terça-feira, 10 de maio de 2011

Os Irmãos Corsos - Capítulos 4 ao 9

CAPÍTULO 4


AS ARMAS HISTÓRICAS


A sugestão de Luciano vinha perfeitamente ao encontro de minha vontade de comparar os quartos dos dois irmãos. Desse modo, esperei os minutos necessários e logo depois bati à porta de meu hospedeiro, que já começara a se vestir.
  Entre, por favor — disse ele sorrindo. — Em pouco tempo estarei pronto.
Que arsenal!
Quem entrasse em tal quarto não poderia ter ilusões sobre o temperamento de seu dono. Na certa seria o de um caçador ou guerreiro, do mesmo modo que o quarto de Luís pertencia a um estudioso.
As paredes, forradas com couro de Espanha, estavam cobertas de armas antigas e modernas de vários tipos diferentes. Os móveis eram sólidos e todos dos séculos XV e XVI, com o leito guarnecido por um cortinado de damasco verde com flores de ouro. As cortinas das janelas eram do mesmo tecido, contrastando agradavelmente com a mobília escura.
  Fique à vontade — disse Luciano, encaminhando-se para o quarto de vestir, cuja porta se abria para os seus aposentos. — O senhor está rodeado por três séculos de armas. Examine-as enquanto me visto de montanhês, como já lhe disse. Creio que achará graça de meus trajes.
  Se eu rir dos seus — respondi —, o senhor deve estar sufocando uma boa gargalhada desde que viu os meus.
Luciano riu com gosto.
  O que está achando das armas? — perguntou sua voz do outro quarto.
  Muito interessantes — respondi. — Apesar de não ser um especialista, tenho algumas em casa bastante razoáveis. Quais são, entre estas espadas, arcabuzes e punhais, as armas históricas de que me falou?
  São três. Vamos por ordem. Observe à cabeceira de minha cama, um punhal isolado, com o botão do punho formando um sinete e o punho protegido por uma grande concha.
  Estou diante dele.
  É a adaga de Sampietro.
  Do famoso Sampietro, o assassino de Vanina?
  Assassino, não! — protestou Luciano. — Matador.
  Não é a mesma coisa?
  Talvez em todo o resto do mundo, mas não na Córsega.
  Pertenceu realmente a Sampietro?
  Sim — disse Luciano. — Repare bem seu brasão gravado no punho. A flor-de-lis francesa ainda não aparece porque ele só foi autorizado a usá-la depois do cerco de Perpinhão.
  Ignorava esse detalhe. E de que modo o punhal chegou até sua família?
  Bem, está com os De Franchi há trezentos anos. Foi dado pelo próprio Sampietro a Napoleão de Franchi.
  Sabe em que ocasião?
— Sei. Esse meu antepassado e Sampietro caíram muma emboscada armada pelos genoveses e lutaram como leões. Em certo momento, o capacete de Sampietro desprendeu-se e um genovês a cavalo já ia derrubá-lo com sua massa quando Napoleão de Franchi cravou-lhe o punhal por uma pequena abertura da couraça.
"O punhal — continuou Luciano animadamente — ficou tão preso no ferimento que meu ancestral não conseguiu retirá-lo. O genovês não esperou uma nova tentativa de Napoleão de Franchi: esporeou o cavalo e fugiu o mais rápido que pôde para a sua retaguarda.
"Napoleão — prosseguiu ele — ficou furioso por ter perdido sua arma, mas nem os impropérios que lançou na direção do genovês o fizeram voltar, é claro. Para consolá-lo da perda, Sampietro deu-lhe então seu próprio punhal, de fabricação espanhola, uma excelente arma, como vê, e que corta ao meio duas moedas de cinco francos superpostas."
  Posso fazer essa experiência?
  Claro que sim — respondeu Luciano, sorrindo.
Coloquei duas moedas de cinco francos uma sobre a outra no chão do quarto e vibrei-lhes uma punhalada seca e vigorosa.
Luciano dissera a verdade.
Quanto levantei o punhal as duas moedas estavam cravadas na lâmina, cortadas de lado a lado.
  Acho que só mesmo o punhal de Sampietro seria capaz de tal proeza — disse eu para Luciano, que voltava ao quarto. — Só não entendo por que preferiu matar a mulher com uma corda, possuindo arma tão perfeita.
Luciano riu.
   A explicação é simples — disse. — Nessa época, ele já havia dado seu punhal a meu antepassado.
  Deve ser isso.
  Sampietro contava mais de sessenta anos de idade quando veio especialmente de Constantinopla a Aix para trombetear ao mundo uma importante lição: a de que as mulheres não devem se intrometer na política. O que acha o senhor?
  Concordo com Sampietro. Mas daí a estrangulá-las com uma corda vai um certo exagero, não é verdade?
Não sei se Luciano de Franchi — um ótimo rapaz mas com certas idéias antiquadas — entendeu minha ironia.
Coloquei o punhal cuidadosamente em seu suporte e dei uma olhadela pelo resto do quarto.
  Passemos a outro — disse Luciano. — Está vendo aqueles dois retratos?
  Sim — respondi. — Paoli e Napoleão Bonaparte.
  Bem. Sob o retrato de Paoli há uma espada.
  Cá está — disse eu, caminhando naquela direção.
  Era a dele.
  A espada de Paoli? Verdade? Autêntica, como o punhal de Sampietro?
  Disso não há a menor dúvida — respondeu Luciano, cheio de orgulho —, pois também foi dada a uma antepassada minha.
  A uma senhora? — perguntei espantado.
  Exatamente. Terá o senhor ouvido falar de uma mulher que, durante a guerra de independência, veio até a torre de Sullacaro acompanhada de um rapaz?
   Não. Conte-me a história.
   Não chega a ser uma história. É um pequeno episódio.
   Melhor ainda.
  Acho que não temos mais tempo para conversar agora.
  Oh,  por  favor.   Estou  curiosíssimo:  o   que  aconteceu  à mulher?
  Bem, ela e o rapaz apresentaram-se à torre de Sullacaro, onde pediram para falar a Paoli. Como este estava ocupado, escrevendo, os soldados que guardavam a porta de seu gabinete não a deixaram entrar. Ela insistiu, mas foi repelida por duas sentinelas. A mulher não se deu por vencida, tornando a tentar. Ouvindo barulho de vozes que discutiam, Paoli abriu a porta e perguntou o que se passava.
"Sou eu que te quero falar", disse a mulher.
"Pois não", respondeu Paoli. "Pode falar."
"Venho dizer-te que tenho dois filhos. Soube ontem que o mais velho morreu em defesa da pátria, e caminhei vinte léguas para te trazer o mais novo."
Fiquei muitíssimo impressionado com a história que me contava Luciano.
  Parece uma cena de Esparta — murmurei.
  É verdade — concordou o jovem corso.
  E quem era essa mulher tão corajosa?
  Minha bisavó — respondeu. — Diante de suas palavras, Paoli arrancou então a própria espada e entregou-a à minha bisavó, emocionado.
  Muito bonito esse modo de apresentar desculpas a uma mulher. Paoli realmente não era um homem comum.
   Nem minha bisavó, não acha? — perguntou Luciano, cheio de orgulho.
  Certamente. E este sabre aqui? — falei, apontando para uma arma de excelente qualidade.
  É o que Napoleão usou na Batalha das Pirâmides.
  Não diga! Terá entrado para a sua família do mesmo modo que o punhal e a espada?
  Sim. Eis a história: a batalha já estava no final quando Bonaparte deu ordem a meu avô para atacar um grupo de cinqüenta homens, um núcleo de mamelucos que resistia ainda em torno do chefe já ferido. Meu avô obedeceu, dispersou o grupo e capturou o oficial que os comandava, trazendo-o à presença do Primeiro Cônsul.
"Napoleão os observava com os olhos entrefechados — prosseguiu Luciano — e viu quando meu avô tentou, em vão, guardar a espada na bainha: a arma estava tão estragada e torta pelos choques com as armas dos mamelucos que tal coisa não foi possível.
"Meu avô, furioso, atirou longe o sabre e a bainha como trastes velhos. Foi então que Napoleão, tirando o próprio sabre da cintura, deu-o a meu avô, que se sentiu honradíssimo com o presente e suficientemente consolado."
  Em seu lugar — falei para Luciano — gostaria de ter os dois sabres: tanto o de Napoleão quanto o de seu avô, por mais estragado que estivesse.
Luciano riu espertamente.
   Olhe diante de si e o encontrará. Napoleão mandou que apanhassem a arma entortada, fez incrustar no punho o diamante que está vendo e devolveu-a à minha família com a inscrição que o senhor pode ler na lâmina.
Na parede entre duas janelas, meio saído da bainha onde já não cabia, estava o sabre. Em sua lâmina via-se a seguinte inscrição:

"Batalha das Pirâmides, 21 de julho de 1798 ".

Nesse momento, o mesmo servidor que me recebera à porta e me fizera entrar surgiu no quarto:
  A Sra. de Franchi manda preveni-lo de que a ceia está servida — disse ele, dirigindo-se a Luciano.
  Muito bem, Grifo — respondeu o rapaz. — Diga a ela que estamos descendo.
Foi então que reparei nas suas roupas de montanhês: jaqueta de veludo, culote e polainas. Do traje anterior conservava apenas a cartucheira colocada em diagonal sobre o peito.
  Continua elegante, Sr. Luciano — cumprimentei-o eu.
  Acha? — perguntou ele, meio incrédulo. — Pois bem. Só aceito o cumprimento se passar a me chamar pelo meu nome. Nada de "senhor" ou coisa que o valha.
  Certo — concordei satisfeito, pois a mim incomodava tratar um rapaz da idade de Luciano de modo tão cerimonioso. — Mas terá que fazer o mesmo.
  Com prazer — disse ele. — Imagine que. . .
Parou de repente, ao ver-me olhando atentamente para duas carabinas penduradas uma em frente a outra, e nas quais eu não reparara até aquele momento. Ambas tinham gravada na coronha a seguinte data:

"21 de setembro de 1819 onze horas da manhã".

