terça-feira, 29 de março de 2011

Terra das Sombras - Capítulo 19

Capítulo 19


Pouco depois o telefone tocou. Dunga gritou lá de cima que era para mim. Ao atender, ouvi a Cee Cee berrando do outro lado da linha:
Sra. vice-presidente - dizia ela -, sra. vice-presidente, alguma coisa a declarar?
Não - respondi -, e que história é essa de vice-presi­denta?
Você ganhou a eleição.
Por trás da voz dela eu ouvia o Adam dizendo "Parabéns!".
Que eleição? - perguntei, desconcertada.
Para vice-presidente! - Cee Cee parecia chateada. - Eehhh...
E como é que eu posso ter ganho se nem estava lá?
Não tem importância. Você recebeu dois terços dos votos dos segundanistas.
Dois terços? - Tenho de reconhecer que fiquei choca­da. - Mas Cee Cee, por que é que essa gente toda votou em mim? Eles nem me conhecem. Eu sou a novata do colégio.
Que que eu posso fazer? - perguntou Cee Cee. - Você parece uma líder nata.
Mas...
E provavelmente o fato de ser de Nova York não atra­palhou nem um pouquinho, pois aqui todo mundo é fasci­nado com qualquer coisa que seja de Nova York.
Mas...
E além do mais você fala tão depressa...
Falo?
Claro que fala, o que faz você ficar parecendo tão inteligente... Quer dizer, eu realmente acho que você é inteligente, mas você também fica parecendo por falar tão rápido. E você usa tanta roupa preta... E como sabe, preto é superchique.
Mas...   
E ainda por cima o fato de você ter salvo o Bryce daque­la tora de madeira... As pessoas acham o máximo esse tipo de coisa.
Eu fiquei pensando que provavelmente dois terços dos segundanistas do Colégio da Missão votariam no coelhinho da páscoa se alguém tivesse tido a idéia de inscrevê-lo como candidato. Mas não cheguei a dizer. Em vez disso, disse:
Bem. Legal, acho eu.
Legal? - fez a Cee Cee, parecendo surpresa. - Legal? É só o que você tem a dizer? Você já parou para pensar como vamos nos divertir com todo esse dinheiro? As coisas legais que vamos poder fazer?
Acho mesmo... genial - respondi.
Genial? Suze, é simplesmente sensacional! Vamos ter um semestre simplesmente sen-sa-cio-nal! Estou tão orgu­lhosa de você!
Desliguei o telefone me sentindo meio zonza. Não é todo dia que alguém é eleito vice-presidente de uma turma que está freqüentando há menos de uma semana.
Mal tinha acabado de pôr o telefone no gancho quan­do ele voltou a tocar. Dessa vez era uma voz de garota que eu não reconheci, pedindo para falar com a Suze Simon.
Falando - respondi, e a Kelly berrou no meu ouvido.
Minha nossa! - gritou ela. - Você ficou sabendo? Não está elétrica? Vamos ter um ano do barulho!
Do barulho. Certo. Calmamente, eu respondi:
Estou louca para trabalhar com você.
 Olha só - disse a Kelly, de repente falando sério. - Temos de nos encontrar logo para escolher a música.
Que música?
Para a festa, ué. - Dava para ouvir que ela estava folheando um fichário. - Eu até já sei de um DJ. Ele me en­viou uma lista de músicas, e nós só precisamos escolher. Que tal amanhã de noite? Que está acontecendo com você? Você nem foi à aula hoje. Está pensando que tem alguma doença contagiosa?
Eu respondi:
- Hmm, não... Olha, Kelly, sobre essa festa, não sei não... Estava pensando que talvez fosse melhor gastar o dinheiro... bem, quem sabe um piquenique na praia...
Ela repetiu, num tom de voz completamente morno:
Um piquenique na praia.
Claro. Com vôlei, fogueira para churrasco e tudo mais. - Eu comecei a enrolar o fio do telefone no dedo. - Depois que conseguirmos a cerimônia de homenagem à Heather, naturalmente.
Cerimônia?
A cerimônia fúnebre. Veja bem: aposto que você já re­servou o salão do Carmel Inn para a festa, confere? Só que em vez de dar uma festa, eu acho que devíamos organizar uma cerimônia de homenagem à Heather. Eu realmente acho que ela gostaria que fosse assim.
Kelly continuava com aquela voz de pasmaceira:
Mas você nem chegou a conhecer a Heather.
Bem, tem razão - respondi. - Mas tenho a sensação de que sei muito bem que tipo de garota ela era. E tenho certeza de que uma cerimônia fúnebre no Carmel Inn é exatamente o que ela gostaria.
Kelly ficou um minuto sem dizer nada. Já tinha me ocor­rido que ela podia não gostar das minhas sugestões, mas ela não ia poder mesmo fazer nada. Afinal, a vice-presidenta era eu. E ninguém tinha o direito de pedir o meu impeachment, a não ser que eu fosse expulsa do colégio.
Como ela não respondia, eu disse:
- Bom, por enquanto você não precisa se preocupar, Kell. Ah, sim, sobre a sua festa no sábado, eu também convidei a Cee Cee e o Adam, espero que você não se importe. É es­tranho, mas eles disseram que não foram convidados. Só que numa turma pequena como a nossa, não pega bem não convidar todo mundo, entende? Caso contrário, as pessoas que não foram convidadas vão pensar que você não gosta delas. Mas é claro que no caso da Cee Cee e do Adam você apenas esqueceu, confere?
Você ficou maluca? - fez a Kelly. Preferi ignorar:
Até amanhã, então - limitei-me a dizer.
Minutos depois, o telefone voltou a tocar. Eu mesma atendi, pois parecia que tudo estava dando certo para mim. E estava mesmo. Era o padre Dominic.
Suzannah - foi ele dizendo, naquela voz grave tão agradável. - Espero que não se importe por eu estar ligando para sua casa. Mas liguei só para cumprimentá-la por ter vencido a eleição na turma dos segundanistas...
Não precisa se preocupar, padre Dom - disse eu. - Não tem ninguém na extensão. Só eu.
Mas o que é que você tinha na cabeça? - perguntou ele, num tom de voz completamente diferente. - Você me prometeu! Você me prometeu que não ia voltar ao colégio!
Sinto muito - respondi. - Mas ela estava ameaçando machucar o David, e eu...
Não quero saber nem se ela estava ameaçando a sua mãe, mocinha. Da próxima vez terá de esperar por mim.
Está entendendo? Nunca mais vai tentar fazer uma coisa tão imprudente e arriscada como um exorcismo sem uma alma que possa ajudá-la! Eu respondi:
Está bem. Mas eu estava esperando mais ou menos que não fosse haver uma próxima vez.
Não fosse haver uma próxima vez? Você perdeu o juí­zo? Esqueceu que somos mediadores? Enquanto houver es­píritos, continuará havendo sempre uma próxima vez para nós, mocinha, e não se esqueça disso.
Como se eu pudesse. Bastava olhar ao redor da minha cama a qualquer hora do dia ou da noite para dar de cara com o lembrete, na forma de um caubói assassinado.
Mas achei que não fazia sentido contar isto ao padre Dominic. Disse então:
Lamento pela galeria, padre Dominic. Seus pobres pas­sarinhos...
Não se preocupe com os meus passarinhos. O que in­teressa é que você está bem. Quando eu sair desse hospital, vamos ter uma longa conversa, Suzannah, sobre técnicas adequadas de mediação. Nunca ouvi falar desse seu hábito de sair por aí esmurrando a cara dessas pobres almas pe­nadas.
Eu achei graça:
Tudo bem. Suas costelas devem estar doendo, não?
Estão mesmo, algumas. Mas como você sabe? - per­guntou ele, com voz macia.
Porque o senhor está sendo tão amável...
 Oh, desculpe... - fez ele, realmente parecendo sentido. - É que... minhas costas realmente estão doendo. Mas você soube da notícia?
Qual delas? Que eu fui eleita vice-presidente dos segundanistas ou que quase derrubei o colégio ontem à noite?
Nenhuma das duas. Encontraram uma vaga para o Bryce no Colégio Robert Louis Stevenson. Ele será trans­ferido assim que voltar a andar.
Mas... - Podia parecer ridículo, mas fiquei triste com aquela notícia. - Mas agora a Heather se foi. Ele não pre­cisa ser transferido.
A Heather pode ter ido embora - respondeu padre Dominic educadamente -, mas sua lembrança ainda está muito vivida para os que foram... digamos, afetados por sua morte. Você não vai querer criticar o rapaz por querer uma oportunidade de começar de novo num colégio onde as pessoas não estejam cochichando sobre ele.
Está certo - disse eu, meio de má vontade, pensando na cabeleira loura do Bryce.
Os médicos estão dizendo que eu vou poder voltar a trabalhar na segunda-feira. Gostaria que você viesse ao meu gabinete.
Está certo - repeti, com o mesmo entusiasmo de antes. Padre Dominic nem pareceu ter percebido.
Então nos vemos lá - disse ele, e acrescentou, pouco antes de eu desligar: - Enquanto isto, Suzannah, tente não destruir o que restou do colégio, está bem?
Ha, ha - fiz eu, e desliguei.
Sentada no assento da janela, encostei o queixo nos joelhos e fiquei olhando para o vale lá embaixo e a cur­va da baía. O sol começava a se pôr a oeste. Ainda não tinha encostado na água, mas não demoraria a fazê-lo. Meu quarto estava todo vermelho e dourado e, ao redor do sol, o céu parecia todo listrado. As nuvens tinham tan­tas cores - azul, roxo, vermelho, laranja - quanto as fitas que certa vez eu vira flutuando ao vento no alto de um poste numa quermesse. Como a janela estava aberta, eu também sentia o cheiro do mar. A brisa trazia até mim aquele cheiro salgado, mesmo no alto da colina onde eu me encontrava.
Fiquei me perguntando se o Jesse também costumava sentar-se naquela janela para sentir o cheiro do mar antes de morrer. Antes que o amante de Maria de Silva, Felix Diego, entrasse no quarto e o matasse, como eu estava cer­ta de que havia acontecido.
Como se estivesse ouvindo meus pensamentos, Jesse de repente materializou-se a alguns passos de mim.
- Caramba! - exclamei, apertando uma mão contra o coração, que começou a bater tão rápido que eu achei que podia explodir. - Você precisa mesmo ficar fazendo isto?
Ele estava recostado, como quem não quer nada, numa das vigas da minha cama, com os braços cruzados.
Sinto muito - disse então, sem parecer que estava sentin­do coisa nenhuma.
Olhe aqui - fui dizendo. - Se nós dois vamos continuar convivendo, por assim dizer, precisamos estabelecer certas regras. E a regra número um é que você precisa parar de fi­car me assombrando desse jeito.
 E como você sugere que eu torne minha presença conhe­cida? - perguntou Jesse, com os olhos brilhando um boca­do para um fantasma.
Não sei - respondi. - Você não pode sacudir umas correntes ou algo assim?
Ele balançou a cabeça.
Acho que não. E qual seria a regra número dois?
Regra número dois... - e a minha voz parecia não estar saindo direito enquanto eu ficava olhando para ele. Não era justo. Não era mesmo. Os mortos não deviam ter aque­la pinta toda do Jesse, recostado ali na minha cama com o sol entrando de lado e ressaltando suas feições perfeitas...
Ele levantou a sobrancelha, aquela que tinha a ferida.
- Algo errado, mi hermosa? - perguntou.
