sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 31 ao 35

Capítulo XXXI

Itália - Simbad, o marinheiro


            Em princípios do ano de 1838 encontravam-se em Florença dois jovens pertencentes à mais elegante sociedade de Paris. Um deles era o visconde Albert de Morcerf e o outro o barão Franz de Epinay. Tinham combinado ir passar o Carnaval do mesmo ano em Roma, onde Franz, que residia em Itália havia perto de
quatro anos, serviria de cicerone a Albert.
            Ora, como não é coisa de somenos ir passar o Carnaval em Roma, sobretudo quando se pretende não dormir na Praça do Povo ou no Campo-Vaccino, escreveram a mestre Pastrini, proprietário do Hotel de Londres, na Praça de Espanha, pedindo-lhe que lhes reservasse aposentos confortáveis.
            Mestre Pastrini respondeu que já só dispunha de dois quartos e um gabinete situados al secondo piano, que lhes oferecia mediante a módica quantia de um luís por dia. Os dois jovens aceitaram e em seguida, para aproveitar o melhor possível o tempo que lhe restava, Albert partiu para Nápoles. Quanto a
Franz, permaneceu em Florença.
            Depois de fruir durante algum tempo a vida que proporciona a cidade dos Médicis, de percorrer em todos os sentidos esses édenes a que chamam casinos e de ser recebido nos palácios magníficos que fazem as honras de Florença, deu-lhe na veneta, como já vira a Côrsega, berço de Bonaparte, de visitar a ilha de Elba, o grande interlúdio de Napoleão.
            Portanto, uma tardinha, soltou uma barchetta da argola de ferro que a prendia ao porto de Liorne, deitou-se no fundo em cima da sua capa e disse aos marinheiros estas únicas palavras: “Para a ilha de Elba!”
            A embarcação deixou o porto tal como a ave marinha deixa o seu ninho e no dia seguinte desembarcava Franz em Porto Ferraio.
            Franz atravessou a ilha imperial, depois de seguir todos os vestígios que a passagem do gigante nela deixara, e foi embarcar em Marciana.
            Duas horas depois de deixar terra, retomou-a para desembarcar na Pianosa, onde o esperavam, garantiram-lhe, bandos infinitos de perdizes vermelhas. 
            A caçada foi ruim. Franz matou com grande dificuldade algumas perdizes magras e, como todo o caçador que se cansou para nada, voltou à sua embarcação de bastante mau humor.
            - Ah, se Vossa Excelência quisesse - disse-lhe o patrão - faria uma bela caçada!...
            - Onde?
            - Vê aquela ilha? - continuou o patrão, estendendo o dedo para o sul e mostrando uma massa cônica que saía do meio do mar pintado do mais belo índigo.
            - Vejo. Que ilha é - perguntou Franz.
            - A ilha de Monte-Cristo - respondeu o liornês.
            - Mas não tenho licença para caçar nessa ilha.
            - Vossa Excelência nem precisa dela, a ilha está deserta.
            - Por Deus, uma ilha deserta no meio do Mediterrâneo é coisa curiosa - observou o jovem.
            - É natural, Excelência. Esta ilha é um banco de rochedos e em toda a sua extensão talvez não haja uma jeira de terra arável.
            - A quem pertence a ilha?
            - A Toscana.
            - Que caça encontrarei lá ?
            - Milhares de cabras-monteses.
            - Que vivem lambendo as pedras? - observou Franz com um sorriso de incredulidade.
            - Não, mas sim pastando as urzes, as murtas e os lentiscos que crescem nos seus intervalos.
            - Mas onde dormiria?
            - Em terra, nas grutas, ou a bordo, na sua capa. Aliás, se Vossa Excelência quiser poderemos partir imediatamente a seguir à caçada. Como sabe, navegamos tão bem à vela de noite como de dia, e na falta da vela temos os remos.
            Como restava ainda bastante tempo a Franz para se juntar ao companheiro e já não tinha de se preocupar com o seu alojamento em Roma, aceitou a proposta, que talvez lhe permitisse ressarcir-se do mau resultado da primeira caçada.
            Ao ouvirem a sua resposta afirmativa, os marinheiros trocaram algumas palavras em voz baixa.
            - Então, que temos de novo? - perguntou. - Surgiu alguma impossibilidade?
            - Não - respondeu o patrão –, mas devemos prevenir Vossa Excelência de que a ilha está em contumácia.
            - Que significa isso?
            - Significa que como Monte-Cristo é desabitada e serve às vezes de descanso a contrabandistas e piratas que vêm da Côrsega, da Sardenha ou da África, se qualquer sinal denunciar a nossa presença na ilha seremos forçados, no regresso a Liorne, a fazer uma quarentena de seis dias.
            - Diabo, ai está uma coisa que modifica tudo! Seis dias!... Precisamente tanto tempo quanto precisou Deus para criar o mundo. É um bocadinho demais, meus filhos.
            - Mas quem dirá que Vossa Excelência esteve em Monte-Cristo?
            - Oh, eu não! - exclamou Franz.
            - E nós também não - garantiram os marinheiros.
            - Nesse caso, vamos para Monte-Cristo.
            O patrão comandou a manobra; aproaram à ilha e a embarcação começou a navegar na sua direção.
            Franz esperou que a operação estivesse concluída e quando tomaram a nova rota, a vela foi enfunada pela brisa e os quatro marinheiros reocuparam os seus lugares, três à proa e um ao leme, reatou a conversa.
            - Meu caro Gaetano - disse o patrão - acaba de me dizer, se me não engano, que a ilha de Monte-Cristo servia de refúgio a piratas, o que me parece uma caça muito diferente das cabras.
            - Sim, Excelência, e é verdade.
            - Eu sabia da existência de contrabandistas, mas pensava que depois da tomada de Argel e da destruição da Regência os piratas já só existissem nos romances de Cooper e do capitão Marryat.
            - Pois Vossa Excelência enganava-se. Existem tanto piratas como bandidos, supostamente exterminados pelo papa Leão XII, mas que no entanto assaltam todos os dias os viajantes, até  às
portas de Roma. Não ouviu dizer que apenas há seis meses o encarregado de negócios da França junto da Santa Sé foi roubado a quinhentos passos de Velletri?
            - Ouvi.
            - Pois bem, se Vossa Excelência morasse em Liorne, como nós, ouviria dizer de tempos em tempos que um naviozinho carregado de mercadorias ou que um bonito iate inglês, esperados em Bástia, Porto Ferraio ou Civitta-Vecchia, não chegara nem se sabia que lhe acontecera, mas que sem dúvida se despedaçara contra qualquer rochedo. Bom, o rochedo que encontrou foi uma barca baixa e estreita tripulada por seis ou oito homens, que o surpreenderam ou pilharam numa noite escura e tempestuosa, nas imediações de alguma ilha selvagem e desabitada, tal como os bandidos detêm e pilham uma sege de posta no recanto de um bosque.
            - Mas sendo assim - perguntou Franz, que continuava deitado na barca - por que motivo é que aqueles a quem acontecem semelhantes acidentes se não queixam, não exigem que recaia sobre os piratas a vingança do governo francês, sardo ou toscano?
            - Por que motivo? - repetiu Gaetano com um sorriso.
            - Sim, por que motivo?
            - Porque primeiro transportam do navio ou do iate para a barca tudo o que tem algum valor; depois, amarram os pés e as mãos da tripulação, prendem ao pescoço de cada homem um pelouro de 24, abrem um buraco do tamanho de uma barrica na quilha do navio capturado, sobem à coberta, fecham as escotilhas e
passam para a barca. Ao cabo de dez minutos o navio começa a inclinar-se e a ranger, e afunda-se pouco a pouco. Primeiro, mergulha um dos lados; depois, o outro; em seguida ergue-se, volta a mergulhar e submerge-se sempre mais. De súbito, ouve-se um estampido semelhante a um tiro de canhão: é o ar  que quebra a coberta. Então, o navio agita-se como um afogado que se debate e cujos movimentos são cada vez mais pesados. Não tarda que a água, demasiado comprimida nas cavidades, saia pelas aberturas, como as colunas líquidas que lança pelos seus respiradouros qualquer cachalote gigantesco. Finalmente, solta um derradeiro estertor, dá uma última volta sobre si mesmo e desaparece no abismo no meio de um grande turbilhão que gira um instante, diminui pouco a pouco e acaba por se extinguir por completo, de forma que ao cabo de cinco minutos só a vista de Deus descobriria no fundo daquele mar calmo o navio desaparecido. Compreende agora -acrescentou o patrão sorrindo - por que motivo o navio não regressa ao porto e a tripulação se não queixa?
            Se Gaetano tivesse contado a história antes de propor a expedição, é provável que Franz tivesse pensado duas vezes antes de a empreender. Mas já tinham partido e pareceu-lhe que seria covardia recuar. Era um desses homens que não procuram as situações perigosas, mas que se essas situações vêm ao seu
encontro conservam um sangue-frio inalterável para as combater. Era um desses homens de vontade calma que encaram um perigo na vida como um adversário num duelo, que calculam os seus movimentos, estudam a sua força, se contêm o suficiente para recuperar o fôlego, mas não o bastante para parecerem covardes, que avaliando num só olhar todas as suas vantagens matam de um único golpe.
            - Ora! - exclamou. - Atravessei a Sicília e a Calábria, naveguei dois meses no arquipélago e nunca vi a sombra de um bandido ou de um corsário.
            - Também não disse isto a Vossa Excelência para o fazer renunciar ao seu projeto - declarou Gaetano. - Interrogou-me e eu limitei-me a responder-lhe, mais nada.
            - Claro, meu caro Gaetano, e o que diz é muito interessante, por isso, como desejo ter o prazer de o ouvir o mais tempo possível, sigamos para Monte-Cristo.
            Entretanto, aproximavam-se rapidamente do termo da viagem. O vento era fresco e de feição e a embarcação dava sete milhas por hora. A medida que se aproximavam, a ilha parecia sair límpida dos últimos raios do Sol e distinguia-se, como os pelouros num arsenal, o aglomerado de rochedos empilhados uns sobre os outros, em cujos interstícios se viam avermelhar urzes e verdejar  árvores. Quanto aos marinheiros, embora parecessem perfeitamente tranquilos, era evidente que se encontravam alerta e que o seu olhar interrogava o vasto espelho sobre o qual deslizavam e em cujo horizonte se viam apenas alguns barcos de pescadores que, com as suas velas brancas, balouçavam como gaivotas na crista das vagas.
            Encontravam-se apenas a cerca de quinze milhas de Monte-Cristo quando o Sol começou a pôr-se atrás da Côrsega, cujas montanhas apareciam à direita, recortando no céu o seu sombrio rendilhado. Aquela massa de pedra  semelhante ao gigante Adamastor erguia-se ameaçadora diante da embarcação, à qual roubava o sol, cuja parte superior se dourava. Pouco a pouco, a sombra subiu do mar e pareceu expulsar diante de si aquele derradeiro reflexo do dia prestes a findar. Depois o raio luminoso foi repelido até  ao cimo do cone, onde se deteve um instante como o penacho incandescente de um vulcão, e por fim a sombra, sempre ascendente, invadiu gradualmente o cume como invadira a base, e a ilha revelou-se como que uma
montanha cinzenta que ia sempre escurecendo. Passada meia hora, era noite cerrada.
            Felizmente os marinheiros encontravam-se nos seus lugares habituais e conheciam até  o mais pequeno rochedo do arquipélago toscano, pois de contrário, no meio da escuridão profunda que envolvia a embarcação, Franz não deixaria de se sentir inquieto. A Côrsega desaparecera por completo e a própria ilha de Monte-Cristo se tornara invisível. Mas os marinheiros pareciam possuir, como o lince, a faculdade de
ver nas trevas, e o piloto, sentado ao leme, não denotava a menor hesitação.
            Decorrera cerca de meia hora desde que o Sol se pusera quando Franz julgou distinguir a um quarto de milha à esquerda uma massa sombria. Mas era tão impossível identificar do que se tratava que, receando provocar a hilaridade dos marinheiros, tomando algumas nuvens flutuantes pela terra firme, guardou silêncio. Mas de súbito surgiu um grande clarão na margem. A terra poderia assemelhar-se a uma nuvem, mas o fogo não era nenhum meteoro.
            - Que luz é aquela? - perguntou.
            - Caluda! É uma fogueira - respondeu o patrão.
            - Mas vocês diziam que a ilha estava desabitada!
            - Eu dizia que não tinha população fixa, mas também disse que era um lugar de descanso para os contrabandistas.
            - E para os piratas!
            - E para os piratas - disse Gaetano, repetindo as palavras de Franz. - Foi por isso que mandei ultrapassar a ilha, pois como vê o fogo está atrás de nós.
            - Mas esse fogo - continuou Franz - parece-me um motivo de segurança do que de preocupação. Pessoas que receassem ser vistas não acenderiam uma fogueira.
            - Oh, isso não quer dizer nada! - perguntou Gaetano. - Se Vossa Excelência pudesse avaliar, no meio da obscuridade, a posição da ilha, veria que colocada como está a fogueira não pode ser vista nem da costa, nem da Pianosa, mas apenas do mar alto.
            - Assim, receia que essa fogueira nos anuncie má companhia?
            - É o que precisamos tirar a limpo - respondeu Gaetano, com os olhos sempre fixos naquela estrela terrestre.
            - Mas como?
            - Já vai ver.
            Depois destas palavras, Gaetano reuniu-se em conselho com os companheiros e ao cabo de cinco minutos de discussão executaram em silêncio uma manobra que lhes permitiu virar de bordo num instante. Retomaram então a rota que acabavam de seguir e poucos segundos depois desta mudança de direção a
fogueira desapareceu, oculta por qualquer ondulação do terreno.
            Então, o piloto imprimiu com o leme nova direção ao barcto, que se aproximou visivelmente da ilha, a qual não tardou a encontrar-se apenas a cerca de cinquenta Passos. Gaetano ferrou a vela e a embarcação deteve-se.
            Tudo isto foi feito no meio do maior silêncio. Aliás, desde a mudança de rota nem uma só palavra fora pronunciada a bordo.
            Gaetano, que propusera a expedição, chamara a si toda a responsabilidade por ela. Os quatro marinheiros não o perdiam de vista enquanto, preparados os remos, se mantinham prontos para remar, o que, graças à obscuridade, não seria difícil.
            Quanto a Franz, inspecionava as suas armas com o sangue-frio que lhe conhecemos. Tinha duas espingardas de dois tiros e umo rostobina. Carregou-as, verificou-lhes a fecharia e esperou.
            Entretanto, o patrão despira o gabão e a camisa e prendera as calças na cintura. Como estava descalço, não precisava descalçar sapatos nem meias. Um vez  nesta indumentária, ou antes, liberto da sua indumentária, pôs um dedo nos lábios recomendando o mais profundo silêncio, deixou-se escorregar para o mar e nadou para a margem com tanta precaução que era impossível ouvir o menor ruído. Apenas devido ao sulco fosforescente provocado pelos seus movimentos era possível seguir-lhe o rasto.
            Mas em breve até  esse sulco desapareceu. Era evidente que Gaetano chegara a terra.
            No barco todos ficaram imóveis durante meia hora, passada a qual viram reaparecer junto da margem e aproximar-se da embarcação o mesmo sulco luminoso. Ao cabo de um instante e em duas braçadas, Gaetano alcançou a embarcação.
            - Então - perguntaram ao mesmo tempo Franz e os quatro marinheiros.
            - São contrabandistas espanhóis. Têm apenas consigo dois bandidos corsos.
            - E que fazem esses dois bandidos corsos com contrabandistas espanhóis?
            - Meu Deus, Excelência - respondeu Gaetano em tom de profunda caridade cristã –, as pessoas devem ajudar-se umas às outras! Muitas vezes, os bandidos encontram-se um bocadinho apertados em terra pelos guardas ou pelos carabineiros. Então, procuram uma embarcação e encontram nessa embarcação bons rapazes como nós a quem pedem hospitalidade na sua casa flutuante. Quem recusaria auxílio a um pobre diabo perseguido? Recebemo-lo e para maior segurança afastamo-nos para o largo. Não nos custa nada e salva a vida, ou pelo menos a liberdade a um dos nossos semelhantes que na primeira oportunidade
retribui o favor que lhe prestamos indicando-nos um bom local onde possamos desembarcar as nossas mercadorias sem sermos incomodados pelos curiosos.
            - Com que então, meu caro Gaetano, você mesmo também é um bocadinho contrabandista, hem ?... - observou Franz, rindo.
            - Que quer Vossa Excelência, faz-se um pouco de tudo!... - confessou Gaetano com um sorriso impossível de descrever. - É preciso viver...
            - E você está em boas relações com as pessoas instaladas neste momento em Monte-Cristo?
            - Pouco mais ou menos. Nós, marinheiros, somos como os maçons: reconhecemo-nos por certos sinais.
            - Nesse caso, parece-lhe que não teríamos nada a temer se desembarcássemos?
            - Absolutamente nada. Os contrabandistas não são ladrões.
            - Mas esses dois bandidos corsos... - insinuou Franz, calculando antecipadamente todas as probabilidades de perigo.
            - Valha-me Deus, eles não têm culpa de ser bandidos! A culpa é das autoridades - perguntou Gaetano.
            - Como assim?
            - Sem dúvida! Perseguem-nos apenas por furar uma pele!...  Como se não estivesse na natureza do corso vingar-se!
            - Que entende você por furar uma pele? Assassinar um homem? - inquiriu Franz, continuando as suas investigações.
            - Entendo matar um inimigo - respondeu o patrão –, o que é muito diferente. 
            - Bom, vamos lá pedir hospitalidade aos contrabandistas e aos bandidos - decidiu o jovem. - Acha que a concederão?
            - Sem dúvida nenhuma.
            - Quantos são?
            - Quatro, Excelência, e com os dois bandidos, seis.
            - Ótimo, é precisamente o nosso número! Estamos portanto, no caso de esses cavalheiros mostrarem más intenções, em força igual e por consequências em condições de os dominar. Assim e pela última vez, vamos para Monte-Cristo.
            - Pois sim, Excelência. Mas ainda assim permite-nos que tomemos certas precauções?
            - Claro, meu caro! Seja sábio como Nestor e prudente como Ulisses. Faço mais do que permitir-lhes, exorto-os a tomarem-nas.
            - Muito bem. Então, silêncio - ordenou Gaetano.
            Todos se calaram.
            Para um homem que, como Franz, encarava todas as coisas sob o seu verdadeiro aspecto a situação, sem ser perigosa, não deixava de revestir-se de certa gravidade. Encontrava-se na obscuridade mais profunda, isolado, no meio do mar, com marinheiros que não o conheciam e que não tinham nenhum motivo
para lhe ser dedicados; que sabiam que trazia no cinto alguns milhares de francos e que tinham dez vezes, senão com inveja pelo menos com curiosidade, examinado as suas armas, que eram muito belas. Por outro lado ia desembarcar, escoltado apenas por esses homens, numa ilha que tinha um nome muitíssimo religioso, mas que parecia não prometer a Franz mais hospitalidade do que o Calvário a Cristo, graças aos seus
contrabandistas e aos seus bandidos. Depois, aquela história dos navios afundados, que de dia julgara exagerada, parecia-lhe mais verosímil de noite. Por isso, colocado como estava entre um duplo perigo, talvez imaginário, não perdia os seus homens de vista nem largava a espingarda da mão.
            Entretanto os marinheiros tinham içado de novo as velas e a embarcação voltara à esteira que já sulcara nas suas idas e vindas. Através da escuridão, Franz, um pouco mais habituado às trevas, distinguia o gigante de granito que a embarcação costeava. Por fim, ao ultrapassar de novo a esquina de um rochedo, viu a fogueira que brilhava mais ofuscante do que nunca e à sua volta cinco ou seis pessoas sentadas.
            A reverberação do fogo estendia-se pelo mar dentro numa centena de passos. Gaetano costeou a luz, mantendo no entanto a embarcação na parte não iluminada; depois, quando ficou exatamente defronte da fogueira, aproou na sua direção e entrou ousadamente no círculo luminoso, entoando uma canção de
pescadores, acompanhado em coro pelos companheiros, que entoavam apenas o estribilho. À primeira palavra da canção os homens sentados à roda da fogueira levantaram-se e aproximaram-se do embarcadouro, de olhos postos na embarcação, cuja força e cujas intenções se esforçavam visivelmente por adivinhar. Em breve pareceram ter feito exame suficiente e foram, com excepção de um que ficou de pé na margem sentar-se de novo à volta da fogueira, na qual assava um cabrito inteiro.
            Quando a embarcação chegou a uma vintena de passos da terra, o homem que se encontrava na margem fez maquinalmente com o rostobina o gesto de uma  sentinela que espera uma patrulha e gritou “Quem vem lá ?” em dialeto sardo.
            Franz armou friamente as suas dois tiros.
            Entretanto, Gaetano trocou com o homem algumas palavras de que o jovem não compreendeu nada, mas que evidentemente lhe diziam respeito.
            - Vossa Excelência quer dizer o seu nome ou manter o incôgnito? - perguntou o patrão.
            - O meu nome deve ser perfeitamente desconhecido.  Diga-lhe portanto simplesmente que sou um francês que viaja por prazer - respondeu Franz.
            Assim que Gaetano transmitiu a resposta, a sentinela deu uma ordem a um dos homens sentados à fogueira, o qual se levantou imediatamente e desapareceu entre os rochedos.
            Fez-se silêncio. Todos pareciam preocupados com o que mais diretamente lhes respeitava: Franz com o seu desembarque, os marinheiros com as suas velas e os contrabandistas com o seu cabrito. No entanto, no meio de tão aparente despreocupação, todos se observavam mutuamente.
