo a
calhar: passou a detestar ainda mais o seu próprio quarto e,
para poder estar comigo na cozinha, obrigava-me a inventar-lhe
ocupações cá em baixo.
Na segunda-feira de Páscoa, Joseph foi à feira de Gimmerton
com algumas cabeças de gado e eu passei a tarde na cozinha a
engomar; Hareton, sorumbático como sempre, estava sentado a um
canto da chaminé; a minha jovem patroa passou uma boa hora
entretida a desenhar figuras na vidraça com o dedo, por entre
suspiros e ais, súbitos gorjeios e olhares furtivos de tédio
e impaciência que desfechava contra o primo, enquanto este,
impávido, fumava de olhos fixos na fogueira.
Pedi à menina que não me tirasse a luz, e ela afastou-se da
janela e chegou-se para a lareira. Não prestei atenção ao que
fazia, mas a certa altura ouvi-a dizer:
-- Sabes uma coisa, Hareton, descobri que quero... que até
gosto que sejas meu primo... desde que não passes a vida
zangado comigo, nem te mostres sempre mal-humorado. :,
O rapaz não respondeu.
-- Hareton, Hareton! Estás a ouvir-me? -- insistiu ela.
-- Deixa-me em paz! -- resmungou ele, com aspereza.
-- Dá-me cá esse cachimbo! -- teimou ela, estendendo a mão
cautelosamente e tirando-lhe o cachimbo da boca.
Antes que Hareton tentasse recuperá-lo, já ela o havia partido
e 1ançado à fogueira. O rapaz praguejou e foi buscar outro.
-- Espera! gritou a prima. Tens de me ouvir primeiro, e eu
não consigo falar com essas baforadas de fumo na minha cara.
-- E se fosses pr.ó diabo e me deixasses em paz?! --
exclamou ele, furibundo.
-- Não! -- afirmou ela, persistente. -- Francamente já não
sei que fazer para que fales comigo, e tu pareces determinado
a não me entenderes. Quando te chamo estúpido, isso não quer
dizer nada, não significa que te despreze. Vá lá, Hareton,
dá-me um pouco de atenção. Sou tua prima e deves reconhecer-me
como tal.
-- Não quero nada contigo, nem com o teu maldito orgulho,
nem com as tuas piadas cruéis! -- ripostou ele. -- Antes quero
ir direito para o Inferno, de corpo e alma, do que olhar para
ti duas vezes! Sai já de ao pé de mim!
Catherine amuou e voltou a sentar-se no poial da janela,
mordendo o lábio e entoando uma melodia desafinada, para
esconder a sua crescente vontade de chorar.
-- Devia ser amigo da sua prima, Mr. Hareton -- atalhei eu
-- já que ela se mostra arrependida das suas inãolências.
Seria bom para si. Tornar-se-ia num outro homem, se a tivesse
por companheira.
-- Companheira? -- exclamou Hareton -- Pois se ela me odeia
e não me acha digno nem de lhe limpar os sapatos! Ná! Nem para
ser rei eu me sujeitava a ser escarnecido novamente por
procurar a sua amizade.
-- Não sou eu que te odeio, és tu que me odeias a mim! --
choramingou Cathy, sem poder esconder o seu desgosto.
--Detestas-me tanto como Mr. Heathcliff, ou mais ainda.
-- És uma grande mentirosa! -- principiou Earnshaw -- Então
por que é que o fiz enfurecer centenas de vezes por tomar o
teu partido? E isso quando tu escarnecias de mim e me
desprezavas e... e se continuas a atazanar-me, vou-me embora e
digo-lhe que foste tu quem me pôs fora da
cozinha!
-- Não sabia que tinhas tomado o meu partido admirou-se :,
ela, limpando as lágrimas. Eu fui refilona e ma com todos vós,
mas agora agradeço-te e imploro-te que me perdoes. Que mais
posso fazer?
Cathy voltou para junto da lareira e estendeu-lhe a mão,
com sinceridade. Ele, porém, carregou ainda mais o cenho e
conservou os punhos teimosamente fechados e o olhar pregado no
chão. Catherine, instintivamente, deve ter adivinhado que
aquele comportamento era ditado mais por casmurrice que por
aversão, já que, após uns segundos de indecisão, se inclinou
para ele e o beijou ternamente na
face.
A marota penãou que eu não vira, e voltou de pronto para
junto da janela com o ar mais recatado deste mundo.
Abanei a cabeça, num gesto de censura, e ela então
ruborizou-se e sussurrou:
-- Bem, Ellen, que querias tu que eu fizesse? Ele não me
queria apertar a mão, ele não queria olhar para mim... Eu
tinha de arranjar uma maneira de lhe mostrar que gosto dele e
que quero que sejamos amigos.
Se o beijo convenceu Hareton, isso não sei; durante alguns
minutos, ele teve o cuidado de não deixar ver a cara e, quando
finalmente a levantou, estava tão atrapalhado que não sabia
para onde olhar.
Catherine, entretanto, ocupara-se a embrulhar esmeradamente
um belíssimo livro numa folha de papel branco e, depois de o
amarrar com uma fita e de escrever no embrulho «_Para Mr.
Hareton Earnshaw», pediu-me que servisse de embaixadora e
entregasse o presente ao destinatário.
-- E diz-lhe que, se o aceitar, lhe ensino a lê-lo como
deve ser -- acrescentou. -- E que, se se recusar, me retiro
para o meu quarto e nunca mais o importuno.
Levei o livro e repeti o recado, sob o olhar ansioso da
minha jovem patroa. Hareton não estendeu as mãos para o
receber e, por isso, coloquei-lhe o embrulho sobre os joelhos.
Verdade seja que também não o recusou. Voltei para o meu
trabalho. Catherine apoiara a cabeça e os braços em cima da
mesa e assim se deixou ficar até ouvir o ligeiro retolhar do
papel a ser desembrulhado. Levantou-se então devagarinho e
foi sentar-se ao lado do primo. O rapaz estremeceu, mas o seu
rosto irradiava felicidade, sem quaisquer vestígios de rudeza
ou hostilidade, e sem coragem para dar qualquer :,
resposta ao olhar interrogativo de Catherine e à sua súplica
quase sussurrada:
-- Diz que me perdoas, Hareton! Ficaria tão feliz só de
ouvir essa palavra.
Ele murmurou qualquer coisa inaudível.
-- E passas a ser meu amigo? -- acrescentou Catherine,
esperançosa.
-- Não! Ias ter vergonha de mim pela vida fora -- retorquiu
ele. -- E quanto melhor me conhecesses, mais vergonha terias,
e eu não posso suportar essa ideia.
-- Então não queres ser meu amigo? disse ela, com um
sorriso doce como mel, chegando-se mais para o primo.
Não percebi mais nada do que diziam; mas, quando tornei a
olhar, vi dois rostos radiantes inclinados sobre uma página do
tal livro, e não tive dúvidas de que o tratado de paz tinha
sido assinado por ambas as partes. E, desde esse dia, os
inimigos tornaram-se aliados.
O volume que folheavam continha belas gravuras e o prazer
de as contemplarem lado a lado manteve-os entretidos até à
chegada de Joseph. O pobre homem ficou horrorizado quando viu
Catherine sentada no mesmo banco de Hareton Earnshaw e, ainda
por cima, com a mão poisada no seu ombro. Não conseguia
perceber por que razão o seu favorito suportava aquela
proximidade. A tal ponto ficou desconcertado que, naquela
noite, não fez quaisquer comentários. A sua emoção apenas foi
traída pelos profundos suspiros que soltou quando, com toda a
solenidade, colocou a sua enorme Bíblia em cima da mesa e,
sobre ela, o maço de notas que tirou da carteira, produto das
transacções do dia. Por fim, disse a Hareton para se levantar.
