segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Capítulos 1 ao 5

CAPÍTULO I

1801. -- Acabo de regressar da visita que fiz ao meu
senhorio -- o único vizinho que poderá perturbar o meu
isolamento. Esta região é sem dúvida magnífica! Sei que não
poderia ter encontrado em toda a Inglaterra outro lugar como
este, tão retirado, tão distante da mundana agitação. Um
paraíso perfeito para misantropos: Mr. Heathcliff e eu próprio
formamos a parceria ideal para partilhar esse isolamento. Um
tipo formidável, este Heathcliff! Mal ele sabia como eu
transbordava de cordialidade quando os seus olhos desconfiados
se esconderam sob os cílios, ao ver-me cavalgar na sua
direcção, e quando os seus dedos resolutos e ciosos se
acoitaram mais fundo nos bolsos do cole e quando lhe disse o
meu nome.
-- Estou a falar com Mr. Heathcliff? -- perguntei.
Aquiesceu com a cabeça.
-- Sou Mr. Lockwood, o seu novo inquilino. Quis ter a
honra de vir visitá-lo logo após a minha chegada, para lhe
apresentar as minhas desculpas e lhe dizer que espero não o
ter importunado demais com a minha insistência em alugar a
Granja dos Tordos: constou-me ontem que o senhor tinha dito
que...
-- A Granja dos Tordos é propriedade minha, meu caro senhor
-- atalhou ele, arredio -- e, se puder evitá-lo, não permito
que ninguém me importune. Entre!
Este «entre» foi proferido entre dentes e o sentimento que
exprimia era mais um «_Vá para o Diabo»; até a cancela a que
se arrimava se quedou imóvel, insensível ao convite. Convite
que, acho eu, acabei por aceitar movido pelas circunstâncias:
acicatava-me a curiosidade este homem que parecia, se
possível, ainda mais reservado do que eu.
Só quando viu os peitorais do meu cavalo forcarem a
cancela, é :, que tirou a mão do bolso e abriu o cadeado,
subindo depois o trilho lamacento à minha frente, cabisbaixo.
Ao chegarmos ao pátio,
-- Joseph, leva o cavalo de Mr. Lockwood e traz-nos vinho.
«_A criadagem está reduzida a isto, certamente», pensei eu,
ao ouvir a ordem dupla. «_Não admira que a erva cresça por
entre o lajedo e as sebes tenham de ser podadas pelo gado».
Joseph era um homem já de certa idade, melhor dizendo, já
um velho, bastante velho até, se bem que de rija têmpera.
-- Valha-me Deus! -- resmungou, com voz sumida e enfadada,
quando me segurou o cavalo, ao mesmo tempo que me fitava com
um ar tão sofredor que eu, caridosamente, imaginei que ele
devia precisar da ajuda divina para digerir o jantar e que
aquele piedoso arrazoado nada tinha a ver com a minha visita
inesperada.
Alto dos Vendavais é o nome da propriedade onde Mr.
Heathcliff vive, nome da tradição local, só por si revelador
da inclemência climatérica a que o lugar está exposto durante
as tempestades. Ar puro e vento revigorante é coisa que não
falta a quem vive lá no alto: adivinha-se a força das nortadas
que varrem as cristas das penedias pela acentuada inclinação
de alguns abetos raquíticos que guarnecem as traseiras da
casa e pelo modo como os espinheiros do cercado estendem os
seus braços descarnados todos na mesma direcção, como se a
implorarem ao sol a dádiva de uma esmola. Afortunadamente, o
arquitecto teve visão suficiente para construir a casa sólida
-- as janelas estreitas foram escavadas fundo na pedra e as
esquinas protegidas por grandes pedras em cunha.
Antes de transpor a entrada principal, detive-me a admirar
as figuras grotescas que ornamentavam profusamente a fachada,
concentradas sobretudo à volta da porta, sobre a qual,
perdidos num emaranhado de grifos e meninos despudorados,
consegui lobrigar uma data - 1500 -- e um nome -- *_Hareton
Earnshaw*. Bem me apetecia tecer alguns comentários e pedir ao
sorumbático proprietário que me fizesse uma breve história do
lugar, mas a sua atitude
junto a porta parecia exigir que, das duas uma, ou entrasse
sem detença ou me fosse de vez embora, e longe de mim a ideia
de lhe aumentar a impaciência antes de poder apreciar o
interior.
Entrámos directamente para uma sala sem passarmos por
nenhum vestíbulo ou corredor -- a sala-comum, como aqui lhe
chamem. Inclui geralmente a cozinha e a sala de estar, mas
creio que no Alto dos Vendavais a cozinha teve de ser
transferida para :, outra parte da casa; pelo menos, ouvia-se
lá para dentro um grande burburinho de vozes e o bater de
tachos e panelas; também não detectei na enorme lareira
quaisquer vestígios de assados ou cozinhados de panela, nem vi
pendurados nas paredes os reluzentes tachos de cobre ou os
passadores de folha. Numa das paredes de topo, a luz e o
calor das labaredas reflectiam-se em todo o seu esplendor nas
grandes bandejas de estanho e nos cangirões e pichéis de prata
que, em filas alternadas, subiam até às telhas dispostos num
enorme louceiro de carvalho. O telhado não tinha
forro, exibindo-se em toda a sua nudez aos olhares curiosos,
excepto nos locais onde ficava escondido atrás de uma
prateleira suspensa cheia de bolos de aveia, ou atrás de
presuntos fumados, de vitela, carneiro e porco, que pendiam
das traves em fiadas. Por cima da chaminé enfileiravam se
velhas escopetas já sem préstimo e um par de pistolas de
arção, e, sobre o rebordo, à guisa de enfeite, três latas de
chá pintadas de cores garridas. O chão era de lajes brancas e
polidas. As cadeiras eram antigas, de espaldar, pintadas de
verde, havendo também um ou dois cadeirões negros e
pesados, semi-ocultos na sombra. Num nicho do louceiro estava
deitada uma enorme cadela de caça de pêlo avermelhado escuro,
rodeada por uma ninhada de cachorrinhos barulhentos, e havia
ainda mais cães instalados noutros recantos.
A casa e a mobília nada teriam de extraordinário se
pertencessem a um simples lavrador do Norte de Inglaterra, de
forte compleição e pernas musculosas, calções apertados nos
joelhos e um belo par de polainas. Indivíduos desses, sentados
nos seus cadeirões, com uma caneca de cerveja a transbordar
de espuma pousada na mesa redonda à sua frente, encontram-se
aos pontapés por estes montes, num raio de cinco ou seis
milhas, se chegarmos na hora certa, ou seja, depois do jantar.
Mr. Heathcliff, porém, contrasta
singularmente com o ambiente que o rodeia e o modo como vive.
É um cigano de pele escura no aspecto e um cavalheiro nos
modos e-no trajar, ou melhor, tão cavalheiro como tantos
outros fidalgotes rurais um pouco desmazelado talvez, sem
contudo deixar que essa negligência o amesquinhe no seu porte
altivo e elegante, se bem que taciturno. Alguns acusá-lo-ão de
orgulho desmedido, mas eu tenho um sexto sentido que me diz
que não se trata disso -- instintivamente, sei que a sua
reserva provem de uma aversão inata à exteriorização de
sentimentos e à troca de demonstrações de afecto. É capaz de
amar e de odiar com igual dissimulação e de considerar :,
impertinência a retribuição desse ódio ou desse amor -- Espera
lá, estou a ir depressa de mais -- Acho que lhe atribuí, com
toda a liberalidade, os meus próprios atributos. Mr.
Heathcliff pode ter razões completamente diferentes das que me
assistem para se
esquivar a apertar a mão a alguém que acaba de conhecer. O
defeito é capaz de ser meu -- a minha saudosa mãe costumava
dizer que eu nunca havia de conhecer o conforto de um lar, e
ainda o Verão passado provei ser perfeitamente indigno de o
possuir.
Estava eu a saborear um mês de ameno lazer à beira-mar,
quando fui apresentado à mais fascinante das criaturas uma
deusa em carne e osso -- sem que ela, todavia, reparasse em
mim. Nunca lhe confessei abertamente o meu amor, mas, se é
verdade que os olhos falam, até um idiota teria percebido que
eu estava perdidamente apaixonado. Finalmente, ela acabou por
entender e devolveu-me o olhar com o olhar mais terno que se
possa imaginar. E que fiz eu? É vergado ao peso da vergonha
que o confesso: retrai-me timidamente como um caracol,
mostrando-me mais frio e distante a cada olhar seu, até que a
pobre inocente começou a duvidar do que os
seus olhos lhe diziam e, perante o vexame do erro cometido,
convenceu a mãe a irem-se embora mais cedo.
Esta estranha mudança de atitude valeu-me a fama de coração
empedernido, fama essa que só eu sei quão imerecida é.
Sentei-me do lado da lareira oposto àquele para onde se
dirigira o meu senhorio e preenchi os momentos de silêncio que
se seguiram tentando afagar o pêlo da cadela que, entretanto,
abandonara a ninhada para se aproximar ameaçadoramente das
minhas pernas pela retaguarda, como uma loba, de dentes
arreganhados a escorrer
saliva, ávidos por uma dentada.
A festa que lhe fiz teve como resposta uma rosnadela
gutural e prolongada.
-- É melhor não se meter com ela -- rosnou Mr. Heathcliff
em uníssono, dando-lhe um pontapé para evitar alguma
demonstração mais feroz. -- Ela não está acostumada a afagos,
nem é cão de estimação.
Depois dirigiu-se a passos largos para uma porta lateral e
chamou de novo:
-- Joseph!
Joseph respondeu qualquer coisa lá dos confins da adega,
mas, como não dava sinais de subir, o patrão resolveu ir ter
com ele e :, desapareceu pela escada abaixo, deixando-me na
companhia da temível cadela e de mais dois cães ovelheiros,
de pêlo hirsuto e ar de poucos amigos, que com ela ciosamente
vigiavam todos os meus movimentos. Sem vontade nenhuma de
entrar em contacto com as suas
presas afiadas, deixei-me ficar sentado, muito quieto.
Achando, porém, que eles não iam entender insultos tácitos,
tive a infeliz ideia de me pôr a piscar os olhos e a fazer
caretas ao trio que se postava à minha frente; nisto, algo na
minha fisionomia irritou a *madame* a tal ponto que, num
acesso de raiva, se atirou a mim. Rechacei-a para longe e
apressei-me a colocar a mesa entre nós dois, expediente que
enfureceu o resto da matilha; meia dúzia de adversários de
quatro patas, de todos os tamanhos e idades, acorreram ao
centro da sala, vindos dos mais variados esconderijos.
Percebendo que os meus tornozelos e as bandas do casaco eram
os seus alvos preferidos, e embora conseguisse, com algum
êxito, manter os mais corpulentos à distância com a ajuda do
atiçador, vi-me obrigado a gritar para que alguém me viesse
ajudar a restabelecer a ordem.
Porém, tanto Mr. Heathcliff como o criado subiram as
escadas da adega com humilhante fleuma. Não creio que tenham
demorado um segundo menos que o habitual, apesar de se estar
a desencadear à volta da lareira uma verdadeira tempestade de
rosnados e latidos.
Felizmente alguém se mostrou mais lesto na cozinha; uma
mulher de fartas carnes, saia arregaçada, braços nus e rosto
afogueado, lançou-se para o meio da confusão de sertã em
punho, servindo-se tão bem dela e da língua como armas, que a
tempestade amainou como por magia e, quando o dono da casa
chegou ao pé de nós, só ela restava, arfante, como o mardepois
de um furacão.
-- Mas que barulho dos diabos vem a ser este? -- perguntou
Mr. Heathcliff, olhando-me de um modo que me era difícil
suportar depois de acolhimento tão pouco hospitaleiro.
-- Dos diabos, diz muito bem! -- ripostei. -- A vara
bíblica de porcos endemoninhados não podia estar possuída de
espíritos piores que os destes seus animais. Isto é o mesmo
que atirar um visitante para o meio de um bando de
tigres!
-- Eles não atacam se as pessoas não mexerem em nada
-- retorquiu o dono, pousando a garrafa à minha frente e
voltando a colocar a mesa no seu lugar. -- A obrigação deles é
manterem-se vigilantes. Aceita um copo de
vinho? :,
-- Não, obrigado.
