domingo, 8 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte II (3)

— Também o espero. Temos em mãos um caso especial. Correram para o mastro de cobre.
Depois, a coluna brilhante aspirou-os para baixo, para a escuridão, onde o dragão, tossindo e estalando
numa nuvem de gasolina, acordava.
— A caminho!
Fizeram uma viragem. O motor grunhia, a sereia uivava, os pneus silvavam, a gasolina agitavase
no reservatório de cobre brilhante como os alimentos no estômago de um gigante.
— Cá vamos nós!
Montag ergueu os olhos. Beatty nunca guiava mas, nessa noite, estava ao volante da
Salamandra, fazendo curvas, inclinado para a frente no trono elevado do condutor, o seu casaco negro
flutuando atrás de si; parecia um grande morcego batendo as asas por cima do motor, dos números de
cobre, mergulhando na noite.
— Eis-nos a caminho para manter a felicidade do mundo, Montag!
As faces rosadas e fosforescentes de Beatty brilhavam na escuridão. Um sorriso feroz crispavalhe
os lábios.
— Cá estamos!
A Salamandra parou subitamente. Os homens escorregaram e saltaram pesadamente de todos
os lados. Montag, de pé, não podia afastar os olhos da haste de metal fria e brilhante a que os seus
dedos estavam agarrados.
"E impossível", pensava. "Como poderei eu executar esta nova tarefa? Como posso continuar a
queimar as coisas? Não posso entrar nesta casa." Beatty, observando a direcção do vento, estava ao
lado de Montag.
— Então, Montag!
Os homens corriam como aleijados, com as suas pesadas botas, tão silenciosos como aranhas.
Enfim, Montag ergueu os olhos e virou a cabeça. Beatty observava-o.
— Não te sentes bem, Montag?
— Mas... mas — disse Montag lentamente — nós estamos parados em frente da minha casa...

TERCEIRA PARTE
- Ardente e Claro -

LUZES acendiam-se e portas abriam-se ao longo da rua, que se preparava para assistir ao
espectáculo. Montag e Beatty contemplavam, um com sombria satisfação, o outro com ar incrédulo, a
casa que se erguia à frente deles, essa pista de circo que ia devorar o fogo por entre os malabarismos
das tochas.
— Pois bem — disse Beatty. — Ganhaste. O velho Montag queria voar perto do Sol e, agora,
que queimou as asas, pergunta porquê. Não te fiz suficientemente compreender, quando mandei o Cão-
Polícia rondar a tua casa?
Montag tinha o rosto sem expressão. Sentia a cabeça virar-se como uma estátua de pedra para a
casa vizinha, mergulhada na escuridão no meio do seu ninho de flores.
— Ah! — disse Montag num tom seco. — Foi então essa pequena imbecil que te virou a
cabeça com as suas excentricidades, hem? As flores, as borboletas, as folhas, os pores—de-sol. Merda!
Está tudo anotado no teu dossier. Acertei, hem! Se visses a cara que tens! Pedacinhos de erva e algumas
fases da Lua. Que miséria! Que fez ela de útil, com tudo isso?
Montag, sentado no pára-choques frio do dragão, balançava lentamente a cabeça da esquerda
para a direita, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita...
— Ela via tudo. Ela nunca fez mal a ninguém. Ela deixava as pessoas tranqüilas.
— Tranqüilas, dizes tu? Ela vinha resmungar-te coisas ao ouvido, hem? Um desses danados
corações de couro com os seus silêncios ultrajados, que subentendem: "valho muito mais que
você", o seu ilimitado talento para nos darem uma má consciência. Valha-nos Deus! Levantam-se como
o sol da meia-noite para nos fazer transpirar nas nossas camas!
A porta da rua abriu-se. Mildred desceu os degraus correndo, a mão crispada com uma rigidez
de sonho numa mala, enquanto um táxi parava junto do passeio.
— Mildred!
Ela passou-lhe em frente, muito depressa, o corpo rígido, o rosto enfarinhado de pó de arroz, a
boca invisível, sem
— Mildred, não foste tu quem fez a denúncia!
Ela meteu a mala no táxi, entrou e sentou-se, murmurando: — Pobre "família", pobre "família",
oh! Tudo acabou, agora tudo acabou...
Beatty agarrou Montag pelo ombro. O táxi arrancou rapidamente e desapareceu no fim da rua,
a cem por hora.
Houve um súbito ruído, como o desmoronamento dos fragmentos de um sonho feito de vidro,
de espelhos e de prismas de cristal.
Montag virou-se como sob o efeito de um golpe de vento e viu Stoneman e Black brandindo os
machados e fazendo voar em estilhaços os vidros, para abrir passagens ao ar.
O zumbido de um insecto: — Montag, fala Faber. Está a ouvir-me? Que se passa?
— E é a mim que isto acontece? — disse Montag.
— Que terrível surpresa! — afirmou Beatty. — Pois todos nós sabemos, hoje, com uma
certeza absoluta, que nada nos pode acontecer. Os outros morrem, mas eu estou vivo. Não há, nem
conseqüências, nem responsabilidades. E é exactamente por isso que as há. Mas não falemos mais no
caso, hem? Agora é tarde para pensar nas conseqüências, não é, Montag?
— Montag, será possível fugir? — perguntou Faber. Montag começou a andar, mas não sentiu
os seus pés tocarem no cimento e na relva nocturna.
Beatty fez funcionar o seu ignidor e a pequena chama alaranjada atraiu o olhar fascinado de
Montag.
— Qual a beleza do fogo? Porque nos seduz ele, qualquer que seja a nossa idade?
— Beatty assoprou a chama. — É o movimento perpétuo. Aquilo que o homem tentou sempre
inventar, sem o> conseguir. Ou quase o movimento perpétuo. Se o deixares arder, ultrapassará a
duração da tua vida. Que é o fogo? Um mistério. Os sábios dizem-nos fantochadas acerca da fricção e
de moléculas. Mas, na realidade, nada sabem. A sua verdadeira beleza reside em que destrói a
responsabilidade e as conseqüências. Se um problema se torna demasiado incômodo, lancemo-lo na
fogueira. Tu tornaste-te incômodo, Montag. E o fogo aliviará os meus ombros do teu peso. É rápido,
limpo, eficaz. Nada de restos susceptíveis de apodrecer. Antiséptico, estético, prático.
Montag olhava agora aquela estranha casa, ainda mais insólita àquela hora da noite, no meio do
murmúrio dos vizinhos, com os pedaços de vidro espalhados e, no chão, as capas rasgadas e as folhas
espalhadas como penas de cisne, esses livros incríveis, que pareciam tão absurdos e insignificantes, pois
nada mais eram do que caracteres impressos em folhas amareladas com capas arrancadas.
Mildred, claro. Devia tê-lo espiado quando escondia os livros no jardim e tornado a levá-los
para casa. Mildred, Mildred.
— Quero que faças o trabalho sozinho, Montag. Não com gasolina e um fósforo, mas
pormenorizadamente, com um lança-chamas. E a tua casa e tu mesmo é quem deve limpá-la.
— Montag, pode fugir?
— Não! — gritou Montag, abatido. — O Cão-Polícia! E por causa do Cão-Polícia!
Faber compreendeu e Beatty, julgando que Montag se dirigia a ele, replicou: — Claro, o Cão-
Polícia anda por aí a rondar. Portanto, nada de falsos movimentos, previno-te. Estás pronto?
— Estou.
Montag baixou o fecho de segurança do lança-chamas.
— Fogo!
Uma longa coluna de chamas saltou e projectou os livros contra a parede. Montag penetrou no
quarto e atingiu as duas camas, que se empinaram com um ruído agudo, com uma paixão e uma
violência que ele nunca teria sido capaz de lhes imaginar.
— Os livros, Montag!
Os livros saltaram e dançaram como aves queimadas, as asas ardendo com penas vermelhas e
amarelas.
Entrou então no salão, onde os grandes monstros idiotas jaziam adormecidos, com os seus
pensamentos incolores e os seus sonhos gelados. Lançou um jacto sobre cada uma das três paredes e o
nada respondeu-lhe, silvando.
No ar, o silvo era ainda mais intenso, era um urro demente.
Esforçou-se em pensar nesse nada onde desfilavam criaturas inexistentes, mas não o conseguiu.
Retinha a respiração, para não encher os pulmões com o vazio. Destruiu esse nada terrível, recuou e fez
surgir em toda a sala uma imensa flor amarela, ofuscante.
O revestimento de plástico ignífugo fendeu-se e a casa começou a tremer, entre as chamas.
— Quando acabares — disse Beatty atrás dele — não te esqueças que estás preso.
A casa desmoronou-se em brasas avermelhadas e cinzas negras. Abateu-se num leito de escórias
onde brilhavam estranhos reflexos. Um penacho de fumo elevou-se dos destroços e oscilou lentamente
no céu. Eram três horas e meia da manhã. Os curiosos voltavam para casa; as grandes barracas do circo
estavam reduzidas a destroços carbonizados, o espectáculo tinha terminado.
Montag, imóvel, conservava o lança-chamas nas mãos inertes. Os outros bombeiros esperavam
atrás dele, na escuridão, os rostos fracamente iluminados pelos escombros fumegantes.
Montag conseguiu, enfim, articular: — Foi a minha mulher quem fez a denúncia? Beatty
concordou: — Mas as amigas dela tinham-nos já avisado antes e eu tinha deixado andar. De uma
maneira ou de outra, a tua conta era de respeito. É de facto estúpido começar a declamar poesia a torto
e a direito, como tu fizeste. Que snobismo imbecil! Dêem a um homenzinho alguns versos para recitar
e ele julga-se o rei da Criação. Julgas-te capaz de caminhar sobre a água, com os teus livros. Pois bem, o
mundo pode perfeitamente passar sem isso. Repara em que latrina te meteste. Até à boca! Basta-me
agitar essa porcaria com a ponta do dedo, para te afogares. Montag, grande burro! Montag, pobre
idiota! Porque fizeste isto?
Montag não o ouvia, estava muito longe. O seu espírito vagueava, tinha partido abandonando
atrás de si um cadáver coberto de sujidade que se balançava em frente de outro bruto da sua espécie.
— Montag, vá-se embora! — disse Faber. Montag pôs-se à escuta.
Beatty deu-lhe subitamente uma pancada na cabeça que o fez recuar. A bala verde em que a voz
de Faber murmurava e vituperava caiu no passeio. Beatty apanhou-a rapidamente, com um sorriso mau
nos lábios. Aproximou-a da orelha. Montag ouviu a voz distante que perguntava: — Montag, que se
passa?