A precisão do horário me intrigou.
  Essas   carabinas      perguntei      são   também   armas históricas?
  Sim, ao menos para nós. Uma era de meu pai.
  E a outra? — perguntei curioso.
   A outra — respondeu Luciano, rindo — é de minha mãe. Mas vamos descer pois ela já deve estar à nossa espera.
E passando adiante para me mostrar o caminho, fez-me um sinal para que o seguisse.


CAPÍTULO 5


OS IRMÃOS GÊMEOS



Descendo a escada que nos levaria à sala de jantar, pensa­va na frase de Luciano: "Esta é a carabina de minha mãe". Diante disso, minha curiosidade crescera como um bolo no forno.
Decidi observar com mais atenção ainda a Sra. de Franchi, a quem até agora só vira rapidamente.
Lá estava ela, já sentada à mesa. Luciano beijou-lhe respeitosamente a mão, homenagem que ela recebeu com a dignidade de uma rainha e com um sorriso.
  Perdoe-me por tê-la feito  esperar, minha mãe disse Luciano.
  A culpa foi minha, Sra. de Franchi — apressei-me a explicar, inclinando-me. — Seu filho mostrou-me armas tão curiosas e contou-me histórias tão interessantes que acabamos nos atrasando para o jantar, graças às minhas intermináveis perguntas.
  Não se preocupe — respondeu amavelmente. — Acabo de descer neste momento.
"Luciano — continuou ela dirigindo-se ao filho —, eu estava querendo que chegasse logo para saber notícias de Luís."
  Por acaso seu filho está doente? — perguntei à Sra. de Franchi.
  Luciano pensa que sim — respondeu ela.
  Recebeu alguma carta de seu irmão? — indaguei a Luciano.
  Não, e é justamente isso que me preocupa.
Não entendi mais nada.                                            
  Como sabe então que seu irmão está doente?
  Porque uns dias atraí andei passando bem mal.
Continuei sem compreender patavina do mistério.
  Desculpe as minhas eternas perguntas, Luciano, mas isso não esclarece o fato de você saber a respeito de Luís.
  Não sabe que somos gêmeos? — perguntou ele.
  Sim, o guia já me havia dito.
   Quando viemos ao mundo, estávamos ligados pelo flanco. Sabia também desse detalhe?
   Não.
  Pois foi necessário um golpe de bisturi para nos separar. De-

mesmo corpo. Qualquer reação física ou moral que um dos dois experimenta reflete-se logo no outro. Ora, nesses últimos dias tenho andado inquieto, triste, sombrio, e sem nenhum motivo aparente. Algo me comprime fortemente o coração. Não tenho a menor dúvida de que algo de errado está acontecendo a Luís.
Olhei espantado para Luciano. A certeza com que falara do estranho fenômeno — certeza partilhada inteiramente por sua mãe — me impressionou muito.
A Sra. de Franchi sorriu tristemente.
  Deus olhará por Luís — disse ela. — O principal é você estar certo de que ele vive.
  Se estivesse morto — observou tranqüilamente Luciano eu o teria visto.
  E já me teria contado, não é, meu filho? — perguntou a Sra. de Franchi com angústia.
— Claro, minha mãe. No mesmo instante.
Ela virou-se para mim.
— Peço-lhe que me desculpe por não ter sabido reprimir, em sua frente, as minhas inquietações de mãe. É que, além de Luís e Luciano serem os meus únicos filhos, são os últimos do nosso nome.
Depois de um instante, em que seus olhos negros me fixaram, recobrou-se.
   Queira sentar-se à minha direita, senhor — disse ela. Luciano, fique ali.
O rapaz obedeceu, sentando-se no lugar vazio à esquerda da mãe.
Sentamos à cabeceira de uma longa mesa. No outro extremo estavam colocados outros seis talheres para as pessoas que na Córsega são chamadas de "família", isto é, os intermediários entre os criados e os patrões nas grandes casas.
A mesa estava abundantemente servida.
Na verdade, entretanto, embora sentisse uma fome de lobo graças à viagem, comi distraidamente, procurando apenas saciar-me. Não prestei a mínima atenção ao delicado sabor dos pratos que me eram servidos. Minha cabeça trabalhava em outro rumo: tinha a impressão de que ao entrar naquela casa penetrara num mundo irreal, onde continuava vivendo como em sonhos.
Quem seria aquela mulher que possuía uma carabina como qualquer soldado?
Que estranho irmão era esse que sentia as mesmas dores e aflições de seu gêmeo, embora trezentas léguas os separassem?
Que mãe tão especial era aquela que recebia do filho a promessa de, se visse o irmão morto, contar-lhe imediatamente?
Eu sentia que um mistério insondável rodeava meus hospedeiros. A Córsega era mesmo uma estranha região!
De repente, percebi a indelicadeza de meu silêncio. Levantei a cabeça e voltei-me para meus interlocutores.
Mãe e filho perceberam imediatamente que eu desejava voltar à conversa.
  É a primeira vez que visita a Córsega? — perguntou Luciano, cumprindo a minha vontade.
  Sim. Há muito tempo tinha esse projeto na cabeça, mas só agora pude realizá-lo.
  Felizmente não se demorou mais tempo. Daqui a alguns anos, com a constante invasão de gostos e costumes franceses, os que vierem aqui em busca da Córsega não a encontrarão mais.
Luciano falara aquilo com um profundo ar de tristeza.
  De qualquer modo — consolei-o —, se o antigo espírito da ilha está recuando diante dos hábitos franceses e procurando se refugiar em algum recanto dessa região, certamente será na província de Sartene e no vale do Távaro.
  Supõe isso? — perguntou Luciano sorrindo.
  Sim. Sinto que o que vejo em torno de mim, aqui, é um quadro perfeito e nobre dos velhos costumes corsos.
  É possível. No entanto, apesar de quatro séculos de tradições, nesta mesma casa de ameias e seteiras habitada pelos De Franchi, o espírito francês veio roubar meu irmão Luís ao nosso convívio, levando-o para Paris. De lá voltará advogado. Morará em Ajácio, ao invés de habitar a casa de seus pais. Cuidará de muitas causas e, se tiver talento, talvez venha a ser nomeado procurador do rei.
Luciano tomou um gole de vinho e continuou.
  Então perseguirá os pobres diabos que cometerem algum erro, e confundirá o assassino com o matador, como fez o senhor ainda há pouco. Reclamará, em nome da lei, a cabeça daqueles que tiverem feito algo que seus pais teriam considerado uma desonra não fazer. Preferirá as leis dos homens às leis de Deus. E à noite, quando tiver conseguido uma cabeça para o carrasco, acreditará ter servido ao país, colocando mais uma pedra no templo da civilização, como diz o nosso prefeito. Ah! meu Deus!
Vi que o rapaz falara com grande emoção e pensei na grande diferença de temperamento entre os gêmeos. Era mesmo fantástico que fossem tão amigos.
  Mas como vê — retruquei —, se Deus fez de seu irmão um seguidor dos costumes franceses e cosmopolitas, conservou em você o amor pelos velhos hábitos, equilibrando as coisas.
Luciano ficou pensativo durante um momento.
  Não sei. Não pense que eu seja um corso tão perfeito assim. Às vezes faço coisas indignas de um De Franchi.
  Você? Não creio, Luciano.
— Pois é a pura verdade. Quer que lhe diga o que veio procurar na província de Sartene?
  Pode dizer.
  Você veio para cá com a sua curiosidade de homem mundano, talvez seja um artista ou poeta; não sei o que faz nem o estou indagando nesse momento. Quando partir poderá dizer-nos algo a respeito, se for de seu agrado. Do contrário conservará sua ocupação em segredo, tem plena liberdade para isso. . . Pois bem, você veio com a esperança de presenciar alguma vendetta, de conhecer um bandido bem original, como os que Mérimée pintou na Colomba.
  Nesse caso, devo ter errado o alvo — respondi. — Parece-me que a sua casa é a única da povoação que não está fortificada.
  O que prova que também eu vou degenerando: meu pai, meu avô, meu bisavô, qualquer um deles teria tomado partido por uma ou outra das duas facções na luta que há dez anos divide a aldeia. Eu, não.
Luciano deu um suspiro.
  Sabe o papel que desempenho em tudo isso? — continuou ele. — Sou o árbitro. Em meio a esses tiros, a essas punhaladas e facadas, limito-me a ser o mediador. O que acha disso?
Notei em silêncio que irritação e tristeza transpareciam de suas palavras.
  Você veio à província de Sartene para ver bandidos, não é assim? Pois bem. Venha comigo esta noite e lhe mostrarei um.
Fiquei contentíssimo.
  Permite mesmo que eu o acompanhe?
  Claro — respondeu. — Se isto o diverte, não me custa nada levá-lo.
  Aceito com o maior prazer.
  Nosso hóspede deve estar fatigado, Luciano — disse a Sra. de Franchi, olhando rapidamente para o filho.
Senti nela, subitamente, a mesma espécie de tristeza e vergonha que dominava o filho, ao ver os costumes corsos degenerarem de tal modo. Não queria que tal decadência fosse exibida a um estrangeiro. Afinal de contas, quem entrava numa vendetta era pessoa corajosa, digna e séria!
  Não, minha mãe — protestou Luciano. — É até bom que ele venha. Por uma ironia do destino, o que julgamos certo eles julgam errado. Assim, quando ouvir falar nos salões de Paris sobre as terríveis vendettas e nos implacáveis bandidos corsos que ainda assustam as crianças de Bastia e Ajácio, poderá encolher os ombros e dizer o que há de verdade em tudo isso.
  Não há nenhuma possibilidade de se deter a grande luta que divide essa aldeia há tantos anos?
Mãe e filho se entreolharam.
  Possibilidade, há. Mas, quando se pensa que está tudo resolvido, os ânimos se esquentam de novo.
  E qual foi o motivo dessa querela que dura já dez longos anos?
Luciano sacudiu os ombros.
  Ora, numa disputa dessas pouco importa o motivo, e sim o resultado. Se uma mosca voando de banda causou a morte de um homem, nem por isso o homem está menos morto.
Notei nele uma certa hesitação em me contar as causas da vendetta que há tanto tempo assolava a aldeia.
Luciano, entretanto, não me escaparia com tal facilidade. Quanto mais hesitava, mais eu insistia em descobrir o segredo que tentava encobrir.
 Bem, de qualquer modo, deve ter havido um motivo para tamanha briga. Esse motivo é secreto?
  Não, absolutamente — respondeu Luciano. — A coisa surgiu entre os Orlandi e os Colona.
Nova hesitação da parte dele. Finalmente, decidiu-se.
  Bem, uma galinha fugiu do galinheiro dos Orlandi, indo parar no terreno dos Colona. Quando os Orlandi foram reclamar a galinha, os Colona afirmaram que a ave era deles; os verdadeiros donos ameaçaram então os Colona de os levarem à presença do juiz de paz e lhes exigirem um juramento. Então, a velha Colona, que segurava a galinha, torceu-lhe o pescoço e atirou-a à cara da vizinha, dizendo-lhe:
"Já que é tua, come-a, tratante!"
"Diante disso, um Orlandi segurou a galinha pelos pés e chicoteou com ela a velha Colona que agredira sua irmã. Desgraçadamente, um dos Colona tinha a espingarda carregada, desfechando um tiro à queima-roupa no Orlandi agressor. Matou-o imediatamente.
  E quantos já morreram nessa luta?
  Até agora, nove pessoas — respondeu-me Luciano.
E tudo isso por causa de uma mísera galinha!
— Sim, mas, como já lhe disse há pouco, não é a causa que interessa, e sim o resultado.
  E já que há nove pessoas mortas, é imprescindível que haja uma décima?
  Claro que não — retorquiu Luciano, notando talvez a irritação e o espanto que transpareciam em minhas palavras. — Por isso me tornei o juiz da questão.
   Na certa a pedido de uma das famílias.
  Oh! não, de modo nenhum. A pedido de meu irmão, a quem falaram em casa do ministro da Justiça. Não sei por que diabo eles, em Paris, têm que se intrometer nas coisas que acontecem num obscuro povoado da Córsega. Tenho quase certeza de que foi o prefeito quem nos pregou a peça, escrevendo para Paris e dizendo que, se eu quisesse, poderia intervir e liquidar a questão com uma palavra, como num espetáculo de teatro, com casamento e final feliz.
Luciano deu um suspiro.
  Meu irmão, é claro, segurou a oportunidade pelos cabelos: escreveu-me logo dizendo ter comprometido a sua palavra de que eu procuraria arranjar as coisas. Diante disso, nada pude fazer senão me transformar no apaziguador de Sullacaro. Ninguém dirá que um De Franchi empenhou a palavra e seu irmão não honrou o compromisso.
  E você então conseguiu um acordo entre os dois grupos em briga?
  Acho que sim. Embora aqui na Córsega, como lhe disse, vivamos de surpresa em surpresa.
   O homem que vamos ver esta noite é o chefe de um dos partidos?
  Sim.
  Um Orlandi ou um Colona?                                  
  Um Orlandi.                                                        
  E onde se dará o encontro?
  Nas ruínas do castelo de Vicentello d'Istria.
  É muito longe daqui?
— Não muito. Mais ou menos a uma légua de distância.
  Quanto tempo levaremos para chegar ao local?
— No máximo quarenta e cinco minutos — respondeu o rapaz, depois de alguma hesitação.
  Quarenta e cinco minutos? — repeti eu, pensando: "Que o Senhor me dê pernas fortes!" Já me sentia exausto só em imaginar o estirão que teria de andar!
 Luciano — interveio a Sra. de Franchi —, lembre-se de que para um montanhês como você bastarão apenas quarenta e cinco minutos; mas para um parisiense a coisa não será tão fácil: ele não passará com a mesma facilidade pelos caminhos íngremes que você atravessa.
Luciano coçou a cabeça.
  Tem razão, minha mãe. Talvez precisemos, no mínimo, de hora e meia.
— Nesse caso, não devem perder tempo — replicou a Sra. de Franchi, dando um olhar para o relógio da parede.
  Até já, minha mãe — disse Luciano, beijando-lhe a mão.
Depois virou-se para mim.
  Em todo o caso — disse — se o nosso hóspede prefere acabar tranqüilamente a ceia, subir um momento ao quarto, aquecer os pés e fumar um bom charuto, eu o compreenderei perfeitamente. Deve estar morto de cansaço.
 Nem pense nisso! — repliquei eu, energicamente. — Que diabo! Você me prometeu um bandido. Quero o meu bandido!
  Pois bem: apanhemos então as espingardas, e a caminho!
A Sra. de Franchi sorria do meu ânimo. Saudei-a respeitosamente e deixamos a sala. Grifo ia na frente, para nos iluminar o caminho.
Subindo ao meu quarto, afivelei um cinturão de viagem que mandara fazer em Paris; dele pendiam o facão de caça, pólvora e chumbo. Afinal de contas, eu estava na Córsega!
Luciano também trazia sua cartucheira, uma espingarda de dois canos de Manton e na cabeça um lindo barrete bordado.
Os preparativos não duraram mais de cinco minutos.
  Devo ir com o senhor? — perguntou Grifo.
 Não é preciso — respondeu Luciano —, mas solta Diaman­te; é provável que, com esse luar, consigamos abater algum faisão e nesse caso vamos precisar dele.
Um momento depois, um grande cachorro espanhol pulava entre as nossas pernas, ganindo de alegria ante a perspectiva do passeio.
Saímos. O luar fazia a noite quase tão clara quanto o dia.
Luciano virou-se para Grifo:
   Ah, ia-me esquecendo. Avisa na aldeia que se ouvirem tiros de espingarda na montanha, somos nós que estamos caçando.
  Fique tranqüilo, senhor.
— Se não forem avisados — acrescentou Luciano para mim — são capazes de pensar que as hostilidades recomeçaram e logo ouviremos a resposta aos nossos tiros pelas ruas de Sullacaro.
Saímos da casa. Dentro de poucos minutos, tomamos uma viela à direita que conduzia diretamente à montanha.
CAPÍTULO 6

