sábado, 21 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 51 ao 60

Capítulo LI

Píramo e Tisbe


            Quase ao fundo do Arrabalde Saint-Honoré, atrás de um belo palácio, notável entre as notáveis habitações daquele bairro rico, estende-se um vasto jardim, cujos castanheiros frondosos ultrapassam os enormes muros, altos como muralhas, e deixam, quando chega a Primavera, cair as suas flores cor-de-rosa e
brancas em dois vasos de pedra canelada colocados paralelamente sobre duas colunas quadrangulares, nas quais se insere um portão de ferro do tempo de Luís XIII.
            Esta entrada grandiosa está condenada, apesar dos magníficos gerânios contidos nos dois vasos e que balançam ao vento as suas flores matizadas e cor de púrpura, desde que os proprietários do palácio - e isso data de há muito tempo já - se restringiram à posse do palácio, do pátio arborizado que da para a rua e do jardim que fecha o portão a que já nos referimos, o qual dava outrora para uma magnífica horta de uma
jeira, anexa à propriedade. Mas como o demônio da especulação traçou uma linha, isto é, uma rua na extremidade da horta, e como a rua, antes de existir, já recebera um nome, graças a uma placa de ferro polido, pensou-se vender a horta para construir para a rua e fazer concorrência à grande artéria de Paris chamada Arrabalde Saint-Honoré.
            Mas em matéria de especulação, o homem propõe e o dinheiro dispõe. A rua batizada morreu à nascença; o comprador da horta, depois de pagá-la integralmente, não conseguiu obter na revenda a importância que pretendia e, enquanto esperava uma subida de preço que não deixaria de o indemnizar, mais dia menos dia, muito para além dos seus prejuízos passados e do seu capital imobilizado, contentou-se com alugar o terreno a uns hortelãos por quinhentos francos por ano.
            Era dinheiro colocado a 1,5%, nada caro nos tempos que correm, em que há tanta gente que o coloca a cinquenta e ainda acha que o dinheiro rende pouquíssimo.
            Todavia, como já dissemos, o portão do jardim, que outrora dava para a horta, está condenado e a ferrugem rói-lhe os gonzos. Mais, para que os ignôbeis hortelãos não conspurquem com os seus olhares vulgares o interior do recinto aristocrático, aplicou-se aos varões uma vedação de tábuas até à altura de seis pés. É certo que as tábuas não estão assim tão bem juntas que se não possa deitar um olhar furtivo pelos
intervalos, mas a casa é uma casa severa e que não teme as indiscrições.
            Na horta, em vez de couves, cenouras, rabanetes, ervilhas e melões, crescem grandes luzernas, única cultura reveladora de que aquele lugar abandonado ainda não está esquecido. Uma portinha baixa que dá para a rua projetada permite a entrada no recinto murado, que os seus arrendatários acabam de abandonar devido à sua esterilidade e que há oito dias, em vez de render 1,5%, como no passado, já não rende absolutamente nada.
            Do lado do palácio, os castanheiros de que falamos coroam o muro, o que não impede outras árvores luxuriantes e floridas de introduzir nos intervalos os seus ramos ávidos de ar. Num canto em que a folhagem é de tal forma abundante  que a luz mal ali penetra, um comprido banco de pedra e cadeiras de jardim indicam um lugar de reunião ou um retiro favorito de qualquer habitante do palácio, situado a cem passos e que mal
se vê através da muralha de verdura que o envolve. Enfim, a escolha daquele recanto misterioso‚ ao mesmo tempo justificada pela ausência do sol, pela frescura permanente, mesmo durante os dias mais quentes do Verão, pelo chilreal da passarada e pelo afastamento da casa e da rua, isto é, dos problemas domésticos e do barulho.
            Na tarde de um dos dias mais quentes que até  ali a Primavera concedera aos habitantes de Paris, encontrava-se em cima do banco de pedra um livro, uma sombrinha, um cesto de costura e um lenço de cambraia de linho com um bordado começado; e não longe do banco, junto do portão, de pé diante das tábuas, com o olho aplicado à vedação engradada, estava uma jovem, que espreitava por uma fenda a horta deserta que já conhecemos.
            Quase imediatamente, a portinha do terreno fechava-se sem ruído e um rapaz alto, forte, de blusa de pano-cru e barrete de veludo, mas cujos bigodes pretos extremamente cuidados destoavam um bocado da vestimenta popular, depois de olhar rapidamente à sua volta para se certificar de que ninguém o espiava, dirigia-se com passo rápido para o portão.
            Ao ver aquele que esperava, mas não provavelmente assim vestido, a jovem teve medo e recuou.
            Entretanto, porém, o rapaz, com esse olhar que só os namorados possuem, já vira através das fendas da porta flutuar o vestido branco e a comprida faixa azul da amada. Assim, correu para a vedação, aplicou a boca a uma abertura e disse:
            - Não lenha medo, Valentine, sou eu.
            A jovem aproximou-se.
            - Oh, senhor, porque veio hoje tão tarde? - perguntou. - Não sabe que em breve vamos jantar e que precisei de muita diplomacia e rapidez para me desembaraçar da minha madrasta, que me espia, da minha criada de quarto, que me vigia, e do meu irmão, que me atormenta por vir bordar para aqui um lenço que receio muito não esteja pronto tão cedo?  Depois de justificar o seu atraso, me dirá que novo traje é esse que resolveu usar e que quase me não permitiu reconhecê-lo.
            - Querida Valentine - respondeu o rapaz -, está tão acima do meu amor que não ouso falar-lhe dele, e no entanto todas as vezes que a vejo necessito de lhe dizer que a adoro, a fim de o eco das minhas próprias palavras me acariciar ternamente o coração quando não a vejo. Agora, agradeço os seus ralhos: são deliciosos porque me provam, não me atrevo a dizer que me esperava, mas sim que pensava em mim. Quer saber a causa do meu atraso e o motivo do meu disfarce; vou dizer-lhos e espero que os desculpe: arranjei outra profissão.
            - Outra profissão?!... Que quer dizer, Maximilien? Somos assim tão felizes para que me fale do que nos respeita gracejando?
            - Oh, Deus me defenda de brincar com o que é a minha vida! - protestou o rapaz. - Mas estou farto de correr campos e escalar muros, seriamente assustado com a idéia que me sugeriu na outra tarde de que o seu pai ainda um dia me mandaria prender e julgar por ladrão, o que comprometeria a honra de todo o
Exército francês, e não menos assustado com a possibilidade de alguém estranhar ver-me girar constantemente à volta daquele terreno, onde não há a mais pequena  cidadela a sitiar ou o mais pequeno fortim a defender, um capitão de sipaios, fiz-me hortelão e adotei o traje da minha profissão.
            - Que loucura!
            - Pelo contrário, acho a coisa mais sensata, que fiz na minha vida, porque nos dá toda segurança.
            - Explique-se.
            - Procurei o dono do terreno, e como o arrendamento com os antigos rendeiros terminara, aluguei-o de novo. Toda aquela luzerna que vê me pertence, Valentine, e nada me impede de mandar construir uma cabana no meio daquelas forragens e de passar a viver a vinte passos de si. Oh, não posso conter a minha alegria e a minha felicidade! Parece-lhe, Valentine, que haverá dinheiro que pague tais coisas? É impossível, não é verdade? Pois bem, toda esta felicidade, toda esta ventura, toda esta alegria, pelas quais daria dez anos de vida, me custam... adivinhe quanto. Quinhentos francos por ano, pagáveis por trimestre. Assim, como vê, daqui em diante não tenho mais nada a temer. Estou no que é meu, posso encostar escadas de mão ao meu muro e olhar para cima dele e tenho o direito, sem receio de que uma patrulha venha me incomodar, de
lhe dizer, Valentine, que a amo, desde que o seu orgulho não se sinta ferido por ouvir sair esta palavra da boca de um pobre jornaleiro de blusa e barrete.
            Valentine soltou um gritinho de alegre surpresa. Depois, de repente, como se uma nuvem invejosa viesse de súbito encobrir o raio de sol que lhe iluminava o coração, disse tristemente:
            - O pior, Maximilien, é que a partir daqui seremos demasiado livres e a nossa felicidade nos levará a tentar Deus; abusaremos da nossa segurança e a nossa segurança nos perderá.
            - Como pode dizer-me isso, minha amiga, a mim, que desde que a conheço lhe provo todos os dias que subordino os meus pensamentos e a minha vida à sua vida e aos seus pensamentos? Que a levou a confiar em mim? A minha dedicação, não é verdade? Quando me disse que um vago instinto lhe afirmava que
corria um grande perigo, pus a minha dedicação às suas ordens sem lhe pedir outra recompensa além da felicidade de servi-la. Desde então já lhe dei, por uma palavra, por um gesto, oportunidade de se arrepender de me ter distinguido no meio daqueles que se considerariam felizes por morrer por si? Disse-me, pobre criança, que estava noiva do Sr. de Epinay, que o seu pai decidira essa aliança, ou seja, que ela era
inevitável, pois tudo o que o Sr. de Villefort deseja acontece infalivelmente. Pois bem, fiquei na sombra esperando tudo, não da minha vontade, não da sua, mas sim dos acontecimentos, da Providência, de Deus, e no entanto a Valentine ama-me, teve compaixão de mim e o disse. Obrigado por essa doce palavra, que só lhe peço me repita de tempos a tempos e que me fará esquecer tudo.
            - E foi isso que o tornou audacioso, Maximilien, e é isso que me proporciona simultaneamente uma existência tão venturosa quanto infeliz, a ponto de perguntar a mim própria muitas vezes o que será melhor para mim, se a tristeza que me causava antes o rigor da minha madrasta e a sua preferência cega pelo
filho ou a felicidade cheia de perigos que experimento em vê-lo.
            - Perigos?! - exclamou Maximilien. Como pode dizer uma palavra tão dura e tão injusta? Alguma vez viu um escravo mais submisso do que eu? Permitiu-me dirigir-lhe algumas vezes a palavra, Valentine, mas proibiu-me de segui-la e  eu  obedeci. Desde que descobri maneira de entrar aqui, de falar consigo através desta porta, de estar, enfim, tão perto de si sem a ver, alguma vez, diga-me, lhe pedi para tocar sequer na fímbria do seu vestido através das grades? Alguma vez dei um passo para transpor este muro, ridículo obstáculo para a minha juventude e para a minha força? Nunca me ouviu queixar do seu rigor, nunca exprimi um desejo em voz alta; tenho cumprido a minha palavra como um cavaleiro de outros tempos. Reconheça isto, ao menos, para que a não julgue injusta.
            - É verdade - disse Valentine, passando entre duas tábuas a ponta de um dos seus dedos afuselados no qual Maximilien pousou os lábios. - É verdade, tem sido um amigo respeitoso. Mas tem procedido assim apenas por saber ser esse o seu interesse, meu caro Maximilien. Sabia muito bem que no dia em que o escravo se tornasse exigente tudo perderia. Prometeu-me a amizade de um irmão, a mim que não tenho amigos, a mim que o meu pai esquece, a mim que a minha madrasta persegue, e que só tenho como consolação um velho imóvel, mudo. Gelado, cuja mão não me pode apertar a minha que só me pode talar com o olhar e cujo coração bale sem dúvida por mim, consumindo o que lhe resta de calor. Irrisão amarga do destino que me torna inimiga e vítima de todos aqueles que são mais fortes do que eu e que me dá um cadáver por amparo e amigo! Oh, realmente, Maximilien, repito-lhe, sou muito infeliz e tem razão em
amar-me por mim e não por si!
            - Valentine - disse o jovem, profundamente comovido -, não direi que só a si amo no mundo, porque amo também a minha irmã e o meu cunhado, mas a eles amo-os com um amor terno e calmo, que em nada se parece com o sentimento que experimento por si. Quando penso em si o sangue ferve-me, o peito dilata-se-me, o coração transborda-me. Mas esta energia. este ardor, esta força sobre-humana, utiliza-los-ei a amá-la apenas até  ao dia em que me diga que os utilize a servi-la. O Sr. de Epinay estará ausente ainda um ano, dizem; num ano, quantas oportunidades favoráveis poderemos ter, quantos acontecimentos nos poderão secundar! Continuemos portanto a ter esperança; é tão bom e tão doce ter esperança. Mas até  agora, que tem sido para mim a Valentine, a Valentine que me censura o meu egoísmo? A bela e fria estátua da Vênus pudica. Em troca desta dedicação, desta obediência, desta renúncia, que me prometeu? Nada. Que me concedeu? Muito pouca coisa. Fala-me do Sr. de Epinay, seu noivo, e suspira perante a idéia de lhe pertencer um dia. Vejamos, Valentine, isso é tudo o que tem na alma? O quê, ofereço-lhe a minha vida, dou-lhe a minha alma, dedico-lhe até  à mais insignificante pulsação do meu coração, e quando sou todo seu, quando digo para comigo baixinho que morrerei se a perder, a Valentine nem sequer se assusta perante a idéia de pertencer a outro! Oh, Valentine, Valentine, se estivesse no seu lugar, se me soubesse amado
como está certa de que a amo, já cem vezes teria passado a minha mão por entre as grades deste portão e apertado a mão do pobre Maximilien, dizendo-lhe: “Sou sua, só sua, Maximilien, neste mundo e no outro!”
            Valentine não respondeu nada, mas o rapaz ouviu-a suspirar e chorar. A reação de Maximilien foi imediata.
            - Oh, Valentine, Valentine, esqueça as minhas palavras, se há nelas alguma coisa que a possa magoar!
            - Não - respondeu ela –, tem razão. Mas não vê que sou uma pobre criatura, abandonada numa casa quase estranha, porque o meu pai é quase um  estranho para mim, e cuja vontade tem sido vergada de dez anos para cá, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, pela vontade de ferro dos amos e senhores que
dispõem de mim? Ninguém repara no que sofro e que só a si tenho dito. Aparentemente, e aos olhos de toda a gente, todos são bons e afetuosos para comigo; mas na realidade todos me são hostis. As pessoas dizem: “O Sr. de Villefort é demasiado grave e severo para ser terno com a filha, mas ela teve ao menos a felicidade de encontrar na Sra de Villefort uma segunda mãe.” Pois as pessoas enganam-se: o meu pai abandona-me com indiferença e a minha madrasta odeia-me com um encarniçamento tanto mais terrível quanto é certo ser
disfarçado por um eterno sorriso.
            - Odiá-la? A si, Valentine! Como podem odiá-la?
            - Infelizmente, meu amigo - respondeu Valentine -, sou forçada a confessar que esse ódio por mim provém de um sentimento quase natural. Ela adora o filho, o meu irmão Edouard.
            - E então?
            - Então? Talvez seja estranho meter no caso uma questão de dinheiro... No entanto, meu amigo, creio que o seu ódio provém pelo menos daí. Como ela não tem fortuna do seu lado e eu já sou rica por parte da minha mãe, e a minha fortuna será ainda mais do que duplicada pela do Sr. e da Sra de Saint-Méran,
que me deve caber um dia, bom... julgo que ela tem inveja. Oh, meu Deus, se lhe pudesse dar metade dessa fortuna e sentir-me junto do Sr. de Villefort como uma filha em casa do seu pai, o faria imediatamente, pode ter certeza!
            - Pobre Valentine!
            - Sim, sinto-me acorrentada e ao mesmo tempo tão fraca que me parece ser amparada por esses laços e tenho medo de os quebrar. De resto, o meu pai não é homem cujas ordens se possam infringir impunemente: usaria o seu poder contra mim, como o usaria contra si, Maximilien, e como o usaria contra o
próprio rei, protegido como está por um passado inatacável e por uma posição quase intocável. Oh, Maximilien, juro-lhe que se não luto é porque receio que seja despedaçado como eu nessa luta!
            - Mas, enfim, Valentine - insistiu Maximilien –, porque desesperar assim e ver o futuro sempre negro?
            - Ah, meu amigo, porque o avalio pelo passado!
            - Vejamos: se não sou um partido ilustre do ponto de vista aristocrático, pertenço no entanto, sob muitos aspectos, ao meio em que a Valentine vive. O tempo em que havia duas Franças na França já se foi; as mais nobres famílias da monarquia uniram-se às famílias do Império. A aristocracia da lança desposou a nobreza do canhão. Eu pertenço a esta última. Tenho um excelente futuro no Exército e possuo uma pequena
fortuna, mas independente; por último, a memória do meu pai é venerada na nossa terra como a de um dos mais honestos comerciantes que jamais existiram. Digo “nossa terra”, Valentine, porque é quase de Marselha.
            - Não me fale de Marselha, Maximilien. Essa palavra basta para me lembrar da minha boa mãe, esse anjo cujo desaparecimento todos lamentaram, e que depois de velar pela filha durante a sua curta estada na Terra, vela agora por ela, pelo menos assim espero, durante a sua eterna estada no Céu. Oh, se a minha pobre mãe fosse viva, Maximilien, não temeria nada! Lhe diria que o amo e ela nos protegeria. 
            - Infelizmente, Valentine - prosseguiu Maximilien –, se ela fosse viva eu não a conheceria, sem dúvida, porque, como disse, seria feliz se ela fosse viva, e uma Valentine feliz me olharia muito desdenhosamente do alto da sua grandeza.
            - Ah, meu amigo, agora é o senhor que é injusto!... Mas diga-me...
            - Que quer que lhe diga? - insistiu Maximilien, vendo que Valentine hesitava.
            - Diga-me - continuou a jovem –, em outros tempos, em Marselha, não houve qualquer desinteligência entre o seu pai e o meu?
            - Que eu saiba, não - respondeu Maximilien –, a não ser por o seu pai ser um partidário mais que zeloso dos Bourbons e o meu, um homem dedicado ao imperador. Presumo ser essa a única desinteligência que terá havido entre eles. Mas porque pergunta isso, Valentine?
            - Vou dizer-lhe - prosseguiu a jovem - porque deve saber tudo. Bom, foi no dia em que a sua nomeação de oficial da Legião de Honra veio publicada no jornal. Estavamos todos em casa do avô, o Sr. Noirtier, e além de nós estava lá também o Sr. Danglars... Creio que o conhece, é aquele banqueiro cujos cavalos quase mataram anteontem a minha madrasta e o meu irmão. Eu lia o jornal em voz alta ao meu avô, enquanto os
outros conversavam acerca do casamento de Mademoiselle Danglars. Quando cheguei ao parágrafo que lhe dizia respeito a si, Maximilien, e que já lera, porque o senhor me tinha dado essa boa notícia na véspera de manhã... quando cheguei, repito, ao parágrafo que lhe dizia respeito, estava tão feliz... mas também tão trêmula por ser obrigada a pronunciar o seu nome em voz alta, que decerto o omitiria se não receasse
que interpretassem mal o meu silêncio. Apelei, pois, para toda a minha coragem e o li.
            - Querida Valentine!
            - Pois bem, assim que soou o seu nome, Maximilien, o meu pai virou a cabeça. Estava tão persuadida (veja como sou louca!) de que todas as pessoas ia ser fulminada por esse nome como o seria por um raio, que julguei ver estremecer meu pai e até (quanto a esse foi uma ilusão, tenho a certeza), e até  o Sr. Danglars.
            “- Morrel?... - disse o meu pai. - Um momento? - Franziu o sobrolho e acrescentou: - Será um desses Morrels de Marselha, um desses facciosos bonapartistas que nos causaram tanto mal em 1815?
            “– Exato - respondeu Danglars. - Creio até  que se trata do filho do antigo armador.”
            - Ele disse isso? - estranhou Maximilien. - E que respondeu o seu pai, Valentine?
            - Oh, uma coisa horrível e que não ouso dizer-lhe!
            - Diga sempre - pediu Maximilien, sorrindo.
            “- O seu imperador - continuou de sobrolho franzido - sabia po-los no seu lugar, a todos esses fanáticos.  Chamava-lhes carne para canhão e era o único nome que mereciam. Verifico com prazer que o novo Governo repõe em vigor esse salutar princípio. Ainda que fosse apenas para isso que conservassemos a Argélia, felicitaria o Governo, apesar de nos custar um pouco cara.”
            - Trata-se, com eleito, de uma política bastante brutal - disse Maximilien. - Mas não core, querida amiga, pelo que disse o Sr. de Villefort. O meu excelente pai não ficava a dever nada ao seu nesse aspecto e repetia constantemente: “Porque será que o imperador, que tem feito tantas coisas boas, não faz um  regimento de juizes e advogados e os manda também para as primeiras linhas?”
            - Como vê, querida amiga, não ficam um atrás do outro pelo pitoresco da expressão e pela bondade da idéia. Mas que disse o Sr. Danglars a essa saída do procurador régio?
            - Oh, desatou a rir, com aquele riso velhaco que lhe é peculiar e que eu acho feroz! Pouco depois levantaram-se e saíram. Vi então que o meu bom avô estava agitadíssimo. Devo dizer-lhe, Maximilien, que só eu adivinho as agitações - do pobre paralítico, e Aliás já desconfiava que a conversa que tinham tido diante dele (porque já ninguém lhe presta atenção, pobre avô!) o deixara muito impressionado, atendendo a que
tinham dito mal do seu imperador, de quem, ao que parece, foi fanático.
            - É, com efeito - disse Maximilien –, um dos nomes conhecidos do Império. Foi senador e, como sabe, ou não sabe, Valentine, participou, em quase todas as conspirações bonapartistas que se verificaram no tempo da Restauração.
            - Sim, tenho ouvido falar às vezes, em voz baixa, a tal respeito. São coisas que me parecem estranhas: o avô, bonapartista: o pai, monárquico... Enfim, que lhe havemos de fazer?... Olhei portanto para ele, que me indicou o jornal com a vista.
            “- Então, avozinho, está satisfeito? – perguntei-lhe.
            “Fez-me sinal que sim com os olhos.
            “- Com o que o meu pai acaba de dizer? - perguntei.
            “Fez sinal que não.
            “- Com o que o Sr. Danglars disse?
            “Fez novamente sinal que não.
            “- Então é por esse Sr. Morrel - não me atrevi a dizer Maximilien - ter sido nomeado oficial da Legião de Honra?
            “Fez sinal que sim. Que lhe parece, Maximilien? Estava satisfeito pelo senhor ter sido nomeado oficial da Legião de Honra, apesar de o não conhecer. Talvez seja loucura da sua parte, pois dizem que regressou aos tempos da infância, mas fiquei a amá-lo ainda mais por aquele “sim”.
            - É estranho - murmurou Maximilien - o seu pai odiar-me, ao passo que, pelo contrário, o seu avô... Coisa estranha esses amores e esses ódios de partido!
            - Cale-se! - recomendou de súbito Valentine. - Esconda-se, fuja, vem aí gente!
            Maximilien saltou para uma enxada e desatou a revolver impiedosamente a lama.
            - Menina! Menina! - gritou uma voz atrás das árvores. – A Sra de Villefort procura-a por toda a parte e chama-a. Está uma visita na sala.
            - Uma visita?... - repetiu Valentine muito agitada. - E quem é essa visita?
            - Um grande senhor, um príncipe, ao que se diz, o Sr. Conde de Monte-Cristo.
            - Já vou - respondeu em voz alta Valentine.
            Estas palavras fizeram estremecer do outro lado do portão aquele para quem o “já  vou” de Valentine servia de adeus no fim de cada encontro.
            - E esta? - disse Maximilien para consigo, encostando-se muito pensativo à enxada. - Como é que o conde de Monte-Cristo conhece o Sr. de Villefort?