— A coisa é mais grave do que eu pensava. Via-te inclinar a cabeça como para escutar. Primeiro
julguei que era um micro-rádio. Mas quando, depois, me fizeste frente, tive as minhas dúvidas. Vamos
tratar de localizar o emissor e o teu amiguinho será apanhado.
— Não! — disse Montag.
Baixou o fecho de segurança do lança-chamas.
Beatty deu uma olhadela às mãos de Montag e os seus olhos dilataram-se ligeiramente. Montag
leu a surpresa no seu olhar e baixou os olhos para as mãos, para ver que novo resto tinham elas
executado. Mais tarde, pensando no caso, nunca foi capaz de decidir se tinham sido as suas mãos ou a
reacção de Beatty ao seu movimento que haviam, finalmente, feito dele um criminoso.
Beatty tsve o seu mais encantador sorriso: — Ora aí está! Eis um bom meio de nos garantirmos
um público. Ponham um homem sob a ameaça de uma arma e forcem-no a ouvir. Vá. Fala. Que vais
dizer, desta vez? Porque não declamar Shakespeare, pobre pretensioso? As tuas ameaças não me assustam,
Cassius; estou tão bem defendido pela minha honestidade, que elas passam por mim como um vento ligeiro que mal se
sentei Que dizes? Decide-te agora, literato de ocasião, carrega no gatilho.
Avançou um passo para Montag.
— Queimámos sempre sem utilidade...—disse simplesmente Montag.
— Dá-me isso, Guy — disse Beatty, com um sorriso gelado.
Depois, nada mais foi do que uma tocha uivante, um fantoche gesticulante, desarticulado, sem
nada de humano ou de reconhecível, torcendo-se nas chamas, no jardim, enquanto Montag o regava de
fogo líquido. Houve um longo silvo, como um jacto de saliva lançado sobre um forno aquecido ao
rubro, um borbulhar de baba como um monstruoso caracol negro polvilhado de sal vomitando uma
onda efervescente de espuma amarelada.
Montag fechou os olhos, uivou, uivou e debateu-se para tapar os ouvidos com as mãos e não
escutar mais aquele ruído. Beatty rolava, contorcia-se interminavelmente. Imobilizou-se, enfim,
dobrado sobre si mesmo como uma boneca carbonizada e o silêncio voltou a reinar.
Os dois outros bombeiros não se tinham mexido.
Montag conseguiu dominar-se e apontou-lhes o lança—chamas.
— Voltem-se.
Eles voltaram-se, o rosto lívido inundado de suor; Montag bateu-lhes violentamente na cabeça,
fazendo-lhes saltar os capacetes. Caíram no chão, desmaiados.
Houve um ligeiro estremecimento de folhas de Outono. Montag voltou-se e encontrou-se de
frente com o Cão—Polícia Mecânico.
No meio do jardim, ele saía da sombra e deslocava-se com tal agilidade que Montag teve a
impressão de que uma nuvem sólida de fumo negro se lançava sem ruído sobre si. A máquina deu um
último salto para Montag, mais alta que ele um metro, as patas finas estendidas para a frente, a agulha
de procaína saindo furiosamente do seu único dente. Montag envolveu-a com uma corola de fogo, com
uma flor maravilhosa que lambeu o cão metálico com as suas pétalas amarelas, azuis e vermelhas, que o
cobriu com uma nova carapaça, enquanto ele tombava violentamente sobre Montag e o atirava, com o
seu lança—chamas, a mais de três metros de distância, contra um tronco de árvore. Montag sentiu uma
perna presa nas garras e a agulha que a atingia no próprio momento em que o jacto de fogo projectava
a máquina no ar, fazendo estalar o seu esqueleto metálico e arrancando-lhe as entranhas, numa
girândola abrasante, como um foguete explodindo junto do chão. Montag, estendido, viu o monstro
debater-se e morrer.
Não ousava levantar-se. Temia ser incapaz de se conservar de pé, com uma perna anestesiada.
Caía num poço sem fundo de entorpecimento... E agora?
A rua vazia, a casa queimada como um velho cenário, as outras casas mergulhadas na escuridão,
o cão mecânico aqui, Beatty ali, os dois outros bombeiros mais longe, e a Salamandra?... Virou-se para a
enorme máquina. Também ela devia desaparecer.
"Enfim", pensou, "vejamos em que estado me encontro. De pé, vá. Docemente, docemente...
Agora." Ergueu-se. Tinha apenas uma perna. A outra era como um tronco de árvore que devia arrastar
consigo, como expiação de qualquer pecado obscuro. Apoiou-se nela. Mil agulhas se espalharam e
subiram pela barriga da perna, até ao joelho. Começou a chorar. "Vamos, vamos! Não podes ficar
aqui!" Começou a coxear em volta das ruínas, segurando a perna doente quando ela fraquejava,
exortando-a, amaldiçoando-a, suplicando-lhe de não lhe recusar o auxílio, agora que era vital para ele.
Atingiu a rua atrás da casa. "Beatty, agora já não propões mais problemas. Dizias sempre: "Não tentes
fazer face a um problema, queima-o." Pois bem, eu fiz as duas coisas. Adeus, capitão." E afastou-se
coxeando ao longo da rua, pela escuridão.
Lembrou-se dos livros e voltou para trás. Apesar de tudo, restava ainda uma fraca possibilidade.
Encontrou alguns volumes onde os tinha deixado, entre os arbustos. Felizmente Mildred não os
tinha encontrado. Ainda lá estavam quatro livros.
Vozes erguiam-se na noite, luzes de lanternas eléctricas cruzavam-se. Outras salamandras
rugiam ao longe e as chamadas das suas sereias respondiam às dos carros da Polícia.
Montag pegou nos quatro livros que restavam e partiu, coxeando, em direcção ao fim da rua.
Subitamente caiu, com a impressão de ter sido decapitado.
Uma força desconhecida o tinha imobilizado e dominado. Estendido onde caíra, começou a
chorar, o rosto comprimido contra o chão. Beatty quisera morrer.
Por entre as lágrimas, Montag sabia que tinha atingido a verdade. Beatty, há pouco, tinha
desejado morrer. Tinha ficado de pé à sua frente, sem fazer o menor gesto para se salvar, troçando,
pensava Montag, e essa idéia foi suficiente para o acalmar um pouco. Como era estranho pensar que se
pudesse desejar morrer ao ponto de deixar um homem marchar para nós, armado e, em vez de se calar
e de se proteger, insultá-lo e troçar dele para o pôr fora de si e, em seguida...
Ao longe, ouviram-se passos precipitados.
Montag sentou-se. "Fujamos daqui. Vá, de pé, não podes ficar parado!" Não tinha querido
matar ninguém, nem mesmo Beatty.
Sentia todos os músculos contraírem-se, como se tivesse mergulhado num banho de ácido.
Sufocava. Via Beatty, como uma tocha flamejante, estorcer-se no jardim.
"Lamento, lamento, meu Deus, como lamento!" Tentou esclarecer a situação no seu espírito,
retroceder dois ou três dias, ao período que tinha precedido a peneira e a areia, o Dentrífico Denham,
as vozes murmurantes, as lucíolas, os alarmes... todos os acontecimentos acumulados... Era de mais
para uns breves dias, de mais, na verdade, para uma vida inteira.
Ouviu correr no outro extremo da rua.
— De pé! — exortou-se. — De pé! — disse à sua perna, e ergueu-se.
Após alguns esforços, conseguiu dominar a dor. Aspirando a plenos pulmões o ar da noite, os
livros na mão, partiu num passo lento mas regular.
Pensava em Faber.
Faber tinha ficado também entre aquele destroço fumegante, informe, inominável. Tinha
também queimado Faber.
Sentiu um tal choque a essa idéia, que teve a impressão de que Faber estava realmente morto,
queimado como um escaravelho naquela pequena cápsula verde, perdida na algibeira de um ser que
nada mais era do que um esqueleto onde se entrelaçavam tendões de betume. "Não te esqueças",
pensou, "queima-os, ou serás queimado." Nesse momento, a coisa não era complicada.
Procurou nas algibeiras: o dinheiro estava lá, assim como o micro-rádio de modelo corrente,
onde a cidade falava de si mesma na manhã fria e sombria: — Alerta a toda a Polícia! Criminoso em
fuga na cidade. Culpado de assassínio e de delitos graves contra o Estado. Nome: Guy Montag.
Profissão: bombeiro. Visto pela última vez...
Durante seis quarteirões conseguiu manter-se em passo de corrida, até desembocar numa larga
avenida deserta. Dir-se-ia um rio gelado sob a luz branca e crua das lâmpadas de néon. "Pode-se ficar
afogado ao tentar atravessá-la", pensou. Era muito larga, muito desprotegida. Era um imenso palco sem
cenário que se sentia tentado a atravessar correndo e onde seria facilmente notado na luz ofuscante,
facilmente apanhado, facilmente abatido.
O rádio murmurou-lhe à orelha: — Procurem um homem em fuga, só, a pé... Procurem...
Montag recuou para a sombra. A sua frente erguia-se uma estação de serviço, um imenso cubo de
porcelana leitosa e brilhante, junto da qual dois carros fulgurantes estavam parados para meter gasolina.
Era-lhe necessário estar limpo e apresentável se queria andar e não correr, atravessar com um passo
normal aquela avenida imensa.
Teria uma margem suplementar de segurança se se pudesse lavar e pentear antes de continuar o
seu caminho... Mas, de facto, para onde ir?
Para parte nenhuma. Não tinha nenhum lugar onde se refugiar, nenhum amigo em casa de
quem se pudesse abrigar. Excepto Faber. Notou então que, instintivamente, caminhava em direcção à
casa de Faber. Mas Faber não podia escondê-lo. Tentá-lo, eqüivalia a um suicídio. No entanto, sabia
que iria ver Faber, nem que fosse só por um instante. Em casa de Faber, apenas em casa de Faber
poderia repousar um pouco e reanimar a sua confiança na possibilidade de sobreviver que desaparecia
rapidamente.
Desejava apenas certificar-se de que existia ainda no mundo um homem como Faber. Desejava
ver vivo esse homem e não queimado. E era necessário, bem entendido, deixar a Faber um pouco de
dinheiro, que ele usaria utilmente após a sua desaparição. Talvez pudesse refugiar-se no campo e viver
nas proximidades de um rio ou de uma estrada, nos campos ou nas colinas. Um longo silvo fê-lo erguer
a cabeça para o céu.