            O homem que se afastara reapareceu de súbito, do lado oposto àquele por onde desaparecera, e fez um sinal com a cabeça à sentinela, que se virou e limitou a pronunciar estas palavras:
            - s'accommodi.
            - O s'accommodi italiano tem diversos significados. Quer dizer ao mesmo tempo: venham, entrem, sejam bem-vindos, façam de conta que estão em sua casa, etc. É como aquela frase turca de MoliÊre que tanto espantava o burguês gentil-homem pela quantidade de coisas que continha.
            Os marinheiros não esperaram que os convidassem segunda vez: em quatro remadas, a embarcação chegou a terra. Gaetano saltou para a praia e trocou mais algumas palavras em voz baixa com a sentinela. Os seus companheiros desembarcaram um após outro. Por fim, desembarcou Franz.
            Trazia uma das espingardas em bandoleira; Gaetano empunhava a outra e um dos marinheiros o rostobina. A sua indumentária refletia ao mesmo tempo algo de artista e de peralvilho o que inspirou aos anfitriões algumas desconfianças, e consequentemente alguma inquietação.
            Amarraram a embarcação à margem e deram alguns passos a fim de procurarem uma instalação cômoda. Mas sem dúvida o ponto para onde se dirigiam não era da conveniência do contrabandista que
fazia de sentinela, pois gritou a Gaetano:
            - Pare aí não, por favor!
            Gaetano balbuciou uma desculpa e, sem insistir mais, dirigiu-se para o lado oposto, enquanto dois marinheiros iam acender archotes na fogueira a fim de iluminarem o caminho.
            Ao fim de cerca de trinta passos detiveram-se numa esplanadazinha toda rodeada de rochedos nos quais tinham sido escavados uma espécie de cadeirões mais ou menos idênticos a pequenas guaritas onde se montaria guarda sentado. Em redor vegetavam em veios de terra vegetal alguns carvalhos-anões e
tufos espessos de murta. Franz abaixou um archote e verificou por um monte de cinzas que não era o primeiro a notar o conforto daquele local, que devia ser uma das estações habituais dos visitantes nômadas da ilha de Monte-Cristo. 
            Quanto à sua expectativa de acontecimentos, cessara. Logo que pusera pé em terra firme e verificara as disposições, senão amistosas, pelo menos indiferentes dos seus anfitriões, toda a sua preocupação desaparecera, e perante o odor do cabrito que assava no acampamento vizinho a preocupação transformara-se em apetite.
            Tocou no assunto a Gaetano, que lhe respondeu não haver nada mais simples de obter do que uma ceia quando se tinha, como eles na sua embarcação, pão, vinho e seis perdizes, e era fácil conseguir um bom fogo para as assar.
            - De resto - acrescentou –, se Vossa Excelência acha tão tentador o cheiro do cabrito, posso ir oferecer aos nossos vizinhos duas das nossas aves em troca de um naco do seu quadrúpede.
            - Faça isso, Gaetano, faça isso – aceitou Franz. Você nasceu realmente com o dom da negociação.
            Entretanto os marinheiros tinham arrancado braçados de urze e feito molhos de murta e azinheira, aos quais tinham pegado fogo, de modo a conseguirem uma fogueira bastante respeitável.
            Franz esperava com impaciência, sem deixar de aspirar o odor do cabrito, que o patrão regressasse, quando este reapareceu e se lhe dirigiu com ar muito preocupado.
            - Então, que há de novo? Recusam a nossa oferta? - perguntou Franz.
            - Pelo contrário - respondeu Gaetano. - O chefe, a quem disseram que Vossa Excelência era um jovem francês, convida-o para cear com ele.
            - Ótimo! - exclamou Franz. - Esse chefe é um homem deveras civilizado e não vejo motivo para recusar o seu convite, tanto mais que contribuo com a minha parte para a ceia.
            - Oh, não se trata disso! Não falta com que cear à farta, mas é que ele põe, para que Vossa Excelência se apresente em sua casa, uma singular condição.
            - Em sua casa? - repetiu o jovem. - Quer dizer que mandou construir aqui uma casa?
            - Não. Mas nem por isso deixa de possuir algo semelhante muito confortável, pelo menos segundo afirmam.
            - Você conhece esse chefe?
            - Ouvi falar dele.
            - Bem ou mal?
            - Das duas maneiras.
            - Demônio! E qual é essa condição?
            - Deixar que vendem os seus olhos e não tirar a venda senão quando ele próprio o convidar a fazê-lo.
            Franz sondou tanto quanto possível o olhar de Gaetano para saber o que ocultava tal proposta.
            - Claro! - exclamou o patrão, adivinhando o pensamento de Franz. - Sei isso perfeitamente: a coisa merece reflexão.
            - Que faria você no meu lugar? - perguntou o rapaz.
            - Eu, como não tenho nada a perder, iria.
            - Aceitaria?
            - Aceitava, nem que fosse só por curiosidade.
            - Há portanto algo curioso a ver em casa do chefe? 
            - Escute - disse Gaetano, baixando a voz –, não sei se o que dizem é verdade...
            Deteve-se para ver se algum estranho o escutava.
            - E que dizem?
            - Dizem que o chefe habita num subterrâneo ao pé do qual o Palácio Pitti não vale nada.
            - Que sonho! - exclamou Franz, voltando a sentar-se.
            - Oh, não se trata de um sonho! - continuou o patrão. - Trata-se de uma realidade! Cama, o piloto do Saint-Ferdinand, entrou lá um dia e saiu maravilhado, dizendo que só nos contos de fadas existem semelhantes tesouros.
            - Deveras? - ironizou Franz. - Sabe que com essas palavras até  me faria descer à caverna de Ali-Babá?
            - Estou dizendo o que me disseram, Excelência.
            - Então aconselha-me a aceitar?
            - Oh, não digo isso! Vossa Excelência fará o que muito bem entender. Não desejaria dar-lhe um conselho nesta ocasião.
            Franz refletiu uns instantes, concluiu que aquele homem tão rico não poderia querer roubá-lo; visto trazer consigo apenas alguns milhares de francos, e como não entrevisse no meio de tudo aquilo senão uma excelente ceia, aceitou. Caetano foi levar-lhe a resposta.
            Todavia, como dissemos, Franz era prudente. Por isso, procurou obter o maior número possível de pormenores acerca do seu estranho e misterioso anfitrião. Virou-se pois para o marinheiro que durante o diálogo depenara as perdizes com a gravidade de um homem orgulhoso das suas funções e perguntou-lhe como teriam chegado ali aqueles homens, visto não se ver nem barcas, nem spéronares, nem tartanas:
            - A mim isso não me causa nenhuma estranheza - respondeu o marinheiro –, tanto mais que conheço o navio em que navegam.
            - É bom, esse navio?
            - Tomara Vossa Excelência um assim para dar a volta ao mundo.
            - Quantas toneladas desloca?
            - Mais de cem. Trata-se, de resto, de um navio extravagante, de um iate, como dizem os Ingleses, mas construído de forma a fazer-se ao mar com qualquer tempo.
            - Onde foi construído?
            - Ignoro-o, mas julgo-o genovês.
            - E como é que um chefe de contrabandistas - continuou Franz - ousa mandar construir no porto de Gênova um iate destinado ao seu comércio?
            - Não disse que o proprietário do iate fosse um contrabandista.
            - Pois não, mas disse-o Gaetano, parece-me.
            - Gaetano vira a tripulação de longe e ainda não falara com ninguém.
            - Mas se esse homem não é um contrabandista, que é então?
            - Um rico senhor que viaja por prazer.
            - “Bom”, pensou Franz, “as duas versões são tão diferentes que a personagem ainda se torna mais misteriosa.”
            - E como se chama?
            - Quando lhe perguntam, responde que se chama Simbad, o Marinheiro. Mas duvido que seja esse o seu verdadeiro  nome. 
            - Simbad, o Marinheiro?
            - Sim.
            - E onde habita esse senhor?
            - No mar.
            - De que país é?
            - Não sei.
            - Já o viu?
            - Algumas vezes.
            - Que homem é?
            - Vossa Excelência julgará por si mesmo.
            - E onde vai receber-me?
            - Sem dúvida no palácio subterrâneo de que vos falou Gaetano.
            - E vocês nunca tiveram a curiosidade, quando vieram descansar aqui e encontraram a ilha deserta, de procurar penetrar nesse palácio encantado?
            - Oh, decerto, Excelência, e por mais de uma vez! - confessou o marinheiro. - Mas as nossas buscas foram sempre inúteis. Examinamos a gruta por todos os lados e não encontramos a mais pequena passagem. De resto, dizem que a porta não se abre com uma chave, mas sim com uma palavra mágica.
            - Decididamente - murmurou Franz - estou metido num conto das Mil e Uma Noites.
            - Sua Excelência espera-vos - disse atrás dele uma voz que reconheceu ser a da sentinela.
            O recém-chegado vinha acompanhado de dois homens da tripulação  do iate. Como única resposta, Franz tirou um lenço da algibeira e apresentou-o ao que lhe dirigia a palavra.
            Sem dizerem nada, vendaram-lhe os olhos com um cuidado denunciador do receio de que cometesse qualquer indiscrição. Depois, pediram-lhe que jurasse que não tentaria de qualquer modo tirar a venda.
            Jurou.
            Então, os dois homens pegaram-lhe cada um por um braço e ele caminhou, guiado por ambos e precedido pela sentinela.
            Após uma trintena de passos adivinhou, pelo cheiro cada vez mais apetitoso do cabrito, que voltava a passar diante do acampamento. Em seguida, fizeram-no continuar o seu caminho durante mais cerca de cinquenta passos, dirigindo-se, evidentemente, para o lado onde não tinha deixado penetrar Gaetano - proibição que se explicava agora. Em breve, pela mudança da atmosfera, compreendeu que entrava num subterrâneo. Ao cabo de alguns segundos de marcha ouviu um estalido e pareceu-lhe que a atmosfera mudava mais uma vez de natureza e se tornava tépida e perfumada. Por fim, sentiu os pés pisarem
um tapete espesso e fofo. Os guias deixaram-no. Reinou um momento de silêncio e uma voz disse em bom francês, embora com sotaque estrangeiro:
            - Seja bem-vindo a minha casa, senhor. Pode tirar o lenço.
            Como facilmente se calcula, Franz não esperou que lhe repetissem o convite. Tirou o lenço e encontrou-se na presença de um homem de trinta e oito a quarenta anos, vestido à tunisina, isto é, de barrete vermelho, com uma grande borla de seda azul, jaqueta de tecido preto toda bordada a ouro, calças cor de sangue de boi largas e tufadas, polainas da mesma cor, bordadas a ouro como a  jaqueta, e babuchas amarelas. Apertava-lhe a cintura uma magnífica faixa de caxemira, adornada com um punhalzinho agudo e curvo.
            A despeito da sua palidez quase lívida, aquele homem possuía um rosto notavelmente belo: olhos vivos e penetrantes, nariz direito e quase nivelado com a testa, o que indicava o tipo grego em toda a sua pureza, e dentes brancos como pérolas, que se salientavam admiravelmente sob o bigode preto que os enquadrava.
            Só a palidez era estranha. Diria-se um homem que estivera fechado durante muito tempo num túmulo e que não conseguira recuperar a carnação dos vivos.
            Sem ser alto, era elegante, e como os homens do Sul tinha as mãos e os pés pequenos.
            Mas o que surpreendeu Franz, que classificara de sonho a descrição de Gaetano, foi a sumtuosidade do mobiliário.
            Toda a sala estava forrada de tecidos turcos de cor carmesim e recamados de flores douradas. Num recanto via-se uma espécie de divã encimado por uma panóplia de armas árabes de bainhas de prata dourada e punhos resplandecentes de pedrarias. Do teto pendia um candeeiro de cristal de Veneza, de formato e cor encantadores, e os pés repousavam num tapete turco em que se enterravam até  aos tornozelos. Pendiam reposteiros diante da porta por onde Franz entrara, bem como diante doutra que
dava passagem para segunda sala que parecia esplendidamente iluminada.
            O anfitrião deixou por instantes Franz entregue à sua surpresa, ao mesmo tempo que, retribuindo-lhe exame com exame, não lhe tirava os olhos de cima.
            - Senhor - disse-lhe por fim –, mil vezes perdão pelas precauções que lhe exigiram para o introduzir junto de mim. Mas como durante a maior parte do tempo esta ilha está deserta, se o segredo desta residência fosse conhecido encontraria sem dúvida, ao regressar, a minha instalação em bastante mau estado, o que seria mito desagradável, não pelo prejuízo que me causaria, mas sim porque não teria a certeza de poder, quando me apetecesse, isolar-me do resto do mundo. Agora, vou procurar fazer-lhe esquecer essa pequena contrariedade oferecendo-lhe o que de certo não esperaria encontrar aqui: uma ceia menos má e camas bastante boas.
            - Garanto-lhe, meu caro anfitrião - respondeu Franz –, que escusa de se desculpar por isso. Sempre vi vendar os olhos às pessoas que penetravam nos palácios encantados. Veja, por exemplo, Raul, nos Huguenotes. Realmente, não tenho de que me queixar, porque o que me mostra compete com as maravilhas
das Mil e Uma Noites.
            - Não exagere! Lhe direi como Lúculo: se soubesse que ia ter a honra da sua visita, teria me preparado para ela. Mas enfim, tal como é o meu eremitério, coloco-o à sua disposição, e tal como é a, minha ceia, assim lha ofereço. Ali, estamos servidos?
            Quase no mesmo instante o reposteiro levantou-se e um negro núbio, preto como o ébano e envergando uma simples túnica branca, fez sinal ao amo de que podia entrar na sala de jantar.
            - Agora - disse o desconhecido a Franz –, não sei se é da minha opnião, mas parece-me que não há nada mais constrangedor do que ficarmos duas ou três horas em amena conversa sem um e outro sabermos por que nome ou por que título nos tratamos. Note que respeito demasiado as leis da hospitalidade para lhe  perguntar o seu nome ou o seu título. Peço-lhe apenas que me indique um nome qualquer com a ajuda do qual lhe possa dirigir a palavra. Quanto a mim, para o pôr à vontade, informo-o de que costumam tratar-me por
Simbad, o Marinheiro.
            - E eu - perguntou Franz - lhe direi que, como para estar na situação de Aladim só me falta a famosa lâmpada maravilhosa, não vejo nenhum inconveniente em que, de momento, me trate por Aladim. Isso não nos tirarpa do Oriente, onde sou tentado a crer que fui transportado pelo poder de algum gênio.
            - Muito bem, Sr. Aladim! - concordou o estranho anfitrião. - Ouvi dizer que estavamos servidos, não é verdade? Queira pois acompanhar-me À sala de jantar. O seu humilíssimo servidor passa-lhe adiante para lhe indicar o caminho.
            E, ditas estas palavras, Simbad levantou o reposteiro e passou efetivamente à frente de Franz.
            Este ia de encantamento em encantamento. A mesa estava esplendidamente servida. Uma vez esclarecido acerca deste importante ponto, olhou à sua volta. A sala de jantar não era menos esplêndida do que a que acabara de deixar. Era toda de mámore, adornavam-na baixos-relevos antigos valiosíssimos e
nas duas extremidades da sala, que era oblonga, viam-se duas estátuas magníficas com cestos à cabeça. Os cestos continham duas pirâmides de frutos excelentes: abacaxis da Sicília, romãs de Málaga, laranjas das ilhas Baleares, pêssegos de França e tâmaras da Tunísia.
            Quanto à ceia, compunha-se de um faisão assado rodeado de melros da Côrsega, de perna de javali com geléia, de um quarto de cabrito à tártaro, de um rodovalho magnífico e de uma gigantesca lagosta. Os intervalos dos pratos principais eram preenchidos com pratinhos de acepipes.
            As travessas eram de prata e os pratos de porcelana do Japão. Franz esfregou os olhos para ter a certeza de que não sonhava.
            Aliás só era admitido para cuidar do serviço, do qual se desempenhava muitíssimo bem o hóspede cumprimentou por isso o seu anfitrião.
            - Sim - concordou este, sem deixar de fazer as honras da ceia com o maior à-vontade. - Sim, é um pobre diabo que me é muito dedicado e que procura servir-me o melhor que pode. Lembra-se de que lhe salvei a vida, e como parece que tinha a cabeça em grande conta guarda-me algum reconhecimento por lha ter conservado.
            Ali aproximou-se do amo, pegou-lhe na mão e beijou-a.
            - Seria demasiado indiscreto, Sr. Simbad - disse Franz –, se lhe perguntasse em que circunstâncias praticou essa bela ação?
            - Oh, meu Deus, foi muito simples! - respondeu o anfitrião. - Parece que o brejeiro andara rondando as imediações do serralho do bei de Tunes, o que não era conveniente da parte de um figurão da sua cor. De modo que fora condenado pelo bei a cortarem-lhe a língua, a mão e a cabeça. A língua no primeiro dia, a mão no segundo e a cabeça no terceiro. Sempre desejara ter um mudo ao seu serviço. Por isso, esperei que lhe
cortassem a língua e fui propor ao bei que me desse em troca de uma magnífica espingarda de dois tiros que na véspera me parecera despertar os desejos de, sua alteza. Hesitou um instante, de tal modo estava empenhado em acabar com o pobre diabo, mas juntei à espingarda uma faca de caça inglesa com a qual eu levara a melhor ao iatagã de sua alteza. Então, o bei decidiu-se a perdoar-lhe o corte da mão e da cabeça, mas com a condição de  nunca mais pôr os pés em Tunes. A recomendação era inútil. Logo que o infiel avista, o mais longe que seja, as costas de África, corre para o fundo do porão e ninguém consegue fazê-lo sair de lá enquanto não está fora de vista a terceira parte do mundo.
            Franz ficou um momento mudo e pensativo, sem saber que pensar da bonomia cruel com que o anfitrião acabava de lhe contar o caso.
            - E como o respeitável marinheiro cujo nome adotou passa a vida a viajar? - perguntou para mudar de assunto.
            - Passo. Foi um juramento que fiz num tempo em que não pensava muito poder cumpri-lo - respondeu o desconhecido, sorrindo. - Fiz outros como este e espero que se cumpram todos a seu tempo.
            Embora Simbad tivesse pronunciado estas palavras com o maior sangue-frio, os seus olhos adquiriram uma expressão de ferocidade estranha.
            - Creio que sofreu muito, senhor - disse-lhe Franz.
            Simbad estremeceu e olhou-o fixamente.
            - Porque diz isso? - perguntou.
            - Por tudo - respondeu Franz. - Pela sua voz, pelo seu  olhar, pela sua palidez, e até  pela vida que leva.
            - Eu?! Levo a vida mais feliz que conheço, uma autêntica vida de pax . Sou o rei da criação: se me sinto bem num lugar, fico; se me aborreço parto. Sou livre como os passarinhos, tenho asas como eles, e as pessoas que me rodeiam obedecem-me cegamente. De vez em quando divirto-me a escarnecer a justiça
humana roubando-lhe um bandido que procura, um criminoso que persegue. Depois, tenho a minha própria justiça, baixa e alta, sem delongas e sem apelo, que condena ou absolve e com a qual ninguém tem nada a ver! Oh, se tivesse saboreado a minha vida não quereria outra e nunca mais regressaria ao mundo, a menos
que tivesse algum grande projeto a cumprir!
            - Uma vingança, por exemplo... - insinuou Franz.
            O desconhecido pousou no jovem um desses olhares que mergulham profundamente no coração e no cérebro.
            - E porquê uma vingança? - perguntou.
            - Porque - respondeu Franz - o senhor tem todo o ar de um homem que, perseguido pela sociedade, tem uma conta terrível a ajustar com ela.
            - Pois engana-se! - volveu-lhe Simbad, rindo com o seu riso estranho, que lhe descobria os dentes brancos e agudos. - Aqui onde me vê sou uma espécie de filantropo e talvez um dia vá a Paris fazer concorrência ao Sr. Appert e ao homem da capa azul.
            - E será a primeira vez que fará essa viagem?
            - Oh, meu Deus, claro que sim! Tenho o ar de ser muito pouco curioso, não tenho? Pois garanto-lhe não ser responsável por tão grande demora. Mas irei lá, mais dia menos dia!
            - Peço-lhe que seja mais preciso, conta fazer brevemente essa viagem?
            - Ainda não sei. Depende de circunstâncias submetidas a combinações incertas.
            - Gostaria de estar lá nesse momento para procurar retribuir-lhe, na medida das minhas possibilidades, a hospitalidade que me dispensou tão generosamente em Monte-Cristo. 
            - Aceitaria a sua oferta com muito prazer, mas infelizmente, se for, será  talvez incógnito.
            Entretanto, a ceia continuava e parecia ter sido servida exclusivamente em intenção de Franz, pois o desconhecido mal tocara num ou dois pratos de esplêndido festim que lhe oferecera e ao qual o seu conviva inesperado fazia as mais amplas honras.
            Por fim, Ali trouxe a sobremesa, ou antes, tirou os cestos das mãos das estátuas e po-las em cima da mesa.
            Entre os dois cestos colocou uma tacinha de prata dourada, com tampa do mesmo metal.
            O respeito com que Ali trouxe a taça despertou a curiosidade de Franz. Levantou a tampa e viu uma espécie de pasta esverdeava que lembrava compota de angélica, mas que lhe era completamente desconhecida.
            Recolocou a tampa, tão ignorante do que a taça continha depois de tapá-la como antes de a destapar, e olhou para o seu anfitrião, que sorria da sua decepção.