-- Leve este dinheiro ao patrão, menino, e fique por lá --
disse. -- Eu cá vou p.ro meu quarto; este lugar não nos
convém; temos de ir procurar outro poiso!
-- Nós também temos de ir para outro poiso, Catherine --
disse eu. Já acabei de passar a roupa. Vamos embora?
Mas ainda não são oito horas! -- resmungou ela, erguendo-se
de má vontade. -- Hareton, vou deixar este livro aqui em cima
da chaminé e amanhã trago-te mais.
-- Os livros que aí deixar, atiro-os ao lume ameaçou
Joseph. -- Já fica sabendo! :,
Cathy replicou que, se tal acontecesse faria o mesmo aos
livros dele. Depois sorriu ao passar por Hareton e subiu a
escada a cantarolar. Sou capaz de jurar que nunca se sentira
tão feliz debaixo deste tecto; a não ser talvez nas suas
primeiras visitas a Linton.
A intimidade assim iniciada cresceu rapidamente, embora se
lhe tivessem deparado alguns obstáculos: Earnshaw não podia
tornar-se num ser civilizado de um dia para o outro, e a
minha jovem patroa também não era nenhuma filósofa, nem nenhum
modelo de paciência. Mas, uma vez que os desejos de um e de
outro convergiam (um sendo amado e desejando alguém para
estimar, e o outro amando e desejando ser estimado),
conseguiram finalmente alcançar os seus
objectivos.
Como vê, Mr. Lockwood, era muito fácil conquistar o coração
de Mrs. Heathcliff. Mas agora estou contente por o senhor não
ter tentado: a coroa de glória de todos os meus desejos será a
união daqueles dois. Não invejarei ninguém no dia do seu
casamento e serei a mulher mais feliz de toda a Inglaterra!
CAPíTULO XXXIII
No dia seguinte a essa segunda-feira, estando Earnshaw
ainda incapaz de se entregar às tarefas habituais, e tendo,
por isso, ficado dentro de casa, depressa compreendi que já
não me era possível, manter a minha pupila junto de mim como
até aqui.
Veio para baixo antes de mim e saiu para o quintal, onde
avistara o primo às voltas com um trabalho de pouca
dificuldade. Porém, quando os fui chamar para o pequeno
almoço, vi que ela o convencera a limpar uma vasta área de
groselheiras e mirtilos, e que estavam os dois muito
entretidos a planear trazer da Granja novas plantas.
Fiquei aterrada com a devastação levada a cabo naquela
escassa meia-hora; os mirtilos eram as meninas dos olhos de
Joseph e ela tinha resolvido de repente construir ali no meio
um canteiro de flores!
-- Sim, senhor! -- exclamei. O patrão vai saber disto assim
que o Joseph descobrir, e que desculpa vão dar para terem
tomado tais liberdades com o quintal? Vai ser o bom e o
bonito, ora se vai! Muito me admira, Mr. Hareton, que tenha
tido tão pouco siso para fazer uma coisa destas a pedido dela!
-- Esqueci-me de que eram do Joseph desculpou-se --
Earnshaw, muito atrapalhado. -- Mas eu digo-lhe que fui
eu.
Tomávamos sempre as refeições com Mr. Heathcliff, e eu
substituía a minha jovem patroa a trinchar a carne e a servir
o chá; a minha presença à mesa era, por isso, indispensável.
Catherine sentava-se geralmente ao meu lado, mas nesse dia
chegou-se mais para junto do Hareton, e percebi que não seria
mais discreta nas suas afeições do que era na sua hostilidade.
-- Veja lá se não dá demasiada atenção ao seu primo --
segredei-lhe, quando entramos na sala. -- Isso vai aborrecer
Mr. Heathcliff e pô-lo furioso com os dois.
-- Não vou dar -- respondeu.
Porém, a primeira coisa que fez foi chegar-se para ele e
começar a meter-lhe prímulas em botão nas papas de
aveia.
Ele nem abriu a boca e mal se atrevia a olhar para ela;
ela, no entanto, continuou a provocá-lo até ele já não poder
conter o riso; olhei-a muito séria, e ela então virou-se para
o patrão, que, via-se pela cara, estava mais preocupado com
outras coisas do que com a presença do Hareton, e pôs-se
também muito séria por um instante, observando-o com toda a
atenção, posto o que se voltou para o outro lado e recomeçou
com os disparates; até que Hareton, sem poder mais, deixou
escapar uma risada.
Mr. Heathcliff sobressaltou-se; os seus olhos percorreram
num ápice os nossos rostos e Catherine enfrentou-o com aquele
seu olhar nervoso e, não obstante, desafiador, que ele tanto
abominava.
-- Ainda bem que não está ao meu alcance -- exclamou. --
Que bicho lhe mordeu para se pôr a olhar para mim dessa
maneira, com esses olhos de diaba? Olhos para baixo! E que eu
não dê mais pela sua presença. Julguei que já se tinha curado
dessa sua mania de rir por tudo e por nada!
-- Fui eu -- murmurou Hareton.
-- Que dizes? -- perguntou o patrão.
Hareton pausou os olhos no prato e não repetiu a confissão.
Mr. Heathcliff fitou-o por um instante e, depois,
silenciosamente, voltou ao seu pequeno almoço e à meditação
interrompida.
Estávamos quase a acabar, e os dois jovens já se tinham
prudentemente afastado, pelo que não era de prever que mais
alguma coisa acontecesse. Eis senão quando, surge Joseph entre
portas, deixando bem patente pelo lábio trémulo e o olhar
colérico que já tinha detectado a afronta cometida contra os
seus preciosos arbustos. Devia ter visto Cathy e o primo no
local antes de lá ter ido inspeccioná-lo, pois foi assim que
começou, de queixo a tremer como uma vaca a ruminar, e sem
deixar perceber metade do que dizia:
-- Quero o meu dinheiro, e vou-m.imbora! Bem m.agradava
morrer onde servi sessent.anos; fazia tenção de levar os meus
livros p.ro sótão, e todos os meus trastes, e deixar-lhes a
cozinha p.ra eles, p.ra eu ter paz e sossego. Ia custar-me
deixar o meu canto à lareira, mas isso eu .inda fazia! Mas
tirarem-m.o meu jardim, por minha fé, isso eu não vou
aguentar! O senhor que aguente se quiser. Isto p.ra :,
mim não serve, e burro velho não aprende línguas. Antes ir
ganhar o pão na estrada de maço na mão!
-- Calma, idiota! -- interrompeu-o Heathcliff. -- Acaba lá
com isso! O que é que te apoquenta? Olha que eu não me meto
nas tuas brigas com a Nelly; por mim, ela até pode atirar-te
para o depósito do carvão, que não me ralo
nada.
-- Não foi a Nelly! -- resmungou Joseph. -- Por ela eu não
m.ia imbora. É má com.às cobras, mas... Graças a Deus!... não
tem força p.ra roubar a alma a uma pessoa! Nunca teve boniteza
p.ra levar ninguém no bico. É essa sua princesa amaldiçoada,
que enfeitiçou o rapaz c.os seus olhos descarados e os seus
modos atrevidos, até que... Ah, que se me parte o coração!...
ele se esqueceu de tudo o qu.eu fiz por ele, de tudo o qu.eu
lhe dei, e zás, deita-m.abaixo um renque inteirinho das
melhores groselheiras do quintal! -- E Joseph continuou por aí
fora, dando largas às lamentações, dilacerado pela atrocidade
cometida e pela ingratidão e loucura de Earnshaw.