Fiquei olhando para ele. Era evidente que ele não sabia que eu sabia. Sobre as iniciais MDS. Eu queria perguntar-lhe a respeito, mas ao mesmo tempo parecia que não que­ria. Alguma coisa estava prendendo o Jesse neste mundo, alguma coisa o impedia de ir para o mundo que o espera­va e eu tinha a sensação de que tinha a ver com a maneira como ele perdeu a vida. Mas como ele não parecia fazer tanta questão de falar a respeito, fiquei achando que não tinha nada a ver com isso.
Isto era completamente inédito. Quase sempre, os fan­tasmas estavam o tempo todo em cima de mim imploran­do que eu os ajudasse. Mas não Jesse.
Pelo menos até agora.
Quero te perguntar uma coisa - disse ele, tão de repen­te que eu cheguei a pensar que ele podia ter lido os meus pensamentos.
O quê? - perguntei, deixando de lado a revista e levantando.
Ontem à noite, quando você me disse para não me aproximar do colégio porque ia fazer um exorcismo...
Eu olhei para ele:
- Sim?...
- Por que me deu este aviso? Eu ri aliviada. Era só aquilo?
Eu avisei porque se você fosse lá teria sido sugado como a Heather.
Mas não seria a melhor maneira de se livrar de mim? Você ficaria com este quarto só para você, exatamente como quer.
Fiquei olhando para ele horrorizada.
Mas isto... isto seria totalmente errado. Agora ele estava sorrindo.
Entendo. Contrário às regras?
Isso mesmo - respondi.
- Quer dizer então que você não me convocou - e ele deu um passo em minha direção - porque está começando a gostar de mim ou algo assim?
Para cúmulo do desânimo, senti que meu rosto começa­va a se esbrasear.
- Não - respondi, teimosa. - Nada disso. Só estou tentan­do respeitar as regras. Que, por sinal, você violou ao acor­dar o David.
Jesse deu mais um passo na minha direção.
- Eu não podia deixar de acordá-lo. Você tinha dito para eu não ir até o colégio. Eu não tinha outra escolha. Se não tivesse mandado o seu irmão para ajudá-la, você agora estaria mortinha.
Infelizmente sabia que ele estava certo. Mas é claro que eu não ia reconhecer.
Absolutamente - fui dizendo. - Eu estava com tudo perfeitamente sob controle. Eu...
Você não estava controlando nada - riu-se o Jesse. - Você foi até lá empurrando com a barriga, sem ter planejado nada, sem...
Eu tinha um plano - respondi, furiosa, dando um pas­so em direção a ele, o que nos deixou de repente quase en­costando no nariz um do outro. - Quem você pensa que é, para estar aí dizendo que eu não tinha nenhum plano? Estou acostumada a fazer isto há anos, sabia? Anos! E nun­ca precisei da ajuda de ninguém. E muito menos de alguém como você.
De repente ele parou de rir. Agora parecia zangado.
Alguém como eu? Como assim? Do que foi mesmo que você me chamou? De caubói?
Não - disse eu. - Estou querendo dizer de alguém morto.
Jesse vacilou, como se eu lhe tivesse dado um murro.
A partir de agora vamos combinar assim - fui dizen­do. - A regra número dois fica sendo que você não se mete no que é meu e eu não me meto no que é seu.
Boa - respondeu ele, curto e grosso.
Boa - fiz eu. - E muito obrigada.
Ele ainda estava zangado. E perguntou, de má vontade:
Por quê?
Por ter salvado a minha vida.
De repente, ele já não parecia zangado. Suas sobrance­lhas, que estavam completamente franzidas, relaxaram.
Quando eu vi, ele tinha esticado os braços e pôs as mãos nos meus ombros.
Aposto que eu não teria sido apanhada de surpresa daque­le jeito se ele tivesse enfiado um garfo em mim. O fato é que estou acostumada a esmurrar fantasmas, mas não estou acos­tumada a vê-los olharem para mim como se... como se...
Bem, como se fossem me beijar.
Mas antes que eu tivesse tempo de pensar no que ia fa­zer - fechar os olhos e deixar que ele fosse em frente ou aplicar a regra número três: proibido qualquer contato físi­co - a voz da minha mãe veio lá de baixo.
- Suzannah! - chamou ela. - Suzinha, sou eu, estou em casa!
Eu olhei para o Jesse. Ele imediatamente tirou as mãos de mim. Um segundo depois, minha mãe abriu a porta do quarto e o Jesse desapareceu.
- Suzinha - foi dizendo ela, aproximando-se e me abraçando. - Como estão as coisas? Espero que não tenha ficado aborrecida porque deixamos você dormir. Você parecia tão cansada...
Não - respondi, ainda meio tonta pelo que tinha acon­tecido com o Jesse. - Não faz mal.
Parece que você acabou não agüentando. Era mesmo de se esperar. Correu tudo bem aqui com o Andy? Ele disse que preparou almoço para você.
Ele preparou um excelente almoço - respondi feito um robô.
E o David trouxe o seu dever de casa, pelo que fiquei sabendo - prosseguiu ela, afastando-se de mim e caminhando em direção ao assento da janela. - Estávamos pensando em preparar um espaguete para o jantar. Que acha?
Parece ótimo - disse eu, voltando a mim e vendo que ela estava olhando para fora da janela. Logo em seguida dei-me conta de que não lembrava jamais tê-la visto tão... tão serena.
Talvez fosse porque ela tinha parado de tomar café quan­do nos mudamos para a Califórnia.
Mas era mais provável mesmo que fosse amor.
O que está olhando, mãe? - perguntei.
Nada, meu amor - respondeu ela com um sorrisinho. - É só o pôr-do-sol. É tão lindo! - Ela virou-se para passar o braço em volta do meu ombro, e lá ficamos as duas ob­servando enquanto o sol mergulhava no Pacífico em meio àquele violento festival de vermelhos, roxos e dourados. - Quem disse que a gente poderia ver um pôr-do-sol assim lá em Nova York? Não é mesmo?
 Tem razão - respondi.
Então - disse ela, dando-me um apertão. - O que acha? Acha então que podemos ficar por aqui um tempo?
Claro que ela estava brincando. Mas de certa maneira não estava.
- Claro - respondi. - Vamos ficar aqui.
Ela sorriu para mim e voltou a olhar para o pôr-do-sol. O último pedacinho da enorme rodela de fogo estava desa­parecendo no horizonte.
- Lá vai o sol - disse ela.
- Eu já sei, tá legal - completei.

Terra das Sombras - Capítulo 18

Capítulo 18


Não tenho a menor idéia de quanto tempo eu fiquei lá deitada debaixo das pranchas de madeira e das telhas quebradas do desmoronamento. Pensando bem, devo ter perdido a consciência, ainda que por alguns minutos apenas.
Só lembro de uma coisa dura batendo na minha cabeça, e quando vi estava tudo completamente escuro ao meu re­dor e parecia que eu ia sufocar.
Um dos truques favoritos de certos fantasmas é sentar-se no peito da vítima quando ela está despertando, para que a pobre coitada pense que está sendo sufocada sem saber por quê. Eu não estava entendendo direito o que es­tava acontecendo, e por alguns instantes cheguei a pensar que tinha fracassado e que a Heather ainda estava neste mundo, sentada no meu peito, torturando-me e se vingan­do do que eu tentara fazer.
Mas aí eu pensei que talvez estivesse morta.
Não sei por quê. Mas me ocorreu. Talvez fosse daquele jeito, estar morto. Pelo menos inicialmente. Era assim que a Heather devia ter-se sentido quando acordou no seu caixão. Devia ter-se sentido do mesmo jeito que eu naquela hora: presa, sufocada, paralisada pelo medo. Minha nossa, não é de estranhar que ela estivesse sempre tão mal-humorada. Ela só podia mesmo estar querendo voltar desesperada­mente para o mundo que conhecera antes de morrer. Aquilo era horrível. Era pior do que horrível. Era o inferno.
Mas aí eu mexi uma das mãos, a única parte do corpo que ainda conseguia mexer, e senti uma coisa áspera e fria sobre mim. Foi então que entendi o que havia acontecido. A galeria tinha desmoronado. A Heather tinha usado seu último restinho de poder de movimentar as coisas para me atingir. E tinha feito um belo trabalho, pois eu não conse­guia me mexer, presa debaixo de sabe-se lá quantos quilos de madeira e telhas espanholas.
Legal, Heather. Obrigada mesmo,
Eu devia estar com medo, pois estava completamente pa­ralisada, incapaz de me mexer, na mais total escuridão. Mas antes mesmo que pudesse entrar em pânico, ouvi alguém me chamando pelo nome. No início achei que podia estar ficando louca. Afinal, ninguém sabia que eu tinha ido ao colégio, exceto o Jesse, claro, e eu deixara bem claro para ele o que lhe aconteceria se aparecesse por lá. Ele não era burro. Sabia perfeitamente que eu ia fazer um exorcismo. Será que tinha decidido aparecer assim mesmo? Será que tudo já tinha se acalmado? Eu não sabia. E se ele entrasse no círculo de velas e sangue de galinha, será que seria sugado para o mesmo mundo de sombras que havia levado a Heather? Agora eu estava começando a entrar em pânico.
- Jesse! - berrei, esmurrando o pedaço de madeira que estava bem em cima de mim e recebendo no rosto uma pe­quena chuva de lascas de madeira e poeira. - Sai daí! - gritei. Aquela poeira toda estava me asfixiando, mas eu não me importava. - Vai embora! É perigoso!
De repente, um enorme peso foi retirado do meu peito e eu voltei a ver. Acima de mim estava o céu de um azul de veludo, salpicado de uma poeira de estrelas. E naquela mol­dura de estrelas um rosto se debruçava sobre mim com expressão preocupada.
- Ela está aqui! - gritou o Mestre, com a voz quase irreco­nhecível. - Jake, eu a encontrei!
Um outro rosto veio juntar-se ao primeiro, envolto numa moldura de longos cabelos loiros.
- Jesus Cristo - disse Soneca ao me ver, com a voz arras­tada. - Você está bem, Suze?
Eu fiz que sim com a cabeça, atordoada.
- Me ajudem a sair daqui - disse então.
Os dois conseguiram tirar de cima de mim os pedaços maiores de madeira. Depois o Soneca mandou que eu pas­sasse meus braços ao redor do seu pescoço, o que eu fiz, en­quanto o David me segurava pela cintura. Com os dois me puxando e eu empurrando com os pés, finalmente consegui me livrar dos escombros.
Ficamos um minuto sentados na escuridão do pátio, recostados no pedestal da estátua decapitada de Junipero Serra. Simplesmente ficamos ali, ofegando e olhando as ruí­nas do colégio. Bom, acho que estou exagerando um pouco. A maior parte do colégio ainda estava de pé. E por sinal o mesmo também acontecia com a maior parte da galeria. Só havia desabado a parte que ficava em frente ao armário da Heather e à sala de aula do professor Walden. Aquele monte de madeira retorcida convenientemente ocultava qualquer resquício de minhas atividades noturnas, inclusive as velas, que naturalmente haviam desaparecido. Não havia qualquer sinal da Heather. A noite parecia perfeitamente tranqüila, só ouvíamos nossa própria respiração. E os grilos.
Foi assim que eu fiquei sabendo que a Heather realmente tinha ido embora. Os grilos haviam voltado a cantar.
- Minha nossa! - voltou a dizer o Soneca, ainda ofegante. - Tem certeza de que está bem, Suze?