O CÃO E O MUCCHIO




Uma brisa deliciosa soprava do mar, trazendo até nós um perfume áspero e vivo.
A lua, felizmente para mim, tornava muito claro o caminho, impedindo-me de tropeçar nos acidentes do terreno. Acostumado desde que nascera àquela região, Luciano galgava com a tranqüilidade de um cabrito o monte à nossa frente.
De vez em quando eu olhava para trás e via a ilha, lá embaixo, toda banhada de luar. Que espetáculo! Era estranho pensar que sob aquela aparência tão calma escondiam-se ódios de séculos, que matavam pais, filhos e os filhos dos filhos.
Naquele momento, esquecida de tudo, a Córsega dormia.
À medida que subíamos avistávamos melhor o Mediterrâneo, espelho de prata que rodeava a terra corsa.
O ruído dos grilos era agradável e tranqüilizador. O mesmo eu não diria de outros barulhos totalmente desconhecidos que acompanhavam nossa caminhada. Totalmente desconhecidos para mim, é claro! Luciano parecia conhecê-los perfeitamente. A apreensão que me causavam não era compartilhada por meu companheiro.
Finalmente, chegamos a um trecho em que o caminho se dividia em dois: num atalho que parecia dar a volta à montanha e em outro, pouco visível, que dobrava à direita.
Luciano parou.
  Então — disse-me ele — você tem pé de alpinista?
  Pé, talvez — respondi —; mas olho, não.
  Costuma ter vertigens?
  Infelizmente sim. A altura não me faz lá muito bem.
  Nesse caso, evitemos os precipícios. Vamos por este caminho que só nos oferece dificuldades de terreno.
  Ótimo. Os terrenos acidentados não me assustam.
Luciano avançou primeiro por um pequeno bosque de azinheiras. Eu o segui, afastando os ramos que às vezes me impediam o caminho.
Diamante corria à nossa frente uns cinqüenta ou sessenta passos, ora à direita, ora à esquerda, movendo alegremente a cauda como para nos anunciar que podíamos prosseguir sem perigo.
Repentinamente, o cão se deteve, orelhas em pé. Luciano levantou a espingarda pronto para qualquer emergência. Paralisado, senti meu coração disparar dentro do peito, enquanto tentava enxergar entre as árvores do bosque. O que poderia ser?
De súbito, Diamante disparou pelo bosque atrás de algo que se movia na frente.
Luciano baixou a espingarda.
  Ora! — exclamou, entre aliviado e decepcionado. — É apenas uma lebre dos montes!
O susto me impediu de perguntar o que pensara que fosse.
Via-se que Diamante fora ensinado a caçar o bípede e o quadrúpede, isto é, bandidos e animais, como certos cavalos que são animais de sela e de cabriolé.
A fim de mostrar a Luciano que eu, aos poucos, ia conhecendo os costumes corsos, comuniquei-lhe minha observação.
  Pois está enganado — respondeu ele. — Diamante caça realmente homens e animais, mas o homem que ele caça não é o bandido e sim um misto de gendarme e de guarda da polícia voluntária.
  Como! Então Diamante é um cachorro de bandido?
  Sim, se quiser chamá-lo desse modo. Ele pertenceu a um Orlandi a quem eu, de vez em quando, enviava comida, pólvora, balas, cobertores, coisas desse tipo, enfim, muito necessitadas por um foragido. Esse Orlandi foi morto por um Colona certo dia; no dia seguinte recebi o seu cachorro, que estando acostumado a vir a minha casa habituou-se a mim com facilidade.
  Do meu quarto avistei um outro cachorro brincando no pátio. Foi também de um Orlandi?
  Não. Brusco tem as mesmas qualidades que o Diamante, mas pertenceu a um Colona morto por um Orlandi. Por isso, quando vou visitar um Colona levo Brusco; e quando tenho algo a tratar com um Orlandi levo Diamante. Mantemos sempre um animal preso enquanto o outro está solto. Caso contrário, meu amigo, eles lutariam entre si até um dos dois tombar morto. Os homens — continuou Luciano após um momento — podem se acomodar, mas os cachorros jamais fariam as pazes. São mais dignos e mais fiéis às suas paixões.
Notei a amargura de suas palavras.
  Diamante e Brusco são dois verdadeiros cachorros corsos, então — disse eu, procurando consolá-lo. — Mas onde foi parar Diamante? Acho que ficou encabulado com os elogios que lhe fez.
  Não se preocupe — disse Luciano. — Sei onde ele está.
  Sim? Onde?
  No Mucchio.
Quando eu ia perguntar onde era o tal Mucchio, ouvi um prolongado e triste uivo. Estremeci e parei, segurando o braço de Luciano.
   O que é isso?
  Nada — respondeu ele. — É Diamante chorando.
  E por que chora?
  Pelo dono.  Os cachorros, meu  caro, não  são como os homens, já lhe disse. Jamais esquecem aqueles que os estimaram um dia.
  Ah, sim.
Um segundo uivo cortou os ares, ainda mais triste e lamentoso que o primeiro.
  Por acaso — perguntei — o Mucchio é o túmulo do antigo dono de Diamante? É lá que o animal está agora?
  Sim. Mucchio é o monumento que os transeuntes erguem sobre a campa de todo o homem assassinado, atirando-lhe uma pedra ou um ramo silvestre. Assim, ao invés de se apagar e desaparecer com o tempo, como acontece aos outros túmulos, o Mucchio faz com que a tumba da vítima cresça incessantemente, símbolo da vingança que deve sobreviver ao morto e aumentar cada vez mais no coração de seus parentes mais próximos.
Continuamos a andar, agora em silêncio.
Subitamente, um terceiro uivo chegou até nós, e desta vez tão perto que senti um calafrio na espinha, embora agora já conhecesse os motivos de Diamante.
Realmente, quando dobramos uma curva do caminho avistei, a uns vinte passos de distância, um monte de pedras formando uma pirâmide de quatro ou cinco pés de altura. Era o Mucchio.
Junto ao estranho monumento, de pescoço estendido e goela aberta, estava Diamante.
Luciano tirou o barrete, apanhou uma pedra do chão e se aproximou do Mucchio. Eu fiz o mesmo.
Junto à pirâmide, ele quebrou um ramo de azinheira, jogou primeiro a pedra e depois o ramo. Em seguida fez com o polegar um rápido sinal da-cruz, gesto comum entre os corsos e ao qual o próprio Napoleão recorreu em ocasiões difíceis.
Eu o imitei. Depois de um momento, reiniciamos a caminhada, silenciosos e pensativos.
Diamante ficou para trás.
Uns dez minutos depois ouvimos um último uivo do cachorro e dali a poucos instantes o animal passou por nós. Vinha de cabeça baixa e cauda descida, mas num passo rápido que logo o colocou a uma boa distância de nós. O cão fiel fora deixado para trás. Lá estava, novamente, o nosso batedor Diamante.


CAPÍTULO 7


HISTÓRIA DE UMA VENDETTA


Continuamos avançando. O caminho, como avisara Luciano, tornava-se cada vez mais íngreme.
Como agora precisasse das duas mãos, pus minha espingarda a tiracolo. Meu hospedeiro continuava a subir como se caminhasse num terreno sem a menor dificuldade. De vez em quando dava uma olhadela para trás, naturalmente para certificar-se de que eu o seguia ou se teria caído numa vala.
Após alguns minutos de escalada através das penedias, agarrando-nos em sarmentos e raízes que cresciam no monte, chegamos finalmente a um platô: lá estavam as ruínas do castelo de Vicentello d'Istria, objetivo de nossa viagem.
Até chegarmos às ruínas propriamente ditas, tivemos que escalar ainda, por uns cinco minutos, pedras e vegetação.
Na última etapa, Luciano estendeu a mão e ajudou-me a subir.
   Ora viva! — exclamou ele. — Para um parisiense, você até que não se comporta mal.
  É que este parisiense — respondi, depois de retomar o fôlego —, embora não seja um cabrito como você, já fez algumas excursões deste gênero.
  Ah, sim — comentou Luciano, rindo. — Vocês têm em Paris uma montanha que se chama Montmartre, não é?
  Temos; mas além de Montmartre, seu orgulhoso, já subi em outras montanhas, como o Righi, o Faulhorn, a Gemmi, o Vesúvio, o Stromboli e o Etna.
  Puxa! — exclamou ele. — Nesse caso quem vai rir de mim é você, pois até hoje subi apenas ao monte Rotondo. Como pode ter feito tantas escaladas se tem vertigem de altura?
  Ah, mas isso foi há muitos anos. Naquela época, enfrentava qualquer montanha.