-- Acaso o idiota está bêbado? -- perguntou Mr. Heathcliff.
-- Hareton, é contigo que ele está ofendido?
-- Só arranquei dois ou três arbustos admitiu o jovem. --
Mas posso voltar a pô-los no lugar.
-- E arrancaste-os porquê? -- continuou o patrão.
Catherine, avisadamente, meteu-se na conversa.
-- Queremos plantar lá umas flores -- explicou, toda
serigaita. -- A única culpada sou eu, pois fui eu quem o
mandou fazer isso.
-- E quem diabo lhe deu autorização para tocar num só ramo
que fosse deste lugar? -- perguntou-lhe o sogro, estupefacto.
-- E quem te mandou a ti obedecer-lhe?
-- acrescentou, virando-se para Hareton, que não conseguiu
responder. Mas a prima ajudou-o.
-- O senhor não devia estar a regatear uns palmos de
chão para eu enfeitar, quando me tirou todas as minhas terras!
-- As suas terras, sua cadela inãolente? Pois se nunca teve
nada! -- bradou Heathcliff.
-- E o meu dinheiro também -- prosseguiu ela,
devolvendo-lhe o olhar irado, ao mesmo tempo que
trincava uma côdea de pão, o que restava do seu pequeno
almoço.
-- Silêncio! -- exclamou Heathcliff. -- Já chega, ponha-se
daqui para fora!
-- E as terras do Hareton, e o dinheiro dele! -- continuou
a temerária rapariga. -- Agora, eu e o Hareton somos amigos e
vou contar-lhe tudo o que sei de si! :,
O patrão pareceu ficar atordoado por um instante.
Empalideceu e levantou-se, sempre de olhos postos em
Catherine, com um ódio mortal no olhar.
-- Se me bater, o Hareton dá cabo de si! -- ameaçou ela.
--Por isso, é melhor sentar-se.
-- Se o Hareton não a levar daqui para fora, mando-o para o
inferno -- bradou Heathcliff. -- Bruxa maldita! Como ousa
virá-lo contra mim? Fora com ela! Não ouves? Leva-a para a
cozinha! Olha que eu mato-a, Ellen Dean, se a deixas aparecer
outra vez à minha frente!
O Hareton tentou convencê-la à socapa a ir-se embora.
-- Levem-na daqui! -- gritou, ameaçadoramente. -- Ou vão
ficar na conversa? -- E, dizendo isto, aproximou-se dela para
executar a sua própria ordem.
-- Ele já não lhe obedece mais, seu malvado! -- exclamou
Catherine. -- E não tarda que o odeie tanto como eu!
-- Calma, calma! -- murmurou o jovem em tom de censura. --
Não consinto que fales assim com ele... Já chega.
-- Mas não vais deixar que ele me bata, pois não? -- gritou
ela.
-- Vamos embora! -- insistiu ele baixinho, mas com firmeza.
-- Demasiado tarde. Heathcliff já a tinha agarrado.
-- Agora *tu* vais-te embora! -- disse, virando-se para
Earnshaw. -- Bruxa maldita! Desta vez ela provocou-me quando
não devia e vou fazê-la arrepender-se para
sempre!
Tinha-a presa pelos cabelos com uma mão; Hareton tentou
soltar-lhe os caracóis, implorando-lhe que, só por aquela
vez, não a magoasse. Os seus olhos negros faiscavam e parecia
prestes a fazer Catherine em bocados, e eu já me preparava
para me arriscar a vir em seu auxílio, quando, de repente, os
dedos dele afrouxaram, largando-lhe os cabelos e
agarrando-lhe o braço, e os seus olhos se fixaram intensamente
no rosto dela. Em seguida, levou a mão aos olhos, cobrindo-os,
ficando assim por um momento, aparentemente para se
controlar, e, voltando-se de novo para Catherine, disse com
uma calma forçada:
-- Tem de aprender a não me enfurecer, senão ainda um dix a
mato! Vá com a Ellen e deixe-se estar com ela, ela que a
ature. Quanto ao Hareton Earnshaw, se o apanho a dar-lhe
ouvidos, mando-o ganhar o pão onde o conseguir arranjar! O seu
amor fará dele um pedinte sem eira nem beira. Nelly, leva-a
daqui, e vós deixai-me em paz. Todos vós!
Deixai-me! :,
Levei a menina da sala; estava contente demais por ter
escapado para oferecer resistência; o outro saiu também e Mr.
Heathcliff ficou sozinho na sala até à hora do
jantar.
Eu aconselhara Catherine a jantar no quarto, mas ele, mal
se apercebeu da cadeira vazia, mandou-me ir chamá-la. Não
falou com nenhum de nós durante o jantar, comeu muito pouco e
saiu logo a seguir, comunicando que não devia voltar antes do
anoitecer.
Os dois amigos ficaram com a casa por sua conta durante a
ausência do patrão, e foi então que ouvi Hareton admoestar
severamente a prima quando esta se preparava para lhe contar
o que sabia da conduta do sogro para com o pai
dele.
Disse-lhe que não queria ouvir nem uma só palavra contra
Heathcliff; se ele era o diabo em pessoa, não se notava;
estaria sempre pronto a defendê-lo, e preferia que ela o
insultasse a ele, como costumava fazer, a vê-la ofender Mr.
Heathcliff.
Catherine reagiu violentamente, mas ele arranjou maneira de
a calar, perguntando-lhe se ela também gostava que ele
dissesse mal do pai dela. Foi nessa altura que ela compreendeu
que Earnshaw se identificava com Heathcliff e estava ligado a
ele por laços que a razão não conseguiria destruir, por elos
que o hábito forjara e seria agora cruel demais tentar
quebrar.
A partir desse dia, Catherine teve o cuidado de evitar
tanto queixas como quaisquer outras expressões de antipatia
em relação a Heathcliff, e confessou-me o seu arrependimento
por ter criado aquele atrito entre ele e o Hareton. Estou
mesmo convencida de que daí em diante não voltou a dizer a
Hareton uma palavra que fosse contra o seu
opressor.
Uma vez serenados os ânimos, voltaram a ser unha com carne,
mostrando-se mais atarefados que nunca nos seus papéis de
aluno e professora. Vim sentar-me ao pé deles, depois de
terminar as minhas tarefas, e era tão reconfortante ficar a
observá-los, que nem dei pelas horas passarem. Sabe, de certa
forma, era como se os dois fossem meus filhos: há muito que me
orgulhava dela e, agora, tinha a certeza de que também ele
seria para mim fonte de grande alegria. A sua natureza
honesta, afável e inteligente depressa dissipou as nuvens de
ignorância e degradação em que fora criado, e os elogios
sinceros de Catherine funcionaram como um estímulo. O refinar
do espírito reflectia-se agora na fisionomia, conferindo-lhe
nobreza e vivacidade. Custava a crer que se tratava da mesma
pessoa que eu :, tinha visto no dia em que foi dar com a minha
jovem patroa no Alto dos Vendavais, depois do passeio aos
Crags.
Enquanto eu assistia, e eles trabalhavam, veio o crepúsculo
e, com ele, o patrão. Entrando de imprevisto pela porta da
frente, pôde colher uma imagem integral de nós três, mesmo
antes de termos tempo para levantar a cabeça e olhar para
ele.