Os helicópteros da Polícia elevavam-se, como sementes de um dente-de-leão levadas pelo
vento.
Eram aproximadamente duas dúzias, oscilando, indecisos, a vários quilômetros, como
borboletas aturdidas pelo Outono. Depois começaram a descer docemente, um aqui, outro ali, para
pousar nas ruas onde, tornados simples veículos, iam atravessar com um ruído estridente as diversas
artérias ou, bruscamente, erguer-se novamente no ar para prosseguir as pesquisas.
Em frente da estação de serviço os empregados serviam apressadamente os clientes. Montag
aproximou-se pelas traseiras do edifício e entrou nos lavabos. Através da parede de alumínio, ouviu um
locutor anunciar pela rádio: "A guerra acaba de ser declarada." Lá fora, as bombas aspiravam o
carburante. Os clientes, instalados nos carros, conversavam e os empregados discutiam a propósito dos
motores, da gasolina e do preço a pagar.
Montag tentou persuadir-se de que a notícia tranqüilamente transmitida pela rádio o tinha
perturbado, mas, de facto, não sentiu qualquer emoção.
Sem ruído, lavou a cara e as mãos e limpou-as com uma toalha. Depois saiu dos lavabos, fechou
a porta com precaução, deu alguns passos na escuridão e imobilizou-se na borda da avenida deserta. A
avenida estava tão limpa como uma arena dez minutos antes do aparecimento de certas vítimas e de
certos carrascos anônimos.
Começou a andar.
Três quarteirões à frente, acenderam-se alguns faróis. Montag respirou fundo. Os pulmões
pareciam arder-lhe no peito e a corrida tinha-lhe secado a boca.
Que significavam aquelas luzes? Se continuasse a andar, teria de calcular a distância e a
velocidade daqueles carros, calcular o momento preciso em que passariam junto dele. Ora vejamos: a
que distância se encontrava o outro passeio? Uma centena de metros. Talvez nem tanto, mas devia
basear-se nesse número, na lentidão da sua corrida; trinta, quarenta segundos lhe seriam necessários
para atravessar aquela distância.
E os carros? Uma vez lançados, podiam ultrapassar os três quarteirões em quinze segundos...
Avançou o pé direito, depois o pé esquerdo, o direito de novo. Começou a atravessar a avenida
vazia.
Decidiu não contar os passos e não olhar nem para a esquerda, nem para a direita. A luz dos
candeeiros parecia-lhe tão violenta e tão quente como a do Sol ao meio-dia. Prestou atenção ao motor
do carro que aumentava de velocidade, dois quarteirões à sua direita. Os faróis móveis varreram a
avenida e a sua luz envolveu Montag.
"Continua a andar." Montag sentiu as mãos crisparem-se nos livros. Instintivamente, andou
mais depressa alguns metros e depois começou a falar em voz alta e retomou o passo primitivo. Estava
agora no meio da avenida, mas o rugido do motor do carro, que acelerava, ia aumentando.
"A polícia, naturalmente. Estão a ver-me. Mas caminha devagar, calmamente, não te voltes, não
olhes, não tenhas um ar inquieto. Caminha simplesmente, caminha, caminha." O carro aparecia. O
carro rugia. O carro vinha cada vez mais depressa. O carro silvava. O carro chegava num estrondo de
trovão, seguindo uma trajectória uivante, como disparado por invisível espingarda. Corria a cento e
oitenta, a duzentos por hora, pelo menos. Montag rangeu os dentes. O calor dos faróis, que lhe caía em
cima, parecia queimar—lhe o rosto, esmagava-lhe as pálpebras e fazia nascer em todo o seu corpo um
suor acre.
Começou a arrastar os pés, estupidamente, falando consigo mesmo e depois, bruscamente, pôsse
a correr velozmente. Deixou cair um livro, voltou-se, desistiu de o apanhar, e mergulhou para a
frente, uivando no vácuo sonoro; o carro, perseguindo a sua vítima apavorada, estava apenas a sessenta
metros, trinta metros, vinte e cinco metros, vinte e quatro metros, vinte e três metros... Montag,
arquejando, gesticulando, estendia as pernas... O bólide aproximava-se, aproximava-se, tocando
freneticamente a buzina. Montag voltou a cabeça por um momento e a luz dos faróis cegou-o... Agora
o carro desaparecia na irradiação luminosa, era apenas um facho rugidor que se lançava sobre ele.
Quase o tocava! Montag tropeçou e caiu.
Mas a queda salvou-o. No instante em que o ia atingir, o carro deu uma violenta guinada e
passou como um raio. Montag jazia no chão, o rosto encostado ao solo. Ouviram-se grandes risadas
que ficavam para trás, na chama azulada do tubo de escape.
Montag tinha o braço direito estendido, a mão aberta. Na extremidade do dedo médio, notou
um fino traço negro deixado pela passagem do pneu. Incredulamente, contemplou a linha escura,
enquanto se levantava.
"Com toda a certeza que não era a polícia", pensou. Olhou para a extremidade da avenida.
Tratava-se de um grupo de garotos de todas as idades, talvez dos doze aos dezasseis anos. Garotos
barulhentos, desenfreados, que tinham notado um homem, espectáculo incrível, um homem
caminhando a pé. "Vamos caçá-lo", tinham pensado, ignorando que se tratava de Montag, o fugitivo.
Era apenas um grupo de garotos partindo para uma volta de quinhentos ou seiscentos quilômetros, sob
a Lua, os rostos gelados pelo vento, que voltariam ou não voltariam para casa de manhã, que
escapariam vivos ou não, e era esse todo o sabor da aventura.
"Ter-me-iam morto", pensou Montag. Tocou no rosto magoado. "Sem a mínima razão, ter-meiam
morto." Retomou o caminho em direcção ao passeio. Entretanto, tinha apanhado os livros
espalhados mas não se lembrava sequer de se ter inclinado para o fazer.
"Pergunto a mim mesmo se foram eles que mataram Clarisse?" Parou e repetiu em voz alta: —
Pergunto a mim mesmo se foram eles que mataram Clarisse?
Devia ter corrido atrás deles, insultá-los. Os
olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
A queda tinha-lhe salvo a vida, estava certo disso. O garoto do volante, vendo Montag
estendido no chão, num reflexo instintivo, tinha evitado o obstáculo que, a tal velocidade, teria talvez
feito capotar o carro e atirado os seus ocupantes em todas as direcções. Se Montag tivesse ficado de pé,
que belo alvo...
Montag conteve um grito. Muito longe, na extremidade da avenida, o carro tinha abrandado de
velocidade e virado em duas rodas e agora voltava a toda a velocidade, fora da mão.
Mas Montag estava em segurança na sombra de uma travessa, alvo da sua interminável viagem
iniciada uma hora — ou um minuto? — mais cedo.
Estremecendo, viu o carro passar como um foguete no meio da avenida, num turbilhão de
risos, logo dispersos.
Avançando na escuridão, Montag voltou a observar os helicópteros que desciam, desciam como
os primeiros flocos de neve do longo Inverno que chegava.
A casa estava silenciosa.
Montag aproximou-se pelas traseiras, através de uma moita de arbustos, saturada de orvalho,
onde flutuava um perfume de narcisos, de rosas e de erva húmida.
Atingiu a porta de serviço, verificou que estava aberta e entrou. Depois, pôs-se à escuta.
"Sra.Black, está dormindo, aqui perto de mim?", pensou. "É um gesto cruel, sei-o bem, mas o
seu marido fez o mesmo aos outros e nunca se inquietou, nunca teve a menor dúvida. E, visto que é a
mulher de um bombeiro, é a sua vez, a vez da sua casa, por todas as outras casas que o seu marido
queimou e por todos aqueles que ele reduziu ao desespero sem pensar um segundo que fosse." A casa
continuou silenciosa.
Escondeu os livros na cozinha, voltou a sair e voltou-se para olhar a casa, obscura e calma,
adormecida.
Voltou a partir através da cidade, sobre a qual os helicópteros flutuavam no céu como pedaços
de papel, e de uma cabina telefônica solitária, em frente de uma loja fechada durante a noite, fez a
denúncia.
Depois esperou, no frio nocturno, e, ao longe, ouviu o uivo das sereias de incêndio, as
Salamandras que arrancavam, que vinham queimar a casa do sr. Black, ausente em serviço. E a sua
mulher, de pé no frio da madrugada, estremeceria e veria o seu tecto abater-se e desmoronar-se nas
chamas.
Mas, por um momento ainda, ela dormia.
"Boa noite, sr." Black", pensou.
— Faber!
Uma pancada, um murmúrio, depois uma longa espera. Enfim, após um momento, uma luz
débil brilhou na pequena casa de Faber. Finalmente, a porta das traseiras abriu-se.
Faber e Montag encararam-se, na penumbra, como se qualquer deles não acreditasse na
existência do outro. Depois Faber estendeu a mão, agarrou Montag por um braço, puxou-o para
dentro, fê-lo sentar-se e voltou para junto da porta, de ouvido à escuta.
Os gritos das sereias desapareciam, ao longe. Faber voltou para dentro e fechou a porta.
— Tenho-me conduzido como um verdadeiro imbecil — disse Montag. — Não posso
demorar-me muito tempo. Vou tratar de me pôr a andar... ainda não sei para onde.
— Não há dúvida de que deu provas de uma lamentável leviandade — afirmou Faber. —
Julgava-o morto. A audio-cápsula que lhe dei...
— Está queimada.
— Ouvi o capitão falar-lhe e, de repente, mais nada. Quase me resolvi partir à sua procura.
— O capitão está morto. Tinha descoberto o aparelho e ouvido a sua voz. Ia detectar o
ponto de emissão. Matei-o com o lança-chamas.
Faber sentou-se e ficou um momento silencioso.
— Santo Deus! Como aconteceu tudo isto? — disse Montag. — Ainda anteontem tudo
caminhava bem e eis-me agora numa situação impossível. Beatty morreu, e foi meu amigo, outrora...
Millie partiu. Julgava que ela era a minha mulher, mas agora já não estou certo. A casa está queimada. Já
não tenho emprego e, enquanto fugia, escondi um livro na casa de um bombeiro. O que eu pude fazer,
em menos de uma semana!
— Fez tudo o que devia. Estava escrito há muito tempo.
— Também o creio. Isto tinha que acontecer. Sentia-o há já muito tempo. Todos os meus actos
estavam em contradição com os meus pensamentos. É verdade. Tinha que chegar a isto. É incrível que
não se notasse em mim, como uma doença de pele. E, agora, estou a metê-lo a si no mesmo sarilho.