capítulo LII

Toxicologia


            Era sem dúvida nenhuma o Sr. Conde de Monte-Cristo que acabava de entrar em casa da Sra de Villefort, na intenção de retribuir ao Sr. Procurador régio a visita que este lhe fizera, e mal soara o seu nome toda a casa, como bem se compreende, se pusera em polvorosa.
            A Sra de Villefort, que se encontrava na sala quando lhe anunciaram o conde, mandou imediatamente chamar o filho para que o garoto reitera se os seus agradecimentos ao conde, e Edouard, que havia dois dias não ouvia falar doutra coisa a não ser da grande personagem, apressou-se a aparecer, não por obediência à mãe nem para agradecer ao conde, mas sim por curiosidade e para fazer qualquer observação que lhe
permitisse meter uma das suas “gracinhas", que faziam dizer à mãe: “Oh, que criança tão má! Mas tenho de lhe perdoar, pois é tão espirituoso!"
            Depois dos cumprimentos do costume, o conde perguntou pelo Sr. de Villefort.
            - O meu marido janta com o Sr. Chanceler - respondeu a jovem senhora. - saiu agora mesmo e lamentará muito, estou certa, ter sido privado do prazer de ve-lo.
             Dois visitantes que tinham precedido o conde na sala, e que o devoravam com os olhos, retiraram-se passado o tempo razoavelmente exigido tanto, pela cortesia como pela curiosidade.
            - A propósito, onde está a tua irmã Valentine? - perguntou a Sra de Villefort a Edouard. - Que a chamem, para que tenha a honra de apresentá-la ao Sr. Conde.
            - Têm uma filha, minha senhora? - perguntou o conde. - Nesse caso deve ser uma criança.
            - É filha do Sr. de Villefort - respondeu a jovem senhora uma filha do primeiro casamento, uma bonita moça.
            - Mas melancólica - interrompeu o jovem Edouard arrancando, para colocar como penacho no chapéu, as penas da cauda de uma magnífica arara, que gritou de dor no seu poleiro dourado.
            A Sra de Villefort limitou-se a dizer:
            - Silêncio, Edouard! Este jovem estouvado tem quase razão e repete o que muitas vezes ouve dizer com mágoa. Porque Mademoiselle de Villefort‚ é apesar de tudo o que fazemos para a distrair, de um caráter triste e de um humor taciturno, que muitas vezes prejudicam o efeito da sua beleza. Mas ela não vem... Edouard, vá ver porque se demora.
            - Porque a procuram onde ela não está.
            - E onde é que a procuram?
            - Nos aposentos do avô Noirtier.
            - E o menino acha que ela não está lá?
            - Não, não, não, não, não, não está lá! - respondeu Edouard, cantarolando.
            - Então onde é que está? Se sabe, diga-o. 
            - Está debaixo do castanheiro grande - continuou o endiabrado rapazinho, oferecendo, apesar dos gritos da mãe, moscas vivas ao papagaio, que parecia grande apreciador daquela espécie de caça.
            A Sra de Villefort estendia a mão para tocar e dizer à sua criada de quarto o lugar onde encontraria Valentine quando esta entrou. Parecia triste, com efeito, e observando-a atentamente se poderiam ver até  nos seus olhos vestígios de lágrimas.
            Valentine, que, levados pela rapidez da narrativa apresentamos aos leitores sem dala a conhecer, era uma moça alta e esbelta, de dezenove anos, cabelo castanho-claro, olhos azuis-escuros e andar languido e com o cunho da requintada distinção que caracterizava a mãe. As suas mãos brancas e esguias, o seu colo nacarado e as suas faces matizadas de cores fugazes davam-lhe à primeira vista o ar de uma dessas belas inglesas que por vezes se comparam, bastante poeticamente, nas suas atitudes, a cisnes presunçosos.
            Entrou e, vendo ao pé da madrasta o estrangeiro de quem tanto ouvira já falar, cumprimentou-o sem quaisquer trejeitos de adolescente e sem baixar os olhos, com uma graça que redobrou a atenção do conde.
            Este levantou-se.
            - Mademoiselle de Villefort, minha enteada - disse a Sra de Villefort a Monte-Cristo, inclinando-se no sofá e mostrando com a mão Valentine.
            - E o Sr. Conde de Monte-Cristo, rei da China e imperador da Cochinchina - acrescentou o jovem brincalhão, lançando um olhar velhaco à irmã.
            Desta vez, a Sra de Villefort empalideceu e esteve quase a perder a paciência com aquele flagelo doméstico chamado Edouard. Mas, muito pelo contrário do que esperava, o conde sorriu e pareceu olhar o fedelho com benevolência, o que levou ao cúmulo a alegria e o entusiasmo da mãe.
            - Mas, minha senhora - disse o conde, reatando a conversa e olhando alternadamente para a Sra de Villefort e para Valentine –, não tive já a honra de ve-la em qualquer parte, à senhora e à menina? Ainda há pouco pensava nisso, e quando a menina entrou a sua pessoa foi mais uma luz projetada sobre uma recordação confusa, perdoe-me a palavra.
            - Não é provável, senhor. Mademoiselle de Villefort aprecia pouco a sociedade e nós saímos raramente - respondeu a jovem senhora.
            - Por isso não foi na sociedade que vi a menina, nem a senhora, e muito menos este encantador maganão. Aliás, a sociedade parisiense me é absolutamente desconhecida, pois creio ter tido a honra de lhe dizer que me encontro em Paris apenas há dias. Não, se me permite que recorde... espere...
            O conde pôs a mão na testa, como que para concentrar todas as suas recordações.
            - Não, foi lá fora... foi... não sei bem... mas parece-me que esta recordação é inseparável de um belo sol e de uma espécie de festa religiosa... A menina tinha flores na mão, o menino corria atrás de um belo pavôo, num jardim a senhora... a senhora estava debaixo de um caramanchão em forma de abóbada... Ajude-me, minha senhora. O que acabo de lhe dizer não lhe lembra nada?
            - Não, na verdade - respondeu a Sra de Villefort. - E no entanto parece-me, senhor, que se o tivesse encontrado em qualquer parte a sua recordação teria ficado gravada na minha memória. 
            - Talvez o Sr. Conde nos tenha visto na Itália - sugeriu timidamente Valentine.
            - Com efeito, na Itália... é possível - admitiu Monte-Cristo. - já viajou pela Itália, menina?
            - Minha madrasta e eu estivemos lá dois anos. Os médicos temiam pelos meus pulmões e recomendaram-me o ar de Nápoles. Passamos por Bolonha, Perúsia e Roma.
            - É verdade, menina! - exclamou Monte-Cristo, como se aquela simples indicação bastasse para fixar todas as suas recordações. - Foi em Perúsia, no dia da festa do Corpo de Deus, no jardim da estalagem da posta, que o acaso nos reuniu: a senhora, a menina, o seu filho e eu. Recordo-me que foi aí que tive a honra de os ver.
            - Lembro-me perfeitamente de Perúsia, senhor, e da estalagem da posta, e da festa a que se refere - disse a Sra de Villefort –, mas, por mais que interrogue as minhas recordações, a minha memória deixa-me envergonhada, pois não me lembro de ter tido a honra de o ver.
            - É estranho, mas eu também não - disse Valentine, levantando os belos olhos para Monte-Cristo.
            - Eu me lembro! - exclamou Edouard.
            - Vou ajudá-la, minha senhora - prosseguiu o conde. - O dia estivera escaldante e a senhora esperava cavalos que não chegavam devido à solenidade. A menina afastou-se para a parte mais densa do jardim e o seu filho desapareceu correndo atrás da ave.
            - Apanhei-o, mãezinha, bem sabe, e arranquei-lhe três penas da cauda - declarou Edouard.
            - A senhora ficou debaixo da abóbada do caramanchão... Não se lembra de, enquanto esteve sentada num banco de pedra e de, como eu disse, enquanto Mademoiselle de Villefort e o seu filho estiveram ausentes, ter conversado durante bastante tempo com alguém?
            -Sim, realmente, lembro... - admitiu a jovem senhora, corando. - Lembro-me de conversar com um homem envolto numa grande capa de lã... com um médico, creio.
            - Exatamente minha senhora. Esse homem era eu. Havia quinze dias que estava hospedado na estalagem, curara o meu criado de quarto de uma febre e o estalajadeiro de icterícia, de modo que me olhavam como um grande médico. Conversamos demoradamente, minha senhora, de várias coisas: de Perusino, de Rafael, dos hábitos, dos costumes e da famosa  água-tofana, cujo segredo, segundo creio algumas pessoas lhe tinham dito, conservavam ainda em Perúsia.
            - Ah, é verdade, já me lembro! - disse vivamente a Sra de Villefort, com certo nervosismo.
            - Já não me recordo dos pormenores do que me disse, minha senhora - prosseguiu o conde com perfeita calma –, mas lembro-me perfeitamente de que, compartilhando a meu respeito o erro geral, me consultou acerca da saúde de Mademoiselle de Villefort.
            - No entanto, senhor, não há dúvida que se não fosse realmente médico não curaria doentes - observou a Sra de Villefort.
            - Moliére ou Beaumarchais lhe responderiam, minha senhora, que exatamente por não ser é que, em vez de curar os meus doentes, os meus  doentes se curaram. Por mim, limito-me a dizer-lhe que estudei bastante a fundo a química e as ciências naturais, mas apenas como curioso... compreende? Neste momento deram seis horas.
            - Já seis horas! - exclamou a Sra de Villefort, visivelmente agitada. - Não vai ver, Valentine, se o seu avô está pronto para jantar?
            Valentine levantou-se, cumprimentou o conde e saiu da sala sem dizer palavra.
            - Meu Deus, minha senhora, foi por minha causa que mandou Mademoiselle de Villefort embora? - perguntou o conde, depois de Valentine sair.
            - De modo algum - respondeu vivamente a jovem senhora. - Mas é que são horas de servirmos ao Sr. Noirtier a triste refeição que sustenta a sua pobre existência. Sabe em que estado deplorável se encontra o pai do meu marido, não sabe?
            - Sei, sim, minha senhora; o Sr. de Villefort falou-me disso. Uma paralisia creio.
            - Infelizmente! O pobre velho está completamente privado de movimentos. Só a alma vive naquela máquina humana, mas pálida e trêmula como uma lamparina prestes a apagar-se. Mas, perdão, senhor, se, para lhe falar dos meus infortúnios domésticos, o interrompi no momento em que me dizia ser um hábil químico.
            - Oh, não dizia tanto, minha senhora! - perguntou o conde, sorrindo. - Muito pelo contrário, estudei química porque, decidido a viver especialmente no Oriente, quis seguir o exemplo do rei Mitridates.
            - Mithridates, rex Ponticus - disse o estouvado filho da dona da casa, recortando gravuras de um álbum magnífico -, o mesmo que tomava todas as manhãs uma xicara de veneno com natas no café da manhã...
            - Edouard! Criança insuportável! - exclamou a Sra de Villefort, tirando o livro mutilado das mãos do filho. - O menino é muito mau e nos faz perder a paciência! Deixe-nos e vá  ter com a sua irmã Valentine aos aposentos do avô Noirtier.
            - O álbum... - pediu Edouard.
            - Como, o álbum?
            - Sim, quero o álbum...
            - Porque recortou as gravuras?
            - Porque isso me diverte.
            - Vá-se embora! Vá!
            - Não vou se não me der o álbum - replicou o garoto, sentando-se num cadeirão, fiel ao seu hábito de nunca ceder.
            - Tome e deixe-nos tranquilos - disse a Sra de Villefort.
            E deu o álbum a Edouard, que saiu, acompanhado da mãe.
            O conde seguiu com a vista a Sra de Villefort.
            - Vejamos se ela fecha a porta... - murmurou Monte-Cristo.
            A Sra de Villefort fechou a porta com o maior cuidado depois do garoto sair. O conde não pareceu dar por isso. Depois, a jovem senhora olhou à sua volta e sentou-se novamente na sua conversadeira. 
            - Permita-me que lhe observe, minha senhora - disse o conde com a bonomia que lhe conhecemos –, que é muito severa com aquele encantador garoto.
            - Assim é preciso, senhor - replicou a Sra de Villefort, com autênticos ares de mãe severa.
            - O Sr. Edouard recitava o seu Cornélio Nepos quando se reteria ao rei Mitridates - observou o conde -,  e a senhora interrompeu-o numa citação que prova que o seu preceptor não tem perdido o seu tempo com ele e que o seu filho está muito adiantado para a idade.
            - De fato, senhor - respondeu a mãe, agradavelmente lisonjeada -, tem uma grande facilidade e aprende tudo o que quer. Só tem um defeito, ser muito voluntarioso. Mas, a propósito do que ele dizia, acha, Sr. Conde, que por exemplo Mitridates se daria ao incômodo de tomar tais precauções e que essas precauções fossem eficazes?
            - Tanto acho, minha senhora, que eu, que lhe falo, as tomei para não ser envenenado em Nápoles, Palermo e Esmirna, isto é, em três ocasiões em que, sem essa precaução, poderia ter perdido a vida.
            - E o meio que empregou deu-lhe resultado?
            - Perfeitamente.
            - Sim, é verdade, lembro-me de ter contado qualquer coisa desse gênero em Perúsia.
            - Deveras? - perguntou o conde, com uma surpresa admiravelmente simulada. - Não me lembro...
            - Perguntava-lhe se os venenos atuavam igualmente e com idêntica energia sobre os homens do Norte e sobre os homens do Meio-Dia, e o senhor respondia-me que os temperamentos frios e linfáticos dos Setentrionais não representavam a mesma aptidão que a rica e energica natureza das pessoas do Meio-Dia.
            - É verdade - reconheceu Monte-Cristo. - Vi russos devorar, sem serem incomodados, substâncias vegetais que matariam infalivelmente um napolitano ou um árabe.
            - Acha portanto que o resultado seria ainda mais seguro entre nós do que no Oriente e de que no meio dos nossos nevoeiros e das nossas chuvas um homem se habituaria mais facilmente do que numa latitude mais quente a essa absorção gradual do veneno?
            - Certamente. Mas claro que só ficaria imunizado contra o veneno a que estivesse habituado.
            - Sim, compreendo. E como se habituaria o senhor, por exemplo, ou antes, como se habituou?
            - Muito facilmente. Suponha que sabia antecipadamente que veneno utilizariam contra a senhora... e suponha que esse veneno era... a brucina, por exemplo...
            A brucina extrai-se da faisa-angustura (1), segundo creio - disse a Sra de Villefort. 

(1) Brucea ferruginea. (N. do T.)

            - Justamente, minha senhora - respondeu Monte-Cristo. - Creio que não tenho muito que lhe ensinar. Os meus cumprimentos: conhecimentos desses são raros nas mulheres.
            - Oh, confesso que tenho uma grande paixão pelas ciências ocultas que falam à imaginação como uma poesia e se resolvem com números, como uma equação algébrica! - declarou a Sra de Villefort. - Mas continue, peço-lhe. O que me diz interessa-me no mais alto grau.
            - Bom - prosseguiu Monte-Cristo –, suponha que o veneno era a brucina, por exemplo, e que tomava um miligrama no primeiro dia, dois miligramas no segundo, e assim sucessivamente. Ao fim de dez dias teria um centigrama, e ao fim de vinte dias, aumentando outro miligrama, teria três centigramas, isto é, uma dose que suportaria sem inconveniente, mas que seria já perigosíssima para outra pessoa que não tivesse tomado as mesmas precauções que a senhora. Enfim, passado um mês, bebendo água da mesma garrafa, mataria a pessoa que bebesse dessa água ao mesmo tempo que a senhora, sem que a senhora notasse, a não ser por um simples mal-estar, a existência de qualquer substância venenosa misturada na água.
            - Não conhece outro contraveneno?
            - Não, não conheço.
            - Li e reli muitas vezes essa história de Mitridates - declarou a Sra de Villefort –, mas tomei-a por uma fábula.
            - Não, minha senhora. Contra o hábito da história, é uma realidade. Mas o que me diz e o que me pergunta não é de modo algum o resultado de um capricho, pois já há dois anos me fez idênticas perguntas, e segundo me diz há muito tempo que essa história de Mitridates a preocupava.
            - É verdade, senhor, os dois estudos favoritos da minha juventude foram a botânica e a mineralogia, e depois, quando soube mais tarde que o emprego das simples explicava muitas vezes toda a história dos povos e toda a vida dos indivíduos do Oriente, tal como as flores explicam todo o seu pensamento amoroso, lamentei não ser homem para me tornar um Flamel, um Fontana ou um Cubanis.
            - Tanto mais, minha senhora - prosseguiu Monte-Cristo  -, que os Orientais não se limitam, como Mitridates, a usar os venenos como uma couraça, usam-nos também como um punhal. A ciência transforma-se nas mãos não só numa arma defensiva, mas também muitas vezes ofensiva. Uma utilizam-na contra os seus sofrimentos físicos, a outra contra os seus inimigos. Com o ópio, com a beladona, com a faisa-angustura, com o pau-de-cobra, com o loureiro-cereja, adormecem para sempre quem querem. Não há uma só dessas mulheres egípcias, turcas ou gregas, daquelas a que chamam aqui mulheres de virtude, que não saiba de química o bastante para embasbacar um médico e de psicologia o suficiente para aterrorizar um
confessor.
            - Sim?! - exclamou a Sra de Villefort, a quem esta conversa dava aos olhos um brilho estranho.
            - Claro que sim, minha senhora continuou Monte-Cristo. - Os dramas secretos do Oriente atam-se e desatam-se assim, desde a planta que faz amar até  à planta que faz morrer, desde a beberagem que abre as portas do Céu até  àquela que mergulha um homem no Inferno. Existem tantos matizes de todos os gêneros
como caprichos e extravagancias na natureza humana, física e moral. 
            Direi mais, a arte desses químicos permite-lhes conciliar admiravelmente o remédio e o mal com as suas necessidades de amor ou os seus desejos de vingança.
            - Mas, senhor, essas sociedades orientais no meio das quais passou parte da sua existência são assim tão fantásticas como as histórias que nos vêm desses belos países? - perguntou a jovem senhora. - Um homem pode ser lá suprimido impunemente? É portanto realidade a Bagda de ou a Baçor  de que nos fala Galland? Os sultões e os vizires que dirigem essas sociedades e constituem o que na França chamamos o Governo são realmente Haruns-al-Raschid e Giafares que não só perdoam a um envenenador, como ainda o fazem primeiro-ministro, se o crime foi engenhoso, e neste caso mandam gravar a história em letras de ouro para se divertirem nas horas de aborrecimento?
            - Não, minha senhora, o fantástico já não existe no Oriente. Mas existem, embora disfarçados sob outros nomes e ocultos sob outros trajes, comissários de polícia, juízes de instrução, procuradores régios e peritos. Lá também se enforcam, decapitam e empalam com imenso prazer os criminosos. O que acontece é que estes, hábeis como são, sabem despistar a justiça humana e assegurar o êxito dos seus  empreendimentos por meio de combinações oportunas. Entre nós, um idiota possesso do demônio do ódio ou da cupidez, que tem um inimigo a destruir ou um avô a aniquilar, dirige-se a um droguista, dá-lhe um nome falso que o denuncia muito melhor do que o seu nome verdadeiro, e compra, a pretexto de que os ratos o
impedem de dormir, cinco a seis gramas de arsênico. Se é muito espertinho, vai a cinco ou seis droguistas e é apenas cinco ou seis vezes melhor reconhecido. Depois, de posse do seu específico, administra ao seu inimigo, ao seu avô, uma dose de arsênico que faria rebentar um mamute ou um mastodonte e que inesperadamente fazem a vítima soltar berros que põem todo o bairro em alvoroço. Surge então um enxame de agentes da polícia e de guardas, manda-se chamar um médico, que abre o morto e lhe recolhe no estomago e nas entranhas o arsênico, às colheres e no dia seguinte cem jornais relatam o acontecimento
com o nome da vítima e do assassino. Nessa mesma tarde, o droguista ou os droguistas vem ou vêm dizer. “Fui eu que vendi o arsênico a esse senhor." E mesmo que não se lembrem do rosto do comprador, o reconhecerão vinte vezes. Então, o criminoso idiota é preso, interrogado, acareado, confundido, condenado e
guilhotinado. Ou, se é uma mulher de algum valor, condenam-na a prisão perpétua. Aqui tem como os seus Setentrionais entendem a química, minha senhora. No entanto, devo confessar que Destrues era mais esperto.
            - Que quer, senhor, faz-se o que se pode! - disse, rindo, a jovem senhora. - Nem toda a gente está no segredo dos Médicis ou dos Bórgias.
            - Agora, quer que lhe diga a causa de todas essas inépcias? - perguntou o conde, encolhendo os ombros. - É que nos vossos teatros, pelo menos pelo que tenho podido julgar lendo as peças que se representam, vê-se sempre personagens engolir o conteúdo de um frasco ou morder o engaste de um anel e caírem redondamente mortas. Cinco minutos mais tarde o pano desce e os espectadores dispersam-se. Ignoram-se as consequências do crime; nunca se vê o comissário da polícia com a sua faixa, nem o cabo com os seus quatro homens, e isso autoriza muitos pobres cérebros a pensar que as coisas se passam assim. Mas saia um bocadinho de França, vá, quer a Alepo, quer ao Cairo, quer apenas a  Nápoles e a Roma, e verá passar nas ruas pessoas direitas, frescas e rosadas, acerca das quais o Diabo coxo, se a aflorasse com a sua capa, lhe poderia dizer: “Aquele cavalheiro está envenenado há três semanas e morrerá
irremediavelmente dentro de um mês."
            - Mas então terão reencontrado o segredo da famosa água-tofana, que me diziam ter-se perdido em Perúsia? - perguntou a Sra de Villefort.
            - Meu Deus, senhora, haverá alguma coisa que se perca entre os homens? As artes deslocam-se e dão a volta ao mundo; as coisas mudam de nome, apenas, e o vulgo confunde-as; mas o resultado é sempre o mesmo. O veneno incide especialmente sobre este ou aquele ôrgão. Um sobre o estomago, outro sobre o cérebro, outro sobre os intestinos. O veneno provoca uma tosse e essa tosse, uma pneumonia ou qualquer outra doença catalogada no livro da ciência, o que a não impede de ser perfeitamente mortal, e que, mesmo que o não fosse, se tornaria, graças aos remédios que lhe administram os ingênuos médicos, em geral
péssimos químicos, e que atuarão a favor da doença ou contra ela, conforme se queira. E aqui tem um homem morto com arte e dentro de todas as regras, a respeito do qual a justiça não tem nada a saber, como dizia um horrível químico meu amigo, o excelente abade Adelmonte de Taormine, da Sicília, que estudara profundamente esses fenômenos nacionais.
            - É horrível, mas é admirável - disse a jovem senhora, imóvel de atenção.
            - Julgava, confesso, todas essas histórias invenções da Idade Média.
            - Sim, sem dúvida, mas aperfeiçoadas nos nossos dias. Para que julga que servem o tempo, os incentivos, as medalhas, as condecorações, os prêmios Montyon, senão para conduzir a sociedade à sua maior perfeição? Ora o homem só será perfeito quando for capaz de criar e destruir como Deus. Já sabe
destruir, tem meio caminho andado.
            - De modo - prosseguiu a Sra de Villefort, voltando invariavelmente ao seu tema - que os venenos dos Bôrgias, dos Médicis, dos Renés, dos Ruggieri e mais tarde provavelmente do barão de Trenk, de que tanto têm abusado o drama moderno e o romance...
            - Eram objetos de arte, minha senhora, e não outra coisa - respondeu o conde. - Julga que o verdadeiro sábio se dirige vulgarmente ao próprio indivíduo? Não. A ciência aprecia os ricochetes, as grandes audácias, a fantasia, se assim se pode dizer. Por exemplo, o excelente abade Adelmonte, de que lhe falava há pouco, procedera nesse campo a experiências surpreendentes.
            - Deveras?
            - Deveras. Cito-lhe apenas uma. Ele possuía um belíssimo quintal cheio de legumes, flores e frutos. Entre esses legumes escolhia o mais inofensivo de todos, uma couve, por exemplo. Durante três dias regava a couve com uma solução de arsênico. Ao terceiro dia, a couve adoecia e amarelecia; era a altura de cortá-la. Para toda a gente, parecia madura e conservava a sua aparência inofensiva; só para o abade Adelmonte estava envenenada. Então levava a couve para casa, pegava um coelho - o abade Adelmonte tinha uma coleção de coelhos, gatos, e porquinhos-da-índia que nada ficavam a dever à sua coleção de legumes, flores e frutos –, o abade Adelmonte pegava então um coelho, dava-lhe a comer uma folha de couve e o coelho
morria. Que juiz de instrução ousaria insurgir-se contra isto e que procurador régio se lembraria alguma vez de  proceder judicialmente contra o Sr. Magendie ou o Sr. Flourens por causa dos coelhos, dos porquinhos-da-índia e dos gatos que têm matado? Nenhum. Temos portanto um coelho morto sem que a justiça se incomode com isso. Morto o coelho, o abade Adelmonte manda-o esvaziar pela sua cozinheira e atira as vísceras para uma estrumeira. Na estrumeira há uma galinha, que debica as vísceras do coelho, adoece por seu turno e morre no dia seguinte. No momento em que ela se debate nas convulsões da agonia, passa um abutre (há  muitos abutres na terra de Adelmonte), que desce sobre o cadáver, leva-o para um rochedo e come-o. Três dias mais tarde, o pobre abutre, que desde essa refeição andou constantemente indisposto, sente uma
vertigem. No momento em que voa muito alto. Rola no vácuo e vem cair pesadamente no seu viveiro, minha senhora. O lúcio, a enguia e a moreia são insaciáveis, como sabe, e mordem o abutre. Bom, suponha agora que no dia seguinte servem à sua mesa essa enguia, esse lúcio ou essa moreia, envenenados em quarto lugar, e que o seu conviva e envenenado em quinto e morre ao fim de oito ou dez dias de dores de barriga, de
náuseas, de tumores no piloro. Se fará a autópsia e os médicos dirão: “O paciente morreu de um tumor no fígado ou de uma febre tifóide."
            - Mas todas essas circunstâncias que o senhor encadeia umas nas outras podem ser interrompidas pelo mais pequeno acidente - observou a Sra de Villefort. - O abutre pode não passar a tempo ou cair a cem passos do viveiro.
            - Ora é precisamente aí que reside a arte! Para se ser um grande químico no Oriente é necessário dirigir o acaso. E isso consegue-se.
            A Sra de Villefort escutava, pensativa.
            - Mas - disse ela - o arsênico é indelével. Seja qual for a forma como se absorva, se encontrará no corpo do homem desde o momento que tenha sido tomado em quantidade suficiente para causar a morte.
            - Exato, exato! - exclamou Monte-Cristo. - é precisamente o que diz o bom Adelmonte!
            "Refletiu, sorriu e respondeu-me através de um provérbio siciliano, que me parece ser também um provérbio francês:  "Meu filho, o mundo não foi feito num dia, mas sim em sete; volte no domingo."
            "No domingo seguinte voltei. Em vez de ter regado a sua couve com arsênico, regara-a com uma solução de sal à base de estricnina, strychnos colubrina, como dizem os sabios. Desta´vez a couve não apresentava o mais pequeno sinal de doença deste mundo e por isso o coelho não desconfiou de nada. Mas
cinco minutos depois estava morto. A galinha comeu o coelho e no dia seguinte morreu também. Então fizemos de abutres: apoderamo-nos da galinha e abrimo-la. Desta vez todos os sintomas particulares tinham desaparecido e só restavam os sintomas gerais. Nenhuma indicação especial em nenhum ôrgão; apenas excitação do sistema nervoso e vestígios de congestão cerebral, mas mais nada. A galinha não fora envenenada, morrera de apoplexia. É um caso raro entre as galinhas, bem sei, mas muito comum entre os homens.
            A Sra de Villefort parecia cada vez mais pensativa.
            - É uma sorte - disse ela - que semelhantes substâncias só possam ser preparadas por químicos, pois de contrário metade do mundo envenenaria a outra metade. 
            - Por químicos ou por pessoas que se ocupem da química - respondeu negligentemente Monte-Cristo.
            - E depois - disse a Sra de Villefort, arrancando-se com esforço aos seus pensamentos –, por mais habilmente preparado que seja, o crime é sempre o crime, e se escapa à investigação humana, não escapa ao olhar de Deus. Os Orientais são mais fortes do que nós nos casos de consciência e suprimiram
prudentemente o Inferno...
            - Bom, minha senhora, isso é um escrúpulo que brota naturalmente de uma alma pura como a sua, mas que não tardará a ser extirpado pelo raciocínio. O lado mau do pensamento humano será sempre resumido por este paradoxo de Jean-Jacques Rousseau, como sabe: “O mandarim que se mata a cinco mil léguas de distância levantando a ponta do dedo." A vida do homem passa-se a fazer tais coisas e a sua inteligência
esgota-se a arquitetá-las. Encontra muito pouca gente disposta a espetar brutalmente uma faca no coração do seu semelhante ou a administrar-lhe, para o fazer desaparecer da superfície do globo, a quantidade de arsênico a que nos referíamos há pouco. Há nisso realmente uma excentricidade ou uma tolice. Para se chegar a esse ponto é necessário que o sangue aqueça a trinta e seis graus, que o pulso bata a noventa pulsações e que a alma saia dos seus limites correntes. Mas se passarmos, como se pratica em filologia, da
palavra ao sinônimo atenuado, procedemos a uma simples eliminação. Em vez de cometermos um assassínio ignóbil, se afastarmos pura e simplesmente do nosso caminho aquele que nos incomoda, e isso sem choque, sem violência, sem recorrer ao aparelho dos sofrimentos que descambando em suplício, fazem da vítima um mártir e daquele que assim procede um carniceiro na pior acepção da palavra; se não houver sangue, nem berros, nem contorções, nem sobretudo essa horrível e comprometedora instantaneidade da execução, então escapamos ao gládio da lei humana, que nos diz: “Não perturbe a sociedade! " É assim que
procedem e triunfam as gentes do Oriente, personagens graves e fleumáticas, que se preocupam pouco com questões de tempo nas conjecturas de certa importância.
            - Resta a consciência - disse a Sra de Villefort, com voz estrangulada e um suspiro abafado.
            - Sim, felizmente resta a consciência, sem a qual seríamos infelicíssimos - concordou Monte-Cristo. - Depois de qualquer ação um pouco enérgica, é a consciência que nos salva, porque nos fornece mil boas desculpas, das quais só nós somos juízes. E essas razões, por mais excelentes que sejam para nos
conservar o sono, talvez fossem medíocres perante um tribunal para nos conservar a vida. Assim, Ricardo III, por exemplo, deve ter sido maravilhosamente servido pela consciência depois da supressão dos dois filhos de Eduardo IV. Com efeito podia dizer para consigo: “Estes dois filhos de um rei cruel e perseguidor, e que tinham herdado os vícios do pai, que só eu soube reconhecer nas suas inclinações juvenis; estes dois filhos impediam-me de fazer a felicidade do povo inglês, de que teriam infalivelmente feito a infelicidade." Assim foi
servida pela sua consciência Lady Macbeth, que pretendia, ao contrário do que disse Shakespeare, dar um trono, não ao marido, mas sim ao filho. Ah, o amor materno é uma virtude tão grande, um móbil tão poderoso, que leva a desculpar muitas coisas! Por isso depois da morte de Duncan, Lady Macbeth teria sido infelicíssima sem a sua consciência.  
            A Sra de Villefort absorvia com avidez estas medonhas máximas e estes horríveis paradoxos proferidos pelo conde com a ingênua ironia que lhe era peculiar. Passado um momento de silêncio, observou:
            - Sabe, Sr. Conde, que é um terrível argumentador e que vê o mundo a uma luz um tanto lívida? Foi observando a humanidade através dos alambiques e das retortas que a julgou dessa maneira? Porque tinha razão, é um grande químico, e esse elixir que deu ao meu filho e que tão rapidamente o trouxe à vida...
            - Oh, não exagere, minha senhora! - perguntou Monte-Cristo. - Uma gota desse elixir bastou para trazer à vida uma criança que morria, mas três gotas a teriam impelido o sangue para os pulmões de maneira a causar-lhe palpitações, seis lhe cortariam a respiração e lhe causariam uma síncope muito mais grave do que aquela em que se encontrava, e, finalmente, dez o têriam fulminado. Lembre-se, minha senhora, de afastá-lo daqueles frascos, nos quais tinha a imprudência de tocar?
            - Trata-se portanto de um veneno terrível?
            - Meu Deus, não! Antes de mais nada admitamos isto: que o meu veneno não existe, pois empregam-se em medicina venenos mais violentos, que se tornam, devido à forma como são administrados, remédios salutares.
            - De que se trata então?
            - De um engenhoso preparado do meu amigo, esse excelente abade Adelmonte, de que ele me ensinou a servir.
            - Oh, deve ser um ótimo antiespasmódico! - exclamou a Sra de Villefort.
            - Soberano, minha senhora, como viu - respondeu o conde. - Utilizo-o com frequência, embora com toda a prudência possível, evidentemente - acrescentou rindo.
            - Acredito - replicou no mesmo tom a Sra de Villefort. - Pelo que me diz respeito, tão nervosa e atreita a perder os sentidos como sou, bem precisaria de um Dr. Adelmonte para me inventar meios que me permitissem respirar livremente e tranquilizar-me acerca do receio que tenho de morrer um belo dia asfixiada. Entretanto, como o remédio é difícil de encontrar na França, e provavelmente o seu abade não está disposto a vir a Paris por minha causa, contento-me com os antiespasmódicos do Sr. Planche e com a hortelã-pimenta e as gotas de Hoffmann, esperando que desempenhem em mim um grande papel. Olhe, aqui tem as pastilhas que mando fazer propositadamente. São em dose dupla.
            Monte-Cristo abriu a caixa de tartaruga que lhe estendia a jovem senhora e aspirou o aroma das pastilhas como um amador digno de apreciar aquele preparado.
            - São excelentes - disse -, mas têm um contra: estão submetidas à necessidade da deglutição, função que muitas vezes a pessoa desmaiada não pode desempenhar. Prefiro o meu específico.
            - Evidentemente que também eu o preferiria, sobretudo depois dos efeitos que lhe vi. Mas trata-se decerto de um segredo e não sou suficientemente indiscreta para lho pedir.
            - Mas, minha senhora - perguntou Monte-Cristo, levantando-se -, sou eu suficientemente galante para lhe oferecer.
            - Oh, senhor! 
            - Mas não se esqueça de uma coisa: que em pequena dose é um remédio e em forte dose um veneno. Uma gota restitui a vida, como viu; cinco ou seis matariam infalivelmente, e de forma tanto mais terrível quanto é certo que, deitadas num copo de vinho, lhe não alterariam o gosto. Mas não digo mais nada, minha senhora, pois leria quase o ar de a aconselhar. Acabavam de soar seis e meia e anunciaram uma amiga da Sra de
Villefort que vinha jantar com ela.
            - Se tivesse a honra de ve-lo pela terceira ou quarta vez, Sr. Conde, em vez de ve-lo pela segunda - disse a Sra de Villefort –; se não receasse abusar, insistiria que ficasse para jantar e não desistiria à primeira recusa.
            - Mil agradecimentos, minha senhora - respondeu Monte-Cristo -, mas eu próprio tenho um compromisso ao qual não posso faltar. Prometi acompanhar ao teatro uma princesa grega minha amiga que ainda não viu a Grande Ópera e que conta comigo para levá-la.
            - Vá, senhor, mas não esqueça a minha receita.
            - Como poderia esquece-la, minha senhora? Para isso seria preciso esquecer também a hora de conversa que acabo de passar junto de si, o que é absolutamente impossível.
            Monte-Cristo cumprimentou e saiu. A Sra de Villefort ficou pensativa.
            - Aqui está um homem estranho - murmurou - e que tem todo o ar de se chamar Adelmonte de seu nome de batismo. Quanto a Monte-Cristo, o resultado excedera a sua expectativa.
            - Aqui está uma boa terra - disse para consigo enquanto saía.  - Estou convencido de que a semente que nessa se lance não deixará de germinar...
            E no dia seguinte, fiel à sua promessa, mandou a receita pedida.