  Bem, chegamos — disse Luciano, ao atingirmos finalmente o castelo arruinado. — Quatro séculos atrás, meus avós teriam dito: "Bem-vindo seja ao nosso castelo". Hoje em dia o descendente deles aponta para estas pedras e lhe diz: "Bem-vindo seja às nossas ruínas".
  Este castelo pertence então à sua família desde a morte de Vicentello d'Istria? — perguntei curioso.
  Desde antes. Seus primeiros habitantes foram Luciano de Franchi e sua mulher, a famosa Savília. Mas, inúmeras peripécias aconteceram ao castelo, que foi perdido e retomado algumas vezes por nossa família.
Fiquei em silêncio por um momento, enquanto olhava em torno as majestosas ruínas banhadas de luar. Até que não me contive:
  Escute, Luciano, o historiador Filippini não conta uma história terrível a respeito de Savília de Franchi? Ou estarei enganado?
  Não, não está. Se fosse de dia, você poderia ver daqui mesmo as ruínas do castelo de Valle. Era lá que morava o Sr. de Giúdice, tão feio e detestado, quanto Savília, a castelã daqui, era formosa e estimada. O homem apaixonou-se por ela, já então viúva de Luciano. Como Savília não desse mostras de corresponder a esse amor, Giúdice mandou avisá-la audaciosamente que, se ela não o quisesse por bem, seria obrigada a aceitá-lo pela força: se não se casasse com ele dentro de um certo prazo, ele a roubaria. Savília de Franchi — prosseguiu — não era alguém que se deixasse intimidar. Assim, fingiu ceder finalmente a Giúdice e o convidou para jantar em sua casa. O homem ficou no auge da alegria. Esquecera completamente suas ameaças ofensivas, achando que Savília optara pela solução mais sábia. No dia do jantar, compareceu ao castelo acompanhado apenas de três servidores. Mas Savília preparara-lhe uma surpresa: logo que as portas se fecharam sobre eles, Giúdice foi agarrado e trancafiado num calabouço. Venha — sugeriu-me Luciano —, vamos dar uma volta pelas ruínas.
Passamos por pedras irregulares cobertas de relvas e chegamos a uma espécie de pátio interno.
Os muros que ainda permaneciam de pé projetavam misteriosas sombras no chão.
Luciano consultou o relógio.
  Estamos vinte minutos adiantados — murmurou ele. — Vamos sentar um pouco. Você deve estar cansado.
Sentamo-nos, ou melhor, deitamo-nos num declive coberto de trevo que ia dar numa larga fenda mais adiante.
Durante algum tempo olhamos o céu claro e límpido da Córsega.
  Sabe, Luciano — falei eu, interrompendo o silêncio —, tenho a impressão de que você não me contou tudo sobre Savília de Franchi.
  É verdade — respondeu. — Onde paramos? Ah! Sim. Com Giúdice trancado no calabouço. Bem, todas as tardes, Savília entrava no calabouço onde estava trancafiado Giúdice, e uma vez lá, separada do inimigo apenas por uma grade, despia-se e mostrava-se nua ao homem do outro lado da grade.
"Giúdice — dizia-lhe ela —, como é que um homem tão horrendo como você pôde pensar que um dia possuiria tudo isto?"
  Ela o torturou desse modo durante três meses, duas vezes por dia — continuou Luciano. — Ao fim de três meses, contudo, para desgraça de Savília, Giúdice conseguiu subornar um guarda e fugiu. Para um homem vingativo como ele, a desforra era uma questão de tempo.
"Pois foi o que aconteceu — prosseguiu meu interlocutor. — Ao cabo de quinze dias, Giúdice armou um pequeno exército de vassalos e assediou o castelo de Savília até tomá-lo. Isso feito, apoderou-se dela e exibiu-a nua dentro de uma grande jaula de ferro, numa clareira da floresta chamada Bocca di Cilaccia, oferecendo ele próprio a chave da jaula a todos os passantes. Ao fim de três dias dessa prostituição pública, Savília estava morta."
Ficamos calados durante algum tempo, pensando no destino terrível daquela que habitara exatamente no local onde nos encontrávamos.
  Seus antepassados — comentei para Luciano — compreendiam bem a vingança. Mas parece-me que seus descendentes degeneraram bastante, pois agora contentam-se em matar com um tiro de espingarda ou uma punhalada certeira. . .
   O pior — disse rindo Luciano — é que acabarão por não se matarem de todo. Mas a luta entre as famílias De Franchi e Giúdice foi terrível: os dois filhos de Savília, que eram ainda garotos quando se deu a morte da mãe, estavam em Ajácio sob a guarda de um tio já velho, mas que os educou como verdadeiros corsos. Assim que tiveram idade suficiente, puseram-se a guerrear os filhos de Giúdice.
"Esta luta entre os De Franchi e os Giúdice — continuou ele — durou nada menos de quatro séculos. Só terminou no dia 21 de setembro de 1819, às onze horas da manhã, data que o senhor deve ter visto nas carabinas de meu pai e minha mãe."
  Sim, lembro-me dessa inscrição. Fiquei aliás muito curioso, mas esqueci depois de lhe perguntar o significado que teria.
  A história é a seguinte: em 1819, restavam da família dos Giúdice apenas dois irmãos; dos De Franchi existia apenas meu pai, que se casara com uma prima. Pois bem: três meses após esse casamento, os Giúdice resolveram acabar conosco de uma vez.
"Um dos irmãos — continuou Luciano — ficou de tocaia na estrada de Olmedo, esperando meu pai que voltava de Sartene. O outro Giúdice, aproveitando essa ausência, iria assaltar nossa casa. A sorte de meus pais é que foram prevenidos a tempo: logo que minha mãe recebeu o aviso do marido através de um homem de confiança, reuniu os nossos pastores e pôs-se ela mesma à espera, de carabina em punho, apoiada a um pequeno quadrado de madeira recortado na janela. Por sua vez, meu pai, na montanha, tomou as precauções necessárias. Desse modo, quando o ataque foi executado, encontrou os dois De Franchi bem defendidos.
"Após cinco minutos de luta, os dois irmãos Giúdice tombavam mortos, um atingido por meu pai e outro por minha mãe. Meu pai olhou o relógio: eram exatamente onze horas. Em sua casa, por uma estranha coincidência, minha mãe fez o mesmo gesto: eram exatamente onze horas: A raça dos Giúdice fora exterminada ao mesmo tempo."
Luciano deu um suspiro e continuou:
   A partir desse dia vitorioso, a família De Franchi, depois de quatro séculos de luta, passou então a viver tranqüilamente, nunca mais se envolvendo em nenhuma contenda. Para celebrar o combate final, meu pai mandou gravar nas duas carabinas a data    e a hora do acontecimento, pendurando-as lado a lado. Sete meses depois minha mãe teve dois gêmeos: este montanhês da Córsega que aqui vê e seu irmão Luís, o cosmopolita.
  Sinto que você lamenta ter nascido tarde demais para participar da vendetta com os Giúdice, hem Luciano? — brinquei eu.
Ele deu uma gargalhada.
  Talvez tenha razão — respondeu. — Confesso que a vida aqui na Córsega anda um pouco monótona para o meu gosto.
  Por que não começa outra luta? Dê um soco no queixo de seu vizinho, chame Luís e ponha novamente a família De Franchi em pé de guerra!
Nova risada de Luciano.
  Por favor — disse —, deixe o pobre Luís fora disso. Não há ninguém que tenha mais horror à violência do que ele. Acho que não concordaria com a sua proposta. Além disso, meu vizinho é um santo homem e meu parceiro de cartas pelo menos duas vezes por semana.
Foi a minha vez de rir.
  Bem, já que é seu parceiro de cartas, vamos poupá-lo; não. . .
Fomos interrompidos por um leve ruído atrás de nós. Olhamos imediatamente naquela direção. Numa parte do terreno iluminada pelo luar destacavam-se as sombras de um homem e de um cachorro. Eram Orlandi e nosso amigo Diamante.
Nesse exato momento ouvimos o sino do relógio de Sullacaro bater nove badaladas com lentidão.
Fiquei impressionado com" a pontualidade do bandido: este seguia à risca o exemplo de Luís XIV, para quem a exatidão no cumprimento dos horários era a polidez dos reis. E quem seria mais rei daquela áspera região montanhosa do que Orlandi, que conhecia todos os seus recantos?
Luciano e eu nos levantamos, dirigindo-nos para o homem que esperava.