-- Não lhe morderam, pois não?
-- Se me tivessem mordido, o responsável levava que contar.
O semblante de Heathcliff descontraiu-se num sorriso.
-- Vá lá, Mr. Lockwood! Vejo que está transtornado. Beba um
pouco de vinho. As visitas são tão raras nesta casa que, estou
pronto a admiti-lo, eu e os meus cães quase nem sabemos
recebê-las. A sua saúde!
Retribuí o brinde com um cumprimento, começando então a
perceber que seria ridículo mostrar-me ofendido com os
desmandos de meia dúzia de cachorros; além disso, detestava a
ideia de ver o homem continuar a rir-se à minha custa, já que
para aí me parecia virado.
Ele, por seu turno, considerando muito sensatamente que
seria desaconselhável ofender um bom inquilino, e fugindo um
pouco ao seu estilo lacónico, com omissão de pronomes e verbos
auxiliares, procurou um tema de conversa que a seu ver me
interessasse, e pôs-se a discorrer sobre as vantagens e
desvantagens do lugar que eu escolhera para me isolar do
mundo.
Achei inteligente o modo como abordou os vários assuntos e,
antes de me vir embora, senti-me encorajado a alvitrar uma
nova visita no dia seguinte.
Ele, evidentemente, não mostrou vontade nenhuma de que a
minha invasão se repetisse. Mas eu vou, mesmo assim. É
espantoso como, comparado com ele, me sinto sociável.

CAPÍTULO II

Ontem, a tarde instalou-se fria e brumosa. Era minha
intenção passá-la em casa, à lareira, em vez de arrostar com
lodaçais e matos até ao Alto dos Vendavais.
Porém, quando subi para o meu quarto depois do jantar
(_N._B. Janto entre o meio-dia e a uma hora; a governanta, uma
matrona que me foi legada por acréscimo com a casa, não foi
capaz de compreender, ou não quis, o meu pedido de que o
jantar fosse servido às cinco horas), com esta ideia
preguiçosa a germinar-me no espírito, deparei-me ao entrar
com uma criada de joelhos, rodeada de escovas e baldes de
carvão, a atirar pazadas de cinza para apagar as brasas da
lareira e a fazer uma poeirada dos diabos. Este espectáculo
fez-me voltar para baixo imediatamente; pus o chapéu na
cabeça e, ao cabo de quatro milhas de caminhada cheguei à
cancela da propriedade de Heathcliff, mesmo a tempo de escapar
aos primeiros flocos esvoaçantes de um
nevão.
Ali, no alto daquele monte desnudo e desolado, a terra era
dura, coberta de negra geada, e o ar frio fazia-me tremer até
aos ossos. Como não consegui abrir o cadeado que a fechava,
saltei a cancela e, metendo pelo caminho empedrado orlado de
groselheiras mal tratadas, bati em vão para que me abrissem a
porta, até ficar com os dedos dormentes e ouvir os cães a
ladrar cada vez mais.
-- Malditos! -- pensei Bem merecem ficar eternamente
isolados dos da vossa espécie por tanta falta de
hospitalidade. Eu, pelo menos, nunca manteria as portas
trancadas durante o dia. Quero lá saber, vou mas é
entrar! :,
Meu dito, meu feito -- agarrei a aldraba e toca de a rodar
com veemência. Joseph, com o seu ar avinagrado, deitou a
cabeça de fora de uma das janelas redondas do celeiro.
-- A qu.é que vossemecê vem? berrou ele. -- O patrão está
p.rós lados do curral. Vá de roda até lá «baixo se vossemecê
quer falar co. ele.
-- Não há ninguém em casa para abrir a porta? gritei, em
resposta.
-- Só a patroa, e essa não lh.abre a porta nem que
vossemecê fique p.raí a bater até ser noite.
-- Essa agora! E você não lhe pode dizer quem eu sou,
Joseph?
-- T.arrenego! Eu cá não tenho nada a ver com isso --
resmungou a cabeça, desaparecendo em seguida.
A neve caía agora com mais intensidade. Quando agarrei na
aldraba para insistir mais uma vez, surgiu no pátio das
traseiras um rapagão em mangas de camisa e de forquilha ao
ombro, que me gritou que fosse com ele; depois de passarmos
pelo lavadouro e por uma zona empedrada onde havia um depósito
de carvão, uma bomba de água e um pombal, chegámos finalmente
à enorme sala, alegre e aquecida, onde fora recebido da
primeira vez.
Toda a sala resplandecia agora, copiosamente iluminada e
aquecida por uma grande fogueira de carvão, turfa e lenha, e,
junto à mesa posta para uma abundante refeição de fim do dia,
tive o prazer de ver a «patroa», pessoa de cuja existência eu
nunca antes suspeitara.
Cumprimentei-a com uma vénia e aguardei, na esperança de
que me convidasse a sentar. Mas ela limitou-se a olhar para
mim, recostando-se ainda mais na cadeira e mantendo-se muda e
queda.
-- Que tempo este! -- observei -- Receio, Mrs. Heathcliff,
que a sua porta sofra as consequência; da incúria dos criados;
tive um trabalhão para que me ouvissem
bater!
Ela nem abriu a boca. Eu olhava-a fixamente -- ela
olhava-me fixamente. Melhor dizendo, não tirava de mim o seu
olhar frio e distante, assaz embaraçoso e desagradável.
-- Sente-se -- disse o rapaz com maus modos. -- Ele não
tarda por aí.
Obedeci; pigarreei e chamei pela malvada da Juno que nesta
segunda visita se dignou abanar a cauda, em sinal de
reconheci mento. :,
-- É um belo animal! -- voltei eu à carga -- A senhora está
a
pensar desfazer-se dos cachorros?
-- Não são meus -- disse a minha afável anfitriã, em tom
ainda mais agressivo do que o próprio Heathcliff teria sido
capaz.
-- Ah, então os seus favoritos são estes ? -- continuei,
apontando para uma almofada escura coberta de algo parecido
com gatos.
-- Estranha escolha a sua... -- observou ela, jocosa.
Infelizmente, tratava-se de um monte de coelhos mortos.
Pigarreei outra vez e cheguei-me mais para a lareira,
renovando os meus comentários à tarde tempestuosa.
-- O senhor não devia ter saído de casa -- observou ela,
levantando-se e esticando-se para tirar de cima da chaminé
duas das tais latas pintadas.
Até aí ela havia-se mantido na sombra, mas agora podia
vê-la com toda a nitidez e colher uma imagem perfeita da sua
figura e do seu porte. Era esbelta e ainda quase uma menina.
Um corpo de formas admiráveis e o rosto mais delicado que me
fora dado contemplar: traços finos, de grande beleza.
Caracóis louros, ou melhor, dourados, caindo soltos sobre a
nuca delicada, e uns olhos que, fossem eles mais doces na
expressão, seriam irresistíveis; para o meu coração sensível,
felizmente, o único sentimento que deles se desprendia pairava
algures entre o escárnio e um quase desespero, algo de tão
singular e anti-natural, que eu jamais esperaria encontrar
ali.
As latas pareciam fora do seu alcance e fiz por isso menção
de a ajudar; mas ela fuzilou-me com o olhar, qual avarento a
quem alguém oferecesse ajuda para contar as moedas.
-- Não preciso de ajuda -- ripostou. -- Sou perfeitamente
capaz de lá chegar sozinha.
-- Peço-lhe que me perdoe -- disse de imediato.
-- Foi convidado para o chá? -- perguntou, colocando um
avental sobre o vestido preto irrepreensível e mantendo uma
colher cheia de folhas de chá suspensa sobre o bule.
-- Aceito uma chávena com muito prazer -- retorqui.
-- Foi convidado? -- insistiu.
-- Não -- admiti, esboçando um sorriso. A senhora é a
pessoa mais indicada para me fazer o convite.
Deitou o chá de novo para dentro da lata, com colher e
tudo, e voltou a sentar-se, amuada, de sobrolho franzido e
lábio inferior :, descaído, a fazer beicinho, prestes a
irromper em lágrimas como uma criança.
Entretanto, o rapaz tinha ido enfiar um casaco visivelmente
puído e, todo empertigado junto à lareira, olhava para mim de
soslaio, com desdém, como se existisse entre nós alguma
ofensa mortal ainda não desagravada. Comecei a duvidar de que
fosse mesmo um criado: a indumentária e a linguagem eram pouco
cuidadas, completamente isentas da elevação de Mr. e Mrs.
Heathcliff; o cabelo castanho, espesso e encaracolado, era
áspero e sem preparo, as suíças avançavam-lhe pelas faces como
barba e as mãos estavam
curtidas do sol como as de um qualquer cavador; no entanto, a
sua postura revelava um grande à-vontade, dir-se-ia que uma
quase arrogância, e não dava mostras da diligência com que um
criado costuma servir a dona da casa.
Na ausência de provas concludentes da sua condição, achei
melhor abster-me de tecer comentários à sua estranha conduta
e, passados cinco minutos, a chegada de Heathcliff veio de
certa forma salvar-me da situação embaraçosa em que me
encontrava.
-- Como vê, meu caro senhor, aqui estou, conforme prometi!
-- exclamei, revestindo-me de cordialidade. -- E receio que o
mau tempo me obrigue a ficar mais meia hora, se o senhor puder
dar-me abrigo durante esse tempo.
-- Meia hora? disse ele, sacudindo os flocos brancos que
lhe salpicavam as roupas. Não entendo como se meteu a um nevão
destes para vir até aqui. Não sabe que corre o risco de se
perder no meio dos pântanos? Até as pessoas que conhecem bem
estas paragens se perdem muitas vezes em dias como este; e
garanto-lhe que o tempo não vai mudar tão depressa.
-- Talvez algum dos seus criados me possa servir de guia, e
depois pernoitar na Granja e voltar amanhã; será que me pode
dispensar um?
-- Não, não posso.
-- Ah, estou a ver. Bom, então vou ter de confiar no meu
sentido de orientação.
-- Pfff!
-- Vais ou não vais fazer o chá? -- perguntou ele ao rapaz
do casaco puído, desviando depois o olhar irado de mim para a
jovem senhora.
-- E *ele* também toma? -- perguntou ela, virando-se para
Heathcliff. :,
-- Despache-se com isso! -- foi a resposta, proferida com
tal violência que estremeci. O tom em que as palavras haviam
sido ditas revelava um caracter intrinsecamente mau. Já não me
sentia nada inclinado a chamar a Heathcliff um tipo
formidável.
Quando os preparativos terminaram, ele convidou-me a tomar
chá, com um:
-- Vá, meu caro senhor, traga para aqui a cadeira. --
Então,
todos nós, incluindo o rapaz de aspecto boçal, nos sentámos à
volta da mesa, guardando o mais austero silêncio enquanto
saboreávamos a refeição.
Foi nessa altura que pensei que, se era eu quem ensombrava
o ambiente, era minha obrigação fazer um esforço para o
desanuviar. Não era possível que todos os dias se sentassem à
mesa tão cabis baixos e taciturnos, e era impossível, por
mais mal dispostos que estivessem, que aquelas caras de poucos
amigos os acompanhassem diariamente.
-- É estranho -- comecei, aproveitando a pausa entre a
chávena que acabara de beber e a que de novo me serviam -- É
estranho como o hábito consegue moldar os nossos gostos e as
nossas ideias; para muitos seria inconcebível a existência de
felicidade numa vida tão completamente exilada do mundo como a
que o senhor leva, e, no entanto, atrevo-me a dizer que aqui,
rodeado da sua família e com a sua encantadora esposa como
fada reinante no seu lar e no
seu coração...
-- A minha encantadora esposa! interrompeu ele, com um
sorriso quase diabólico -- Onde está ela, essa encantadora
esposa?
-- Refiro-me a Mrs. Heathcliff, à sua esposa.
-- Ah, estou a ver. Quer o senhor dizer que o espírito dela
assumiu o papel de anjo protector e velará pelo destino do
Alto dos Vendavais mesmo quando o seu corpo desaparecer. É
isso?
Dando-me conta do disparate que tinha dito, tentei
corrigi-lo. Devia ter percebido que havia entre eles uma
diferença de idades muito grande para serem marido e mulher:
ele andava pelos quarenta anos, idade em que a maturidade de
espírito raramente deixa os homens ceder à ilusão de que as
raparigas mais novas casam com eles por amor, sonho esse que
está reservado aos anos
de declínio e solidão; e ela nem dezassete parecia ter.