Capítulo LIII

Roberto, o diabo


            A desculpa da Ópera era tanto mais fácil de dar quanto é certo haver naquela noite sessão solene na Academia Real de Música. Levasseur, depois de uma demorada indisposição, regressava no papel de Bertram, e, como sempre, a obra do maestro da moda atraíra a mais brilhante sociedade de Paris.
            Morcerf, como a maioria dos rapazes ricos, tinha a sua cadeira de orquestra, além de mais dez camarotes de pessoas de seu conhecimento às quais podia ir pedir lugar, sem contar com aquele a que tinha direito no camarote dos leões. Château-Renaud tinha uma cadeira ao pé dele. Beauchamp, na sua qualidade de jornalista, era rei da sala e tinha lugar em toda a parte.
            Naquela noite, Lucien Debray dispunha do camarote do ministro e oferecera-o ao conde de Morcerf, o qual, perante a recusa de Mercedes, o cedera a Danglars, mandando-lhe dizer que provavelmente faria durante o espetáculo uma visita à baronesa e à filha, se elas se dignassem aceitar o camarote que lhe oferecia. Claro que elas aceitaram. Não há como os milionários para cobiçarem camarotes que lhes não custam nada.
            Quanto a Danglars, declarara que os seus princípios políticos e a sua qualidade de deputado da oposição lhe não permitiam entrar no camarote do ministro. Por consequência, a baronesa escrevera a Lucien para que viesse buscá-la, atendendo a que não podia ir à Ópera sozinha com Eugênie.
            Com efeito, se as duas mulheres fossem sós, todos teriam achado isso de muito mau gosto, ao passo que Mademoiselle Danglars, indo à Ópera com a mãe e o amante da mãe, não provocava quaisquer comentários. É preciso aceitar o mundo como ele é.
            O pano subiu, como de costume, perante uma sala quase vazia. Era mais um hábito da sociedade parisiense: chegar ao teatro depois do espetáculo começar. Daí resultava que o primeiro ato se passava, da parte dos espectadores chegados, não a ver ou ouvir a peça, mas sim a ver entrar os espectadores que iam
chegando e ouvir apenas o barulho das portas e das conversas.
            - Olha! - exclamou de súbito Albert ao ver abrir-se um camarote de primeira ordem. - Olha a condessa G...!
            - Quem é essa condessa G...? - perguntou Château-Renaud.
            - Essa agora, barão! Aí está uma pergunta que lhe não perdoo! Pergunta quem é essa condessa G...?
            - Ah, é verdade!-exclamou Château-Renaud – Não é aquela encantadora veneziana?
            - Exatamente.
            Neste momento a condessa G... viu Albert e trocou com ele um cumprimento acompanhado de um sorriso.
            - Conhece-a? - perguntou Château-Renaud.
            - Conheço - respondeu Albert. - Fui-lhe apresentado em Roma pelo Franz.
            - Quer prestar me em Paris o mesmo favor que Franz lhe prestou em Roma?
            - Com muito prazer.
            - Calem-se! - protestou o público.
            Os dois rapazes continuaram a conversar sem parecerem preocupar-se absolutamente nada com o desejo que a platéia manifestava de querer ouvir a música.
            - Eu a vi nas corridas do Campo de Marte - informou Château-Renaud.
            - Hoje?
            - Sim.
            - Ah, de fato havia corridas. Apostou?
            - Apostei. Oh, uma miséria! Cinquenta luíses.
            - E quem ganhou?
            - O Nautilus. Apostei nele.
            - Mas não havia três corridas?
            - Havia. E também havia o prêmio do Jockey-Club, uma taça de ouro. até  aconteceu uma coisa muito estranha.
            - Qual?
            - Calem-se! - tornou a gritar o público.
            - Qual? - repetiu Albert. 
            - Foi um cavalo e um jôquei completamente desconhecidos que ganharam essa corrida.
            - Como?...
            - Palavra! Ninguém prestara atenção a um cavalo inscrito sob o nome de Vampa, nem a um jóquei inscrito sob o nome de Job, quando se viu avançar a toda a velocidade um admirável alazão e um jóquei do tamanho de um palmo. Tiveram de lhe meter vinte libras de chumbo nas algibeiras, o que não o impediu de chegar ao fim com três comprimentos de avanço sobre Ariel e o Barbaro, que corriam com ele.
            - E ninguém descobriu a quem pertenciam o cavalo e o jóquei?
            - Ninguém.
            - Disse que o cavalo estava inscrito sob o nome de...
            - Vampa.
            - Então estou mais adiantado do que você - disse Albert. - Sei a quem pertence.
            - Silêncio! - gritou pela terceira vez a plateia.
            Desta vez o protesto era tão firme que os dois jovens deram finalmente por isso e verificaram que era a eles que o público se dirigia. Viraram-se um instante, procurando na multidão um homem que tomasse a responsabilidade do que consideravam uma impertinência, mas ninguém disse nada e eles voltaram-se para
o palco. Neste momento o camarote do ministro abriu-se e a Sra Danglars, a filha e Lucien Debray ocuparam os seus lugares.
            - Ah, ah! - murmurou Château-Renaud. - Estão ali umas pessoas suas conhecidas, visconde. Que diabo está vendo do lado direito? Procuram-no.
            Albert virou-se e os seus olhos encontraram efetivamente os da baronesa Danglars, que o cumprimentou com o leque. Quanto a Mademoiselle Eugênie, foi a custo que os seus grandes olhos
negros se dignaram a descer até  à orquestra.
            - Na verdade, meu caro - disse Château-Renaud –, não compreendo, excetuando a diferença de condição social, e não creio que isso o preocupe muito, não compreendo, repito, que, excetuando a diferença de condição social, possa ter qualquer coisa contra Mademoiselle Danglars, que é realmente uma lindíssima moça.
            - Muito bonita, decerto - concordou Albert. - Mas confesso-lhe que em vez de beleza preferiria qualquer coisa mais meiga, mais suave, mais feminina, enfim.
            - Ora vejam estes rapazes! - exclamou Château-Renaud. que, na sua qualidade de homem de trinta anos, tomava com Morcerf ares paternais. - Nunca estão satisfeitos. Então, meu caro, arranjam-lhe uma noiva que parece uma Diana caçadora e você não está contente?!
            - Precisamente por isso. Preferiria qualquer coisa no gênero da Vênus de Milo ou de Capua. Aquela Diana caçadora sempre no meio das suas ninfas assusta-me um pouco. Receio que me trate como Actéon.
            Com efeito, uma olhadela à jovem quase podia explicar o sentimento que acabava de confessar Morcerf. Mademoiselle Danglars era bela, mas, como dissera Albert, de uma beleza um pouco parada. Os seus cabelos eram de um bonito negro, mas nas suas ondas naturais notava-se certa rebelião à mão que queria impor-lhes a sua vontade; os seus olhos, negros como os cabelos, emoldura  dos por magníficas sobrancelhas, que só tinham um defeito, o de se franzirem de vez em quando, eram sobretudo notáveis por uma expressão de firmeza que admirava encontrar no olhar de uma mulher; o seu nariz tinha as proporções exatas que um estatuário daria ao de Juno; apenas a boca era demasiado grande, mas guarnecida de lindos dentes, que ainda mais faziam sobressair os lábios, cujo carmim excessivamente vivo contrastava com a palidez do rosto; finalmente, um sinal preto colocado ao canto da boca, e maior do que são habitualmente tais caprichos da natureza, acabava de lhe dar à fisionomia o ar decidido que assustava um bocadinho Morcerf.
            Aliás, todo o resto da pessoa de Eugênie se conjugava com a cabeça que acabamos de tentar descrever. Era, como dissera Château-Renaud, uma Diana caçadora, mas com qualquer coisa ainda de mais firme e musculoso na sua beleza.
            Quanto à educação que recebera, se havia alguma critica a fazer-lhe era que, como certos pontos da sua fisionomia, parecia pertencer um bocadinho ao outro sexo. Com efeito, falava duas ou três línguas, desenhava facilmente, escrevia versos e compunha música. Era sobretudo apaixonada por esta última arte, que estudava com uma das suas amigas de colégio, jovem sem fortuna mas dotada de todas as condições exigíveis para se tornar, segundo se afirmava, uma excelente cantora. Um grande compositor dedicava-lhe, ao que constava, um interesse quase paternal e fazia-a trabalhar, confiado em que ela encontraria um dia uma fortuna na voz.
            A possibilidade de Mademoiselle Louise de Armilly, assim se chamava a jovem artista, entrar um dia para o teatro fazia com que Mademoiselle Danglars, embora a recebesse em sua casa, se não mostrasse em público na sua companhia. De resto, sem ter em casa do banqueiro a posição independente de uma amiga,
Louise tinha uma posição superior à das vulgares professoras.
            Poucos segundos depois da entrada da Sra Danglars no seu camarote, o pano descera, e graças à faculdade, permitida pelo tamanho dos intervalos, de as pessoas poderem passear no foyer ou fazerem visitas durante meia hora, a platéia desguarnecera-se pouco a pouco.
            Morcerf e Château-Renaud tinham sido os primeiros a sair. Por um momento, a Sra Danglars pensara que a pressa de Albert tinha como finalidade vir apresentar-lhe os seus cumprimentos, e inclinara-se ao ouvido da filha para lhe anunciar a visita. Mas a jovem limitara-se a abanar a cabeça sorrindo. E ao mesmo
tempo, como que para provar até  que ponto a denegação de Eugênie era fundada, Morcerf apareceu num camarote de primeira ordem. Esse camarote era o da condessa G...
            - Ah, ei-lo, Sr. Viajante! - exclamou a condessa, estendendo-lhe a mão com toda a cordialidade de uma velha amiga. - Foi muito amável da sua parte ter-me reconhecido e sobretudo ter-me dado a preferência para a sua primeira visita.
            - Creia, minha senhora - respondeu Albert -, que se tivesse sabido da sua chegada a Paris e conhecesse a sua morada, não teria esperado até  tão tarde. Mas permita-me que lhe apresente o Sr. Barão de Château-Renaud, meu amigo, um dos raros gentis-homens, que ainda restam na França e por quem acabo de saber que a senhora esteve nas corridas do Campo de Marte.
            Château-Renaud a cumprimentou. 
            - Ah, o senhor esteve nas corridas? - disse vivamente a condessa.
            - Estive, sim, minha senhora.
            - Nesse caso - prosseguiu, não menos vivamente, a Sra G... -, poder  dizer-me a quem pertencia o cavalo que ganhou o prêmio do Jockey-Club?
            - Não, minha senhora - respondeu Château-Renaud -, e ainda há pouco fazia a mesma pergunta ao Albert.
            - Tem muito interesse nisso, Sra Condessa? - perguntou Albert.
            - Em quê?
            - Em conhecer o dono do cavalo.
            - Infinito. Imagine... Mas ser  por acaso o senhor, visconde?
            - Minha senhora, ia contar uma história: “Imagine...”, começou.
            - Pois sim! Imagine que aquele encantador cavalo alazão e aquele bonito joqueizinho de casaca cor-de-rosa me inspiraram à primeira vista tão viva simpatia que eu “puxava" por um e por outro, exatamente como se tivesse apostado neles metade da minha fortuna. Por isso, quando o vi chegar ao fim com um
avanço de três comprimentos sobre os outros concorrentes, fiquei tão contente que desatei a bater palmas como uma louca. Imagine a minha surpresa quando, ao regressar a casa, encontrei na escada o joqueizinho cor-de-rosa! Pensei que o vencedor da corrida morasse por acaso no mesmo prédio que eu, quando, mal abri a porta da sala, a primeira coisa que vi foi a taça de ouro que constituía o prêmio ganho pelo cavalo e
pelo jóquei desconhecidos. Na taça havia iam papelzinho com estas palavras escritas: “à condessa G... Lorde Ruthwen."
            - É precisamente isso - disse Morcerf.
            - Como? É precisamente isso o quê? Que quer dizer?
            - Quero dizer que se trata de Lorde Ruthwen em pessoa.
            - Qual Lorde Ruthwen?
            - O nosso, o vampiro, o do Teatro Argentina.
            - Deveras?! - exclamou a condessa. - Ele está aqui?
            - Exatamente.
            - E o senhor o vê, o recebe, vai a casa dele?
            - É meu amigo íntimo, e o próprio Sr. de Château-Renaud tem a honra de conhece-lo.
            - Que o leva a crer que foi ele quem ganhou?
            - O seu cavalo inscrito com o nome de Vampa.
            - Que tem isso?
            - Não se lembra do nome do famoso bandido que me fez prisioneiro?
            - Ah, é verdade!
            - E das mãos do qual o conde me tirou miraculosamente? - Sem dúvida. - Chama-se Vampa. Bem vê que é ele.
            - Mas porque mandou a taça, a mim?
            - Primeiro, Sra Condessa, porque lhe falei muito a seu respeito, como pode imaginar; depois, porque terá ficado encantado por encontrar uma compatriota e feliz com o interesse que essa compatriota tomava por ele.
            - Espero que nunca lhe tenha contado as loucuras que dissemos a seu respeito!
            - Palavra que não juraria tal coisa, e essa maneira de lhe oferecer a taça sob o nome de Lorde Ruthwen... 
            - Mas isso é horrível e ele vai me detestar mortalmente!
            - O seu procedimento é o de um inimigo?
            - Não, confesso...
            - Então...
            - Está portanto em Paris?
            - É verdade.
            - E que sensação fez?
            - Bom, falou-se dele durante oito dias - respondeu Albert - mas depois da sua chegada deu-se a coroação da rainha de Inglaterra e o roubo dos diamantes de Mademoiselle Mars, e não se falou mais disso.
            - Meu caro - interveio Château-Renaud –, bem se vê que o conde é seu amigo e que o trata em conformidade. Não acredite no que lhe diz Albert, Sra Condessa, pois, pelo contrário, só se fala do conde de Monte-Cristo em Paris. Começou por oferecer à Sra Danglars cavalos de trinta mil francos; depois, salvou a vida à Sra de Villefort, e em seguida ganhou a corrida do Jockey-Cluh, ao que parece. Ao contrário do que
diz Morcerf, sustento que não falta quem se ocupe ainda do conde neste momento, nem faltará quem se ocupe dele daqui a um mês ou mais, se quiser continuar a fazer excentricidades, o que, de resto, parece ser a sua maneira de viver habitual.
            - É possível - disse Morcerf. - Entretanto, quem é que está agora no camarote do embaixador da Rússia?
            - Qual é? - perguntou a condessa.
            - O intercolúnio da primeira ordem. Parece-me que está lá gente inteiramente nova.
            - De fato - concordou Château-Renaud. - Esteve lá alguém durante o primeiro Ato?
            - Onde?
            - No camarote.
            - Não - respondeu a condessa –, não vi ninguém. Portanto - continuou, voltando à primeira conversa –, acha que foi o seu conde de Monte-Cristo quem ganhou o prêmio?
            - Tenho certeza.
            - E que me mandou a taça?
            - Sem dúvida nenhuma.
            - Mas eu não o conheço - disse a condessa - e estou com muita vontade de a devolver.
            - Oh, não faça isso! Mandava-lhe outra, talhada em qualquer safira ou escavada em algum rubi. São as suas maneiras de agir. Que quer que lhe faça, é preciso aceitá-lo como é.
            Neste momento ouviu-se a campainha que anunciava que o segundo Ato ia começar e Albert levantou-se para regressar ao seu lugar.
            - Voltarei a vê-lo? - perguntou a condessa.
            - Nos intervalos, se me permitir, virei informar-me se lhe posso ser útil nalguma coisa em Paris.
            - Meus senhores - disse a condessa –, todos os sábados à noite, na Rua de Rivoli, nº  22, estou em casa para os meus amigos. Fiquem prevenidos.
            Os dois rapazes cumprimentaram e saíram. 
            Quando entraram na sala viram a plateia de pé e com os olhos fixos num único ponto. O seu olhar seguiu a direção geral e deteve-se no antigo camarote do embaixador da Rússia. Acabava de entrar um homem vestido de preto, de trinta e cinco a quarenta anos, com uma mulher em traje oriental. A mulher era
da maior beleza e o traje de tal riqueza que, como dissemos, todos os olhos se tinham voltado instantaneamente para ela.
            - É Monte-Cristo e a sua grega - informou Albert.
            Com efeito, era o conde e Haydée. Pouco depois, a jovem era alvo não só da atenção da platéia,
mas também de toda a sala. As mulheres debruçavam-se dos camarotes para ver correr, sob as luzes dos lustros, aquela cascata de diamantes.
            O segundo Ato decorreu no meio desse rumor abafado que indica estar muita gente suspensa do mesmo acontecimento. Ninguém se lembrou de pedir silêncio. Aquela mulher tão nova, tão bela, tão deslumbrante, era o mais curioso espetáculo que se podia ver.
            Desta vez, um sinal da Sra Danglars indicou claramente a Albert que a baronesa desejava ter a sua visita no intervalo seguinte. E Morcerf era demasiado delicado para se fazer esperar quando lhe indicavam claramente que o esperavam. Terminado o Ato, apressou-se portanto a subir ao camarote de boca.
            Cumprimentou as duas senhoras e estendeu a mão a Debray. A baronesa acolheu-o com um sorriso encantador e Eugênie com a sua frieza habitual.
            - Meu caro - disse Debray –, dou-lhe a minha palavra de que está perante um homem exausto e que o chama em seu auxílio para o substituir. Esta senhora esmaga-me com perguntas sobre o conde e quer que eu saiba de onde é, de onde vem e para onde vai. Ora eu confesso que não sou Cagliostro, e para me tirar de apuros disse: “Pergunte tudo isso a Morcerf, que conhece o seu Monte-Cristo como as suas mãos." Foi então que ela lhe fez sinal.
            - Não é incrível que um homem que tem meio milhão de fundos secretos à sua disposição não esteja melhor informado? - perguntou a baronesa.
            - Minha senhora - respondeu Lucien –, peço-lhe que acredite que se tivesse meio milhão ao meu dispor o empregaria em tudo menos em tirar informações do Sr. de Monte-Cristo, que a meus olhos só tem o mérito de ser duas vezes rico como um nababo. Mas passei a palavra ao meu amigo Morcerf. Entenda-se com ele, que isso já me não diz respeito.
            - De fato, só um nababo me mandaria uma parelha de cavalos de trinta mil francos e com quatro diamantes nas orelhas de cinco mil francos cada um.
            - Oh, os diamantes! - exclamou, rindo, Morcerf. - São a sua mania. Creio que, como Potemkin, os traz sempre nas algibeiras e que os semeia no seu caminho como o Polegarzinho fazia com os seus seixos.
            - Talvez tenha descoberto alguma mina - sugeriu a Sra Danglars. - Sabem que ele tem um crédito ilimitado sobre a casa do barão?
            - Não, não sabia - respondeu Albert –, mas assim deve ser.
            - E que anunciou ao Sr. Danglars que contava ficar um ano em Paris e gastar seis milhões?
            - É o xá da Pérsia que viaja incógnito. 
            - E aquela mulher, Sr. Lucien, já reparou como é bonita? - inquiriu Eugênie.
            - Na verdade, menina, não conheço ninguém tão pronto como a minha amiga a fazer justiça às pessoas do seu sexo.
            Lucien aproximou o monóculo do olho.
            - Encantadora - disse.
            - E aquela mulher, Sr. de Morcerf, sabe quem é?
            - Menina - disse Albert, respondendo a esta interpelação quase direta – sei mais ou menos, como tudo o que diz respeito à personagem misteriosa de que nos ocupamos. Aquela mulher é uma grega.
            - Isso se vê facilmente pelo seu traje; não vale a pena me dizer o que toda a sala já sabe tão bem como nós.
            - Estou desolado - declarou Morcerf - por ser um cicerone tão ignorante, mas devo confessar que a tanto se limitam os meus conhecimentos. Sei também que é música, porque um dia em que tomei o café da manhã com o conde ouvi os sons de uma gusla que não podiam vir certamente senão dela.
            - O seu conde recebe? - perguntou a Sra Danglars.
            - E de uma forma esplêndida, juro-lhe.
            - Tenho de convencer Danglars a oferecer um jantar, um baile, ao conde de Monte-Cristo; enfim, qualquer coisa que nos retribua.
            - E capaz de ir a casa dele? - perguntou Debray, rindo.
            - Porque não? Com o meu marido!
            - Mas ele é solteiro, esse misterioso conde.
            - Bem vê que não - perguntou também rindo a baronesa, indicando a bela grega.
            - Essa mulher é uma escrava, segundo ele próprio nos disse. Lembra-se, Morcerf; no seu almoço?
            - Admita, meu caro Lucien, que tem mais o ar de uma princesa - observou a baronesa.
            - Das Mil e Uma Noites.
            - Das Mil e Uma Noites, não digo que não. Mas que faz as princesas, meu caro? São os diamantes, e esta está coberta deles.
            - Até  demais - observou Eugênie. - Seria mais bonita sem eles, pois se veriam o colo e as mãos, que são encantadores de forma.
            - Oh, a artista! Reparem como se apaixona! - exclamou a Sra Danglars.
            - Gosto de tudo o que é belo - perguntou Eugênie.
            - Então que me diz do conde? - perguntou Debray. - Parece-me que também não está mal...
            - O conde? - volveu-lhe Eugênie, como se ainda não tivesse pensado em observá-lo. - O conde é demasiado pálido.
            - Precisamente nessa palidez é que reside o segredo que buscamos - disse Morcerf. - A condessa G... afirma, como sabem, que é um vampiro.
            - Está então de volta, a condessa G ... perguntou a baronesa.
            - Está naquele camarote lateral, quase defronte de nós, minha mãe - informou Eugênie. - Aquela mulher, com os seus admiráveis cabelos louros, é ela.
            - Oh, sim, claro! - exclamou a Sra Danglars. - Sabe o que devia fazer, Morcerf? 
            - Ordene, minha senhora.
            - Devia ir visitar o seu conde de Monte-Cristo e trazê-lo aqui.
            - Para quê? - perguntou Eugênie.
            - Para lhe falarmos. Não tem curiosidade de ve-lo?
            - Nenhuma.
            - Estranha criança! - murmurou a baronesa.
            - Oh, provavelmente virá por si mesmo! - informou Morcerf. - Repare, viu-a, minha senhora, e está cumprimentando-a.
            A baronesa retribuiu ao conde o cumprimento, acompanhado de um sorriso encantador.
            - Pronto, sacrifico-me - declarou Morcerf. - Deixo-as e vou ver se haver  maneira de lhe falarem.
            - Vá ao seu camarote; é muito simples.
            - Mas não fui apresentado...
            - A quem?
            - À bela grega.
            - Não diz que é uma escrava ?
            - Digo, mas a senhora afirma que é uma princesa... Não, espero que quando me vir sair ele também saia.
            - É possível. Vá!
            - Estou indo.
            Morcerf cumprimentou e saiu. Efetivamente, quando passava diante do camarote do conde, a porta abriu-se, o conde disse algumas palavras em árabe a Ali, que se encontrava no corredor, e pegou no braço de Morcerf. Ali fechou a porta e ficou de pé diante dela. No corredor havia muito movimento à volta do núbio.
            - Na verdade, o vosso Paris é uma cidade estranha e os vossos parisienses, um povo singular - disse Monte-Cristo. - Diria que é a primeira vez que vêem um núbio. Veja como se comprimem à volta do pobre Ali, que não sabe o que querem dele. Quer saber uma coisa? Um parisiense pode ir, por exemplo, a Tunes, a Constantinopla, a Bagda, ou ao Cairo, que ninguém fará círculo à sua volta.
            - Porque vós, Orientais, sois pessoas sensatas e só olhais para o que vale a pena ser visto. Acredite, porém, que Ali goza de tanta popularidade porque lhe pertence e porque neste momento o senhor é o homem da moda.
            - Deveras? E a quem devo esse favor?
            - Por Deus, a si mesmo! O senhor oferece parelhas de mil luíses, salva a vida à mulher do procurador régio, faz correr sob o nome de major Brack cavalos puros-sangues e jóqueis do tamanho de saguis... finalmente, ganha taças de ouro e oferece-as a mulheres bonitas.
            - Quem diabo te contou todas essas loucuras?
            - Ora essa! A primeira, a Sra Danglars, que está mortinha por o ver no seu camarote, ou antes, que o vejam lá; a segunda, o jornal de Beauchamp, e a terceira, a minha própria imaginação. Porque chama ao seu cavalo Vampa, se quer guardá-lo incógnito?
            - Tem razão! - admitiu o conde. - Foi uma imprudência. Mas diga-me, o conde de Morcerf nunca vem à Ópera?  Procurei-o com a vista e não o vi em parte alguma. 
            - Virá esta noite.
            - E onde ficará?
            - No camarote da baronesa, parece-me.
            - Aquela jovem encantadora que está com ela é sua filha?
            - Sim.
            - Dou-lhe os meus parabéns, meu amigo...
            Morcerf sorriu.
            - Voltaremos a falar disso mais tarde e em pormenor - perguntou. - Que me diz da música?
            - Qual música?
            - Aquela que veio ouvir.
            - Digo que é linda como música composta por um compositor humano e cantada por passarinhos de dois pés e sem penas, como dizia o defunto Diôgenes.
            - Essa é boa! Mas, meu caro conde, parece-me que poderia ouvir, se lhe apetecesse, os sete coros do Paraíso...
            - É mais ou menos o que faço. Quando quero ouvir música admirável, visconde, música como nunca nenhum ouvido mortal ouviu, durmo.
            - Nesse caso, está às mil maravilhas aqui! Durma, meu caro conde, durma. A Ópera não foi inventada para outra coisa.
            - Não, na realidade, a orquestra faz demasiado barulho. Para que durma o sono a que me refiro preciso de calma, silêncio e certa preparação...
            - Ah, sim, o famoso haxixe!
            - Justamente, visconde. Quando quiser ouvir música, vá cear comigo.
            - Já a ouvi uma vez que fui tomar o café da manhã consigo - perguntou Morcerf.
            - Em Roma?
            - Sim.
            - Ah, era a gusla de Haydée! Sim, a pobre exilada distrai-se algumas vezes a tocar canções do seu país.
            Morcerf não insistiu mais. Pela sua parte o conde calou-se. Neste momento a campainha tocou.
            - Me dá licença? - pediu o conde, retomando o caminho do seu camarote.
            - Evidentemente!
            - Dê muitas recomendações à condessa G... da parte do seu vampiro.
            - E à baronesa?
            - Diga-lhe que terei a honra, se me permitir, de ir cumprimentá-la no outro intervalo.
            Começou o terceiro Ato. Durante ele o conde de Morcerf veio, como prometera, juntar-se à Sra Danglars. O conde não era de modo algum um desses homens que provocam alvoroço numa sala. Por isso, ninguém notou a sua chegada, exceto as pessoas em cujo camarote tomou lugar. No entanto, Monte-Cristo viu-o e aflorou-lhe aos lábios um leve sorriso.
            Quanto a Haydée, não via nada enquanto o pano estava levantado. Como todas as naturezas primitivas, adorava tudo o que impressiona o ouvido e a vista. O terceiro Ato decorreu como de costume. Mademoiselle Noblet, Júlia e Leroux executaram os seus saltos de dança habituais, o príncipe de Granada foi desafiado por Roberto-Mário e, finalmente, o majestoso rei, que o leitor conhece, deu a volta à sala para mostrar o seu manto de veludo, levando a filha  pela mão. Em seguida o pano desceu e a sala despejou-se
imediatamente no foyer e nos corredores.
            O conde saiu do seu camarote e um instante depois apareceu no da baronesa Danglars. A baronesa não conteve um grito de surpresa. Levemente matizado de alegria.
            - Entre, entre. Sr. Conde! - exclamou. - Sinceramente, tinha pressa de juntar os meus agradecimentos verbais aos que já lhe dei por escrito.
            - Então, minha senhora, ainda se lembra dessa miséria? - protestou o conde. - Eu já a tinha esquecido.
            - Pois sim, mas o que se não esquece, Sr. Conde, é que no dia seguinte salvou a minha boa amiga Sra de Villefort do perigo que a faziam correr esses mesmos cavalos.
            - Também desta vez não mereço os seus agradecimentos, minha senhora. Foi Ali, o meu núbio, que teve a felicidade de prestar à Sra de Villefort esse eminente serviço.
            - E foi também Ali - interveio o conde de Morcerf - que tirou o meu filho das mãos dos bandidos romanos?
            - Não, Sr. Conde - respondeu Monte-Cristo, apertando a mão que o general lhe estendia –, não. Quanto a isso, os agradecimentos pertencem-me. Mas o senhor já os deu, eu já os recebi, e na verdade constrange-me encontrá-lo ainda tão reconhecido. Conceda-me a honra, suplico-lhe, Sra Baronesa, de me apresentar a sua filha.
            - Oh, estão todos apresentados, pelo menos de nome, porque há dois ou três dias que só falamos do senhor! Eugênie - continuou a baronesa, virando-se para a filha –, o Sr. Conde de Monte-Cristo....
            O conde inclinou-se; Mademoiselle Danglars fez um ligeiro aceno de cabeça.
            - Acompanha-o uma jovem admirável, Sr. Conde - disse Eugênie. - É sua filha?
            - Não, menina - respondeu Monte-Cristo, surpreendido com aquela extraordinária ingenuidade ou aquele espantoso atrevimento. - É uma pobre grega de quem sou tutor.
            - E que se chama?...
            - Haydée - respondeu Monte-Cristo.
            - Uma grega! - murmurou o conde de Morcerf.
            - Sim, conde - disse a Sr. a Danglars. - E diga-me se alguma vez viu na corte de Ali-Tebelin, que o senhor serviu tão gloriosamente, traje tão admirável como aquele que temos ali diante dos olhos.
            - Serviu em Janina, Sr. Conde? - perguntou Monte-Cristo.
            - Fui inspetor-geral das tropas do pax  - respondeu Morcerf –, e a pouca fortuna que amealhei devo-a, não o oculto, às liberalidades do ilustre chefe albanês.
            - Mas veja! - insistiu a Sra Danglars.
            - Onde? - balbuciou Morcerf.
            - Ali! - disse Monte-Cristo.
            E rodeando o conde com o braço, inclinou-se com ele para fora do camarote. Neste momento, Haydée, que procurava o conde com a vista, viu-lhe o rosto pálido junto do de Morcerf, que ele tinha abraçado. 
            Aquele rosto produziu na jovem o efeito da cabeça de Medusa. Esboçou um movimento para diante, como se quisesse devorar ambos com a vista, e depois, quase imediatamente, lançou-se para trás e soltou um gritinho, que no entanto foi ouvido pelas pessoas que se encontravam mais perto dela, e por Ali, que abriu sem demora a porta.
            - Repare, que terá acontecido à sua pupila, Sr. Conde? - observou Eugênie. - Diria-se que se sentiu mal...
            - Assim parece, com efeito - respondeu o conde. - Mas não se assuste, Haydée é muito nervosa e por consequência muito sensível aos cheiros. Um perfume de que não goste basta para a fazer perder os sentidos. Mas - acrescentou o conde, tirando um frasco da algibeira - tenho aqui o remédio.
            E depois de cumprimentar a baronesa e a filha com a mesma inclinação de cabeça, trocou um último aperto de mão com o conde e com Debray e saiu do camarote da Sra Danglars. Quando entrou no seu, Haydée ainda estava muito pálida, e mal o viu, pegou-lhe na mão. Monte-Cristo notou que as mãos da jovem estavam úmidas e geladas.
            - Com quem estavas conversando ali, senhor? - perguntou a jovem.
            - Com o conde de Morcerf, que esteve ao serviço do teu ilustre pai e confessa dever-lhe a sua fortuna - respondeu Monte-Cristo.
            - Ah, o miserável! - exclamou Haydée. - Foi ele quem o vendeu aos Turcos, e essa fortuna foi o preço da sua traição. Não sabia, meu querido senhor?
            - Já tinha ouvido qualquer coisa a esse respeito, no Epiro - respondeu Monte-Cristo –, mas ainda ignoro os pormenores. Vem, minha filha, devem ser curiosos...
            - Oh, sim, vamos, vamos! Parece que morreria se ficasse mais tempo diante desse homem.
            E Haydée levantou-se bruscamente, envolveu-se no seu albornoz de caxemira branca bordado a pérolas e coral e saiu precipitadamente no momento em que o pano subia.
            - Aquele homem não faz nada como os outros! - disse a condessa G... a Albert, que voltara para junto dela. - Ouve religiosamente o terceiro Ato de Roberto e sai no momento em que o quarto vai começar.