CAPÍTULO 8



O BANDIDO ORLANDI


Está   acompanhado,   Sr.   Luciano?      perguntou   o bandido.
  Não se preocupe com ele — respondeu o rapaz. — Este senhor é um amigo meu que ouviu falar sobre você e quis conhecê-lo. Achei que não devia recusar-lhe este prazer.
  Nesse caso, seja bem-vindo — disse Orlandi, inclinando-se educadamente.
Correspondi ao cumprimento como se estivesse ante o rei de França, pois sei como os corsos são rígidos em matéria de etiqueta. O bandido deu alguns passos em nossa direção.
  Já estão aqui há muito tempo? — perguntou.         
  Há uns vinte minutos — respondeu Luciano.
  Ah, por isso ouvi os uivos de Diamante no Mucchio e há uns quinze minutos ele está comigo. É um cachorro fiel, hem, Sr. Luciano?
  Isso mesmo, Orlandi. Diamante é um excelente animal — falou Luciano, enquanto acariciava o pêlo macio do cachorro.
O pensamento tanto de Orlandi quanto de Luciano voara para o antigo dono de Diamante que jazia agora no Mucchio. Na minha cabeça, entretanto, se formava uma pergunta.
Voltei-me para Orlandi.
  Se sabia que Luciano estava aqui — perguntei —, por que não apareceu antes?
  Porque o nosso encontro estava marcado para as nove horas — disse ele — e é tão impontual chegar quinze minutos antes como quinze minutos depois.
  Está me censurando, Orlandi? — perguntou rindo Luciano.
  Não, de modo nenhum; o senhor pode ter tido algum motivo para modificar seus hábitos. Além disso, veio acompanhado, e talvez tenha sido por causa deste senhor que sua pontualidade se alterou. Sei melhor do que ninguém como é rigoroso quanto aos horários; graças a Deus o senhor tem se incomodado bastante por minha causa...
  Deixemos isso para lá, Orlandi; esta vez será provavelmente a última.
O rosto de Orlandi assumiu uma expressão meio constrangida.
  Temos algo a conversar sobre isso, não? — perguntou o bandido com voz sumida.
  Sim, se quiser acompanhar-me. . .
  Estou às suas ordens.
Luciano virou-se para mim.
  Vai desculpar-me, não é? Nossa conversa será rápida.
  Por favor, fique à vontade!
Ambos se afastaram, dirigindo-se para uma parte do terreno bastante iluminada pela lua. As duas silhuetas fariam um bom alvo para seus inimigos, pensei com meus botões.
Pus-me a observar sobretudo Orlandi com atenção. Era um homem alto, de grande barba, e vestia-se exatamente como o jovem De Franchi. A única diferença é que sua roupa mostrava vestígios de um contato prolongado com o mato e os espinhos. Por várias vezes fora obrigado a fugir dos gendarmes corsos através da vegetação cerrada, o que causara aos seus trajes alguns rasgões.
A poeira cobria também, numa camada fina, as calças e a camisa, pois Orlandi dormia todas as noites no chão, sob as estrelas.
Não consegui entender uma só palavra do que diziam: primeiro porque estavam a uns vinte passos de mim e segundo porque falavam o dialeto corso, do qual eu não sabia patavina.
Compreendi, entretanto, pelos gestos enérgicos de Orlandi, que o bandido recusava algo que lhe era dito por Luciano. Este não parecia se abater; começava tudo de novo com uma calma que mostrava bem sua imparcialidade diante do assunto.
Aos poucos, os gestos de Orlandi foram ficando menos freqüentes e mais calmos; suas palavras eram pronunciadas num tom menos alto até que afinal se transformaram num murmúrio. A última frase de Luciano foi recebida pelo bandido com um balançar afirmativo de cabeça. Depois disso, Orlandi estendeu a mão ao rapaz e ambos puseram-se a caminhar em minha direção.
  Meu caro — disse-me Luciano —, Orlandi deseja apertar-lhe a mão para agradecer-lhe.
  Agradecer-me o quê?
  Ter consentido em ser um de seus padrinhos. Prometi-lhe isso em seu nome.
  Se você lhe prometeu algo em meu nome, aceito sem nem mesmo saber do que se trata.
Estendi a mão a Orlandi, que me honrou com a ponta dos dedos.
  Alexandre — falou Luciano para mim —, agora poderá dizer a meu irmão que tudo está resolvido, de acordo com a vontade dele. Haverá até mesmo um contrato entre as duas partes para você assinar. E talvez um casamento.
  Sim? — exclamei eu, espantado.
Luciano sorriu.
  Já, já, não — respondeu. — Mas é provável que aconteça. Bonomi Orlandi e Graziella Colona simpatizam um com o outro e fariam um belo par.
O bandido fechou a carranca.
  Ora, Orlandi — censurou-o Luciano. — Sabe muito bem que o coração passa por cima das velhas brigas entre as famílias. Além disso, os moços não dão um caracol pelas tradições. E talvez até mesmo estejam com a razão — suspirou.
 A ver meu filho casado com uma Colona — respondeu Orlandi — preferiria trancafiá-lo no celeiro pelo resto de sua vida. Paz sim, já que o senhor tanto insiste sobre isso, mas casamento jamais.
  Respeito suas razões, Orlandi, mas repito que fariam um magnífico casal, ainda que isso possa aborrecê-lo. Mas falemos de outra coisa.
Luciano virou-se para mim.
  Ouviu alguma coisa enquanto falávamos?
  A conversa entre você e Orlandi? Claro que sim — respondi.
  Não me refiro à conversa. Não ouviu o cacarejar de um faisão bem perto de nós?
  Ouvi, mas não imaginei que aquele ruído fosse produzido por um faisão.
  Pois foi — confirmou Orlandi. — Há um faisão empoleirado no grande castanheiro que o Sr. Luciano conhece, a cem passos daqui. Eu o ouvi quando passei, momentos atrás.
  Nesse caso — disse Luciano, contente —, vamos tratar de comê-lo amanhã.
Orlandi cocou a cabeça.
  Ele já estaria no chão se eu não temesse que na aldeia pensassem: "Já está Orlandi atirando num Colona".
  Não se preocupe, Orlandi — disse Luciano. — Mandei Grifo avisar em Sullacaro que talvez caçássemos um pouco. Por falar nisso — continuou o rapaz, voltando-se para mim —, cedo-lhe a vez.
  Por favor, Luciano. Faço absoluta questão de comer minha parte do faisão amanhã, e seu tiro deve ser mil vezes mais certeiro do que o de um pobre parisiense — falei.
Luciano riu.
  Bem — disse ele —, atirar deve ser uma das poucas coisas que um "pobre corso" faz melhor do que um "pobre parisiense". Além disso, você não deve ter o hábito, muito comum entre nós, de caçar à noite, e certamente atiraria baixo demais. De qualquer modo, se não tiver nada para fazer amanhã de manhã, poderá tirar a sua desforra.