Então fez-se luz: «_Espera lá, este idiota aqui ao meu
lado, a beber o chá por uma tigela e a comer o pão com as mãos
todas :, sujas, é bem capaz de ser o marido dela. É o
Heathcliff Junior, claro. Ora aqui está o resultado de se ser
enterrada em vida: ela entregou-se a este labrego por
desconhecer completamente que existem homens melhores! Um dó
de alma; tenho de ter cuidado
para não a fazer arrepender-se da escolha».
Esta última reflexão pode parecer presunçosa, mas não é.
A impressão em mim deixada pelo rapaz sentado ao meu lado
tocava as raias da repulsa, e eu sabia, por experiência, que
era um homem razoavelmente atraente.
-- Mrs. Heathcliff é minha nora -- explicou Heathcliff,
confirmando as minhas suspeitas, ao mesmo tempo que olhava
para ela de um modo sinistro, com o olhar carregado de ódio, a
menos que os seus músculos faciais sejam tão perversos que se
recusem, ao contrário dos das outras pessoas, a interpretar a
linguagem da alma.
-- Ah, claro, agora percebo; é o senhor o feliz
proprietário desta fada benfazeja -- corrigi, virando-me para
o rapaz sentado ao meu lado.
O resultado foi ainda mais desastroso: o rapaz corou
subitamente e cerrou os punhos numa atitude de agressão
iminente. Mas logo se controlou, dissipando a fúria numa praga
resmungada entredentes e que me era dirigida, mas a que tive o
cuidado de não responder.
-- Pouco afortunado nas suas conjecturas, meu caro senhor!
-- observou o meu anfitrião. -- Nenhum de nós tem o privilégio
de ser o dono da sua boa fada; o marido dela morreu. Acabei de
lhe dizer que ela é minha nora, portanto deve ter casado com o
meu filho.
-- E este jovem é...
-- Meu filho é que ele não é certamente!
Heathcliff sorriu de novo, como se tivesse sido ousadia
demais atribuir-lhe a paternidade de um tal brutamontes.
-- O meu nome é Hareton Earnshaw -- grunhiu o outro -- e
aconselho-o a respeitá-lo!
-- Não incorri em desrespeito -- respondi, rindo-me
interiormente da dignidade com que ele se apresentara.
Os seus olhos fitaram-me longamente, para lá do que me era
dado suportar, e desviei o olhar, não fosse eu sentir-me
tentado a dar-lhe um soco ou a dar voz à minha hilariedade.
Começava a sentir-me indubitavelmente a mais naquele acolhedor
ambiente :, familiar. A atmosfera sinistra pesava-me na alma,
neutralizando por completo o conforto e o aconchego físico que
me rodeavam, e resolvi pensar duas vezes antes de voltar a
abrigar-me uma terceira sob aquele tecto.
Acabada a refeição, e como ninguém proferisse uma só
palavra para alimentar a conversa, aproximei-me de uma janela
para ver como estava o tempo.
O que vi foi um espectáculo de desolação: a noite prestes a
fechar-se prematuramente e o céu e os montes irmanados no
mesmo turbilhão sufocante de neve e vento.
-- Não creio que seja possível voltar agora para casa sem
um guia -- não pude deixar de exclamar. -- As estradas já
devem estar cobertas de neve, e mesmo que estivessem
desimpedidas, não veria um palmo à frente do nariz.
-- Hareton, leva aquelas ovelhas para o coberto do celeiro.
Se passarem a noite no redil, ficam tapadas com a neve; e
coloca uma tábua à frente delas -- ordenou Heathcliff.
-- E eu, o que é que eu faço? -- insisti, com crescente
irritabilidade.
A minha pergunta ficou sem resposta; e, olhando em volta,
vi apenas Joseph, a acartar um balde de comida para os cães, e
Mrs. Heathcliff, inclinada sobre o lume, entretida a queimar
um monte de fósforos que tinham caído da chaminé quando voltou
a remeter a lata de chá ao seu lugar.
O primeiro, mal largou a sua carga, esquadrinhou a sala com
ar crítico e matraqueou asperamente, entrecortando as
palavras:
-- Pasmo como vossemecê pode estar aqui ao lume sem fazer
nada, quando toda a gente anda lá por fora! Mas vossemecê não
presta para nada, e nem vale a pena falar consigo. Vossemecê
nunca s.á-de emendar; e há-de ir p.ró inferno como a sua mãe!
Por instantes pensei que esta peça de retórica me fosse
dirigida e, com justificada indignação, avancei para o velho
insolente disposto a corrê-lo dali para fora a pontapé.
Porém, a resposta de Mrs. Heathcliff deteve o meu gesto.
-- Não passas de um velho hipócrita e desavergonhado! --
exclamou. Não tens medo de que o Diabo te venha buscar de cada
vez que pronuncias o seu nome? Já te avisei para não me
provocares, senão ainda lhe peço o especial favor de te levar
de vez. Pára com isso, estás a ouvir, Joseph -- prosseguiu
ela, tirando de uma estante um livro comprido de capa preta
Vou mostrar-te os :, progressos que fiz na Magia Negra: em
breve estarei apta a exorcizar esta casa. A vaca ruça não
morreu por acaso; e as tuas crises de reumático não são de
certeza bênçãos do céu!
-- Ah, maldita, grande maldita! gemeu o velho. -- Que o
Senhor nos livre de todo o mal!
-- Não, alma danada! Tu é que estás condenado; desaparece,
se não queres ver o que te acontece! Transformo-vos a todos em
bonecos de barro e cera; e o primeiro que passar dos limites
por mim impostos há-de... Não, não vou dizer o que lhe vai
acontecer... Logo verás! Vá desanda, olha que estou de olho
alerta!
Os belos olhos da bruxazinha cintilaram de malícia e Joseph
saiu apressado, a tremer de genuíno pavor, enquanto rezava e
repetia «maldita», «maldita».
Pensando que a atitude da jovem não passara de uma
brincadeira, se bem que um tanto sinistra, e uma vez que
tínhamos ficado a sós, procurei partilhar com ela a minha
angústia.
-- Mrs. Heathcliff -- disse, com todo o respeito, --
peço-lhe
que me perdoe se a incomodo, mas com esse seu rosto, tenho a
certeza que só sabe fazer o bem. Por favor dê-me alguns
pontos de referência que me permitam encontrar o caminho de
casa; sem eles, sou tão capaz de lá chegar, como a senhora de
chegar a Londres!
-- Volte pelo caminho que o trouxe -- respondeu ela,
afundando-se num cadeirão, com uma vela acesa ao lado e o tal
livro comprido à sua frente. -- O conselho não servirá de
muito, mas é o melhor que tenho para lhe dar.
-- Mas, depois, quando ouvir dizer que me encontraram morto
num pântano ou atolado de neve num barranco, a sua consciência
não lhe segredará ao ouvido que parte da culpa é sua?
-- Minha como? Eu não posso acompanhá-lo. Eles não me
deixavam ir nem ao fundo do muro da quinta.
-- A senhora tem cada uma! Nem eu seria capaz de lhe pedir
que pusesse o pé fora de casa numa noite destas por minha
causa -- exclamei. -- O que eu quero é que me *diga* qual é o
caminho, não que mo *mostre*; ou então que convença Mr.
Heathcliff a mandar alguém
acompanhar-me.
-- Mas quem? Aqui em casa só estamos: Mr. Heathcliff, o
Earnshaw, a Zillah, o Joseph e eu. Qual de nós prefere?
-- Então na quinta não há mais criados?
-- Não, estes são tudo o que temos.
-- Sendo assim, só me resta pernoitar aqui. :,
-- Isso é assunto para ser tratado com o dono da casa. Não
me diz respeito.
-- Espero que lhe sirva de lição! -- a voz de Heathcliff
soou
austera na entrada da cozinha. -- Quanto a pernoitar aqui,
devo informá-lo de que não tenho quarto de hóspedes; se
quiser, tem de dormir com o Hareton ou o Joseph.
-- Posso dormir aqui mesmo na sala, sentado numa cadeira --
retorqui.
-- Não pode, não. Um estranho é sempre um estranho, seja
ele rico ou pobre. Não me agrada que ande por aí alguém à
solta quando eu não estou por perto -- disse o infame,
rudemente.
Com este insulto, a minha paciência chegou ao fim.
Articulei um desagravo qualquer e saí porta fora como um
furacão; mas fi-lo com tal impetuosidade que fui esbarrar com
o Earnshaw no meio do pátio. A escuridão que me envolvia era
tão completa que não conseguia dar com a saída, e, enquanto
andava por ali às voltas, tive oportunidade de ouvir mais uma
conversa elucidativa da delicadeza com que esta gente se
tratava.
A princípio, o rapaz parecia estar a meu favor.
-- Vou com ele até ao parque -- alvitrou.
-- Vais mas é com ele até ao inferno! -- exclamou o patrão,
(ou o que quer que ele era ao rapaz) E quem dá de comer aos
cavalos, não me dizes?
-- A vida de um homem é mais importante do que deixar os
cavalos sem ração por uma noite; tem de ir alguém com ele
-- murmurou Mrs. Heathcliff, com inesperada
benevolência.
-- Eu não obedeço às suas ordens! replicou Hareton. -- Se
ele lhe interessa tanto, é melhor ficar calada.
-- Pois só espero que a alma dele te persiga; e que Mr.
Heathcliff não arranje mais nenhum inquilino até a Granja
estar a cair aos bocados! exclamou ela com veemência.
-- Olha, olha, ela está a rogar-lhes pragas! -- balbuciou
Joseph, em direcção ao qual eu me dirigira.
Estava ali a dois passos, sentado a ordenhar as vacas à luz
de uma lanterna a que eu, sem cerimónias, deitei a mão,
correndo em seguida para a cancela mais próxima, ao mesmo
tempo que gritava que mandaria devolver a lanterna no dia
seguinte.
-- Patrão! Patrão! Ele palmou a lanterna! berrou o ancião,
indo no meu encalço. Anda Gnasher! Vá, cão! Eh, Wolf! A ele, a
ele! :,
Mal deitei mão à cancela, dois monstros peludos saltaram-me
à garganta, atirando-me ao chão e apagando a lanterna, ao
mesmo tempo que, para cúmulo da raiva e da humilhação,
ouvia Heathcliff e Hareton rirem a bom rir.
Por sorte, os cães pareciam mais interessados em esticar as
patas, abrir as bocarras em longos bocejos e abanar as caudas
do que em devorar-me. Opunham-se, no entanto, a qualquer
tentativa que eu fizesse para me levantar, pelo que não tive
outro remédio senão deixar-me ficar deitado até os malditos
dos donos acharem por bem vir libertar-me. Nessa altura, sem
chapéu e tremendo de cólera, ordenei aos miseráveis que me
deixassem partir, sob pena de lhes acontecer o pior se me
retivessem ali por mais um minuto que fosse, e tudo isto
acompanhado de incoerentes ameaças de retaliação que, em toda
a sua confusa virulência, pareciam extraídas
*d._O Rei Lear*. (1)
Tamanha exaltação fez-me sangrar copiosamente pelo nariz, o
que tornou ainda mais sonoras as gargalhadas de Heathcliff e
mais veementes as minhas imprecações. E não sei como tudo isto
iria acabar, se não fosse ter aparecido alguém bem mais
racional do que eu e mais benevolente que o meu anfitrião.
Essa pessoa era Zillah, a robusta governanta, que acabou por
vir cá fora para saber qual a razão de tanto barulho. Pensando
que alguns deles me tivessem maltratado, e não ousando
admoestar o patrão, assestou a sua artilharia verbal contra o
patife mais novo.
-- Sim senhor, Mr. Earnshaw -- bradou ela, -- sempre quero
ver o que vai fazer a seguir! Agora também matamos gente à
nossa porta,? Estou a ver que esta casa não me serve...
Olhe-me p.ro pobre rapaz, quase sufocado! Vá, vá! Isto não
pode continuar... Vamos lá para dentro e eu trato de si.
Pronto, agora deixe-se ficar quieto.
E, dizendo isto, atirou-me à cara um copo de água gelada
que me escorreu pelo pescoço abaixo, e arrastou-me para a
cozinha. Mr. Heathcliff veio atrás de nós, tendo a sua alegria
acidental dado já lugar à costumeira taciturnidade.