Voltei-me para ele. Ele estava usando apenas um par de jeans e uma jaqueta do exército, que tinha enfiado sem nem ter tempo para vestir antes uma camisa. Pude ver então que o Soneca tinha a mesma barriga de tanque que o Jesse.
Como é que eu podia quase ter morrido sufocada e ain­da estar ali minutos depois observando coisas como os mús­culos abdominais do meu meio-irmão?
- Claro - respondi, afastando uma mecha de cabelo dos olhos. - Eu estou bem. Talvez um pouco zonza, mas nada quebrado.
Talvez seja melhor levá-la para o hospital para um check-up - disse David com a voz ainda bem alterada. - Você não acha que é melhor levá-la para o hospital para um check-up, Jake?
Não - disse eu. - Nada de hospital.
Você pode ter tido uma concussão - insistiu David. - Ou uma fratura do crânio. Você pode até entrar em coma durante o sono e nunca mais voltar. Precisa pelo menos tirar uma radiografia. Talvez até seja bom uma tomografia...
Não - cortei, sacudindo a poeira do meu colante com as mãos e levantando-me. Meu corpo estava bem mal­tratado, mas inteiro. - Vamos. Vamos embora daqui antes que chegue alguém. Eles não podem deixar de ter ouvido tudo isto - prossegui, apontando com o queixo para a parte do complexo onde viviam os padres e as freiras. Em algu­mas janelas já se viam as luzes acesas. - Não quero que vocês tenham problemas.
Isso aí - concordou Soneca, levantando-se. - Mas você bem que podia ter pensado nisso antes...
Saímos do mesmo jeito que havíamos entrado. Como eu, David também passara por baixo do portão principal, destrancando-o por dentro para deixar o Soneca entrar. Saímos o mais discretamente possível e corremos para o Rambler, que o Soneca havia estacionado num lugar mais escuro, fora do raio de visão do carro da polícia. Este ain­da estava no mesmo lugar e seu ocupante não tinha sequer tomado conhecimento do que havia acontecido a algumas dezenas de metros de distância. Ainda assim, eu não queria correr nenhum risco, tentando passar despercebida por ele para pegar a bicicleta. Deixamos que ela ficasse lá, na esperança de que ninguém a encontraria.
No caminho para casa, meu novo irmãozão Jake ficou o tempo todo me passando sermão. Provavelmente ele esta­va pensando que eu estava no colégio no meio da noite participando de alguma cerimônia de gangue. Não estou brincando. Ele estava realmente furioso com a coisa. Queria saber se eu estava consciente do tipo de amigos que vinha freqüentando, gente disposta a me deixar morrer debaixo de um monte de telhas. Disse que se eu estivesse entedia­da ou em busca de emoções fortes o melhor que tinha a fazer era pegar uma prancha de surf e ir para a praia:
- Se é para rachar a cabeça ao meio, pelo menos que seja pegando uma onda, garota.
Agüentei aquele sermão com a maior elegância possí­vel. Afinal, eu não podia exatamente dizer a ele o real mo­tivo para estar no colégio àquela hora. Só interrompi o Jake uma vez durante seu discurso contra as gangues, para perguntar como ele e David tinham tido a idéia de ir me buscar.
- Não sei - respondeu Jake enquanto subíamos a rua. - Só sei que eu estava pegando pesado no sono quando de repente o Dave estava me sacudindo, dizendo que tínhamos de ir ao colégio para te encontrar. E como é que você sabia que ela estava lá, Dave?
O rosto do David estava excepcionalmente branco, mes­mo levando-se em conta a luz do luar.
- Não sei - respondeu ele tranqüilamente. - Acho que foi só uma intuição.
Voltei-me para ele, mas ele desviou o olhar.
E eu fiquei pensando: esse garoto está sabendo.
Mas eu estava cansada demais para falar a respeito naque­la hora. Entramos em casa, aliviados porque o único mora­dor que acordou com nossa chegada foi o Max, que ficou sacudindo o rabo e tentando nos lamber enquanto nos en­caminhávamos para nossos quartos. Antes de entrar no meu quarto, olhei para o David só uma vez, para ver se queria ou precisava dizer-me alguma coisa. Mas não. Ele simples­mente foi entrando no seu quarto e fechando a porta, como um menininho assustado. Meu coração se encheu de orgu­lho por ele.
Mas só durou um segundo. Eu estava cansada demais para pensar em alguma outra coisa que não fosse a cama - nem mesmo no Jesse. Amanhã de manhã, pensei, enquanto tirava minhas roupas cheias de poeira. Amanhã de manhã eu falo com ele.
Mas não falei. Quando acordei, a luz do lado de fora da minha janela estava estranha. Quando levantei a cabeça e vi o relógio, entendi por quê. Eram duas horas da tarde. Toda aquela bruma da manhã já se tinha dissipado e o sol castigava como se estivéssemos em pleno verão e não no mês de janeiro.
- Muito bem, hein, dorminhoca.
Olhei na direção da porta do quarto e lá estava o Andy, recostado no portal com os braços cruzados. Ele estava sorrindo, o que provavelmente queria dizer que estava tudo bem. Mas então o que eu estava fazendo na cama às duas horas da tarde de um dia de aula?
- Está se sentindo melhor? - quis saber o Andy.
Eu empurrei um pouco as cobertas. E se eu estivesse doente? Não seria nada difícil fingir. Eu estava mesmo me sentindo como se tivessem jogado uma tonelada de tijolos na minha cabeça.
O que, de certa forma, não estava muito longe da ver­dade.
Hmm - fiz eu. - Não muito.
Vou lhe trazer uma aspirina. Parece que o cansaço da viagem te pegou de jeito, hein! Como não conseguimos te acordar hoje cedo, decidimos deixá-la dormir. Sua mãe pediu que a desculpasse, mas teve de ir para o trabalho. Deixou-me cuidando das coisas. Espero que você não se importe.
Eu tentei sentar-me, mas estava difícil. Parecia que eu tinha sido espancada em cada músculo do corpo. Afastei o cabelo dos olhos e olhei para ele:
- Não precisava - disse. - Não precisava ter ficado em casa por minha causa.
Andy deu de ombros.
- Não faz mal. Praticamente não tenho conseguido falar com você desde que você chegou, e achei então que a gen­te podia botar a conversa em dia. Quer alguma coisa para almoçar?
No exato momento em que ele fez a pergunta, meu es­tômago deu um ronco. Eu estava morta de fome.
Ele ouviu e abriu um sorriso:
- Sem problema. Vista-se e desça. Vamos almoçar ao ar livre. O dia está lindo.
Precisei me esforçar para sair da cama. Eu estava de pija­ma e sem muita vontade de me vestir. De modo que ape­nas vesti um par de meias e um roupão, escovei os dentes e fiquei uns momentos olhando pela janela enquanto tenta­va desembaraçar o cabelo. A cúpula vermelha da igreja da Missão brilhava no sol. Por trás dela, dava para ver o mar reluzindo. À distância, ninguém diria que tanta destruição havia acontecido ali na noite anterior.
Não demorou e um delicioso cheiro de comida chegou lá da cozinha, e decidi descer a escada. Andy estava fazen­do sanduíches Reuben. Mas ele foi logo me expulsando da cozinha em direção ao enorme deque que tinha construí­do atrás da casa. A área estava inundada de sol e eu me estirei numa das chaises longues, me sentindo por alguns momentos como uma estrela de cinema. Pouco depois o Andy chegou com os sanduíches e uma jarra de limonada, e eu fui para a mesa com o pára-sol verde e mandei ver. Para um não nova-iorquino, até que o Andy fazia um Reuben razoável.
Ele passou bem uma meia hora me fazendo um verda­deiro interrogatório... mas não sobre o que havia aconteci­do na noite da véspera. Para minha surpresa, Soneca e Mestre tinham ficado de boca fechada. Andy estava completamente por fora do que tinha acontecido. Só queria saber se eu es­tava gostando do colégio, se estava feliz, blablablá...
Só tinha um detalhe. Enquanto me perguntava se eu estava gostando da Califórnia, e se era realmente tão dife­rente assim de Nova York (sorvetão), ele acabou dizendo:
- Quer dizer então que você dormiu tranqüilamente du­rante o seu primeiro terremoto...
Eu quase me engasguei.
O quê?
O seu primeiro terremoto. Houve um terremoto esta noite, por volta das duas horas. Não foi dos mais fortes, apenas uns quatro graus, mas o suficiente para me acordar. Nada foi destruído, exceto lá na Missão. A galeria desmoronou. O que aliás não deve ter surpreendido. Há anos eu venho avisando os padres sobre o perigo daquela madeira. É quase tão antiga quanto a própria Missão. Não se podia esperar mesmo que durasse para sempre.
Eu estava mastigando mais devagar. Minha nossa. A des­pedida da Heather devia mesmo ter dado umas boas sacu­didelas, para se fazer sentir daquele jeito por todo o vale e até nas colinas.
Mas isto ainda não explicava por que o David decidira ir me procurar no colégio.
Eu tinha voltado para o quarto e estava no assento da janela folheando uma revista de moda bem bobinha, tentan­do imaginar onde o Jesse tinha ido parar, quanto tempo ainda teria de esperar até que ele voltasse a aparecer para me fazer mais um dos seus sermões e se ele ainda seria ca­paz de me chamar novamente de hermosa, quando os garo­tos chegaram do colégio. Dunga passou direto pelo meu quarto (ele ainda não tinha me perdoado por ter ficado de castigo) mas o Soneca mostrou a cabeça, viu que eu estava bem e foi embora, balançando a cabeça. O único a bater na porta foi o David. Eu o convidei a entrar, e ele entrou, ti­midamente.
Trouxe o seu dever de casa. O professor Walden me deu para entregar a você. Mandou dizer que espera que você esteja melhor.
Puxa - disse eu. - Obrigada, David. Pode deixar aí na cama.
Foi o que ele fez. Mas em vez de se retirar, ele ficou ali, olhando para a guarda da cama. Percebi que estava queren­do dizer alguma coisa e fiquei calada, esperando que ele re­solvesse se abrir,
Cee Cee mandou um beijo - disse ele. - E aquele ou­tro cara também, o Adam McTavish.
Legal - respondi.
Fiquei esperando. David não me desapontou.
Está todo mundo comentando - foi dizendo.
Comentando o quê?
Você sabe. O terremoto. Que a Missão deve estar bem em cima de alguma falha geológica que ainda era desconhe­cida, pois o epicentro parece ter sido... bem do lado da sala de aula do professor Walden.
Eu fiz apenas "hmm" e virei a página da revista.
- Quer dizer então que você nunca vai me contar?... - fez o David.
Eu nem olhei para ele.
Contar o quê?
O que está acontecendo. Por que você estava no colégio no meio da noite. Como a galeria desmoronou. Tudo isso.
É melhor você não ficar sabendo - respondi, virando a página. - Confie em mim.
Mas não tem nada a ver com... com o que o Jake disse, certo? Essa história de gangue.
Não - respondi.
Olhei então para ele. O sol, entrando pela janela, res­saltava o rosado da sua pele. Aquele garoto, com seus ca­belos ruivos e as orelhas pontudas, tinha salvo a minha vida. Eu lhe devia uma explicação, era o mínimo que po­dia fazer.
Eu vi, sabia? - disse David.
Viu o quê?
O fantasma.
Ele estava olhando para mim, pálido e intenso. Parecia sério demais para um guri de doze anos.
Que fantasma? - perguntei.