Capítulo LIV

A alta e a baixa


            Alguns dias depois deste encontro, Albert de Morcerf foi visitar o conde de Monte-Cristo à sua casa dos Campos Elísios, que já adquirira certos ares de palácio que o conde, graças à sua imensa fortuna, dava às suas residências, mesmo as mais passageiras.
            Vinha renovar-lhe os agradecimentos da Sra Danglars, que já lhe mandara uma carta assinada “baronesa Danglars, nascida Herminie de Servieux". 
            Albert era acompanhado por Lucien Debray, o qual juntou às palavras do amigo alguns cumprimentos, que não eram oficiais, sem dúvida, mas de cuja origem o conde, graças à sua perspicácia, não podia duvidar.
            Pareceu-lhe até  que Lucien o vinha ver movido por um duplo sentido de curiosidade e que metade desse sentimento emanava da Rua da Chaussée-d'Antin. Com efeito, era-lhe lícito supor, sem receio de se enganar, que a Sra Danglars, não podendo conhecer pelos próprios olhos a intimidade de um homem que
oferecia cavalos de trinta mil francos e ia à Ópera com uma escrava grega adornada com um milhão em diamantes, encarregara os olhos pelos quais tinha o hábito de ver de a informar acerca dessa intimidade.
            Mas o conde não pareceu desconfiar da existência da mais pequena correlação entre a visita de Lucien e a curiosidade da baronesa.
            - O senhor mantém relações estreitas com o barão Danglars? - perguntou a Albert de Morcerf.
            - Claro, Sr. Conde. Creio que já lhe falei a esse respeito.
            - E o compromisso também se mantém?
            - Mais do que nunca - interveio Lucien. É assunto arrumado.
            E Lucien, julgando sem dúvida que esta frase metida na conversa lhe dava o direito de se alhear dela, colocou o monóculo de tartaruga no olho e, mordendo o castão de ouro do seu pingalim, pôs-se a percorrer a sala, examinando as armas e os quadros.
            - Ah! - exclamou Monte-Cristo. - Mas, a julgar pelo que me disse, não esperava uma decisão tão rápida.
            - Que quer, as coisas andam sem que demos por isso.  Enquanto não pensamos nelas, pensam elas em nós, e quando nos precatamos ficamos espantados com o caminho que andaram. O meu pai e o Sr. Danglars serviram juntos na Espanha, o meu pai no Exército e o Sr. Danglars nos abastecimentos. Foi lá  que o meu pai, arruinado pela Revolução, e o Sr. Danglars, que nunca tivera patrimônio, lançaram os alicerces, meu pai, da sua fortuna política e militar, que é excelente, e o Sr. Danglars, da sua fortuna política e financeira, que é admirável.
            - Sim, com efeito -  disse Monte-Cristo –, creio que durante a visita que lhe fiz o Sr. Danglars me falou disso. E - continuou deitando uma olhadela a Lucien, que folheava um álbum -, e ela, é bonita, Mademoiselle Eugênie? Porque creio que se chama Eugênie.
            - Muito bonita, ou antes, muito bela - respondeu Albert – mas de uma beleza que não aprecio. Sou um indigno!
            - Fala dela como se já fosse seu marido!
            - Oh! - exclamou Albert, olhando à sua volta para ver por sua vez o que fazia Lucien.
            - Sabe que não me parece entusiasmado com esse casamento? - observou Monte-Cristo, baixando a voz.
            - Mademoiselle Danglars é demasiado rica para mim e isso assusta-me - declarou Morcerf.
            - Ora, ora, que boa razão! - exclamou Monte-Cristo. - O senhor também não é rico?
            - O meu pai tem qualquer coisa como umas cinquenta mil libras de rendimento e desse dinheiro talvez me dê dez ou doze mil quando me casar. 
            - Na verdade é pouco - admitiu o conde –, sobretudo em Paris. Mas a fortuna não é tudo neste mundo, também vale alguma coisa um belo nome e uma alta posição social. O seu nome é célebre, a sua posição, magnífica, e depois o conde de Morcerf é um soldado e o mundo gosta de ver a integridade de Bayard aliada
à pobreza de Du Guesclin. O desinteresse é o mais belo raio de sol a que possa reluzir uma nobre espada. Eu, muito pelo contrário, acho que essa união não pode ser mais vantajosa: Mademoiselle Danglars o enriquecerá e o senhor enobrecerá !
            Albert abanou a cabeça e ficou pensativo.
            - Há ainda outra coisa - disse.
            - Confesso - prosseguiu Monte-Cristo - que tenho dificuldade em compreender essa repugnância por uma moça rica e bela.
            - Oh, meu Deus, esta repugnância, se repugnância existe, não vem toda do meu lado! - declarou Morcerf.
            - De que lado mais vem então? Porque o senhor disse-me que o seu pai desejava esse casamento...
            - Do lado da minha mãe, e a minha mãe possui uma visão prudente e segura. Ora esta união não lhe sorri. Tem não sei que prevenção contra os Danglars.
            - Oh, isso compreende-se! - perguntou o conde em tom um pouco forçado. - A Sra Condessa de Morcerf, que é a distinção, a aristocracia e a delicadeza em pessoa, hesita um pouco em tocar numa mão plebéia, grosseira e brutal. É natural.
            - Não sei se se trata disso, na realidade - respondeu Albert mas o que sei é que me parece que este casamento, se se fizer, a tornará  infeliz. já nos devíamos ter reunido para tratar das coisas há seis semanas, mas tenho andado com umas dores de cabeça...
            - Reais? - perguntou o conde, sorrindo.
            - Oh, muitíssimo reais! Se não as dores de cabeça, pelo menos o medo, sem dúvida... que já me levou a adiar a reunião por dois meses. Não há pressa, compreende? Ainda não tenho vinte e um anos e Eugênie só tem dezessete. Mas os dois meses expiram para a semana e é preciso ir adiante. Não pode imaginar,
meu caro conde, como estou embaraçado... Ah, como o senhor é feliz por ser livre!
            - Nesse caso, seja livre também. Quem o impede, se me permite que lhe pergunte?
            - Oh, seria uma grande decepção para o meu pai se eu não casasse com Mademoiselle Danglars!
            - Então case - respondeu o conde, com um singular movimento de ombros.
            - Pois sim, mas para a minha mãe isso será mais do que decepção, será dor - perguntou Morcerf.
            - Então não case - tornou o conde.
            - Verei, tentarei... Me dará um conselho, não é verdade? E se lhe for possível me tirará deste embaraço. Oh, para não desgostar a minha excelente mãe creio que seria capaz de me indispor com o conde!
            Monte-Cristo virou-se; parecia comovido.
            - Eh! - disse a Debray, sentado numa poltrona profunda na extremidade da sala e que segurava na mão direita um lápis e na esquerda uma agenda. - Que está fazendo, um esboço de Poussin?
            - Eu? - respondeu o outro tranquilamente. - Oh, eu fazer um esboço?! Era o que faltava! Gosto demasiado de pintura para me meter nisso... Não, faço tudo o que há de mais oposto à pintura; faço contas.
            - Contas?...
            - Sim. Calculo... Isto diz-lhe indiretamente respeito, visconde. Calculo o que a Casa Danglars ganhou com a última alta do Haiti: de duzentos e seis, os fundos subiram para quatrocentos e nove em três dias, e o prudente banqueiro comprara muitos a duzentos e seis. Deve ter ganho trezentas mil libras.
            - Esse não é o seu melhor golpe - disse Morcerf. - Não ganhou este ano um milhão com os títulos de Espanha?
            - Ouça, meu caro - disse Lucien –, está aqui o Sr. conde de Monte-Cristo, que lhe dirá como os Italianos:
            Danaro e santia
            Metà della Metà (1).

            E é ainda muito. Por isso, quando me vêm com semelhantes histórias, encolho os ombros.
            - Mas falava do Haiti? - perguntou Monte-Cristo.
            - Oh, o Haiti é outra coisa! O Haiti é o ecart‚ da agiotagem francesa. Pode-se gostar da bouillotte, adorar o whist, ser doido pelo boston (2), e no entanto renunciar a tudo isso. Mas volta-se sempre ao écart‚. É um acepipe. Assim, o Sr. Danglars vendeu ontem a quatrocentos e nove e embolsou trezentos mil francos. Se tivesse esperado para hoje, os fundos desceriam novamente a duzentos e cinco, e em vez de ganhar trezentos mil francos, perderia vinte ou vinte e cinco mil.
            - E por que motivo os fundos desceram de quatrocentos e nove para duzentos e cinco? - perguntou Monte-Cristo. - Peço-lhe desculpa, mas sou muito ignorante de todas essas intrigas de bolsa.
            - Porque - respondeu Albert, rindo - as notícias sucedem-se e não se assemelham...
            - Demônio, o Sr. Danglars arrisca trezentos mil francos num dia! É obra! Mas então deve ser enormemente rico... - observou Monte-Cristo.
            - Não é ele que joga! - atalhou vivamente Lucien. - é a Sra Danglars, que é realmente uma mulher intrépida.
            - Mas você, que é razoável e sabe alguma coisa de estabilidade de notícias, uma vez que está na fonte, deveria impedi-la dessas loucuras - disse Morcerf, sorrindo.
            - Como o conseguiria se o marido não o consegue? - perguntou Lucien. - Conhece o temperamento da baronesa; ninguém tem influência sobre ela e só faz absolutamente o que quer. 
           
(1) Dinheiro e santidade/Metade da metade. (N. do T.)
(2) Écart‚, bouillotte, whist e boston são jogos de cartas.  (N. do T.)

            - Oh, se estivesse no seu lugar!... - insinuou Albert.
            - Que faria?
            - Curava-a desse vício. Seria um favor que prestaria ao seu futuro genro.
            - Mas como?
            - Meu Deus, de maneira muito fácil: dava-lhe uma lição!
            - Uma lição?...
            - Sim. A sua posição de secretário do ministro dá-lhe uma grande autoridade no tocante às notícias. Se você não abrir a boca, os cambistas não estenografarão correndo as suas palavras. Faça-a perder uma centena de milhar de francos, sucessivamente, e verá que isso a torna prudente.
            - Não compreendo... - balbuciou Lucien.
            - Pois é simples - respondeu o rapaz, com uma ingenuidade que não tinha nada de simulada. - Anuncie-lhe uma bela manhã qualquer coisa inaudita, uma notícia telegráfica que só você possa saber. Que Henrique IV, por exemplo, foi visto ontem em casa de Gabrielle. Isso fará subir os fundos, ela fará a sua
jogada de bolsa em conformidade e perderá certamente quando Beauchamp escrever no dia seguinte no seu jornal: “É sem fundamento que as pessoas bem informadas afirmam que o rei Henrique IV foi visto anteontem em casa de Gabrielle. Essa notícia é completamente inexata; o rei Henrique IV não saiu da Ponte Nova.
            Lucien desatou a rir desdenhosamente. Mas Monte-Cristo, embora aparentando indiferença, não perdera uma palavra do diálogo e o seu olhar perscrutador julgara mesmo ter descoberto um segredo no embaraço do secretário particular.
            E em consequência desse embaraço, que escapara completamente a Albert, Lucien abreviou a sua visita. Sentia-se evidentemente pouco à vontade. Ao acompanhá-lo à saída, o conde disse-lhe algumas palavras em voz baixa, às quais ele respondeu:
            - Com muito gosto, Sr. Conde. Aceito.
            O conde voltou para junto do jovem Morcerf.
            - Não acha, pensando melhor - disse-lhe –, que fez mal em falar como falou da sua sogra diante do Sr. Debray?
            - Por favor, conde - pediu Morcerf –, suplico-lhe que não diga antecipadamente essa palavra.
            - Realmente, e sem exagero, a condessa é a tal ponto contrária a esse casamento?
            - A tal ponto que a baronesa raras vezes vai lá a casa e que a minha mãe não esteve, creio, duas vezes na vida em casa da Sra Danglars.
            - Sendo assim - disse o conde –, sinto-me tentado a falar-lhe de coração nas mãos. O Sr. Danglars é meu banqueiro e o Sr. de Villefort cumulou-me de gentilezas como agradecimento de um serviço que um feliz acaso me permitiu prestar-lhe. Adivinho debaixo de tudo isso um alude de jantares e festas mundanas. Ora, para não parecer que tiro faustosamente partido de tudo isso, e até  para ter o mérito de me antecipar, se o meu amigo concordar, projetei reunir na minha casa de campo de Auteuil o Sr. e a Sra Danglars e o Sr. e a Sra de Villefort. Se o convidasse para esse jantar, assim como o Sr. Conde e a Sra Condessa de Morcerf, não pareceria tratar-se de uma espécie de encontro matrimonial, ou pelo menos a Sra Condessa de Morcerf
não veria as coisas dessa maneira, sobretudo se o Sr. Barão Danglars me desse a honra de levar a filha?  Então a sua mãe me tomaria horror, o que não quero de maneira nenhuma que aconteça. Pretendo, pelo contrário, e diga-lho todas as vezes que tiver oportunidade disso, ter o melhor lugar possível no seu espírito.
            - Palavra de honra, conde - disse Morcerf –, que lhe estou muito grato por ter comigo essa franqueza, e aceito a exclusão que me propõe. Diz que deseja ocupar o melhor lugar possível no espírito da minha mãe, pois parece-me que já ocupa nele um lugar privilegiado.
            - Acha? - perguntou Monte-Cristo com interesse.
            - Oh, tenho a certeza! Depois de nos deixar, no outro dia, conversamos uma hora a seu respeito. Mas voltemos àquilo de que estavamos a falar; se a minha mãe pudesse saber dessa atenção da sua parte, e eu me arriscaria a dizer-lhe, estou certo de que lhe ficaria reconhecidíssima. É certo que, pela sua parte, o meu pai ficaria furioso...
            O conde desatou a rir.
            - Pronto, está prevenido - disse a Morcerf. - Mas creio que não será só o seu pai quem ficará furioso; o Sr. e a Sra Danglars vão me considerar um homem muito incorreto. Sabem que tenho consigo certa  intimidade, que o senhor é mesmo o meu mais antigo conhecimento parisiense, e quando o não virem em
minha casa me perguntarão porque não o convidei. Pense ao menos em arranjar um compromisso anterior que tenha alguma aparência de probabilidade e escreva-me um bilhete para informar-me. Como sabe, com os banqueiros só o preto no branco tem valor.
            - Farei melhor do que isso, Sr. Conde - disse Albert. - A minha mãe quer ir respirar o ar do mar. Em que dia será o seu jantar?
            - No sábado.
            - Hoje é terça-feira; se partirmos amanhã à tarde, depois de amanhã estaremos em Tréport... Sabe, Sr. Conde, que é um homem encantador por pôr assim as pessoas à vontade?
            - Eu? Na realidade, dá-me mais valor do que aquele que tenho. Desejo ser-lhe agrável e mais nada.
            - Em que dia fará os convites?
            - Hoje mesmo.
            - Muito bem! Corro a casa do Sr. Danglars e anuncio-lhe que saímos de Paris amanhã, minha mãe e eu. Como não o vi não sei nada do seu jantar.
            - Não diga disparates! E o Sr. Debray, que acaba de o ver aqui em casa?
            - Tem razão!
            - Pelo contrário, esteve aqui e eu convidei-o aqui, sem cerimônia, mas o senhor respondeu-me muito simplesmente que não podia aceitar o convite porque partia para Tréport.
            - Pronto, está combinado! Mas irá visitar a minha mãe ainda hoje?
            - Ainda hoje é difícil. Além disso, iria cair no meio dos seus preparativos de partida.
            - Faça então melhor do que isso. Por ora é apenas um homem encantador, seja um homem adorável...
            - Que tenho de fazer para alcançar essa sublimidade?
            - Que tem de fazer?
            - É o que pergunto. 
            - Hoje está livre como o ar; venha jantar comigo. Será um jantar íntimo, apenas com o senhor, a minha mãe e eu. Mal viu a minha mãe; assim terá ensejo de ve-la de perto. É uma mulher notabilíssima e só lamento uma coisa: que não exista outra igual com menos vinte anos. Haveria brevemente, juro-lhe, uma condessa e uma viscondessa de Morcerf. Quanto ao meu pai, não o encontrará. Está de serviço esta noite e janta com o
referendário-mor. Vá, falaremos de viagens. O senhor, que já viu o mundo inteiro, nos contará as suas aventuras, a história dessa bela grega que estava na outra noite consigo na Ópera, a quem chama sua escrava, mas que trata como uma princesa. Falaremos em italiano e espanhol. Vamos, aceite; a minha mãe agradecerá .
            - Mil agradecimentos - respondeu o conde. - O convite é dos mais cativantes e lamento vivamente não o poder aceitar. Não estou livre, como pensa; tenho, pelo contrário, um encontro importante.
            - Cautela! Ensinou-me há pouco como, a propósito de um jantar, nos podemos descartar de uma coisa desagrável. Quero uma prova. Felizmente não sou banqueiro como o Sr. Danglars, mas previno-o de que sou tão incrédulo como ele.
            - Vou da-la - disse o conde.
            E tocou.
            - Hum!... murmurou Morcerf. - já por duas vezes recusou jantar com a minha mãe... Tem alguma coisa contra ela, conde?
            Monte-Cristo estremeceu.
            - Não diga isso - perguntou. - Aliás, aí está a minha prova.
            Baptistin entrou e ficou junto da porta, de pé e à espera.
            - Não estava prevenido da sua visita, pois não?
            - Demônio, o senhor é um homem tão extraordinário que não me atrevo a responder negativamente.
            - Mas pelo menos não podia adivinhar que me convidaria para jantar...
            - Oh, quanto a isso é provável.
            – Muito hem. Escute, Baptistin: que lhe disse esta manhã quando o chamei ao meu gabinete de trabalho?
            - Que mandasse fechar a porta do Sr. Conde assim que dessem cinco horas.
            - E depois?
            - Então, Sr. Conde... - protestou Albert.
            - Não, não, quero absolutamente desembaraçar-me dessa reputação misteriosa que me arranjou, meu caro visconde. É muito difícil fazer eternamente de Manfredo. Quero viver numa casa de vidro. E depois... Continue, Baptistin.
            - E depois que só receberia o Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti e o filho.
            - Como ouviu, o Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti, um homem da mais velha nobreza italiana e de que Dante se deu ao incômodo de ser o Hozier... Talvez se lembre ou talvez se não lembre, no canto X de O Inferno... Além dele, o filho, um jovem encantador, pouco mais ou menos da sua idade, visconde, que usa o mesmo título que o senhor e faz a sua entrada na sociedade parisiense à sombra dos milhões do pai. O major
traz-me esta noite seu filho Andrea, o contino, como dizemos em Itália. Confia-mo. E eu o ajudarei, se lhe encontrar algum mérito. E o senhor, me ajudará a mim?
            -  Sem dúvida! Esse major Cavalcanti é portanto. . . um velho amigo seu? - perguntou Albert.
            - De modo nenhum. É um digno fidalgo, muito delicado, muito modesto, muito discreto, como há muitos em Itália; descendentes de numerosas gerações de velhas famílias. Vi-o várias vezes, quer em Florença, quer em Bolonha, quer em Luca, e ele preveniu-me da sua chegada. Os conhecimentos de viagem são exigentes: exigem de nós, em qualquer parte, a amizade que lhes testemunhamos uma vez por acaso; como se o homem civilizado, que sabe viver uma hora com qualquer pessoa, não tivesse sempre o seu pensamento reservado! Esse bom major Cavalcanti vai rever Paris, que só viu de passagem, durante o Império, quando se foi fazer gelar em Moscou. Lhe darei um bom jantar e ele me deixará o filho. Prometerei velar por ele, mas o deixarei fazer todas as loucuras que lhe apetecer e ficaremos quites.
            - Ótimo! - exclamou Albert. - Não há dúvida que o senhor é um precioso mentor. Adeus, pois; estaremos de volta no domingo. A propósito, recebi notícias de Franz.
            - Sim? E continua a dar-se bem na Itália? - perguntou Monte-Cristo.
            - Penso que sim. Mas sente a sua falta. Diz que o senhor era o sol de Roma e que sem a sua presença o tempo está triste. Não sei até  se vai ao ponto de dizer que chove.
            - Mudou portanto de idéia a meu respeito o seu amigo Franz?
            - Pelo contrário, persiste em considerá-lo fantástico no mais alto grau. Por isso sente a sua falta.
            - Encantador rapaz! - exclamou Monte-Cristo. - Senti viva simpatia por ele logo na primeira noite em que o vi à procura de qualquer coisa para cear e se dignou aceitar comer comigo. E filho do general de Epinay, não é?
            - Exatamente.
            - O mesmo que foi miseravelmente assassinado em 1815?
            - Pelos bonapartistas.
            - É isso! Palavra que gosto muito dele. Não há também projetos de casamento para ele?
            - Há. Deve casar com Mademoiselle de Villefort.
            - Deveras?
            - Tal como eu devo casar com Mademoiselle Danglars - perguntou Albert, rindo.
            - O senhor ri
            - Pois rio.
            - Porque ri?
            - Rio porque me parece ver desse lado tanta simpatia pelo casamento como existe deste lado entre Mademoiselle Danglars e eu. Mas realmente, mel caro conde, estamos a falar de mulheres como as mulheres falam de homens; é imperdoável!
            Albert levantou-se.
            - Já vai embora?
            - A pergunta é boa! Há duas horas que o maço e ainda tem a delicadeza de me perguntar se me vou embora! Na verdade, conde, o senhor é o homem mais cortês do mundo. E os seus criados, como estão bem treinados! O Sr. Baptistin, sobretudo. Nunca vi nenhum como ele. Os meus parecem seguir todos o exemplo dos do Teatro Francês, que precisamente por só terem uma palavra a  dizer vêm sempre dizê-la na ribalta.
Portanto, se se desfizer do Sr. Baptistin, peço-lhe que se lembre de mim e me dê a preferência.
            - Pois sim, visconde.
            - Não é tudo, espere. Dê os meus cumprimentos ao seu discreto lucano, ao Sr. Cavalcante de Cavalcanti. E se por acaso ele pretender casar o filho, arranje-lhe uma mulher muito rica e muito nobre, pelo menos pelo lado da mãe, e muito baronesa pelo lado do pai... O ajudarei nisso, se quiser.
            - Oh, oh! - exclamou o conde de Monte-Cristo. - Então as coisas já chegaram a esse ponto?
            - Já.
            - Bom, não quero prometer nada...
            - Ah, conde, que favor me prestaria e como o estimaria cem vezes ainda mais se, graças a si, ficasse solteiro nem que fosse só mais dez anos! - exclamou Morcerf.
            - Tudo é possível - respondeu gravemente Monte-Cristo.
            E despedindo-se de Albert voltou para dentro e tocou três vezes a campainha. Bertuccio apareceu.
            - Sr. Bertuccio, tome nota de que recebo no sábado na minha casa de Auteuil.
            Bertuccio estremeceu levemente.
            - Muito bem, senhor.
            - Necessito de si - continuou o conde - para que tudo seja preparado convenientemente. Aquela casa é muito bonita ou pelo menos pode ser muito bonita.
            - Seria preciso mudar tudo para se conseguir isso, Sr. Conde, porque o papel das paredes está velho.
            - Mude portanto tudo, com uma única excepção: o quarto de damasco vermelho. Esse deixe-o absolutamente tal como está.
            Bertuccio inclinou-se.
            - Não toque também no jardim. Mas no pátio, por exemplo, faça tudo o que quiser. Até  me será agrável que o não possam reconhecer.
            - Farei o possível para que o Sr. Conde fique satisfeito. Entretanto, ficaria mais tranquilo se o Sr. Conde me quisesse dizer as suas intenções para o jantar.
            - Na verdade, meu caro Sr. Bertuccio - disse o conde – desde que se encontra em Paris acho-o desorientado, medroso... Então já me não conhece?
            -  Mas, enfim, V. Exª  poderia dizer-me quem recebe!
            - Ainda não sei nada a tal respeito e o senhor também não tem necessidade de o saber. Lúculo janta em casa de Lúculo e mais nada.
            Bertuccio inclinou-se e saiu.