Bem, pensei eu, cena mais bonita e inofensiva não pode
haver; será um escândalo ralhar com eles. A chama da vela,
brilhando por cima das duas cabeças, iluminava-lhes os rostos
animados do mais pueril entusiasmo; é que, apesar dos vinte e
três anos dele e dos dezoito dela, cada um tinha tanta coisa
nova para experimentar e para aprender que não sentiam, nem
davam mostra, do sóbrio desencantamento próprio das idades
mais maduras.
Levantaram os dois os olhos ao mesmo tempo, ao encontro dos
de Mr. Heathcliff; talvez o senhor não tenha reparado que os
olhos deles são precisamente iguais e exactamente como os de
Catherine Earnshaw. Esta Catherine não tem outras parecenças
com ela, excepto a testa alta e um certo arquear das narinas
que, quer ela queira, quer não, lhe dá aquele ar altivo. Com
Hareton as semelhanças vão mais longe; bem visíveis em
qualquer altura, eram particularmente flagrantes agora, que
os seus sentidos estavam alerta e as suas faculdades mentais
despertas para uma actividade desusada.
Suponho que esta semelhança terá desarmado Mr. Heathcliff:
dirigiu-se para a chaminé visivelmente agitado, mas serenou
mal olhou para o jovem; ou, melhor dizendo, mudou de
expressão, pois a emoção continuava lá.
Arrancou o livro das mãos de Hareton, olhou de relance para
a página em que ele estava aberto e devolve 1-lho sem
comentários, limitando-se a fazer sinal a Catherine para se
retirar; o amigo saiu logo a seguir, e eu preparava-me para ir
atrás quando Heathcliff me mandou ficar sentada.
-- Triste final, não te parece? -- observou, depois de ter
meditado por uns momentos na cena que acabara de presenciar.
-- Um desfecho absurdo para esforços tão encarniçados? Trago
eu alavancas e picaretas para demolir as duas casas,
treino-me para um trabalho digno de Hércules, e quando tudo
está pronto e ao meu alcance, descubro que perdi a vontade de
levantar as primeiras telhas! Os velhos inimigos não me
venceram; este é o momento ideal para me vingar nos seus
descendentes e poderia fazê-lo; e :, ninguém me poderia
impedir. Mas para quê? Já não me interessa desferir o golpe,
já não me apetece erguer o braço! Pode até parecer que me
empenhei todo este tempo só para exibir agora este louvável
rasgo de magnanimidade. Longe de mim tal ideia; apenas perdi a
capacidade de sentir prazer na sua destruição e sou demasiado
preguiçoso para os destruir sem proveito.
-- Sabes, Nelly, sinto que uma grande mudança se aproxima,
e eu estou neste momento sob os seus efeitos. Interesso-me tão
pouco pelo dia a dia que nem me lembro de comer ou beber.
Esses dois que saíram da sala são os únicos objectos que
continuam a possuir para mim uma aparência real; e essa
aparência real faz-me sofrer até à agonia. *_Nela* não quero
falar... Tão pouco pensar. Gostaria sinceramente que fosse
invisível. A sua presença apenas conjura sensações
alucinantes. Com *ele* é diferente; no entanto, se pudesse
fazê-lo sem parecer estar louco, não mais o veria! Talvez tu
aches que para lá caminho -- acrescentou, fazendo um esforço
para sorrir -- se eu tentar descrever as mil associações
feitas no passado e as ideias que ele gera ou representa...
Mas não repetirás uma palavra do que ouvires. A minha mente
está há tanto tempo fechada em si mesma que é pelo menos
tentador abri-la para alguém.
-- Ainda há cinco minutos o Hareton me pareceu a
personificação da minha juventude e não um ser humano. E isso
provocou em mim sentimentos tão variados, que me teria sido
impossível falar com ele com racionalidade.
-- Para começar, a sua espantosa semelhança com a Catherine
fez-me associá-lo assustadoramente a ela, embora isso, que tu
certamente julgas ser o que mais me prendeu a imaginação,
fosse realmente o menos importante... Mas o que não associo
eu a ela? O que não ma traz à memória? Se olho para estas
lajes, vejo nelas gravadas as suas feições! Em cada nuvem, em
cada árvore, na escuridão da noite, reflectida de dia em cada
objecto, por toda a parte eu vejo a sua imagem! Nos rostos
mais vulgares de homens e de mulheres, até as minhas feições
me enganam com a semelhança. O mundo inteiro é uma terrível
colecção de testemunhos de que um dia ela realmente existiu e
a perdi para sempre!
-- Assim, a figura do Hareton era o fantasma do meu amor
imortal, dos meus esforços sobre-humanos para fazer valer os
meus direitos, a minha degradação, o meu orgulho, a minha
felicidade e a minha angústia. Mas é loucura minha revelar-te
agora os meus :, pensamentos; só servirá para te mostrar por
que razão, apesar da minha relutância em ficar sozinho, a sua
companhia não me traz qualquer benefício, e sim, muito pelo
contrário, um agravamento do tormento constante em que vivo,
contribuindo em parte para me tornar indiferente perante a
maneira como ele e a prima se relacionam. Já não consigo
prestar-lhes atenção.
-- Mas que quer o senhor dizer com *uma mudança*, Mr.
Heathcliff? -- perguntei, alarmada com a sua atitude, embora
não me parecesse correr o risco de perder o siso ou de se
finar. Em minha opinião, estava até bem forte e saudável e,
quanto ao siso, desde criança que tinha prazer em se entregar
a pensamentos sombrios e embarcar em estranhas fantasias.
Podia ser que tivesse a monomania de falar do seu ídolo
desaparecido, mas em tudo o mais, estava tão são de espírito
como eu.
-- Só saberei dizê-lo quando acontecer -- respondeu. Por
agora, não passa de uma vaga suspeita.
-- Mas não se sente mal, pois não? -- inquiri.
-- Não, Nelly, não sinto.
-- Então não tem medo de morrer? -- prossegui.
-- Medo? Não! -- retorquiu. -- Nem medo, nem
pressentimento, nem desejo de morrer. Por que havia de ter?
Com a minha constituição física e a vida regrada que levo, sem
correr riscos, deveria, e provavelmente *irei*, andar por cá
até não me restar um só cabelo preto na cabeça... E, no
entanto, não posso continuar assim, a ter de me forçar a
respirar, quase a ter de forçar o coração a bater! É como
dobrar um pedaço de ferro: é só pela força, e não pela
vontade, que faço as coisas mais simples, e é só à força que
concebo coisa viva ou morta que não esteja associada a uma
ideia universal... Tenho um único desejo, e todo o meu ser,
todas as minhas faculdades anseiam por vê-lo realizado.
Anseiam por isso há tanto tempo, e com tal determinação, que
estou convicto de que esse desejo se realizará... *e bem
depressa*... pois devora-me a existência e conãome-me na
antecipação do clímax. Sei que os desabafos não me ilibam; mas
podem, pelo menos, explicar algumas das minhas aparentemente
inexplicáveis alterações de humor. Meu Deus! Tem sido dura a
luta. Quem dera que
acabasse!
Começou a andar de um lado para o outro, falando sozinho e
resmungando coisas terríveis, até eu própria me sentir
inclinada a acreditar, como, segundo ele dizia, Joseph
acreditava, que a consciência lhe tinha transformado o
coração num inferno vivo, perguntando-me ao mesmo tempo como
tudo iria acabar.