Eu sentia-me extremamente mal, muito tonto e prestes a :,
\\\
(1) Cf. *_O Rei Lear*, Acto II, Cena 4:
As vinganças que vos reservo
Repercutir-se-ão pelo mundo -- coisas terríveis farei;
Que coisas serão, não sei; sei apenas que farão
Tremer a terra.
desmaiar, e, como tal, forçado pelas circunstâncias a aceitar
guarida sob o seu tecto. Ordenou a Zillah que me desse um copo
de aguardente e passou para o quarto interior. Ela,
entretanto, foi-me consolando da triste situação em que me
encontrava e, depois de cumprir a ordem recebida, o que me
ajudou a reanimar um pouco, levou-me até ao meu quarto.

CAPÍTULO III

Enquanto subia a escada à minha frente, Zillah foi-me
dizendo para esconder a vela e não fazer barulho, pois o
patrão tinha uma cisma especial pelo quarto onde eu ia
pernoitar e mostrava sempre grande relutância em alojar lá
alguém.
Perguntei qual o motivo.
Não sabia, respondeu; só lá trabalhava há um ou dois anos,
e, além disso, passavam-se coisas tão estranhas e eram tantas
as discussões, que ela não podia permitir-se ser curiosa.
Confesso que estava demasiado cansado para grandes
curiosidades. Fechei a porta do quarto e procurei a cama. A
mobília consistia numa cadeira, um roupeiro e uma enorme
armação de madeira de carvalho com aberturas quadradas na
parte superior, semelhantes a janelas de carruagem.
Aproximei-me daquela estranha armação e, espreitando, vi que
se tratava de um leito de outros tempos, extremamente original
e prático na concepção, estudado para obviar à necessidade de
cada membro da família ter um quarto só para si: de facto, a
referida peça formava como que um pequeno cubículo; estava
encostada a uma das janelas, cujo peitoril servia de
escrivaninha.
Corri os painéis laterais, entrei lá para dentro, levando a
vela comigo e voltei a fechá-los, sentindo-me protegido contra
a intromissão de Heathcliff ou de quem quer que fosse.
O tal parapeito, onde pousei a minha vela. continha alguns
livros velhos e bolorentos empilhados a um canto e estava
repleto de inscrições gravadas na madeira. Essas frases, no
entanto, limitavam-se a um único nome, escrito e repetido em
vários caracteres, grandes e pequenos: *_Catherine Earnskaw.
De vez em quando, o nome mudava para Catherine Heathcliff* ou
*_Catherine Linton*. :,
Dominado por uma preguiça indolente, encostei a cabeça à
janela e continuei a soletrar aqueles nomes: Catherine
Earnshaw... Heathcliff... Linton..., até que acabei por
adormecer. Porém, não tinham passado ainda cinco minutos
quando, de súbito, vindas do escuro, começaram a surgir letras
brancas, cintilantes, que pairavam no ar como fantasmas. No ar
volteava um enxame de «__Catherines»... Levantei-me,
gesticulando, para afugentar aquele nome tão incomodativo e
reparei que o pavio da vela estava a chamuscar a lombada de um
dos volumes, exalando um odor a pele queimada.
Tirei o morrão da vela e, incomodado pelo frio e náusea
persistentes, sentei-me e abri sobre os joelhos o volume
danificado. Era uma Bíblia, impressa em letra miudinha e com
um cheiro intenso a bolor e humidade. A folha introdutória
continha a inscrição «__Pertence a Catherine Earnshaw» e,
pela data que a acompanhava, percebi que o livro tinha um
quarto de século.
Fechei-o e escolhi outros volumes até que os examinei a
todos. A biblioteca de Catherine era extremamente seleccionada
e, dado o mau estado de conservação dos exemplares, devia ter
tido grande uso, embora nem sempre para uma leitura normal.
Poucos capítulos tinham escapado aos comentários a tinta --
pelo menos era o que parecia -- preenchiam por completo os
espaços em branco do
texto.
Havia algumas frases soltas; outras, pelo aspecto, pareciam
páginas de um diário, escritas com uma letra infantil e
bastante irregular. No cimo de uma página em branco, por
certo um tesouro para quem a vislumbrasse pela primeira vez,
deparei satisfeito com uma excelente caricatura do meu amigo
Joseph, extraordinariamente fiel, apesar dos traços
grosseiros.
Desde logo, comecei a sentir uma simpatia especial para com
esta desconhecida de nome Catherine, dedicando-me de imediato
à tentativa de decifrar aqueles hieróglifos quase
indecifráveis.
«__Que domingo horrível!» Era assim que começava o
parágrafo seguinte. «__Quem dera que o meu pai voltasse. O
Hindley é um substituto detestável. O seu comportamento para
com o Heathcliff é atroz. Eu e H. decidimos revoltar-nos. Esta
noite já demos o primeiro passo.
«__Hoje não parou de chover. Como não pudemos ir à missa, o
Joseph decidiu reunir os fiéis no sótão. Enquanto o Hindley e
a mulher estavam confortavelmente instalados frente à lareira,
fazendo mil e uma coisas excepto ler a Bíblia (tenho a certeza
:, absoluta do que digo), eu, o Heathcliff e o pobre do moço
da lavoura recebemos ordens para pegarmos nos nossos livros de
orações e, subirmos, e lá ficámos, sentados em fila sobre os
sacos de milho,
gemendo e tremendo de frio, desejando com toda a força que o
Joseph também sentisse frio e resolvesse abreviar a homilia.
Em vão! A missa durou precisamente três horas. E, ainda por
cima, o meu irmão teve a desfaçatez de exclamar, vendo-nos
descer: -- O quê, já acabou?
«__Antigamente, deixavam-nos brincar aos domingos à tarde,
desde que não fizéssemos muito barulho. Agora, uma simples
gargalhada é motivo para nos porem de castigo!
«_-- Esquecem-se de que quem manda aqui sou eu -- diz o
tirano. -- Destruirei o primeiro que se atreva a irritar-me!
Exijo o maior respeito e silêncio. O quê? Foste tu, não foste,
meu menino? Frances, querida, se o apanhares a jeito, puxa-lhe
o cabelo. Parece-me que o ouvi estalar os dedos.
«__Frances puxou o cabelo do rapaz com requintada malvadez.
Depois, sentou-se no colo do Hindley e assim ficaram, como
duas crianças tontas, beijando-se e dizendo tolices (frases
tão ridículas que teríamos vergonha de as repetir).
«__Tentámos aconchegar-nos o melhor que podíamos no nicho
do louceiro. Tinha eu acabado de improvisar uma cortina com os
nossos bibes quando, de repente, chegou o Joseph, vindo dos
estábulos. De imediato, destrói o meu trabalho e agarra-me
pelas orelhas, grunhindo:
«_-- O patrão ainda mal foi enterrado, o sábado ainda nem
terminou e a palavra do Evangelho ainda ecoa nos vossos
ouvidos, mas vós já vos divertis! Que vergonha! Sentai-vos,
miúdos dum raio! Lede, lede bons livros. Sentai-vos e meditai
sobre as vossas almas!
«__Depois, obrigou-nos a mudar de sítio para que, longe da
lareira, apenas pudéssemos receber um ténue raio de luz que
iluminasse a montanha de livros que nos atirou.
«__Isto foi demais para mim. Peguei naquele livro todo sujo
pela capa e arremessei-o para o cesto dos cães, gritando que
detestava livros bons.
«__O Heathcliff deu um chuto no livro dele, que foi parar
ao
mesmo sítio.
«__Foi o fim do mundo!
«_-- Master Hindley! -- gritou o nosso catequista -- Master
:, Hindley, venha ver! Miss Cathy deu cabo da capa do livro
*_O Escudo dla Salvação* e o Heathcliff deu um pontapé no
volume d.*_o Longo Caminho para a Destruição*! Não os vai
deixar ficar a rir, pois não? Ah! Se ao menos o velho patrão
fosse vivo. Esse é que lhes dava uma boa lição!
«__O Hindley ergueu-se do seu paraíso terrestre e,
agarrando-nos, um pela gola e o outro pelo braço, arrastou-nos
para a cozinha onde, segundo as profecias de Joseph, o Diabo
nos iria perseguir e castigar. Então, aliviados pela ameaça,
procuramos cada um o seu recanto seguro para aguardarmos a sua
chegada.
«__Peguei depois neste livro e num tinteiro que estava na
prateleira, escancarei a porta da sala para ter luz e pus-me
a escrever durante vinte minutos. Porém, o meu companheiro
estava impaciente e propôs que levássemos o capote da
leiteira para nos abrigarmos e fugíssemos para a charneca.
Que óptima ideia. Assim, quando aquele velho rabugento entrar
na cozinha e não nos vir, depressa concluirá que a sua
profecia se cumpriu. E, depois, é impossível ficarmos mais
encharcados ou com mais frio do que já estamos.»
Penso que Catherine conseguiu concretizar o seu plano, dado
que a frase seguinte refere uma situação nova: um rol imenso
de queixas e lamentos.
«__Nunca imaginei que o Hindley me fizesse chorar tanto!»,
escreve ela. «_Dói-me tanto a cabeça que mal a consigo deitar
na almofada. Apesar de tudo, não consigo deixar de chorar.
Pobre Heathcliff! O Hindley chama-lhe vagabundo e proibiu-o
de conviver ou fazer as refeições connosco. Além disso,
proibiu-nos de brincar, ameaçando expulsá-lo de casa caso
voltasse a desobedecer.
«_Tem andado a culpar o nosso pai (como é possível!) pelo
tratamento generoso que concedeu a H. E promete que o há-de
colocar no seu devido lugar.»
Comecei a cabecear com sono sobre aquela página esbatida. O
meu olhar perdia-se entre o manuscrito e o texto impresso.
Reparei num título, ornamentado a vermelho: *_Setenta Vezes
Sete, e O Primeiro da Septuagésima Primeira. Um piedoso sermão
proferido pelo :, Reverendo Jabes Branderham, na Capela de
Gimmerdem Sough*. E enquanto eu dava voltas à cabeça, tentando
adivinhar o teor do sermão de Jabes Branderham, recostei-me
no leito e adormeci.
Maldito chá e maldito feitio o meu! Que mais poderia ter
estragado a minha noite? Nunca me senti tão mal na minha
vida.
Comecei a sonhar ainda antes de perder a noção do tempo e
do espaço. Pensei que já tinha adormecido e que me dirigia
para casa, tendo Joseph como guia. A neve cobria por completo
a estrada e dificultava-nos a caminhada. À medida que
avançávamos a custo, o meu companheiro não parava de me
repreender pelo facto de eu não ter trazido um bordão de
peregrino. Afirmava com insistência que eu jamais poderia
entrar sem ele e brandia ameaçadoramente uma pesada clava,
como me pareceu que ele lhe chamava.
Por momentos, achei que era absurdo precisar de uma arma
daquelas para entrar na minha própria casa. Foi então que me
ocorreu uma outra ideia. Não era para casa que nos
dirigíamos, mas sim para irmos escutar o célebre sermão de
Jabes Branderham, a partir do texto *_Setenta Vezes Sete*. Por
outro lado, era certo e sabido que um de nós, ou eu ou
oJoseph, o catequista, estaríamos incluídos em *_O Primeiro da
Septuagésima Primeira* e iríamos ser denunciados e
excomungados publicamente.
Chegámos a uma capela. De facto, já havia passado por ela
duas ou três vezes nos meus passeios pelo campo. Fica num vale
elevado, situado entre duas colinas e próximo de um terreno
pantanoso, cuja mistura com a turfa permite, segundo dizem,
embalsamar os corpos aí enterrados. O tecto ainda se conserva
intacto. Porém, como este edifício de duas divisões corre o
risco de ficar reduzido a um só compartimento, e tendo em
conta que o estipêndio do pároco é de apenas vinte libras por
ano, depressa se conclui que nenhum padre quererá ser pastor
deste rebanho, sobretudo quando se sabe que os fiéis preferem
deixá-lo morrer de fome a contribuírem com um tostão que seja
dos seus bolsos. No entanto, no meu sonho, Jabes falava para
uma assembleia vasta e atenta que enchia por completo a
igreja. E como ele pregava... Santo Deus, que sermão!