CAPÍTULO 9


A VENDETTA FRACASSADA


Abandonamos as ruínas e fomos nos internando no mato em declive. Luciano, com a espingarda engatilhada, marchava à frente.
Quando entramos num bosque de castanheiros, o faisão pôs-se novamente a cacarejar. Imóveis, procuramos nos guiar pelo ruído: o faisão se escondia entre os ramos de uma árvore cercada por arbustos espessos e de difícil acesso, a uns oitenta passos de distância.
Toquei o ombro de Luciano.
 Como poderá se aproximar sem que ele o ouça? — perguntei. — Vai ser difícil.
  É verdade — respondeu-me, após um momento. — Se ao menos eu pudesse enxergá-lo, atiraria daqui mesmo.
  Daqui? Sua espingarda é tão poderosa que mata faisões a oitenta passos de distância?
  Com chumbo, não. À bala, sim.
   Ah! Então, ainda bem que não sou eu quem vai atirar.
   Quer ver o faisão? — perguntou Orlandi.
   Sim. Precisamos comê-lo amanhã — respondeu Luciano.
  Espere um momento.
Orlandi levou as duas mãos junto à boca e pôs-se a imitar o cacarejo da fêmea do faisão.
Pouco depois percebemos um movimento entre as folhas do castanheiro. O faisão subia de ramo em ramo, respondendo com cacarejos ao apelo que lhe fazia Orlandi.
Finalmente, bem no alto da árvore, surgiu ele. Sua forma destacava-se perfeitamente visível contra o céu. A emoção por termos conseguido que a ave aparecesse me fez estremecer.
Orlandi calou-se. O faisão ficou imóvel, como se pressentisse que algo de estranho se passava.
Felizmente Luciano não perdeu tempo. Empunhou a espingarda e após um rápido momento em que fez uma perfeita pontaria, atirou.
O faisão foi acertado em cheio. Confesso que não pude evitar um grito de alegria, logo acompanhado pelas providências que se toma diante de uma caça tombada.
  Vai buscá-lo — gritou Luciano a Diamante.
O cachorro não esperou segunda ordem: meteu-se pelos arbustos cerrados e dali a cinco minutos voltou com o faisão na boca. A bala atravessara-lhe o corpo.
   Que belo tiro, Luciano! — exclamei eu. — Você é um campeão.
  Ora! Grande vantagem! — disse Luciano. — Um dos canos é raiado e dispara as balas como uma carabina.
  Não importa. De qualquer modo esse tiro merecia um primeiro lugar em qualquer concurso.
  Com uma carabina mesmo — disse Orlandi —, o Sr. Luciano acerta a trezentos passos numa moeda de cinco francos.
  Você atira com pistola tão bem como com a espingarda? — perguntei a Luciano.
  Mais ou menos — respondeu. — Consigo atingir com seis balas entre doze a lâmina de uma faca colocada a vinte e cinco passos de distância.
Dei um assobio.
  Seu irmão é tão bom no gatilho quanto você, Luciano?
  Meu irmão? Pobre Luís! Acho que não consegue nem distinguir uma espingarda de uma pistola. Meu medo é que se envolva em alguma dificuldade em Paris e, por ser valente, deixe-se matar para não desonrar seu nome e o nome de sua terra.
Luciano abriu sua sacola e ajeitou cuidadosamente o faisão lá dentro.
  Bem, meu caro Orlandi — disse ele —, então até amanhã.
  Até amanhã, Sr. Luciano.
  Sei que você é pontualíssimo: às dez horas, você, seus amigos e parentes estarão no extremo da rua, não é assim? Do lado da montanha, à mesma hora, no extremo oposto, Colona chegará com o pessoal dele. Nós estaremos na escadaria da igreja.
  Muito bem, Sr. Luciano. Obrigado por tudo que tem feito. E ao senhor, cavalheiro — disse Orlandi, estendendo-me a mão —, obrigado pela honra que me dá em ser meu padrinho.
Apertamo-nos as mãos e nos separamos. Orlandi tornou a se internar no mato enquanto caminhávamos em direção à aldeia.
Nesse momento, notei uma coisa curiosa: Diamante ficou indeciso entre Orlandi e nós, olhando ora para a esquerda, ora para a direita. Depois de alguns instantes, afinal resolveu nos dar a honra de sua companhia.
Chegara para mim o terrível momento de descer a encosta pedregosa; quando a subira, pensara com meus próprios botões de que modo a desceria, pois, mesmo apesar da lua, eu poderia despencar com facilidade lá de cima: bastava tropeçar num acidente do terreno.
Felizmente Luciano adivinhou os meus temores, enveredando por um caminho diferente daquele pelo qual viéramos.
Como a descida era branda, sem os sacolejões da subida, podíamos conversar. Ainda não tínhamos dado cinqüenta passos quando me deixei arrastar pelas perguntas, como sempre.
  Então, as pazes entre as duas famílias foram feitas?
  Sim. Ufa!  Que trabalho me deram! Consegui convencer Orlandi dando-lhe a entender que todos os esforços partiram dos Colona. Em primeiro lugar eles tiveram cinco homens mortos, ao passo que os Orlandi só tiveram quatro. Os Colona concordaram ontem com a reconciliação, mas os Orlandi só hoje deram o seu consentimento. Os Colona prometeram devolver publicamente uma galinha viva aos Orlandi, num gesto que prova o reconhecimento do antigo erro. Esta última parte foi que decidiu Orlandi a se reconciliar com o inimigo.
  E amanhã é que tudo será resolvido?
  Sim, amanhã às dez horas. Até que o senhor teve sorte, não é, já que esperava ver uma vendetta!
Teve um riso amargo.
  Bela vendetta! Há quatrocentos anos não se ouve falar de outra coisa na Córsega. De qualquer forma, verá uma reconciliação, coisa muito mais rara que uma vendetta.
Pus-me a rir.
— Você tem toda a razão de se rir de nós: somos mesmo uma gente muito esquisita!
  Não, não é isso. Estou rindo porque está furioso consigo mesmo de ter conseguido o término da briga Orlandi-Colona. Ah, Luciano, acho impossível alguém ser mais corso do que você!
  Pois gostaria que visse com que eloqüência defendi o restabelecimento da paz. É pena que o assunto, além de ter sido conversado em particular com o chefe de cada família, foi todo discutido em dialeto corso. Mas volte daqui a dez anos — concluiu — e fique certo de que todo o mundo falará francês.
Fiquei em silêncio, observando meu companheiro enquanto caminhávamos.
  É admirável o amor que você tem por esta terra, Luciano — falei. — Você é um excelente advogado da Córsega.
  Não, não. Sou apenas um árbitro; Luís empenhou a minha palavra: pois bem. Tentei cumprir a missão do melhor modo possível, sem deixar que minha opinião sobre o assunto interferisse na solução do caso. Se me nomeassem juiz entre Deus e o Diabo procuraria fazer com que chegassem a um acordo, embora no íntimo estivesse convencido de que Deus, dando-me ouvidos, estaria cometendo uma grande tolice.
Percebendo que esse tipo de conversa irritava muito Luciano, tratei de mudar de assunto. Como por seu lado ele não tentou alimentá-lo, caminhamos em silêncio durante algum tempo.
Estava eu imerso em meus pensamentos quando o som de um tiro me sobressaltou. Olhei imediatamente para Luciano, que se imobilizara. Imitei-o, voltando o rosto na direção do som. O eco de um novo tiro cortou os ares, desta vez seguido de intensa fuzilaria.
  Orlandis e Colonas puseram-se a brigar novamente! Meu Deus, o que terá acontecido com Grifo? — exclamou Luciano. — Por que não avisou que íamos caçar?
Sua voz mostrava-se extremamente aflita. Um calafrio de emoção me percorreu a espinha de alto a baixo. Se o próprio Luciano, acostumado desde criança a essas reviravoltas corsas, estava tão nervoso, é que a situação deveria ser de uma seriedade absoluta.
  O que poderá fazer para contornar a situação, Luciano? — perguntei.
  Não tenho a mínima idéia, Alexandre. De qualquer modo, tenho que voar para Sullacaro. Se estiver muito cansado para correr, volte tranqüilamente.
  De modo nenhum, Luciano. Vou com você.
É impossível descrever a rapidez com que disparamos pelos campos e bosques iluminados pela lua. Diamante, como sempre, ia na frente, animado por nossa correria.
Eu me esforçava ao máximo para não perder meu companheiro de vista: ele movia-se com a ligeireza de uma lebre, desviando-se de pedras e árvores, saltando fossos, superando enfim qualquer obstáculo que se atravessasse em nosso caminho. Um toco de árvore quase fez com que eu me estatelasse no chão, mas consegui recuperar o equilíbrio.
Metade movido pela curiosidade do que estaria acontecendo, metade movido pelo orgulho de poder acompanhar um corso àquela velocidade e em seu próprio terreno, sentia minhas roupas se rasgarem aqui e ali contra os galhos e meus sapatos se lascarem contra as pedras, mas nada me faria parar.
Já não tinha mais o mínimo fôlego quando Luciano diminuiu a corrida e pôs-se a caminhar. Ah! Como abençoei aquilo! Confesso que estava a ponto de estourar, a boca aberta e ressecada, o coração saltando fora do peito.
Luciano parou de todo, olhando para mim. Percebi então que parara para que eu pudesse descansar, não porque estivesse fatigado. Fiquei abismado. Eu nunca poderia competir com ele em seu terreno, pois meu companheiro nem sequer ofegava!