Embora anteriormente st raras vezes tivesse evidenciado
este estado de espírito, quanto mais não fosse pelo aspecto
exterior, não me restavam dúvidas de que era este o seu estado
habitual: ele próprio o afirmou, se bem que, pelas atitudes,
ninguém de tal se apercebesse. O senhor quando o viu não se
apercebeu, Mr. Lockwood, e na altura a que me refiro ele era
exactamente a mesma pessoa, só talvez um pouco mais dado à
solidão e ainda mais lacónico quando tinha companhia.
CAPÍTULO XXXIV
Nos dias que se seguiram àquela noite, Mr. Heathcliff
evitou encontrar-se connosco às refeições; no entanto,
recusava-se a excluir abertamente Hareton e Cathy. A aversão
que tinha a ceder completamente aos sentimentos levava-o a ser
ele a ausentar-se -- uma só refeição por dia parecia ser para
ele alimento bastante.
Uma noite, depois de toda a família já estar deitada,
ouvi-o descer as escadas e sair pela porta da frente; não o
ouvi regressar e, de manhã, verifiquei que ainda estava
ausente.
Foi no mês de Abril: o tempo estava macio e a temperatura
agradável, a relva muito verde das chuvas e do sol, e as duas
macieiras anãs do muro sul cobertas de flor.
Depois do pequeno almoço, Catherine insistiu para que eu
fosse buscar uma cadeira e me viesse sentar a fazer renda
debaixo dos abetos ao fundo da casa, e persuadiu Hareton, já
completamente refeito do acidente, a cavar e plantar-lhe um
jardinzinho que, devido às queixas de Joseph, tinha sido
transferido para esse recanto.
Estava eu refastelada na minha cadeira, a aspirar as
fragrâncias primaveris que me envolviam e a contemplar o céu
azul que me cobria, quando a menina, que se tinha afastado até
à cancela à procura de raízes de prímula para a cercadura do
canteiro, voltou quase de mãos vazias e nos comunicou que Mr.
Heathcliff vinha a chegar.
-- E falou comigo -- acrescentou, com grande perplexidade.
-- Que disse ele? -- perguntou Hareton.
-- Disse que desaparecesse da vista dele o mais depressa
possível -- respondeu ela. -- Mas estava tão diferente que
fiquei parada a olhar para ele.
-- Diferente como? -- quis saber Hareton.
-- Sei lá... quase alegre... satisfeito... não, não estava
*quase* coisa :, nenhuma... estava era *muito* excitado e
doido de alegria! -- disse ela.
-- Então devem ser os passeios nocturnos que o animam tanto
-- comentei, aparentando indiferença, mas sentindo-me na
verdade tão estupefacta quanto ela; e então, desejosa de
confirmar se o que ela dizia era ou não verdade, pois ver o
patrão contente não era coisa que acontecesse todos os dias,
arranjei uma desculpa para voltar tara dentro.
Heathcliff estava à porta, pálido e a tremer; não obstante,
tinha de facto nos olhos um brilho de estranho contentamento,
que lhe alterava por completo a
expressão.
-- Apetece-lhe comer alguma coisa? -- perguntei. -- Deve
estar com fome... Lá por fora toda a noite.
Queria ver se descobria por onde tinha andado, mas não
queria perguntar-lhe directamente.
-- Não, não estou com fome -- respondeu, virando a cara
para o lado e tratando-me com desdém, como se adivinhasse que
eu estava a tentar descobrir a origem do seu bom
humor.
Fiquei perplexa, sem saber se não seria uma boa altura para
lhe fazer algumas advertências.
-- Não me parece boa ideia andar lá por fora em vez de
ficar na cama: não é sensato, sobretudo com esta humidade.
Ainda apanha uma valente constipação, ou as febres... Bem vejo
que se passa alguma coisa!
-- Nada que eu não possa resolver, e com o maior prazer,
desde que me deixes em paz -- replicou. -- Vá, entra e não me
incomodes.
Obedeci e, ao passar por ele, reparei que resfolegava como
um gato.
-- É isso! -- disse com os meus botões. -- Vem por aí
doença. Não consigo imaginar o que poderá ter andado a fazer!
Nessa mesma tarde, sentou-se à mesa para jantar connosco e
servi-lhe um prato bem cheio, que ele aceitou, como se para
compensar os jejuns anteriores.
-- Não apanhei nem febre, nem constipação, Nelly -- frisou
ele, aludindo à minha conversa dessa manhã. -- E estou pronto
para fazer as honras à comida que me dás.
Pegou na faca e no garfo e preparava-se para começar,
quando o apetite desapareceu subitamente. Pa usou os talheres,
olhou ansioso para a janela, levantou-se e
saiu. :,
Vimo-lo andar de cá para lá no quintal, enquanto acabávamos
de comer. Earnshaw disse que ia perguntar-lhe por que razão
não vinha jantar; estava convencido de que o tínhamos ofendido
de alguma maneira.
-- Então, ele vem? -- perguntou Catherine quando o primo
voltou para dentro.
-- Não -- respondeu ele. -- Mas não está zangado. Parece
até muito bem disposto; mas mostrou-se impaciente quando
insisti, e mandou-me vir ter contigo. Disse que se admirava
como eu podia estar interessado na companhia de outra pessoa.
Coloquei o prato dele no guarda-fogo, para o manter quente.
Ao fim de uma ou duas horas, quando já não havia ninguém na
sala, Heathcliff regressou, mas não parecia mais calmo: por
baixo das sobrancelhas bem negras exibia ainda a mesma
expressão anti-natural -- sim, era sem dúvida anti-natural --
de invulgar contentamento, a mesma lividez, e um meio sorriso
que deixava entrever-lhe os dentes de quando em vez; tremia,
não de frio ou de fraqueza, mas como uma corda esticada em
demasia -- dir-se-ia que era mais uma vibração que um tremor.
Vou perguntar-lhe o que se passa, pensei, pois se não for
eu a perguntar... E então exclamei:
-- Recebeu boas notícias, Mr. Heathcliff? Parece
invulgarmente bem disposto.
-- E quem me traria boas notícias? -- respondeu. -- É a
fome que me põe bem disposto, e pelos vistos não vou comer
nada.
-- Tem aqui o seu jantar -- contrapus. -- Por que não há-de
comer?
-- Agora não me apetece -- retorquiu. -- Vou esperar pela
ceia. E ouve bem, Nelly, de uma vez por todas te peço que
mantenhas o Hareton e a outra longe de mim. Não quero que
ninguém me incomode. Quero esta sala só para mim.
-- Existe algum novo motivo para assim os banir? --
inquiri. -- Diga-me por que está assim tão esquisito, Mr.
Heathcliff. Onde passou a noite de ontem? Não pergunto por
mera curiosidade, mas...
-- É por mera curiosidade que perguntas, sim -- atalhou
ele, dando uma gargalhada. -- Mas vou satisfazê-la. Ontem à
noite, eu estive no limiar do inferno. Hoje, tenho o meu céu à
vista, ao alcance dos olhos; nem uma jarda nos separa! E agora
é melhor ires-te embora... Se não fores intrometida, não
verás nem ouvirás nada que te possa assustar. :,
Varri a lareira, limpei a mesa e fui-me embora mais
perplexa do que nunca.
Ele não voltou a sair de casa nessa tarde, e ninguém lhe
perturbou a solidão até às oito horas, altura em que achei
por bem levar-lhe a ceia e uma vela, mesmo sem ter sido
chamada.