 O que vive aqui. Neste quarto. - Ele olhou ao redor, como se esperasse encontrar o Jesse em algum cantinho do meu ensolarado quarto. - Ele me procurou esta noite. Juro. Me acordou. Ficou me falando sobre você. Foi assim que fiquei sabendo. Foi assim que eu soube que você estava enrascada.
Fiquei olhando para ele de queixo caído. O Jesse? O Jesse tinha contado para ele? O Jesse o tinha acordado?
- Ele não me deixava em paz - prosseguiu David, com a voz trêmula. - Ele ficava... me tocando. No ombro. Era frio e reluzia. Era apenas uma coisa fria e reluzente, e den­tro da minha cabeça uma voz ficava me dizendo que eu tinha de ir ao colégio para te ajudar. Não estou mentindo, Suze. Juro que aconteceu realmente.
- Eu sei, David - disse eu, fechando a revista. - Acredito em você.
Ele já estava de novo com a boca aberta para jurar ou­tra vez que era tudo verdade, mas ao me ouvir dizer que acreditava nele voltou a fechá-la. Só voltou a abri-la para perguntar, meio desconfiado:
Acredita mesmo?
Acredito - respondi. - Não pude dizer ontem à noite mas estou dizendo agora. Obrigada, David. Você e o Jake salvaram a minha vida.
Ele estava tremendo. Precisou sentar na minha cama, caso contrário poderia até cair.
- Então... - disse ele. - Então é verdade? Quer dizer que foi mesmo o... o fantasma?
-Foi.
Ele ficou um tempo digerindo a resposta.
E por que você estava no colégio?
É uma longa história - respondi. - Mas juro que não tinha nada a ver com gangues.
Ele ficou piscando para mim.
Então tem a ver com... o fantasma?
Não o que te visitou. Mas tinha mesmo a ver com um fantasma.
Os lábios do David se mexeram, mas acho que ele não estava muito consciente de estar falando. Da sua boca saiu aquela pergunta espantada:
Existe mais de um?
Ah, muito mais de um - respondi. Ele continuava olhando fixo para mim.
E você... você é capaz de vê-los?
- David - disse eu então -, não é uma coisa que eu me sinta à vontade para comentar...
- Você viu o da noite passada? O que foi me acordar?
- Sim, David. Eu o vi.
- E sabe quem é? Sabe como ele morreu? Eu balancei a cabeça.
Não. Não se lembra? Você ia investigar para mim. Ele pareceu despertar.
- Ah, claro! Esqueci. Estive consultando uns livros on­tem. Espere um minuto só. Não saia daí.
Ele saiu correndo do quarto, já completamente esqueci­do do choque que acabara de sofrer. Eu fiquei exatamente onde estava, como ele havia pedido. Fiquei me perguntando se o Jesse estava por ali ouvindo. E achei que seria muito bom para ele se estivesse.
Segundos depois o David estava de volta, trazendo uma pilha de enormes livros empoeirados. Pareciam muito ve­lhos, e quando ele sentou ao meu lado e começou a folheá-los sofregamente, eu vi que eram mesmo muito antigos. Nenhum deles tinha sido publicado depois de 1910. O mais antigo tinha sido publicado em 1849.
Veja - disse David, folheando um grande volume en­cadernado em couro intitulado A minha Monterey, de um certo coronel Harold Clemmings. O estilo narrativo do coronel era dos mais maçantes, mas o livro tinha ilustrações, o que não deixava de ajudar, embora fossem em preto-e-branco.
Veja - voltou a dizer o David, mostrando a reprodução de uma fotografia da casa em que estávamos. Só que ela estava muito diferente, sem a varanda nem a garagem. As árvores ao redor também eram bem menores. - Olha só, é a casa quando ainda era um hotel. Ou uma estalagem, como diziam na época. Está dizendo aqui que a casa tinha péssi­ma fama. Muitas pessoas foram assassinadas aqui. Esse coro­nel Clemmings conta uma porção de detalhes. Você acha que o fantasma que veio falar comigo ontem à noite é uma delas? Uma das pessoas que morreram aqui?
Bem - disse eu -, muito provavelmente.
David começou a ler em voz alta - depressa e de uma maneira inteligente, sem tropeçar nas palavras antigas mais difíceis - as diversas histórias das pessoas que tinham mor­rido na Casa da Colina, como a chamava o coronel Clemmings.
Mas nenhuma daquelas pessoas chamava-se Jesse. Ne­nhuma delas nem de longe se parecia com ele. Ao termi­nar, David olhou para mim cheio de expectativa:
- Talvez seja o fantasma daquele dono de lavanderia chinês - disse. - O tal que levou um tiro porque aquele janota não achava que ele estava lavando direito as suas camisas.
Eu sacudi a cabeça.
Não. O nosso fantasma não é chinês.
Ah... - e David voltou a consultar o livro. - E este aqui? O tal que foi morto pelos escravos...
Acho que não - disse eu. - Ele tinha apenas um metro e sessenta de altura.
E este outro aqui? O dinamarquês que foi apanhado trapaceando nas cartas e levou um tiro...
Ele não é dinamarquês - respondi, dando um suspiro. David franziu a boca.
Então o que ele era? Eu balancei a cabeça.
- Não sei. Tem alguma coisa de espanhol. E também... - mas eu não queria ficar falando disso bem ali no meu quarto, onde o Jesse podia estar ouvindo, aqueles detalhes sobre os olhos úmidos e os longos dedos morenos...
Quer dizer, eu não queria que ele ficasse achando que eu gostava dele ou coisa assim.
Foi aí que eu lembrei do lenço. Quando acordei na ma­nhã seguinte, depois de lavar o sangue, ele tinha desapa­recido, mas eu ainda lembrava as iniciais. MDS.
- Essas letras te dizem alguma coisa?
Ele ficou pensando por uns momentos. Depois fechou o livro do coronel Clemmings e abriu um outro, ainda mais velho e empoeirado. Era tão antigo que o título havia de­saparecido da lombada. Mas quando David o abriu, pude ver o título na folha de rosto: A Vida no norte da Califórnia de 1800 a 1850.
David percorreu o índice no fim do volume e falou:
A-ráá!
A-rá o quê? - perguntei.
Exatamente o que eu havia pensado - respondeu ele, buscando uma das últimas páginas do livro. - Aqui - prosseguiu. - Eu sabia. Tem uma fotografia dela.
Ele me entregou o livro, mostrando uma página recoberta por um tecido.
O que é isto? - perguntei. - Para que este lenço de pa­pel?
Não é lenço de papel. É papel de seda. Eles usavam para proteger as fotos nos livros. Pode levantar.
Eu levantei o tecido. Por baixo dele havia a reprodução em preto-e-branco de uma pintura, em papel brilhante. Era um retrato de mulher. Embaixo, a inscrição: Maria de Silva Diego, 1830-1916.
Meu queixo caiu. MDS! Maria de Silva!
Ela parecia mesmo do tipo que levava um lenço como aquele na manga do vestido. Estava usando um vestido branco cheio de babados - ou pelo menos parecia branco na foto - com seus lustrosos cabelos negros colhidos em bandós dos dois lados da cabeça e uma enorme jóia antiga daquelas bem caras presa a uma corrente de ouro em seu longo pescoço. Era uma bela mulher de ar altivo, olhando para um dos lados com uma expressão que se poderia di­zer de... de desprezo.
Olhei para o David.
- Quem era ela? - perguntei.
- Simplesmente a garota mais famosa da Califórnia na época em que esta casa foi construída - disse ele, tirando o livro da minha mão e voltando a folheá-lo. - Na época, o seu pai, Ricardo de Silva, era praticamente o dono de toda a região de Salinas. Ela era sua única filha e tinha um dote e tanto. Mas não era por isto que os caras queriam casar com ela. Ou pelo menos não era o único motivo. Naquela época, uma garota como ela era realmente considerada bonita.
Eu disse:
Mas ela é mesmo muito bonita. David olhou para mim com um risinho:
É, isso mesmo.
Sim, muito bonita mesmo.
David viu que eu estava falando sério e deu de ombros.
- Não importa. O pai queria que ela casasse com um fa­zendeiro rico, um primo que estava perdidamente apaixona­ do por ela, mas ela só pensava nesse outro cara chamado Diego. - Ele consultou o livro. - Felix Diego. O sujeito era a maior roubada, traficante de escravos. Pelo menos era o que fazia antes de vir para a Califórnia para ficar rico na corrida do ouro. E o pai da Maria era contra a escravidão, aliás, também contra a corrida do ouro. De modo que Maria e o pai entraram em conflito para saber com quem ela ia se casar, o primo ou o traficante de escravos, até que o pai avisou que ia deserdá-la se ela não casasse com o primo. Foi o bastante para Maria tomar uma decisão rapidinho, pois ela gostava muito de dinheiro. Tinha aproximadamente uns sessenta vestidos, numa época em que a maioria das mulheres tinha apenas dois, um para o trabalho e outro para a igreja.
- E o que aconteceu? - interrompi. Não estava dando a mínima para quantos vestidos aquela mulher tinha. Só que­ria saber onde entrava o Jesse.
David voltou a consultar o livro.
O mais incrível é que no fim das contas a Maria con­seguiu o que queria.
Como assim?
- O primo não apareceu para o casamento. Eu fiquei olhando:
- Não apareceu? Como assim, não apareceu?
Exatamente isto. Ele nunca mais apareceu. Ninguém sabe o que aconteceu com ele. Ele deixou seu rancho al­guns dias antes do casamento, para chegar a tempo ou qual­quer coisa assim, e ninguém mais teve notícias dele. Nunca mais. Ponto final. Neca de pitibiriba.
E... - eu sabia a resposta, mas mesmo assim tinha de perguntar. - E o que aconteceu com a Maria?
Ah, ela casou com o traficante de escravos caçador de ouro. Claro que depois de deixar passar um certo tempo. Naquela época essas coisas tinham mil regras. O pai dela ficou tão decepcionado com o primo que acabou dizendo à Maria que podia fazer o que quisesse, e que se danasse. Foi o que ela fez. Mas não se danou nem um pouquinho. Ela e o traficante de escravos tiveram 11 filhos, herdaram as propriedades quando o pai dela morreu e souberam ad­ministrá-las muitíssimo bem...
Eu levantei a mão.
Espera aí. Como se chamava o primo? David consultou o livro.
Hector.
Hector?
- Sim - respondeu David, olhando de novo no livro. - Hector de Silva. Mas a mãe chamava-o de Jesse.
Quando voltou a levantar os olhos, ele deve ter visto algo estranho na minha expressão, pois perguntou, com uma vozinha miúda:
É o nosso fantasma?
É o nosso fantasma - respondi, calmamente.

Terra das Sombras - Capítulos 16 e 17

Capítulo 16


Nem pensar - disse padre Dominic. - Padre - tentei argumentar. - Não vejo outra saída. Nós sabemos perfeitamente que ela não irá por vontade própria. E ela é perigosa demais para ficar por aí perambulando indefinidamente. Acho que vamos precisar dar um empurrão.
Padre Dominic tirou os olhos de mim e ficou com o olhar perdido num ponto do teto.
- Não é para isto que estamos aqui, pessoas como você e eu, Suzannah - disse ele com a voz mais triste que eu ja­mais ouvira. - Nós somos as sentinelas dos portões do Além. Somos nós que ajudamos a guiar as almas perdidas para seu destino final. E não houve um só espírito ajudado por mim que não tivesse passado pelo portão por vontade própria...