Poderão facilmente seguir a minha pista até aqui.
— É a primeira vez que me sinto vivo, de há uns anos para cá — disse Faber. — Tenho a
impressão de fazer o que devia ter feito há séculos. Por agora, não tenho medo. Talvez porque sou
responsável por um acto de violência e não quero parecer covarde aos seus olhos. Suponho que me
será necessário dar provas de mais brutalidade ainda e expor-me eu mesmo, para evitar deixar a tarefa
por acabar e tornar a cair nos meus passados terrores. Quais são os seus planos?
— Continuar a fugir.
— Sabe que estamos em guerra?
— Ouvi a notícia.
— Como é curioso! — disse o velho. — Tudo isso parece tão distante, com as preocupações
que nos absorvem.
— Não tenho tempo para pensar no caso. — Montag tirou cem dólares da algibeira. — Guarde
ísto — disse.— Este dinheiro vai-lhe ser certamente muito útil, depois do meu desaparecimento.
— Mas...
— Ao meio-dia, talvez já eu esteja morto. Sirva-se desse dinheiro.
Faber agitou a cabeça.
— Aconselho-o a atingir o rio, se o conseguir. Suba ao longo da margem e trate de chegar até à
velha via férrea. Em seguida, siga-a em direcção ao campo. Quase todos os transportes se fazem agora
por via aérea e a maior parte das vias férreas está abandonada, mas os carris lá ficaram, a enferrujar.
Parece que vários campos de vagabundos estão instalados em diversos locais da planície: campos de
marcha, como lhes chamam, e, se puder caminhar suficientemente longe e estiver de olhos abertos,
dizem que ao longo da via férrea, daqui a Los Angeles, se refugiaram muitos velhos diplomados de
Harvard. A maior parte deles é procurada nas cidades. Suponho que conseguem aguentar-se. Não são
muito numerosos e o Governo não deve considerá-los como um perigo bastante sério para motivar
perseguições. Pode esconder-se algum tempo entre eles e, em seguida, tratar de ir ter comigo a Saint-
Louis. Parto no autocarro das cinco da manhã para ir lá falar com um velho impressor. Enfim, decidime
a sair da minha toca. Este dinheiro será bem empregado. Obrigado e que o Céu o abençoe. Quer
descansar alguns minutos?
— É melhor pôr-me a andar.
— Vamos examinar a situação.
Conduziu rapidamente Montag ao quarto e deslocou um quadro, na parede.
Um écran de televisão, do formato de um postal, apareceu por baixo. Ligou o aparelho.
— "Montag" — anunciou o posto. Maiúsculas apareceram: MONTAG. Uma voz soletrou o
nome. — "Guy Montag, ainda em fuga. Todos os helicópteros da Polícia estão no ar. Um novo Cão-
Polícia Mecânico foi trazido para a perseguição..."— Montag e Faber entre olharam-se. — "O Cão—
Polícia Mecânico é infalível Nunca, desde a sua primeira utilização para atingir a presa, esta máquina
prodigiosa falhou. Esta noite, a nossa estação emissora tem o privilégio de poder seguir directamente o
Cão-Polícia com uma câmara montada em helicóptero, desde o início da caçada..." Faber encheu dois
copos com whisky.
— Vamos ter necessidade disto — disse. Beberam.
— "...um olfacto tão sensível que é capaz de reter e identificar os dez mil constituintes
olfactivos de dez mil indivíduos diferentes, sem a menor hesitação!" — Um intervalo. — "O Cão-
Polícia Mecânico aterrou em helicóptero, no local do sinistro!" E, em frente deles, no pequeno écran,
apareceu a casa queimada, a multidão e o helicóptero descendo .do céu como uma flor grotesca.
"Sim, precisam de se distrair", pensou Montag. "O número de circo deve continuar, mesmo
com a guerra que vai rebentar dentro de uma hora..." Olhou o espectáculo, fascinado.
Se quisesse, podia demorar-se ali e, confortavelmente, seguir a caçada em todas as suas fases, ao
longo das travessas, das ruas, através das largas avenidas desertas, até à casa em chamas do sr. e da
Sra.Black e, enfim, até àquela casa onde Faber e ele se tinham instalado e bebiam enquanto o Cão-
Polícia, farejando silencioso como a asa da morte, viria parar junto daquela janela. Depois, se assim o
desejasse, Montag poderia erguer-se, ir até à janela, sem perder de vista o écran de televisão, abri-la,
inclinar-se para fora, voltar-se e ver-se aparecer como um herói de teatro, no pequeno écran luminoso,
um drama a contemplar com um olhar objectivo, sabendo que, nos outros salões, apareceria em
tamanho natural, a cores, a sua réplica exacta em três dimensões! E, se olhasse rapidamente, poderia
ainda ver-se, um momento antes de cair no eterno esquecimento, abatido em benefício dos inúmeros
espectadores que, arrancados ao sono alguns minutos antes pelas sereias uivantes das paredes das suas
salas, se tinham instalado para assistir à caçada à fera, a batida organizada contra um homem
encurralado, um homem só. Teria tempo de fazer um discurso? Quando o Cão-Polícia o agarrasse, sob
os olhos de dez, vinte ou trinta milhões de pessoas, não poderia ele resumir toda a sua
existência, durante a última semana, numa frase, uma palavra que ficasse gravada na memória de todos
muito tempo depois de o Cão-Polícia se ter retirado, levando-o nas suas mandíbulas metálicas enquanto
a câmara, imóvel, seguisse o monstro que desaparecia ao longe! Que poderia ele dizer numa só palavra,
em poucas palavras, para os atingir em pleno rosto e os acordar bruscamente?
— Aí está ele — murmurou Faber.
Uma coisa brilhante emergiu do helicóptero. Nem máquina, nem animal. Nem morta, nem viva;
rodeada de um halo luminoso verde-pálido. A coisa estava imóvel, junto das ruínas fumegantes da casa
de Montag. Os homens trouxeram o lança-chamas abandonado por Montag e aproximaram-no do
focinho do Cão-Polícia. Houve um ruído, um estalo, um zumbido contínuo.
Montag sacudiu a cabeça, levantou-se e vazou o copo.
— São horas. Desculpe-me...
— De quê? Que me pode acontecer? Pela minha casa? Mereço-o. Desapareça depressa. Talvez
os possa demorar um pouco aqui...
— Espere. É inútil que seja descoberto. Assim que eu sair, queime esta colcha* que eu toquei,
queime o maple do salão, lance-os no incinerador mural. Passe álcool pelos móveis e pelos fechos das
portas. Queime o tapete do salão. Ligue o climatizador em todas as divisões e encha tudo de insecticida,
se o tiver. Depois, faça girar os regadores rotativos o mais alto possível no jardim e inunde os passeios.
Com um pouco de sorte, pode fazer desaparecer a minha pista, pelo menos aqui.
Faber apertou-lhe a mão.
— Vou tratar disso — disse. — Boa sorte. Se estivermos ambos vivos na próxima semana ou
na seguinte, avise-me para a posta restante de Saint-Louis. Lamento não o acompanhar pela rádio, desta
vez. Era uma boa coisa para si e para mim. Mas não tenho mais nenhum aparelho. Que estupidez da
minha parte! E agora, parta.
— Ainda uma palavra. Depressa, uma mala. Meta aí o seu fato mais sujo, uma camisa, sandálias,
um par de peúgas...
Faber saiu e voltou ao fim de um minuto. Fecharam a mala com fita isoladora.
— Para conservar o cheiro do sr. Faber, é claro — disse Faber.
Montag regou com whisky o exterior da mala.
— Não quero que o Cão-Polícia detecte os dois cheiros imediatamente. Posso levar o whisky?
Terei necessidade mais tarde. Espero que tudo corra bem.
Apertaram de novo a mão e, ao atravessarem a porta, deram uma olhadela à televisão. O Cão-
Polícia estava a caminho, seguido pelas câmaras. Silencioso, silencioso, cheirava o vento da noite.
Dirigiu-se, trotando, para a primeira travessa.
— Até à vista!
E Montag, saindo pelas traseiras, começou a correr. Atrás dele, ouvia o sistema de rega que se
erguia no meio do jardim e projectava, na escuridão, uma doce chuva circular que molhava o passeio e
vinha humedecer a travessa. No rosto, transportava algumas gotas dessa chuva.
Julgou ouvir o velho gritar-lhe um último adeus, mas não estava certo. A toda a velocidade,
afastou-se da casa e tomou a direcção do rio.
Montag corria.
Sentia a presença do Cão-Polícia Mecânico, como a aproximação de um vento de Outono, seco,
vivo e frio, um vento que não agitaria uma erva, que não faria bater as janelas ou oscilar no passeio, à
sua passagem, a sombra das folhas. A máquina não tocava o mundo à sua volta. Transportava consigo
o silêncio. Montag sentiu o peso desse silêncio aumentar à medida que corria.
Parou um instante para descansar, para deitar uma olhadela às janelas fracamente iluminadas das
casas que acordavam. Distinguia no interior as silhuetas dos habitantes instalados em frente dos seus
écrans murais e, nesses écrans, o Cão-Polícia, num vapor de néon, que galopava nas suas patas de aranha,
desaparecia, reaparecia! Tinha atingido Elm Terrace; estava em Lincoln, Oak Park; seguia a travessa que
levava à "casa de Faber!
"Continua", pensou Montag, "não pares, continua, não entres em casa dele!" No écran surgiu a
casa de Faber com a sua regadora rotativa que girava no ar nocturno.
O Cão-Polícia parou, vibrando.
"Não!" Montag agarrou-se à borda da janela. "Por aqui! Depressa!" O aguilhão carregado de
procaína saía-lhe do focinho. Uma gota límpida de narcótico caiu da agulha.
Montag reteve a respiração.
O Cão-Polícia Mecânico voltou-se, afastou-se da casa de Faber e continuou o seu caminho, pela
travessa.
Montag ergueu a cabeça. Os helicópteros aproximavam-se, como nuvens de insectos atraídos
por um único foco luminoso.
Com esforço, Montag lembrou-se que não se tratava de um episódio imaginário a que assistia,
no seu caminho para o rio. Era da sua própria partida de xadrez que ele era testemunha, jogada a
jogada.