            - Não consegue adivinhar - disse-lhe ele - que espécie de comestível contém essa tacinha e isso intriga-o, não é verdade?
            - Confesso que sim.
            - Pois bem, essa espécie de compota verde‚ é nem mais nem menos, a ambrósia que Hebe servia à mesa de Júpiter.
            - Mas essa ambrósia - observou Franz - perdeu sem dúvida, ao passar para a mão dos homens, o seu nome celeste para tomar um nome humano. Em linguagem vulgar, como se chama este ingrediente, pelo qual, Aliás, não sinto grande simpatia?
            - Ora aí está justamente uma coisa que revela a nossa origem material! - exclamou Simbad. - Muitas vezes passamos assim ao lado da felicidade sem a ver, sem a olhar, ou, se a vemos e olhamos, sem a reconhecer. Se é um homem positivo e o ouro é o seu deus, saboreie isto e se abrirão as minas do Peru, de
Guzarate e de Golconda. Se é um homem de imaginação, se é poeta, saboreie também isto e as barreiras do possível desaparecerão. Os campos do infinito se abrirão e passeará de coração e espírito libertos no domínio sem limites da fantasia. Se é ambicioso e corre atrás das grandezas do mundo, saboreie mais uma vez isto e dentro de uma hora será rei, não rei de um reinozinho escondido num recanto da Europa, como a França, a Espanha ou a Inglaterra, mas sim rei do mundo, rei do universo, rei da criação. O seu trono se erguerá na montanha onde Satanás desafia Jesus. E sem necessitar de lhe prestar homenagem, sem ser obrigado a beijar-lhe as patas, ser  o senhor supremo de todos os reinos da Terra. Não é tentador o que lhe ofereço, e não é uma coisa facílima, uma vez que basta fazer isto? Ora veja.
            Ditas estas palavras, destapou por seu turno a tacinha de prata dourada que continha a substância tão elogiada, tirou uma colher de café da compota mágica, levou-a à boca e saboreou-a lentamente, com os olhos semicerrados e a cabeça inclinada para trás.
            Franz deixou-o tomar à vontade o seu manjar favorito.  Depois, quando o viu um bocadinho menos absorto, perguntou-lhe:
            - Mas afinal que é esse manjar tão precioso? 
            - Já ouviu falar do Velho da Montanha, aquele que quis mandar assassinar Filipe Augusto? - perguntou-lhe o anfitrião.
            - Sem dúvida.
            - Como sabe, reinava sobre um rico vale dominado pela montanha de onde lhe veio o seu pitoresco nome. No vale havia jardins magníficos plantados por Hassen-ben-Sabah, e nesses jardins pavilhões isolados. Era nesses pavilhões que fazia entrar os seus eleitos e lhes dava de comer, segundo Marco Polo, certa erva que os transportava ao Paraíso, no meio de plantas sempre floridas, de frutos sempre maduros, de mulheres sempre virgens. Ora, o que esses jovens ditosos tomavam por realidade era um sonho; mas um sonho tão agradável, tão inebriante, tão voluptuoso, que se vendiam de corpo e alma àquele que lhes
proporcionara e, obedecendo às suas ordens como às de Deus, iam ferir no cabo do mundo a vítima indicada, após o que morriam no meio de torturas sem se queixarem, convencidos de que a morte a que se submetiam não passava de um meio de transição para a vida de delícias de que a erva sagrada que tem na sua presença lhos dera um antegosto.
            - Então, trata-se de haxixe! - exclamou Franz. - Sim, conheço isso, pelo menos de nome.
            - Disse justamente a palavra, Sr. Aladino. É de fato haxixe, tudo o que se fabrica de melhor e mais puro em haxixe em Alexandria, haxixe de Abugor, o grande fabricante, o homem único, o homem a quem se deve ia erguer um palácio com esta inscrição: Ao vendedor da felicidade, o mundo reconhecido.
            - Sabe que estou tentado a avaliar por mim mesmo a veracidade ou o exagero dos seus elogios? - disse Franz.
            - Avalie por si mesmo, meu hóspede, avalie. Mas não se limite à primeira experiência. Como em todas as coisas, é necessário habituar os sentidos a uma impressão nova, suave ou violenta, triste ou alegre. Há uma luta da natureza contra essa substância divina, da natureza que não nasceu para a alegria e se agarra à dor. É preciso que a natureza vencida sucumba no combate e que a realidade suceda ao sonho. E então o sonho reinará como senhor, o sonho se transformará em vida e a vida em sonho. Mas que diferença nessa transfiguração! isto é, comparando as dores da existência real com os gozos da existência fictícia, o senhor nunca mais quererá viver e quererá sonhar sempre. Quando trocar o seu mundo pelo mundo dos outros, lhe parecerá passar de uma primavera napolitana para um inverno lapão, lhe parecerá  trocar o Paraíso pela
Terra, o Céu pelo Inferno. Prove o haxixe, meu hóspede! Prove-o!
            Como única resposta, Franz tirou uma colher daquela pasta maravilhosa, idêntica à que tirara o seu anfitrião, e levou-a à boca.
            - Demônio! - exclamou depois de engolir a compota divina. - Ainda não sei se o resultado será tão agradável como o senhor diz, mas isto não me parece tão saboroso como afirma.
            - Porque as suas papilas gustativas ainda não estão habituadas à sublimidade da substância que saboreiam. Diga-me, gostou logo à primeira vez de ostras, de chá, de cerveja, de trutas, de todas as coisas que mais tarde adorou? Compreende que os Romanos temperassem os faisões com assa-foetica e que os
Chineses comam ninhos de andorinha? Não, meu Deus, não, pois bem, acontece o mesmo com o haxixe: coma-o apenas, durante oito dias seguidos e nenhum alimento do mundo lhe parecerá atingir a delicadeza desse gosto que hoje talvez  lhe pareça insípido e nauseabundo. Mas passemos à sala ao lado, isto é, ao seu quarto, onde Ali nos servirá o café e dará cachimbos.
            Ambos se levantaram e, enquanto aquele que dera a si próprio o nome de Simbad e que também assim temos designado de vez em quando para, como o seu conviva, o designarmos de alguma maneira, dava algumas ordens ao criado, Franz entrou na sala contígua.
            Esta estava decorada com mais simplicidade, embora com não menos riqueza. Era redonda e contornava-a por completo um grande divã. Mas divã, paredes, teto e chão estavam todos forrados de peles magníficas, macias e fofas como o mais fofo o tapete. Eram peles de leões do Atlas, de juba abundante;
peles de tigres de Bengala, de listras vivas; peles de pantera do Cabo, caprichosamente mosqueadas, como a daquela que apareceu a Dante, e finalmente peles de ursos da Sibéria, de raposas da Noruega, etc., e todas essas peles se encontravam lançadas em profusão umas sobre as outras, de forma que se julgaria caminhar sobre a relva mais espessa e dormir na cama mais macia.
            Ambos se deitaram no divã. Chibuques de tubos de jasmim e pipos de âmbar estavam ao alcance da mão, todos preparados de forma a não ser necessário fumar duas vezes pelo mesmo. Pegou cada um no seu, Ali acendeu-os e saiu para ir buscar o café.
            Houve um momento de silêncio durante o qual Simhad se entregou aos pensamentos que pareciam dominá-lo constantemente, mesmo no meio de um diálogo e Franz abandonou-se a esse devaneio mudo em que caímos quase sempre ao fumar excelente tabaco, o qual parece levar com o fumo todas as penas do espírito e proporcionar em troca ao fumador todos os sonhos da alma.
            Ali trouxe o café.
            - Como o toma? - perguntou o desconhecido. - à francesa ou à turca, forte ou fraco, doce ou amargo, coado ou fervido? É à sua escolha; está preparado de todas as formas.
            - Vou tomá-lo à turca - respondeu Franz.
            - E tem razão! - exclamou Simbad. - Isso prova que tem disposição para a vida oriental. Ah, os Orientais são os únicos homens que sabem viver! Quanto a mim - acrescentou com um dos seus sorrisos singulares que não escapavam ao jovem –, assim que concluir os meus negócios em Paris irei morrer no
Oriente. Então, se me quiser encontrar terá de me ir procurar no Cairo, a Bagda ou a Ispahan.
            - Garanto-lhe que será a coisa mais fácil do mundo - perguntou Franz –, pois creio que me estão a nascer asas de águia, e com tais asas darei a volta ao mundo em vinte e quatro horas.
            - Ah, ah, efeitos do haxixe! ... Pois bem, abra as suas asas e voe para as regiões sobre-humanas. Nada receie, pois há quem vele por si. E se, como as de Icaro, as suas asas se derreterem ao sol, e  estaremos para o recebe-lo.
            Então, disse algumas palavras em árabe a Ali, que fez um gesto de obediência e se retirou, mas sem se afastar.
            Quanto a Franz, operava-se nele uma estranha transformação. Toda a fadiga física do dia, toda a preocupação de espírito ocasionada pelos acontecimentos da noite, desapareciam como no primeiro momento de repouso em que estamos ainda suficientemente conscientes para sentir aproximar-se o sono. O
seu corpo parecia adquirir uma leveza imaterial, o seu espírito esclarecia-se de maneira  inaudita e as faculdades dos seus sentidos pareciam duplicar. o horizonte ia-se alargando sempre, mas não esse horizonte sombrio sobre o qual pairava um vago terror e que vira antes de adormecer, mas sim um horizonte azul, transparente, vasto, com tudo o que o mar tem de azul com tudo o que o Sol tem de palhetas, com tudo o
que a brisa tem de perfumes. Depois, no meio dos cantos dos seus marinheiros - cantos tão límpidos e tão cristalinos que com eles se comporia uma harmonia divina se fosse possível anotá-los –, via aparecer a ilha de Monte-Cristo, não como um escolho ameaçador sobre as vagas, mas sim como um oásis perdido no deserto. Em seguida, à medida que a embarcação se aproximava, os cantos tornavam-se mais numerosos, porque uma harmonia encantadora e misteriosa subia da ilha para Deus, como se alguma fada, como se Lorelei ou um encantador como Anfíon, quisesse atrair para ali uma alma ou ali erguer uma cidade.
            Finalmente, a embarcação chegou à margem, mas sem esforço, sem qualquer abalo, como os lábios tocam nos lábios, e ele voltou a entrar na gruta sem que aquela música encantadora cessasse. Desceu, ou antes, teve a sensação de descer alguns degraus, respirando um ar fresco e perfumado como o que devia envolver a gruta de Circe, composto por perfumes que faziam divagar o espírito e por ardores que queimavam os sentidos, e reviu tudo o que vira antes de adormecer, desde Simbad, o anfitrião fantástico, até  Ali, o servo mudo. Em seguida, tudo pareceu desvanecer-se e confundir-se diante dos olhos, como as derradeiras sombras de uma lanterna mágica que se apaga, e encontrou-se novamente na sala das estátuas, apenas iluminada por uma dessas lâmpadas antigas e p lidas que velam no meio da noite o sono ou a volúpia.
            Eram sem dúvida as mesmas estátuas ricas de forma, de luxúria e de poesia, de olhos magnéticos, sorrisos lascivos e cabeleiras opulentas. Eram Frine, Cleôpatra e Messalina, essas três grandes cortesãs. Depois, no meio daquelas sombras impudicas deslizava, como um raio puro, como um anjo cristão no meio do Olimpo, uma dessas figuras castas, uma dessas sombras calmas, uma dessas visões suaves que parecia velar a fronte virginal diante de todas aquelas obscenidades de mármore.
            Pareceu-lhe então que as três estátuas tinham concentrado os seus três amores num só homem, e que esse homem era ele, que se aproximavam da cama onde dormia segundo sono, com os pés ocultos nas longas túnicas brancas, o colo nu, os cabelos desdobrando-se em ondas, numa dessas poses a que sucumbiam os deuses, mas a que resistiam os santos, com um desses olhares inflexíveis e ardentes como o que a serpente crava na avezinha, e que ele se abandonava a esses olhares pungentes como um abraço e voluptuosos como um beijo.
            Franz teve a sensação de fechar os olhos e de, através do último olhar que lançava à sua volta, entrever a estátua pudica, que se velava inteiramente. Depois de os olhos se lhe fecharem para as coisas reais, os seus sentidos abriram-se para as impressões impossíveis.
            Seguiu-se uma volúpia sem tréguas, um amor sem repouso, como o que o profeta prometia aos seus eleitos. Então, todas aquelas bocas de pedra adquiriram vida, todos aqueles peitos se tornaram quentes a ponto de para Franz, que suportava pela primeira vez os efeitos do haxixe, aquele amor ser quase uma
dor e aquela volúpia quase uma tortura quando sentia roçarem-lhe a boca inquieta os lábios daquelas estátuas flexíveis e frias como os anéis de uma cobra.  Mas quanto mais os seus braços tentavam repelir aquele amor desconhecido, tanto mais os seus sentidos se vergavam ao encanto do sonho misterioso, de modo que, depois de uma luta em que pôs toda a sua alma, se abandonou sem reservas e acabou por sucumbir anelante, exausto de fadiga e volúpia, aos beijos daquelas amantes de mármore e ao feitiço daquele sonho inaudito.


Capítulo XXXII

Despertar


            Quando Franz voltou a si os objetos exteriores pareciam a segunda parte do seu sonho. Julgou-se num sepulcro onde apenas penetrava, como um olhar de compaixão, um raio de sol. Estendeu a mão e sentiu pedra. Sentou-se e verificou que estivera deitado na sua capa, num leito de urzes secas, muito macio e odorífero.
            Desaparecera por completo qualquer visão e, como se as estátuas não tivessem passado de sombras saídas dos seus túmulos enquanto ele sonhava, tinham fugido ao vê-lo despertar.
            Deu alguns passos na direção de onde vinha a luz. A toda a agitação do sonho sucedia a calma da realidade. Viu-se numa gruta, dirigiu-se para o lado da abertura e através da porta abobadada distinguiu um céu azul e um mar igualmente azul. O ar e a água resplandeciam batidos pelos raios do sol da manhã.
Os marinheiros estavam sentados à beira-mar, conversando e rindo, e a dez passos, mar adentro, a barca balouçava-se graciosamente presa à âncora.
            Durante algum tempo saboreou a brisa fresca que lhe batia na testa, escutou o barulho abafado das vagas que se desfaziam na margem e deixavam nas rochas uma renda de espuma branca como prata e entregou-se sem refletir, sem pensar, ao encanto divino que existe nas coisas da natureza e que descobrimos
sobretudo quando saímos de um sonho fantástico. Depois, pouco a pouco, a vida exterior, tão calma, tão pura, tão grande, recordou-lhe a inverosimilhança do seu sono e as recordações começaram a voltar-lhe à memória.
            Lembrou-se da sua chegada à ilha, da sua apresentação a um chefe de contrabandistas, de um palácio subterrâneo cheio de esplendores, de uma ceia excelente e de uma colher de haxixe.
            Simplesmente, perante a realidade da luz do dia, parecia-lhe haver pelo menos um ano que todas essas coisas tinham acontecido, de tal forma o sonho que sonhara estava vivo no seu pensamento e era importante para o seu espírito. Por isso, de vez em quando a sua imaginação fazia sentar no meio dos
marinheiros ou atravessar um rochedo, ou balançar-se na barca, uma das sombras que lhe tinham estrelado a noite com os seus beijos. Fora isso, tinha a cabeça perfeitamente desanuviada e o corpo perfeitamente repousado. Nenhum peso no cérebro, mas pelo contrário um certo bem-estar geral, uma faculdade de
absorver o ar e o sol maior do que nunca.
            Aproximou-se alegremente dos marinheiros.
            Assim que o viram, levantaram-se e o patrão aproximou-se dele.
            - O Sr. Simbad - disse-lhe - encarregou-nos de apresentarmos os seus cumprimentos a Vossa Excelência e de lhe exprimirmos o seu pesar por não lhe poder apresentar as suas despedidas. Mas
espera que o desculpe quando souber que um assunto urgentíssimo o chamou a Málaga.
            - Ora ainda bem, meu caro Gaetano - disse Franz –, que tudo isto é realmente verdade. Existe de fato um homem que me recebeu nesta ilha, me concedeu uma hospitalidade régia e partiu enquanto eu dormia?
            - Tanto existe que ainda se vê o seu iatezinho afastar-se, com todas as velas içadas, e se Vossa Excelência pegar no seu óculo de longo alcance reconhecerá, muito provavelmente, o seu anfitrião no meio dos seus tripulantes.
            Ao dizer estas palavras, Gaetano estendia o braço na direção de um naviozinho que navegava na direcção da ponta meridional da Côrsega.
            Franz pegou o óculo, regulou-o e apontou-o para o local indicado.
            Gaetano não se enganara. à ré do navio, o misterioso estrangeiro recortava-se de pé, virado para o lado de Franz, e tendo como este um óculo na mão. Envergava ainda a indumentária com que aparecera na véspera ao seu conviva e  agitava o lenço em sinal de despedida.
            Franz retribuiu-lhe a saudação tirando por sua vez o lenço da algibeira e agitando-o como ele agitava o seu.
            Passado um segundo, formou-se à popa do navio uma leve nuvem de fumo, que se afastou graciosamente da ré e subiu lentamente para o céu. Em seguida chegou aos ouvidos de Franz uma fraca
detonação.
            - Veja, ouça! - exclamou Gaetano. - está dizendo-lhe adeus!
            O jovem pegou no rostobina e descarregou-a no ar, mas sem esperança de que os estampidos conseguissem transpor a distancia que separava o iate da costa.
            - Que ordena Vossa Excelência? - perguntou Gaetano.
            - Primeiro, que me acenda um archote.
            - Ah, sim, compreendo! - exclamou o patrão. - Quer procurar a entrada do palácio encantado. À vontade, Excelência. Se isso o diverte, vou dar-lhe o archote que pretende. Eu também já fui dominado por essa idéia e tentei três ou quatro vezes, mas acabei por desistir. Giovanni - acrescentou –, acende um
archote e traga-o a Sua Excelência.
            Giovanni obedeceu. Franz pegou o archote e entrou no subterrando, seguido de Gaetano.
            Reconheceu o lugar onde acordara, no seu leito de urzes ainda todo pisado; mas em Vão passeou o archote por toda a superfície exterior da gruta: não viu nada, exceto vestígios de fumo de outros que antes dele já tinham tentado inutilmente a mesma investigação.
            Contudo, não deixou um pé daquela muralha granítica, impenetrável como o futuro, por examinar. Não viu uma fenda onde não introduzisse a lâmina da sua faca de caça; não notou um ponto saliente em que não carregasse, na esperança de que cedesse, mas tudo foi inútil e perdeu sem nenhum resultado duas horas de buscas.
            Ao fim desse tempo desistiu. Gaetano estava triunfante.
            Quando Franz regressou à praia o iate não era mais do que um pontinho branco no horizonte. Recorreu ao óculo, mas mesmo com ele foi-lhe impossível distinguir qualquer  coisa. 
            Gaetano lembrou-lhe que viera para caçar cabras, o que esquecera por completo. Pegou a espingarda e pôs-se a percorrer a ilha com o ar de um homem que cumpre mais um dever do que se proporciona um prazer, e passado um quarto de hora matara uma cabra e dois cabritos. Mas as cabras, apesar de
bravas e ariscas como camurças, pareciam-se demasiado com as nossas cabras domésticas e Franz não as olhava como caça.
            Além disso, idéias muito mais absorventes dominavam-lhe o espírito. Desde a véspera que era realmente o herói de um conto das Mil e Uma Noites, e sentia-se irresistivelmente atraído para a gruta.
            Então, apesar da inutilidade da primeira busca, recomeçou segunda, depois de dizer a Gaetano que mandasse assar um dos dois cabritos. A segunda busca durou bastante mais tempo, pois quando regressou o cabrito estava assado e o pequeno-almoço pronto.
            Franz sentou-se no lugar onde na véspera o tinham vindo convidar para cear da parte do seu misterioso anfitrião, e descortinou ainda, como uma gaivota embalada na crista de uma vaga, o iatezinho, que continuava a navegar para a Côrsega.
            - Mas - observou a Gaetano - você disse-me que o Sr. Simbad ia para Málaga e a mim parece me que se dirige diretamente para Porto-Vecchio.
            - Já não se lembra - respondeu o patrão - que entre a sua tripulação lhe disse haver de momento dois bandidos corsos?
            - É verdade! E vai desembarcá-los na costa? - perguntou Franz.
            - Justamente. Oh, é um homem que, segundo se diz, não teme nem Deus nem o Diabo e que é capaz de se desviar cinquenta léguas da sua rota para ser prestável a um pobre diabo!
            - Mas esse gênero de favores poderá muito bem acarretar-lhe dissabores com as autoridades do país onde exerce semelhante filantropia - observou Franz.
            - Bom - perguntou Gaetano, rindo –, que podem as autoridades contra ele? Está-se nas tintas para elas! Que tentem persegui-lo Primeiro, o seu iate não é um navio vulgar, é uma ave, e ele daria três nós de avanço em doze a uma fragata, e depois lhe bastaria desembarcar na costa para encontrar amigos por toda a parte.
            O que havia de mais claro em tudo aquilo é que o Sr. Simbad, anfitrião de Franz, tinha a honra de manter relações com os contrabandistas e os bandidos de todas as costas do Mediterrâneo, o que não deixava de o colocar numa posição bastante estranha.
            Quanto a Franz, já nada o retinha em Monte-Cristo. Como já perdera toda a esperança de descobrir o segredo da gruta, apressou o pequeno-almoço e ordenou aos seus homens que tivessem a embarcação pronta quando acabasse de comer. Meia hora depois estava a bordo.