Fui encontrá-lo encostado a uma das portas de tabuinhas,
mas sem estar a olhar lá para fora; tinha a cara virada para
dentro, para a penumbra interior. A fogueira estava reduzida a
cinzas e na sala respirava-se um ar morrinhento e abafado,
próprio de uma tarde enevoada e serena, que permitia escutar
não só o murmúrio da ribeira de Gimmerton, mas também o
gargantear da água sobre os seixos e o seu chapinhar de
encontro às pedras maiores que não podia cobrir.
Deixei escapar uma exclamação de desagrado quando vi o lume
apagado, e comecei a fechar as janelas, uma a uma, até chegar
junto dele.
-- Quer que feche também esta? -- perguntei, para o
espevitar, pois nem se mexera.
A luz da minha vela bateu-lhe em cheio no rosto. Ai, Mr.
Lockwood, nem imagina o susto que aquela visão fugaz me
pregou! Aqueles olhos negros e encovados! Aquele sorriso e
aquela palidez cadavérica! Afigurava-se-me, não Mr.
Heathcliff, mas um demónio; o meu terror foi tal, que a
vela foi de encontro à parede, deixando-nos na
escuridão.
-- Podes fechar, sim -- respondeu no seu tom habitual. --
Sempre és muito desastrada! Que ideia foi essa de virares a
vela na horizontal? Vá mexe-te, vai buscar outra.
Saí a correr, atordoada de medo, e disse a Joseph: -- O
patrão quer que lhe leve uma vela, e que acenda de novo o lume
-- pois não me atrevia a voltar lá dentro.
Joseph pôs algumas brasas na pá e lá foi. Contudo,
trouxe-as imediatamente de volta, e ainda o tabuleiro da ceia
na outra mão, explicando que Mr. Heathcliff se ia deitar e não
queria comer nada até de manhã.
Ouvimo-lo subir as escadas logo a seguir. Porém, não se
dirigiu para o quarto do costume, pois ouvimo-lo entrar para o
que tinha a cama de painéis -- como já disse, a janela desse
quarto é suficientemente larga para alguém poder passar -- e
ocorreu-me que :, talvez planeasse outro passeio nocturno e
não quisesse que descobríssemos.
-- Será ele um lobisomem... ou um vampiro? -- pensei. Já
tinha lido histórias sobre esses horríveis demónios
incarnados. E, depois, pus-me a pensar como o tinha criado
durante a infância, e como o vira crescer, e como o
acompanhara durante quase toda a vida, e como era absurdo e
disparatado deixar-me dominar agora por aquela sensação de
terror.
-- Mas donde veio ele, aquela coisa negra que um homem bom
acolheu sob o seu tecto? -- segredou-me a superstição, quando
o sono já me fazia mergulhar na inconsciência. Como se de um
sonho se tratasse, comecei então a tentar vislumbrar-lhe uma
possível ascendência; e, retomando as lucubrações do estado de
vigília, reconstituí-lhe outra vez a existência, com sombrios
cambiantes, chegando por fim à sua morte e enterramento, do
qual tudo de que me lembro é de estar completamente
desorientada por me caber a incumbência de ditar uma inscrição
para o seu túmulo, e ter resolvido consultar o coveiro;
porém, como ele não tinha sobrenome, nem lhe conhecíamos a
idade, tivemos de nos contentar com uma única palavra:
«_Heathcliff». Esta parte acabou por se confirmar, pois foi de
facto o que tivemos de fazer. Se for ao cemitério, verá que na
sua pedra tumular apenas isso está inscrito, e também a data
da
morte.
A madrugada restituiu-me o bom senão. Levantei-me e
fui até ao quintal assim que raiaram os primeiros alvores,
para ver se havia pegadas por baixo da janela. Mas não havia.
-- Deixou-se ficar em casa -- pensei -- e hoje já estará
bom!
Fiz o pequeno-almoço para toda a gente, como de costume,
mas disse ao Hareton e à Catherine que aproveitassem para
tomar o deles antes do patrão descer, pois hoje devia ficar na
cama até tarde. Eles, porém, preferiram comer lá fora, à
sombra das árvores, e foi lá que lhes preparei uma
mesinha.
Quando voltei para dentro, encontrei Mr. Heathcliff cá em
baixo. Conversava com Joseph sobre assuntos da lavoura:
dava-lhe instruções precisas e minuciosas, mas falava muito
depressa e virava constantemente a cabeça para os lados, com a
mesma expressão excitada da véspera, mas ainda mais acentuada.
Quando Joseph saiu da sala, o patrão foi sentar-se no lugar
que habitualmente preferia, e eu coloquei à sua frente uma
malga de :, café. Puxou-a mais para si, apoiou os cotovelos à
mesa e pôs-se a examinar a parede oposta: parecia confinar-se
a uma determinada zona, percorrendo-a para cima e para baixo
com olhos inquietos e faiscantes, e era tal a sua concentração
que suspendeu a respiração durante meio minuto.
-- Vá lá -- exclamei, encostando-lhe um pedaço de pão à mão
-- coma isto e beba o café enquanto está quente. Já está feito
há quase uma hora.
Não tinha dado pela minha presença e, no entanto, sorria.
Preferia vê-lo ranger os dentes a vê-lo sorrir daquela
maneira.
-- Mr. Heathcliff! Patrão! -- gritei. -- Por amor de Deus,
não olhe dessa maneira, como se estivesse a ter alguma visão
do outro mundo.
-- Por amor de Deus, não grites tanto -- ripostou ele. --
Olha ali para aquele lado e diz-me se estamos sós.
-- Claro! -- foi a minha resposta. -- Claro que estamos!
Contudo, fiz involuntariamente o que ele mandou, como se
não tivesse a certeza.
Entretanto, ele afastou com a mão parte das coisas do
pequeno almoço, abriu uma clareira na mesa e chegou-se para a
frente, para poder olhar mais à vontade.
A certa altura percebi que não estava a olhar para a
parede, pois quando o fixava só a ele, parecia mesmo que
estava a olhar para qualquer coisa que não estaria a mais de
duas jardas de distancia e que, fosse lá o que fosse,
aparentemente lhe transmitia prazer e dor, ou, pelo menos,
assim o dava a entender a sua expressão angustiada e, ao mesmo
tempo, extasiada.
O objecto imaginado não se mantinha fixo: os olhos dele
perseguiam-no numa incansável vigilância e nunca se desviavam
do alvo, nem mesmo quando falava
comigo.
Em vão lhe lembrei que ia já longo o seu jejum; mas se, em
resposta aos meus rogos, o seu braço avançava para alguma
coisa, se a sua mão se estendia para um pedaço de pão, logo os
seus dedos se crispavam antes de o agarrar, quedar do-se na
mesa, esquecidos do seu propósito.
Deixei-me estar sentada, qual modelo de paciência, tentando
atrair-lhe a atenção e pôr cobro às suas crescentes
especulações, até que, a certa altura, ele se irritou e se
levantou da mesa, perguntando-me por que razão não o deixava
comer em paz, e :, acrescentando que, da próxima vez, não
precisava de esperar, bastava pousar as coisas e ir-me
embora.
E, com estas palavras, saiu de casa, desceu lentamente o
carreiro do quintal e transpôs a cancela, desaparecendo em
seguida.
As horas arrastaram-se, ansiosas. A noite chegou. Só muito
tarde me retirei para o meu quarto e, quando o fiz, não
consegui adormecer. Ele voltou já passava da meia-noite,
e, em vez de se ir deitar, trancou-se na sala lá de baixo.