Capítulo LV


O major Cavalcanti

            Nem o conde nem Baptistin tinham mentido ao anunciar a Morcerf a visita do major lucano, que servira a Monte-Cristo de pretexto para recusar o jantar que Albert lhe oferecia. 
            Acabavam de dar sete horas e o Sr. Bertuccio, conforme a ordem que recebera, partira havia duas horas para Auteuil, quando um fiacre parou à porta do palácio e pareceu fugir muito envergonhado logo que deixou ao pé do portão um homem de cerca de cinquenta e dois anos, metido numa dessas sobrecasacas
verdes com alamares pretos, cuja espécie é imperecível, ao que parece, na Europa. Umas amplas calças de tecido azul, botas ainda bastante aceitáveis, embora de um verniz duvidoso e de solas um tanto grossas, luvas de pele de gamo, chapéu que pela forma se assemelhava ao de um guarda e colarinho preto debruado a branco que, se o seu proprietário o não usasse de sua livre e inteira vontade, poderia passar por uma gotilha, tal era o traje pitoresco com que se apresentou a personagem que tocou ao portão, perguntou se não era no nº  30 da Avenida dos Campos Elísios que morava o conde de Monte-Cristo e, em vista da resposta afirmativa do porteiro, entrou, fechou o portão atrás de si e dirigiu-se para a escadaria.
            A cabeça pequena e angulosa do homem, os seus cabelos já brancos e o seu bigode espesso e grisalho identificaram-no perante Baptistin, que possuía os sinais exatos do visitante e o esperava ao fundo do vestíbulo. Por isso, assim que pronunciou o seu nome diante do inteligente criado, o conde de Monte-Cristo foi prevenido da sua chegada. Introduziram o estrangeiro na sala mais simples. O conde esperava-o aí e foi ao seu encontro com ar risonho.
            - Seja bem-vindo, meu caro senhor - disse. - Esperava-o.
            - Deveras, V. Exª  esperava-me? - perguntou o lucano.
            - Esperava. Preveniram-me da sua chegada hoje, às sete horas.
            - Da minha chegada? Estava prevenido da minha chegada?
            - Exatamente.
            - Ah, tanto melhor! Receava, confesso, que tivessem esquecido dessa pequena precaução.
            - Qual?
            - De o prevenir.
            - Oh, não!
            - Mas tem certeza de não se enganar?
            - Tenho.
            - Era de fato eu que V. Exª  esperava hoje, às sete horas?
            - Era. De resto, podemos verificar.
            - Oh, se me esperava não vale a pena! - respondeu o lucano.
            - Claro, claro! - concordou Monte-Cristo.
            O lucano pareceu ligeiramente inquieto.
            - Vejamos, não é o Sr. Marquês Bartolomeo Cavalcanti? - perguntou Monte-Cristo.
            - Bartolomeo Cavalcanti... - repetiu o lucano, satisfeito. - Sim, é isso... - Ex-major a serviço da Áustria?
            - Era mesmo major que eu era? - perguntou timidamente o velho militar.
            - Claro que era mesmo major - respondeu Monte-Cristo.- E assim que se designa na França o posto que o senhor ocupava na Itália.
            - Bom, não peço mais, compreende?... - disse o lucano.
            - Aliás, o senhor não está aqui por sua própria iniciativa - acrescentou Monte-Cristo. 
            - Oh, evidentemente!
            - Foi-me enviado por alguém
            - Sim, fui.
            - Pelo excelente abade Busoni?
            - Exato! - exclamou o major, satisfeito.
            - Não tem uma carta?
            - Ei-la!
            - Ainda bem. Dê-ma.
            E Monte-Cristo pegou na carta, que abriu e leu.
            O major olhava o conde com os olhos muito abertos de espanto, com os quais de vez em quando percorria curiosamente cada canto do aposento, mas que regressavam invariavelmente ao dono da casa.
            - É isto, de fato... Querido abade! “O major Cavalcanti, um digno patrício de Luca, descendente dos Cavalcanti de Florença” - continuou a ler Monte-Cristo - “e possuidor de uma fortuna que lhe dá meio milhão de rendimento...” Monte-Cristo levantou os olhos por cima do papel e cumprimentou.
            - Meio milhão - repetiu. - Apre, meu caro Sr. Cavalcanti!
            - Ele diz meio milhão? - perguntou o lucano.
            - Com todas as letras. E assim deve ser, pois o abade Busoni é o homem que melhor conhece todas as grandes fortunas da Europa.
            - Seja então meio milhão - admitiu o lucano. - Mas palavra de honra que não esperava que ascendesse a tanto.
            - Porque tem um intendente que o rouba. Que quer, caro Sr. Cavalcanti, são coisas que se não podem evitar!
            - O senhor acaba de me esclarecer - disse gravemente o lucano. - Porei o velhaco na rua.
            Monte-Cristo continuou:
            - “E a quem só falta uma coisa para ser feliz...”
            - Oh, meu Deus, sim, só uma! - reconheceu o lucano, suspirando.
            - “Encontrar um filho adorado...”
            - Um filho adorado!
            - “Raptado na sua juventude, quer por algum inimigo da sua nobre família, quer por ciganos...”
            - Com cinco anos de idade, senhor - acrescentou o lucano, com um profundo suspiro e erguendo os olhos ao Céu.
            - Pobre pai! - disse Monte-Cristo.
            O conde continuou:
            - “Restitui-lhe a esperança, restitui-lhe a vida, Sr. Conde, anunciando-lhe que o senhor poderá ajudá-lo a encontrar esse filho que há quinze anos procura em vão...”
            O lucano olhou para Monte-Cristo com indefinível expressão de inquietação.
            - Pois posso - respondeu Monte-Cristo.
            O major endireitou-se.
            - Ah, ah! - exclamou. - A carta era então verdadeira até  ao fim? - Tinha alguma dúvida a tal respeito, caro Sr. Bartolomeo?
            - Nenhuma, nenhuma! Como havia de ter? Um homem grave, um homem revestido de carater religioso como o abade Busoni não se permitiria semelhante brincadeira. Mas não leu tudo, Excelência... 
            - Ah, é verdade, há um post-scriptum! - disse Monte-Cristo.
            - Pois, há... um... post-scriptum... - repetiu o lucano.
            - “Para não causar ao major Cavalcanti o embaraço de transferir fundos dos cofres do seu banqueiro, mandei-lhe uma ordem de pagamento de dois mil francos para as suas despesas de viagem e um crédito sobre o senhor de quarenta e oito mil francos, que o Sr. Conde me ficará devendo.”
            O major seguiu com os olhos o post-scriptum, com visível ansiedade.
            - Muito bem! - limitou-se a dizer o conde.
            - Ele disse “muito bem!” - murmurou o lucano. - Portanto... senhor... - prosseguiu.
            - Portanto?... - perguntou o conde.
            - Portanto, o post-scriptum?...
            – Sim, o post-scriptum?...
            – É acolhido pelo senhor tão favoravelmente como o resto da carta?
            - Certamente. Temos contas um com o outro, o abade Busoni e eu. Não sei exatamente se estou lhe devendo quarenta e oito mil libras, mas entre nós não fazemos caso de algumas notas a mais ou a menos. Mas vejamos, porque atribuía assim tão grande importância ao post-scriptum, meu caro Sr. Cavalcanti?
            - Confesso-lhe - respondeu o lucano - que, cheio de confiança na assinatura do abade Busoni, não me muni doutros fundos. De forma que se esse recurso me faltasse, me encontraria muito embaraçado em Paris.
            - Porventura um homem como o senhor se embaraça em algum lugar? - observou Monte-Cristo. - Ora deixe-se disso!
            - Ora essa, não conhecendo ninguém... - perguntou o lucano.
            - Mas conhecem-no ao senhor.
            - Sim, conhecem-me. De forma que...
            - Acabe, caro Sr. Cavalcanti!
            - De forma que... me entregará essas quarenta e oito mil libras?
            - Ao seu primeiro pedido.
            O major arregalava os olhos espantado.
            - Mas sente-se - disse Monte-Cristo. - Na verdade, não sei onde tenho a cabeça... Deixei-o de pé durante um quarto de hora.
            - Não se preocupe.
            O major puxou uma cadeira e sentou-se.
            - Agora, quer tomar alguma coisa? - perguntou o conde. - Um copo de xerez, de porto ou de alicante?
            - De alicante, que é o meu vinho preferido.
            - Tenho um excelente. Com um biscoito, não é verdade?
            - Com um biscoito, já que insiste.
            Monte-Cristo tocou. Baptistin apareceu. O conde foi ao seu encontro.
            - Então?... - perguntou baixinho.
            - O rapaz está aqui  - respondeu o criado de quarto no mesmo tom.
            - Bem. Para onde o mandou entrar?
            - Para a sala azul, como V. Exª  ordenou.
            - Ótimo. Traga vinho de Alicante e biscoitos.
            Baptistin saiu. 
            - Na verdade - disse o lucano –, estou lhe dando tanto incômodo que me sinto constrangido...
            - Não tem importância! - perguntou Monte-Cristo.
            Baptistin regressou com os copos, o vinho e os biscoitos. O conde encheu um copo e deitou no segundo apenas algumas gotas do líquido cor de rubi que continha a garrafa, toda coberta de teias de aranha e doutros sinais que indicavam a velhice do vinho muito mais seguramente do que as rugas no homem.
            O major não se enganou ao tirar o copo; pegou no que estava cheio e serviu-se de um biscoito.
            O conde ordenou a Baptistin que deixasse a bandeja ao alcance da mão do seu hóspede, que começou por saborear o alicante com a ponta dos lábios, fez uma careta de satisfação e meteu delicadamente o biscoito no copo.
            - Portanto, senhor - disse Monte-Cristo –, reside em Luca, é rico, é nobre, goza da consideração geral e possui tudo o que pode fazer um homem feliz.
            - Tudo, Excelência - admitiu o major, engolindo o seu biscoito. - Absolutamente tudo.
            - E só faltava uma coisa para a sua felicidade?
            - É verdade, só uma - respondeu o lucano.
            - Encontrar o seu filho?
            -  Sim, também me faltava isso! - exclamou o major, tirando segundo biscoito.
            O digno lucano levantou os olhos ao Céu e fez um esforço para suspirar.
            - Vejamos agora uma coisa, meu caro Sr. Cavalcanti - disse Monte-Cristo. - De quem era esse filho tão chorado? Porque me disseram que o senhor era solteiro...
            - Era o que se julgava, senhor - respondeu o major -, e eu próprio...
            - Sim - prosseguiu Monte-Cristo –, e o senhor próprio acreditara nesse boato. Um pecado da juventude que ocultou a todos os olhos.
            O lucano endireitou-se, tomou o seu ar mais calmo e mais digno e baixou ao mesmo tempo modestamente os olhos, quer para manter a sua atitude, quer para ajudar a sua imaginação ou
observar por baixo o conde, cujo sorriso estereotipado nos lábios manifestava sempre a mesma benevolente curiosidade.
            - É verdade, senhor, desejava ocultar essa falta a todos os olhos.
            - Não por si, claro - observou Monte-Cristo –, porque um homem está acima dessas coisas.
            - Oh, não por mim, certamente! - reconheceu o major, sorrindo e abanando a cabeça.
            - Mas pela mãe do seu filho - disse o conde.
            - Sim, pela sua mãe! - exclamou o lucano, tirando terceiro biscoito. - Pela sua pobre mãe!
            - Beba, caro Sr. Cavalcanti - disse Monte-Cristo, deitando ao lucano segundo copo de alicante. - A comoção sufoca-o.
            - Pela sua pobre mãe! - murmurou o lucano, procurando que a sua força de vontade atuasse sobre a glândula lacrimal e lhe permitisse molhar o canto do olho com uma lágrima falsa.
            - Que pertencia a uma das primeiras famílias da Itália, segundo creio... 
            - Uma nobre família de Fiesole, Sr. Conde; uma nobre família de Fiesole!
            - Chamada?
            - Deseja saber o seu nome?
            - Oh, meu Deus, é inútil que me diga, conheço-o! - declarou Monte-Cristo.
            - O Sr. Conde sabe tudo - observou o lucano, inclinando-se.
            - Oliva Corsinari, não é verdade?
            - Oliva Corsinari.
            - Marquesa?
            - Marquesa.
            - E o senhor acabou por casar com ela, entretanto, apesar das oposições da família?
            - Meu Deus, sim, acabei por fazer isso!
            - E - prosseguiu Monte-Cristo - em boa ordem? Traz os seus documentos.
            - Quais documentos? - perguntou o lucano.
            - Mas a sua certidão de casamento com Oliva Corsinari e a certidão de nascimento da criança.
            - A certidão de nascimento da criança?
            - Sim, a certidão de nascimento de Andrea Cavalcanti, do seu filho. Não se chama Andrea?
            - Creio que sim - respondeu o lucano.
            - Como? Crê?!
            - Diabo, não me atrevo a afirmar; há tanto tempo que o perdi!
            - Tem razão - disse Monte-Cristo. - Enfim, tem todos esses documentos?
            - Sr. Conde, é com pesar que lhe anuncio que, não tendo sido avisado para me munir desses documentos, esqueci-me de traze-los comigo.
            - Demônio! - exclamou Monte-Cristo.
            - São absolutamente necessários?
            - Indispensáveis!
            O lucano coçou a testa.
            - Ah, per Baccho! - exclamou. - Indispensáveis!
            - Sem dúvida. Pode-se levantar aqui alguma dúvida acerca da validade do seu casamento e da legitimidade do seu filho!
            - Tem razão, podem-se levantar dúvidas - concordou o lucano.
            - O que seria desagrável para o rapaz.
            - Oh, seria fatal!
            - Poderia fazê-lo perder qualquer magnífico casamento
            - O peccato!
            - Na França são rigorosos, compreende? Não basta, como na Itália, ir procurar um padre e dizer-lhe: “Amamo-nos, case-nos.” na França há casamento civil, e para as pessoas casarem civilmente são precisos documentos que provem a sua identidade.
            - Infelizmente, não tenho esses documentos.
            - Mas felizmente eu os tenho - declarou Monte-Cristo.
            - O senhor?
            - Sim. 
            - O senhor os tem?
            - Tenho.
            - Oh, que sorte! - exclamou o lucano, que, vendo o fim da sua viagem ir por água abaixo por falta de tais documentos, temia que semelhante esquecimento levantasse qualquer dificuldade a respeito das quarenta e oito mil libras. - Oh, que sorte! Sim, que sorte - repetiu -, por que não pensei nisso?
            - Demônio, parece-me que o senhor não pensa em nada! Mas felizmente o abade Busoni pensou nisso por si.
            - Querido abade!
            - Sim, é um homem cauteloso.
            - É um homem admirável - declarou o lucano. - E ele mandou-lhe?
            - Aqui estão.
            O lucano juntou as mãos em sinal de admiração.
            - O senhor casou com Oliva Corsinari na Igreja de S. Paulo de Monte-Cattini. Aqui está a certidão do padre.
            - Sim, é verdade, aí está! - confirmou o major, olhando o documento com espanto.
            - E aqui está também a certidão de batismo de Andrea Cavalcanti, passada pelo pároco de Saravezza.
            - Tudo em regra - disse o major.
            - Vamos, tome conta destes documentos, que para mim não tem interesse, e dê-os ao seu filho para que os guarde cuidadosamente.
            - Pois sim. Se ele os perdesse...
            - Como, se ele os perdesse?! - saltou Monte-Cristo.
            - Bom, teríamos de escrever para Itália e levaria muito tempo para arranjar outros - concluiu o lucano.
            - De fato, seria difícil - concordou Monte-Cristo.
            - Quase impossível - acrescentou o lucano.
            - Folgo muito por o senhor compreender o valor destes documentos.
            - Enfim, devo considerá-los inestimáveis.
            - Agora - disse Monte-Cristo –, quanto à mãe do rapaz?...
            - Quanto à mãe do rapaz... - repetiu o major, inquieto.
            - Sim, quanto à marquesa Corsinari?
            - Meu Deus! - exclamou o lucano, que tinha a sensação de as dificuldades lhe nascerem debaixo dos pés. - Haverá necessidade dela?
            - Não, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Aliás, ela não?...
            - Claro, claro! - apressou-se a dizer o major. - Ela...
            - Pagou o seu tributo à natureza, não é verdade?
            - Infelizmente, pagou! - confirmou o lucano.
            - Também soube isso - declarou Monte-Cristo. -  Morreu há dez anos.
            - E ainda choro a sua morte, senhor - disse o major, tirando da algibeira um lenço de quadrados e limpando alternadamente primeiro o olho esquerdo e depois o olho direito.
            - Que quer, somos todos mortais... - confortou-o Monte-Cristo. - Agora espero que compreenda, caro Sr. Cavalcanti, espero que compreenda que é inútil saber na França que esteve quinze anos separado do seu filho. Todas essas histórias de ciganos que raptam crianças não são correntes aqui. O senhor po-lo a educar num colégio de província e deseja que acabe a sua educação na  sociedade parisiense. Por isso o senhor deixou Via-Reggio, onde morava desde a morte da sua mulher. Isto bastará.
            - Acha?
            - Certamente.
            - Muito bem, então.
            - Mas se se soubesse alguma coisa acerca dessa separação...
            - Ah, sim! Que diria?
            - Que um perceptor infiel, vendido aos inimigos da sua família...
            - Aos Corsinari?
            - Certamente... raptara a criança para que o seu nome se extinguisse.
            - Está certo, porque ele é filho único.
            - Bom, agora que está tudo assente, que as suas recordações, mais frescas, o não atraiçoarão, já adivinhou sem dúvida que lhe reservo uma surpresa?
            - Agradável? - perguntou o lucano.
            - Verifico - disse Monte-Cristo - que se não enganam facilmente os olhos e o coração de um pai.
            - Hum!... - resmungou o major.
            - Fizeram-lhe qualquer revelação indiscreta ou adivinhou que ele estava aqui?
            - Que estava aqui, quem?
            - O seu filho, o seu Andrea.
            - Adivinhei - respondeu o lucano, com a maior fleuma do mundo. - está então aqui?
            - Aqui mesmo - respondeu Monte-Cristo. - Quando entrou, há pouco, o criado de quarto preveniu-me da sua chegada.
            - Ah, muito bem! Ah, muito bem! - disse o major, apertando a cada exclamação os alamares da sua polonesa.
            - Meu caro senhor - prosseguiu Monte-Cristo –, compreendo a sua emoção e acho que precisa de tempo para se recompor. Quero também preparar o rapaz para esse encontro tão desejado, porque presumo que ele não está menos impaciente do que o senhor.
            - Também me parece - admitiu Cavalcanti.
            - Pois bem, daqui a um quarto de hora estaremos consigo.
            - Vai traze-lo? Leva a sua bondade ao ponto de me apresentar pessoalmente?
            - Não, não quero colocar-me de modo algum entre um pai e um filho, estarão sós, Sr. Major. Mas fique tranquilo: mesmo no caso de a voz do sangue ficar muda, não terá nada que se enganar, pois ele entrará por esta porta. É um simpático rapaz louro, talvez um bocadinho louro demais, de modos corteses... enfim, o senhor verá .
            - A propósito - disse o major –, como sabe, só trouxe comigo os dois mil francos que o bom abade Busoni me mandou entregar. Depois disso fiz a viagem e...
            - E tem necessidade de dinheiro... É justíssimo, meu caro Sr. Cavalcanti. Tome, para arredondar a conta, mais oito mil francos.
            Os olhos do major brilharam como carbúnculos.
            - Agora fico devendo-lhe quarenta mil francos - declarou Monte-Cristo.
            - V. Exª  quer um recibo? - perguntou o major, guardando as notas na algibeira interior da sua polonesa.
            - Para quê? - volveu-lhe o conde. 
            - Para abater nas suas contas com o abade Busoni.
            - Bom, o senhor me dará um recibo geral quando receber os restantes quarenta mil francos. Entre pessoas honestas semelhantes precauções são inúteis.
            - Sim, é verdade - concordou o major. - Entre pessoas honestas...
            - Só mais uma palavra, marquês.
            - Por favor.
            - Permite-me que lhe faça uma pequena recomendação, não é verdade?
            - Como não? Peço-a!
            - Não faria mal se deixasse essa polonesa...
            - Deveras? - perguntou o major, olhando a vestimenta com certa complacência.
            - Sim. Isso usa-se ainda em Via-Reggio, mas em Paris há já muito tempo que esse traje, por muito elegante que seja, passou de moda.
            - Que pena! - lamentou-se o lucano.
            - Oh, se gosta assim tanto dela poderá tornar a vesti-la quando se for embora!
            - Mas entretanto que usarei?
            - O que encontrar nas suas malas...
            - Como nas minhas malas? Só trouxe uma maleta...
            - Consigo, sem dúvida. Para que havia de vir carregado? De resto, um velho soldado gosta de marchar com equipamento ligeiro.
            - Foi precisamente por isso...
            - Mas como é um homem precavido, mandou as malas adiante e elas chegaram ontem ao Hotel dos Príncipes, na Rua de Richelieu. Foi lá que mandou reservar os seus aposentos.
            - Então essas malas?...
            - Presumo que tomou a precaução de ordenar ao seu criado de quarto que metesse tudo o que precisava: trajes civis, uniformes militares... Nas grandes circunstâncias usar uniforme; é mais conveniente. E não esqueça as suas condecorações. na França zomba-se disso, mas todos continuam a usá-las.
            - Muito bem, muito bem, muito bem! - exclamou o major, que ia de deslumbramento em deslumbramento.
            - E agora - disse Monte-Cristo - que o seu coração está preparado para as emoções demasiado vivas, chegou o momento, caro Sr. Cavalcanti, de tornar a ver o seu filho Andrea.
            E saudando delicadamente o lucano, deslumbrado, extasiado, Monte-Cristo desapareceu atrás da tapeçaria.