Dividido em *quatrocentas e noventa* partes, cada uma das
quais de duração igual a uma homilia vulgar, versando sobre um
determinado pecado!
Sinceramente, não sei onde é que ele os fora buscar. Cada
frase era interpretada de forma peculiar, tentando convencer
os presentes de que cada pessoa comete vários pecados em
simultâneo. :,
Os pecados eram extraordinariamente estranhos.
Transgressões bizarras como eu nunca antes imaginara.
Ah! Que tédio imenso. Eu dava voltas na cadeira, bocejava e
cabeceava sonolento, tentando em vão manter-me desperto.
Belisquei-me vezes sem conta até fazer doer, para afastar o
sono, esfreguei os olhos, levantei-me, voltei a sentar-me e
chamei a atenção do Joseph para saber quando acabaria aquele
suplício!
Estava condenado a ouvir o sermão todo. Por fim, ele chegou
a *_O Primeiro da Septuagésima Primeira*. Então, assaltou-me
uma súbita inspiração. Levantei-me e denunciei Jabes
Branderham como autor de um pecado que nenhum cristão poderá
perdoar.
-- Reverendíssimo -- exclamei -- sentado entre estas quatro
paredes, tentei aguentar e perdoar, dentro dos limites do
humano, as quatrocentas e noventa partes do seu sermão.
Setenta vezes sete vezes estive prestes a pegar no meu chapéu
e ir-me embora. Setenta vezes sete vezes Vossa Reverência teve
o desplante de me obrigar a sentar; mas, agora que chegou à
quadrigentésima nonagésima primeira parte, é demais. Caros
companheiros de suplício, vamos a ele! Atirem-no ao chão e
façam-no em pedaços, para que «_a sua morada jamais o
reconheça» (1)
-- *_Tu és o Homem*! -- gritou Jabes, depois de uma pausa
solene, debruçando-se do púlpito. Setenta vezes sete vezes te
vi contorcer o rosto em sinal de desdém. Setenta vezes sete
vezes procurei encontrar explicação na minha alma. Vede, este
é um sinal da fraqueza humana e também ele será perdoado! *_O
Primeiro da Septuagésima Primeira* está aqui. Irmãos,
executem sobre ele a sentença prevista! Glória aos Santos do
Senhor.
Ao ouvir estas palavras, a assembleia começou a cercar-me,
brandindo os seus bordões de peregrinos; eu, indefeso, tentei
desarmar o Joseph, o mais mais próximo e feroz agressor; no
meio da confusão, vários paus se cruzaram no ar; algumas
pancadas que me eram destinadas atingiram outros. De repente,
a capela transformou-se num cenário brutal onde ecoavam
golpes e contra-golpes. :,
\\\
(1) Cf. Job, 7:10, «_Nem tornará mais a sua casa, nem o
lugar onde estava o conhecerá jamais».
Cada homem erguia a sua mão contra todos; (2) Branderham
desejoso de entrar em acção, empregava-se a fundo, batendo
violentamente no bordo do púlpito e produzindo um som tão real
que, para meu sossego, depressa me acordou.
Afinal, o que teria estado na origem de todo este tumulto?
E quem representara o papel de Jabes nesta luta? Apenas e
simplesmente uma pernada de abeto que, sacudida pela forte
ventania, batia com persistência na vidraça!
Pus-me à escuta por instantes. Depois, tendo detectado a
causa do distúrbio, voltei-me, adormeci e tive um novo sonho.
Um sonho, se possível, ainda mais estranho e desagradável que
o anterior.
Desta vez, lembro-me de que estava deitado neste
compartimento de carvalho e conseguia ouvir com clareza a
forte ventania e a inclemência da tempestade de neve. Escutava
ainda as irritantes pancadas dos galhos na janela, tendo
sossegado assim que percebi qual a sua causa. No entanto, o
som era tão incomodativo que, dentro do possível, resolvi
pará-lo. No meu sonho, levantava-me e tentava abrir a janela;
o fecho estava soldado ao encaixe da lingueta, algo que eu já
havia notado quando acordara, mas que entretanto esquecera.
«_Tenho de acabar com este barulho dê lá por onde der!»
resmunguei, impaciente. E foi assim que, com um soco, parti o
vidro, esticando em seguida o braço para agarrar o ramo.
Porém, contrariamente ao esperado, agarrei os dedos de uma
mão de criança, pequena e gélida!
Fiquei completamente aterrorizado pela intensidade do
pesadelo. Tentei largar a mão, mas ela agarrou-se ainda com
mais força. Subitamente, escutei uma voz extremamente
melancólica e triste, soluçando.
«_Deixe-me entrar, por favor, deixe-me entrar!»
«_Quem és tu?» perguntei, lutando desesperadamente para me
libertar da mão que me agarrava.
«_Catherine Linton» respondeu a voz, trémula (por que razão
é que me lembrara de *_Linton*? Afinal, tinha deparado mais
vezes com o apelido *Earnshaw* do que Linton). «_Voltei,
perdi-me nos brejos!»
\\\
(2) Cf. Genesis, 16:12. «_Este será um homem fero, cuja mão
será contra todos, e contra o qual terão todos a mão
levantada».
Na escuridão, consegui ver um rosto de criança olhando pela
janela. Então, o meu terror transformou-se em crueldade. Face
à :, impossibilidade de me libertar daquela criatura,
agarrei-lhe o pulso e rocei-o no vidro partido até o sangue
começar a escorrer, acabando por molhar os lençóis. Porém, a
estranha visão continuava a gemer «_Deixe-me entrar!»,
agarrando-se a mim com tal tenacidade que quase me enlouquecia
de pavor.
«_Como...?!» disse-lhe então. «_Larga-me, se queres que te
deixe entrar!»
Assim que os seus dedos se soltaram, retirei rapidamente a
minha mão e comecei a empilhar livros e mais livros contra a
janela, tapando os ouvidos para não ouvir mais os seus
lamentos.
Devo ter permanecido assim por mais de um quarto de hora.
Porém, mal os destapei, logo o choro triste e dolente
recomeçou.
«_Vai-te!» gritei. «_Nunca te deixarei entrar, nem que
implores durante vinte anos».
«_Vinte anos» lamentou-se, «_Há vinte anos que ando a
penar!»
De repente, ouvi um ligeiro ruído no lado de fora e a pilha
de livros mexeu-se, como se tivesse sido empurrada. Tentei
fugir, mas não me consegui mexer. Então, estarrecido, gritei o
mais alto que podia.
Envergonhado, descobri que a minha gritaria tinha sido bem
real. Passos apressados dirigiam-se para o meu quarto.
De súbito, alguém abriu a porta com violência e uma luz
bruxuleante iluminou o tecto da minha cama. Sentei-me ainda a
tremer, e limpei as gotas de suor que me inundavam a testa. O
intruso pareceu hesitar, e depois resmungou qualquer coisa.
Por fim, perguntou, quase num sussurro, como se não
esperasse uma resposta:
-- Está aí alguém?
Achei conveniente revelar a minha presença, na medida em
que, conhecendo o temperamento de Heathcliff, era certo e
sabido que ele iria continuar as buscas caso eu permanecesse
quieto.
Assim, voltei-me e corri os painéis laterais. Meu Deus, tão
cedo não esquecerei a reacção que o meu acto provocou.
Heathcliff estava perto da porta, de calças e camisa, com a
vela a pingar cera para cima dos seus dedos, e o rosto branco
como a cal. O primeiro rangido da madeira apanhou-o de
surpresa como um choque eléctrico. O castiçal saltou-lhe das
mãos e ele, dando mostras de grande nervosismo, quase não
conseguia apanhá-lo.
-- Sou eu, o seu hóspede -- gritei, tentando poupá-lo à
humilhação de constatar a sua cobardia. -- Infelizmente tive
um :, pesadelo terrível e devo ter gritado durante o sono.
Peço-lhe perdão se o incomodei.
-- Que diabo, Mr. Lockwood! Quem me dera que fosse... --
começou o meu anfitrião, pousando a vela numa cadeira, dado
que não conseguia parar de tremer.
Quem é que o instalou neste quarto? -- continuou, cravando
as unhas nas palmas das mãos e rangendo os dentes para parar
as convulsões do maxilar. -- Quem foi? A minha vontade era
expulsar imediatamente o responsável!
Foi a Zillah, a sua criada respondi, pondo-me de pé e
começando a vestir-me rapidamente. -- Não me importaria nada
que o fizesse, Mr. Heathcliff. Ela bem o merecia. Se queria
provar que o quarto é assombrado, então conseguiu-o. E à minha
custa. Meu Deus, isto está cheio de fantasmas e demónios!
Ainda bem que o mantém fechado. Ninguém lhe agradecerá tantas
e tão malfadadas emoções neste sítio infernal!
Que pretende dizer com isso? -- perguntou Heathcliff. -- E
o que é que está para aí a fazer? Deite-se e veja se dorme, já
que está *aqui*. Mas, por amor de Deus, não volte a repetir
esse barulho horrível! Nada o justifica, a menos que lhe
estivessem a cortar a garganta!
-- Se aquele diabinho tivesse entrado, ter-me-ia certamente
estrangulado! contestei. -- Já estou farto das perseguições
dos seus «_simpáticos» antepassados. Aposto que o Reverendo
Jabes Branderham era seu parente pelo lado da mãe. E aquela
serigaita da Catherine Linton, ou Earnshaw, ou lá como se
chamava, deve ter sido uma boa peste! Disse-me que andava a
vaguear na terra há vinte anos. Ora aí está um castigo mais do
que justo para os seus pecados mortais!
Tinha acabado de proferir estas palavras quando me lembrei
da ligação existente entre Heathcliff e a tal Catherine do
livro, facto que tinha descurado por completo. Corei de
vergonha perante tal desconsideração e, para disfarçar,
apressei-me a acrescentar:
A verdade, meu caro senhor, é que passei a primeira metade
da noite... -- Mas, detive-me, pois já ia a dizer: a analisar
estes livros velhos -- facto que revelaria, sem dúvida, o meu
conhecimento do seu conteúdo e anotações. Então,
corrigindo-me, continuei: -- Lendo vezes sem conta o nome que
se encontra gravado no peitoril da janela. Um passatempo algo
monótono, mas eficaz para adormecer, como quem conta carneiros
ou... :,
-- O que pretende o senhor *insinuar* ao dirigir-se-me
dessa forma? -- trovejou Heathcliff com uma veemência
irracional. -- Como, repito, como se *atreve* a tal debaixo do
meu tecto? Céus! Só pode estar louco para falar comigo dessa
maneira! -- rematou, dando uma palmada na testa, furioso.
Confesso que não sabia se havia de ficar ofendido com a sua
linguagem, ou se, pelo contrário, devia continuar com a minha
explicação, mas a verdade é que Heathcliff parecia ter ficado
tão abalado que me condoí a prossegui com a explicação dos
meus sonhos, afirmando que nunca tinha ouvido falar de
«_Catherine Linton». Porém, depois de ter lido o seu nome com
tanta frequência, este ter-me-á criado uma estranha sugestão
que se terá personificado assim que deixei de controlar a
minha imaginação.
À medida que prosseguia na minha explicação, Heathcliff
deixou-se cair aos poucos sobre a cama, acabando mesmo por se
sentar, quase escondido. Pela sua respiração irregular e
ofegante percebi que tentava com dificuldade conter uma forte
emoção.
Como não pretendia dar-lhe a entender que reparara no seu
estado emocional, continuei a vestir-me ruidosamente, olhei
para o relógio e deixei fugir o seguinte pensamento acerca
daquela noite infindável:
-- Ainda nem são três da manhã! Iria jurar que já eram
seis. Aqui o tempo pára. De certeza que se deitam às oito!
-- No Inverno deitamo-nos às nove e acordamos às quatro
-- disse o meu anfitrião, sufocando um soluço. Pelo movimento
da sombra do seu braço reparei que tentava limpar as lágrimas.
-- Mr. Lockwood -- acrescentou -- pode ir para o meu
quarto. Só vai atrapalhar, indo lá para baixo tão cedo. Além
do mais, graças à sua choradeira infantil, perdi por completo
o sono.
-- E olhe que eu também -- respondi. -- Vou passear para o
pátio até que amanheça e depois vou-me embora. E não precisa
de se preocupar mais com as minhas visitas. De momento, estou
perfeitamente curado desta minha mania de cultivar a vida em
sociedade, seja no campo ou na cidade. Um homem
verdadeiramente sensato encontra em si próprio a companhia de
que precisa.