Ouvia-o, sem saber o que fazer. Finalmente, vesti-me e desci
as escadas. Já não aguentava ficar ali deitada, a torturar a
imaginação com temores ociosos.
Distinguia os passos de Mr. Heathcliff, incessantes, para
cá a para lá, e, de vez em quando, o silêncio era cortado por
um suspiro fundo, melhor dizendo, um gemido. Murmurava também
palavras soltas; a única que eu conseguia perceber era o nome
de Catherine, acompanhado de alguns epítetos arrebatados de
dor ou de paixão, ditos como se a destinatária estivesse
presente: em voz baixa e ardente, e arrancados das profundezas
da alma.
Faltava-me a coragem para entrar na sala; no entanto, tinha
de o tirar daquele delírio e, por isso, comecei às voltas com
o lume da cozinha, remexendo as brasas e apanhando as cinzas.
O meu estratagema atraiu-o mais depressa do que pensava; não
tardou a abrir a porta, dizendo:
-- Nelly, vem cá... Já é manhã? Traz uma luz.
-- Estão a bater as quatro horas -- respondi. -- Quer uma
luz para levar para cima? Podia ter acendido uma vela aqui no
lume.
-- Não, não quero ir para cima -- disse ele. -- Vem
acender-me uma fogueira e arruma tudo o que tiveres de arrumar
aqui na sala.
Primeiro tenho de assoprar as brasas, para as espevitar, e
só depois posso deitar mais carvão -- repliquei, puxando uma
cadeira e pegando no fole.
-- Assim que o dia romper mando chamar Mr. Green -- disse.
-- Quero consultá-lo sobre umas questões legais, enquanto
ainda tenho cabeça e calma para tratar dessas coisas. Ainda
não fiz o testamento, nem decidi como dispor dos meus bens.
Só queria poder varrê-los da face da
terra!
-- Não fale numa coisa dessas, Mr. Heathcliff -- atalhei.
-- Deixe o testamento em paz por agora... Ainda tem muito
tempo para se arrepender das suas muitas injustiças! Nunca
esperei vê-lo sofrer dos nervos e olhe em que lindo estado os
tem agora, e quase exclusivamente por sua culpa. A maneira
como passou estes três dias chegava para deitar abaixo um
Titã. Coma qualquer coisa e vá descansar. Basta ver-se ao
espelho, para perceber como está precisado das duas coisas.
Está com as faces chupadas que nem um esfomeado, e esses
olhos raiados de sangue ainda ficam cegos de tão pouco
dormirem.
-- Não tenho culpa de não conseguir comer nem descansar --
retorquiu. -- Asseguro-te que não é de propósito, e fá-lo-ei
assim que puder. É o mesmo que pedires a um homem que se
debate nas ondas que se ponha a descansar a duas jardas da
praia! Primeiro tenho de chegar, e só então posso descansar.
Pensando melhor, deixa lá Mr. Green; quanto a arrepender-me
das minhas injustiças, como não cometi nenhuma, não me
arrependo de nada. Sou feliz até demais e, no entanto, não o
sou o suficiente. A felicidade que me salva a alma mata-me o
corpo, mas não se satisfaz a si
própria.
-- Feliz, patrão, o senhor? -- exclamei. Estranha
felicidade a sua! Havia de me ouvir sem se zangar, e eu era
capaz de lhe dar alguns conselhos que fariam do senhor um
homem ainda mais feliz.
-- Ah, sim? Então dá-mos lá.
-- Como sabe, Mr. Heathcliff -- comecei eu, -- desde os
treze anos que o senhor tem levado uma vida egoísta e pagã.
Provavelmente, quase nem abriu uma Bíblia durante todo este
tempo. Deve, por isso, ter-se esquecido dos ensinamentos que
lá vêm e pode não ter tempo agora para os procurar. Que mal
faria mandar buscar alguém... um padre de qualquer religião,
não importa qual, que lhos explicasse e lhe mostrasse como
errou e se afastou desses preceitos, e como lhe vai ser
difícil entrar no céu, se não se operar em si uma mudança
antes de morrer?
-- Estou mais agradecido que zangado, Nelly -- disse ele,
-- pois vieste lembrar-me a maneira como desejo ser
enterrado: quero ser levado de noite para o cemitério; tu e o
Hareton, se quiserem, podem acompanhar-me. E verifiquem
sobretudo se o coveiro segue as minhas instruções quanto aos
dois caixões! Não preciso de padre nem de orações à beira da
sepultura. Ouve bem o que te digo: estou quase a entrar no
*meu* céu; o céu dos outros, não o cobiço, nem tem para mim
qualquer valor!
-- E se o senhor persistir neste jejum obstinado, e morrer
por causa disso, e eles se recusarem a enterrá-lo no cemitério
da igreja? -- argumentei, chocada com tanta indiferença
perante Deus. -- Não ia gostar disso, pois não?
-- Eles não farão uma coisa dessa, -- contrapôs. -- Mas, se
:, fizerem, tens de me levar para lá em segredo; e, se não o
fizeres, irei provar-te, na prática, que os mortos não
desaparecem de vez!
Assim que começou a ouvir movimento dentro de casa,
retirou-se para o seu quarto e eu respirei de alívio. À
tarde, porém, enquanto Joseph e Hareton andavam nos seus
afazeres, veio ter comigo à cozinha e pediu-me com o olhar
tresloucado que me fosse sentar com ele na sala -- precisava
de companhia.
Recusei, dizendo-lhe sem rodeios que as suas palavras e os
seus modos estranhos me assustavam, e não tinha vontade nem
coragem de ficar sozinha com ele.
-- Se calhar achas que sou algum demónio, não? disse,
soltando uma gargalhada sinistra. Algo de demasiado terrível
para habitar uma casa decente?
E, em seguida, virando-se para Catherine, que também lá
estava e que se tinha escondido atrás de mim ao vê-lo entrar,
acrescentou, com um sorriso sarcástico:
-- Quer vir comigo, minha linda? Não lhe faço mal nenhum.
Ah, não quer? Para si sou ainda pior que o diabo. Pois bem,
*há uma* que não foge da minha companhia! Meu Deus, como ela é
persistente! Oh, maldição! Tudo isto é indizivelmente mais do
que a carne e o sangue podem suportar, mesmo tratando-se de
mim.
Não procurou a companhia de mais ninguém. À noitinha
voltou para o quarto e, durante toda a noite e até alta
madrugada, ouvimo-lo gemer e falar sozinho. O Hareton queria
entrar a todo o custo, mas aconselhei-o a ir chamar primeiro o
Dr. Kenneth.
Quando o médico chegou, bati à porta e tentei abri-la, mas
verifiquei que estava fechada à chave, e Mr. Heathcliff
mandou-nos a todos para o diabo: sentia-se melhor e queria
ficar sozinho. Assim sendo, o médico foi-se embora.
No dia seguinte a tarde chegou chuvosa -- na verdade,
choveu torrencialmente até raiar nova alvorada e quando, de
manhã, fiz como de costume a minha ronda à volta da casa,
reparei que a janela do quarto do patrão estava aberta e com
as portas a bater, deixando entrar a chuva livremente.
-- Não é possível que ele esteja deitado -- pensei. -- Com
esta chuva já estava todo encharcado! Das duas, uma: ou já se
levantou, ou já saiu. Mas, em vez de estar com conjecturas, o
melhor é encher-me de coragem e ir lá
ver!