Capítulo LVI

Andrea Cavalcanti


            O conde de Monte-Cristo entrou na sala contígua, que Baptistin designara por sala azul, e onde o acabava de preceder um rapaz de ar decidido, vestido com certa elegância, e que um cabriolé de praça deixara meia hora antes à porta do palácio. Baptistin não tivera dificuldade em reconhece-lo: era sem dúvida o rapaz alto, de cabelos louros, barba ruça, olhos pretos e pele resplandecente de brancura que lhe fora
indicado pelo amo.
            Quando o conde entrou na sala, o jovem estava negligentemente recostado num sofá  e fustigava distraidamente a bota com uma chibatinha de castão de ouro. Ao ver Monte-Cristo levantou-se vivamente.
            - O senhor é o conde de Monte-Cristo? - perguntou.
            - Sou, sim, senhor - respondeu este –, e creio ter a honra de falar ao Sr. Visconde Andrea Cavalcanti...
            - Visconde Andrea Cavalcanti - repetiu o rapaz, acompanhando estas palavras de um cumprimento cheio de desenvoltura.
            - Deve ter uma carta que o acredite junto de mim... - disse Monte-Cristo.
            - Não lhe falei logo dela por causa da assinatura, que me pareceu estranha.
            - Simbad, o Marinheiro, não é verdade?
            - Exatamente. Ora como nunca conheci outro Simbad, o Marinhedo, senão o das Mil e Uma Noite...
            - Bom, trata-se de um dos seus descendentes, um dos seus amigos, muito rico, um inglês mais do que original, quase louco, cujo verdadeiro nome é Lorde Wilmore.
            - Isso assim já me explica tudo - declarou Andrea. - Agora corre tudo às mil maravilhas. É o mesmo inglês que conheci em... Sim, perfeitamente! ... Sr. Conde, estou às suas ordens.
            - Se o que acaba de me dizer é verdade - replicou o conde sorrindo –, espero que não se importe de me dar alguns pormenores a respeito da sua pessoa e da sua família.
            - Com muito prazer, Sr. Conde - respondeu o jovem, com uma volubilidade que provava a solidez da sua memória. - Sou, como disse, o visconde Andrea de Cavalcanti, filho do major Bartolomeo Cavalcanti, descendente dos Cavalcantis inscritos no Livro de Ouro de Florença. A nossa família, apesar de ser ainda muito rica, pois o meu pai tem meio milhão de rendimento, passou por muitas dificuldades, e eu próprio,
senhor, fui aos cinco ou seis anos raptado por um perceptor infiel, de forma que há quinze anos que não vejo o autor dos meus dias. Desde que cheguei à idade da rapaz e que sou livre e senhor de mim que o procuro inutilmente. Por fim, a carta do seu amigo Simbad anunciou-me que ele estava em Paris e autorizou-me a dirigir-me ao senhor para obter mais informações.
            - Na verdade, senhor, tudo o que me acaba de contar é interessantíssimo - declarou o conde, observando com sombria satisfação aquele rosto decidido, dotado de uma beleza semelhante à do anjo mau - e fez muitíssimo bem em respeitar integralmente as indicações do meu amigo Simbad, porque o seu pai está de fato aqui e procura-o.
            Desde que entrara na sala o conde não perdera de vista o rapaz. Admirara a segurança do seu olhar e a firmeza da sua voz. Mas ao escutar esta palavras tão naturais:
            “- O seu pai está de fato aqui e procura-o”, o jovem Andrea deu um salto -exclamou:
            - O meu pai! O meu pai está aqui?... 
            - Sem dúvida - respondeu Monte-Cristo. - O seu pai, major Bartolomeo Cavalcanti.
            A expressão de terror que surgira no rosto do rapaz desapareceu quase imediatamente.
            - Ah, sim, é verdade, o major Bartolomeo Cavalcanti!... E diz, Sr. Conde, que ele está aqui, meu querido pai?
            - Sim, senhor. E acrescento até  que o deixei agora mesmo e que a história que me contou a respeito do filho querido raptado outrora me impressionou muito. Na verdade, os seus sofrimentos, os seus temores e as suas esperanças dariam um poema comovente. Enfim, recebeu um dia notícias que lhe anunciavam que os raptores do filho estavam dispostos a entregá-lo ou a indicar onde se encontrava mediante um resgate
bastante grande e nada conteve esse bom pai. O resgate foi enviado para a fronteira do Piemonte, com um passaporte todo visado para a Itália. O senhor encontrava-se no Sul da França, não é verdade?
            - É, sim, senhor - respondeu Andrea, com ar bastante embaraçado. - Sim, estava no Sul da França.
            - E uma carruagem devia esperá-lo em Nice?
            - Exatamente, senhor. Essa carruagem levou-me de Nice a Gênova, de Gênova a Turim, de Turim a Chambéry, de Chambéry a Pont-de-Beauvoisin e de Pont-de-Beauvoisin a Paris.
            - Ótimo! Ele esperava encontrá-lo a todo o momento no caminho, por ser essa a estrada que ele próprio seguia. Foi até por isso que o seu itinerário foi traçado assim.
            - Mas - observou Andrea – se me tivesse encontrado, o querido pai, duvido que me reconhecesse; mudei um bocado desde que ele me perdeu de vista.
            - Oh, a voz do sangue!... - exclamou Monte-Cristo.
            - Sim, é verdade, não pensei na voz do sangue.
            - Agora - prosseguiu Monte-Cristo - só uma coisa preocupa o marquês Cavalcanti: o que o senhor fez enquanto estava separado dele, como foi tratado pelos seus raptores, se lhe dispensaram todas as atenções que lhe eram devidas pelo seu nascimento e finalmente se o sofrimento moral a que esteve exposto, sofrimento cem vezes pior do que o sofrimento físico, lhe não enfraqueceu de algum modo as faculdades de que a natureza tão generosamente o dotou e se se considera capaz de reassumir e manter dignamente por si mesmo na sociedade o lugar que lhe compete.
            - Senhor - balbuciou o rapaz, desorientado –, espero que nenhum falso relatório...
            - Que diz? Ouvi falar do senhor pela primeira vez ao meu amigo Wilmore, o filantropo. Soube que o encontrara numa posição desagrável, mas ignoro qual e não lhe fiz nenhuma pergunta. Não sou curioso. As suas desgraças interessaram-no e engraçou consigo. Disse-me que lhe queria restituir a posição social
que perdera, que procuraria o seu pai e que havia de o encontrar. E de fato procurou-o e encontrou-o, ao que parece, uma vez que ele está aqui. Finalmente, preveniu-me ontem da sua chegada e deu-me ainda outras instruções relativas à sua fortuna. E mais nada. Sei que o meu amigo Wilmore é um original, mas como é ao mesmo tempo um homem que sabe o que faz, rico como uma mina de ouro, e que por consequência se pode entregar às suas originalidades sem que elas o arruinem, prometi seguir as suas instruções. Agora, senhor,
não se ofenda com a minha pergunta: como serei obrigado a auxiliá-lo um pouco, gostaria de saber se as desgraças por que passou, desgraças independentes da sua vontade e que não diminuem de modo algum a consideração que me merece, o não tomaram um tanto estranho a essa sociedade em que a sua fortuna e o seu nome o chamam a fazer tão boa figura...
            - Senhor - respondeu o rapaz, recuperando o sangue-frio à medida que o conde falava –, tranquilize-se quanto a isso. Os raptores que me afastaram do meu pai e que sem dúvida tinham como objetivo vender-me mais tarde a ele, como fizeram, calcularam que para tirar bom partido de mim era necessário deixar-me todo o meu valor pessoal, e até  aumentá-lo, se fosse possível. Recebi portanto uma educação bastante boa e fui
tratado pelos ladrões de crianças mais ou menos como o eram na Ásia Menor os escravos, de que os seus senhores faziam gramáticos, médicos e filósofos para os venderem mais caros no mercado de Roma.
            Monte-Cristo sorriu com satisfação; ao que parece, não esperava tanto do Sr. Andrea Cavalcanti.
            - Aliás - prosseguiu o jovem –, se houvesse em mim qualquer falha de educação, ou antes, de hábito da sociedade, teriam, suponho, a indulgência de me desculpar em consideração para com as infelicidades que acompanharam o meu nascimento e perseguiram a minha juventude.
            - Bom - disse Monte-Cristo negligentemente -, fará como quiser, visconde, pois é senhor de si e isso diz-lhe respeito; mas se estivesse no seu lugar, dou-lhe a minha palavra de honra que, pelo contrário, não diria uma palavra acerca de todas essas aventuras. A sua história é um romance, e a sociedade, que adora os romances metidos entre duas capas de papel amarelo, desconfia estranhamente daqueles que vê encadernados em pergaminho vivo, mesmo dourado, como o senhor o pode ser.
            “O problema para que me permito chamar-lhe a atenção, Sr. Visconde, é este: assim que contar a alguém a sua comovente história, ela correrá pela sociedade completamente deturpada. Se verá obrigado a armar em Antony, e o tempo dos Antonies está um pouco ultrapassado. Talvez obtenha um êxito de curiosidade, mas ninguém gosta de ser centro de observações e alvo de comentários. Se cansaria, por certo.
            - Creio que tem razão, Sr. Conde - concordou o jovem, empalidecendo, malgrado seu, sob o olhar inflexível de Monte-Cristo. - Seria um grave inconveniente.
            - Oh, também não se deve exagerar! - perguntou Monte-Cristo. - Porque assim, para evitar um  inconveniente, cairíamos numa loucura. Não, trata-se de traçar um simples plano de conduta; e no caso de um homem inteligente como o senhor, esse plano é tão mais fácil quanto é certo estar de acordo com os seus
interesses.
            “Dever-se  combater por meio de testemunhas e de amizades respeitáveis tudo o que o seu passado tenha de obscuro. Andrea perdeu visivelmente o à-vontade.
            - Me ofereceria de boa vontade como seu fiador e garante - disse Monte-Cristo –, mas é em mim um hábito moral desconfiar dos meus melhores amigos e uma necessidade procurar levar os outros a também duvidar. Por isso, desempenharia no caso um papel que me não iria o caracter, como dizem os trágicos, e me arriscaria a ser assobiado, o que seria inútil. 
                        - No entanto, Sr. Conde - atalhou Andrea, com audácia em consideração para com Lorde Wilmore, que me recomendou ao senhor...
            - Sim, claro-prosseguiu Monte-Cristo. - Mas Lorde Wilmore não me deixou ignorar, caro Sr. Andrea, que o senhor teve uma juventude um tanto tempestuosa. Oh, não lhe peço nenhuma confissão! - exclamou o conde, ao ver o gesto que fazia Andrea. - Aliás, foi para que não necessitasse de ninguém que mandamos vir de Luca o Sr. Marquês Cavalcanti, seu pai. Vai vê-lo... É um bocadinho emproado, um bocadinho bomb stico, mas trata-se de uma questão de uniforme, e quando se souber que esteve dezoito anos ao serviço da  ustria tudo se lhe desculpar . Em geral, não somos exigentes com os Austríacos. Em suma, trata-se de um pai muito aceitável, garanto-lhe.
            - Tranquiliza-me, senhor. Separamo-nos há tanto tempo que não conservo nenhuma recordação dele.
            - E depois, como sabe, uma grande fortuna desculpa muitas coisas?
            - O meu pai é portanto realmente rico, senhor?
            - Milionário... Quinhentas mil libras de rendimento.
            - Quer dizer que me vou encontrar numa posição... agradável? - perguntou o rapaz, com ansiedade.
            - Das mais agradáveis, meu caro senhor. Ele concede-lhe cinquenta mil libras de rendimento por ano durante todo o tempo que o senhor estiver em Paris.
            - Nesse caso, não ficarei aqui  para sempre?
            - Bom... quem pode adivinhar o futuro? O homem põe e Deus dispõe...
            Andrea suspirou.
            - Mas enfim, durante todo o tempo que estiver em Paris, desde que nenhuma circunstância me obrigue a afastar daqui, esse dinheiro de que me falava há pouco me será assegurado.
            - Perfeitamente!
            - Por meu pai? - perguntou Andrea, com inquietação.
            - Sim, mas garantido por Lorde Wilmore, que lhe abriu, a pedido do seu pai, um crédito de cinco mil francos por mês no banco do Sr. Danglars, um dos mais seguros banqueiros de Paris.
            - E o meu pai tenciona ficar muito tempo em Paris? - perguntou Andrea, preocupado.
            - Apenas uns dias - respondeu Monte-Cristo. - O seu serviço não lhe permite ausentar-se mais de duas ou três semanas.
            - Oh, querido pai! - exclamou Andrea, visivelmente encantado com tão pronta partida.
            - Por isso - disse Monte-Cristo, simulando enganar-se com o tom daquelas palavras –, por isso, não quero demorar um instante o momento de se reunirem. Está preparado para abraçar o digno Sr. Cavalcanti?
            - Decerto não o põe em dúvida, espero...
            - Pois bem, entre então nessa sala, meu caro amigo, e encontrará o seu pai, que o espera.
            Andrea fez um rasgado cumprimento ao conde e entrou na sala.
            O conde seguiu-o com a vista e, assim que o viu desaparecer, apertou uma mola correspondente a um quadro, o qual, afastando-se da moldura, deixava ver a sala através de um interstício habilmente dissimulado. 
            Andrea fechou a porta atrás de si e avançou para o major, que se levantou assim que ouviu o ruído dos passos que se aproximavam.
            - Ah, senhor e querido pai! - disse Andrea em voz alta e de maneira que o conde o ouvisse através da porta fechada.
            - É de fato o senhor?
            - Boas noites, meu querido filho - respondeu gravemente o major.
            - Que felicidade tornar a vê-lo depois de tantos anos de separação! - disse Andrea, continuando a olhar para a porta.
            - Com efeito, a separação foi longa...
            - Não nos abraçamos, senhor? - prosseguiu Andrea.
            - Como queiras, meu filho - respondeu o major.
            E os dois homens abraçaram-se como os atores se abraçam no Teatro Francês, isto é, passando a cabeça por cima do ombro.
            - Eis-nos pois reunidos! - exclamou Andrea.
            - Sim, eis-nos reunidos - repetiu o major.
            - Para nunca mais nos separarmos?
            - Evidentemente. Creio, meu querido filho, que consideras agora a França uma segunda pátria...
            - De fato, ficaria desesperado se tivesse de deixar Paris - perguntou o rapaz.
            - E eu, compreenda, não saberia viver fora de Luca. Regressarei pois a Itália logo que possa.
            - Mas antes de partir, queridíssimo pai, decerto me entregará documentos com os quais me seja fácil demonstrar a que família pertenço.
            - Sem dúvida nenhuma. Vim aqui propositadamente para isso e tive tanta dificuldade em te encontrar, a fim de os entregar, que se tivéssemos de recomeçar a procurar-nos iria nisso o resto da minha vida.
            - E esses documentos?
            - Estão aqui.
            Andrea pegou avidamente na certidão de casamento do pai e na sua certidão de batismo e depois de abrir ambos os documentos com uma ansiedade perfeitamente natural num bom filho, leu-os com uma rapidez e uma segurança que denotavam uma vista bem exercitada e o mais vivo interesse.
            Quando acabou, brilhava-lhe nos olhos uma indefinível expressão de alegria. E fitando o major com um sorriso estranho:
            - Que significa isto? Que não há galés na Itália? - observou em excelente toscano.
            O major empertigou-se.
            - Porque diz isso? - inquiriu.
            - Porque conseguem forjar impunemente documentos destes. Por menos de metade, meu queridíssimo pai, na França mandavam-os a ares para Toulon por cinco anos.
            - Como? - perguntou o lucano, tentando tomar um ar majestoso.
            - Meu caro Sr. Cavalcanti - disse Andrea, apertando o braço do major –, quanto lhe dão para ser meu pai?
            O major ia a responder, mas Andrea interrompeu-o.
            - Cale-se! - disse, baixando a voz. - Vou dar-lhe o exemplo da confiança. A mim dão-me cinquenta mil francos por ano para ser seu filho; logo, deve compreender que não seria eu quem estaria disposto a negar que o senhor é meu  pai. 
            O major olhou com inquietação à sua volta.
            - Eh, esteja tranquilo, estamos sós! - disse Andrea. - Além disso, falamos em italiano.
            - Bom, a mim dão-me cinquenta mil francos pagos de uma vez - declarou o lucano.
            - Sr. Cavalcanti, acredita em contos de fadas? - perguntou Andrea.
            - Dantes não acreditava, mas agora não tenho outro remédio.
            - Isso quer dizer que teve provas?
            O major tirou da algibeira das calças um punhado de ouro.
            - Palpáveis, como vê...
            - Pensa portanto que posso acreditar nas promessas que me fizeram?
            - Acho que sim.
            - E que o conde as cumprirá ?
            - Ponto por ponto. Mas para isso, compreenda, temos de desempenhar o nosso papel.
            - Que quer dizer?
            - Eu, de terno pai ..
            - E eu de filho respeitoso.
            - Uma vez que eles desejam que você descenda de mim...
            - Eles, quem?
            - Com a breca, não sei nada a tal respeito! Eles... aqueles que lhe escreveram. Não recebeu uma carta?
            - Recebi.
            - Eu também.
            - De quem?
            - De um tal abade Busoni.
            - Que não conhece?
            - Que nunca vi.
            - Que dizia essa carta?
            - Você não me atraiçoa?...
            - Deus me livre! Os nossos interesses são os mesmos.
            - Então leia.
            E o major passou uma carta ao rapaz.
            Andrea leu em voz baixa:
            “É pobre e espera-o uma velhice infeliz Quer ser, senão rico, pelo menos independente?
            “Parta imediatamente para Paris e vá reclamar ao Sr. Conde de Monte-Cristo, Avenida dos Campos Elísios, nº  30, o filho que teve da marquesa de Corsinari e que lhe foi raptado aos cinco anos de idade.
            “Esse filho chama-se Andrea Cavalcanti.
            “Para que não duvide das intenções do signatário de lhe ser prestável, encontrara aqui Junto:
            “1º Uma ordem de pagamento de duas mil e quatrocentas libras toscanas sobre o Sr. Gozzi, de Florença;
            “2º Uma carta de apresentação para o Sr. Conde de Monte-Cristo, sobre o qual lhe credito a importância de quarenta e oito mil francos.
            “Esteja em casa do conde no dia 26 de Maio às sete horas da noite. - Abade Busoni.” 
            - É isso.
            - É isso o quê? Que quer dizer? - perguntou o major.
            - A carta que recebi é mais ou menos idêntica.
            - Sim?
            - Sim.
            - E também é do abade Busoni?
            - Não.
            - De quem é, então.
            - De um inglês, um tal Lorde Wilmore, que usa o nome de Simbad, o Marinheiro.
            - E que você conhece tão bem como eu conheço o abade Busoni?
            - Evidentemente. Mas eu estou mais adiantado do que você.
            - Viu-o?
            - Sim, uma vez.
            - Onde?
            - Ah, precisamente isso é que lhe não posso dizer! Ficaria a saber tanto como eu, o que é inútil.
            - E essa carta dizia-lhe?...
            - Leia.
            “É pobre e tem um futuro miserável. Quer ter um nome, ser livre e ser rico?”
              - Com a breca, como se semelhante pergunta se fizesse! - exclamou o rapaz, balouçando-se nos calcanhares.
            “Tome a sege de posta, que encontrará pronta saindo de Nice pela porta de Gênova. Passe por Turhn, Chambély e Pont-de-Beauvoisin. Apresente-se em casa do Sr. Conde de Monte-Cristo, Avenida dos Campos Elisios, no dia 26 de Maio, às sete horas da noite, e pergunte-lhe pelo seu pai.
            “O senhor é filho do marquês Bartolomeo Cavalcanti e da marquesa Oliva Corsinari, como certificarão os documentos que lhe serão entregues pelo marquês e que lhe permitirão apresentar-se sob esse nome na sociedade parisiense.
            “Quanto à sua categoria social, um rendimento de cinquenta mil libras por ano lhe permitirá  mantê-la.
            “Junto uma ordem de pagamento de cinco mil libras sobre o Sr. M. Ferrea, banqueiro em Nice, e uma carta de apresentação para o Conde de Monte-Cristo, encarregado por mim de prover às suas necessidades. - Simbad, o Marinheiro.”
            - Hum!... - resmungou o major. - É demasiado bom...
            - Então não é?
            - Viu o conde?
            - Acabo de deixá-lo.
            - E ele confirmou?
            - Tudo.
            - Compreende alguma coisa disso?
            - Palavra que não.
            - Anda aí um lorpa no meio de tudo isso...
            - Em todo o caso, não e você nem eu, não é verdade?
            - Não, claro.
            - Sendo assim...
            - Pouco nos importa, não é verdade? 
            - Era precisamente o que queria dizer. Vamos até  ao fim e joguemos pelo seguro.
            - Seja. Verá que sou digno de ser seu parceiro.
            - Nunca duvidei um só instante, meu querido pai.
            - Lisonjeia-me, meu querido filho.
            Monte-Cristo escolheu este momento para entrar na sala.  Ao ouvirem o ruído dos seus passos, os dois homens lançaram-se nos braços um do outro. O conde encontrou-os abraçados.
            - Então, Sr. Marquês - disse Monte-Cristo –, parece que encontrou um filho de acordo com o seu coração
            - Ah, Sr. Conde, sufoco de alegria!
            - E o senhor, meu rapaz?
            -Ah, Sr. Conde, sufoco de felicidade!
            - Feliz pai! Feliz filho! - sentenciou o conde.
            - Só uma coisa me entristece - disse o major - a necessidade que tenho de deixar Paris com urgência.
            - Mas, meu caro Sr. Cavalcanti - atalhou Monte-Cristo  –, espero que não parta sem que o tenha apresentado a uns amigos...
            - Estou às suas ordens, Sr. Conde - respondeu o major.
            - E agora, meu rapaz, confesse-se.
            - A quem?
            - Mas ao senhor seu pai! Diga-lhe alguma coisa acerca do estado das suas finanças.
            - Demônio, tocou-me na corda sensível! - exclamou Andrea.
            - Ouviu, major? - perguntou Monte-Cristo.
            - Claro que ouvi.
            - Pois sim, mas compreendeu?
            - Maravilhosamente.
            - Diz que precisa de dinheiro, o querido pequeno.
            - E que quer que lhe faça?
            - Que lhe dê, ora essa!
            - Eu?
            - O senhor, sim.
            Monte-Cristo passou entre os dois homens.
            - Tome - disse a Andrea, metendo-lhe um maço de notas na mão.
            - Que é isto?
            - A resposta do seu pai.
            - Do meu pai?
            - Sim. Não acaba de lhe dizer que precisava de dinheiro?
            - Acabo, sim, e depois?
            - E depois ele encarregou-me de lhe entregar isso.
            - Por conta dos meus rendimentos?
            - Não, para as suas despesas de instalação.
            - Oh, querido pai!
            - Silêncio! - ordenou Monte-Cristo. - Bem vê que não quer que se saiba que foi ele quem lhe deu o dinheiro.
            - Aprecio a delicadeza - disse Andrea, metendo as notas na algibeira das calças. 
            - Pronto - disse Monte-Cristo –, agora retirem-se.
            - E quando teremos a honra de tornar a ve-lo Sr. Conde? - perguntou Cavalcanti.
            - Ah, sim, quando teremos essa honra? - perguntou também Andrea.
            - No sábado, se quiserem... sim, no sábado... Tenho a jantar na minha casa de Auteuil, na Rua de la Fontaine, nº  28, várias pessoas, e entre elas o Sr. Danglars, vosso banqueiro.  Os apresentarei ao barão, pois é necessário que ele conheça ambos para vos entregar o vosso dinheiro.
            - Grande uniforme? - perguntou a meia voz o major.
            - Grande uniforme. Uniforme, condecorações e calção.
            - E eu? - perguntou Andrea.
            - Oh, o senhor o mais simples possível! Calça preta, botas de verniz, colete branco, casaca preta ou azul, gravata comprida. Escolha Blin ou Véronique para se vestir. Se não sabe o seu endereço, Baptistin o dará. Quanto menos afetar pretensão no seu traje, sendo rico como é, melhor efeito causará. Se comprar cavalos, adquira-os no Devedeux. E se comprar faeton, compre-o no Baptiste.
            - A que horas devemos aparecer? - perguntou o rapaz.
            - Por volta das seis e meia.
            - Muito bem, assim faremos - declarou o major, levando a mão ao chapéu. Os dois Cavalcanti cumprimentaram o conde e saíram. O conde aproximou-se da janela e viu-os atravessar o pátio de braço dado.
            - Estão ali, na verdade, dois grandes miseráveis. - disse para consigo. - Que pena não serem realmente pai e filho!
            E após um instante de sombria reflexão:
            - Vamos a casa dos Morrels - disse. - Creio que o nojo me nauseia ainda mais do que o ódio.