Isso aí. E se a gente fechar os olhos na noite de Natal, Papai Noel vai aparecer. Devia ser muito bom, pensei, ver o mundo pelos olhos do padre Dom. Ficava parecendo um lugar muito legal. Muito melhor que o mundo no qual eu vivia há dezesseis anos.
Certo - disse eu. - Bom, não vejo outro jeito.
Um exorcismo - murmurou padre Dominic, pronunciando a palavra como se fosse algo nojento.
Ouça - prossegui, começando a me arrepender de ter dito alguma coisa. - Acredite, não é um método que eu recomendo sempre. Mas não acho que tenhamos muita es­colha. A Heather já não é um perigo apenas para o Bryce. - Eu não queria contar-lhe o que ela havia dito sobre o David. Já podia até vê-lo saltando da cama e berrando por um par de muletas. Mas como eu já tinha deixado escapar o que estava planejando, precisava mostrar a ele por que considerava necessária uma medida tão extrema. - Ela é um perigo para o colégio todo e precisa ser contida - dis­se então.
Ele assentiu com a cabeça.
- Sim, sim, você tem razão. Mas Suzannah, você tem de prometer que vai esperar que eu tenha alta. Conversei com a médica, e ela disse que pode me dar alta já na sexta-feira. Com isto, teremos tempo suficiente para pesquisar a metodologia apropriada... - ele deu uma olhada para a mesinha- de-cabeceira. - Quer me dar aquela Bíblia ali, Suzannah? Quem sabe não o encontramos aqui...
Eu lhe entreguei a Bíblia.
- Tenho plena convicção de que domino perfeitamente a coisa - disse eu.
Ele levantou os olhos e me fixou com aquele seu olharzinho triste de criança. Pena que já fosse tão velho, e ain­da por cima padre. Fiquei me perguntando quantos corações ele não teria partido antes de encontrar sua vocação.
- E como é que você pode dominar perfeitamente uma coisa complicada como um exorcismo católico romano? - quis saber ele.
Eu me mexi, meio sem jeito.
Bem, eu não estava pretendendo usar exatamente a versão católica romana.
Existe alguma outra?
Mas claro! A maioria das religiões tem sua versão. Pessoalmente, prefiro a umbanda. É bem objetiva. Nada de sortilégios demorados ou coisas do gênero.
Ele parecia estar sofrendo:
Macumba?
Isso mesmo. É o vodu brasileiro. Eu descobri na Internet. Só precisamos de um pouco de sangue de galinha e...
Maria Santíssima, mãe de Deus! - interrompeu padre Dominic, levando algum tempo para se recuperar e prosse­guir: - Fora de questão. Heather Chambers era uma católica batizada e, apesar da causa de sua morte, merece um exor­cismo católico, se não um enterro católico. No momento ela não tem grandes chances de ir para o Céu, devo reconhecer, mas posso garantir que pretendo fazer tudo para que tenha a oportunidade de cumprimentar São Pedro no portão.
Padre Dom - eu disse. - Realmente não acho que faça a menor diferença se ela tiver um exorcismo católico, brasileiro, pigmeu ou o que seja. A dura realidade é que se hou­ver um Céu, não existe a menor possibilidade de que Heather Chambers vá para lá.
Padre Dominic fez um muxoxo de desaprovação.
Suzannah, como pode dizer uma coisa dessas? Todo mundo tem alguma coisa de bom. Acho que até você é ca­paz de ver isso.
Até eu? Como assim, até eu?
Estou querendo dizer que até Suzannah Simon, que pode ser muito dura com os outros, deve ser capaz de entender que até no ser humano mais cruel existe a flor do bem. Talvez um brotinho muito pequeno mesmo, carente de água e luz do sol, mas ainda assim uma flor.
Fiquei me perguntando que analgésicos estariam dando ao padre Dom. E disse:
- Tudo bem então, padre. Só sei que, aonde quer que a Heather vá, não será para o Céu. Se é que existe um Céu...
Ele sorriu para mim com tristeza.
- Eu gostaria apenas, Suzannah, que você tivesse em matéria de fé no Senhor metade do que tem de coragem - disse. - Ouça-me um instante. Você não pode, simplesmente não pode tentar deter a Heather sozinha. Ficou perfeitamente claro que ela quase a matou na noite passada. Eu não conseguia acreditar quando cheguei e vi os estragos que ela ti­nha provocado. Você teve muita sorte de sair com vida. E pelo que aconteceu esta manhã também está claro, como você mesma diz, que ela está apenas acumulando forças.
Seria uma burrice, uma burrice criminosa, se você tentasse de novo fazer alguma coisa sozinha.
Eu sabia que ele tinha razão. Pior ainda, se eu levasse adiante aquela história de exorcismo, não poderia con­tar com a ajuda do Jesse, pois o exorcismo poderia muito bem mandá-lo de volta para o criador, juntinho com a Heather.
- Além disso - prosseguiu padre Dominic -, não há qual­quer motivo para se apressar, não é mesmo? Agora que ela já conseguiu mandar o Bryce para o hospital, não fará ne­nhuma outra tolice, pelo menos até ele voltar para o colégio. Parece que ele é a única pessoa contra a qual ela alimen­ta instintos assassinos...
Eu não disse nada. E como poderia? O pobre infeliz pare­cia tão patético, deitado naquela cama... Eu não queria dar-lhe mais motivos de preocupação. Mas a verdade é que eu não poderia esperar que o padre Dom saísse do hospital. A Heather não estava brincando. A cada dia que passava, ela só ia ficando mais forte e mais perversa e mais cheia de ódio. Eu tinha de me livrar dela, e precisava ser logo.
De modo que cometi algo que deve ser um pecado mor­tal. Menti para um padre.
Ainda bem que eu não sou católica.
- Não se preocupe, padre Dom - disse. - Vou esperar que o senhor se sinta melhor.
Mas o padre Dominic não era nenhum bobo.
Prometa-me, Suzannah - insistiu.
Prometo.
Claro que eu tinha cruzado os dedos. Eu esperava que, se existisse um deus, isto servisse para neutralizar o peca­do de mentir para um dos seus mais devotados servidores.
- Deixe-me ver - murmurava padre Dominic. - Vamos precisar de água benta, naturalmente. Mas isto não é pro­blema. E, naturalmente, de um crucifixo.
Enquanto ele matutava sobre os itens necessários, Adam e Cee Cee entraram no quarto.
- E aí, padre Dom? - foi dizendo o Adam. - O senhor está péssimo!
Cee Cee cutucou-o com o cotovelo.
- Adam - sussurrou ela, voltando-se com vivacidade para o padre. - Não dê bola para ele, padre Dom. Eu acho que o senhor parece ótimo. Parece mesmo, para quem quebrou um bocado de ossos...
Crianças! - fez padre Dominic, realmente contente por vê-los. - Mas que bom! Mas por que estão desperdiçando uma tarde bonita como esta para visitar um velho num hospital? Vocês deviam estar na praia curtindo o sol.
Na verdade estamos fazendo uma matéria sobre o acidente para as Notícias da Missão - informou Cee Cee. - Acabamos de entrevistar o monsenhor. É realmente uma pena essa história da visita do arcebispo e tudo mais, e a estátua do padre Serra sem cabeça...
Isso aí - fez o Adam. - Um horror mesmo.
Não faz mal - disse padre Dominic. - É o empenho e a preocupação de vocês que vão realmente impressionar o arcebispo.
- Amém - disse Adam, solene.
Antes que uma de nós duas tivesse tempo de ralhar com o Adam por causa do sarcasmo, uma enfermeira entrou e comunicou a Cee Cee e a mim que tínhamos de sair porque ela ia dar banho de esponja no padre Dom.
Banho de esponja! - espantou-se o Adam enquanto caminhávamos para o carro. - No padre Dom dão banho de esponja, mas e eu, que realmente saberia apreciar uma coisa dessas, que é que me dão?...
Uma oportunidade de servir de motorista para as duas garotas mais bonitas de Carmel - adiantou-se Cee Cee.
Tá bom - concordou Adam, voltando-se para mim: - Não que você não seja a garota mais bonita de Carmel, Suze... Eu só estava querendo dizer... Bem, você sabe...
Sei - disse eu, sorrindo.
Puxa vida, banho de esponja! E você viu só aquela en­fermeira? - continuou Adam, empurrando o encosto do banco do carona para a Cee Cee se esgueirar para o assento de trás. - Alguma coisa deve ter nessa história de ser padre. Talvez eu devesse me candidatar.
Lá de trás, a Cee Cee respondeu:
- Ninguém se candidata. É uma vocação. E você não ia gostar nada, Adam, pode crer. Padres não podem jogar Nintendo.
Adam engoliu esta.
- Talvez eu pudesse fundar uma nova ordem - disse ele, concentrado. - Como os franciscanos, só que seríamos a Ordem dos Felizardos. Nosso lema seria "Nota dez para todos, pizza para todo mundo".
Cee Cee interrompeu:
- Cuidado com a gaivota!
Nós estávamos na Rodovia Litorânea de Carmel. Pouco depois da mureta de pedra a nossa direita estava o Oceano Pacífico, brilhando como uma jóia à luz da gigantesca bola de fogo amarela do sol. Provavelmente eu o devia estar con­templando muito demoradamente (eu ainda não tinha me acostumado com sua presença constante), pois o Adam foi tratando de se enfiar com o carro numa vaga que acabava de ser deixada livre por um BMW. Eu fiquei olhando para ele interrogativamente, enquanto ele perguntava:
- Você ainda não conseguiu parar para ficar olhando o pôr-do-sol?
Saí do carro numa fração de segundo.
Pouco depois, estava me perguntando como é que nun­ca tinha pensado antes em me mudar para a Califórnia. Sentada numa manta que o Adam tirou da mala do carro, observando os atletas correndo e os surfistas de fim de tarde, os cães correndo atrás de frisbees e os turistas com suas câmeras, estava me sentindo tão bem como não me sentia há muito tempo... Talvez fosse porque eu ainda estava num regime de dormir apenas quatro horas por noite. Talvez, simplesmente o cheiro da água do mar me estivesse deixan­do meio embriagada. Mas o fato é que estava me sentindo realmente em paz, como se fosse pela primeira vez na vida.
O que não deixava de ser estranho, levando-se em con­ta que dentro de poucas horas eu estaria em luta contra as forças do Mal.
Até que essa hora chegasse, no entanto, decidi que ia curtir a vida. Voltei o rosto para o sol que se punha, sentin­do os seus raios quentes na bochecha, e fiquei ouvindo o barulho das ondas, os gritos das gaivotas e a conversa de Cee Cee com o Adam.
- Aí eu disse para ela, Claire, você já tem quase 40 anos. Se você e o Paul querem ter outro filho, é melhor andarem depressa. Vocês estão correndo contra o tempo - disse o Adam, bebendo um refrigerante que havia comprado numa lanchonete perto do lugar onde estacionamos. - Ela ficou dizendo que meu pai e ela não queriam que eu me sentisse ameaçado por um outro filho e eu respondi que não me sentia ameaçado por bebês. Sabe o que realmente me faz sentir ameaçado? Esses orangotangos que ficam tomando esteróides, do tipo Brad Ackerman, isto sim.
Cee Cee lançou um olhar de advertência para Adam e depois olhou para mim:
- E como você está se dando com seus meios-irmãos, Suze?
Eu desviei meu olhar do sol.
- Acho que bem - respondi. - Mas é verdade que o Dun... quer dizer, o Brad, toma esteróides?