Assim que consegui entrar, com a ajuda de uma outra chave,
precipitei-me para os painéis de madeira, pois o quarto estava
:, vazio; corri-os para o lado e espreitei: Mr. Heathcliff
jazia de costas. Estremeci ao ver os seus olhos, tão fixos e
tão terríveis. Parecia sorrir também.
Nem queria acreditar que estivesse morto, mas tinha a cara
e o pescoço lavados de chuva; os lençóis e cobertores já
pingavam para o chão e ele estava perfeitamente imóvel. As
portas de tabuinhas batiam com força e tinham-lhe trilhado a
mão, que repousava no peitoril; mas do golpe não escorria
sangue e, quando lhe toquei, todas as dúvidas se dissiparam
-- estava morto e já rígido!
Tranquei a janela, afastei-lhe da testa os longos cabelos
negros e tentei fechar-lhe os olhos, para fazer desaparecer,
se possível, aquele olhar medonho e esgazeado, exultante e
quase vivo, antes que mais alguém pudesse vê-lo. Mas os olhos
resistiam, como se zombassem dos meus esforços, e zombeteiros
eram também os lábios entreabertos e os dentes brancos,
afiados! Possuída de outro ataque de cobardia, gritei por
Joseph, que lá veio a arrastar os pés e a fazer grande
alarido, mas que se recusou terminantemente a tocar no
cadáver.
-- O diabo levou-lh.a alma -- bradava ele, -- e tanto se me
dá como se me deu que lhe leve também o corpo! Ena pá! Mas que
mau qu.ele parece, a rir-s.assim da morte! -- e o herege do
velho pôs-se a arremedar o morto. Cheguei a pensar que se ia
pôr aos pinotes à roda da cama; mas logo recuperou a
compostura e, caindo de joelhos, ergueu as mãos para os céus e
deu graças ao Senhor por ter devolvido ao dono legítimo e à
justa linhagem o que por direito lhes pertencia.
Sentia-me abalada com o nefasto acontecimento, e a minha
memória recuou inevitavelmente ao passado com uma espécie de
opressiva tristeza. Mas era o pobre do Hareton, o mais
prejudicado de todos, o que mais sofria. Permanaceu junto do
corpo toda a noite, num desespero sentido, chorando,
acariciando e beijando o rosto que todos os outros nem se
atreviam a olhar; a carpi-lo com aquela dor profunda que
extravasa naturalmente de um coração generoso, embora duro
como o aço.
O Dr. Kenneth, perplexo, não sabia a que maleita atribuir a
morte do patrão. Omiti o facto de ele não ter comido nada
durante quatro dias, receando que isso pudesse trazer mais
complicações, e, aliás, estou convencida de que não o fez de
propósito -- isso fora a consequência da sua estranha doença,
e não a causa.
-- Enterrámo-lo, para escândalo de toda a vizinhança,
exactamente :, como era seu desejo: o cortejo fúnebre
resumiu-se a Earashaw, eu própria, o coveiro e seis homens
para carregarem o caixão.
Os seis homens foram-se embora assim que o meteram na cova,
mas nós ficámos a ver cobri-lo de terra. O Hareton, lavado em
lágrimas, arrancou um punhado de ervas e espalhou-as sobre o
montículo de terra, que agora está tão macio e verde como as
sepulturas vizinhas, e espero que o seu morador durma tão
profundamente como os destas. Mas as gentes da região, se
lhes perguntasse, jurariam sobre a Bíblia que ele *anda por
aí. Há quem diga que o encontrou junto à igreja, e no meio dos
brejos, e até dentro desta casa -- fantasias, dirá o senhor, e
digo eu. No entanto, aquele velho ali sentado à lareira
garante que, desde a morte de Heathcliff, os vê a ele e a ela
à janela do quarto nas noites de tempestade, e há cerca de um
mês, aconteceu-me uma coisa muito estranha.
Ia eu a caminho da Granja um dia à tarde -- por sinal, uma
tarde muito carregada, a ameaçar trovoada -- e ao chegar à
encruzilhada do Alto, encontrei um garotinho com uma ovelha e
dois cordeiros a correr à frente dele; ao vê-lo a chorar
tanto, julguei que os animais fossem rebeldes e não se
deixassem guiar.
-- Que tens tu, menino? -- perguntei.
-- Está ali o Heathcliff com uma mulher; acolá, naquele
monte -- balbuciou. -- Tenho medo de passar.
Eu cá não vi nada. Porém, nem ele nem as ovelhas arredavam
pé dali, e mandei-os ir por um caminho mais abaixo.
Enquanto atravessava sozinho o descampado, o garoto deve
ter criado ele mesmo os fantasmas, de tanto cismar nos
disparates que ouvira contar aos pais e aos amigos. Seja como
for, o certo é que agora não me agrada nada andar sozinha à
noite lá por fora, nem ficar sozinha nesta casa soturna. Que
hei-de eu fazer? Quem me dera que eles se resolvam a deixá-la
e se mudem para a Granja!
-- Vão então morar na Granja? -- disse eu.
-- Vão sim -- respondeu Mrs. Dean. -- Assim que se casarem,
o que será no dia de Ano Novo.
-- E quem fica a viver aqui?
-- Ora essa! O Joseph, para tratar da casa; e talvez um
criadito para lhe fazer companhia. Ficam na cozinha e o resto
da casa vai ser fechado.
-- Para gáudio dos fantasmas que acharem por bem vir
habitá-la -- comentei.
-- Não, Mr. Lockwood -- disse Nelly, abanando a cabeça.
-- Creio que os mortos estão em paz, mas não é bom falar deles
com leviandade.
Nessa altura, ouvimos os gonzos da cancela do quintal --
era o parzinho que chegava do passeio.
-- *_Estes* não têm medo de nada -- disse por entre dentes,
observando-os da janela. -- Juntos, seriam capazes de
desbaratar satanás e todas as suas legiões.
Ao vê-los parar, quando chegaram aos degraus, para olharem
para a lua ainda mais uma vez, ou melhor, para olharem um para
o outro à luz do luar, senti um impulso irresistível de lhes
escapar outra vez; assim, meti uma gratificação na mão de Mrs.
Dean e, ignorando os seus reparos quanto à minha má-educação,
desapareci pela porta da cozinha no preciso momento em que
eles abriam a porta da sala, e teria dado razão a Joseph
quanto à conduta leviana da colega, se ele, felizmente, não me
tivesse reconhecido como um cavalheiro respeitável, ao ouvir
o som mavioso da moeda que lhe tiniu aos pés.
O meu regresso a casa foi demorado, devido ao desvio que
fiz pela igreja. Ao olhar para as paredes, verifiquei que sete
meses haviam bastado para a degradação avançar: muitas eram as
janelas que ostentavam negros buracos onde faltavam vidraças;
aqui e além havia telhas fora do alinhamento que não tardariam
a ser arrancadas pelas intempéries do Outono.
Procurei, e não tardei a encontrar, as três lápides na
encosta que desce para o brejo: a do meio, cinzenta e meio
coberta pela urze; a de Edgar Linton, por enquanto só debruada
de ervas e musgo; a de Heathcliff, ainda nua.
Por ali me demorei, sob um céu propício, observando as
borboletas que esvoaçavam entre as urzes e as campainhas do
monte, ouvindo a brisa suave que de mansinho agitava a relva,
perguntando-me como seria possível alguém imaginar que r
1acabras deambulações perturbassem o sono dos que ali
repousavam na terra tranquila.

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