-- Bela companhia, não haja dúvida! -- resmungou
Heathcliff. -- Pegue na vela e vá para onde quiser. Já vou ter
consigo. E não vá para o pátio, pois os cães estão soltos.
Também não pode ir para a sala, pois arrisca-se a encontrar a
Juno. Portanto, restam-lhe as :, escadas e os corredores. Vá,
homem, desande! São só mais dois
minutos!
Obedeci, pelo menos no tocante a sair do quarto. Porém,
como não conhecia os cantos à casa, parei. Foi nessa altura
que tive oportunidade de testemunhar involuntariamente uma
cena de superstição do meu senhorio nada condizente com a sua
personalidade.
Dirigiu-se para a cama, abeirou-se da janela e rebentou o
fecho, irrompendo de imediato num choro convulsivo.
-- Entra! Entra! -- soluçava Volta, Cathy, por favor. *_Só
mais uma vez*! Oh! Meu amor! Escuta-me ao menos *desta vez*!
Finalmente, Catherine!
O fantasma reagiu como qualquer fantasma que se preza em
situações semelhantes, ou seja, não apareceu. Mas o vento e a
nove não se fizeram rogados e, entrando em turbilhão, apagaram
a chama da vela que eu transportava.
Havia uma tal angústia naquela explosão de dor, que acabei
por esquecer a loucura que a movia e sentir compaixão por este
homem, retirando-me, meio zangado comigo mesmo por ter
escutado tudo e envergonhado, ao mesmo tempo, por lhe ter
contado o meu ridículo pesadelo, o responsável, afinal, por
toda aquela agonia, embora o *porquê* dessa evidência
estivesse para além da minha compreensão.
Desci cautelosamente para o andar inferior e fui dar à
cozinha, onde voltei a acender a vela nas brasas que restavam
na lareira.
Tudo estava em silêncio, exceptuando um gato cinzento
malhado que, saindo do borralho, me saudou com um «_miau»
lânguido e preguiçoso.
A lareira encontrava-se rodeada por dois bancos em
semi-círculo. Deitei-me num deles, enquanto Grimalkin (assim
se chamava o gato) tratou de se acomodar no outro. Ali
ficámos, dormitando confortavelmente, como se fôssemos donos e
senhores daquele refúgio, quando, nisto, apareceu Joseph,
descendo por uma escada de madeira que se perdia no tecto,
através de um alçapão que, segundo suponho, devia dar acesso
ao sótão.
Olhou de forma sinistra para o lume que eu havia ateado,
escorraçou o gato do banco e, sentando-se, começou a encher
um pequeno cachimbo com tabaco. A minha presença no seu
santuário era uma profanação demasiado escandalosa para
merecer qualquer comentário da sua parte. Em silêncio, levou
o cachimbo aos lábios, cruzou os braços e soprou o fumo. :,
Deixei-o saborear o seu vício em sossego. Por fim, depois
de expelir a última baforada, deu um suspiro profundo,
levantou-se e partiu, tão solene como chegara.
Instantes depois, ouviram-se passos bem mais enérgicos. Eu
ia aproveitar a ocasião para dizer «_Bom-dia», mas calei-me
imediatamente, dado que não obtivera qualquer resposta. Era
Hareton Earnshaw que rezava as suas orações em voz baixa,
amaldiçoando tudo em que tocava, enquanto vasculhava num canto
em busca de uma pá ou de uma enxada para abrir caminho através
da neve. Olhou de soslaio por cima do banco, expirou
profundamente e deve ter pensado que não valia a pena
cumprimentar-me, a mim ou ao meu companheiro gato.
Calculei pelos seus movimentos que já se podia sair, pelo
que me levantei daquele estrado duro, pronto para o seguir.
Ele deve ter-se apercebido das minhas intenções, pois deu uma
pancada brusca com a ponta da pá numa porta interior,
indicando-me com um grunhido pouco perceptível que aquele era
o meu destino, caso pretendesse sair.
A porta dava acesso à sala, onde as mulheres já se
entregavam aos seus afazeres domésticos. Zillah tentava avivar
as brasas com a ajuda de um fole gigantesco. Mrs. Heathcliff,
ajoelhada, lia um livro à luz da lareira.
Tinha a mão sobre os olhos em forma de pala, para se
proteger do calor do braseiro, e parecia absorta na sua
ocupação. Só parava para repreender a criada quando esta lhe
lançava faúlhas para cima, ou então para afastar o cão, que
teimava em lhe encostar o focinho à cara.
Fiquei surpreendido por ver Heathcliff. Estava perto do
fogão, de costas para mim, e acabara de repreender
violentamente a pobre Zillah, que de vez em quando suspendia o
seu trabalho para endireitar a ponta do avental e soltar mais
um lamento de indignação.
-- E a senhora, sua grande inútil... -- vociferou quando
entrei, voltando-se para a nora e empregando uma chusma de
palavrões tão ofensivos que, normalmente por decoro, aparecem
substituídos por travessões.
-- Lá está, como sempre, com as suas manias de parasita!
Enquanto os outros trabalham para ganhar o pão, a senhora
vive de caridade! A minha caridade! Arrume essas tralhas e
veja se trabalha. Há-de pagar pela praga de eu ter de a ver
sempre à minha frente. Estás a ouvir, sua sonsa dum raio? :,
-- Só arrumo as minhas tralhas porque sei que me obrigaria
se eu recusasse -- respondeu a jovem, fechando o livro e
atirando-o para cima de uma cadeira. -- Mas não mexo uma palha
e só farei o que me apetecer, nem que o senhor grite e me
insulte como um doido!
Heathcliff levantou a mão e a autora de tais afirmações
fugiu para longe, decerto habituada ao seu peso.
Como não era meu desejo assistir a uma luta entre cão e
gato, atravessei a sala bruscamente, como se estivesse ansioso
por partilhar o calor da lareira, totalmente alheio à
quezília entretanto interrompida. Cada um dos intervenientes
teve o decoro suficiente para suspender as hostilidades:
Heathcliff, desolado, meteu as mãos nos bolsos; Mrs.
Heathcliff fez beicinho e foi sentar-se para longe, onde
cumpriu à risca a sua palavra, ficando parada como uma estátua
durante o resto do tempo que lá permaneci, e que foi bem
pouco.
Recusei tomar o pequeno almoço com eles e, logo que raiaram
os primeiros alvores, escapei-me para o ar livre, agora
límpido e frio como o gelo.
Ainda não tinha chegado ao fundo do quintal, quando o meu
senhorio me pediu para parar, oferecendo-se para me acompanhar
no meu passeio pelo brejo. Ainda bem que o fez, pois a encosta
era um imenso e revolto oceano branco, em que as ondulações
não correspondiam exactamente às do terreno. As depressões
estavam cobertas de neve e os vários montículos de pedras que
orientavam o percurso tinham sido apagados pela neve,
desaparecendo do mapa que eu mentalmente traçara no dia
anterior.
Lembro-me de que, num dos lados da estrada, de cinco em
cinco ou de seis em seis jardas, havia uma linha de pedras
altas que continuava ao longo de todo o terreno. Estas pedras
haviam sido aí colocadas e caiadas para orientar o caminhante
no escuro e ainda, perante nevões semelhantes, permitir a
distinção entre o caminho seguro e firme e os perigosos e
profundos pauis ali existentes; porém, exceptuando alguns
pequenos pontos escuros perdidos na paisagem. todo e qualquer
vestígio da sua existência desaparecido, e o meu companheiro
bem precisou de me avisar várias vezes para eu corrigir a
minha rota, embora eu imaginasse que seguia correctamente o
traçado sinuoso do carreiro.
Pouco falámos durante o trajecto. Chegados à entrada da
alameda principal da Granja, ele parou, dizendo que a partir
dali não havia perigo de me perder. A nossa despedida
limitou-se a uma :, rápida vénia, após o que me apressei a
retomar o meu caminho, entregue apenas aos meus próprios
recursos, já que a casa do guarda ainda está desabitada.
A distância entre o portão e a casa da Granja é de duas
milhas. Acho que devo ter conseguido transformá-las em quatro,
depois dos vários desvios por entre as árvores e de me ter
enterrado até ao pescoço na neve, algo que só aqueles que
experimentaram essa sensação poderão apreciar devidamente.
Seja como for, e apesar das minhas deambulações, cheguei a
casa quando o relógio batia as doze horas, ou seja, gastei
precisamente uma hora por cada milha no meu trajecto normal
para o Alto dos Vendavais.
A criada e os seus acólitos correram a receber-me,
exclamando em grande alarido que já tinham perdido as
esperanças de me encontrarem. Já me davam como morto durante a
noite e deitavam contas à vida sobre a forma de me procurarem.
Pedi-lhes para se acalmarem, já que tinha regressado são e
salvo. Em seguida, enregelado até aos ossos, arrastei-me pela
escadas acima e, depois de vestir roupas secas e andar de um
lado para o outro durante trinta ou quarenta minutos para
recuperar o calor do corpo, dirigi-me finalmente para o
escritório, fraco como um gatinho, incapaz de apreciar o
calor acolhedor da lareira e o café fumegante que a criada
tinha preparado para me confortar.

CAPÍTULO IV

Como nós somos imprevisíveis! Eu, que decidira manter-me
fora de todo e qualquer contacto social e agradecia aos céus o
facto de ter finalmente encontrado um local remato e isolado
onde tal contacto seria impraticável, eu, pobre náufrago,
depois de ter travado até ao anoitecer uma luta renhida contra
o desanimo e a solidão, via-me finalmente a recuperar as
minhas forças, e, sob o pretexto de obter informações sobre o
estado da propriedade, pedi a Mrs. Dean, quando esta me trouxe
a ceia, que se sentasse e me fizesse companhia, esperando
sinceramente que ela se revelasse uma excelente conversadora e
que, se não conseguisse animar-me, pelo menos me ajudasse a
adormecer com a sua conversa.
-- Mrs. Dean, a senhora já vive aqui há algum tempo, não é
verdade? -- comecei. -- Há dezasseis anos, segundo me disse?
-- Dezoito, meu senhor. Vim para cá quando a minha antiga
patroa se casou; para a servir. E quando ela morreu, fiquei
como governanta do patrão.
-- Compreendo.
Houve uma pausa. Temi que ela não fosse a faladora que eu
esperava e preferisse falar dos seus próprios assuntos, o que
não me interessaria tanto.
No entanto, depois de meditar por uns instantes, com as
palmas das mãos fincadas nos joelhos e uma aura de nostalgia
envolvendo-lhe o rosto vermelhusco, principiou:
-- Ah, como as coisas mudaram desde então!
-- De facto -- comentei, -- Já deve ter assistido a muitas
mudanças, não é verdade?
-- Sim senhor. E desgraças também -- acrescentou.
«_O melhor é encaminhar a conversa para a família do meu :,
senhorio» pensei com os meus botões. «_Sem dúvida um bom tema
para começar. E há também aquela jovem viúva; muito gostava de
saber a sua história: se é cá da região, ou se é, como parece
mais provável, uma forasteira que estes indígenas tacanhos se
recusam a aceitar como patrícia».
Foi com este intuito que perguntei a Mrs. Dean por que
motivo tinha Heathcliff trocado a Granja dos Tordos por uma
situação e uma residência tão inferiores.
-- Será que Mr. Heathcliff não é suficientemente rico para
manter esta propriedade? -- questionei.
-- Rico, meu senhor? -- respondeu ela. -- Tem rios de
dinheiro; ninguém sabe ao certo quanto, e parece que a fortuna
aumenta de ano para ano. O seu dinheiro é mais do que
suficiente para morar numa casa até melhor do que esta. O que
ele é é um grande unhas de fome. Sabia que ele tencionava
mudar-se para a Granja dos Tordos, mas que assim que ouviu
dizer que havia um bom inquilino que a queria alugar, não
perdeu a oportunidade de meter mais uns cobres ao bolso? É
estranho como pode haver pessoas tão gananciosas, sobretudo
estando sozinhas no mundo!
-- Ele tinha um filho, não tinha?
-- Tinha, mas morreu.
-- E aquela jovem, a Mrs. Heathcliff, é a viúva, suponho?
-- É sim.