Agradeci-lhe mentalmente o gesto delicado, pois não podia pronunciar uma palavra.
Poucos momentos se haviam passado quando uma nova fuzilaria chegou a nossos ouvidos. Luciano estremeceu.
  Tenho que continuar! — disse ele, novamente recomeçando a correr.
Disparei no seu encalço, agora um pouco mais descansado. Felizmente já estávamos quase chegando ao local de onde partiam os tiros.
Luciano parou atrás de um grande muro de pedra para examinar a situação.
  Os Colona cercaram a casa dos Orlandi — murmurou ele. O pior é que Orlandi, com o barulho dos tiros, deve estar descendo a montanha como um tufão!
Depois de pensar durante um momento, Luciano galgou rapidamente o muro de pedra.
  Quer vir? — perguntou ele, estendendo-me a mão.
Não hesitei, e dois segundos depois estava também em cima do muro.       
Do muro, Luciano passou para um telhado próximo, situado quase à mesma altura do paredão de pedra. Pulamos mais alguns telhados, aproximando-nos cada vez mais da zona de fogo.
Luciano procurava fazer os movimentos o mais rápido possível e com o corpo curvado; imitei-o, imaginando que temia uma bala perdida.
Finalmente, diante de um pátio interno, meu companheiro parou: uma bala passou sibilando bem próxima de nós, o que nos obrigou a esconder-nos atrás de uma chaminé de tijolos vermelhos. Teríamos sido confundidos com o inimigo por alguma das duas famílias?
  Deite-se imediatamente e fique o mais possível atrás dessa chaminé! — murmurou Luciano. — É a nossa única chance!
Colei-me completamente ao telhado, procurando manter a cabeça atrás da chaminé. Nossas silhuetas recortadas pelo luar, entretanto, haviam chamado a atenção dos Orlandi, que despejaram a seguir sobre nós uma furiosa saraivada de balas.
O ombro de Luciano foi sacudido pelo impacto: um tiro o havia atingido. Meu companheiro levou rapidamente a mão ao ferimento, mas o sangue corria por entre seus dedos.
Fiquei em pânico, ali no alto daquele telhado, com Luciano ferido e as balas chovendo em torno de nós.
  Depressa! — disse ele. — Rasgue um pedaço de minha camisa e faça um torniquete. Tenho que pôr um fim a esta loucura de qualquer modo!
Minhas mãos tremiam, mas consegui fazer o que me pediu. Já com o ombro amarrado, Luciano apoiou a cabeça na chaminé; imaginava a dor que poderia estar sentindo e isso me tornava ainda mais nervoso.
Como sairíamos dali? Um suor frio grudava minha roupa no corpo. Pensei naquele instante que havia soado nossa hora.
Luciano arrastou-se o mais que pôde para dentro do pátio, embora grudado às telhas, e gritou:
  Ouçam-me, Orlandis! É Luciano de Franchi quem fala!
Os tiros, entretanto, impediam que fosse ouvido. Depois de suportar outra chuva de balas, arrastou-se novamente para o lugar onde estávamos antes. Dessa vez ofegava.
  O único jeito é tentar com os Colona! — falou. — Temos que voltar pelo mesmo lugar de onde viemos!
Rastejamos pelo telhado até nos pormos fora do alcance das balas que continuavam a cantar. Pulamos como dois macacos por todo o caminho de volta, e posso dizer que tivemos sorte. Com aquele tiroteio, devíamos até agradecer aos Orlandi por só terem atingido Luciano no braço!
Finalmente chegamos ao grande muro e descemos ao chão. Não sei como Luciano conseguiu a façanha, com o braço ferido, mas o fato é que lá estávamos nós correndo por entre as casas, nos aproximando cada vez mais da rua onde lutavam.
Subitamente, Luciano estacou, fazendo sinal para que parasse também. Obedeci com o coração batendo como um tambor: ficamos ali com a respiração presa, imóveis, esperando. O que teria notado o meu companheiro? Eu não ousava perguntar nada com medo que ouvissem, e olhava atentamente a rua com manchas de luar e zonas de sombra pelo chão.
De repente, ouvi um ruído quase imperceptível: a uns cinqüenta passos de distância, um vulto destacou-se da árvore junto à qual estivera abrigado e, correndo, pulou o portão de uma casa às escuras e que me pareceu em ruínas.
Era um Colona em busca de um lugar melhor para atirar, ou que procurava penetrar na casa dos Orlandi pela parte de trás. Seus movimentos foram acompanhados de intensa fuzilaria partindo das janelas e portas dos Orlandi, e respondida dos mais variados lugares. Puxa, havia Colonas em toda a parte! Atrás das chaminés das casas vizinhas, junto às árvores, colados aos muros; as pistolas cuspiam fogo de várias direções.
De repente compreendi o temor de Luciano: ele tinha medo de gritar e ser morto antes que soubessem de quem havia partido o grito. Do jeito como os ânimos estavam exaltados, Orlandis e Colonas atirariam no fantasma do próprio pai sem se perguntarem duas vezes!
Só havia uma solução, pensei comigo mesmo: era Luciano aproximar-se de um deles, agarrá-lo tapando-lhe a boca e dizer-lhe no ouvido: — Sou Luciano de Franchi. É claro que a solução era arriscada, mas eu não via outra.
Luciano pareceu adivinhar meu pensamento. Pronunciou um "Espere aqui" quase inaudível e começou a mover-se em direção ao renque de árvores que dividiam em duas partes as ruas de Sullacaro.
Via seu vulto esgueirar-se agilmente por entre os grossos muros das casas próximas, torcendo de todo o coração para que não o percebessem. Depois não vi mais nada: Luciano fora engolido pela enorme sombra formada pelas árvores.
Apurei o ouvido, enquanto o suor frio grudava minha roupa ao corpo. A angústia pelo que poderia acontecer a meu amigo tornava-me a boca seca e as pernas trêmulas. Entretanto, desconhecendo o modo corso de emboscada e não estando habituado àquele gênero de coisas, qualquer tentativa de ajuda de minha parte só poderia atrapalhá-lo. Além disso, que diriam aqueles exaltados habitantes de Sullacaro ao verem um estrangeiro imiscuindo-se em seus negócios? Somente Luciano tinha autoridade para fazê-lo.
Ao mesmo tempo, sua única chance de conseguir apanhar um Colona era que este o tomasse por um deles. Via-se que aquela gente tinha um ouvido fino e não se deixaria pegar com facilidade.
De repente, uma idéia me ocorreu: e se tentasse chamar a atenção sobre mim? Havia uma chance de que Luciano pudesse atingir melhor seu objetivo se os Colona fossem atraídos por um ruído qualquer.
Assim pensando, apalpei o chão em busca de algumas pedras. Felizmente encontrei logo algumas muito boas para o que eu pretendia fazer; protegido pela esquina do muro, encomendei a alma a Deus e atirei as pedras a uns dez metros de distância.
Meu coração quase parou quando ouvi um ligeiro ruído à direita do lugar onde eu estava. Prendi inteiramente a respiração, esperando que a qualquer momento um Colona saltasse sobre mim e me esganasse.
Um minuto inteiro transcorreu sem que nada acontecesse. Provavelmente os Colona — depois de um momento de estranheza — me haviam tomado por um de seus parentes. O que teria acontecido a Luciano? Minha aflição aumentava a cada momento.
Como se fosse uma resposta à pergunta que eu fazia, um som parecido com um gemido veio do grupo de árvores mergulhado na sombra. Pouco depois, a voz desconhecida de um Colona gritou:
  Parem todos de atirar! Luciano de Franchi está. . .
Um tiro cortou-lhe as palavras. Era Orlandi que chegara! Emboscado no alto de um telhado e vendo sua casa cercada, resolvera agir sem demora.
O tiroteio que se seguiu foi espantoso. Balas passaram zunindo pelo meu ouvido e iam se cravar nas paredes de uma casa vizinha. Durante um minuto só se ouvia o barulho e só se via o fogo cuspido por carabinas e pistolas empunhadas pelas duas famílias.
Eu não podia recriminar os Colona, pois agora se defendiam da pontaria certeira de Orlandi. Quando os tiros diminuíram de intensidade, a voz de Luciano gritou:
  Orlandis e Colonas! É Luciano de Franchi quem fala! Parem imediatamente de atirar!
Dessa vez, por milagre, as armas silenciaram. Luciano não esperou mais:
  Houve um terrível engano! — gritou. — O tiro que ouviram na montanha foi disparado por mim contra um faisão! Orlandi não atirou em ninguém! Mandei que Grifo avisasse na aldeia sobre nossa caçada, mas algo deve ter acontecido a ele, pois não o fez! Não permitam que um engano ponha a perder o que havíamos combinado! Lembrem-se de suas esposas e filhos!
Silêncio.
De repente, uma voz gritou entre os Colona:
  Hei de arrancar o couro de todos os Orlandi se meu filho Giácomo foi morto por um tiro deles!
  Giácomo está vivo, Colona! O tiro passou-lhe de raspão pelo ombro! — gritou por sua vez Luciano.
  Se está vivo, que fale! — berrou Colona.
Uma voz mais jovem cortou a noite:
  É verdade, pai! A bala passou de raspão!
Um longo silêncio.
Novamente ouvi a voz forte de Colona:
   Quem mais está ferido entre nós? — perguntou.