O Adam respondeu:
- Eu não devia ter dito isto. Sinto muito. Tenho certeza de que ele não toma. Mas aqueles caras todos da equipe de luta-livre, eles realmente são de dar medo. E têm tanta rai­va de gays... que dá para desconfiar de suas preferências sexuais. Eles todos pensam que eu sou gay, mas não sou exatamente eu que fico metido num colante agarrando as coxas de outros caras.
Eu senti vontade de pedir desculpas em nome do meu meio-irmão e foi o que fiz, acrescentando:
- Não estou tão certa assim de que ele seja gay. Outro dia ele ficou todo feliz quando a Kelly Prescott ligou para nos convidar para a festa em sua piscina no sábado.
Adam assobiou e de repente Cee Cee perguntou:
- Você não prefere algo melhor que esta manta? Quem sabe uma toalha de praia de caxemira?... É o tipo de toalha que a Kelly e o pessoal dela usam na praia.
Eu fiquei piscando, percebendo que acabava de cometer uma gafe.
Ué, eu não sabia... Pensei que a Kelly também tinha convidado vocês. Achei que ela ia convidar todos os segundanistas.
Com certeza que não - disse Cee Cee, fungando. - Só os segundanistas com status, o que não é caso do Adam nem o meu.
Mas você é a editora do jornal do colégio - ponderei.
Certo - respondeu o Adam. - Traduza isto como a mesma coisa que bosta, e vai entender por que nunca fomos convidados para uma festa na piscina da princesa Kelly.
Fiquei calada por um minuto, ouvindo as ondas. Mas acabei dizendo:
Não que eu estivesse pensando em ir...
Não mesmo? - e os olhos de Cee Cee se esbugalharam por trás dos óculos.
- Não. No início, porque eu tinha um encontro com o Bryce, que acabou sendo cancelado. Mas agora porque... bom, se vocês não forem, com quem eu vou conversar?
Cee Cee deitou-se na manta.
- Suze - disse ela. - Você alguma vez pensou em ser vice-presidente da turma?Eu achei graça.
Espera aí, eu sou a mais nova da turma, lembra?
Isso aí - fez o Adam. - Mas você leva jeito. Vi que você tem alguma coisa de líder na maneira como acabou com a raça da Debbie Mancuso ontem. Os homens sempre admiram as garotas que parecem capazes de dar um murro na cara de outra garota a qualquer momento. É mais forte que nós. Talvez seja genético - concluiu ele, dando de ombros.
Certamente vou levar isto em consideração - disse eu, rindo. - Cheguei a ouvir um boato de que a Kelly pretendia gastar todo o orçamento da turma numa festa...
Exatamente - confirmou Cee Cee. - Ela faz isto todo ano. É aquela baboseira da dança da primavera. Um saco. Pelo menos para quem não está de namorado, não serve para nada. Não dá para fazer mais nada, só dançar.
Espera aí - atalhou Adam. - Lembra aquela vez em que a gente levou balões de água?
Bom, naquele ano foi divertido - reconheceu Cee Cee.
Eu estava pensando - interferi - que talvez fosse me­lhor uma coisa assim. Sabe como é. Um piquenique na praia. Talvez até dois...
- Isso mesmo! - exclamou o Adam. - Com fogueira! O meu lado piromaníaco sempre quis fazer uma fogueira na praia.
Cee Cee concordou:
- Exatamente! É exatamente o que a gente devia fazer. Suze, você tem de concorrer a vice-presidente!
Santa virgem, mas o que foi que eu fiz? Eu não queria ser vice-presidente da turma de segundo ano! Não queria me envolver com essas coisas! Eu não tinha o menor espí­rito de comunidade, não tinha opinião sobre nada! Que diabos estava eu fazendo? Será que tinha perdido a cabeça?
- Olha lá! - disse Adam de repente, apontando para o sol. - Lá vai ele.
Enquanto ia desaparecendo no horizonte, a enorme bola alaranjada parecia estar mergulhando no mar. Não tinha nada respingando nem nenhuma fumaça, mas eu seria ca­paz de jurar que tinha ouvido o sol atingindo a superfície da água.
Lá vai o sol - cantou Cee Cee suavemente.
Lá lá lá lá lá - continuou o Adam.
Lá vai o sol - prossegui.
Tudo bem, tenho de reconhecer que era meio infantil, ficar ali sentado cantando, enquanto o sol se punha. Mas também era divertido. Lá em Nova York, a gente costuma­va ficar sentado no parque vendo os policiais à paisana prenderem traficantes de drogas. Mas não dava para compa­rar com o prazer de cantar despreocupado na praia enquanto o sol se põe.
Alguma coisa estranha estava acontecendo. E eu não sabia direito o que era.
- Eu já sei. Tá legal - cantamos os três em uníssono.
Estranhamente, naquele exato momento, eu realmente acreditei que seria assim. Que estaria tudo bem.
E foi aí que me dei conta do que estava acontecendo.
Eu estava me integrando. Eu, Suzannah Simon, a media­dora. Pela primeira vez na vida eu estava me integrando com alguma coisa.
E fiquei feliz. Realmente feliz. Naquele momento, eu real­mente acreditava que tudo estaria bem.
Mal sabia eu!...


Capítulo 17


Meu despertador tocou à meia-noite. Eu o desliguei, bati palmas para acender a luz, rolei na cama e fiquei olhando para o dossel lá em cima.
Isso mesmo. Tinha chegado o dia D. Ou dia E, no caso.
Eu estava tão cansada depois do jantar que sabia que nunca conseguiria se não tirasse uma soneca. Disse à mi­nha mãe que ia lá para cima fazer o dever de casa, e que depois ia me deitar para tirar uma soneca. Quando a gente morava no Brooklin, não teria o menor problema. Minha mãe me teria deixado sossegada, exatamente como eu pe­dia. Mas na casa dos Ackerman a expressão "quero ficar sozi­nha" aparentemente não significava absolutamente nada. E não porque a casa estivesse cheia de fantasmas por todo lado. Não, para variar, eram os vivos que ficavam me perturbando.
Primeiro foi o Dunga. Quando me sentei para desfrutar de mais um jantar gastronômico imaculadamente preparado por meu padrasto, pairava uma certa dúvida, pois no fim das contas eu só havia chegado em casa depois das seis. Como sempre, chegou a hora do "onde você estava?" da minha mãe (muito embora eu me tivesse dado ao trabalho de deixar aquele bilhete para ela). Depois o Andy veio com o seu "foi divertido?". E logo em seguida tive de ouvir um "com quem você estava?" logo de quem? Do Mestre. E quan­do eu informei que estivera com Adam McTavish e Cee Cee Webb, Dunga fez uma careta de nojo e lançou, sem parar de mastigar sua almôndega:
- Caramba! Os esquisitos da turma. Andy interveio:
- Ei, veja como fala.
- Puxa, pai - insistiu Dunga. - Uma é uma albina superesquisita e o outro é boiola.
Isto lhe valeu um espetacular cascudo do pai, que tam­bém o deixou de castigo por uma semana. Com isto, não pude deixar de lembrar ao Dunga mais tarde, quando está­vamos tirando a mesa, que ele não poderia ir à festa na piscina de Kelly Prescott, para a qual, por sinal, tinha sido convidado graças a mim, a rainha dos esquisitos.
- Pena mesmo, meu chapa - disse eu, dando um tapi­nha de solidariedade na bochecha do Dunga.
Ele empurrou a minha mão.
Ah, é? - foi dizendo. - Bom, pelo menos ninguém vai me chamar de bicha amanhã.
Ora, ora, meu benzinho - continuei, beliscando a mesma bochecha. - Você nunca vai precisar se preocupar de ser chamado disso. Só te xingam de coisas muito piores.
Ele voltou a agarrar minha mão, aparentemente tão fu­rioso que ficou sem fala por algum tempo.
- Prometa que nunca vai mudar - pedi. - Você é mesmo um barato exatamente do seu jeito...
Dunga me chamou de um nome muito feio, no exato momento em que seu pai entrava na cozinha com o resto da salada.
Andy deu-lhe mais uma semana de castigo e depois man­dou-o para o quarto. Para mostrar como tinha ficado abor­recido, Dunga botou para tocar os Beastie Boys tão alto que eu não conseguia dormir, pelo menos até que o Andy voltou a interferir, tomando as caixas de som. De repente tudo fi­cou um enorme sossego e eu já estava pegando no sono quando alguém bateu na minha porta. Era o Mestre.
Hmm - começou ele, olhando nervosamente para a escuridão do meu quarto, o quarto "mal-assombrado" da casa. - Será que a hora é apropriada para... falar das coisas que eu andei descobrindo? Quer dizer, sobre a casa... E as pessoas que morreram aqui...
Pessoas? No plural?
Com certeza - prosseguiu Mestre. - Consegui encontrar uma quantidade incrível de documentos sobre os crimes que foram cometidos nesta casa, em muitos casos crimes de ho­micídio em todos os graus. Como era uma estalagem, havia sempre muitos moradores temporários, boa parte dos quais estava voltando para casa depois de fazer fortuna na corrida do ouro no norte do estado. Muitos foram assassinados en­quanto dormiam e tiveram seu ouro roubado, possivelmente pelos próprios donos do estabelecimento, segundo certas ver­sões, porém mais provavelmente por outros moradores...
Temendo que estivesse para ouvir que o Jesse tinha mor­rido exatamente dessa maneira e nada interessada em ficar sabendo mais sobre as causas de sua morte, especialmente se ele estivesse ali por perto para ouvir também, eu o in­terrompi:
- Escuta só, Mestre... quer dizer, Dave. Acho que até hoje ainda não consegui me recuperar da viagem, de modo que vou tentar tirar uma soneca das boas. Será que não podemos falar disso amanhã no colégio? Quem sabe almoçamos juntos...
Mestre arregalou os olhos,
- Está falando sério? Vai querer almoçar comigo? Fiquei olhando para ele.
Mas claro! Por quê? Existe alguma regra proibindo que o pessoal do segundo grau almoce com o pessoal do pri­meiro?
Não - respondeu ele. - É só que... nunca acontece.
Bom, pois eu vou - insisti. - Tudo certo? Você compra as bebidas e eu pago a sobremesa.
Beleza! - exclamou Mestre, que voltou para seu quar­to como se eu tivesse prometido que amanhã lhe daria de presente o trono da Inglaterra.
Eu já estava quase começando a dormir de novo, quan­do ouvi baterem na porta novamente. Dessa vez, quando abri, lá estava o Soneca, parecendo mais desperto que eu, para variar.
- Olha só - começou ele. - Não quero saber se você vai usar o carro de noite, mas vai botando as chaves lá no gan­cho, OK?
Eu fiquei olhando para ele.
Eu não tenho saído com o seu carro à noite, So... quer dizer, Jake.
Seja lá o que for - insistiu ele. - Apenas trate de deixar as chaves onde as encontrou. E não seria nada mau se você contribuísse de vez em quando com a gasolina...
Eu respondi bem devagar, para ele entender:
Eu não tenho saído com o seu carro à noite, Jake.
Ninguém tem nada a ver com o uso que você faz do seu tempo - insistiu Soneca. - Não acho um barato viver em gangues, mas cada um sabe da sua vida. Apenas trate de botar minhas chaves no lugar, onde eu possa encontrá-las.
Entendi que não tinha sentido ficar discutindo, concor­dei e fechei a porta.
Depois do quê, finalmente consegui umas boas horas de sono. Não cheguei propriamente a acordar me sentindo nova (talvez eu pudesse dormir por mais um ano), mas de qualquer maneira estava me sentindo um pouco melhor.