Começou de novo a correr. Uma travessa, uma rua, uma travessa, uma rua e o cheiro do rio. As
suas pernas conduziam-no, dóceis, elásticas. Em breve vinte milhões de Montag estariam a correr, se as
câmaras o localizassem. Vinte milhões de Montag pulando como personagens de um velho filme de
Mack Sennett, polícias e ladrões, caçadores e caçados, perseguidores e perseguidos, como ele tinha visto
mil vezes. Montag meteu o micro-rádio na orelha: — "A Polícia convida a população inteira de Elm
Terrace a seguir as seguintes instruções: em cada rua, em cada casa, cada habitante vai abrir a porta ou
vigiar a rua da janela. O fugitivo não terá a mínima possibilidade de escapar se cada um, daqui a um
minuto, seguir as instruções dadas. Estão prontos?" Evidentemente! Porque não tinham eles pensado
nisso mais cedo? Há quantos anos não se faria aquele jogo?
Toda a gente em pé! Toda a gente na rua! Não podiam falhá-lo! O único indivíduo que corria na
cidade, no meio da noite, o único homem a pôr as suas pernas à prova.
— "Vamos contar até dez. Atenção! Um! Dois!" Sentiu que toda a cidade se erguia.
— "Três!" Sentiu a cidade virar-se para os seus milhares de portas. "Mais depressa! Corre mais
depressa!"
— "Quatro!" Os habitantes, meio acordados, dirigiam-se para os corredores.
— "Cinco!" Sentiu as mãos que pousavam nos fechos das portas!
O cheiro do rio era fresco como o de um muro de chuva sólida.
Tinha a garganta em fogo, os olhos cheios de lágrimas. Uivava como se os seus uivos o
pudessem atirar para a frente, o pudessem fazer atravessar de um salto os cem últimos metros.
— "Seis, sete, oito!" Os fechos de cinco mil portas começaram a girar.
— "Nove!" Ultrapassou a última fila de casas e escorregou pela encosta que mergulhava numa
massa negra e móvel.
— "Dez!" As portas abriram-se.
Imaginava os milhares e milhares de rostos examinando os pátios, as ruas, olhando o céu, rostos
vincados por rugas, pálidos, espantados, como animais acinzentados emboscados em caves eléctricas,
rostos com olhos sem cor, com línguas cinzentas, pensamentos cinzentos, olhar fixo na carne inerte da
face. Mas tinha atingido o rio.
Despiu-se completamente e mergulhou naquele líquido puro. Depois vestiu os velhos fatos e
calçou os sapatos de Faber. Lançou em seguida a sua roupa ao rio e viu-a afastar-se, à deriva. Então, de
mala na mão, avançou pela água até perder o pé e deixou-se levar pela corrente.
Estava a trezentos metros de distância quando a Máquina chegou à margem. Sobre ele, as
imensas hélices dos helicópteros agitavam o ar, silvando. Uma vaga de luz espalhou-se pelo rio, e
Montag mergulhou. Sentiu-se levado para a noite, pelo rio. Depois, os projectores viraram-se de novo
para a terra, e os helicópteros voltaram a sobrevoar a cidade, como se tivessem descoberto uma nova
pista. O Cão-Polícia Mecânico tinha também partido. Nada mais havia que a água fria do rio e Montag,
subitamente invadido por uma paz enorme, que se afastava da cidade, das luzes, da caça, que se afastava
de tudo.
Tinha a impressão de ter deixado atrás de si uma cena formigante de actores, de ter abandonado
um drama capital e todos os fantasmas murmurantes que o animavam.
Abandonava um mundo irreal e aterrador por outro mundo real mas, por sua vez, igualmente
irreal devido à sua novidade.
As margens sombrias deslizavam lentamente e Montag mergulhava na planície rodeada de
colinas. Pela primeira vez depois de uma boa dúzia de anos, as estrelas brilhavam por cima dele em
longas procissões de fogo.
Flutuava de costas quando a mala se encheu de água e se afundou; o rio deslizava
preguiçosamente, levando-o para longe daquela gente que se alimentava de sombras de manhã, de
vapor ao meio-dia e de nevoeiro à noite.
Os seus pés tocaram no fundo. Sentiu pedras, rocha, areia. O rio tinha-o lançado na margem.
Contemplou a imensa criatura sombria, sem olhos, sem formas, que se estendia por milhares de
quilômetros sem nunca parar, entre as colinas e as florestas que esperavam por ela. Hesitou em
abandonar a corrente acolhedora. Temia encontrar o Cão-Polícia. As árvores podiam inclinar-se
bruscamente sob o vento furioso dos helicópteros.
Mas apenas soprava, lá em cima, a brisa do Outono, como um outro rio.
Uma tristeza súbita o invadiu. Milhe não estava ali e o Cão-Polícia também não, mas o cheiro
seco do feno vindo de qualquer campo próximo atraiu Montag.
Agora, o perfume seco do feno colhido, o movimento da água dava-lhe desejos de adormecer
numa cama de palha fresca, numa granja abandonada, longe das auto—estradas ruidosas, junto de uma
herdade sossegada, sob as asas de um velho moinho chiando como os anos que passariam, deslizando,
ao lado dele.
Passaria toda a noite no celeiro, ouvindo os animais ao longe, os insectos e as árvores, os
movimentos furtivos, os murmúrios das coisas.
E um copo de leite fresco, maçãs e pêras colocadas no chão, junto da escada. Nada mais
desejava. Seria o sinal de que o mundo sem limites o aceitava e lhe oferecia o tempo necessário para
pensar em todas as coisas que era necessário pensar.
Um copo de leite, uma maçã, uma pêra.
Saiu do rio.
A terra lançou-se sobre ele como uma onda. Sentiu-se esmagado pela escuridão, pelas formas
vagas do campo, assaltado pelos milhares de cheiros trazidos pelo vento que lhe gelava o corpo.
Desejava tornar a mergulhar no rio e deixar-se levar de novo, ao sahor da corrente.
Era terra de mais!
Fora do poço negro, à sua frente, elevou-se um ruído ligeiro, surgiu uma forma. Nessa forma,
dois olhos. A noite olhava-o. A floresta observava-o. A Máquina! O Cão-Polícia Mecânico!
Depois de ter corrido tanto, corrido até ao esgotamento, se ter quase afogado, após ter chegado
tão longe, ter atingido o limite das suas forças, julgar-se enfim em segurança, suspirado de alívio, pôr os
pés em terra firme e encontrar-se face a face com... O Cão-Polícia!
Montag deu um uivo de desespero como se se sentisse vencido por aquela última prova. A
forma desapareceu. Os olhos deixaram de se ver. As folhas caíram como uma chuva seca.
Montag estava só, no campo.
Um veado. Sentia-lhe o cheiro como um perfume misturado com sangue, o bafo resinoso do
animal, uma mistura de cardamomo, de musgo, de urze, naquela noite imensa onde as árvores
caminhavam para ele, se afastavam, vinham, iam, ao ritmo do coração que lhe batia junto dos olhos.
E tantos outros cheiros! De todos os lados se elevava um cheiro de batatas cortadas, cru, frio,
embranquecido sob a Lua, ao longo das noites. E havia um perfume amarelo de mostarda em frasco; e
um perfume de cravos flutuando num jardim. Baixou a mão e sentiu a erva que lhe tocava como uma
carícia de criança.
Parou e aspirou o ar à sua volta. Quanto mais profundamente respirava, mais se saturava dos
pormenores da paisagem.
Já não se sentia vazio. Havia ali com que se encher para sempre.
Teria sempre com que se encher. Partiu, tropeçando no oceano
de folhas.
E, no meio desse mundo desconhecido, um contacto familiar. Deu com o pé num obstáculo
que soou surdamente.
Tacteou com a mão ao nível do solo, um metro para a frente, um metro para trás. A
via férrea.
Os carris que fugiam da cidade e enferrujavam através do campo, nas florestas e nas planícies,
agora abandonados, ao longo do rio.
Encontrara o caminho que devia seguir.
Tinha atingido esse único ponto de referência, esse encanto mágico que lhe seria precioso
durante algum tempo. Poderia tocá-lo e senti-lo sob os pés, caminhando no meio dos arbustos, nesses
lagos de cheiros, entre os murmúrios e os remoinhos das folhas.
Seguia a via férrea.
E verificou, com surpresa, que se sentia absolutamente certo de um facto impossível de provar:
um dia, outrora, Claris se tinha caminhado ali, onde ele caminhava agora.
Uma meia hora mais tarde, cheio de frio, andando prudentemente entre os carris, atento às
sensações do seu corpo, do seu rosto, da sua boca, dos seus olhos cheios de escuridão, das suas orelhas
cheias de sons, das suas pernas fustigadas pelas ervas e pelos cardos, viu o fogo à sua frente.
O fogo desapareceu, depois tornou a aparecer, como um olho que piscasse. Parou, temendo
apagar o fogo com a respiração. Mas o fogo lá continuava e Montag aproximou-se a passos lentos. Ao
fim de um quarto de hora encontrava-se perto e, dissimulado atrás de uns arbustos, observou as
chamas brancas e vermelhas que vacilavam, esse fogo estranho que, para ele, tinha um significado novo.
Ele não queimava, aquecia.
Distinguiu mãos estendidas por cima do fogo, mãos sem braços, emergindo da sombra.
Por cima das mãos, rostos imóveis nos quais dançavam os reflexos das chamas. Nunca tinha
pensado que um fogo pudesse apresentar aquele aspecto. Nunca tinha imaginado que um fogo pudesse
dar tanto como tirar. O próprio cheiro era diferente.
Nunca soube quanto tempo ficou à espreita, mas era uma sensação simultaneamente deliciosa e
absurda, sentir-se como um animal saído da floresta e atraído pelo fogo. Transformara-se num ser
coberto de pêlo, com olhos líquidos, um focinho, cascos, uma armação na cabeça, um sangue que, se
ele fosse morto, faria surgir do solo um perfume de Outono.
E não era só o fogo que era diferente. Era também o silêncio.
E Montag avançou para esse silêncio no meio do qual se encontrava o mundo inteiro.
Depois, vozes se elevaram; não podia distinguir as palavras, mas falavam calmamente; essas
vozes conheciam a terra, as árvores, a cidade que jazia no outro extremo dos carris. Essas vozes
falavam de tudo; nada lhes era desconhecido; sabia-o pela sua cadência, pelo seu timbre, pelas inflexões
de espanto e curiosidade que delas emanavam.
Depois um dos homens ergueu os olhos e viu-o pela primeira vez, ou talvez pela sétima, e uma
voz dirigiu-se a Montag:
— Vamos, apareça. Montag saiu da sombra.
— Venha — disse a voz — que é bem-vindo. Montag aproximou-se lentamente do fogo e dos
cinco homens de idade vestidos de azul-escuro. Não sabia que lhes dizer.