Ninguém respondeu. Um estremecimento me percorreu. O silêncio podia ser tanto bom como mau. Houve uma movimentação entre as árvores, acompanhada de alguns murmúrios.
   Anselmo! — berrou a voz de Colona.
  Sim, pai! — respondeu alguém atrás da árvore mais distante.
  Napoleão! — gritou Colona, continuando o balanço de seus parentes.
   Aqui estou, tio!
   Federico!
  Tudo bem, Marco! — respondeu uma voz vinda do telhado em frente à casa atacada.
  Ferrúcio!
  Sim!
  Paolo!
  Sim!
Colona, com sua voz estentórea, continuou assim por mais cinco ou seis nomes. Eu estava completamente fascinado com aqueles velhos nomes italianos berrados através da noite corsa, e espantadíssimo ao ver que respondiam de lugares que eu nunca teria imaginado estarem ocupados por Colonas.
Quando o último nome respondeu, respirei, aliviadíssimo. O mesmo alívio que Luciano deveria estar sentindo naquele momento.
  Há alguém ferido em minha casa? — rugiu Orlandi, com uma voz de trovão que ribomba nas montanhas.
  Não, pai! — respondeu alguém de dentro dos muros.
Minha alegria não tinha limites. Ali estava a primeira chance para se fazer a paz novamente, coisa que teria sido dificílima ou talvez impossível se alguém tivesse sido morto ou gravemente ferido.
  Orlandi e Colona! — gritou de novo Luciano. — Felizmente ninguém ficou ferido com esse terrível engano! Sejamos sensatos. Vamos celebrar a paz que estava marcada para amanhã como se nada houvesse acontecido! Tudo permanece como antes!
Um silêncio gelado acolheu as palavras de Luciano. Este sentiu que era preciso algo mais para convencê-los depois de toda aquela guerra. Saiu então de trás da árvore onde se escondia e postou-se bem debaixo do luar.
De onde eu estava, via sua silhueta bem proporcionada, a cabeça de cabelos revoltos.
   Onde está, Colona? — falou bem alto. — Quero falar com você.
Alguns segundos se passaram antes que uma voz, vinda de trás de um muro, afinal respondesse.
Luciano abandonou a claridade do luar e internou-se na sombra, ao encontro do som que ouvira.
Longos minutos de espera se escoaram, durante os quais só ouvíamos as vozes abafadas de Colona e Luciano. Às vezes uma ou outra palavra em dialeto chegavam ao meu ouvido, mas isso de nada adiantava: o dialeto corso era e é bastante incompreensível para este parisiense.
Finalmente as vozes cessaram e ouviu-se um barulho de passos. Luciano retornou à claridade e gritou:
   Orlandi, onde está você?
— Aqui! — respondeu Orlandi, do alto de um telhado não muito longe de onde eu me encontrava.
  Desça um momento, por favor!
Depois de um ou dois minutos que pareceram a eternidade, ouviu-se um rumor de passos sobre telhas: era Orlandi descendo, provavelmente de carranca fechada e com muita má vontade.
Luciano fez com ele o mesmo que havia feito com o chefe da outra família: confabularam durante algum tempo em voz baixa, com algumas palavras mais altas, como ovelhas que tentam escapar ao controle do pastor.
Depois disso, Luciano expôs-se novamente sob o luar.
  Que os Colona voltem tranqüilos para sua casa, então! — gritou.   — Que os Orlahdi fiquem também tranqüilos dentro de seus muros! Tenho a palavra dos chefes de ambas as famílias. Graças a Deus não aconteceu nada de grave e a paz será celebrada amanhã, exatamente como havíamos combinado antes!
Alguns segundos depois os Colona saíam de trás de árvores, muros e chaminés e desceram a rua, passando pela antes temida zona enluarada. Enquanto andavam, guardavam no cinto as pistolas ainda quentes do tiroteio.
Saí de meu lugar e me dirigi ao encontro de Luciano.
  Ufa! — exclamou ele, sorrindo. — Pensei que não pudesse conseguir!  Tanto  Colona quanto  Orlandi  estavam empedernidos como ursos. Em vez de paz, queriam era beber o sangue do inimigo!
   Agora está tudo certo!
  Esperemos que sim! Creio que o tiro que me deram os amoleceu um pouco.
De repente, lembrei-me do ferimento de Luciano, do qual eu imperdoavelmente havia me esquecido. O rapaz segurava o ombro com a mão esquerda, para que houvesse o mínimo de trepidação possível. Toda a minha aflição voltou:
  Luciano! — disse eu. — Vamos imediatamente ao médico!
  Sim, sim. Pelo menos há certeza de uma coisa: ele deve estar acordado!
O som de sua risada foi interrompido provavelmente pela dor.
Andamos até a casa do médico, uma casa grande e bem típica da Córsega. O homem extraiu a bala do ombro de Luciano, fez uma bandagem decente e ordenou-lhe repouso.
Quando saímos de lá, Sullacaro parecia adormecida: nada indicava a tremenda refrega de pouco tempo atrás.
  Pois é assim a Córsega, meu caro! — disse Luciano, quando lhe comuniquei minha observação espantada. — Mansa num momento e feroz no minuto seguinte.
Depois, mudando de assunto, disse, preocupado:
  Não sei o que pode ter acontecido com Grifo! É o criado mais leal de minha casa, e nunca se esqueceu de qualquer ordem que lhe desse!
Andamos em silêncio o resto do caminho até a casa dos De Franchi, sem que nos ocorresse qualquer explicação para o comportamento do criado.
A Sra. de Franchi esperava a volta do filho, sentada em imponente cadeira de alto espaldar. Sua calma me surpreendeu: o temperamento passional que possuía fora provavelmente temperado por muitos anos de vendetta e de acontecimentos difíceis, e controlado por sua altivez.
Levantou-se da cadeira e veio ao nosso encontro.
  A bala foi extraída, meu filho? — perguntou, ao ver seu ombro enfaixado. — Como te sentes, Luciano?
  Estou bem, minha mãe.
Ela o olhou agudamente.
  E o "senhor? — perguntou, voltando-se para mim. — Deve estar morto de cansaço. Vou mandar que preparem água quente e depois lhes sirvam uma boa ceia.
  Agora não, minha mãe. Onde está Grifo? — perguntou Luciano, com a fisionomia preocupada.
  Não sei. Desapareceu logo depois que vocês partiram. Disse que você o mandara avisar na aldeia que talvez caçassem. Depois disso não retornou.
  Alexandre — resolveu Luciano, rapidamente —, vou procurar Grifo. Não pense em me acompanhar, pois sei que deve estar exausto depois de nossa excursão e tantas emoções. — Sorriu e continuou, depois de um momento: — Tome um banho e faça uma boa ceia. Logo estarei de volta.
  Nem pense que irá sozinho — decidi. — Eu o acompanharei. Isto é, se não há nenhum inconveniente em que eu também vá.
Luciano olhou-me nos olhos, visivelmente satisfeito.
  Já que é assim — disse —, vamos logo. Até já, minha mãe.
A Sra. de Franchi o abençoou com um sinal-da-cruz e novamente saímos para a noite enluarada.
  Bem, para a aldeia Grifo não foi — disse Luciano —, senão já o teria sabido.
Ficou um momento em silêncio, pensando. De repente bateu na testa:
  Ah! Já sei. Por alguma razão, que desconheço, ele deve ter ido atrás de mim. Vamos tentar o nosso caminho de antes.
Andamos algum tempo sem falar, palmilhando a mesma trilha que nos levara às ruínas do castelo de Vicentello d'Istria.
Havíamos subido já um bom pedaço quando uma voz, como se vinda da terra, chegou até nós. Paramos subitamente e ficamos à espreita, enquanto eu tentava sufocar as batidas fortes de meu coração. O que seria aquilo?
Como nada mais se ouvisse a não ser os ruídos típicos da noite, continuamos a andar. Não tínhamos dado cinco passos quando a voz novamente gritou, desta vez audivelmente.
   Aqui! Aqui!
  É a voz de Grifo! — exclamou Luciano. — Vamos!
Corremos na direção do som, que vinha do que me pareceu um buraco no chão.
  Grifo deve ter caído numa das armadilhas de caça espalhadas por Orlandi pela montanha — falou Luciano.
Quando chegamos ao pé do buraco, meu companheiro gritou:
  Grifo! Você está bem?
  Senhor Luciano! Que alegria ouvir sua voz! É o céu que o manda, pois já contava passar o resto dos meus dias no raio dessa cova!
  Está machucado?
— Tenho um tornozelo deslocado e não consigo andar, senhor. Mas acho que não quebrei nenhum dos ossos!
  Vamos tirá-lo daí imediatamente.
Virou-se para mim:
  Alexandre, vou descer ao buraco para ajudar Grifo. Você, auxilie-nos aqui de cima.
  De modo nenhum! — atalhei. — Você fica aqui em cima e eu desço.
Alguns momentos depois de "puxa daqui!", "segura de lá!", Grifo e eu nos encontramos sãos e salvos na superfície do solo. É verdade que o pobre Grifo quase não podia caminhar, e pior seria se tivesse quebrado uma perna ou mesmo o pescoço. Apoiando-se em mim e em Luciano, conseguiu, à custa de alguma dor, chegar até em casa.
Depois de um bom banho quente e uma abundante ceia, fomos imediatamente para a cama. Durante muito tempo, em meu sonho, ainda pulei de telhado em telhado para escapar às balas mortíferas com que enfurecidos corsos desejavam me mandar para o outro mundo. Também no sonho tive sorte, e acordei ileso.

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