Pelo menos, melhor o suficiente para ir acertar os fundilhos de algum fantasma.
Algumas horas antes eu havia juntado tudo de que ia precisar. Minha mochila estava cheia de velas, pincéis, um recipiente para sangue de galinha, que eu havia comprado no açougueiro aonde fizera o Adam me levar antes de me deixar em casa, e vários outros apetrechos indispensáveis para a realização de um bom exorcismo à brasileira. Estava completamente preparada para ir em frente. Só faltava calçar meus tênis, e lá ia eu.
Só que, naturalmente, o Jesse tinha de aparecer exata­mente no momento em que eu estava pulando do telhado da varanda.
- Tudo bem - fui dizendo, enquanto me endireitava, com os pés doendo um pouco, apesar de ter aterrissado em ter­ra fofa. - Vamos deixar uma coisa bem clara logo de saída. Você não vai dar as caras lá na Missão esta noite. Entendido? Se aparecer por lá, vai se arrepender, e não será pouco.
Jesse estava recostado num dos pinheiros gigantes do nosso jardim. Simplesmente recostado, os braços cruzados, me olhando como se eu fosse alguma atração especial ou coisa parecida.
- Estou falando sério - continuei. - Não vai ser uma noite nada boa para fantasmas. Nada boa mesmo. De modo que se eu fosse você não dava as caras por lá.
Deu para perceber que o Jesse estava sorrindo. A lua não era tão forte como na noite anterior, mas ainda assim havia luar e dava para eu ver que as curvas na ponta de seus lábios voltavam-se para cima, e não para baixo.
Suzannah - disse ele. - O que você está querendo?
Nada - respondi, caminhando em direção à garagem e apanhando a bicicleta de dez marchas. - Preciso apenas acertar uma coisas.
Jesse aproximou-se de mim enquanto eu botava o ca­pacete.
Com a Heather? - perguntou, polidamente.
Isso aí. Com a Heather. Sei que as coisas saíram do controle da última vez, mas dessa vez vai ser diferente...
Como, exatamente?
Eu passei a perna por cima daquela barra cretina que eles põem nas bicicletas para garotos e me posicionei bem no alto da rua, com os dedos firmes no guidão.
- Tudo bem - disse então. - Vou te dar uma colher. Vou fazer um exorcismo.
Sua mão direita voou e agarrou firme a barra entre mi­nhas mãos.
- Um o quê?! - fez ele, com uma voz completamente destituída do bom humor que a caracterizava até então.
Eu engoli em seco. Tudo bem, eu não estava assim tão confiante quanto queria parecer. Na realidade, estava prati­camente tremendo em cima de meus All-Star. Mas que mais podia eu fazer? Eu tinha de deter a Heather antes que ela fizesse mal a alguém mais. E seria mesmo sensacional se todo mundo simplesmente me ajudasse nisso.
Você não pode me ajudar - fui dizendo, completamente fria. - Vê se fica afastado de lá esta noite, Jesse, caso contrário poderá ser exorcizado também.
Você perdeu o juízo - disse ele, com o mesmo tom in­diferente que eu tinha passado a usar.
Provavelmente - reconheci, desanimada.
Ela vai matá-la - insistiu Jesse. - Não está entenden­do? É isso que ela quer.
 Não - respondi, sacudindo a cabeça. - Ela não quer me matar. Primeiro ela quer matar todo mundo que é importan­te para mim. Só depois é que quer me matar.
Eu funguei. Não sei por quê, mas meu nariz estava escor­rendo. Provavelmente porque estava muito frio. Eu não en­tendia como aquelas palmeiras conseguiam ficar vivas. Estava fazendo uns cinco graus lá fora,
- Mas ela não vai conseguir, entendeu? - continuei. - Eu vou impedi-la. Agora solte a minha bicicleta.
Jesse sacudiu a cabeça.
Não, não. Nem mesmo você seria capaz de fazer uma coisa tão idiota.
Nem mesmo eu? - retruquei, meio chateada, mesmo sem querer. - Muito obrigada.
Ele me ignorou.
O padre está sabendo disso, Suzannah? Você contou ao padre?
Hmm, claro. Ele está sabendo. Ele, hmm... vai se en­contrar comigo lá.
O padre vai se encontrar com você?
Sim, claro, claro - disse eu, rindo meio nervosa. - Você não está pensando que eu ia tentar uma coisa dessas sozi­nha, não é mesmo? Puxa, eu não sou tão burra assim, por mais que você pense.
Ele já estava segurando a bicicleta com menos firmeza.
- Bem, se o padre vai estar lá...
- Claro, claro. Com toda certeza.
Ele voltou a segurar firme. A outra mão do Jesse veio vin­do na minha direção, e um longo dedo ficou sacudindo bem no meu nariz enquanto ele dizia:
- Você está mentindo, não está? O padre não vai estar lá coisa nenhuma. Ela o machucou, não é mesmo, hoje de manhã? Foi o que eu pensei. Ela o matou?
Eu balancei a cabeça. De repente fiquei sem vontade de falar. Era como se tivesse alguma coisa na minha garganta, uma coisa me machucando.
Por isso é que você está com tanta raiva - disse Jesse, pensativo. - Eu devia ter imaginado. Você está indo lá para acertar contas com ela pelo que ela fez com o padre.
E se for isto? - explodi. - Ela bem que merece!
Ele abaixou o dedo, agarrando o guidão da minha bici­cleta com as duas mãos. E posso dizer que ele era bem fortão para um cara que está morto. Eu não conseguia me mexer com ele agarrado daquele jeito.
Suzannah - disse ele. - Não é assim que se fazem as coisas. Não foi para isto que você recebeu este extraordinário dom, não para fazer coisas assim...
Dom?! - exclamei eu, apertando os dentes para não cair na gargalhada. - É isso aí, Jesse. Eu recebi mesmo um dom dos mais preciosos. E sabe o que mais? Estou de saco cheio. Mas estou mesmo. Eu achei que vindo para cá pode­ria começar tudo de novo. Achei que as coisas poderiam ser diferentes. E sabe o que mais? São diferentes mesmo. São muito piores!
Suzannah...
O que você acha que eu devo fazer, Jesse? Amar a Heather pelo que ela fez? Abraçar seu espírito ferido? Sinto muito, mas é impossível. Talvez o padre Dom fosse capaz, mas eu não e ele está fora da jogada, de modo que vamos fazer as coisas do meu jeito. Vou me livrar dela, e se você quer o seu próprio bem, Jesse, fica fora dessa.
Dei um tranco bem forte no pedal e ao mesmo tempo agarrei o guidão com toda força. Foi tão inesperado para o Jesse, que ele largou a bicicleta involuntariamente. Um se­gundo depois eu estava a caminho, projetando cascalho para trás com a roda traseira e cobrindo Jesse de poeira. Enquanto ia descendo pela rua, ainda pude ouvi-lo dizer um monte de coisas em espanhol. Provavelmente estava xingando. E com toda certeza a palavra hermosa não foi pro­nunciada.
Grande parte da paisagem que ia percorrendo ao descer eu não consegui ver. O vento estava tão frio que ficavam saltando lágrimas pelas minhas bochechas e até o meu ca­belo. Felizmente não havia muito trânsito, de modo que quando eu atravessei o cruzamento, não tinha importân­cia que não estivesse vendo muita coisa. De qualquer maneira, os carros iam parando para eu passar.
Eu sabia que dessa vez seria mais difícil entrar no co­légio. Eles deviam ter aumentado a segurança por causa do que acontecera na noite anterior. Mais segurança? A verdade é que bastava terem providenciado alguma segurança.
E foi o que fizeram. Havia um carro da polícia no esta­cionamento, com as luzes apagadas. Simplesmente lá, para­do, com o luar refletido nos vidros das janelas fechadas. O motorista - com certeza um novato, para ser encarregado de uma missão tão chata - provavelmente estava ouvindo música, embora de onde eu estava, junto ao portão do esta­cionamento, não desse para ouvir nada.
De modo que eu ia precisar encontrar uma outra maneira de entrar. Sem problema. Escondi a bicicleta num arbusto e calmamente fui dar uma volta ao redor do colégio.
Não é muito fácil impedir que uma garota de 16 anos razoavelmente esbelta entre num prédio. Eu sou um boca­do flexível. E também tenho juntas bem elásticas. Não vou contar aqui como é que acabei conseguindo entrar, pois não quero que as autoridades escolares descubram (nunca se sabe, pode ser que eu precise fazer tudo de novo algum dia), mas digamos que se alguém é encarregado de fazer um portão é melhor ter certeza de que ele chegou mesmo até o chão. Aquele vão entre o cimento e o ponto onde começa a base do portão é exatamente o espaço de que uma garo­ta como eu precisa para se insinuar.
Lá dentro do estacionamento, as coisas pareciam bem diferentes da noite anterior - e muito mais aterrorizantes. Todos os holofotes estavam apagados (o que não me pare­cia exatamente uma boa medida de segurança, mas é claro que a Heather podia perfeitamente ter arrebentado todas as lâmpadas), de modo que toda a área estava escura e cheia de sombras assustadoras. A fonte também estava desligada.
Dessa vez, só dava para ouvir os grilos. Só grilos cantando nos hibiscos. Nada de errado com os grilos. Os grilos são amigos.
Não havia o menor sinal da Heather. Não havia qual­quer sinal de ninguém. O que era bom.
Fui caminhando com o máximo de cuidado (o que não era tão difícil com os meus tênis) até o armário que eu es­tava... compartilhando com a Heather. Aí me ajoelhei e abri minha mochila.
Primeiro, acendi as velas. Precisava delas para enxergar ao redor. Segurando um acendedor de grelha de churrasco que havia trazido contra a base de uma das velas, derreti e pinguei um pouco de cera no piso e firmei a vela naquela goma. Repeti a operação com todas as outras velas até for­mar um círculo luminoso à minha frente. Abri então a tam­pa do recipiente com o sangue de galinha.
Não vou descrever aqui a forma que eu tinha de desenhar no centro do círculo de velas para que o exorcismo desse cer­to. Exorcismo é o tipo da coisa que a gente não deve tentar fazer em casa, por pior que seja a assombração. E só deve ser confiado a uma profissional como eu. Afinal, ninguém ia querer machucar algum fantasma inocente que estivesse só passando por ali. Tipo exorcizar a vovó ou coisa do gênero...
E também não é recomendável que as pessoas comecem a mexer com macumba, e por isto não vou repetir aqui a invocação que tive de fazer em português mesmo. Digamos apenas que mergulhei meu pincel no sangue de galinha e fiz o desenho adequado, emitindo as palavras exigidas. Foi só quando retirei a fotografia da Heather da mochila que notei que os grilos haviam parado de cantar.
- Que diabos você acha que está fazendo? - disse ela, bem atrás do meu ombro.
Eu não respondi. Botei a foto no centro da forma que eu havia pintado. Ela ficou bem iluminada pelas velas. Heather aproximou-se mais.
- Onde foi que arranjou esta foto minha?
Eu me limitei a pronunciar as palavras que tinha de di­zer em português. O que pareceu irritar ainda mais a Heather.
Bom, parece mesmo que temos de reconhecer que tudo irritava a Heather.
- O que você pensa que está fazendo? - perguntou ela de novo. - Que língua é essa que está falando? E para que esta pintura vermelha?
Como eu não respondesse, a Heather começou a ficar ainda mais abusada - o que parecia ser a sua especialidade.