            Deitou um último olhar ao iate; estava prestes a desaparecer no golfo de Porto-Vecchio.
            Deu o sinal de partida.
            No momento em que a embarcação se pôs em movimento, o iate desapareceu. 
            Com ele esfumava-se a derradeira realidade da noite anterior Para Franz, ceia, Simbad, haxixe e estátuas tudo começava a misturar-se no mesmo sonho.
            A embarcação navegou todo o dia e toda a noite, e no dia seguinte, quando o Sol nasceu, desaparecera por sua vez a ilha de Monte-Cristo.
            Assim que pôs pé em terra, Franz esqueceu, pelo menos momentaneamente, os acontecimentos que acabara de viver, para terminar os seus compromissos de prazer e cortesia em Florença e ir juntar-se ao amigo que o esperava em Roma
            Partiu portanto e chegou à Praça da Alfândega, na diligência, no sábado à noite.
            Como dissemos, o quarto fora reservado com antecedência e tudo o que tinha a fazer era dirigir-se para o hotel de mestre Pastrini - o que não era coisa muito fácil, pois a multidão enchia as ruas e Roma era já presa desse rumor abafado e febril que precede os grandes acontecimentos. Ora em Roma há quatro grandes acontecimentos por ano: o Carnaval, a Semana Santa, a Festa do Corpo de Deus e o S. Pedro.
            Durante todo o resto do ano a cidade recai na sua triste apatia, estado intermediário  entre a vida e a morte, que a torna semelhante a uma espécie de estação entre este mundo e o outro - estação sublime, paragem cheia de poesia e caracter que Franz já experimentara cinco ou seis vezes e que de cada vez
achara ainda mais maravilhosa e fantástica.
            Por fim, conseguiu atravessar a multidão, cada vez mais densa e agitada, e alcançou o hotel. À sua primeira pergunta responderam-lhe, com a impertinêncio rostocterística dos cocheiros de fiacre reservados e dos hoteleiros com a lotação esgotada, que já não havia lugar para ele no Hotel de Londres. Então mandou o seu cartão a mestre Pastrini e exigiu a presença de Albert de Morcerf. O processo resultou e mestre Pastrini acorreu pessoalmente, desculpando-se por ter feito esperar Sua Excelência, desatou a ralhar com os empregados, tirou o castiçal da mão do cicerone que já se assenhoreara do viajante e preparava-se para o acompanhar junto de Albert quando este veio ao seu encontro.
            Os aposentos reservados compunham-se de dois quartitos e de um gabinete. Os dois quartos davam para a rua, circunstância que mestre Pastrini fez valer como se lhos acrescentasse mérito apreciável. O resto do andar estava alugado a uma personagem riquíssima, tida por siciliana ou maltesa. O hoteleiro não foi
capaz de dizer ao certo de qual das duas nacionalidades era o viajante.
            - Está tudo muito bem, mestre Pastrini - disse Franz –, mas precisamos imediatamente de uma ceia para esta noite e de uma caleça para amanhã e para os dias seguintes.
            - Quanto à ceia - respondeu o hoteleiro –, serão servidos neste mesmo instante; mas quanto à caleça...
            - Como, quanto à caleça?! - protestou Albert. - Um momento, um momento! Deixemo-nos de brincadeiras, mestre Pastrini...Precisamos de uma caleça!
            - Senhor, faremos tudo o que pudermos para lhes arranjar uma - respondeu o hoteleiro. - É tudo o que lhes posso prometer.
            - E quando teremos a resposta? - perguntou Franz.
            - Amanhã de manhã - respondeu o hoteleiro.
            - Que diabo, nós a pagaremos mais cara e pronto! - interveio Albeert. - Sabemos como isso é: no Drake ou no Aaron, vinte e cinco francos nos dias vulgares  e trinta ou trinta e cinco francos nos domingos e dias festivos. Ponha-lhe mais cinco francos por dia de corretagem, o que dar  quarenta, e não se fala mais nisso.
            - Receio muito, meus senhores, que mesmo oferecendo o dobro a não consigam arranjar.
            - Então que atrelem cavalos à minha. Está um bocado deteriorada da viagem, mas não faz mal.
            - Não se arranjarão cavalos.
            Albert olhou para Franz como um homem a quem tivessem dado uma resposta que lhe parecesse incompreensível.
            - Compreende isto, Franz? Não há cavalos! Mas cavalos de posta, não se poderão arranjar?
            - Estão todos alugados há quinze dias e só restam os absolutamente necessários ao serviço.
            - Que diz você a isto, Albert? - perguntou Franz.
            - Digo que quando uma coisa excede a minha inteligência tenho o hábito de não insistir nessa coisa e passar a outra. A ceia está pronta, mestre Pastrini?
            - Está, sim, Excelência.
            - Então ceemos primeiro.
            - Mas a caleça e os cavalos? - insistiu Franz.
            - Esteja tranquilo, caro amigo, que eles aparecerão É tudo uma questão de preço.
            E Morcerf, com essa filosofia admirável que não considera nada impossível, desde que se sinta a bolsa recheada ou a carteira bem fornecida, ceou, deitou-se, dormiu a sono solto e sonhou que brincava o Carnaval numa caleça puxada por seis cavalos.



Capítulo XXXIII

Bandidos romanos


            No dia seguinte; Franz foi o primeiro a acordar, e assim que acordou tocou. O tinido da campainha ainda vibrava quando mestre Pastrini entrou em pessoa.
            - Pronto - disse o hoteleiro triunfante e sem sequer esperar que Franz o interrogasse –, razão tinha eu ontem, Excelência, em não querer prometer nada. Decidiram-se demasiado tarde e já não há uma única caleça em Roma... para os três últimos dias, claro.
            - Claro - repetiu Franz. - isto é, para aqueles em que é absolutamente necessária.
            - Que se passa? Não há caleça? - perguntou Albert, entrando.
            - Exatamente; meu caro amigo - respondeu Franz. -  Adivinhou logo primeira.
            - Sim, senhor, saiu-me uma bonita cidade a vossa cidade eterna!...
            - O que quero dizer, Excelência - interveio mestre Pastrini, que desejava que a capital do mundo cristão mantivesse certa dignidade aos olhos dos seus  hóspedes –, o que quero dizer é que já não há caleças a partir de domingo de manhã e até  terça-feira à noite, mas daqui até  domingo arranjarão cinquenta, se quiserem.
            - Já é alguma coisa - observou Albert. - Hoje é quinta-feira; quem sabe o que poderá acontecer daqui até  domingo?...
            - Chegarão dez a doze mil pessoas - respondeu Franz - que tornarão as dificuldades ainda maiores.
            - Meu amigo - sentenciou Morcerf –, gozemos o presente e não agouremos o futuro.
            - Poderemos ao menos ter uma janela? - perguntou Franz.
            - Para onde?
            - Para a rua do corso, com a breca!
            - Claro, uma janela!...-exclamou mestre Pastrini. - Impossível, absolutamente impossível! Não resta nem uma mesmo no quinto andar do Palácio Dória. A que havia foi alugada a um príncipe russo por vinte cequins por dia.
            Os dois jovens entreolharam-se com ar estupefato.
            - Bom, meu caro - disse Franz a Albert –, sabe que há de melhor a fazer? É irmos passar o Carnaval em Veneza. Ao menos lá, se não arranjarmos carruagens, arranjaremos gôndolas.
            - Ah, isso não! - exclamou Albert. - Decidi que veria o Carnaval em Roma e o verei, nem que seja em andas.
            - Ora aí está uma excelente idéia, sobretudo para apagar os moccoletti! Mascaramo-nos de polichinelos-vampiros ou de habitantes das Landes e teremos um êxito louco.
            - Suas Excelências ainda querem a carruagem até  domingo?
            - Com a breca, julga que vamos correr a pé as ruas de Roma como praticantes de meirinho? - perguntou Albert.
            - Vou cumprir imediatamente as ordens de Vossas Excelências - disse mestre Pastrini. - Mas previno-os de que a carruagem lhos custará seis piastras por dia.
            - E eu, meu caro Sr. Pastrini - disse Franz –, eu, que não sou o nosso vizinho milionário, previno-o pela minha parte de que, atendendo a que é a quarta vez que venho a Roma, sei o preço das caleças nos dias vulgares, nos domingos e nos feriados. Lhe daremos doze piastras por hoje, amanhã e depois de amanhã e ainda terá um belíssimo, lucro.
            - Mas, Excelência... - começou mestre Pastrini, tentando rebelar-se.
            - Vamos, meu caro anfitrião, vamos, ou vou eu próprio combinar o preço com o seu affettatore, que é também o meu - atalhou Franz. - Trata-se de um velho amigo que já me roubou bastante dinheiro na sua vida e que, na esperança de me roubar ainda mais, me fará um preço mais baixo do que o que lhe ofereço. Perderá  portanto a diferença e a culpa será sua.
            - Não se incomode, Excelência - disse mestre Pastrini, com o sorriso do especulador italiano que se dá por vencido. - Farei o melhor que puder e espero que fique contente.
            - Ótimo! Ora aí está o que se chama falar.
            - Quando querem a carruagem?
            - Dentro de uma hora.
            - Daqui a uma hora estará à porta. 
            Efetivamente, uma hora depois a carruagem esperava os dois jovens. Tratava-se de um modesto fiacre que, atendendo à solenidade da circunstância, fora elevado à categoria de caleça. Mas, por mais medíocre que fosse o seu aspecto, os dois rapazes teriam, considerado muito felizes se pudessem dispor de um veículo assim nos três últimos dias.
            - Excelência! - gritou o cicerone, vendo Franz chegar à janela. - Posso mandar aproximar o coche do palácio?
            Por mais habituado que Franz estivesse à ênfase italiana, o seu primeiro impulso foi olhar à sua volta. Mas era mesmo a ele próprio que aquelas palavras se dirigiam. Franz era a Excelência; o coche era o fiacre; o palácio era o Hotel de Londres.
            Todo o engenho laudatório da nação estava contido naquela simples frase.
            Franz e Albert desceram. O coche aproximou-se do palácio. Suas Excelências estenderam as pernas sobre os bancos fronteiros e o cicerone saltou para o assento de trás.
            - Aonde querem Suas Excelências que os leve?
            - Primeiro a S. Pedro e depois ao Coliseu - respondeu Albert, como autêntico parisiense que era.
            Mas Albert não sabia uma coisa: que é preciso um dia para ver S. Pedro e um mês para o estudar. O dia passou-se portanto apenas a visitar S. Pedro.
            De súbito, ambos notaram que entardecia.
            Franz puxou o relógio e verificou que eram quatro e meia.
            Puseram-se imediatamente a caminho do hotel. À porta, Franz ordenou ao cocheiro que estivesse pronto às oito horas. Queria que Albert visse o Coliseu ao luar, tal como lhe mostrara S. Pedro à luz do dia. Quando se mostra a um amigo uma cidade já conhecida, põe-se nisso a mesma presunção que se usa para
mostrar uma mulher de que se foi amante.
            Nesta conformidade, Franz traçou ao cocheiro o itinerário: devia sair pela Porta del Popolo, seguir ao longo da muralha exterior e reentrar pela Porta de San-giovanni . Assim, o Coliseu lhe apareceria sem qualquer preparação e sem que o Capitólio, o Forum, o Arco de Séptimo Severo, o Templo de Antonino e Faustina e a Via Sacra servissem de degraus colocados no caminho para o encurtar.
            Sentaram-se à mesa. Mestre Pastrini prometera aos seus hóspedes uma boa refeição. Deu-lhes um jantar razoável. Não havia nada a dizer.
            Ele próprio apareceu no fim do jantar. Franz julgou a princípio que fosse para receber os seus cumprimentos e preparava-se para lhos dirigir quando ele o interrompeu às primeiras palavras.
            - Excelência, estou lisonjeado com a sua aprovação, mas não foi para isso que vim...
            - Foi para nos dizer que arranjou uma carruagem? - perguntou Albert, acendendo um charuto.
            - Ainda menos, e até é Excelência, faria bem em não pensar mais nisso e tirar do caso o melhor partido. Em Roma, as coisas podem ou não se podem. Quando nos dizem que se não podem, acabou-se.
            - Em Paris é mais cômodo: quando se não pode, paga-se o dobro e tem-se imediatamente o que se pretende. 
            - Tenho ouvido dizer isso de todos os franceses - perguntou mestre Pastrini um bocadinho irritado –, o que me leva a não compreender por que motivo viajam.
            - A verdade - disse Albert, expelindo fleumaticamente o fumo para o teto, inclinando-se para trás e balouçando-se nas duas pernas de trás do cadeirão - é que são os loucos e os parvos como nós que viajam. As pessoas sensatas não saem do seu palácio da Rua do Helder, do Buievar de Gand e do Café de Paris.
            Escusado ser  dizer que Albert residia na rua citada, dava todos os dias o seu passeio de bom-tom e jantava diariamente no único café onde se janta quando se está bem relacionado com os criados.
            Mestre Pastrini ficou um instante silencioso. Era evidente que meditava a resposta, que sem dúvida não lhe parecia perfeitamente clara.
            - Mas enfim - disse Franz por seu turno, interrompendo as reflexões geográficas do seu hoteleiro –, veio com qualquer finalidade. Quer expor-nos o objeto da sua visita?
            - Tem razão. Ei-lo: mandaram vir a caleça às oito horas?
            - Exatamente.
            - Tencionam visitar il Colosseo?
            - Quer dizer o Coliseu?
            - É precisamente a mesma coisa.
            - Seja.
            - Disseram ao cocheiro para sair pela Porta del Popolo, dar a volta às muralhas e reentrar pela Porta de San-Giovanni?
            - Foram essas as minhas próprias palavras.
            - Pois bem, esse itinerário é impossível.
            - Impossível?...
            - Ou pelo menos perigosíssimo.
            - Perigosíssimo... E porquê?
            - Por causa do famoso Luigi Vampa.
            - Antes de mais nada, meu caro hoteleiro, quem é o famoso Luigi Vampa? - perguntou Albert . -Pode ser famosíssimo em Roma, mas previno-o de que é ignorado em Paris.
            - Como, não o conhecem?!
            - Não tenho essa honra.
            - Nunca ouviu pronunciar o seu nome?
            - Nunca.
            - Bom, trata-se de um bandido comparado com o qual os Deseraris e os Gasparoni não passam de uma espécie de meninos de coro.
            - Atenção, Albert, aí está finalmente um bandido! - exclamou Franz.
            - Previno-o, meu caro hoteleiro, de que não acreditarei numa só palavra do que nos vai dizer. É ponto assente entre nós. Mas diga o que lhe apetecer que sou todo ouvidos. “Era uma vez ... " Vá, comece!
            Mestre Pastrini virou-se para Franz, que lhe parecia o mais razoável dos dois rapazes. Deve-se fazer justiça ao excelente homem: hospedara muitos franceses na sua vida, mas nunca compreendera certa faceta do seu espírito.
            - Excelência - disse muito gravemente dirigindo-se, como dissemos, a Franz –, se me considera um mentiroso, é inútil dizer-lhe o que tencionava  dizer-lhe. Posso no entanto afirmar-lhes que era no interesse de Vossas Excelências.
            - Albert não lhe disse que era um mentiroso, meu caro Sr. Pastrini - perguntou Franz. - Disse-lhe que não o acreditaria e mais nada. Mas eu acreditarei, esteja descansado. Fale.
            - Contudo, Excelência, compreende muito bem que se se põe em dúvida a veracidade das minhas palavras...
            - Meu caro - observou Franz –, o senhor é mais susceptível do que Cassandra, que no entanto era profetisa e que ninguém escutava, ao passo que você está seguro, pelo menos, de metade do seu auditório. Vejamos, sente-se e diga-nos quem é o Sr. Vampa.
            - Já lhe disse, Excelência: é um bandido como ainda não vimos nenhum desde o famoso Mastrilla.
            - De acordo. Mas que relação tem esse bandido com a ordem que dei ao cocheiro de sair pela Porta del Popolo e entrar pela Porta de San-Giovanni ?
            - Tem - respondeu mestre Paslrini - que podem muito bem sair por uma, mas duvido que entrem pela outra.
            - Porquê? - perguntou Franz.
            - Porque assim que anoitece não se está seguro a cinquenta passos das portas.
            - Palavra de honra? - troçou Albert.
            - Sr. Visconde - volveu-lhe mestre Pastrini, ainda ferido até  ao fundo do coração pela dúvida manifestada por Albert acerca da veracidade das suas palavras –, não digo isto por Vossa Excelência, digo-o pelo seu companheiro de viagem, que conhece Roma e sabe que se não brinca com estas coisas.
            - Meu caro - disse Albert dirigindo-se a Franz –, aí está uma aventura admirável e natural: carregamos a nossa caleça de pistolas, bacamartes e espingardas de dois tiros. Luigi Vampa vem para nos prender, mas nós é que o prendemos. Trazemo-lo para Roma, em homenagem a Sua Santidade, que nos pergunta o que pode fazer para recompensar tão grande serviço. Então, pedimos pura e simplesmente um coche e dois cavalos das suas cavalariças e assistimos ao Carnaval de carruagem. Sem contar que provavelmente o povo romano, reconhecido, nos coroará  no Capitólio e nos proclamará, como Cúrcio e Horácio Cocles, salvadores da pátria.
            Enquanto Albert proferia estas palavras, mestre Pastrini fazia umo rosto que em vão tentaríamos descrever.
            - Antes de mais nada, onde arranjaria as pistolas, os bacamartes e as espingardas de dois tiros para encher a carruagem? - perguntou Franz a Albert.
            - Garanto-lhe que não será no meu arsenal, porque em Terracina tiraram-me até a minha faca-punhal. E a você?
            - A mim fizeram-me o mesmo em Aqua-Pendente.
            - Aqui tem, meu caro hoteleiro! - exclamou Albert, acendendo segundo charuto na ponta do primeiro. - Sabe que é muito cômoda para os ladrões essa medida, que para mim tem todo o ar de ter sido tomada contas a meias com eles?
            Mestre Pastrini achou sem dúvida o gracejo comprometedor, pois só respondeu em parte, e mesmo assim dirigindo a palavra a Franz, como se este fosse a única pessoa sensata com quem se pudesse entender convenientemente. 
            - Vossa Excelência sabe que não é hábito as pessoas defenderem-se quando são atacadas por bandidos.
            - Como?! - exclamou Albert, cuja coragem se revoltava à idéia de se deixar roubar sem dizer nada. - Como? Não é hábito?...
            - Não! Porque toda a defesa seria inútil. Que quer fazer contra uma dúzia de bandidos que saem de um fosso, de um pardieiro ou de um aqueduto e que o visam todos ao mesmo tempo?
            - Com mil demônios, quero que me matem! - gritou Albert.
            O hoteleiro virou-se para Franz com um ar que queria dizer: “Decididamente, Excelência, o seu companheiro é louco."
            - Meu caro Albert - declarou Franz –, a sua resposta é sublime e vale o Qu'il mour-t do velho Corneille.
Simplesmente, quando Horácio respondia isso tratava-se da salvação de Roma e a coisa valia a pena. Mas quanto a nós repare que se traía simplesmente da satisfação de um capricho e que seria ridículo, por um capricho, arriscarmos a vida.
            – Per Bacco!- exclamou mestre Pastrini . -Ora aí está o que se chama falar!
            Albert serviu-se de um copo de lacryma christi, que bebeu aos golinhos, resmungando palavras ininteligíveis.
            - Agora, mestre Pastrini - prosseguiu Franz –, que o meu companheiro está calmo e o senhor teve ensejo de apreciar as minhas disposições pacificas; agora, vejamos quem é o Sr Luigi Vampa? É pastor ou patrício? Novo ou velho? Baixo ou alto? Descreva-o, a fim de, se o encontrarmos por acaso no mundo como Jean Sbogar ou Lara, possamos ao menos reconhece-lo.
            - Não poderia dirigir-se a ninguém mais indicado do que eu, Excelência, para ter pormenores exatos, pois conheci Luigi Vampa em criança. E até  um dia em que eu próprio lhe caí nas mãos, ao ir de Ferentino para Alatri, teve a sorte de lembrar-se de mim, do nosso antigo conhecimento. Deixou-me passar, não só sem me fazer pagar o resgate, mas também só depois de me oferecer um riquíssimo relógio e de me contar a
sua história.
            - Vejamos o relógio.
            Mestre Pastrini tirou da algibeira do colete um magnífico Breguet com o nome do seu autor, a marca de Paris e uma coroa de conde.
            - Aqui o tem - disse.
            - Apre! - exclamou Albert. - Os meus cumprimentos. Tenho um mais ou menos idêntico - e tirou o relógio da algibeira do colete –, mas custou-me três mil francos.
            - Ouçamos a história - disse Franz por seu turno, puxando uma poltrona e fazendo sinal a mestre Pastrini para se sentar.
            - Vossas Excelências me dão licença? - perguntou o hoteleiro.
            - Por Deus, você, meu caro, não é um pregador para falar de pé - observou Albert.
            O hoteleiro sentou-se depois de fazer a cada um dos seus futuros ouvintes uma saudação respeitosa, a qual tinha como finalidade indicar que estava pronto a prestar a respeito de Luigi Vampa as informações que desejassem.
            - Um momento! - pediu, Franz, detendo mestre Pastrini quando este já abria a boca. - Diz que conheceu Luigi Vampa em pequeno. É portanto ainda um homem novo? 
            - Como um homem novo?... Evidentemente que sim. Tem apenas vinte e dois anos! Oh, é um figurão que irá  longe, podem ter certeza!