-- E de onde veio ela?
-- Essa agora! É a filha do meu falecido patrão. O seu nome
de solteira é Catherine Linton. Fui sua ama, coitadinha! Quem
me dera que Mr. Heathcliff se mudasse para cá, para podermos
ficar juntas outra vez.
-- O quê? Catherine Linton! -- exclamei, surpreendido.
Porém, pensando melhor, logo vi que não podia ser o fantasma
de Catherine que me visitara. -- Então -- continuei -- o nome
do meu antecessor era Linton?
-- Sim senhor.
-- E, afinal, quem é esse tal Earnshaw, o Hareton Earnshaw
que vive com Mr. Heathcliff? São parentes?
-- Não. Hareton é sobrinho da falecida Mrs. Linton.
-- Primo da jovem senhora, se bem entendo?
-- Sim. E o marido também era primo dela. Um pelo lado da
mãe, o outro pelo lado do pai. Não sei se sabe, mas Heathcliff
casou com a irmã de Mr. Linton. :,
-- Reparei que o Alto dos Vendavais tinha o nome
«_Earnshaw» gravado na porta de entrada. Trata-se sem dúvida
de uma família com tradições?
-- Uma família muito antiga. Hareton é o seu último
descendente, tal como Miss Cathy o é para a nossa família, ou
seja, os Linton. O senhor esteve no Alto dos Vendavais, não é
verdade? Perdoe-me a pergunta, mas eu gostaria de saber
notícias dela.
-- De Mrs. Heathcliff? Achei-a bastante bem e extremamente
bonita. Porém, pareceu-me que não é feliz.
-- Pudera, não admira! E o que achou do patrão?
-- Um sujeito áspero. Ele é sempre assim, Mrs. Dean?
-- Áspero como os dentes de uma serra e duro como pedra!
Quanto menos se der com ele melhor.
-- Deve ter passado por maus bocados na vida, para ser
assim tão azedo. Conhece a história dele?
-- Claro que conheço, meu senhor. Sei tudo sobre a vida
dele, excepto, claro, onde nasceu, quem são os seus pais e a
forma como inicialmente enriqueceu. E, no fim, o pobre Hareton
é que foi escorraçado como um cão vadio. Esse infeliz é o
único que, nas redondezas, ainda não sabe como foi enganado!
-- Sabe, Mrs. Dean, far-me-ia um grande favor se me
contasse algo mais sobre os seus vizinhos. Acho que não
conseguirei dormir descansado enquanto não me contar o resto
da história. Por isso, sente-se e comece a sua narrativa.
-- Com certeza, meu senhor. Deixe-me ir só buscar a minha
costura e ficarei aqui o tempo que quiser. Mas vejo que o
senhor se constipou. Ainda agora teve um arrepio e decerto
desejará um caldinho quente para o reconfortar.
A prestimosa mulher afastou-se em alvoroço e eu pus-me de
cócoras em frente à lareira. Sentia a cabeça quente e o resto
do corpo tremia de frio. Além disso, estava demasiado excitado
e com a cabeça sobrecarregada dos nervos e das fantasias. Tal
facto provocava em mim uma sensação, não de desconforto, mas
de medo (que ainda sinto), pelas graves consequências dos
incidentes de ontem e de hoje.
Ela voltou, atarefadíssima, trazendo numa mão uma tigela
fumegante e na outra a cesta da costura. Depois de colocar a
tigela junto ao guarda-fogo, sentou-se, manifestamente
satisfeita por eu me mostrar tão sociável.
-- Antes de eu ter vindo para cá trabalhar -- começou, sem
mais :, delongas, -- já passava muito tempo no Alto dos
Vendavais. A minha mãe tinha sido ama de leite de Mr. Hindley
Earushaw, pai de Hareton, e eu já estava habituada a brincar
com as crianças. Além disso, ia aos recados, ajudava na
lavoura e andava sempre pela quinta, pronta para o que fosse
preciso.
Numa linda manhã de Verão (estávamos então no início das
colheitas), Mr. Earnshaw, o antigo patrão, desceu as escadas
vestido como se fosse viajar. Depois de dar instruções ao
Joseph, voltou-se para Master Hindley,
para Miss Cathy e para mim (sim, porque eu estava na
sala a comer as papas com eles) e disse, dirigindo-se ao
filho:
-- Meu filho, parto hoje para Liverpool. Queres que te
traga alguma coisa? Escolhe o que quiseres. Tem é de ser uma
coisa pequena, pois vou fazer o caminho a pé, e sessenta
milhas para cada lado é uma grande estirada!
Hindley pediu uma rabeca. Depois foi a vez de Miss Cathy pedir
o seu brinquedo. Embora ainda não tivesse seis anos, já
conseguia montar qualquer cavalo, pelo que escolheu um
chicote.
Mr. Earnshaw não se esqueceu de mim. Era um bom homem, se
bem que às vezes um pouco severo. Prometeu-me uma mancheia de
maçãs e peras e depois despediu-se das crianças com um beijo.
Os três dias em que esteve ausente pareceram-nos uma
eternidade. Miss Cathy, por exemplo, não parava de perguntar
quando é que ele regressava. Mrs. Earnshaw esperava-o para
jantar na noite do terceiro dia, mas, como ele tardasse,
resolveu atrasar o jantar. Não havia sinais do seu regresso e
até as crianças se cansaram de correrem para a cancela para
ver se o avistavam. Entretanto escureceu. A mãe mandou-os
para a cama, mas eles pediram com tanta ansiedade, que ela os
deixou ficar um pouco mais. Então, por volta das onze horas,
alguém abriu o ferrolho devagarinho, e o patrão entrou.
Deixou-se cair pesadamente numa cadeira, a rir e a lamentar a
sua sorte, e pediu a todos que se afastassem, pois estava
morto de cansaço. Por nada deste mundo seria capaz de voltar a
empreender semelhante caminhada.
-- Ainda por cima, para mal dos meus pecados! -- disse,
abrindo o enorme casacão que trazia debaixo do braço
embrulhado como uma trouxa. Vê só isto, mulher. Nunca me senti
tão derreado Porém só pode ser uma dádiva do Senhor, apesar
de ser negro como o filho do diabo. :,
Acercámo-nos todos e foi então que, espreitando por cima da
cabeça de Miss Cathy, deparei com um miúdo sujo, andrajoso e
maltrapilho, de cabelo escuro e com idade suficiente para
andar e falar. Pelo aspecto, parecia mais velho do que
Catherine. No entanto, quando se pôs de pé, ficou especado a
olhar a toda a volta, repetindo vezes sem conta uma ladainha
que ninguém entendia. Fiquei assustada, e Mrs. Earnshaw
propôs-se mesmo expulsá-lo. Furibunda, perguntou ao marido por
que decidira trazer para casa aquele ciganote, tendo eles os
seus próprios filhos para alimentar e educar. Devia ter
enlouquecido pela certa.
O patrão tentou explicar o que acontecera, mas, como estava
morto de cansaço, tudo o que consegui entender durante o
raspanete da senhora, resumia-se a uma história em que falava
de o ter encontrado faminto e sem abrigo, a vaguear pelas ruas
de Liverpool, tendo-o tomado ao seu cuidado e tentado
encontrar quem o reclamasse. Porém, como ninguém sabia a quem
pertencia e o tempo e o dinheiro escasseassem, achou
preferível trazê-lo para casa, para não entrar em despesas
desnecessárias, pois não desejava devolvê-lo à situação em que
o encontrara.
Bom, a senhora lá se acalmou por entre protestos. Em
seguida, Mr. Earnshaw pediu-me que desse banho ao garoto, o
vestisse com roupa limpa e o deitasse junto dos filhos.
Hindley e Cathy limitaram-se a olhar e a escutar durante a
discussão. Depois, começaram a remexer nos bolsos do pai à
procura dos presentes prometidos. Hindley tinha na altura
catorze anos. Porém, quando encontrou os cacos daquilo que
restava da rabeca, desatou numa tremenda choradeira. Cathy, ao
saber que o pai tinha perdido o chicote durante o salvamento
de um estranho, patenteou todo o seu desprezo fazendo caretas
e cuspindo sobre aquela coisa estúpida, tendo recebido como
paga pelo seu comportamento uma valente bofetada do pai.
Ambos se recusaram terminantemente a partilhar a cama e até
mesmo o quarto com o recém-chegado, e o melhor que pude fazer
foi colocá-lo no patamar das escadas, rezando para que se
fosse embora na manhã seguinte. Por mero acaso, ou porque
ouvira a sua voz, o garoto colocou-se à porta do quarto de Mr.
Earnshaw, tendo sido imediatamente descoberto. O patrão quis
logo saber a verdade e eu vi-me obrigada a confessar tudo.
Como recompensa pela minha cobardia e insensibilidade
mandou-me embora. :,
Esta foi, por assim dizer, a apresentação de Heathcliff à
família. Quando regressei, uns dias mais tarde, pois não
considerei a minha explusão definitiva, soube que o tinham
baptizado com o nome de «_Heathcliff», que era o nome de um
filho que lhes morrera, e desde então tem sido este o seu
nome, tanto próprio como apelido.
Miss Cathy e ele tornaram-se grandes amigos. Hindley, no
entanto, detestava-o, e, para ser sincera, eu também. Por
isso, arreliávamo-lo e troçávamos dele a toda a hora, dado
que nem eu conseguia avaliar a enorme injustiça que cometia,
nem a própria patroa se preocupava em
defendê-lo.
Parecia uma criança macambúzia e demasiado passiva, um
tanto arisca devido aos maus tratos sofridos. Era capaz de
aguentar as tareias de Hindley sem pestanejar e sem verter uma
lágrima, e os meus beliscões apenas o faziam dizer «_ai» e
abrir muito os olhos como se se tivesse magoado por acidente e
ninguém fosse culpado.
Esta situação enfureceu o velho Earnshaw quando descobriu
que o filho batia no pobre órfão, como ele lhe chamava. Mr.
Earnshaw desenvolvera um estranho afecto pelo garoto, ao
ponto de acreditar em tudo o que ele dizia (falava pouco, mas
dizia sempre a verdade) e mimava-o mais do que à Cathy que, na
altura, era demasiado rebelde para ser a sua predilecta.
Por isso, o garoto gerou desde o início um mau ambiente
dentro de casa. Na altura da morte de Mr. Earnshaw, dois anos
mais tarde, Hindley já estava habituado a encarar o pai mais
como um inimigo do que propriamente um amigo e, por sua vez,
Heathcliff como usurpador do afecto do seu pai e, como tal,
dos seus próprios privilégios. Assim, foi crescendo cada vez
mais azedo e revoltado, face a tais injustiças.
Devo confessar que, durante um tempo, também eu partilhava
destes sentimentos, mas, quando as crianças adoeceram com
sarampo e foi preciso eu tratar deles como uma mulher adulta,
mudei logo de ideias. Heathcliff encontrava-se gravemente
doente e, na pior fase da doença, queria-me sempre ao seu
lado. Penso que se sentia grato pelos meus cuidados e não
tinha o discernimento
suficiente para ver que eu o tratava por mera obrigação. No
entanto, devo confessá-lo, foi a criança mais dócil que
tratei. A diferença entre ele e os outros obrigou-me a ser
mais imparcial. Cathy e o irmão arreliavam-me constantemente,
mas *ele* portava-se como um cordeirinho manso. Porém, era a
sua fibra, e não a sua brandura, que o transformava num bom
doente. :,
Quando se restabeleceu, o médico atribuiu a cura em parte à
minha intervenção, tendo elogiado o meu zelo e dedicação.
Senti-me orgulhosa do meu trabalho e mais compreensiva
relativamente à pessoa que me tinha feito merecer tal elogio.
Hindley perdia, assim, o seu último aliado. Porém, nunca me
afeiçoei muito a Heathcliff e muitas vezes me perguntava o que
teria o patrão visto naquele rapaz intratável, que nunca, se
bem me recordo, demonstrara qualquer sinal de gratidão em
paga da amizade que lhe era votada. Não que Heathcliff fosse
insolente para com o seu benfeitor; apenas se mostrava
insensível. Sabia perfeitamente que detinha um enorme
ascendente sobre o coração do patrão e que lhe bastava abrir a
boca para que todos em casa fizessem a sua vontade.