Capítulo LVII

O campo de Luzerna


            Os nossos leitores devem nos permitir reconduzi-los a este campo, que confina com a casa do Sr. de Villefort e onde, atrás do portão invadido por ramos de castanheiros, reencontraremos personagens já nossas conhecidas.
            Desta vez, Maximilien foi o primeiro a chegar. É ele quem, de olho colado ao tapume, espreita para o jardim impenetrável, à espera de ver aparecer uma sombra entre as árvores e de ouvir o rangido de umas botinas de seda no saibro das alamedas.
            Por fim, o rangido tão desejado soou, mas em vez de uma sombra foram duas sombras as que se aproximaram. A demora de Valentine fora ocasionada por uma visita da Sra Danglars e de Eugênie, visita que se prolongara para além da hora em que Valentine era esperada. Então, para não faltar ao encontro, a
jovem propusera a Mademoiselle Danglars um passeio no jardim, a fim de mostrar a Maximilien que não era culpada do atraso que sem dúvida o fazia sofrer. 
            O rapaz compreendeu tudo com a rapidez de intuição peculiar aos apaixonados e o seu coração descontraiu-se. Aliás, sem lhe chegar ao alcance da voz, Valentine dirigiu o passeio de maneira que Maximilien a pudesse ver passar e repassar, e de cada vez que passava e repassava deitava para o outro lado do portão, sem que a sua companheira o notasse, um olhar que o rapaz recebia e em que lhe dizia: “Tenha paciência, meu amigo, mas bem vê que a culpa não é minha.”
            E Maximilien aceitava efetivamente o caso com paciência, ao mesmo tempo que admirava o contraste entre as duas jovens: entre a loura de olhos languidos e busto inclinado como um belo salgueiro e a morena de olhos orgulhosos e busto direito como um álamo. Depois, da comparação entre duas naturezas tão opostas toda a vantagem ia para Valentine, pelo menos no coração do rapaz..
            Ao cabo de meia hora de passeio as duas jovens afastaram-se e Maximilien compreendeu que chegara o final da visita da Sra Danglars.
            Com efeito, pouco depois Valentine reapareceu sozinha. Com receio de que algum olhar indiscreto a seguisse no regresso, caminhava devagar e, em vez de se dirigir diretamente para o portilo, foi sentar-se num banco, depois de disfarçadamente observar cada tufo de folhagem e de mergulhar a vista no fundo de todas as alamedas. Tomadas estas precauções, correu para o portão.
            - Boa tarde, Valentine - disse uma vez.
            - Boa tarde, Maximilien. O fiz esperar, mas não viu a causa?
            - Vi. Reconheci Mademoiselle Danglars. Não a julgava tão íntima dessa moça.
            - E quem lhe disse que éramos íntimas, Maximilien?
            - Ninguém. Mas pareceu-me que isso saltava à vista, dada a forma como davam o braço uma à outra e conversavam. Diria-se duas amigas de colégio trocando confidências.
            - E trocavamos efetivamente confidências - reconheceu Valentine. - Ela confessava-me a sua repugnância por um casamento com o Sr. de Morcerf e eu, pela minha parte, confessava-lhe que considerava uma infelicidade casar com o Sr. de Epinay.
            - Querida Valentine!
            - Aqui tem, meu amigo - continuou a jovem –, porque motivo notou essa aparência de abandono entre mim e Eugênie. É que enquanto falava do homem que não posso amar pensava no homem que amo.
            - Como é boa em tudo, Valentine, e possui uma coisa que Mademoiselle Danglars nunca terá: o encanto indefinido que está para a mulher como o perfume está para a flor e o sabor para o fruto. Porque não basta uma flor ser bela, nem um fruto ser agrável à vista.
            - É o seu amor que o leva a ver as coisas assim, Maximilien.
            - Não, Valentine, juro-lhe. Olhe, observava ambas há pouco e dou-lhe a minha palavra de honra de que, embora prestando justiça à beleza de Mademoiselle Danglars, não compreendia que um homem se apaixonasse por ela.
            - Porque, como dizia, Maximilien, eu estava aqui e a minha presença tornava-o injusto. 
            - Não... mas diga-me... uma questão de mera curiosidade resultante de certas idéias que tenho a respeito de Mademoiselle Danglars...
            - Oh, e decerto muito injustas, mesmo sem eu saber quais! Quando os homens nos julgam. nós, pobres mulheres, não devemos esperar indulgência.
            - Como se, entre elas, as mulheres fossem justas umas para com as outras!
            - Porque quase sempre há paixão nos nossos julgamentos. Mas voltemos à sua pergunta.
            - É por amar alguém que Mademoiselle Danglars receia o seu casamento com o Sr. de Morcerf?
            - Maximilien, já lhe disse que não era amiga de Eugênie.
            - Mas, meu Deus, mesmo sem serem amigas as moças fazem confidências umas às outras! Admita que lhe fez algumas perguntas a tal respeito... Ah, já a vejo sorrir!...
            - Sendo assim, Maximilien, não serve de nada haver este tapume entre nós...
            - Vejamos, que lhe disse ela?
            - Disse-me que não amava ninguém - respondeu Valentine. - Que tinha horror ao casamento; que a sua maior alegria seria levar uma vida livre e independente, e que quase desejaria que o pai perdesse a fortuna para se tornar artista como a sua amiga Mademoiselle Louise d'Armilly.
            - Está vendo?...
            - E então, que prova isso? - perguntou Valentine.
            - Nada - respondeu Maximilien sorrindo.
            - Nesse caso, porque sorri também agora? - quis saber Valentine.
            - Pronto, desta vez também a apanhei a espreitar, Valentine! - exclamou Maximilien.
            - Quer que me vá embora?
            - Oh, não, não! Mas voltemos a nós.
            - Sim, é melhor, porque não podemos estar juntos mais de dez minutos.
            - Meu Deus! - exclamou Maximilien, consternado.
            - Tem razão, Maximilien - admitiu Valentine, com melancolia. - Tem em mim uma pobre amiga, Maximilien. Que existência o faço passar, pobre amigo, tão bem talhado para ser feliz! Censuro-me por isso amargamente, acredite.
            - Não se preocupe, Valentine. Sinto-me feliz assim e julgo-me recompensado desta espera eterna por vê-la durante cinco minutos, por ouvir duas palavras da sua boca e por esta convicção profunda, eterna, de que Deus não criou dois corações tão em harmonia como os nossos, e sobretudo não os reuniu quase milagrosamente, para os separar.
            - Obrigada, Maximilien. Tenha esperança pelos dois; isso já me torna meio feliz.
            - Que mais lhe aconteceu, Valentine, para que me deixe tão depressa?
            - Não sei. A Sra de Villefort mandou-me pedir que fosse aos seus aposentos para ouvir uma comunicação da qual depende, segundo ela, parte da minha fortuna. Meu Deus, que fiquem com ela, com a minha fortuna! Sou demasiado rica. E que depois de se apoderarem dela me deixem tranquila e livre.  Também me amaria se fosse pobre, não é verdade, Maximilien?
            - Oh, eu a amarei sempre! Que me importaria riqueza ou pobreza se a minha Valentine estivesse junto de mim e tivesse a certeza de que ninguém a roubaria? Mas essa comunicação, Valentine, não receia que seja alguma notícia relacionada com o seu casamento?
            - Não creio.
            - No entanto, ouça-me, Valentine, e não se assuste, pois enquanto viver não serei de outra.
            - Julga tranquilizar-me dizendo-me isso, Maximilien?
            - Desculpe! Tem razão, sou um bruto. Mas o que lhe queria dizer era que há dias encontrei o Sr. de Morcerf.
            - E depois?
            - O Sr. Franz é seu amigo, como a Valentine sabe.
            - Pois sei. E depois?
            - E depois?... Ele recebeu uma carta de Franz em que lhe anuncia o seu próximo regresso.
            Valentine empalideceu e apoiou a mão no portão.
            - Ah, meu Deus, se fosse isso!... - murmurou. - Mas não, a comunicação não viria da Sra de Villefort.
            - Porquê?
            - Porque... não sei porquê... mas parece-me que a Sra de Villefort, embora se lhe não oponha francamente, não vê com bons olhos o casamento.
            - Nesse caso, Valentine, parece-me que vou adorar a Sra de Villefort!
            - Oh, não tenha pressa, Maximilien! - perguntou Valentine, com um sorriso triste.
            - Bom, se o casamento lhe é antipático, não daria ouvidos a qualquer outra proposta, quanto mais não fosse para o romper?
            - Não tenha ilusões a esse respeito, Maximilien. Não são os maridos que ela detesta, é o casamento.
            - Como? O casamento! Se detesta assim tanto o casamento, por que motivo se casou?
            - Não está me compreendendo, Maximilien. Quando há um ano falei em retirar-me para um convento, ela, apesar das observações que achou dever fazer, aceitou a minha sugestão com alegria. O meu próprio pai concordou, instigado por ela, estou certa. Só o meu pobre avô me reteve. Não pode imaginar, Maximilien, quanta expressão há nos olhos do pobre velho, que só a mim ama no mundo e que, Deus me perdoe se é uma blasfêmia, só por mim é amado no mundo. Se soubesse como me olhou quando soube a minha resolução, o que havia de censuras naquele olhar e de desespero nas lágrimas que lhe corriam, sem
queixumes, sem suspiros, ao longo das faces imóveis! Ah, Maximilien, experimentei qualquer coisa como um remorso! Lancei-me a seus pés gritando: “Perdão! Perdão, avô! Farão de mim o que quiserem, mas nunca o deixarei.” Então, ergueu os olhos ao céu. Maximilien, poderei sofrer muito, mas aquele olhar do meu velho avô recompensou-me antecipadamente do que sofrerei.
            - Querida Valentine! É um anjo e não sei realmente como mereci, espadeirando beduínos a torto e a direito, a menos que Deus os tenha considerado infiéis, não sei, repito, como mereci que se interessasse por mim. Mas enfim, vejamos, Valentine, que interesse tem a Sra de Villefort em que não se case?
            - Não me ouviu dizer há pouco que era rica, Maximilien, demasiado rica? Da parte da minha mãe lenho perto de cinquenta mil libras de rendimento; o meu avô e a minha avó, o marquês e a marquesa de Saint-Méran, devem deixar-me outro tanto, e o Sr. Noirtier tem visivelmente a intenção de me tornar a sua única herdeira. De tudo isto resulta portanto que, comparado comigo, o meu irmão Edouard, que não espera do
lado da Sra de Villefort nenhuma fortuna, é pobre. Ora, a Sra de Villefort adora essa criança, e se eu entrasse para o convento toda a minha fortuna, concentrada em meu pai, que herdaria do marquês, da marquesa e de mim, reverteria a favor do filho.
            - Oh, como é estranha essa cupidez numa jovem e bela mulher!
            - Note que não se trata dela, Maximilien, mas sim do filho, e que o que lhe censura como um defeito é quase uma virtude do ponto de vista do amor materno.
            - Mas vejamos, Valentine, e se cedesse parte dessa fortuna a esse filho? - sugeriu Morrel.
            - E como fazer semelhante proposta, sobretudo a uma mulher que não se cansa de salientar à boca cheia o seu desinteresse? - perguntou Valentine.
            - Valentine, o meu amor sempre foi para mim uma coisa sagrada, e como toda a coisa sagrada cobri-o com o véu do meu respeito e encerrei-o no meu coração. Ninguém no mundo, nem mesmo a minha irmã, suspeita da existência deste amor, que não confiei a quem quer que seja. Valentine, permite-me que fale deste amor a um amigo?
            Valentine estremeceu.
            - A um amigo?... - repetiu. - Oh, meu Deus, Maximilien, tremo só de o ouvir falar assim! A um amigo?... E quem é esse amigo?
            - Escute, Valentine: nunca sentiu por ninguém uma dessas simpatias irresistíveis que fazem com que, embora vendo essa pessoa pela primeira vez, julgue conhecê-la há muito tempo, a ponto de perguntar a si própria onde e quando a viu, de forma que, na impossibilidade de se recordar, quer do lugar quer do tempo, acabe por se convencer ter sido num mundo anterior ao nosso e que tal simpatia não passa de uma recordação que desperta?
            - Já.
            - Pois aí tem o que senti a primeira vez que vi aquele homem extraordinário.
            - Um homem extraordinário?...
            - Sim.
            - Que conhece há muito tempo?
            - Apenas há oito ou dez dias.
            - E chama seu amigo a um homem que conhece há oito ou dez dias? Oh, Maximilien, julgava-o mais ávaro do belo nome de amigo!
            - Logicamente tem razão, Valentine. Mas diga o que disser, nada me fará mudar de opinião acerca deste sentimento instintivo. Creio que esse homem estará envolvido em tudo o que me acontecer de bom no futuro, futuro que às vezes o seu olhar profundo parece conhecer e a sua mão poderosa dirigir.
            - Trata-se portanto de um adivinho? - perguntou, sorrindo, Valentine.
            - Palavra que muitas vezes me sinto tentado a crer que adivinha... o bem, sobretudo - respondeu Maximilien.
            - Oh, apresente-me esse homem, Maximilien! - pediu Valentine, tristemente. - Quero que me diga se serei amada o suficiente para me sentir recompensada de tudo o que tenho sofrido.
            - Pobre amiga! Mas a Valentine conhece-o!
            - Eu? 
            - Sim. É aquele que salvou a vida à sua madrasta e ao filho.
            - O conde de Monte-Cristo?
            - O próprio.
            - Oh, esse nunca poderá ser meu amigo, pois é - o demasiado da minha madrasta! - exclamou Valentine.
            - O conde, amigo da sua madrasta, Valentine? O meu instinto não se enganaria a esse ponto. Estou certo de que está enganada.
            - Oh, se soubesse, Maximilien! Já não é Edouard quem reina em casa, é o conde. Solicitado pela Sra de Villefort, que vê nele o repositório dos conhecimentos humanos; admirado, ouça bem, admirado pelo meu pai, que diz nunca ter ouvido formular com mais eloquência idéias mais elevadas; idolatrado por Edouard, que, apesar do seu medo dos grandes olhos negros do conde, corre para ele assim que o vê chegar e lhe abre a mão, onde encontra sempre qualquer brinquedo admirável, o Sr. de Monte-Cristo não está aqui em casa do meu pai, o Sr. de Monte-Cristo não está aqui em casa da Sra de Villefort, o Sr. de Monte-Cristo está aqui em sua casa.
            - Nesse caso, querida Valentine, se as coisas são assim como diz, deve já sentir, ou em breve sentirá, os efeitos da sua presença. Encontra Albert de Morcerf na Itália e arranca-o das mãos dos bandidos; conhece a Sra Danglars e oferece-lhe um presente real; a sua madrasta e o seu irmão passam-lhe diante da porta e o seu núbio salva-lhes a vida. Trata-se de um homem que recebeu, evidentemente, o poder de influir nas coisas.
Nunca vi gostos mais simples aliados a tão grande magnificência. O seu sorriso é tão afetuoso quando me dirige que esqueço que os outros acham o seu sorriso amargo. Diga-me, Valentine, ele já lhe sorriu assim? Se sorriu, será feliz.
            - A mim? - perguntou a jovem. - Meu Deus, Maximilien, nem se quer me olha! Ou antes, se passo por acaso, desvia a vista de mim. Ou não é generoso, ou não possui esse olhar profundo que lê no fundo dos corações, como o Maximilien supõe erradamente. Porque se fosse generoso, vendo-me sozinha e triste nesta
casa, me protegeria com a influência que exerce. Se, como o Maximilien pretende, desempenha o papel de Sol, me aqueceria o coração com um dos seus raios. Diz que gosta de si, Maximilien... Meu Deus, que sabe o senhor a tal respeito? Os homens mostram bom rosto a um oficial de cinco pés e seis polegadas de altura, como o senhor, e ainda por cima possuidor de um grande bigode e de um comprido sabre, mas julgam poder
esmagar sem receio uma pobre moça que chora.
            - Oh, Valentine, está enganada, juro-lhe!
            - Vejamos, Maximilien, se não fosse assim, isto é, se ele me tratasse diplomaticamente, como homem que, de uma maneira ou de outra, se quer introduzir na casa, me honraria, nem que fosse uma só vez, com esse sorriso que tanto me elogia. Mas não, viu-me infeliz, sabe que não lhe posso ser útil para nada, e nem sequer me presta atenção. Quem sabe até se, para fazer a corte ao meu pai, à Sra de Villefort ou ao meu irmão, me não perseguir  também assim que o possa fazer? Francamente; não sou mulher que se despreze assim, sem motivo; o senhor mesmo mo disse... Oh, perdoe-me! - continuou a jovem, ao ver a impressão que as suas palavras causavam a Maximilien. - Sou má e estou para aqui a lhe dizer acerca desse homem coisas que nem sequer sabia ter no coração. Olhe, não nego que essa influência de que fala existe e que ele a exerce também sobre mim; mas exerce-a de uma maneira nociva e corruptora de bons pensamentos, como vê.
            - Está bem, Valentine, não falemos mais disso - perguntou Morrel, suspirando. - Não lhe direi nada.
            - Que infelicidade a minha, meu amigo, aflijo-o, bem vejo! - exclamou Valentine. - Oh, não poderá apertar-lhe a mão e pedir-lhe perdão! Mas enfim, não pretendo mais do que ser convencida... Diga-me, que fez por você esse conde de Monte-Cristo?
            - Embaraça-me muito, confesso-lhe, Valentine, perguntando-me o que fez o conde por mim. Ostensivamente, nada, bem sei. Por isso, como já lhe disse, a minha atenção por ele é absolutamente instintiva e não tem nada de racional. O Sol fez-me porventura alguma coisa? Não. Apenas me aquece e é à
sua luz que a vejo, Valentine. Tal ou tal perfume fez alguma coisa por mim? Não. Mas o seu aroma impressiona agradavelmente um dos meus sentidos. Não posso responder mais nada quando me perguntam porque elogio esse perfume. A minha amizade por ele é tão estranha como a sua por mim. Uma voz íntima diz-me que há mais do que acaso nesta amizade imprevista e recíproca. Encontro correlação até  nas suas mais simples ações, até nos seus mais secretos pensamentos, com as minhas ações e os meus pensamentos. Vai rir novamente de mim, Valentine, mas desde que conheço esse homem meteu-se na minha cabeça a idéia absurda de que tudo o que me acontece provem dele. No entanto, vivi trinta anos sem necessitar de semelhante protetor, não é verdade! Não importa. Olhe, por exemplo: convidou-me para jantar, no sábado, o que é natural no ponto em que as nossas relações se encontram, não acha? Imagina o que soube depois? O seu pai está convidado para esse jantar e a sua madrasta também. Me encontrarei lá com eles e quem sabe o que resultará no futuro desse encontro? Aparentemente, trata-se de tudo quanto há de mais simples; contudo, vejo nisso algo que me espanta, mas em que deposito uma confiança estranha. Digo para comigo que o conde, esse homem singular que adivinha tudo, quis que me encontrasse com o Sr. e a Sra de Villefort, e às vezes procuro, juro-lhe, ler nos seus olhos se ele adivinhou o meu amor.
            - Meu bom amigo - disse Valentine -, o tomaria por um visionário e recearia sinceramente pelo seu bom senso se apenas lhe ouvisse semelhantes raciocínios. O quê, vê outra coisa a não ser o acaso nesse encontro?! Vamos, reflita. Meu pai, que nunca sai, esteve quase por dez vezes recusando esse convite à Sra de Villefort, a qual, pelo contrário. Está  ansiosa por ver a casa desse nababo extraordinário e dificilmente conseguiu que ele a acompanhasse. Não, não, acredite que não tenho, excetuando o senhor, Maximilien,
outro auxílio a esperar neste mundo a não ser o do meu avô, um cadáver, nem outro apoio a procurar que não seja na minha pobre mãe, um fantasma!
            - Sinto que tem razão, Valentine, e que a lógica está do seu lado - respondeu Maximilien. - Mas a sua meiga voz, que tanto poder tem sempre sobre mim, hoje não me convence.
            - Nem a sua - perguntou Valentine. - E confesso que se não tem outro exemplo para me dar...
            - Tenho mais um - respondeu Maximilien, hesitante. - Mas na verdade, Valentine, sou forçado a confessar eu próprio que é ainda mais absurdo do que o primeiro. 
            - Paciência! - exclamou Valentine, sorrindo.
            - E no entanto - continuou Morrel - ele nem por isso é menos concludente para mim, homem todo de inspiração e sentimento, e que tenho algumas vezes, desde que há dez anos sou militar, devido a vida a um desses impulsos íntimos que nos ditam um movimento de avanço ou recuo para que a bala que nos devia
matar passe a nosso lado.
            - Querido Maximilien, porque não atribuir às minhas preces esse desvio das balas? Quando está ausente, não é por mim nem por minha mãe que peço a Deus, é por si.
            - Sim, desde que a conheço - respondeu Morrel, sorrindo. - Mas antes de conhece-la, Valentine?
            - Bom, já que me não quer dever nada, vejamos esse exemplo que o senhor mesmo confessa ser absurdo...
            - Pois sim. Espreite pelas tábuas e veja ali adiante, naquela árvore, o cavalo novo em que vim.
            - Oh, que lindo animal! - exclamou Valentine. - Porque não o trouxe para junto do portão? Lhe falaria e ele me ouviria .
            - É efetivamente, como vê, um animal bastante valioso - disse Maximilien. - Ora, como sabe, Valentine, a minha fortuna é pequena e eu sou o que se chama um homem sensato. Pois bem, vi num alquilador aquele magnífico Médeah, como lhe chamo, e perguntei quanto custava. Responderam-me que custava quatro
mil e quinhentos francos. Como compreende, tive de me abster de achá-lo bonito durante mais tempo e saí, confesso, bastante impressionado, porque o cavalo me olhara meigamente, acariciara-me com a cabeça e caracolara debaixo de mim da forma mais altaneira e encantadora que se possa imaginar. Naquela mesma noite recebia alguns amigos em casa: o Sr. de Château-Renaud, o Sr. Debray e mais cinco ou seis patuscos
que a Valentine tem a felicidade de não conhecer, mesmo de nome. Alguém propôs uma bouillotte. Nunca jogo, pois não sou suficientemente rico para poder perder, nem bastante pobre para desejar ganhar. Mas estava em minha casa, compreende, e não tinha outra coisa a fazer senão mandar buscar cartas, e foi o que fiz.
            “Quando nos sentávamos à mesa chegou o Sr. de Monte-Cristo. Tomou o seu lugar, jogamos e ganhei. Quase me não atrevo a dizer-lhe isto, Valentine: ganhei... cinco mil francos. Nos separamos à meia-noite. Incapaz de me conter, meti-me num cabriolé e fiz-me conduzir a casa do meu alquilador. Palpitante, febril, toquei. Quem veio abrir deve ter-me tomado por um louco. Corri para o outro lado da porta mal abriram.
Entrei na cavalariça e olhei para as manjedouras. Que sorte! Médeah tasquinhava o seu feno. Corri para uma sela, coloquei-lha eu próprio, pus-lhe o freio e Medeah prestou-se com a melhor boa vontade do mundo a esta operação! Depois, depositei os quatro mil e quinhentos francos nas mãos do alquilador estupefato, saí e passei a noite a passear nos Campos Elísios. Vi luz na janela do conde e pareceu-me distinguir a sua sombra atrás das cortinas. Agora, Valentine, juraria que o conde soube que eu desejava o cavalo e perdeu de
propósito para eu ganhar.
            - Meu querido Maximilien, é na verdade, demasiado imaginativo - perguntou Valentine. - Não me amará  muito tempo... Um homem que compõe assim poesia seria incapaz de estiolar sem motivo numa paixão monótona como a nossa... Mas, valha-me Deus, estão me chamando... não ouve?! 
            - Valentine - pediu Maximilien através do buraco do tapume –, dê-me o seu dedo mendinho para que o beije...
            - Maximilien, tínhamos prometido que seríamos um para o outro duas vozes, duas sombras!
            - Como queira, Valentine.
            - Ficaria feliz se fizesse o que deseja?
            - Oh, sim!
            Valentine subiu para um banco e passou, não o dedo mendinho pela abertura, mas sim a mão toda por cima do tapume.
            Maximilien soltou um grito e, subindo por seu turno para o marco, pegou naquela mão adorada e aplicou-lhe os lábios ardentes. Mas a mãozinha fugiu-lhe imediatamente por entre as suas e o rapaz ouviu correr Valentine, talvez assustada com a sensação que acabava de experimentar.