- Olha aqui, sua vaca - foi dizendo, botando a mão no meu ombro e me puxando nada delicadamente. - Está me ouvindo?
Eu interrompi o ritual.
- Pode me fazer um favor, Heather? - perguntei. - Quer ficar bem ali perto do seu retrato?
Heather sacudiu a cabeça e seus longos cabelos loiros reluziram à luz das velas.
- O que está acontecendo com você? - perguntou ela com grosseria. - Está bêbada por acaso? Não vou ficar em lugar nenhum. Isso aí... isso é sangue?
Eu dei de ombros. Ela continuava com a mão no meu ombro.
Sim - respondi. - Mas não se preocupe. É só sangue de galinha.
Sangue de galinha? - repetiu Heather com uma care­ta. - Chocante. Está brincando comigo? Para que isto?
Para te ajudar - respondi. - Para te ajudar a ir embora.
Heather apertou os dentes. As portas dos armários come­çaram a sacudir. Mas não muito. Só o suficiente para que eu ficasse sabendo que a Heather não estava nada satisfeita.
Pensei que tinha deixado bem claro ontem à noite que eu não vou a lugar nenhum - disse ela.
Você disse que queria ir embora.
Exatamente - respondeu ela, enquanto os segredos das trancas dos armários começavam a girar ruidosamente. - Para minha antiga vida.
Pois eu descobri uma maneira...
As portas começaram a parecer tambores, de tanto que sacudiam.
Esquece - respondeu ela.
Esquece, não: lembra. Você só precisa ficar de pé aqui, no meio dessas velas, perto do seu retrato.
Nem precisei insistir. Num segundo, ela estava exatamen­te onde eu queria que estivesse.
Tem certeza de que isto vai funcionar? - quis saber, toda excitada.
É melhor que funcione, caso contrário terei desperdi­çado minha cota de velas e sangue de galinha - respondi.
E as coisas vão voltar a ser exatamente como eram? Quer dizer, como eram antes de eu morrer?
Claro - respondi. Fiquei me perguntando se era o caso de me sentir culpada por estar mentindo. Eu não me sen­tia nem um pouco culpada. Só sentia um grande alívio. Tinha sido tudo tão fácil. - Agora fique calada um pouco para eu dizer as palavras.
Ela estava louca para colaborar. Então eu disse as palavras
E disse as palavras.
E disse as palavras de novo.
Eu já estava começando a me preocupar, achando que nada ia acontecer, quando a luz das velas começou a tremer. E não estava passando nenhum vento.
- Não está acontecendo nada - queixou-se a Heather, mas eu mandei que ela se calasse.
As chamas voltaram a tremer. De repente, acima da cabe­ça da Heather, onde devia estar o telhado da galeria, apare­ceu um buraco cheio de gases vermelhos dando voltas. Eu fiquei olhando para aquele buraco.
Heather, é melhor você fechar os olhos - disse então. Ela prontamente obedeceu.
Por quê? Está funcionando?
É - disse eu. - Está funcionando sim.
Heather disse alguma coisa do tipo "legal", mas não pude ouvir bem. Não dava para ouvir direito porque o gás ver­melho que ficava girando no ar, e que parecia mesmo uma fumaça, estava começando a sair do buraco e fazia uma es­pécie de ronco. Logo depois, longos anéis daquela coisa começaram a envolver a Heather, diáfanos como uma bru­ma. Só que ela não sabia, pois estava de olhos fechados.
- Estou ouvindo alguma coisa - disse ela. - Está aconte­cendo?
Acima de sua cabeça, o buraco havia aumentado muito. Dava para ver uns relâmpagos lá dentro. Não parecia o lu­gar mais atraente do mundo. Não estou dizendo que eu ti­nha aberto uma porta para o inferno ou coisa parecida (pelo menos era o que eu esperava), mas certamente se tratava de uma dimensão que não era a nossa, e com toda franque­za não parecia um lugar muito agradável para visitar, muito menos para viver por toda a eternidade.
- Só mais um minutinho e você chega lá - disse eu, en­quanto aumentava o número de anéis vermelhos de fuma­ça ao redor daquele corpinho de animadora de torcida.
Heather ajeitou os cabelos longos.
- Oh meu Deus! - fez ela. - Mal posso esperar. A primeira coisa que vou fazer é ir ao hospital pedir desculpas ao Bryce. Você não acha uma boa idéia, Suzinha?
Eu respondi, enquanto o trovão aumentava e os relâm­pagos ficavam mais freqüentes:
Claro, é uma grande idéia.
Tomara que a minha mãe não tenha jogado minhas roupas fora - prosseguiu a Heather. - Só porque eu estava morta. Você acha que a minha mãe pode ter jogado fora as minhas roupas, Suzinha? Acha mesmo? - insistiu ela, abrin­ do os olhos.
Eu gritei:
- Fique de olhos fechados!
Mas já era tarde. Ela já tinha visto. Puxa vida, ela tinha visto. Ficou meio segundo olhando para aqueles anéis ao seu redor e começou a berrar.
E não estava berrando de medo, não senhor. A Heather não estava com medo. Estava furiosa. Para valer.
- Sua vaca! - gritou. - Você não está me mandando de volta! Não mesmo! Está me mandando embora!
E de repente, no momento em que o trovão começava a ficar ainda mais forte, a Heather saiu do círculo.
Assim mesmo. Ela simplesmente deu um passo para fora. Como se não tivesse a menor importância. Como no jogo da amarelinha. Aqueles anéis de fumaça que estavam ao re­dor dela simplesmente desapareceram. Sumiram como fu­maça. E o buraco acima da cabeça de Heather se fechou.
Bom, vou ter de confessar que fiquei muito danada. Eu tinha tido um trabalho enorme para conseguir aquilo.
- Ah, não - resmunguei, aproximando-me da Heather e agarrando-a, pelo pescoço mesmo. - Volte já para lá. Volte para lá imediatamente - disse, com os dentes trincados.
Heather limitou-se a rir. Estava presa numa gravata, e ainda ria.
Por trás dela, no entanto, as portas dos armários come­çaram a se sacudir de novo. Mais alto que nunca.
- Você é uma mulher morta - disse ela. - Você já está morta, Simon. E sabe o que mais? Vou dar um jeito para que os outros também se juntem a você. Todos aqueles seus amigos esquisitos. E aquele seu meio-irmão também.
Eu apertei ainda mais o seu pescoço.
- Não creio. Acho mesmo é que você vai voltar para onde estava e desaparecer como um fantasma bem bonzinho.
Ela riu de novo.
- Vamos ver isto, então - desafiou, com os olhinhos azuis brilhando enlouquecidamente.
Bem, se era assim que ela queria...
Dei-lhe um murro daqueles com o punho direito. E antes que ela conseguisse se recuperar, acertei-lhe um outro com a esquerda. Se ela sentiu os golpes, não deixou transpare­cer. Não, não é verdade. Eu sei que ela sentiu os golpes por­que as portas dos armários de repente começaram a abrir e fechar. Fechar não é bem a palavra. Começaram a abrir e a bater, mas a bater com muita força mesmo, sacudindo toda a galeria.
Não estou brincando. A galeria toda estava indo e vindo, como se o piso fosse de ondas do mar. As grossas pilastras de madeira que sustentavam o telhado arqueado se sacu­diam naquele chão que as mantivera firmes e fortes por quase trezentos anos. Trezentos anos de terremotos, incên­dios e inundações, e bastava o fantasma de uma animadora de torcida para que elas tremessem nas bases.
Como vocês podem ver, essa história de mediação não tem nada de divertido.
E de repente eram os dedos dela que estavam ao redor da minha garganta. Não sei como foi possível. Acho que eu devo ter ficado perturbada com aquele tremor todo. A coisa esta­va muito esquisita. Eu a agarrei pelos braços e comecei a tentar empurrá-la de volta para o círculo de velas. Ao mesmo tempo, murmurava a invocação em português sem tirar o olho dos caibros que ondulavam lá em cima, na esperança de que o buraco voltasse a se abrir para a terra das sombras.
- Cala a boca! - gritou a Heather quando ouviu o que eu estava dizendo. - Cala essa boca! Você não vai me mandar embora! Meu lugar é aqui! É muito mais o meu lugar do que o seu!
Eu ficava repetindo as palavras. E continuava a em­purrá-la.
- Quem você pensa que é? - gritava Heather com o ros­to vermelho de raiva. Com o canto dos olhos, eu vi um vaso de gerânios levitar alguns centímetros acima da balaustrada de pedra em que se encontrava. - Você não é ninguém! Você só está no colégio há dois dias. Dois dias! Está pen­sando que pode ir chegando e mudar tudo? Acha que pode simplesmente ir tomando o meu lugar? Quem você pensa que é?
Eu chutei uma perna e, agarrando bem os braços dela, dei-lhe uma rasteira e ambas caímos no chão. O vaso de flores foi atrás, não porque tivéssemos esbarrado nele, mas porque a Heather o atirou contra mim. Eu me abaixei no último instante, e o pesado vaso de argila se espatifou con­tra os armários, numa explosão de terra, gerânios e cacos de barro. Agarrei a Heather pelos longos e lindos cabelos louros. Não era um gesto dos mais elegantes, mas também não tinha sido muito elegante da parte dela atirar gerânios em mim.
Ela começou a berrar de novo, chutando e se retorcendo como uma enguia, enquanto eu a arrastava e ao mesmo tempo a empurrava em direção ao círculo de velas. Ela havia começado a fazer outros objetos levitarem. As trancas sal­taram das portas dos armários e voaram em minha direção como pequenos discos voadores. Depois surgiu um torna­do, sugando tudo que estava dentro dos armários para a alameda, de modo que apostilas e fichários voavam para cima de mim de todas as direções. Eu fiquei com a cabeça abaixada, mas não perdi o controle dela quando o livro de trigonometria de alguém me atingiu em cheio no ombro. E ficava repetindo as palavras que certamente haveriam de abrir de novo aquele buraco.
Por que você está fazendo isto? - berrou Heather. - Por que simplesmente não me deixa em paz?
Porque não.
Eu estava lanhada, sem fôlego, pingando de suor, só pensando em largar ela ali mesmo, dar meia-volta e ir para casa, jogar-me na cama e dormir por um milhão de anos.
Mas não podia.
Então o que fiz foi dar-lhe um murro bem no peito, mandando-a de volta para o meio do círculo de velas. E no exa­to momento em que ela tropeçou na foto que havia dado ao Bryce, o buraco que aparecera acima de sua cabeça voltou a se abrir. Desta vez a fumaça vermelha fechou-se em torno dela como um sufocante e espesso cobertor de lã. Ela não ia se soltar de novo. Não com aquela facilidade.
A fumaça vermelha a seu redor era tão espessa que eu já não podia vê-la, mas certamente a ouvia. Seus gritos dariam para despertar os mortos - só que ela era a única morta ali, naturalmente. Trovões ribombavam acima de sua cabeça. Lá dentro do buraco que voltara a se abrir, eu julgava estar vendo estrelas brilharem.
Por quê? - berrava Heather. - Por que está fazendo isto comigo?
Porque eu sou a mediadora - respondi.
E de repente duas coisas aconteceram quase simulta­neamente.
A fumaça vermelha que envolvia a Heather começou a ser sugada para o buraco que girava em espiral, levando-a consigo.
E os poderosos pilares que sustentavam a galeria parti­ram-se em dois como se fossem de gesso.
E foi aí que a galeria desmoronou em cima de mim.