— Sente-se — disse o homem que parecia presidir ao pequeno grupo. — Quer café?
Viu o Kquido negro e fumegante correr para um púcaro de alumínio que uma mão lhe estendia.
Começou a beber lentamente e sentiu os olhares curiosos convergir para ele. Todos os rostos à
sua volta eram barbados, mas essas barbas eram limpas, bem aparadas.
Tinham-se levantado, como para acolher um hóspede ilustre, e, depois, voltado a sentar-se.
Montag bebeu mais um golo de café.
— Obrigado — disse. — Muito obrigado.
— É bem-vindo entre nós, Montag. Chamo-me Granger — estendeu-lhe uma pequena garrafa
com um Kquido incolor.— Beba também isto, para mudar a composição química da sua transpiração.
Dentro de meia hora, cheirará a outra pessoa. Com o Cão-PoKcia atrás de si, é melhor vazar a garrafa.
Montag bebeu o Kcor amargo.
— Vai ficar com o fedor de um gato de mato, o que será óptimo — disse Granger.
— Conhece o meu nome — disse Montag.
Granger indicou com a cabeça uma televisão portátil, colocada junto do fogo.
— Seguimos toda a caçada. Pensámos que fugiria para o sul, ao longo do rio. Quando o
ouvimos estrebuchar no mato como um animal ferido, não nos escondemos, como costumamos fazer.
Supusemo-lo no meio do rio, quando os helicópteros voltaram para a cidade. No entanto, é estranho, a
caçada continua. E do lado oposto.
— Do lado oposto?
— Deitemos uma olhadela.
Granger Kgou o aparelho. O espectáculo, uma condensação de pesadelo, passou de mão em
mão no meio da floresta, com as suas cores truncadas, os seus remoinhos sacudidos. Uma voz gritou:
— "A perseguição continua no norte da cidade! Os helicópteros da PoKcia convergem para a
avenida e Elm Grove Park!" Granger abanou a cabeça.
— É um simulacro. Você despistou-os à borda do rio. Eles não querem admiti-lo. Sabem que
não podem manter por muito tempo o público na expectativa. O espectáculo deve ter um fim rápido,
dramático! Se tivessem começado as pesquisas ao longo do rio, arriscavam-se a prolongar a coisa por
toda a noite. Portanto, procuram encontrar um bode expiatório, para acabar com um golpe teatral.
Olhe. Vão apanhar Montag daqui a cinco minutos!
— Mas como!...
— Olhe!
A câmara, instalada no ventre de um helicóptero, picava agora sobre uma rua deserta —
Está a ver? — murmurou Granger. — LocaKzaram-no. No fim daquela rua encontra-se a vítima. Veja
como a câmara escolhe os ângulos. Compõe a cena. Suspense. Um plano em profundidade. Exactamente
neste momento, um pobre diabo anda passeando a pé. Um fenômeno. Um tipo suspeito. Não julgue
que a Polícia não está ao facto dos actos e dos gestos dos indivíduos desse gênero, esses pobres
homens que passeiam de manhã, sem razão, a não ser que sofram de insónias. Em todo o caso, a
Polícia tem-no "fichado1" há meses, talvez há anos. Nunca se sabe se uma informação desse gênero não
poderá servir um dia. E hoje, revek-se de grande utilidade. Permite salvar as aparências. Meu Deus!
Olhem!
Os homens sentados junto do fogo inclinaram-se para a frente. No écran, um homem apareceu
na esquina de uma rua. Os projectores do helicóptero cuspiram uma dúzia de colunas luminosas,
aprisionando o homem como numa gaiola.
— "Eis Montag!" — gritou uma voz. — "A caçada terminou!" O homem inocente imobilizouse,
espantado, um cigarro na mão. Fixou com olhos admirados o Cão-Polícia, sern compreender. E não
chegou a ter tempo para isso. Ergueu a cabeça para o céu e para as sereias uivantes. A câmara
mergulhou. O Cão-Polícia saltou com uma elegância e uma precisão de estranha beleza. O seu aguilhão
apareceu. Ficou como que suspenso um momento no ar, como para permitir aos inúmeros
espectadores apreciar todos os pormenores do quadro.
O terror no rosto da vítima, a rua vazia, o monstro de aço como um projéctil atingindo o alvo.
— "Montag, não te mexas!" — gritou uma voz vinda do ar.
A câmara caiu sobre a vítima ao mesmo tempo que o Cão-Polícia. A vítima foi simultaneamente
atingida pelo monstro e pela câmara, num sobressalto convulsivo de patas finas.
O homem uivou, uivou, uivou.
Nada.
Silêncio.
Escuridão.
Montag deu um grito e virou-se.
Os homens sentados em volta do fogo, silenciosos, estavam impassíveis.
Após um momento, um locutor anunciou, no écran negro:
— "A perseguição terminou. Montag morreu. O culpado pagou o seu crime contra a
sociedade." Noite negra.
— "Apresentamos-lhes agora meia hora de atracções antes do nascer do Sol, nos terraços do
Hotel Lux, um programa de..." Granger desligou o aparelho.
— Eles não mostraram o rosto daquele homem. Não reparou? Os seus melhores amigos não
poderiam afirmar se era você. Dosearam bem as imagens para deixarem o campo livre à imaginação.
Merda! — disse em voz baixa. — Merda!
Montag não respondeu, mas virou-se para olhar o écran vazio e sentou-se, a tremer. Granger
pousou a mão no braço de Montag.
— Seja bem-vindo de entre os mortos. Montag baixou a cabeça.
— Agora vou apresentar-lhe os meus amigos — continuou Granger. — Este é Fred Clement;
regia dantes a cadeira Thomas Hardy em Cambridge, antes que a Universidade se tivesse transformado
num centro de formação de engenheiros atômicos. O dr. Simmons, da U. G. L. A., especialista em
Ortega y Gasset; o prof. West, que se consagrou a trabalhos sobre moral, ciência bem antiquada agora,
na Universidade de Colúmbia, há um bom par de anos; o reverendo Padover, conhecido pelas suas
conferências há uns trinta anos. De um domingo para o outro, devido às suas opiniões, perdeu todas as
ovelhas. Acampa connosco há já algum tempo. E, enfim, eu; escrevi um livro: Os dedos na luva; As
entre o indivíduo e a sociedade, e pronto! Montag, seja bem-vindo entre nós!
— Não pertenço ao vosso mundo — disse Montag lentamente.— Nada mais tenho sido do
que um imbecil.
— Pouco importa. Todos nós temos cometido consideráveis erros, senão não estaríamos aqui.
Quando estávamos isolados, cada um para seu lado, apenas sentíamos furor. Abati um bombeiro que
tinha vindo queimar a minha biblioteca, há vários anos. Depois, tenho andado sempre fugido. Quer
juntar-se a nós, Montag?
— Quero.
— Que nos pode oferecer?
— Nada. Pensei ter uma parte do livro do Edesiastes e talvez alguns pedaços do Apocalipse, mas
já nada me resta.
— O livro do Edesiastes, será óptimo. Onde estava ele?
— Aqui — disse Montag, apontando para a cabeça.
— Ah! — Granger acenou a cabeça, sorrindo.
— Porquê? Não estava bem? — perguntou Montag.
— Não estar bem! Mas é magnífico! — Granger virou-se para o reverendo: —
Possuímos algum livro do Edesiastes?
— Sim, um. Um certo Harris, em Youngstown.
— Montag — Granger agarrou Montag pelo ombro com uma mão firme—, não cometa
imprudências. Defenda a sua saúde. Se acontecer qualquer coisa a Harris, é você que será o livro do
Edesiastes. Veja que importância tomou de repente!
— Mas eu esqueci-o!
— Não. Nada está perdido. Temos certos meios para avivar a sua memória.
— Já tentei lembrar-me várias vezes!
— Não tente. Acontecer-lhe-á no momento em que for preciso. Todos nós temos memórias
fotográficas, mas consagrámos vidas inteiras a conservar intacto o que aí armazenámos! Simmons
estudou o problema durante vinte anos, e agora dispomos de um método que nos permite lembrar para
sempre aquilo que lemos, nem que fosse uma única vez. Montag, gostaria de ler A. República de Platão,
um dia?
— Com certeza.
— Eu sou a República de Platão. Gostaria de ler Marco—Aurélio? O sr. Simmons é Marco-
Aurélio.
— Como está? — disse o sr. Simmons.
— Bom dia — respondeu Montag.
— Quero também apresentar-lhe Jonathan Swift, autor dessa perniciosa obra política: As
? Gullh
E este é Charles Darwin, aquele Schopenhauer e aquele Einstein; este aqui ao meu lado, é o sr.
Albert Schweitzer, na verdade um simpático filósofo. Aqui estamos todos reunidos, Montag.
Aristófanes, o Mahatma Gandhi e Gautama Buda, Confúcio, Thomas Love Peacock, Thomas Jefferson,
Karl Marx e o sr. Lincoln. Somos igualmente Mateus, Marcos, Lucas e João.
Começaram todos a rir docemente.
— É impossível — disse Montag.
— Não é — replicou Granger, sorridente. — Somos igualmente incendiários de livros. Lemos
os livros e queimámo-los, com medo que alguém os descubra. Os microfilmes não valem nada;
deslocamo-nos constantemente e não queremos enterrar os filmes para voltar a buscá-los mais tarde.
Arriscaríamos sempre ser surpreendidos. O melhor, será guardar tudo na memória, onde ninguém irá
procurá-los. Somos todos constituídos por pedaços, extractos de história, de literatura, de direito
internacional, Byron, Tom Paine, Maquiavel, Engels, Cristo, tudo está registado. E a noite vai adiantada.
E a guerra começou. Nós estamos aqui e a cidade lá ao longe, no seu manto feito de mil cores. Que
pensa disto, Montag?
— Penso que era um cego em querer agir à minha maneira, esconder livros nas casas dos
bombeiros e, em seguida, denunciá-los.
— Fez o que devia. A escala nacional, a operação teria podido dar resultados inesperados. Mas
o nosso método é mais simples e, segundo me parece, mais eficaz. Apenas temos um fim, preservar os
conhecimentos que nos serão preciosos um dia. Não queremos excitar o furor de ninguém, pelo menos
por agora. Pois, se somos eliminados, esses conhecimentos desaparecerão connosco e talvez por muito
tempo. Somos cidadãos modelos, à nossa maneira. Seguimos as vias férreas abandonadas, passamos a
noite nas colinas e os das cidades deixam-nos em paz. Prendem—nos e revistam-nos de vez em quando,
mas nunca encontram em nós o menor vestígio acusador. A nossa organização é muito discreta e
fragmentada. Alguns de nós mudaram o rosto e as impressões digitais por meio de cirurgia estética. Por
agora, a nossa tarefa é terrível; esperamos o princípio e, o mais depressa possível, o fim da guerra.