Capítulo LVIII

O Sr. Noirtier de Villefort

            Eis o que se passara em casa do procurador régio depois da saída da Sra Danglars e da filha e durante o diálogo que acabamos de relatar.
            O Sr. de Villefort entrara nos aposentos do pai, acompanhado da Sra de Villefort. Quanto a Valentine, já sabemos onde estava. Depois de cumprimentarem o velho e mandarem sair Barrois, criado que estava há mais de vinte e cinco anos ao serviço do inválido, sentaram-se ambos a seu lado.
            O Sr. Noirtier, sentado na sua grande cadeira de rodas, onde o colocavam de manhã e donde o tiravam à noite, e diante de um espelho que refletia todo o aposento e lhe permitia ver, sem mesmo tentar um movimento, que aliás lhe seria impossível, quem entrava no seu quarto e quem saía e o que se passava à
sua volta, o Sr. Noirtier, dizíamos, imóvel como um cadáver, observava com olhos inteligentes e vivos os filhos, cuja cerimoniosa reverência lhe anunciava qualquer diligência oficial inesperada.
            A vista e o ouvido eram os dois únicos sentidos que ainda animavam, como duas centelhas, aquela matéria humana já três quartas partes preparada para o túmulo. No entanto, desses dois sentidos só um podia revelar exteriormente a vida interior que animava a estátua. E o olhar que denunciava essa vida interior parecia uma dessas luzes distantes que durante a noite indicam ao viajante perdido no deserto que ainda existe um ser que vela no silêncio e na escuridão.
            Por isso, nos olhos negros do velho Noirtier, encimados por sobrancelhas também negras, enquanto toda a cabeleira, que usava comprida e caída sobre os ombros, era branca, nesses olhos, como acontece com qualquer ôrgão do homem que funciona à custa doutros órgãos, tinham-se concentrado toda a atividade, toda a sagacidade, toda a energia, toda a inteligência, distribuídas outrora por aquele corpo e por aquele espírito. Claro que faltavam o gesto do braço, o som da voz, a atitude do corpo; mas aquele olhar poderoso supria tudo. Mandava com os  olhos; agradecia com os olhos; era um cadáver com olhos vivos, e nada era por vezes mais aterrador do que aquele rosto de mármore no alto do qual brilhava uma cólera ou uma alegria. Apenas três pessoas compreendiam aquela linguagem do pobre paralítico: Villefort, Valentine e o velho
criado de quem já falamos. Mas como Villefort só raramente via o pai, e por assim dizer quando não podia deixar de ser, e como quando o via não procurava agradar-lhe compreendendo-o, toda a felicidade do velho assentava na neta, e Valentine conseguira, a poder de dedicação, amor e paciência, compreender com o olhar todos os pensamentos de Noirtier. Àquela linguagem muda ou ininteligível para qualquer outra pessoa respondia ela com toda a sua voz, toda a sua fisionomia, toda a sua alma, de tal forma que se estabeleciam
diálogos animados entre a jovem e aquela pretensa argila, em breve transformada em pó, mas que entretanto era ainda um homem de um saber imenso, de uma penetração inaudita e de uma vontade tão forte quanto o pode ser a alma encerrada numa matéria pela qual perdeu o poder de se fazer obedecer.
            Valentine resolvera portanto o estranho problema de compreender o pensamento do velho e de fazer-lhe compreender o dela; e, graças a esse estudo, era muito raro que no tocante às coisas correntes da vida ela não interpretasse com exatidão o desejo daquela alma viva ou a necessidade daquele cadáver semi-insensível.
            Quanto ao criado, como, tal como dissemos, havia vinte e cinco anos que servia o amo, conhecia tão bem todos os seus hábitos que era raro Noirtier necessitar de lhe pedir qualquer coisa.
            Villefort não precisava, porém, da ajuda nem de um nem de outro para entabular com o pai a singular conversa que vinha provocar. Ele próprio, como dissemos, conhecia perfeitamente o vocabulário do velho, e se o não utilizava com mais frequência era por comodismo e indiferença. Deixou portanto Valentine descer ao jardim, mandou Barrois embora e, depois de se sentar à direita do pai, enquanto a Sra de Villefort se sentava à esquerda, começou:
            - Senhor, não se admire de Valentine não ter subido conosco e de ter afastado Barrois, porque a conferência que vamos ter é daquelas que se não podem efetuar diante de uma jovem ou de um criado. A Sra de Villefort e eu temos uma comunicação a fazer-lhe.
            O rosto de Noirtier permaneceu impassível durante este preambulo, ao passo que, pelo contrário, o olhar de Villefort parecia querer penetrar até  ao âmago do coração do velho.
            - A Sra de Villefort e eu - prosseguiu o procurador régio no seu tom gelado e que parecia nunca admitir contestação - estamos certos de que esta comunicação lhe agradará.
            O olhar do velho continuou a permanecer inexpressivo. Limitava-se a escutar.
            - Senhor - prosseguiu Villefort –, vamos casar Valentine. Uma figura de cera não teria ficado mais fria ao ouvir esta notícia do que ficou o semblante do velho.
            - O casamento se realizará-  dentro de três meses - acrescentou Villefort. O olhar do velho continuou inanimado.
            A Sra de Villefort tomou por sua vez a palavra e apressou-se a acrescentar: 
            - Pensamos que esta notícia lhe interessasse, senhor, tanto mais que Valentine sempre pareceu merecer a sua afeição. Só nos resta portanto dizer-lhe o nome do rapaz que lhe está destinado. Trata-se de um dos mais respeitáveis partidos a que Valentine poderia aspirar: é rico, possui um belo nome...enfim, aquele que lhe destinamos dá garantias perfeitas de felicidade, tanto pelo seu comportamento como pelos seus gostos. Aliás, o seu nome não lhe deve ser desconhecido. Trata-se do Sr. Franz de Quesnel, barão de Epinay.
            Enquanto a mulher fazia o seu discursozinho, Villefort cravava no velho um olhar mais atento do que nunca. Quando a Sra de Villefort pronunciou o nome de Franz, os olhos de Noirtier, que o filho conhecia tão bem, tremeram e as pálpebras, dilatando-se como o fariam lábios para deixar passar palavras, deixaram passar um relâmpago.
            O procurador régio, que conhecia as antigas relações de inimizade pública existentes entre o pai e o pai de Franz, compreendeu aquele estremecimento e aquela agitação; fez porém de conta que não dera por nada e disse, retomando a palavra onde a mulher a deixara:
            - Senhor, é importante, como bem compreende, que Valentine se case finalmente, pois está quase a fazer dezenove anos. No entanto, não nos temos esquecido do senhor nas conferências e asseguramo-nos antecipadamente de que o marido de Valentine aceitará, senão viver junto de nós, que talvez incomodássemos um jovem casal, pelo menos que o senhor, a quem Valentine ama especialmente e à qual o senhor parece retribuir essa afeição, viva junto deles, de forma a não ter de alterar nenhum dos seus hábitos e ficar apenas com dois filhos em vez de um para olhar por si.
            O brilho do olhar de Noirtier tornou-se cruel.
            Sem dúvida nenhuma passava-se algo horrível na alma do velho; sem dúvida nenhuma subia-lhe à garganta um grito de dor e de cólera que, na impossibilidade de explodir, o sufocava, pois o seu rosto purpureou-se e os seus lábios tornaram-se azuis.
            Villefort abriu tranquilamente uma janela e comentou:
            - Está muito calor aqui e este calor faz mal ao Sr. Noirtier.
            Depois voltou a aproximar-se do pai, mas não se sentou.
            - O casamento - acrescentou a Sra de Villefort - é muito do agrado do Sr. de Epinay e da sua família. Aliás, a sua família compõe-se apenas de um tio e uma tia. Como a mãe morreu ao dar à luz e o pai foi assassinado em 1815, isto é, quando o filho contava apenas dois anos, ele não tem de dar conta dos seus atos a ninguém.
            - Assassínio misterioso - salientou Villefort - e cujos autores ficaram no anonimato, embora a suspeita tenha pairado, sem se abater, sobre a cabeça de muita gente...
            Noirtier fez tal esforço que os seus lábios se contraíram como que para sorrir.
            - Ora - continuou Villefort –, os verdadeiros culpados, aqueles que sabem que cometeram o crime, aqueles sobre os quais pode descer a justiça dos homens durante a sua vida e a justiça de Deus depois da sua morte, seriam muito felizes se estivessem no nosso lugar e tivessem uma filha para oferecer ao Sr. Franz de Epinay, a fim de apagarem até  a mais pequena aparência de suspeita.
            Noirtier acalmara-se graças a uma energia que se não esperaria encontrar naquele organismo depauperado. 
            - Sim, compreendo - respondeu com o olhar a Villefort, e esse olhar exprimia simultaneamente a cólera inteligente e o desdém profundo. Pela sua parte, Villefort respondeu àquele olhar, no qual lera o que continha, com um leve encolher de ombros. Depois, fez sinal à mulher para se levantar.
            - Os meus cumprimentos, senhor - disse a Sra de Villefort. - Gostaria que Edouard lhe viesse apresentar também os seus cumprimentos?
            Estava assente que o velho exprimiria a sua aprovação fechando os olhos e a sua recusa abrindo-os e fechando-os várias vezes, e que desejaria exprimir qualquer desejo quando os erguesse ao céu. Se queria Valentine, fechava apenas o olho direito. Se queria Barrois, fechava o olho esquerdo. Ao ouvir a proposta da Sra de Villefort, piscou vivamente o olhos.
            Brindada com uma recusa evidente, a Sra de Villefort contraiu os lábios.
            - Nesse caso, quer que lhe mande Valentine? - perguntou.
            - Quero - respondeu o velho, fechando os olhos com vivacidade.
            O Sr. e a Sra de Villefort cumprimentaram, saíram e ordenaram que se chamasse Valentine, já prevenida, de resto, de que teria de fazer qualquer coisa durante o dia junto do Sr. Noirtier.
            Ainda muito corada de emoção, Valentine entrou no quarto do velho depois deles saírem. E bastou-lhe um olhar para adivinhar como o avô sofria e quantas coisas tinha para lhe dizer.
            - Então, avozinho, que aconteceu? Fizeram-te zangar, não é verdade, e está irritado?
            - Estou - respondeu ele fechando os olhos.
            - Com quem? Com o meu pai? Não. Com a Sra de Villefort? Também não. Comigo?
            O velho fez sinal que sim.
            - Comigo? - repetiu Valentine, atônita.
            O velho repetiu o sinal.
            - E que te fiz eu, avozinho? - inquiriu Valentine.
            Nenhuma resposta. Ela continuou:
            - Não pude te ver durante o dia. Contaram-te alguma coisa a meu respeito?
            - Contaram - respondeu o olhar do velho, com vivacidade.
            - Deixa-me procurar... Meu Deus, juro-te, avozinho... Ah! O Sr. e a Sra de Villefort estiveram aqui, não estiveram?
            - Estiveram.
            - E foram eles que te disseram coisas que te zangaram? O quê? Quer que vá lhes perguntar para que me possa justificar junto de ti?
            - Não, não - respondeu o olhar.
            - Oh, assustas-me! Que te terão dito, meu Deus?
            E procurou.
            - Oh, já sei! - exclamou baixando a voz e aproximando-se do velho. - Falaram do meu casamento, talvez?...
            - Falaram - replicou o olhar, irritado.
            - Compreendo, está zangado comigo por causa do meu silêncio. Mas, que queria, tinham-me recomendado que não te dissesse nada; nem a mim própria tinham dito nada, eu é que de certo modo lhes descobri o segredo, por indiscrição. Aqui tens porque fui tão reservada contigo. Perdoa-me, avozinho Noirtier.
            De novo fixo e inexpressivo, o olhar pareceu responder. “Não é apenas o teu silêncio que me aflige.”
            - Que mais é então? - perguntou a jovem. - Julga talvez que te abandonarei, avozinho, e que o meu casamento me tornará esquecida?
            - Não - respondeu o velho.
            - Disseram-te então que o Sr. de Epinay consentia que morassemos juntos?
            - Disseram.
            - Então porque está zangado?
            Os olhos do velho adquiriram uma expressão de infinita doçura.
            - Sim, compreendo - disse Valentine. - Porque me ama?
            O velho fez sinal que sim.
            - E tem medo que seja infeliz?
            - Tenho.
            - Não gosta do Sr. Franz?
            Os olhos repetiram três ou quatro vezes: “Não, não, não.”
            - E é por isso que está tão triste, avozinho?
            - É.
            - Então, escuta - disse Valentine, ajoelhando diante de Noirtier e rodeando-lhe o pescoço com os braços. - Também estou muito triste porque, como você, não gosto do Sr. Franz de Epinay.
            Um relâmpago de alegria passou pelos olhos do velho.
            - Lembrasse de quando quis ir para o convento também te zangaste muito comigo?
            Uma lágrima umedeceu a pálpebra ressequida do velho.
            - Pois era para fugir a esse casamento que me enche de desespero - confessou Valentine.
            A respiração de Noirtier tornou-se arquejante.
            - Então o meu casamento te entristece muito, avozinho? Oh, meu Deus, se pudesses ajudar-me, se pudéssemos ambos destruir-lhes o seu projeto! Mas não tem forças para eles... Você, que no entanto possui um espírito tão vivo e uma vontade tão firme, quando se trata de lutar é tão fraco e até  mais fraco do que
eu. Pouca sorte a minha! Você que teria sido para mim um protetor tão poderoso quando tinhas força e saúde, hoje só pode compreender-me e regozijar-se ou afligir-se comigo. É a derradeira felicidade que Deus se esqueceu de me levar com as outras.
            Depois destas palavras surgiu nos olhos de Noirtier uma tal expressão de malícia e eloquência que a jovem julgou ler neles: “Enganas-se, posso ainda fazer muito por ti.”
            - Pode fazer alguma coisa por mim, querido avozinho? - traduziu Valentine.
            - Posso.
            Noirtier ergueu os olhos ao céu. Era o sinal convencionado entre ele e Valentine quando desejava qualquer coisa.
            - Que quer, querido avozinho? Vejamos... 
            Valentine procurou um instante na memória, exprimiu em voz alta os seus pensamentos à medida que lhe acudiam e, vendo que a tudo o que dizia o velho respondia constantemente “não”, murmurou:
            - Já que sou tão estúpida, recorramos aos grandes meios...
            Então recitou uma após outra todas as letras do alfabeto, do A ao N, enquanto com um sorriso interrogava o olhar do paralítico. No N, Noirtier fez sinal que sim.
            - Ah! - exclamou Valentine. - O que quer começa pela letra N! É o N que nos interessa? Muito bem! Vejamos o que juntamos ao N... Na, ne, ai, no...
            - Sim, sim, sim - disse o velho.
            - Ah! É o no?
            - É.
            Valentine foi buscar um dicionário que colocou numa estante de música diante de Noirtier. Abriu-o e quando viu os olhos do velho nas folhas percorreu vivamente as colunas, de alto a baixo, com o dedo.
            O exercício, praticado desde que havia seis anos Noirtier caíra no estado deplorável em que se encontrava, tornara-se tão fácil que ela adivinhava com tanta rapidez o pensamento do velho como se ele próprio pudesse consultar o dicionário. Noirtier fez-lhe sinal para parar na palavra tabelião.
            - Tabelião! - exclamou Valentine. - Quer um tabelião, avozinho?
            O velho fez sinal de que era efetivamente um tabelião o que desejava.
            - Devemos então mandar chamar um tabelião? - perguntou Valentine.
            - Sim.
            - O meu pai deve saber?
            - Deve.
            - Tens pressa de falar com o tabelião?
            - Tenho.
            - Então, vamos mandar chamá-lo imediatamente, querido avozinho. É tudo o que deseja?
            - É.
            Valentine correu para a campainha, chamou um criado e mandou-o pedir ao Sr. e à Sra de Villefort que viessem ao quarto do avô.
            - Está satisfeito? - perguntou Valentine.-Sim... bem vejo! Mas olha que não era fácil descobrir o que pretendia...
            E a jovem sorriu ao avô como sorriria a uma criança. O Sr. de Villefort entrou, trazido por Barrois.
            - Que deseja, senhor? - perguntou ao paralítico.
            - Senhor - respondeu Valentine –, o meu avô deseja um tabelião.
            Ao ouvir aquele pedido estranho e sobretudo inesperado, o Sr. de Villefort trocou um olhar com o paralítico.
            - Sim - confirmou o velho, com uma firmeza que indicava que com o auxílio de Valentine e do seu velho criado, que sabia agora o que ele desejava, estava pronto para sustentar a luta.
            - Quer um tabelião? - repetiu Villefort.
            - Quero.
            - Para quê?
            Noirtier não respondeu. 
            - Mas para que necessita de um tabelião? - insistiu Villefort. O olhar do paralítico permaneceu imóvel, e por consequência mudo, o que significava: “Persisto na minha vontade.”
            - Para nos pregar alguma partida, não? - insinuou Villefort. - Valerá a pena?
            - Mas enfim - interveio Barrois, pronto a insistir, com a perseverança dos velhos criados –, se o senhor quer um tabelião é aparentemente porque precisa dele. Portanto, vou buscar um tabelião.
            Barrois não reconhecia outro amo a não ser Noirtier e nunca admitia que as suas vontades fossem contestadas em nada.
            - Sim, quero um tabelião - teimou o velho, fechando os olhos em ar de desafio e como se dissesse: “Vejamos se se atrevem a recusar o que quero.”
            - Terá um tabelião, uma vez que o deseja absolutamente, senhor, mas me desculparei junto dele, assim como o senhor mesmo terá de se desculpar, porque a cena será muitíssimo ridícula.
            - Não importa - perguntou Barrois. - Mesmo assim, vou buscá-lo.
            E o velho servidor saiu triunfante.


Capítulo LIX

O testamento


            Quando Barrois saiu, Noirtier olhou para Valentine com uma expressão maliciosa que anunciava muitas coisas. A jovem compreendeu aquele olhar, e Villefort também, pois a sua testa ensombrou-se e o seu sobrolho franziu-se.
            Pegou numa cadeira, instalou-se no quarto do paralítico e esperou. Noirtier assistiu a tudo com absoluta indiferença, mas pelo rabo do olho ordenou a Valentine que não se inquietasse e ficasse também.
            Três quartos de hora mais tarde o criado regressou com o tabelião.
            - Senhor - disse Villefort, depois dos primeiros cumprimentos –, quem o mandou chamar foi o Sr. Noirtier de Villefort, aqui presente. Uma paralisia geral tirou-lhe o uso dos membros e da voz e só nós, com grande dificuldade, conseguimos apreender alguns fragmentos dos seus pensamentos.
            Noirtier apelou com a vista para Valentine, apelo tão grave e imperioso que ela respondeu imediatamente:
            - Eu, senhor, compreendo tudo o que quer dizer o meu avô.
            - É verdade - acrescentou Barrois. - Tudo, absolutamente tudo, como disse ao senhor pelo caminho.
            - Permita-me, senhor, e a menina também - disse o tabelião, dirigindo-se a Villefort e a Valentine –, que ponha as minhas reservas. Trata-se de um caso em que um funcionário público não pode proceder inconsideradamente sem assumir uma responsabilidade perigosa. A primeira condição para que um ato seja válido é que o tabelião esteja convencido de que interpretou fielmente a vontade daquele que a exprime. Ora, eu próprio não posso estar certo da aprovação ou da desaprovação de um cliente que não fala. E como o objeto dos seus desejos e das suas repugnâncias não pode, devido ao seu mutismo, ser provado claramente, o meu ministério é mais do que inútil e seria ilegalmente exercido.
            O tabelião deu um passo para se retirar. Um imperceptível sorriso de triunfo desenhou-se nos lábios do procurador régio. Pela sua parte, Noirtier fitou Valentine com tal expressão de dor que ela se colocou no caminho do tabelião.
            - Senhor - disse –, a língua que falo com o meu avô é uma língua que se pode aprender facilmente, e assim como eu a compreendo, também posso em poucos minutos conseguir que o senhor a compreenda. De que precisa, senhor, para que a sua consciência fique perfeitamente edificada?
            - O que é necessário para que os nossos atos sejam válidos, menina - respondeu o tabelião –, isto é, a certeza da aprovação ou da desaprovação. Pode-se testar doente de corpo, mas tem de se estar são de espírito.
            - Muito bem, senhor. Com dois sinais, adquirirá essa certeza, a certeza de que o meu avô nunca esteve mais na plenitude da sua inteligência do que neste momento. O Sr. Noirtier, privado da voz, privado de movimento, abre os olhos quando quer dizer sim e pestaneja várias vezes quando quer dizer não. Sabe
agora, senhor, o suficiente para falar com o Sr. Noirtier. Experimente.
            O olhar que o velho deitou a Valentine estava tão úmido de ternura e reconhecimento que o próprio tabelião o compreendeu.
            - Ouviu e compreendeu o que acaba de dizer a sua neta, senhor? - perguntou o tabelião.
            Noirtier fechou suavemente os olhos e abriu-os um instante depois.
            - E aprova o que ela disse, isto é, que os sinais indicados por ela são de fato aqueles com o auxílio dos quais o senhor faz compreender o seu pensamento?
            - Aprovo - respondeu novamente o velho.
            - Foi o senhor que me mandou chamar?
            - Fui.
            - Para fazer o seu testamento?
            - Sim.
            - E não quer que me retire sem ter feito esse testamento?
            O paralítico pestanejou vivamente e por diversas vezes.
            - Então, senhor, compreende agora e a sua consciência já está tranquila? - perguntou a jovem.
            Mas antes de o tabelião ter tempo de responder, Villefort puxou-o à parte.
            - Senhor, parece-lhe que um homem possa suportar impunemente um abalo físico tão terrível como o que experimentou o Sr. Noirtier de Villefort sem que o próprio moral tenha sido gravemente atingido?
            - Isso não é precisamente o que me inquieta, senhor - respondeu o tabelião. - O que pergunto a mim mesmo é como conseguiremos adivinhar-lhe os pensamentos, a fim de lhe provocar as respostas.
            - Bem vê que é impossível - insistiu Villefort.
            Valentine e o velho ouviam esta conversa. Noirtier pousou um olhar tão fixo e tão firme em Valentine que esta compreendeu que tal olhar exigia evidentemente uma resposta.
            - Senhor - interveio –, não se preocupe com isso. Por mais difícil que seja, ou antes, que lhe pareça descobrir o pensamento do meu avô, o revelarei de forma a desfazer todas as dúvidas a esse respeito. Há seis anos que convivo de perto com o Sr. Noirtier e ele próprio que diga se, nesses seis anos, um só dos  seus desejos ficou sepultado no seu coração por não conseguir dá-lo a entender.
            - Não - respondeu o velho.
            - Experimentemos então - disse o tabelião. - Aceita esta menina como a sua intérprete?
            O paralítico tez sinal que sim
            - Muito bem. Vejamos então, senhor, que deseja de mim, qual é o ato que pretende praticar...
            Valentine recitou todas as letras do alfabeto até  à letra T.
            Uma eloquente olhadela de Noirtier deteve-a nessa altura.
            - O senhor pede a letra T - disse o tabelião. - A escolha é visível.
            - Espere - pediu Valentine, que em seguida se virou para o avô e recitou:  - Ta... te...o velho deteve-a na segunda destas sílabas.
            Então, Valentine pegou no dicionário e folheou as páginas diante do olhar atento do tabelião.
            - Testamento - disse, parando o dedo a um sinal de olhos de Noirtier.
            - Testamento! - exclamou o tabelião. - É evidente, o senhor quer testar.
            - Quero - confirmou Noirtier várias vezes.
            - Convenhamos que é maravilhoso, senhor! - disse o tabelião, estupefato, a Villefort.
            - De fato - replicou este e ainda mais maravilhoso ser o testamento. Porque, enfim, não creio que os artigos se alinhem no papel, palavra por palavra, sem a inteligente inspiração da minha filha. Ora, Valentine talvez seja um pouco interessada nesse testamento e por isso uma intérprete não muito conveniente das obscuras vontades do Sr. Noirtier de Villefort.
            - Não, não! - contrapós o paralítico.
            - Como, Valentine não é interessada no seu testamento? - estranhou Villefort.
            - Não - repetiu Noirtier.
            - Senhor - interveio o tabelião, que, encantado com a experiência, prometia a si mesmo contar em sociedade os pormenores daquele episódio pitoresco –, senhor, nada me parece mais fácil agora do que o que há pouco olhava como uma coisa impossível. O testamento será muito simplesmente um testamento místico, quer dizer, previsto e autorizado pela lei desde que seja lido diante de sete testemunhas, aprovado pelo testador diante delas e fechado pelo tabelião, sempre diante delas. Quanto ao prazo, durará apenas mais tempo do que um testamento ordinário. Vêm primeiro as fórmulas consagradas, e que são sempre as mesmas, e quanto aos pormenores, na sua maioria, serão fornecidos pelo próprio estado dos negócios do
testador e pelo senhor, que, tendo-os gerido, os conhece. Mas mesmo assim, para que o ato seja inatacável, vamos dar-lhe a mais completa autenticidade. Um dos meus colegas me servirá de ajudante e, contra o que é hábito, assistirá ao ditado. Está satisfeito, senhor? - acrescentou o tabelião, dirigindo-se ao velho.
            - Estou - respondeu Noirtier, radiante por ser compreendido.
            “Que irá  ele fazer?”, perguntou a si próprio Villefort, a quem a alta posição que ocupava impunha a maior reserva e que, aliás, não podia adivinhar qual era o objetivo do pai. :
            Virou-se para mandar buscar o segundo tabelião designado pelo primeiro. Mas Barrois, que ouvira tudo e adivinhara o desejo do amo, já saíra.
            Então, o procurador régio mandou dizer à mulher que subisse. Passado um quarto de hora todos estavam reunidos no quarto do paralítico e chegara o segundo tabelião.
            Os dois funcionários públicos chegaram a acordo em poucas palavras. Leram a Noirtier uma fórmula de testamento vaga, vulgar; depois, para começar, por assim dizer, a investigação acerca da sua inteligência, o primeiro tabelião disse-lhe, virando-se para ele:
            - Quando se faz um testamento, senhor, é a favor de alguém...
            - Sim - respondeu Noirtier.
            - Tem alguma idéia da importância a quanto monta a sua  fortuna?
            - Tenho.
            - Vou dizer várias importâncias, que irão subindo gradualmente. Me deterá quando atingir aquela que julgue ser a sua.
            - Sim.
            Havia neste interrogatório uma espécie de solenidade. Aliás, nunca a luta da inteligência contra a matéria fora talvez mais visível. E se não era um sublime, como íamos a dizer, era pelo menos um curioso espetáculo.
            Formara-se roda à volta de Noirtier. O segundo tabelião estava sentado a uma mesa, pronto para escrever. O primeiro estava de pé diante de Noirtier e interrogava-o.
            - A sua fortuna ultrapassa os trezentos mil francos, não é verdade?
            Noirtier tez sinal que sim.
            - Possui quatrocentos mil francos? - perguntou o tabelião. Noirtier ficou imóvel.
            - Quinhentos mil?
            A mesma imobilidade.
            - Seiscentos mil? Setecentos mil? Oitocentos mil? Novecentos mil?
            Noirtier fez sinal que sim.
            - Possui novecentos mil francos?
            - Possuo.
            - Em imóveis? - perguntou o tabelião.
            Noirtier fez sinal que não.
            - Em títulos de divida pública?
            Noirtier fez sinal que sim.
            - Esses títulos estão em seu poder?
            Uma olhadela dirigida a Barrois fez sair o velho servidor, que regressou pouco depois com uma caixinha.
            - Permite-me que abra esta caixa? - perguntou o tabelião.
            Noirtier fez sinal que sim. Aberta a caixa, encontraram-se títulos de dívida pública no valor de novecentos mil francos.
            O primeiro tabelião passou, um após outro, cada título ao colega. A soma era a indicada por Noirtier.
            - Está certa - disse o segundo tabelião. - É evidente que a inteligência se encontra em toda a sua capacidade e extensão. 
            O primeiro tabelião virou-se então para o paralítico e disse-lhe:
            - O senhor possui portanto novecentos mil francos de capital, que, dada a forma como estão investidos, lhe devem dar quarenta mil libras de rendimento, aproximadamente...
            - É verdade - respondeu Noirtier.
            - A quem deseja deixar essa fortuna?
            - Oh - interveio a Sra de Villefort –, quanto a isso não há  qualquer dúvida! O Sr. Noirtier ama unicamente a neta, Mademoiselle Valentine de Villefort. E ela que cuida dele há seis anos. Soube cativar com os seus cuidados assíduos a afeição do avô e quase direi o seu reconhecimento. É portanto justo que receba a paga da sua dedicação.
            Os olhos de Noirtier lançaram um relâmpago, como que significando que não se deixava enganar pelo falso assentimento dado pela Sra de Villefort às intenções que ela lhe supunha.
            - É então a Mademoiselle Valentine de Villefort que lega esses novecentos mil francos? - perguntou o tabelião, que julgava nada mais haver a fazer do que registar aquela cláusula, mas que, no entanto, tinha de se assegurar do assentimento de Noirtier e desejava que esse assentimento fosse verificado por todas as testemunhas da estranha cena.
            Valentine dera um passo atrás e chorava de olhos baixos. O velho fitou-a um instante com expressão de profunda ternura; depois, virou-se para o tabelião e piscou os olhos de forma bastante significativa.
            - Não? - disse o tabelião. - Como, não é Mademoiselle Valentine de Villefort quem institui sua herdeira universal?
            Noirtier fez sinal que não.
            - Não está enganado? - insistiu o tabelião, atônito. - Quer mesmo dizer não?
            - Não! - repetiu Noirtier. - Não!
            Valentine levantou a cabeça. Estava estupefata, não por ser deserdada, mas sim por ter provocado o sentimento que habitualmente dita semelhantes atos. Mas Noirtier olhou-a com tão profunda expressão de ternura que ela exclamou:
            - Oh, meu bom avô, bem vejo que só me priva da sua fortuna! Mas me deixará sempre o seu coração?
            - Oh, sim, certamente! - disseram os olhos do paralítico, fechando-se com uma expressão que não podia enganar Valentine.
            - Obrigada! Obrigada! - murmurou a jovem.
            Entretanto, a rejeição fizera nascer no coração da Sra de Villefort uma esperança inesperada. Aproximou-se do velho e perguntou:
            - Então, é ao seu neto Edouard de Villefort que deixa a sua fortuna, caro Sr. Noirtier?
            O batimento de pálpebras foi terrível, quase exprimia ódio.
            - Não - disse o tabelião. - Então, é ao senhor seu filho aqui presente?
            - Não - replicou o velho.
            Os dois tabeliãos entreolharam-se estupefatos. Villefort e a mulher sentiram-se corar, um de vergonha e o outro de cólera.
            - Mas que lhe fizemos nós, avô? -  perguntou Valentine. -  Já não gosta de nós?
            O olhar do velho passou rapidamente pelo filho e pela nora e deteve-se em Valentine com expressão de profunda  ternura.  
            - Sendo assim - disse ela –, se de fato me amas, avô, procura conjugar esse amor com o que faz neste momento. Conhece-me, sabe que nunca pensei na sua fortuna. Aliás, dizem que sou rica pelo lado da minha mãe, demasiado rica até. Vamos, explica-te.
            Noirtier cravou o olhar ardente na mão de Valentine.
            - A minha mão? - perguntou ela.
            - Sim - respondeu Noirtier.
            - A sua mão! - repetiram todos os presentes.
            - Ah, senhores, bem vêem que tudo isto é inútil e que o meu pobre pai está louco! - disse Villefort.
            - Oh, compreendo! - exclamou de súbito Valentine. - O meu casamento, não é, avô!
            - Sim, sim, sim! - repetiu três vezes o paralítico, e os olhos relampejavam-lhe cada vez que abria as pálpebras.
            - Está zangado connosco por causa do casamento, não é?
            - É.
            - Mas isso é absurdo? - interveio Villefort.
            - Perdão, senhor - perguntou o tabelião –, mas, pelo contrário, é muito lógico e parece-me encadear-se
perfeitamente.
            - Não quer que case com o Sr. Franz de Epinay?
            - Não, não quero - exprimiu o olhar do velho.
            - E deserda a sua neta por ela casar contra a sua vontade? - perguntou o tabelião.
            - Deserdo - respondeu Noirtier.
            - Portanto, sem esse casamento ela seria sua herdeira?
            - Sim.
            Fez-se um profundo silêncio à volta do velho.
            Os dois tabeliãos consultavam-se; Valentine, com as mãos juntas, fitava o avô com um sorriso reconhecido; Villefort mordia os lábios delgados e a Sra de Villefort não conseguia reprimir um sentimento de prazer, que, malgrado seu, se lhe refletia no rosto.
            - Mas - disse por fim Villefort, o primeiro a quebrar o silêncio - parece-me que sou o único juiz das vantagens que militam a favor da dessa união. Único senhor da mão da minha filha, quero que ela case com o Sr. Franz de Epinay e casará!
            Valentine caiu, chorando, numa cadeira.
            - Senhor - prosseguiu o tabelião, dirigindo-se ao velho que tenciona fazer da sua fortuna no caso de Mademoiselle Valentine casar com o Sr. Franz?
            O velho permaneceu imóvel.
            - Tenciona dispor dela?
            - Tenciono - respondeu Noirtier.
            - A favor de alguém da sua família?
            - Não.
            - A favor dos pobres, então?
            - Sim.
            - Mas - observou o tabelião - sabe que a lei se opõe a que despoje inteiramente o seu filho?
            - Sei. 
            - Só disporá portanto da parte que a lei o autoriza a dispor.
            Noirtier ficou imóvel.
            - Continua a querer dispor de tudo?
            - Continuo.
            - Mas depois da sua morte contestarão o testamento!
            - Não.
            - O meu pai conhece-me, senhor - interveio Villefort –, e sabe que a sua vontade será sagrada para mim. De resto, compreende que na minha posição não posso pleitear contra os pobres.
            O olhar de Noirtier exprimiu triunfo.
            - Que decide, senhor? - perguntou o tabelião a Villefort.
            - Nada, senhor. Trata-se de uma resolução firme no espírito do meu pai e sei que o meu pai não muda de resolução.  Resigno-me portanto. Esses novecentos mil francos sairão da família para ir enriquecer os hospitais; mas não cederei a um capricho de velho e o farei de acordo com a minha consciência.
            E Villefort retirou-se com a mulher, deixando ao pai a liberdade de testar como entendesse.
            O testamento foi lavrado no mesmo dia. Foram buscar as testemunhas, o velho aprovou o documento, fecharam-no na sua presença e depositaram-no no cartório do Sr. Deschamps, tabelião da família.

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