            - Que diz a isto, Albert? É belo, aos vinte e dois anos, ter conseguido uma reputação - comentou Franz.
            - Sim, decerto. Na sua idade, Alexandre, César e Napoleão, que depois fizeram certo barulho no mundo, não estavam tão adiantados como ele.
            - Portanto, o herói cuja história vamos ouvir só tem vinte e dois anos? - prosseguiu Franz, dirigindo-se ao hoteleiro.
            - Só, como já tive a honra de lhe dizer.
            - É alto ou baixo?
            - De estatura média. Pouco mais ou menos como Sua Excelência - respondeu o hoteleiro, indicando Albert.
            - Obrigado pela comparação - disse este, inclinando-se.
            - Continue, mestre Pastrini - interveio Franz, sorrindo da susceptibilidade do amigo. - E a que classe da sociedade pertencia?
            - Era um simples pastorinho ligado à quinta do conde de San-Felice, situada entre a Palestrina e o lago de Gabri. Nascera em Pampinara e entrara aos cinco anos de idade ao serviço do conde. O pai, que também era pastor em Anagni, tinha um rebanhozito e vivia da lã dos seus carneiros e da venda do leite das suas ovelhas, que vinha negociar a Roma.
            "Ainda criança, o pequeno Vampa já tinha um caráter estranho. Um dia, contava sete anos, procurou o pároco de Palestrina e pediu-lhe que o ensinasse a ler. Era coisa difícil, porque o jovem pastor não podia abandonar o rebanho. Mas o bom do pároco ia todos os dias dizer missa numa pobre aldeola, muito pouco considerável para pagar a um padre, e que como nem sequer tinha nome era conhecida pelo de Borgo. O
padre propôs a Luigi que se encontrasse com ele no caminho à hora do seu regresso. Dar-lhe-ia assim a lição, mas preveniu-o de que a lição seria curta e de que deveria por consequência aproveitá-la.
            "o garoto aceitou com alegria.
            "todos os dias, Luigi levava o rebanho a pastar no caminho de Palestrina ao Borgo; todos os dias às nove da manhã o pároco passava, o padre e o garoto sentavam-se à beira de uma vala e o pastorinho dava a sua lição pelo breviário do sacerdote.
            "Passados três meses sabia ler.
            "Mas isso não bastava; precisava agora de aprender a escrever.
            "O padre mandou fazer a um professor de caligrafia de Roma três abecedários: um grande, um médio e um pequeno, e mostrou-lhe que copiando o abecedário numa ardôsia com uma pena de ferro poderia aprender a escrever.
            "Nessa mesma tarde, quando o rebanho regressou à quinta, o pequeno Vampa, correu à oficina do ferreiro de Palestina, pegou num grande prego, forjou-o, martelou-o, arredondou-o e transformou-o numa espécie de estilete antigo.
            "No dia seguinte reuniu uma provisão de ardósia e meteu mãos à obra.
            "Passados três meses sabia escrever.
            "O pároco, atônico com aquela profunda inteligência e impressionado com semelhante aptidão, ofereceu-lhe diversos cadernos de papel, um pacote de penas e um canivete. 
            "Foi uma nova aprendizagem, mas uma aprendizagem que não era nada comparada com a primeira. Passados oito dias, manejava a pena como manejava o estilete.
            "O pároco contou o caso ao conde de San-Felice, que quis ver o pastorinho, o mandou ler e escrever na sua presença, ordenou ao intendente que o mandasse comer com os criados e deu-lhes duas piastras por mês.
            "Com esse dinheiro, Luigi comprou livros e lápis.
            "Com efeito, aplicava a todos os objetos a facilidade de imitação que possuía e, como Giotto em criança, desenhava nas suas ardósias as suas ovelhas, as árvores e as casas.
            "Depois, com a ponta do canivete começou a talhar a madeira e a dar-lhe todas as espécies de formas. Fora assim que Pinelli, o escultor popular, começara.
            "Uma pequenita de seis ou sete anos, isto é, um bocadinho mais nova do que Vampa, guardava por seu turno as ovelhas de uma quinta perto de Palestrina. Era órfã, nascera em Valmontone e chamava-se Teresa.
            "As duas crianças encontravam-se, sentavam-se ao lado uma da outra, deixavam os seus rebanhos misturar-se e pastar juntos, conversavam, riam e brincavam. Depois, à tardinha, separavam os carneiros do conde de San-Felice dos do barão de Cervetri e os garotos regressavam às respectivas quintas, prometendo
encontrarem-se de novo no dia seguinte de manhã.
            "No dia seguinte cumpriam a sua palavra e cresciam assim lado a lado.
            "Vampa fez doze anos e a pequena Teresa onze.
            "Entretanto, os seus instintos naturais desenvolviam-se.
            "A par do gosto pelas artes, que Luigi levara tão longe quanto lhe era possível naquele isolamento, era triste por natureza, ardente por impulso, colérico por capricho e sempre trocista. Nenhum dos rapazes de Pampinara, de Palestrina ou de Valmontone conseguira não só adquirir qualquer influência sobre ele, mas também tornar-se seu companheiro. O seu temperamento voluntarioso, sempre disposto a exigir sem nunca
se querer vergar a qualquer concessão, afastava dele qualquer gesto amistoso, qualquer demonstração de simpatia. Só Teresa dominava com uma palavra, um olhar, um gesto aquele caracter obstinado que cedia sob a mão de uma mulher, mas que sob a de um homem, fosse ele qual fosse, se retesaria até  quebrar.
            "Teresa era, pelo contrário, viva, ladina e alegre, e também excessivamente vaidosa. As duas piastras que o intendente do conde de San-Felice dava a Luigi e o produto de todas as esculturazinhas que vendia aos comerciantes de brinquedos de Roma, transformavam-se em brincos de contas, em colares de vidrilhos e em agulhas de ouro. Assim, graças à prodigalidade do seu jovem amigo, Teresa era a mais bela e elegante
camponesa dos arredores de Roma.
            "As duas crianças continuaram a crescer, a passar todo o dia juntas e a entregar-se sem resistência aos instintos da sua natureza primitiva. Por isso, nas suas conversas, nos seus desejos e nos seus sonhos, Vampa via-se sempre comandante de navio de guerra, general de exército ou governador de uma província. E Teresa via-se rica, metida nos mais lindos vestidos e seguida de criados de libré. Depois de passarem
todo o dia tecendo o seu futuro com tão loucos e brilhantes arabescos, separavam-se para reconduzirem os seus carneiros ao aprisco e descerem das alturas dos seus sonhos à humildade da sua verdadeira posição. 
            "Um dia, o jovem pastor disse ao intendente do conde que vira um lobo sair das montanhas da Sabine e rondar-lhe o rebanho. O intendente deu-lhe uma espingarda. Era o que Vampa queria.
            "Por acaso, a espingarda era uma excelente arma de Bréscia, que disparava balas com a precisão de umo rostobina inglesa. Simplesmente, um dia o conde, ao matar uma raposa ferida, partira-lhe a coronha e a espingarda fora atirada para o refugo.
            “isso porém não constituía nenhuma dificuldade para um escultor como Vampa. Examinou a coronha primitiva, calculou o que seria preciso modificar para a adaptar à sua vista e fez outra coronha carregada de ornamentos tão maravilhosos que se quisesse ir vendê-la à cidade lhe dariam certamente, só pela madeira, quinze ou vinte piastras.
            "Mas nem pela cabeça lhe passava fazer isso. Uma espingarda fora durante muito tempo o sonho do rapaz. Em lodos os países em que a independência substitui a liberdade a primeira necessidade que experimenta qualquer coração forte, qualquer organização poderosa, é a de possuir uma arma que assegure ao mesmo tempo o ataque e a defesa e que, tornando terrível aquele que a usa, o torne com frequência temido.
            "A partir daquele momento, Vampa dedicou todos os momentos livres a exercitar-se com a espingarda. Comprou pólvora e balas e tudo lhe serviu de alvo: o tronco da oliveira triste, enfezada e cinzenta que vegetava na vertente das montanhas da Sabine; a raposa que à tardinha saia do seu covil para começar
a sua caçada noturna, e a águia que planava no ar. Em breve se tornou tão hábil que Teresa perdeu o medo que experimentara ao princípio ao ouvir as detonações e divertiu-se a ver o seu jovem companheiro colocar a bala da espingarda onde queria, com tanta precisão como se fosse colocá-la com a mão.
            "Uma tarde, um lobo saiu efetivamente de um bosque de abetos junto do qual os dois jovens  costumavam instalar-se. Mas ainda não dera dez passos em campo aberto quando caiu morto.
            "Orgulhosíssimo do seu belo tiro, Vampa po-lo às costas e levou-o para a quinta.
            "Todas estas proezas davam a Luigi certa fama nos arredores da quinta. Onde quer que se encontre, o homem superior arranja uma clientela de admiradores. Nas redondezas falava-se do jovem pastor como o mais hábil, o mais forte e o mais bravo contadino de dez léguas em redor; e embora pela sua parte Teresa, e num círculo ainda mais vasto, passasse por uma das mais bonitas moças da Sabine, ninguém se atrevia a
dizer-lhe uma palavra de amor, porque a sabiam amada por Vampa.
            "E no entanto os dois jovens nunca tinham dito um ao outro que se amavam. Haviam crescido juntos como duas  árvores que confundem as suas raízes debaixo do chão, os seus ramos no ar e o seu perfume no céu. Apenas o seu desejo de se verem era o mesmo. Esse desejo tornara-se uma necessidade e por isso mais depressa aceitariam a morte do que um só dia de separação.
            "Teresa contava dezesseis anos e Vampa dezessete.
            "Por essa altura começou-se a falar com insistência numa quadrilha de bandidos que se organizava nos montes Lepini. O banditismo nunca foi seriamente extirpado dos arredores de Roma. às vezes faltam-lhe chefes, mas quando aparece um chefe é raro faltar-lhe uma quadrilha. 
            "O célebre Cucumetto, perseguido nos Abruzos e expulso do reino de Nápoles, onde sustentara uma verdadeira guerra, atravessara Garigliano como Manfredo e viera, entre Sonnino e Juperno, refugiar-se nas margens do Amasina.
            "Era ele quem se ocupava da organização da quadrilha e que seguia as pisadas de Decesaris e Gasparone, que esperava em breve ultrapassar. Vários rapazes de Palestrina, Frascati e Pampinara desapareceram. De início, as pessoas preocuparam-se com o seu desaparecimento, mas não tardou a saber-se que se tinham ido juntar à quadrilha de Cucumetto.
            "Passado algum tempo, Cucumetto tornou-se alvo das atenções gerais. Citavam-se por parte desse chefe de bandidos rasgos de audácia extraordinários e de revoltante brutalidade.
            "Um dia, raptou uma moça, filha do agrimensor de Frosinone. As leis dos bandidos são positivas: uma moça pertence primeiro àquele que a raptou e depois os outros tiram à sorte e a desgraçada tem de se submeter aos prazeres de toda a quadrilha até  os bandidos a abandonarem ou ela morrer.
            "Quando os pais são bastante ricos para a resgatar, mandam-lhe um mensageiro tratar do resgate. A cabeça da prisioneira responde pela segurança do emissário. Se o resgate é recusado, a prisioneira está irremediavelmente condenada.
            "A moça tinha um apaixonado na quadrilha de Cucumetto, chamado Carlini.
            "Ao reconhecer o rapaz, a jovem estendeu-lhe os braços e julgou-se salva. Mas o pobre Carlini, quando viu de quem se tratava, sentiu o coração despedaçado, pois não tinha quaisquer dúvidas acerca da sorte que esperava a amada.
            "No entanto, como era o favorito de Cucumetto, como havia três anos que compartilhava os seus perigos e como lhe salvara a vida abatendo a tiro de pistola um carabineiro que tinha já o sabre levantado sobre a cabeça do chefe, esperou que Cucumetto tivesse compaixão da moça.
            "Chamou portanto o chefe à parte, enquanto a jovem, sentada junto do tronco de um grande pinheiro que se erguia no meio de uma clareira da floresta, transformava em véu o toucado pitoresco das camponesas romanas e escondia o rosto aos olhares luxuriosos dos bandidos.
            "Carlini contou tudo ao chefe: os seus amores com a prisioneira, os seus juramentos de fidelidade, e como todas as noites, desde que se encontravam nos arredores, se namoravam numas ruínas.
            "Precisamente na noite do rapto, Cucumetto mandara Carlini a uma aldeia vizinha e ele não pudera comparecer ao encontro; mas Cucumetto passara por ali por acaso, segundo dissera, e fora então que raptara a jovem.
            "Carlini suplicou ao chefe que abrisse uma exceção a seu favor e respeitasse Rita, dizendo-lhe que o pai era rico e pagaria um bom resgate.
            "Cucumetto pareceu ceder às súplicas do amigo e encarregou-o de arranjar um pastor que pudessem mandar a casa do pai de Rita, em Frosinone.
            "Então, Carlini aproximou-se muito contente da moça, disse-lhe que estava salva e convidou-a a escrever uma carta ao pai contando-lhe o que lhe acontecera e comunicando-lhe que o seu resgate fora fixado em trezentas piastras.
            "Concediam ao pai apenas o prazo de doze horas, isto é, até  ao dia seguinte às nove horas da manhã. 
            "Escrita a carta, Carlini apoderou-se imediatamente dela e correu para a planície em busca de um mensageiro.
            "Encontrou um jovem pastor que recolhia o rebanho. Os mensageiros naturais dos bandidos são os pastores, que vivem entre a cidade e a montanha, entre a vida selvagem e a vida civilizada.
            "O jovem pastor partiu imediatamente, prometendo chegar antes de uma hora a Frosinone.
            "Carlini voltou para trás muito contente, disposto a ir ter com a amada e dar-lhe a boa nova.
            "Encontrou a quadrilha na clareira, onde ceava alegremente provisões que os bandidos exigiam aos camponeses como um tributo. Em Vão procurou Cucumetio e Rita no meio dos alegres convivas.
            "Perguntou onde estavam; os bandidos responderam com uma grande gargalhada. Um suor frio correu pela testa de Carlini e sentiu a angútia agarrá-lo pelos cabelos.
            "Repetiu a pergunta. Um dos convivas encheu um copo de vinho de Orvietto e estendeu-lhe dizendo:
            "- À saúde do bravo Cucumetto e da bela Rita!
            "Nesse momento Carlini julgou ouvir um grito de mulher. Adivinhou tudo. Pegou no copo, partiu-o no rosto do que lhe apresentava e correu na direção do grito.
            "Dados cem passos, atrás de uma moita, encontrou Rita desmaiada nos braços de Cucumetto.
            "Ao ver Carlini, Cucumetto levantou-se com uma pistola em cada mão.
            "Os dois bandidos olharam-se um instante. Um com o sorriso da luxúria nos lábios, o outro com a palidez da morte na fronte.
            "Diria-se ir acontecer entre os dois homens algo terrível.  Mas, pouco a pouco, o rosto de Carlini descontraiu-se, e a sua mão, que levara a uma das pistolas que trazia à cintura, largou-a e pendeu-lhe ao lado do corpo.
            "Rita estava deitada entre ambos.
            "O luar iluminava a cena.
            "- Então, fizeste o recado de que te encarregaste? - perguntou-lhe Cucumetto.
            "- Fiz, sim, capitão - respondeu Carlini –, e amanhã, antes das nove horas, o pai de Rita estará aqui com o dinheiro.
            "- Ótimo! Entretanto, vamos passar uma noite divertida. A moça é encantadora e não há dúvida que tens bom gosto, mestre Carlini. Por isso, como não sou egoísta, vamos voltar para junto dos camaradas e tirar à sorte a quem pertencerá agora.
            "- Assim, decidiu entregá-la à lei comum? - perguntou Carlini.
            "- E porque abriríamos exceção a seu favor?
            "- Julguei que o meu pedido...
            "- Que é você mais do que os outros?
            "- Tem razão.
            "- Mas sossegue - prosseguiu Cucumetto rindo –, mais tarde ou mais cedo a sua vez chegará.
            "Carlini apertou os dentes com força. 
            "- Vamos - disse Cucumetto, dando um passo na direção dos convivas. - Não vem?
            "- Já vou ...
            "Cucumetio afastou-se sem perder de vista Carlini, receando sem dúvida que o atacasse por trás. Mas nada no bandido denunciava uma intenção hostil
            "Estava de pé, com os braços cruzados, junto de Rita, que continuava desmaiada.
            "Por instantes Cucumetto pensou que o rapaz a tomasse nos braços e fugisse com ela. Mas isso pouco lhe importava agora; possuíra Rita, como pretendia, e quanto ao dinheiro, trezentas piastras divididas pela quadrilha eram tão pouco que não se importava muito perdê-las.
            "Continuou pois o seu caminho para a clareira. Mas com grande espanto seu Carlini chegou lá quase ao mesmo tempo que ele.
            “- A tiragem à sorte! A tiragem à sorte! - gritaram todos os bandidos ao verem o chefe.
            "e os olhos de todos aqueles homens brilharam de embriaguez e lascívia, enquanto as chamas da fogueira lançavam sobre as suas pessoa, um clarão avermelhado que os fazia parecer demônios.
            "O que pediam era justo. Por isso, o chefe fez um sinal com a cabeça, anunciando que aquiescia ao pedido. Meteram-se todos os nomes num chapéu, o de Carlini como os dos outros, e o mais novo da quadrilha tirou da urna improvisada um boletim.
            "o boletim tinha o nome de Diavolaccio.
            "Era o mesmo que propusera a Carlini o brinde à saúde do chefe e a quem Carlini respondera quebrando-lhe o copo no rosto.
            "Um grande ferimento aberto da têmpora à boca deixava correr o sangue aos borbotões.
            "Ao ver-se assim favorecido pela sorte, Diavolaccio soltou uma gargalhada.
            "- Capitão - disse –, há pouco, Carlini não quis beber à sua saúde. Convide-o agora a beber à minha, talvez seja mais condescendente consigo do que comigo.
            "Todos esperavam uma explosão da parte de Carlini; mas com grande surpresa de todos, pegou num copo e numa garrafa, encheu o copo e disse com voz perfeitamente calma:
            "- à tua saúde, Diavolaccio.
            "E bebeu o conteúdo do copo sem que a mão lhe tremesse. Depois sentou-se ao pé da fogueira e pediu:
            "- A minha parte da ceia! A corrida que acabo de fazer abriu-me o apetite.
            "- Viva Carlini! - gritaram os bandidos.
            "- Sim, senhor, isto é o que se chama levar as coisas como companheiro!
            "E todos refizeram o círculo à volta da fogueira, enquanto Diavolaccio se afastava.
            "Carlini comia e bebia como se nada se tivesse passado.
            "Os bandidos olhavam-no com espanto, sem compreenderem aquela impassibilidade, quando ouviram passos pesados ressoarem no chão atrás deles.
            "Viraram-se e viram Diavolaccio com a moça nos braços.
            "Ela tinha a cabeça inclinada para trás e os seus longos cabelos pendiam até  ao chão. 
            "À medida que entravam no círculo da luz projetada pela fogueira, notava-se cada vez mais a palidez da jovem e do bandido.
            "Aquela aparição tinha qualquer coisa de tão estranho e solene que todos se levantaram, exceto Carlini, que ficou sentado e continuou a comer e beber como se nada se passasse à sua volta.
            "Diavolaccio continuava a avançar no meio do mais profundo silêncio, e depositou Rita aos pés do capitão.
            "Então, todos verificaram a causa da palidez da jovem e do bandido: Rita tinha uma faca cravada até  ao cabo por baixo do seio esquerdo.
            "Todos os olhos se viraram para Carlini. A bainha que trazia à cintura estava vazia.
            "- Ah, ah! – exclamou o chefe. – Compreendo agora por que motivo Carlini ficou para trás.
            "Toda a natureza selvagem está apta a apreciar uma ação forte. Por isso, embora talvez nenhum dos bandidos fosse capaz de fazer o que fizera Carlini, todos compreenderam o seu ato.
            "- Vejamos – disse Carlini, levantando-se por sua vez e aproximando-se do cadáver com a mão na coronha de uma das suas pistolas –, ainda há alguém que me queira disputar esta mulher?
            "- Não – respondeu o chefe –, é tua!
            "Então, Carlini tomou-a por seu turno nos braços e levou-a para fora do círculo de luz que projetava a chama da fogueira.
            " Cucumetto dispôs as sentinelas como de costume e os bandidos deitaram-se envoltos nas suas capas à roda da fogueira.
            "À meia-noite, uma sentinela deu o alerta e num instante o chefe e os companheiros levantaram-se.
            "Era o pai de Rita, que vinha pessoalmente trazer o resgate da filha.
            "- Tome –disse a Cucumetto, estendendo-lhe uma bolsa de dinheiro. - Estão aí trezentas piastras, restitua-me a minha filha.
            "Mas o chefe, sem pegar o dinheiro, fez-lhe sinal para que o seguisse. O velho obedeceu. Ambos se afastaram para debaixo das árvores, através de cujos ramos se filtrava o luar. Por fim, Cucumetto deteve-se, estendeu a mão e indicou ao velho duas pessoas reunidas ao pé de uma árvore.
            "- Vê? – disse-lhe. – Pede a tua filha a Carlini, é ele que a tem de entregar.
            "E voltou para junto dos companheiros.
            "O velho ficou imóvel e com os olhos fixos. Pressentia que qualquer desgraça desconhecida, imensa, inaudita, lhe pairava sobre a cabeça.
            "Por fim, deu alguns passos para o grupo informe, que não conseguia identificar.
            "Ao ouvir o ruído que o velho fazia ao avançar ao seu encontro, Carlini levantou a cabeça e as formas das duas pessoas surgiram mais distintas aos olhos do velho.