Quando a guerra acabar, talvez possamos ser de alguma utilidade para o mundo.
— Julga verdadeiramente que, então, eles nos escutarão?
— No caso contrário, nada mais nos restará do que esperar. Transmitiremos oralmente o
conteúdo dos livros aos nossos filhos e os nossos filhos, por sua vez, levarão o ensino aos outros.
Muitos se perderão, é inevitável. Mas não se pode forçar as pessoas a ouvir. É necessário que elas
venham ter connosco, cada uma por sua vez, perguntando o que se passou e porque explodiu o mundo
sob os seus pés.
— Ao todo, quantos são vocês?
— Milhares, pelas estradas, pelos caminhos de ferro esquecidos, vagabundos por fora,
bibliotecas vivas por dentro. Ao princípio, nada foi premeditado. Cada um tinha um livro de que se
queria lembrar, e conseguiu-o. Depois, num período de vinte anos, encontrámo-nos durante as
nossas viagens, tecemos as malhas da rede e elaborámos um plano. A noção mais importante que
metemos na cabeça é que somos personagens sem importância, apenas capas poeirentas de livros, sem
nenhuma outra significação. Alguns de nós vivem em pequenas cidades. O capítulo I do Walden, de
Thoreau, em Green River, o capítulo II em Willow Farm, no Maine. E existe uma vilória em Maryland,
uma vilória de vinte e sete habitantes que nenhuma bomba atingirá, onde estão reunidos os ensaios
completos de um tal Bertrand Russell. Quase que se pode virar as páginas dessa vila, habitante por
habitante. E quando a guerra acabar, um dia virá, próximo ou distante, em que os livros poderão ser
escritos de novo, em que nós seremos convocados, um por um, para recitar o que sabemos e
imprimiremos esses livros até à próxima Era Sombria, em que tudo terá de recomeçar de novo. É isto o
que o Homem tem de maravilhoso. Ele nunca perde a coragem, nunca se desilude ao ponto de tudo
abandonar, pois conhece muito bem a importância e a grandeza da sua tarefa.
— Que fazemos esta noite? — perguntou Montag.
— Esperamos — disse Granger — e vamos descer um pouco mais ao longo do rio, para maior
segurança.
Começou a deitar terra sobre o fogo.
Os outros imitaram-no e Montag seguiu-lhes o exemplo. E ali, na planície nocturna, todos os
homens se uniram para apagar o fogo com as próprias mãos.
Encontravam-se na margem do rio, sob a luz das estrelas.
Montag olhou o mostrador luminoso do seu relógio. Cinco horas. Cinco horas da manhã. Um
ano inteiro tinha sido triturado em uma hora, e a madrugada esperava na outra margem distante do rio.
Afastaram-se ao longo do rio, para o sul. Montag tentava distinguir os rostos dos homens, esses
rostos envelhecidos que tinha contemplado à luz do fogo, cansados, cheios de rugas. Procurava
descobrir uma expressão de segurança, de desafio, de triunfo sobre o futuro, que parecia ausente.
Talvez esperasse ver as suas feições iluminarem-se pelo conhecimento do que levavam em si, brilhar
como brilham as lanternas, iluminadas por dentro. Mas toda a luz que tinha distinguido vinha do fogo
da lenha e aqueles homens eram iguais a quaisquer outros, fatigados de muito correrem, de muito
procurarem, de muito terem visto destruir aquilo que amavam e que, agora, muito tarde, se tinham
reunido para esperarem o fim da festa e a extinção das lâmpadas. Não estavam de todo certos que a sua
sabedoria iluminasse cada uma das madrugadas do futuro com um brilho puro; não estavam certos de
nada, a não ser do facto que os seus livros repousavam classificados nas suas cabeças, que os seus livros
esperavam, com as páginas por abrir, os compradores que poderiam aparecer anos mais tarde, uns com
as mãos limpas, outros com elas sujas. Enquanto caminhavam, Montag olhava cada um por sua vez.
— Não julgue um livro pela capa — disse um deles.
E começaram todos a rir tranqüilamente, enquanto seguiam a margem do rio.
Um uivo agudo elevou-se. Os aviões de jacto da cidade Unham já desaparecido antes que os
homens tivessem tido tempo de erguer a cabeça. Montag olhou para trás, para a grande cidade muito
distante, ao longo do rio; apenas um vago halo luminoso revelava agora a sua presença.
— A minha mulher está lá — disse.
— Tenho pena — disse Granger. — As cidades vão passar um mau bocado nos próximos dias.
— É curioso. Ela não me faz falta. Não me sinto nada incomodado — afirmou Montag. —
Mesmo que morra, creio que não sentirei a mínima tristeza. É injusto. Deve haver em mim qualquer
coisa que não está certa.
— Oiça — disse Granger tomando-lhe o braço e afastando com a mão livre os arbustos que se
atravessavam no caminho. — O meu avô morreu quando eu era pequeno. Era escultor. Era um
homem bom, cheio de ternura pelo mundo inteiro. Fez muito para acabar com os bairros miseráveis da
nossa cidade. E fabricava-nos brinquedos. Durante toda a sua vida fez milhões de coisas. As suas mãos
estavam sempre ocupadas. E, quando morreu, notei subitamente que não chorava por causa dele, mas
por causa de tudo o que ele fazia. Chorei porque ele nunca mais as tornaria a fazer; nunca mais
esculpiria um pedaço de madeira, nunca mais nos ensinaria a criar pombos, no jardim, ou tocaria
violino, ou nos contaria histórias. Fazia parte de nós e, quando morreu, todas essas coisas morreram
com ele e não havia ninguém para o substituir. Era uma pessoa notável, um homem de valor. Nunca
pude esquecer a sua morte. Freqüentemente penso em todas as maravilhosas esculturas que não
chegaram a existir porque ele também já não existia. Quantas belas palavras não foram ditas, quantos
pombos as suas mãos não tocaram? Ele modelava o mundo. Ele mudava o mundo. O dia em que
morreu foi o fim de milhares de acções generosas. Montag caminhava em silêncio.
— Millie, Millie — murmurou.—Millie...
— O quê?
— A minha mulher, a minha mulher. Pobre Millie, pobre, pobre Millie. Não consigo lembrarme
de nada. Penso nas suas mãos, mas não posso vê-las a fazer fosse o que fosse. Elas pendem-lhe aos
lados, inertes, ou estão cruzadas nos joelhos, ou seguram um cigarro. É tudo.
Montag virou-se e olhou para trás.
"Que deste tu à cidade, Montag?
"Cinzas.
"E todos os outros, que deram entre si?
"Coisa nenhuma." Granger tinha parado junto de Montag.
— Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um
filho, um livro, um quadro, urna casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado
de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. E quando as
pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos, nós estamos lá, sob os seus olhos. Pouco
importa o que se faça, dizia ele, desde que, ao tocar essa coisa, ela se transforme, do que era, à nossa
semelhança. A diferença entre o homem que apara a relva e o verdadeiro jardineiro reside na maneira
de tocar nas coisas, dizia ele. O homem que corta a relva, desaparece; o jardineiro ficará presente toda a
sua vida. Compreende? — Granger voltou-se para Montag. — O meu avô morreu há já muito tempo,
mas, se erguer a minha calote craniana, verá a marca profunda dos seus polegares. Tocou-me para
sempre. Como lhe disse, ele era escultor. "Odeio o statu quo romano!", dizia-me. "Conserva sempre o
espanto nos olhos. Vive como se fosses morrer dentro de dez segundos. Olha o mundo. Ele é mil
vezes mais extraordinário que todos os sonhos que se podem fabricar em série nas fábricas. Nem
propaganda, nem garantias, nem segurança, nunca um animal com esse nome existiu. E, se tivesse
existido, seria parente desse preguiçoso que fica pendurado de um ramo todo o dia, de cabeça para
baixo, e consagra toda a sua vida a dormir. Ao diabo, sacode-me essa árvore e faz com que esse
preguiçoso bata com o rabo no chão!" — Olhem! —gritou Montag.
E a guerra começou e acabou no mesmo instante. Mais tarde, os homens reunidos em volta de
Montag foram incapazes de dizer se tinham de facto visto alguma coisa. Talvez um rasto luminoso
apenas perceptível, no céu. Talvez as bombas estivessem lá em cima, e os aviões de jacto a vinte mil,
dez mil, dois mil metros, durante um segundo, como um punhado de grãos lançados do céu por mão
invisível, e as bombas picando na madrugada com uma velocidade aterradora e, ao mesmo tempo, uma
lentidão súbita, sobre a cidade que tinham deixado atrás deles.
O bombardeamento estava de facto terminado, uma vez o objectivo atingido pelos reactores,
voando a sete mil quilômetros por hora; tão rapidamente como o silvo da foice, a guerra tinha acabado.
Uma vez a bomba largada, tudo tinha terminado. Agora, nos três segundos em que a história se ia
inscrever, antes que as bombas tivessem atingido o alvo, os aparelhos inimigos tinham desaparecido
para além do horizonte, como essas balas em que um primitivo não acredita, porque são invisíveis; e,
no entanto, o coração explode, o corpo tomba e o sangue espanta-se de correr ao ar livre; o cérebro
sente perderem-se as raras recordações preciosas guardadas pela memória e, sem compreender, morre.
Era impossível de acreditar. Um simples gesto. Nada mais. Montag tinha visto abater-se um
gigantesco punho de metal sobre a cidade distante, sabia que o uivo dos reactores, um instante depois,
cumprida a sua tarefa, dizia: — "Desintegrai-vos. Que não fique pedra sobre pedra.
Perecei." Pelo espaço de um instante, Montag reteve as bombas no céu, o espírito, as mãos inutilmente
estendidas para às deter.
— Fuja! — gritou ele a Faber. A Clarisse: — Fuja! — A Mildred: — Vai-te, vai-te embora daí!
Mas Clarisse, lembrou-se, estava morta. E Faber tinha partido; em qualquer sítio, ao longo de
um vale profundo, o autocarro das cinco horas da manhã corria de um lugar desolado para outro.
No entanto, a ruína não estava ainda consumada; planava ainda no ar, fatal.