Veja-se, por exemplo, isto: certo dia, Mr. Earnshaw comprou
dois potros numa feira regional e ofereceu-os aos dois
rapazes. Heathcliff ficou com o mais bonito, mas, quando viu
que este coxeava, voltou-se para Hindley e disse:
-- Vamos trocar de cavalos. Não gosto do meu. Se não
quiseres, vou fazer queixa ao teu pai das três tareias que me
deste esta semana e ainda lhe mostro o braço, que está todo
negro até ao ombro.
Hindley deitou-lhe a língua de fora e deu-lhe um tabefe na
orelha.
-- Se eu fosse a ti, fazia o que te digo -- insistiu
Heathcliff, correndo para o alpendre (eles estavam no
estábulo). -- Mais cedo ou mais tarde vais ter de o fazer, e
então, se eu fizer queixa destas pancadas, ainda apanhas a
dobrar.
-- Para trás, cão! -- gritou Hindley, ameaçando-o com um
dos pesos da balança que servia para pesar batatas e feno.
-- Anda, atreve-te -- respondeu Heathcliff, parando. -- Vou
contar tudo o que disseste acerca de me quereres pôr na rua
assim que ele morrer. Depois vamos ver quem é que é expulso.
Hindley atirou-lhe o peso, atingindo Heathcliff no peito. O
rapaz caiu, mas levantou-se imediatamente cambaleando, muito
pálido e respirando com dificuldade. Se eu não interviesse,
teria ido logo contar tudo ao patrão como vingança,
aproveitando-se do seu débil estado físico.
-- Fica com o meu cavalo, cigano! -- disse o jovem Earnshaw
-- Espero que partas o pescoço. Leva-o e vai para o inferno,
maldito intruso! Andas a ver se tiras tudo ao meu pai, com
graxa e falinhas mansas. O meu pai ainda há-de saber quem tu
és, filho do :, Diabo. E, então, espero que ele te faça pagar
por todos os teus pecados!
Heathcliff já tinha ido soltar o potro, transferindo-o para
a sua baia. Na altura em que Heathcliff passava por detrás
dele, Hindley concluiu o seu discurso, dando-lhe um empurrão
tão violento que o atirou para debaixo das patas do cavalo.
Depois, sem se deter para avaliar as consequências, fugiu o
mais depressa que pôde.
Fiquei admirada ao ver que Heathcliff se levantou com a
maior das naturalidades e prosseguiu com os seus afazeres,
trocando as selas, etc. Depois, sentou-se num fardo de palha
para recuperar do choque e voltou para casa.
Pedi-lhe que me deixasse explicar que as suas contusões
tinham sido provocadas pelo potro. Reparei, então, que não lhe
interessava o tipo de explicação que eu pudesse dar, uma vez
que conseguira os seus intentos. Na verdade, como quase nunca
se queixava destas agressões, aprendi a olhar para ele como
uma pessoa não vingativa. No entanto, enganava-me
redondamente, como verá mais adiante.

CAPÍTULO V

Com o tempo, Mr. Earnshaw começou a decair a olhos vistos.
Ele, que fora sempre uma pessoa activa e saudável, via agora
as forças abandonarem-no de súbito. E então quando se viu
preso num canto, junto à lareira, começou a ficar cada vez
mais irritável. Tudo o aborrecia e a mais leve suspeita de
perda de autoridade punha-o fora de si. Este facto era ainda
mais notório quando alguém tentava impor-se ou dar ordens ao
seu favorito. Não admitia que criticassem ou melindrassem o
seu menino, na sequência de uma estranha mania que se lhe
havia metido na cabeça, segundo a qual, como só ele gostava de
Heathcliff, todos os outros o detestavam e lhe queriam fazer
mal.
Isto foi prejudicial para o rapaz, dado que nós, para não
aborrecermos o patrão, alimentávamos todas as suas vontades e
caprichos. Perante tamanha bajulação, o garoto teve condições
excepcionais para alimentar o seu orgulho e o seu mau-génio.
Era um mal necessário. Por duas ou três vezes, as
manifestações de escárnio de Hindley para com Heathcliff
junto do pai provocaram a ira deste último. Agarrava na
bengala, mas como não lhe conseguia bater,
tremia de raiva.
Finalmente, o nosso cura (naquela altura tínhamos um pároco
que ganhava a vida a ensinar os filhos do Linton e dos
Earnshaw e a cultivar o seu pedaço de terra) aconselhou que
talvez fosse melhor mandar o jovem Hindley para um colégio,
facto que mereceu a concordância de Mr. Earnshaw, embora com
alguma relutância. Na realidade dizia:
-- O Hindley é um incapaz e nunca vencerá na vida, nem
aqui, nem em qualquer canto do mundo.
Eu esperava ansiosa que pudéssemos, finalmente, atingir a
tão desejada paz. Magoava-me que o patrão sofresse pela sua
boa acção. Imaginava que a sua índole rabugenta, própria da
idade e da doença, proviesse das desavenças familiares. Na
realidade, os seus males eram apenas a consequência do seu
próprio declínio.
Com efeito, poderíamos ter vivido de uma forma pacífica,
não fossem duas pessoas, Miss Cathy e Joseph, o criado. Acho
que o senhor já teve oportunidade de o ver ontem. Ele é, e
continua provavelmente a ser, o fariseu mais preconceituoso,
puritano e inflexível, que alguma vez vasculhou a Bíblia em
busca de promessas para seu próprio benefício e de pragas para
lançar ao próximo. Foi a sua capacidade de pregar sermões e
discursos piedosos que contribuiu para influenciar Mr.
Earnshaw. Quanto mais fraco este ficava, maior ascendente o
outro obtinha.
Nada lhe dava mais prazer do que maçar o patrão com as suas
teorias sobre a alma e, em particular, sobre a educação severa
das crianças. Foi ele que incentivou o patrão a considerar o
Hindley como um devasso. E todas as noites de fiava uma longa
lista de queixas contra Heathcliff e Catherine, explorando as
fraquezas do patrão e acabando por culpar sempre mais a
menina.
Ela tinha, de facto, uma maneira de ser bastante diferente
das outras crianças e dava-nos cabo da paciência vezes ao dia.
Desde que acordava até se deitar, nunca tinhamos um momento de
sossego, devido ao seu espírito travesso. Andava sempre
esfusiante de alegria e falava como um papagaio, cantando,
rindo ou arreliando quem não participasse nas suas
brincadeiras. Era uma piorrinha bravia e arisca. Porém, tinha
os olhos mais lindos, o sorriso mais doce e o pezinho mais
ligeiro das redondezas. E, para ser sincera, creio que ela não
o fazia por mal. Quando nos punha a chorar de raiva com as
suas diabruras, não sala de junto de nós, pois consolando-nos,
consolava-se também a si
própria.
Cathy adorava Heathcliff. O maior castigo que lhe podiam
dar era separá-la de Heathcliff. No entanto, por causa dele,
recebia mais repreensões do que qualquer um de nós.
Nos jogos, queria sempre ser a dona da casa. Gostava de
mandar e de castigar os companheiros. Várias vezes tentou
transformar-me em alvo do seu mau-génio, mas eu, como não
estava para me :, sujeitar às suas ordens e agressões,
chamava-lhe frequentemente a atenção.
Acontece que Mr. Earnshaw não compreendia as brincadeiras
das crianças. A sua educação fora sempre rígida e severa. E
Catherine, por seu lado, não percebia por que é que o pai
estava mais rabugento e menos tolerante com a idade. Os
raspanetes do doente despertavam nela um prazer especial em
provocar a sua cólera. Nada lhe dava mais alegria do que
ver-nos todos a ralhar ao mesmo tempo e ela a desafiar-nos com
o seu olhar altivo e descarado e a resposta sempre na ponta da
língua. Adorava ridicularizar os sermões do Joseph. A mim,
atormentava-me constantemente a paciência. Quanto ao pai,
fazia aquilo que ele mais detestava, ou seja, demonstrava como
a sua pretensa insolência (que ele considerava real) tinha
mais poder sobre Heathcliff do que a bondade dele. Isto é,
mostrava que o rapazote lhe fazia todas as vontades, enquanto
os desejos do *dono da casa só* eram satisfeitos quando
Heathcliff bem o entendia.
Às vezes, depois de se portar terrivelmente mal durante
todo o santo dia, vinha procurar o conforto e o afecto do pai
à noitinha e fazer as pazes.
-- Não, Cathy -- dizia o meu antigo patrão eu não posso
gostar de ti. És pior do que o teu irmão. Vai, filha, reza as
tuas orações e pede perdão a Deus. As vezes pergunto-me a mim
mesmo se valeu a pena ter-te criado!
A princípio, a menina começava logo a chorar. Depois, ao
ver que o pai a rejeitava constantemente, tornou-se bastante
insensível, rindo sempre que eu lhe dizia para pedir desculpa
e mostrar-se arrependida das suas asneiras.
Por fim, chegou o dia em que as consumições de Mr. Earnshaw
terminaram na Terra. Morreu tranquilamente numa noite de
Outubro, sentado no seu cadeirão, junto à lareira.
Nessa noite o vento soprava com violência, ecoando na
chaminé. Parecia uma noite agreste e tempestuosa, mas, no
entanto, não estava frio. Estávamos todos reunidos na sala. Eu
estava a um canto, afastada da lareira, a costurar, e Joseph
lia a Bíblia encostado à mesa (pois era tradição os criados
sentarem-se com os patrões findo o serviço). Miss Cathy tinha
estado doente e, como tal, estava sossegadinha, com a cabeça
encostada aos joelhos do pai. Heathcliff estava deitado no
chão, com a cabeça deitada no colo da
menina. :,
Recordo-me de que, antes de adormecer, o patrão tinha
acariciado o seu lindo cabelito (gostava de a ver assim,
sossegada) e dito:
-- Por que será que não podes ser sempre assim boazinha,
Cathy?
Ela olhou para o pai e respondeu, rindo-se:
-- E por que será que o pai não pode ser sempre assim
bonzinho?
Mas, logo que viu que o pai se mostrava novamente
aborrecido, beijou-lhe a mão, prometendo que ia cantar uma
canção para ele adormecer. Começou então a cantar muito
baixinho, até que a mão dele descaiu e a cabeça lhe tombou
para a frente. Pedi-lhe para parar e não se mexer, não fosse
ele acordar. Ficámos ali, quietos como ratos, durante
meia-hora. De facto, poderíamos ter ali ficado tempos
infinitos, se não fosse Joseph, terminado o seu capítulo,
ter-se levantado e dito que era preciso acordar o patrão para
as suas orações.
Abeirou-se dele, chamou-o e bateu-lhe no ombro, mas, como
não obtivesse resposta, pegou na vela e
iluminou-o.
Vi logo que algo de grave se passava assim que Joseph
baixou a luz. Peguei nas crianças por um braço e pedi-lhes em
voz baixa que subissem devagarinho e rezassem sozinhos, pois o
pai tinha o que fazer naquela noite.
-- Primeiro o pai tem de me dar as boas-noites -- disse a
Catherine, abraçando-o antes que a pudéssemos deter.
Coitadinha, logo que se apercebeu da triste situação,
gritou: Oh, Heathcliff, ele morreu! Está morto!
Desataram os dois a chorar convulsivamente.
Também eu comecei a chorar, amargurada e triste. Porém,
Joseph apressou-se a perguntar por que motivo estávamos todos
naquele berreiro por uma santa alma que já estava no Céu.
Mandou-me pegar no casaco e ir buscar o médico e o padre a
Gimmerton. Confesso que não percebia qual a utilidade de ambos
naquela situação. No entanto, lá fui, arrostando com a
tempestade, e voltei com o médico. O padre, esse, só podia vir
pela manhã.
Deixei Joseph a dar as explicações e corri para o quarto
das crianças. A porta estava aberta; vi que ainda não se
tinham deitado, embora já passasse da meia-noite. Contudo,
estavam mais calmos e não necessitaram do meu consolo. Aquelas
pobres almas confortavam-se uma à outra com melhores palavras
e pensamentos do que eu alguma vez poderia empregar. Nenhum
padre conseguiria, :, naquele momento, descrever o céu de uma
forma tão bela como eles o descreviam. Por isso, fiquei junto
deles, escutando a chorar as suas palavras, e não pude deixar
de desejar que todos nós, um dia, nos viéssemos a encontrar
nesse lugar maravilhoso.

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