            "Deitada no chão encontrava-se uma mulher, com a cabeça pousada nos joelhos de um homem sentado e inclinado sobre ela. Fora ao endireitar-se que o homem descobrira o rosto da mulher que apertava ao peito.
            "O velho reconheceu a filha e Carlini reconheceu o velho.
            "- Esperava-te – disse o bandido ao pai de Rita. 
            "Miserável! - gritou o velho. - O que você fez?
            "E olhava com terror Rita, pálida, imóvel, ensanguentada, com uma faca espetada no peito.
            "Um raio de luar batia nela e iluminava-a com uma luz baça.
            "- Cucumetto violou a tua filha - disse o bandido - e como eu a amava, matei-a. Porque depois dele iria servir de joguete de toda a quadrilha.
            "O velho não disse nada; apenas se tornou pálido como um espectro.
            "- Agora - disse Carlini - se fiz mal, vingue-a.
            "E arrancou a faca do seio da moça, levantou-se e foi oferecê-la com uma das mãos ao velho, enquanto com a outra afastava a jaqueta e lhe oferecia o peito nu.
            "- Fez bem - disse-lhe o velho, numa voz abafada. - Abraça-me meu filho.
            "Carlini lançou-se soluçando nos braços do pai da amada. Eram as primeiras lágrimas que vertia aquele homem sanguinário.
            "- Agora - disse o velho a Carlini - ajude-me a enterrar a minha filha.
            "Carlini foi buscar duas enxadas e o pai e o apaixonado abriram uma cova ao pé de um carvalho cujos ramos frondosos deveriam cobrir a sepultura da jovem.
            "Uma vez a cova aberta, o pai foi o primeiro a beijar a filha e depois o apaixonado. Em seguida, segurando-a um pelos pés e o outro pelos braços, desceram-na à cova.
            "Finalmente, ajoelharam-se um de cada lado e rezaram as orações dos mortos.
            "Quando terminaram, cobriram o cadáver de terra até  a cova ficar cheia.
            "Então, estendendo-lhe a mão, o velho disse a Carlini:
            "- Obrigado, meu filho! Agora, deixe-me sozinho.
            "- Mas...
            "- Deixe-me, te ordeno.
            "Carlini obedeceu, foi juntar-se aos camaradas, enrolou-se na sua capa e em breve pareceu tão profundamente  adormecido como os outros.
            "Na véspera decidira mudar-se de acampamento.
            "Uma hora antes de amanhecer, Cucumetto acordou os seus homens e deu ordem de partida.
            "Mas Carlini não quis deixar a floresta sem saber o que acontecera ao pai de Rita.
            "Dirigiu-se para o lugar onde o deixara.
            "Encontrou o velho enforcado num dos ramos do carvalho que sombreavam a sepultura da filha.
            "Fez então sobre o cadáver de um e a campa da outra o juramento de vingar ambos.
            "Mas não pode cumprir o juramento, porque dois dias mais tarde, num recontro com os carabineiros romanos, Carlini foi morto.
            "Simplesmente causou estranheza que, estando de frente para o inimigo, tivesse recebido uma bala entre as espáduas.
            "Mas a estranheza cessou quando um dos bandidos observou aos seus camaradas que Cucumetto se encontrava dez passos atrás de Carlini quando Carlini caíra.
            "Na manhã da partida da floresta de Frosinone, Cucumetto seguira Carlini na obscuridade, ouvira o juramento que ele fizera e, como homem precavido que era, antecipara-se. 
            "A respeito deste terrível chefe de quadrilha contavam-se mais dez histórias não menos curiosas do que esta.
            "Assim, de Fondi a Perúsia todos tremiam só de ouvir o nome de Cucumetto.
            "Tais histórias tinham sido muitas vezes tema de conversa entre Luigi e Teresa.
            "A moça tremia toda ao ouvi-las, mas Vampa tranquilizava-a com um sorriso, batendo na sua excelente
espingarda, cujas balas eram infalíveis. Depois, se nem mesmo assim a jovem sossegava, mostrava-lhe a cem passos algum corvo empoleirado num ramo morto, metia a arma à cara, premia o gatilho e o animal, atingido, caia ao pé da árvore.
            "Entretanto, o tempo ia passando. Os dois jovens tinham combinado casar-se quando tivessem Vampa vinte anos e Teresa dezenove.
            "Eram ambos órfãos, só tinham de pedir licença ao patrão e haviam-na pedido e obtido.
            "Um dia, quando conversavam acerca dos seus projetos de futuro, ouviram dois ou três tiros. Depois, de súbito, um homem saiu do bosque perto do qual os dois jovens costumavam fazer pastar os seus rebanhos e correu para eles.
            "Quando chegou ao alcance da voz, gritou:
            "- Sou perseguido! Podem-me esconder?
            "Os dois jovens adivinharam sem dificuldade que o fugitivo devia ser algum bandido; mas existe entre o camponês e o bandido romano uma simpatia inata que leva o primeiro a estar sempre pronto a ajudar o segundo.
            "Sem dizer nada, Vampa correu portanto para a pedra que vedava a entrada da sua gruta, descobriu essa entrada puxando a pedra para si, fez sinal ao fugitivo para se refugiar naquele asilo desconhecido de todos, empurrou a pedra para o se lugar e voltou a sentar-se ao pé de Teresa.
            "Quase imediatamente, apareceram na orla do bosque quatro carabineiros a cavalo. Três pareciam andar à procura do fugitivo, o quarto arrastava pelo pescoço um bandido prisioneiro.
            "Os três carabineiros exploraram o local num relance de olhos, viram os dois jovens, correram para eles a galope e interrogaram-nos.
            "Não tinham visto ninguém.
            "- É pena - disse o cabo –, porque o que procuramos é o chefe.
            "- Cucumetto?! - não puderam impedir-se de gritar ao mesmo tempo Luigi e Teresa.
            "- Sim - respondeu o cabo –, e como a sua cabeça estava posta a prêmio por mil escudos romanos, haveria quinhentos para vocês se nos ajudassem a prendê-lo.
            "Os dois jovens entreolharam-se. O cabo teve um instante de esperança. Quinhentos escudos romanos equivalem a três mil francos, e três mil francos eram uma fortuna para dois pobres órfãos que iam casar.
            "- Sim, é pena - respondeu Vampa –, mas não o vimos.
            "Então os carabineiros bateram o local em várias direções, mas inutilmente.
            "Depois, um após outro, desapareceram.
            "Então, Vampa tirou a pedra e Cucumetto saiu.
            "Este vira, através das frestas da porta de granito, os dois jovens falarem com os carabineiros, adivinhara o tema da conversa e lera no rosto de Luigi e de  Teresa a resolução inquebrantável de o não entregar. Por isso, tirou da algibeira uma bolsa cheia de ouro e ofereceu-a.
            "Mas Vampa ergueu a cabeça com orgulho; quanto a Teresa, os seus olhos brilharam ao pensar em tudo o que poderia comprar com aquele dinheiro: ricas jóias e lindos vestidos.
            "Cucumetto era um diabo muito hábil que tomara a forma de um bandido em vez de uma serpente. Surpreendeu aquele olhar, reconheceu em Teresa uma digna filha de Eva e reentrou na floresta virando-se várias vezes a pretexto de saudar os seus libertadores.
            "Passaram-se vários dias sem que ninguém visse Cucumetto nem se ouvisse falar dele.
            "O Carnaval aproximava-se. O conde de San-Felice anunciou um grande baile de máscaras, para o qual tudo o que Roma tinha de mais elegante foi convidado.
            "Teresa queria muito ver o baile. Luigi pediu ao seu protetor, o intendente, licença para ambos assistirem escondidos entre os criados da casa. A licença foi concedida.
            "O conde dava o baile sobretudo para ser agradável a sua filha Carmela, que adorava.
            "Carmela era precisamente da idade e da estatura de Teresa, e Teresa era pelo menos tão bela como Carmela.
            "Na noite do baile, Teresa pôs o seu mais bonito vestido, as suas mais ricas agulhetas e os seus mais brilhantes vidrilhos. Usava o traje das mulheres de Frascati.
            "Luigi envergava o traje tão pitoresco do camponês romano em dias de festa.
            "Ambos se misturaram, como lhes fora permitido, com os criados e os camponeses.
            "A festa estava magnífica Não só o palácio se encontrava feericamente iluminado, como também se viam milhares de lanternas coloridas suspensas das árvores do jardim. Por isso, em breve os convidados transbordaram do palácio para os terraços e dos terraços para as alamedas.
            "Em cada cruzamento havia uma orquestra, bufetes e refrescos. Os passeantes detinham-se, formavam-se quadrilhas e dançava-se onde apetecia dançar.
            "Carmela envergava o traje das mulheres de Sonino: touca bordada a pérolas, presa ao cabelo por alfinetes de ouro e diamantes, faixa de seda turca com grandes flores bordadas, saia de caxemira e avental de musselina da índia. Os botões do corpete eram de pedras preciosas.
            "Duas das suas companheiras estavam vestidas, uma de mulher de Netuno e a outra de mulher da Riccia.
            "Acompanhavam-nas quatro jovens das mais ricas e nobres famílias de Roma, com essa liberdade italiana que não tem igual em nenhum outro pais do mundo. Envergavam pela sua parte os trajes dos camponeses de Albano, de Velletri, de Civita-Castellana e de Sora.
            "Escusado ser  dizer que esses trajes de camponeses, assim como os das camponesas, resplandeciam de ouro e pedrarias.
            "Carmela lembrou-se de fazer uma quadrilha uniforme; simplesmente, faltava-lhe uma mulher.
            "Carmela olhava à sua volta, mas não via nenhuma convidada com um traje semelhante ao seu e ao das suas companheiras. 
            "O conde de San-Felice mostrou-lhe, no meio das camponesas, Teresa apoiada no braço de Luigi.
            "- Dá licença, meu pai? - perguntou Carmela.
            "- Sem dúvida - respondeu o conde. - Não estamos no Carnaval?
            “- Carmela inclinou-se para um rapaz que a acompanhava conversando e disse-lhe algumas palavras, ao mesmo tempo que lhe indicava com o dedo a moça.
            “O jovem seguiu com a vista a bonita mão que lhe servia de condutora, fez um gesto de obediência e foi convidar Teresa a figurar na quadrilha dirigida pela filha do conde.
            "Teresa sentiu como uma labareda passar-lhe pelo rosto. Interrogou Luigi com a vista; não havia maneira de recusar. Luigi deixou deslizar lentamente o braço de Teresa, que segurava no seu, e Teresa afastou-se conduzida pelo seu elegante cavalheiro e foi tomar lugar, toda trêmula, na quadrilha aristocrática.
            "Claro que aos olhos de um artista o verdadeiro e severo traje de Teresa terio rostoter muito diferente do de Carmela e das suas companheiras. Mas Teresa era uma moça frívola e vaidosa. Os bordados da musselina, as palmas da faixa e o brilho da caxemira deslumbravam-na, assim como o reflexo das safiras e dos diamantes a enlouquecia.
            "Pela sua parte, Luigi sentia nascer em si um sentimento desconhecido. Era como que uma dor surda que primeiro lhe mordia o coração e daí, tremente, lhe corria pelas veias e se lhe apoderava de todo o corpo. Seguia com a vista os menores movimentos de Teresa e do seu par, e quando as suas mãos se tocavam sentia como que deslumbramentos, as suas artérias latejavam com violência e vibrar-lhe aos ouvidos o som de um sino. Quando falavam, embora Teresa escutasse, tímida e de olhos baixos, as palavras do par, Luigi lia nos olhos ardentes do rapaz que essas palavras eram louvores, parecia-lhe que o chão girava debaixo de si e que todas as vozes do Inferno lhe sussurravam idéias de morte e assassínio. Então, temendo se deixar empolgar pela sua loucura, agarrava-se com uma das mãos ao bordo a que estava encostado de pé e com a outra apertava convulsivamente o punhal de cabo esculpido que trazia à cintura e que sem dar por isso tirava
às vezes quase por completo da bainha.
            "Luigi tinha ciúmes! Sentia que levada pela sua natureza vaidosa e orgulhosa Teresa lhe poderia fugir.
            "Entretanto, a jovem camponesa a princípio tímida e quase amedrontrada depressa se recompusera. Dissemos que Teresa era bonita. Não dissemos tudo: Teresa era graciosa, mas possuía era graça bravia muito mais poderosa do que a nossa graça dengosa e afetada.
            "Teve quase as honras da quadrilha. E se invejou a filha do conde de San-Felice, ousamos dizer que Carmela a não invejou a ela.
            "Por isso, foi com muitos cumprimentos que o seu belo par a reconduziu ao lugar onde a fora buscar e esperava Luigi.
            "Duas ou três vezes, durante a contradança, a moça lhe deitara uma olhadela e de todas as vezes o vira pálido e de rosto crispado. Uma vez até  a lâmina do seu punhal, meio tirado da bainha, cegara-a como um relâmpago sinistro.
            "foi pois quase trêmula que retomou o braço do amado. 
            "A quadrilha obtivera o maior êxito e era evidente que todos desejavam fazer segunda edição. Só Carmela se opunha a isso. Mas o conde de San-Felice insistiu com a filha tão ternamente que ela acabou por consentir.
            "Imediatamente um dos cavalheiros se adiantou para convidar Teresa, sem a qual era impossível a contradança realizar-se, mas a moça já desaparecera.
            "Com efeito, Luigi não se sentira com coragem para suportar segunda prova; e meio por persuasão, meio à força, arrastara Teresa para outro ponto do jardim. Teresa cedera muito a seu pesar; mas vira o rosto transtornada do rapaz e compreendera, pelo seu silêncio entrecortado de estremecimentos nervosos, que algo estranho se passava nele. Ela própria não estava isenta da agitação interior, e embora nada tivesse feito de mal, compreendia que Luigi tinha o direito de a censurar. A respeito de quê? Ignorava-o, mas nem por isso sentia menos que as censuras seriam merecidas.
            "Todavia, com grande espanto de Teresa, Luigi ficou calado e nem uma palavra lhe entreabriu os lábios durante todo o resto da noite. Somente quando o frio noturno expulsou os convidados do jardim e as portas do palácio se voltaram a fechar para eles, pois a partir dali a festa ia continuar, mas lá dentro, ao acompanhar Teresa a casa, lhe perguntou quando ele ia a entrar:
            "- Teresa, em que pensavas quando dançavas diante da jovem condessa de San-Felice?
            "- Pensava - respondeu a moça com toda a franqueza da sua alma - que daria metade da minha vida para ter um vestido como o que ela trazia.
            "- E que te dizia o teu par?
            "- Dizia-me que só de mim dependia possuí-lo e que para o ter me bastaria dizer uma palavra.
            "- E tinha razão - respondeu Luigi. - Deseja-o tão ardentemente como dizes?
            "- Desejo.
            "- Pois bem, o terás!
            "Atônita, a moça levantou a cabeça para o interrogar; mas o rosto de Luigi tinha uma expressão tão terrível e sombria que as palavras lhe gelaram nos lábios.
            "De resto, depois de dizer o que dissera, Luigi retirara-se.
            "Teresa seguiu-o com a vista na noite, enquanto o pode distinguir. Depois, quando ele desapareceu, entrou em casa suspirando.
            "Nessa mesma noite declarou-se um grande incêndio, devido, sem dúvida, à imprudência de algum criado que se esquecera de apagar as luzes. O fogo apoderou-se do Palácio San-Felice precisamente a partir dos aposentos da linda Carmela. Acordada no meio da noite pelo clarão das chamas, a jovem saltara da cama, envolvera-se no roupão e tentara fugir pela porta. Mas a galeria por onde teria de passar era já pasto das chamas. Então, regressara ao quarto e desatara a pedir socorro em altos gritos, quando de súbito a janela, situada a vinte pés do solo, se abrira, um jovem camponês entrara correndo no quarto, tomara-a nos braços e, com uma energia e um desembaraço sobre-humanos, transportara-a para a relva do jardim, onde ela perdera os sentidos. Quando voltou a si, o pai estava diante dela e todos os criados a rodeavam, ansiosos para socorre-la. Ardera uma ala inteira do palácio. Mas que importava, se Carmela estava sã e salva? 
            "Procuraram por toda a parte o seu salvador, mas não o encontraram. Perguntaram por ele a toda a gente, mas ninguém o vira. Quanto a Carmela, estava tão assustada que não o reconhecera.
            "De resto, como o conde era imensamente rico, excetuando o perigo que Carmela correra e que lhe pareceu, dada a forma miraculosa como lhe escapara, mais um novo favor da Providência do que uma verdadeira desgraça, a perda ocasionada pelas chamas pouco representou para ele.
            "No dia seguinte, à hora habitual, os dois jovens encontraram-se na orla da floresta. Luigi fora o primeiro a chegar. Foi ao encontro da moça muito bem disposto, como se tivesse esquecido por completo a cena da véspera. Teresa estava visivelmente pensativa; mas ao ver Luigi assim bem disposto, afetou pela sua parte a despreocupação risonha que constituía o fundo do seu caracter quando qualquer paixão o não perturbava.
            "Luigi tomou Teresa pelo braço e conduziu-a até  à porta da gruta. Aí, deteve-se. Compreendendo que havia algo extraordinário, a moça olhou fixamente.
            " Teresa – disse Luigi –, ontem à noite disseste-me que darias tudo no mundo para ter um vestido semelhante ao da filha do conde...
            "- Pois disse - respondeu Teresa, atônita. - Mas estava louca para manifestar semelhante desejo.
            "- E eu respondi-te: "Pois bem, o terá!"
            "- É verdade - admitiu a jovem, cujo espanto aumentava a cada palavra de Luigi. - Mas decerto respondeste isso para me ser agradável.
            "- Nunca te prometi nada que te não desse, Teresa - perguntou orgulhosamente Luigi. - Entra na gruta e vista-se.
            "Ditas estas palavras, puxou a pedra e mostrou a Teresa a gruta iluminada por duas velas que ardiam de cada lado de um espelho magnífico. Em cima da mesa rústica, feita por Luigi, encontravam-se expostos o colar de pérolas e os alfinetes de diamantes, e numa cadeira ao lado encontrava-se o resto do traje.
            "Teresa soltou um grito de alegria e, sem se informar de onde viera aquele traje nem perder tempo a agradecer a Luigi, correu para a gruta transformada em gabinete de vestir.
            "Luigi correu a pedra atrás dela, porque acabava de ver, no alto de uma colina que impedia que do lugar onde estava se visse Palestrina, um viajante a cavalo que se deteve um instante como que hesitante no seu caminho e se recortou no azul do céu com a nitidez de contornos característica dos longes dos países meridionais.
            "Ao ver Luigi, o viajante meteu o cavalo a galope e foi ao seu encontro.
            "Luigi não se enganara: o viajante, que se dirigia de Palestrina para Tivoli, estava hesitante no caminho.
            "O rapaz indicou-lhe. Mas como a um quarto de milha dali a estrada se dividia em três caminhos e, chegado ai, o viajante se pudesse perder novamente, pediu a Luigi que lhe servisse de guia.
            "Luigi tirou a capa e colocou-a no chão, pôs o rostobina ao ombro e, liberto assim da pesada peça de vestuário, seguiu à frente do viajante com o passo rápido do montanhos que o passo de um cavalo dificilmente acompanha.
            "Em dez minutos, Luigi e o viajante chegaram à espécie de encruzilhada indicada pelo jovem pastor. 
            "Uma vez aí, num gesto majestoso como o de um imperador, Luigi estendeu a mão para aquela das três estradas que o viajante devia seguir.
            "- Aqui tem o seu caminho, Excelência - disse-lhe. - Agora já não tem nada que se enganar.
            "- E você aqui tem a sua recompensa - disse o viajante, oferecendo ao jovem pastor algumas moedas de pouco valor.
            "- Obrigado – disse Luigi, retirando a mão. – Presto um favor, não o vendo.
            "- Mas – disse o viajante, que parecia de resto habituado à diferença entre o servilismo do homem das cidades e o orgulho do camponês –, se recusa um salário aceita ao menos um presente?
            "- Aceito, isso é diferente.
            “- Então - disse o viajante –, toma estes dois sequins de Veneza e os de à sua noiva para fazer uns brincos.
            "- E o senhor tome este punhal - disse o jovem pastor. - De Albino a Civita-Castellana não encontrará  outro cujo punho esteja melhor esculpido.
            "- Aceito - respondeu o viajante. - Mas assim sou eu que te fico em dívida, pois este punhal vale mais do que dois sequins.
            "- Para um comerciante, talvez; mas para mim, que o esculpi, vale apenas uma piastra.
            "- Como se chamas? - perguntou o viajante.
            "- Luigi Vampa - respondeu o pastor, com o mesmo ar com que responderia: "Alexandre, rei da Macedônia." - E o senhor?
            "- Eu - respondeu o viajante - chamo-me Simbad, o Marinheiro.
            Franz de Epinay soltou um grito de surpresa.
            - Simbad, o Marinheiro! - exclamou.
            - Sim - confirmou o narrador. - Foi o nome que o viajante deu a Vampa como sendo o seu.
            - Mas afinal você tem alguma coisa contra esse nome? -  perguntou Albert ao amigo. - É um belíssimo nome, e as aventuras do patrão desse cavalheiro divertiram-me muito, confesso, na minha adolescência.
            Franz não insistiu mais. Como bem se compreende, o nome de Simbad, o Marinheiro, despertara nele um mundo de recordações, como na véspera o do conde de Monte-Cristo.
            - Continue - pediu ao hoteleiro.