Antes que o autocarro tivesse transposto mais cinqüenta metros de auto-estrada, o seu destino
deixaria de ter sentido e o seu ponto de partida, de uma metrópole, trans formar-se-ia num vazadouro
público.
E Mildred?
— Foge, depressa!
Via-a num quarto de qualquer hotel, com a fracção de segundo que lhe restava e as bombas a
um metro, cinqüenta centímetros, cinco centímetros do edifício. Via-a inclinando-se para as grandes
paredes animadas, cintilantes de cores onde a "família" falava, falava, se dirigia a ela, onde a "família"
pairava, tagarelava, pronunciando o seu nome, sorrindo-lhe, não dizendo uma palavra da bomba que se
encontrava a três centímetros, meio centímetro do telhado do hotel. Mildred, inclinada para a parede
como se a sua fome devoradora de imagens lhe permitisse descobrir o segredo da sua insónia e do seu
mal-estar. Mildred, curvada para a frente, ansiosa, nervosa, prestes a mergulhar, a lançar-se nessa vaga
imensa de cores, para se afogar no meio das suas delícias cantantes.
A primeira bomba explodiu.
— Mldred!
Montag, atirando-se ao chão, viu ou sentiu ou imaginou que via ou sentia as paredes apagaremse
em frente de Millie, ouviu-a gritar porque, no milionésimo de segundo que lhe restava, ela tinha visto
o reflexo do rosto num espelho e não num écran de cristal e esse rosto era tão atrozmente vazio, tão
solitário, não exprimindo nada, morrendo de fome e devorando-se a si mesmo, que, enfim, ela o
reconheceu como seu e ergueu os olhos para o tecto no instante em que, com toda a massa do hotel,
ele se abateu sobre ela, engolindo-a sob milhares de toneladas de tijolos, de metal, de gesso, de madeira,
levando-a com todos os outros ocupantes das células da enorme colmeia, até aos alicerces onde a
explosão os pulverizaria todos, na sua tempestade de loucura.
"Lembro-me agora." Montag aferrava-se ao chão. "Lembro-me agora. Chicago. Chicago, há
muito tempo. Millie e eu. Foi lá que nos encontrámos. Sim, lembro-me agora. Chicago. Há tanto
tempo!" A explosão fez tremer o ar ao longo do rio, atirou os homens ao chão como dominós, encheu
a superfície da água com remoinhos espumantes, ergueu uma imensa nuvem de poeira e fez estalar por
cima das árvores, dobradas pelo trágico sopro, uma violenta borrasca que se afastou para o sul.
E, em pleno céu, no lugar das bombas, numa permuta efêmera, Montag distinguiu toda a
cidade. Durante um instante fabuloso, a cidade ficou suspensa, maior do que nunca esperara ser, maior
do que tinha sido concebida pela mão dos homens, edifício feito de fragmentos de cimento, pedaços de
metal, flutuando como uma avalancha invertida, um milhão de cores, um milhão de formas inesperadas,
as portas transformadas em janelas, os telhados em alicerces, as paredes em terraços; depois, a cidade
vacilou e abateu-se, fulminada.
Só então lhes chegou o som da sua agonia.
Montag estendido, os olhos cobertos de poeira, um sabor de cimento húmido na boca,
sufocado e chorando, recomeçou a pensar. "Lembro-me, lembro-me, lembro-me de outra coisa. Mas
de quê? Sim, sim, é isso, uma parte do Edesiastes. Uma parte do Edesiastes e do Apocalipse. Uma parte
desse livro, alguns pedaços, depressa agora, depressa, antes que tudo me escape, que o choque os
disperse, antes que o furacão amaine. O livro do Edesiastes. Sim." Recitou as palavras em silêncio,
deitado contra a terra tremente, repetiu-as várias vezes. Elas surgiam sem esforço na sua memória e
nenhum Dentífrico Denham se vinha intercalar; era o próprio profeta que falava, presente no seu
espírito, os olhos fixos nele.
— E pronto! — disse uma voz.
Os homens jaziam no chão, de boca aberta, como peixes tirados da água. Estavam agarrados ao
solo como crianças às coisas familiares; as suas unhas estavam enterradas na terra e todos gritavam para
impedir que os tímpanos rebentassem, que a razão explodisse, e Montag, de boca aberta, gritava com
eles, lutando contra o vento que lhes fustigava o rosto, lhes rasgava os lábios, lhes fazia correr o sangue
das narinas.
Montag olhou a imensa nuvem de poeira, que tombava, e o silêncio eterno estender-se de novo
sobre o seu universo.
• E olhou o rio. "Subiremos o rio." Olhou a velha via férrea. "Ou seguiremos os carris, ou as autoestradas
agora, e teremos todo o tempo para acumular conhecimentos. E um dia, quando eles estiverem
decantados em nós, exprimir-se-ão pelas nossas mãos e pelas nossas bocas. E um bom número deles
serão falsos, mas alguns outros serão justos. Vamos começar a andar hoje mesmo, veremos o mundo,
como ele é e como ele fala, e com que se parece ele verdadeiramente. A partir de hoje, quero ver tudo.
É necessário que observe o que me rodeia, que conserve constantemente os olhos bem abertos ao
mundo; a verdadeira maneira de o tocar autenticamente é integrá-lo em mim mesmo, no meu sangue,
nas minhas veias que o agitarão mil, dez mil vezes por dia. Depois guardá-lo-ei em mim, para sempre.
Agarrarei o mundo para nunca mais o largar. E já o toquei com um dedo, para começar." O vento
amainou.
Montag sentou-se.
Mas não fez nenhum movimento para se afastar. Os outros imitaram-no. O Sol iluminava o
horizonte negro com uma faixa vermelha. Fazia frio e no ar pairava o cheiro da chuva próxima.
Em silêncio, Granger ergueu-se, apalpou os braços e as pernas, praguejando em voz baixa,
praguejando furiosamente. Desceu pesadamente até à margem e olhou para montante do rio.
— Arrasada — disse, após um longo momento. — A cidade parece um monte de sucata. Não
resta nada. — E, após um outro silêncio prolongado: — Pergunto a mim mesmo quantos de entre eles
esperavam isto? E quantos foram apanhados de surpresa?
"E em toda a Terra, quantas cidades foram destruídas?", pensou Montag. "E aqui, no nosso
país, quantas? Cem? Mil?" Um deles acendeu um pequeno fogo, que foi aumentando lentamente, na
madrugada; o Sol ergueu-se e os homens cessaram de olhar o horizonte e aproximaram-se do fogo,
pouco à vontade, sem saber o que dizer, enquanto o sol dourava as suas nucas inclinadas para o fogo.
Granger desenrolou um saco de lona, que continha presunto.
— Vamos comer qualquer coisa. Em seguida faremos meia volta e subiremos o rio. Vão
precisar de nós, ali.
Um deles puxou por uma pequena frigideira e colocou-a no fogo, com o presunto. Ao fim de
um momento, o presunto começou a frigir e a ondular na frigideira e o seu perfume espalhou-se no ar
matinal. Os homens observavam em silêncio o desenrolar desse rito.
Granger olhou fixamente as chamas.
— A Fénix — disse.
— O quê?
— Era um pássaro estúpido, muito anterior a Cristo; todos os cem anos fazia uma fogueira e
carbonizava-se. Devia ser um dos próximos parentes do Homem. Mas, cada vez que se consumia,
ressurgia das chamas e de novo nascia. Tenho a impressão de que fazemos o mesmo, mas com uma
vantagem sobre a Fénix: sabemos perfeitamente o que fazemos. Sabemos perfeitamente o que fizemos
durante séculos e, se não o esquecemos, se guardamos consciência disso, temos uma oportunidade de
renunciar um dia a construir essas fogueiras para nos lançarmos nelas. A cada geração, reunimos novos
homens que se recordam.
Tirou a frigideira do fogo e deixou o presunto arrefecer. Depois, começaram a comer,
lentamente, pensativãmente.
— Agora, partamos — disse Granger. — E não se esqueçam disto: somos homens sem
importância, somos insignificantes. Talvez que, um dia, o fardo que transportamos possa ser útil a
alguém. Nas semanas, nos meses, nos anos que virão, iremos encontrar muita gente abandonada, soli
tária. E, se nos perguntarem o que fazemos, podemos responder: "Nós lembramo-nos." É assim que,
lentamente, acabaremos por ganhar a partida. E, um dia, lembrar-nos—emos tão bem que
construiremos a maior pá mecânica da História, cavaremos o maior túmulo de todos os tempos e
enterraremos a guerra. Vamos, agora a caminho; e, para começar, vamos construir uma fábrica de
espelhos e não pôr em circulação senão espelhos, durante um ano, e observarmo-nos longamente neles.
Acabaram o repasto e apagaram o fogo. O dia erguia-se à sua volta como um candeeiro rosado
a que alguém tivesse aumentado a torcida. Nas árvores, os pássaros, que tinham fugido, voltavam a
pousar.
Montag começou a andar e, ao fim de um momento, notou que os outros o seguiam em fila, em
direcção ao norte. Surpreendido, afastou-se para deixar Granger passar-lhe à frente, mas Granger
olhou-o e fez-lhe sinal para continuar. Montag retomou a cabeça do grupo. Olhava o rio e o céu, os
carris enferrujados que se estendiam até ao horizonte onde se erguiam as quintas, as granjas cheias de
feno. Mais tarde, dentro de um ou seis meses, menos de um ano certamente, partiria de novo ao longo
do mesmo caminho, só, e continuaria a andar até encontrar outros homens. Mas, naquele momento,
uma longa manhã de marcha os esperava, até ao meio-dia, e se os homens se conservavam silenciosos é
porque tinham muito que reflectir, muito de que se lembrar.
Talvez mais tarde, durante a manhã, quando o Sol já alto os tivesse aquecido, começassem a
falar, a repetir aquilo de que se lembravam, para estarem certos de nada esquecer, para se assegurarem
da fidelidade da sua memória.
Montag sentia em si o lento remoinho das palavras, as suas lentas vibrações. E, quando a sua
vez chegasse, que poderia dizer, que poderia oferecer, num dia como aquele, para aliviar a fadiga da
viagem? Para tudo o que existe há uma época. Sim. Era isso. Um tempo para guardar silêncio e um
tempo para elevar a voz. Sim, mas que mais, que mais? Alguma coisa, alguma coisa...
E nas duas margens do rio nascia uma árvore da vida, dando dozçe vezes frutos e um cada mês; e as folhas dessa
"Sim", pensou Montag, "eis o que vou reter para o meio-dia. Para o meio-dia...
"Quando chegarmos à cidade."

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