            -Vampa meteu desdenhosamente os dois sequins na algibeira e retomou lentamente o caminho por onde viera. Chegado a duas ou três centenas de passos, da gruta, julgou ouvir um grito.
            "Parou e escutou para saber de que lado vinha esse grito.
            "Passado um segundo, ouviu o seu nome pronunciado distintamente.
            "O apelo vinha ao lado da gruta.
            "Saltou como um cabrito-montês, armou a espingarda enquanto corria e chegou em menos de um minuto ao alto da colina oposta àquela em que vira o viajante.
            "Ali os gritos de "Socorro!" chegaram-lhe ainda mais distintos.
            "Relanceou, a vista pelo espaço que dominava: um homem raptava Teresa como o centauro Nesso raptara Dejanira. 
            "Esse homem, que se dirigia para o bosque, encontrava-se já a três quartos do caminho entre a gruta e a floresta.
            "Vampa calculou a distância. O homem tinha duzentos passos de avanço sobre ele, pelo menos, e não havia possibilidade de apanhá-lo antes de chegar ao bosque.
            "O jovem pastor deteve-se como se os seus pés tivessem criado raízes. Encostou a coronha da espingarda ao ombro, levantou lentamente o cano na direção do raptor, seguiu-o um segundo na corrida e disparou.
            "O raptor parou bruscamente, os joelhos dobraram-se-lhe e o homem caiu arrastando Teresa na queda.
            "Mas Teresa levantou-se imediatamente. Quanto ao fugitivo, ficou caído, debatendo-se nas convulsões da agonia.
            "Vampa correu para Teresa, porque, a dez passos do moribundo, as pernas também lhe tinham faltado e a jovem caíra de joelhos. O rapaz tinha o receio terrível de que a bala que abatera o inimigo tivesse ao mesmo tempo ferido a noiva.
            "Felizmente, nada disso acontecera, fora apenas o terror que paralisara as forças de Teresa. Quando Luigi teve a certeza de que estava sã e salva, virou-se para o ferido.
            "Acabava de expirar, com os punhos fechados, a boca contraída pela dor e os cabelos eriçados sob o suor da agonia.
            "Os olhos tinham-lhe ficado abertos e ameaçadores.
            "Vampa, aproximou-se do cadáver e reconheceu Cucumetto.
            "Desde o dia em que o bandido fora salvo pelos dois jovens, ficara apaixonado por Teresa e jurara que a moça seria sua. A partir desse dia, espiara-a. E, aproveitando o momento em que o rapaz a deixara sozinha para indicar o caminho ao viajante, raptara-a e julgava-se já senhor dela quando a bala de Vampa, guiada pela pontaria infalível do jovem pastor, lhe traspassara o coração.
            "Vampa, olhou-o um instante sem a menor emoção, enquanto Teresa, pelo contrário, ainda toda trêmula, não ousava aproximar-se do bandido morto senão em passinhos curtos e deitava hesitante uma olhadela ao cadáver por cima do ombro do amado.
            "Passado um instante, Vampa virou-se para a noiva e disse:
            - Ah, ah, já está vestida!... Vou vestir-me também.
            - Com efeito, Teresa trazia, da cabeça aos pés, o traje da filha do conde de San-Felice.
            "Vampa, pegou no corpo de Cucumetto e levou-o para a gruta, enquanto Teresa ficava de fora.
            "Se tivesse passado segundo viajante, veria uma coisa estranha: uma pastora a guardar as suas ovelhas com um vestido de caxemira, brincos e um colar de pérolas, alfinetes de diamantes e botões de safiras, esmeraldas e rubis.
            "Sem dúvida se julgaria regressado ao tempo de Floriano e afirmaria, ao regressar a Paris, que encontrara a pastora dos Alpes sentada ao pé dos montes Sabinos.
            "Passado um quarto de hora, Vampa saiu por sua vez da gruta. O seu traje não era menos elegante, no seu gênero, do que o de Teresa.
            "Trazia uma jaqueta de veludo carmesim, com botões de ouro cinzelado, colete de seda todo coberto de bordados, um lenço romano atado ao pescoço,  uma cartucheira toda adornada de ouro e seda encarnada e verde, calções de veludo azul-celeste presos por baixo do joelho com fivelas de diamantes, polainas de pele de gamo adornadas com mil arabescos coloridos e chapéu onde adejavam fitas de todas as cores. Pendiam-lhe da cintura dois relógios e trazia entalado na cartucheira um magnífico punhal.
            "Teresa soltou um grito de admiração. Assim vestido, Vampa lembrava um quadro de Leopold Robert ou de Schnetz.
            "Envergara o traje completo de Cucumetto.
            "O rapaz notou o efeito que produzia sobre a noiva e um sorriso de orgulho entreabriu-lhe a boca.
            "- Agora - perguntou a Teresa –, está pronta a compartilhar a minha sorte qualquer que ela seja?
            "- Estou! - gritou a moça com entusiasmo.
            “- A seguir-me para toda a parte onde for?
            "- Até  ao fim do mundo.
            "- Então, toma o meu braço e partamos, porque não temos tempo a perder.
            "A moça passou o braço pelo do noivo sem sequer lhe perguntar para onde a levava. Naquele momento, parecia-lhe belo, orgulhoso e forte como um deus.
            "E ambos se dirigiram para a floresta, cuja orla transpuseram ao cabo de poucos minutos.
            "Não é necessário  dizer que Vampa conhecia todos os caminhos da montanha. Penetrou portanto na floresta sem hesitar um só instante, embora não houvesse nenhum carreiro aberto, mas orientando-se apenas no caminho que devia seguir pelo exame das árvores e das moitas. Caminharam assim hora e meia,
aproximadamente.
            "Ao fim desse tempo encontravam-se na parte mais densa do bosque. O leito de um rio seco conduzia a uma garganta profunda. Vampa tomou esse estranho caminho que, apertado entre duas margens e escurecido pela sombra espessa dos pinheiros, parecia, exceto na facilidade da descida, o caminho do Averno de que fala Virgílio.
            "Teresa ficou atemorizada com o aspecto daquele local selvagem e deserto e chegou-se mais para o seu guia sem dizer palavra. Mas como o via caminhar sempre com o mesmo passo e uma calma profunda lhe iluminasse o rosto, ela própria acabou por conseguir dissimular a sua emoção.
            "De súbito, a dez passos deles, um homem pareceu destacar-se de uma árvore atrás da qual se encontrava escondido e apontou a arma a Vampa.
            "- Nem mais um passo ou morre! - gritou.
            "- Pois sim - respondeu Vampa, levantando a mão num gesto de desprezo, enquanto Teresa, já sem esconder o seu terror, se apertava contra ele. Porque os lobos também se comem uns aos outros!...
            "- Quem é? - perguntou a sentinela.
            "- Luigi Vampa, pastor da quinta de San-Felice.
            "- Que quer?
            "- Falar com os teus companheiros que estão na clareira de Rocca Bianca.
            "- Então, segue-me - disse a sentinela. - Ou antes, como sabe onde fica a clareira, vai à frente. 
            "Vampa sorriu com ar de desprezo da precaução do bandido, passou para a frente com Teresa e continuou o seu caminho com o mesmo passo firme e tranquilo que o trouxera até  ali.
            "Ao cabo de cinco minutos, o bandido mandou-os parar.
            "Os dois jovens obedeceram.
            "O bandido imitou três vezes o grasnar do corvo.
            "Outro grasnido respondeu ao triplo chamamento
            "- Pronto - disse o bandido – , agora pode seguir.
            "Luigi e Teresa recomeçaram a andar.
            "Mas à medida que avançavam, mais Teresa, trêmula, se apertava contra o noivo. Com efeito, através das  árvores viam-se aparecer armas e cintilar canos de espingarda.
            "A clareira de Rocca Bianca ficava no alto de uma pequena montanha que noutros tempos fora sem dúvida um vulcão, vulcão extinto antes de Rômulo e Remo deixarem Alba para vir edificar Roma.
            "Teresa e Luigi chegaram ao cimo e encontraram-se no mesmo instante diante de uma vintena de bandidos.
            "- Este rapaz quer falar com vocês - disse a sentinela.
            "- Que tem para nos dizer? - perguntou o que, na ausência do chefe, o substituía.
            "- Quero dizer que estou farto da profissão de pastor - declarou Vampa.
            "- Ah, compreendo! - disse o lugar-tenente. - E vem pedir-nos para ser admitido nas nossas fileiras?
            "- Que seja bem-vindo! - gritaram vários bandidos de Ferrusino, Pampinara e Anagni, que tinham reconhecido Luigi Vampa.
            "- Pois sim, simplesmente venho pedir-lhes outra coisa diferente de ser mais um companheiro.
            "- Que vem nos pedir? - perguntaram os bandidos, espantados.
            "- Venho pedir para ser vosso capitão - respondeu o rapaz.
            "Os bandidos desataram a rir.
            "- E o que fez para aspirar a essa honra? - inquiriu o lugar-tenente.
            "- Matei o seu chefe Cucumetto (aqui está o seu espólio) e coloquei fogo no palácio de San-Felice para dar um vestido de casamento à minha noiva - respondeu Luigi.
            "Uma hora depois, Luigi Vampa era eleito capitão em substituição de Cucumetto.
            – Então, meu caro Albert - disse Franz, virando-se para o amigo –, que pensa agora do cidadão Luigi Vampa?
            - Digo que é um mito - respondeu Albert - e que nunca existiu.
            - Que é um mito? - perguntou Pastrini.
            - Isso levaria muito tempo para explicar, meu caro anfitrião - respondeu Franz. - E diz que mestre Vampa exerce neste momento a sua profissão nos arredores de Roma?
            - E com uma audácia de que nenhum bandido antes dele deu o exemplo.
            - Quer dizer que a Polícia tentou em vão prendê-lo?
            - Que quer, ele está feito ao mesmo tempo com os pastores da planície, os pescadores do Tibre e os contrabandistas da costa! Se o procuram na montanha, está no rio; se o perseguem no rio, vai para o mar; depois, de repente, quando o  julgam refugiado na ilha do Ciglio, do Guanouti ou de Monte-Cristo, vêem-no reaparecer em Albano, em Tívoli ou na Riccia.       
            - E qual é a sua maneira de proceder com os viajantes?
            - Oh, meu Deus, é muito simples! Conforme a distância a que se encontram da cidade, dá-lhes oito horas, doze horas ou um dia para pagarem o resgate. Passado esse tempo, concede mais uma hora de espera. Ao sexagésimo minuto dessa hora, se não chegou o dinheiro, estoura os miolos do prisioneiro com um tiro de pistola, ou crava-lhe o punhal no coração, e está tudo arrumado.
            - Então, Albert, continua disposto a ir ao Coliseu pelos bulevares exteriores? - perguntou Franz ao companheiro.
            - Absolutamente - respondeu Albert –, desde que o caminho seja mais pitoresco.
            Neste momento, deram nove horas, a porta abriu-se e o cocheiro apareceu.
            - Excelências - anunciou –, a carruagem os espera.
            - Bom - disse Franz –, nesse caso para o Coliseu!
            - Pela Porta del Popolo, Excelências, ou pelas ruas?
            - Pelas ruas, com a breca, pelas ruas! - gritou Franz.
            - Ah, meu caro, julgava-o mais corajoso! - exclamou Albert, levantando-se por seu turno e acendendo o seu terceiro charuto.
            Em seguida, os dois jovens desceram a escada e meteram-se na carruagem.

 Capítulo XXXIV

Aparição


            Franz encontrara um meio termo para que Albert chegasse ao Coliseu sem passar diante de nenhuma ruína antiga e, consequentemente, sem que as preparações graduais roubassem ao colosso um único côvado das suas gigantescas proporções. Esse meio-termo consistia em seguir a Via Sistinia, cortar à direita defronte de Santa Maria Maior e chegar pela Via Urbana e San Pietro in Vincoli à Via del Colosseo.
            Este itinerário oferecia Aliás outra vantagem: o de não distrair em nada Franz da impressão produzida em si pela história que contara mestre Pastrini e na qual se encontrava metido o seu misterioso anfitrião de Monte-Cristo. Por isso aninhara-se no seu canto e recaíra nos mil interrogatórios sem fim a que ele próprio se submetera e dos quais nem um lhe dera resposta satisfatória.
            Outra coisa, de resto, lhe recordara também o seu amigo Simbad, o Marinheiro: as misteriosas relações entre os bandidos e os marinheiros. O que mestre Pastrini dissera acerca do refúgio que Vampa encontrava nas embarcações dos pescadores e dos contrabandistas, lembrava a Franz os dois bandidos corsos que encontrara a cear com a tripulação do iatezinho, o qual se desviara da sua rota e demandara
Porto-Vecchio apenas para os desembarcar. O nome que se dava ao seu anfitrião de Monte-Cristo, pronunciado pelo dono do Hotel de Espanha, provava-lhe que desempenhava o mesmo papel
filantrópico tanto nas costas de Piombino, de Civita-Vecchia, de óstia e de Gaeta, como nas  de Córsega, da Toscana e da Espanha. E como ele próprio, tanto quanto se recordava Franz, falara de Tunes e de Palermo, isso era a prova de que abarcava um círculo de relação bastante extenso.
            Mas por mais que todas estas reflexões incluíssem no espírito do jovem, desvaneceram-se quando viu erguer-se diante de si o fantasma sombrio e gigantesco do Coliseu, através de cuias aberturas o luar projetava os longos e pálidos raios que expelem os olhos dos espectros. A carruagem deteve-se a poucos
passos da Mesa Sudans. O cocheiro veio abrir a portinhola. os dois jovens apearam-se e encontraram-se diante de um cicerone que parecia ter acabado de sair do chão.
            Como o do hotel os seguira, com mais aquele eram dois.
            Impossível, de resto, evitar em Roma o luxo dos guias. Além do cicerone geral que se apodera de nós no momento em que pomos o pé na soleira da porta do hotel, e que só nos larga no dia em que pomos o pé fora da cidade, há ainda um cicerone especial ligado a cada monumento, e eu diria quase a cada fração de
monumento. Imagine-se portanto como pulularão os cicerones no Coliseu, isto é, no monumento por excelência, acerca do qual dizia Marcial: “Que Mênfis deixe de nos gabar os bárbaros milagres das suas pirâmides, que se não cantem mais as maravilhas da Babilônia. Tudo deve ceder perante a obra imensa
do anfiteatro dos Césares e todas as vozes da I ama se devem reunir para elogiar este monumento."
            Franz e Albert não tentaram sequer subtrair-se à tirania ciceroniana. De resto, isso seria tanto mais difícil quanto é certo serem apenas os guias quem tem direito a percorrer o monumento com archotes. Não opuseram pois nenhuma resistência e entregaram-se de pés e mãos amarrados aos seus condutores.
            Franz conhecia o passeio por já o ter feito dez vezes. Mas como o companheiro, mais novo, punha pela primeira vez o pé no monumento de Flávio Vespasiano, devo confessar em sua honra que, apesar do cacarejo ignorante dos seus guias, estava muitíssimo impressionado. Efetivamente, não se faz idéia, antes de a ver, da majestade de semelhante ruína, em que todas as proporções são ainda aumentadas pela misteriosa claridade de um luar meridional cujos raios parecem um crepúsculo do Ocidente.
            Por isso, assim que Franz, o pensador, deu cem passos debaixo dos pôrticos interiores, abandonou Albert aos seus guias, que não estavam dispostos a renunciar ao direito imprescritível de lhe mostrar em todos os seus pormenores a cova dos leões, as instalações dos gladiadores e o pódio dos Césares, meteu por uma escada semiarruinada e, deixando-o continuar o seu caminho simétrico, foi-se muito simplesmente sentar à sombra de uma coluna, diante de uma meia-lua que lhe permitia abarcar o gigante de granito em toda a sua majestosa extensão.
            Franz encontrava-se ali havia um quarto de hora aproximadamente, oculto, como já disse, na sombra de uma coluna, entretido a observar Albert que, acompanhado dos seus dois porta-archotes, acabava de sair de um vomitorium situado na outra extremidade do Coliseu, e os quais, como as sombras que acompanham um fogo-fátuo, desciam de degrau em degrau para os lugares reservados às vestais, quando lhe pareceu ouvir rolar nas profundezas do monumento uma pedra solta da escada situada defronte da que tomara para chegar ao local onde estava sentado. Não tem nada de estranho, sem dúvida, que uma pedra se solte debaixo do pé do tempo e role no abismo; mas desta vez   parecia-lhe que fora aos pés de um homem que a pedra cedera e que um ruído de passos chegava até  ali, embora aquele que o ocasionava fizesse tudo o que podia para os abafar.
            Com efeito, passado um instante, apareceu um homem que saiu gradualmente da sombra à medida que subia a escada, cuja abertura, situada defronte de Franz, era iluminada pelo luar, mas cujos degraus desapareciam nas trevas à medida que se desciam.
            Poderia ser um turista como ele que preterisse a meditação solitáia à tagarelice sem sentido dos seus guias, e portanto a sua aparição nada ter de surpreendente; mas a hesitação com que subiu os últimos degraus e a forma como, chegado à plataforma, parou e pareceu escutar, denotavam com evidência que estava ali com um fim especial e esperava alguém.
            Num gesto instintivo, Franz escondeu-se o mais que pode atrás da coluna.
            A dez pés do pavimento onde ambos se encontravam a abôbada estava danificada e uma abertura redonda, semelhante à de um poço, permitia ver o céu todo constelado de estrelas.
            À roda da abertura, que talvez desse havia já centenas de anos passagem aos raios do luar, cresciam silvas cujas frágeis folhas verdes se recortavam e salientavam, com vigor no azul baço do firmamento, enquanto grandes cipós e pujantes rebentos de hera pendiam daquele terraço superior e se agitavam debaixo da abóbada como cordas flutuantes.
            A personagem cuja chegada misteriosa atraíra a atenção de Franz encontrava-se colocada numa meia-luz que lhe não permitia distinguir-lhe as feições, mas que mesmo assim não era suficientemente escura para o impedir-lhe de examinar em pormenor a indumentária. O sujeito estava envolto numa grande capa escura da qual um dos panos, atirado por cima do ombro esquerdo, lhe ocultava a parte inferior do rosto, enquanto o chapéu de abas largas lhe cobria a parte superior. Apenas a extremidade da sua indumentária era iluminada pela luz oblíqua que passava pela abertura, o que permitia divisar calças pretas que caiam elegantemente sobre botas de verniz.
            Aquele homem pertencia, evidentemente, senão à aristocracia, pelo menos à alta sociedade.
            Estava ali havia alguns minutos e começava a dar visíveis sinais de impaciência quando se ouviu um leve ruído no terraço superior.
            No mesmo instante, uma sombra interceptou a luz, um homem apareceu na abertura, mergulhou o olhar penetrante nas trevas e viu o homem da capa. Agarrou imediatamente um punhado de cipós pendentes e de hera flutuante, deixou-se escorregar e, chegado a três ou quatro pés do chão, saltou ligeiramente para terra. O recém-chegado envergava um traje completo de habitante do Trastevere.
            - Desculpe tê-lo feito esperar, Excelência  - disse em dialeto romano. - Aliás, atrasei-me apenas alguns minutos. Acabam de dar dez horas em S. João de Latrão.
            - Eu é que cheguei adiantado e não você que chegou atrasado - respondeu o desconhecido no mais puro toscano. - Portanto, deixemos de desculpas. De resto, se me fizesse esperar estou certo de que seria por motivo independente da sua vontade. 
            - E teria razão, Excelência. Venho do Castelo de Santo Angelo e tive muita dificuldade em falar com Beppo.
            - Quem é esse Beppo?
            - Beppo é um funcionário da prisão a quem pago uma pequena subvenção para saber o que se passa dentro do castelo de Sua Santidade.
            - Ah, ah, vejo que é homem precavido, meu caro!...
            - Nunca se sabe o que pode acontecer, Excelência. Talvez um dia me apanhem na rede com o pobre Peppino e precise de um rato para me roer algumas malhas da minha prisão...
            - Em suma, o que soube?
            - Haverá duas execuções na terça-feira às duas horas, como é hábito em Roma quando do início de grandes festas. Um condenado será mazzolato. Trata-se de um miserável que assassinou um padre que o criou e que não merece qualquer interesse. O outro será decapitato, e esse é o pobre Peppino.
            - Que quer, meu caro, inspira tão grande terror não só ao governo pontifício, como também aos reinos vizinhos, que pretendem absolutamente dar um exemplo.
            - Mas Peppino nem sequer pertenceu à minha quadrilha. É um pobre pastor que apenas cometeu o crime de nos fornecer víveres.
            - O que o constituiu perfeitamente em seu cúmplice. Por isso, têm alguma consideração com ele: em vez de o fustigarem, como acontecerá consigo se alguma vez lhe puserem as mãos em cima, se limitarão a guilhotiná-lo. De resto, isso variará os prazeres do povo e haverá  espetáculo para todos os gostos.
            - Sem contar com o que organizo e pelo qual ninguém espera - acrescentou o trastevenano.
            - Meu caro amigo, permita-me que lhe diga que me parece disposto a cometer alguma tolice - observou o homem da capa.
            - Estou disposto a tudo para impedir a execução do pobre diabo, que está em apuros por ter me ajudado. Pela Madona, me consideraria um covarde se não fizesse qualquer coisa pelo pobre rapaz!
            - Que tenciona fazer?
            - Colocarei uns vinte homens à roda do cadafalso e quando o trouxerem, a um sinal que darei, nos atiraremos de punhal em punho à escolta e nos apoderaremos dele.
            - Isso parece-me muito arriscado e creio decididamente que o meu plano é melhor do que o seu.
            - Qual é o seu plano, Excelência?
            - Darei dez mil piastras a uma determinada pessoa que conheço e que conseguirá que a execução de Peppino seja adiada para o próximo ano. Depois, durante o ano, darei mais mil piastras a outra pessoa que conheço e farei com que ele fuja da prisão.
            - Tem certeza que não falhará?
            - Claro! - respondeu em francês o homem da capa.
            - Que disse? - perguntou o trasteveriano.
            - Disse, meu caro, que conseguirei mais sozinho com o meu ouro do que você e toda a sua gente com os seus punhais, as suas pistolas, as suas carabinas e os seus bacamartes. Deixe-me portanto agir.
            - A vontade! Mas se falhar, estaremos prontos para  intervir. 
            - Estejam prontos para intervir, se isso lhes dá prazer, mas lhe garanto que obterei o adiamento.
            - A execução será depois de amanhã, terça-feira, não se esqueça. Só dispõe do dia de amanhã.
            - Claro. Mas o dia compõe-se de vinte e quatro horas, cada hora de sessenta minutos e cada minuto de sessenta segundos; e em oitenta e seis mil e quatrocentos segundos fazem-se muitas coisas.
            - Como saberemos se for bem sucedido, Excelência?
            - De uma maneira muito simples. Aluguei as três últimas janelas do Café Rospoli. Se obtiver o adiamento, as duas janelas do canto estarão forradas de damasco amarelo e a do meio estará  forrada de damasco branco com uma cruz vermelha.
            - Muito bem. E por quem mandará entregar a graça?
            - Mande-me um dos seus homens disfarçado de penitente e a entregarei. Graças ao seu traje, poderá  chegar junto do cadafalso e entregar a bula ao chefe da confraria, que a entregará ao carrasco. Entretanto, faça chegar esta notícia a Peppino, não vá morrer de medo ou enlouquecer e faremos por ele uma despesa inútil.
            - Escute Excelência - disse o trasteveriano. - Sou-lhe muito dedicado e creio que está convencido disto, não é verdade?
            - Espero-o, pelo menos.
            - Pois bem, se salvar Peppino, será mais do que dedicação no futuro, será obediência.
            - Cuidado com o que diz, meu caro! Talvez lhe recorde um dia, pois talvez um dia também eu precise de você...
            - Nesse caso, Excelência, me encontrará na hora da necessidade, tal estou certo de que o encontraria nessa mesma hora. Então, ainda que estivesse nos confins do mundo, não teria mais do que escrever-me: “Faça isto!" e eu o faria, palavra de...
            - Cale-se! - atalhou o desconhecido. - Ouvi um ruído.
            - São turistas que visitam o Coliseu à luz de archotes.
            - É inútil que os encontrem juntos. Esses guias denunciantes poderiam reconhecê-lo, e por muito honrosa que seja a sua amizade, meu caro amigo, se nos soubessem ligados como estamos receio muito que semelhante ligação me fizesse perder um bocadinho do meu crédito.
            - Portanto, se conseguir o adiamento...
            - A janela do meio forrada de damasco com uma cruz vermelha.
            - E se o não conseguir?...
            - Três tapeçarias amarelas.
            - E nesse caso...
            - E nesse caso, meu caro amigo, sirva-se do punhal à sua vontade. Permito-lhe e estarei lá  para ve-lo atuar.
            - Adeus, Excelência. Conto com o senhor, conte comigo.
            Ditas estas palavras, o trasteveriano desapareceu pela escada, enquanto o desconhecido, cobrindo mais do que nunca o rosto com a capa, passou a dois passos de Franz e desceu à arena pelos degraus exteriores.
            Um segundo mais tarde, Franz ouviu o seu nome ecoar debaixo das abóbadas: era Albert quem o chamava.  Esperou para responder que os dois homens se afastassem, pois não queria que soubessem que tinham tido uma testemunha que, embora lhes não tivesse visto o rosto, não perdera uma palavra do seu diálogo.
            Dez minutos depois, Franz rodava para o Hotel de Espanha, escutando com uma distração deveras impertinente a douta dissertação que Albert fazia, segundo Plínio e Calpúrnio, acerca das redes guarnecidas de pontas de ferro que impediam as feras de se atirar aos espectadores.
            Deixava-o falar sem contradize-lo. Tinha pressa de se encontrar sozinho para pensar sem que o distraíssem no que acabava de acontecer na sua presença.
            Dos dois homens, um era-lhe certamente estranho, era a primeira vez que o via e ouvia, mas o mesmo não acontecia com o outro. E embora Franz lhe não pudesse ver o rosto, constantemente oculto na sombra ou escondido pela capa, o timbre daquela voz impressionara-o tanto da primeira vez que a ouvira que ela nunca mais poderia soar sem que a reconhecesse.
            Havia sobretudo nas intonações irônicas qualquer coisa de estridente e metálico que o fizera estremecer tanto nas ruínas do Coliseu como na gruta de Monte-Cristo.
            Por isso, estava absolutamente convencido de que aquele homem não era outro senão Simbad, o Marinheiro.
            Por isso, em qualquer outra circunstância, a curiosidade que lhe inspirara aquele homem seria tão grande que não hesitaria em se dar a conhecer. Mas naquela ocasião a conversa que acabava de ouvir era demasiado íntima para que o não contivesse o receio, muito sensato, de que o seu aparecimento lhe não seria agradável. Deixara-o portanto afastar-se, como vimos, mas prometendo a si próprio, se o voltasse a encontrar, não deixar fugir essa segunda oportunidade como deixara fugir a primeira.
            Franz estava demasiado preocupado para dormir bem. Gastou a noite passando e repassando no seu espírito todas as circunstâncias relacionadas com o homem da gruta e o desconhecido do Coliseu, e que tendiam a fazer das duas personagens o mesmo indivíduo. E quanto mais Franz pensava nisso, tanto mais se firmava nesta opinião.
            Adormeceu ao amanhecer, o que fez com que acordasse muito tarde. Albert, como verdadeiro parisiense que era, já tomara as suas precauções para a noite e começara por mandar comprar um camarote no Teatro Argentina.
            Franz tinha de escrever várias cartas para a França e cedeu portanto a carruagem a Albert.
            Albert regressou às cinco horas. Apresentara as suas cartas de recomendação, obtivera convites para todas as festas e visitara Roma.
            Um dia bastara a Albert para fazer tudo isso. E ainda tivera tempo de se informar da peça que se
representava e dos Atores que a desempenhariam.
            A peça tinha por título Parisina e os Atores chamavam-se Coselli, Moriani e Spech.
            Os nossos dois jovens não eram tão infelizes como julgavam: iam assistir à representação de uma das melhores operas do autor de Lucia di Lammermoor, interpretada por três dos mais famosos artistas da Itália.
            Albert nunca conseguira habituar-se aos teatros ultramontanos, cujos lugares de orquestra eram insuportáveis, e que não têm balcões nem frisas. Era duro para  um homem que tinha a sua assinatura na ópera Cômica e o seu lugar no camarote infernal da ópera Dramática.
            Mas isso não impedia Albert de se vestir a primor todas as vezes que ia à ópera com Franz. Primores desperdiçados, pois é mister reconhecer, para vergonha de um dos mais dignos representantes da nossa moda, que desde que há quatro meses cruzava a Itália em todos os sentidos, Albert não tivera uma única aventura.
            Às vezes, Albert procurava gracejar a tal respeito; mas no fundo estava singularmente mortificado por ele, Albert de Morcef, um dos jovens mais requisitados, ainda não ter visto o seu esforço recompensado. O caso era tanto mais penoso quanto é certo que, segundo o hábito modesto dos nossos caros compatriotas, Albert partira de Paris com a convicção de ir obter na Itália os maiores êxitos e de no regresso fazer as
delícias do Buievard de Gand com a história das suas aventuras.
            Infelizmente, nada semelhante acontecera. As encantadoras condessas genovesas, florentinas e napolitanas estavam presas, não aos maridos, mas sim aos amantes, e Albert adquirira a cruel convicção de que as italianas tinham pelo menos sobre as francesas a vantagem de serem fiéis na sua infidelidade.
            Não quero dizer que na Itália, como em toda a parte, não haja exceções.
            E contudo Albert era não só um cavalheiro perfeitamente elegante, mas também um homem de muito espírito. Além disso, era visconde. Visconde da nova nobreza, é certo. Mas hoje, que não nos prendemos com essas ninharias, que importa que a nobreza remonte a 1399 ou a 1815? Ainda por cima, tinha cinquenta mil libras de rendimento. Como se verifica, era mais do que o preciso para estar na moda em Paris. Daí portanto ser um bocadinho humilhante não ter ainda sido seriamente notado por ninguém em nenhuma das cidades por onde passara.
            Contava, porém, desforrar-se em Roma, visto o Carnaval ser, em todos os países da Terra que celebravam tão estimável instituição, uma época de liberdade em que os mais sisudos se deixam arrastar a cometer qualquer ato de loucura. Ora, como o Carnaval começava no dia seguinte, era importantíssimo que
Albert iniciasse o seu programa antes do Carnaval começar.
            Com essa intenção comprara um dos camarotes mais em evidência do teatro e vestira-se impecavelmente para assistir ao espetáculo. Era um camarote de primeira ordem, que substitui entre nós a galeria. De resto, as três primeiras ordens são tão aristocráticas umas como outras e por esse motivo lhe
chamam ordens nobres.
            Aliás o camarote, onde caberiam doze pessoas sem ficarem apertadas custara aos dois amigos um bocadinho menos caro do que um camarote de quatro pessoas no Ambigu. Albert tinha ainda outra esperança: conseguir lugar no coração de uma bela romana, o que levaria, naturalmente, à conquista de um posto na carruagem da dama e consequentemente a ver o Carnaval do alto de um veículo aristocrático ou de uma varanda principesca.
            Todas estas considerações tornavam Albert mais impaciente do que nunca. Virava as costas aos atores, debruçava-se a ponto de deitar meio corpo fora do camarote e analisava todas as mulheres bonitas com um binóculo de seis polegadas de comprimento... o que não levava nem uma só mulher bonita a
recompensar com um único olhar, mesmo de curiosidade, todo o esforço despendido por Albert.
            Efetivamente, cada qual falava dos seus negócios, dos seus amores, dos seus prazeres, do Carnaval que principiaria no dia seguinte e da próxima Semana Santa, sem prestar atenção um só instante, nem aos Atores nem à peça, com exceção dos momentos indicados, em que então todos se viravam, quer para
ouvir uma porção do recitativo de Coselli, quer para aplaudir qualquer rasgo brilhante de Moriani, quer para gritar “Bravo!" à Spech. Depois, as conversas particulares retomavam o seu curso habitual.
            Quase no fim do primeiro ato a porta de um camarote que se conservara vazio até  ali abriu-se e Franz viu entrar uma pessoa a quem tivera a honra de ser apresentado em Paris e que julgava ainda na França. Albert notou o gesto que fez o amigo a essa aparição e, virando-se para ele, perguntou-lhe:
            - Conhece aquela dama?
            - Conheço. Como a acha?
            - Encantadora, meu caro, e loura. Oh, que cabelos adoráveis! É francesa?
            - Não, é venesiana.
            - E chama-se?
            - Condessa G...
            - Oh, conheço-a de nome! - exclamou Albert. - Dizem que tem tanto de espiritual como de bonita. Com a breca, quando penso que lhe podia ter sido apresentado no último baile da Sra de Villefort, onde ela estava, e que descurei isso!... Sou um parvalhão!
            - Quer que repare essa falta? - perguntou Franz.
            - Como, tem suficiente intimidade com ela para me levar ao seu camarote?
            - Tive a honra de lhe falar três ou quatro vezes na minha vida. Mas como sabe‚ rigorosamente o  bastante para não cometer uma inconveniência.
            Neste momento a condessa viu Franz e fez-lhe com a mão um sinal gracioso a que ele correspondeu com uma respeitosa inclinação de cabeça.
            - De fato, parece-me que você está nas melhores relações com ela - disse Albert.
            - Aí é que você se engana e é isso que nos leva, a nós Franceses, a cometer mil tolices no estrangeiro. Queremos submeter tudo aos nossos pontos de vista parisienses. Na Espanha, e sobretudo na Itália, nunca julgue a intimidade das pessoas pela liberdade das relações. Tenho certas afinidades com a condessa, mas mais nada.
            - Afinidades de coração? - perguntou Albert, rindo.
            - Não, apenas de espírito - respondeu seriamente Franz.
            - Quando as contraíram?
            - No momento de uma visita ao Coliseu idêntica à que fizemos juntos.
            - Ao luar?
            - Sim.
            - Sozinhos?
            - Quase!
            - E falaram...
            - Dos mortos. 
            - Oh, aí está, na verdade, um assunto deveras divertido! - exclamou Albert. - Pois eu lhe juro que se tiver a sorte de ser o cavalheiro da bela condessa em semelhante visita, só lhe falarei dos vivos.
            - E talvez faça mal.
            - Entretanto, vai-me apresentar a ela como me prometeu?
            - Assim que o pano desça.
            - Como este maldito primeiro Ato é longo!
            - Escute o final. É muito belo e Coselli canta-o admiravelmente.
            - Pois sim; Mas que elegância!
            - A Spech não pode ser mais dramática.
            - Bom, deve compreender que depois de ouvirmos a Sontag e a Malibran...
            - Não acha que Moriani tem uma voz excelente?
            - Não gosto dos morenos que cantam como louros.
            - Meu caro - disse Franz virando-se, enquanto Albert continuava de binóculo em punho –, na verdade você é muito exigente.
            Por fim o pano desceu, com grande satisfação do visconde de Morcef, que pegou o chapéu, passou rapidamente a mão pelo cabelo, pela gravata e pelos punhos da camisa e disse a Franz que estava à sua espera.
            E como pelo seu lado a condessa, que Franz interrogava com a vista, lhe deu a entender por um sinal que seria bem-vindo, Franz apressou-se a satisfazer a insistência de Albert e, seguido do companheiro, que aproveitava a viagem para alisar as rugas que o seu irrequietismo pudesse ler posto no colarinho e no forro da casaca, deu a volta ao hemiciclo e foi bater à porta do camarote 4, ocupado pela condessa.
            Imediatamente o jovem que estava sentado ao lado dela, à frente do camarote, se levantou e cedeu o seu lugar, conforme o hábito italiano, ao recém-chegado, que o deveria ceder por seu turno quando chegasse outra visita.
            Franz apresentou Albert à condessa como um dos nossos jovens mais distintos pela sua posição social e pelo seu espírito, o que de resto era verdade, porque em Paris e no meio onde vivia Albert era um cavalheiro impecável. Acrescentou que, desesperado por não ter sabido aproveitar a estada da condessa
em Paris para lhe ser apresentado, Albert o encarregara de reparar essa falta, missão desempenhava suplicando à condessa, junto a qual ele próprio necessitaria de um introdutor, que perdoasse a sua indiscrição.
            A condessa respondeu com um encantador cumprimento a Albert e estendeu a mão a Franz.
            Convidado por ela, Albert ocupou o lugar vazio à frente do camarote e Franz sentou-se na segunda fila, atrás da condessa. Albert descobriu um excelente tema de conversa: Paris. Falou à condessa dos seus conhecimentos comuns e Franz compreendeu que estava nas suas sete quintas. Deixou-o à vontade, pediu-lhe o gigantesco binóculo e pôs-se por seu turno a explorar a sala.
            Sozinha à frente de um camarote de terceira ordem, defronte deles, estava uma mulher admiravelmente bela, envergando um traje grego, que usava tão naturalmente que era evidente ser sua indumentária natural.
            Atrás dela, na sombra, desenhava-se a silhueta de um homem cujo rosto era impossível distinguir. 
            Franz interrompeu a conversa de Albert e da condessa para perguntar a esta última se conhecia a bela albanesa, tão digna de atrair não só a atenção dos homens, mas também das mulheres.
            - Não - respondeu ela. - Tudo o que sei é que está em Roma desde o início da estação, porque na abertura do teatro vi-a onde está agora e há um mês que não falta a nenhum recital, ora acompanhada pelo homem que está com ela neste momento, ora seguida simplesmente por um criado negro.
            - Como a acha, condessa?
            - Muitíssimo bonita. Medora devia parecer-se com ela.
            Franz e a condessa trocaram um sorriso. Ela voltou à sua conversa com Albert e Franz a observar com o binóculo a sua albanesa.
            O pano subiu para o bailado. Era um desses bons corpos de dança italianos, ensaiados e encenados pelo famoso Henri, que como coreógrafo conquistara em Itália fama colossal, que infelizmente para ele acabara por perder no teatro náutico; um desses corpos de baile onde todos, desde a primeira figura até  ao último comparsa, toma parte tão ativa na ação que cento e cinquenta pessoas fazem ao mesmo tempo o mesmo gesto e levantam simultaneamente o mesmo braço ou a mesma perna.
            O bailado chamava-se Poliska.
            Franz estava demasiado interessado na sua bela grega para dar importância ao bailado, por mais interessante que fosse. Quanto a ela, encontrava visível prazer no espetáculo, prazer que contrastava profundamente com o desinteresse absoluto daquele que a acompanhava e que, enquanto durou a obra-prima coreográfica, não fez um gesto, parecendo, apesar do barulho infernal das trombetas, dos címbalos e das campainhas da orquestra, saborear as doçuras celestes de um sono calmo e radioso.
            Por fim o bailado terminou e o pano desceu no meio dos aplausos frenéticos de uma platéia inebriada.
            Graças ao hábito de dividir a ópera com um bailado, os intervalos são curtíssimos na Itália. Os cantores têm tempo para descansar e mudar de traje enquanto os bailarinos executam as suas piruetas e saltos de dança.
            Começou a abertura do segundo Ato. Aos primeiros acordes de violino, Franz viu o dorminhoco levantar-se lentamente e aproximar-se da grega, que se virou para lhe dirigir algumas palavras e se encostou de novo à balaustrada do camarote. O rosto do seu interlocutor continuava na sombra e Franz não podia distinguir nenhuma das suas feições.
            O pano subiu. A atenção de Franz foi inevitavelmente atraída para os Atores e os seus olhos afastaram-se por um instante do camarote da bela grega e dirigiram-se para o palco.
            O Ato principia, como se sabe, pelo duo do sonho: Parisina, deitada, deixa escapar diante de Azzo o segredo do seu amor por Ugo. O marido atraiçoado passa por todos os furores do ciúme, até  que, convencido de que a mulher lhe é infiel, a acorda para lhe anunciar a sua vingança.
            Este dueto é dos mais belos, expressivos e terríveis que saíram da pena fecunda de Donizetti. Franz ouvia-o pela terceira vez e, embora não fosse um melômano entusiasta, causou-lhe profunda impressão. Ia portanto juntar os seus aplausos aos da sala quando as suas mãos, prestes a juntarem-se, ficaram afastadas e o “Bravo!" que lhe escapava da boca lhe morreu nos lábios.
            O homem do camarote pusera-se de pé e ficara com a cabeça iluminada, de modo que Franz reconheceu nele o misterioso habitante de Monte-Cristo, aquele de quem na véspera lhe parecera tão bem reconhecer a figura e a voz nas ruínas do Coliseu.
            Não havia dúvida: o estranho viajante estava em Roma.
            Decerto a expressão da seu rosto estava de harmonia com a perturbação que semelhante aparição lhe lançara no espírito, pois a condessa olhou-o, desatou a rir e perguntou-lhe o que tinha.
            - Sra Condessa - respondeu-lhe Franz –, perguntei-lhe se há pouco se conhecia aquela mulher albanesa; agora pergunto-lhe se conhece o marido.
            - Tanto como ela - respondeu a condessa.
            - Nunca reparou nele?
            - Ora aí está uma pergunta à francesa! Sabe muito bem que para nós italianas não existe outro homem no mundo além do que amamos!
            - Tem razão - concordou Franz.
            - Em todo o caso - continuou ela aplicando o binóculo de Albert aos olhos e dirigindo-o para o camarote fronteiro -, deve ser algum novo desterrado, algum morto saído da sepultura com licença do coveiro, pois parece-me horrivelmente pálido.
            - Sempre o vi assim - disse Franz.
            - Isso quer dizer que o conhece? - inquiriu a condessa. -  Então, sou eu que lhe pergunto quem é.
            - Creio já o ter visto e parece-me reconhecê-lo.
            - De fato - disse ela, fazendo um movimento com os belos ombros, como se tivesse um arrepio –, compreendo que depois de se ver uma vez semelhante homem nunca mais se esqueça.
            A sensação que Franz experimentara não era portanto uma  impressão particular, uma vez que outra pessoa também a experimentava.
            - Então - perguntou Franz à condessa, depois de levar pela segunda vez o binóculo aos olhos - que pensa do nosso homem?
            - Parece-me Lorde Ruthwen em carne e osso.
            Esta alusão a Byron impressionou Franz. Com efeito, se um homem o podia fazer acreditar na existência de vampiros, esse homem era aquele.
            - Tenho de saber quem é - disse Franz, levantando-se.
            - Oh, não! - exclamou a condessa. - Não me deixe. Conto com você para me acompanhar até em casa e não permito que saia daqui.
            - Como, é verdade que tem medo? - perguntou-lhe Franz ao ouvido?
            - Ouça - respondeu ela –, Byron jurou-me que acreditava em vampiros, disse-me que os vira e descreveu-me o seu rosto. Pois bem, são exatamente assim: cabelo preto, grandes olhos brilhantes, como se neles ardesse uma chama estranha, palidez mortal... Além disso, note que não está com uma mulher como
todas as mulheres, está com uma estrangeira... uma grega, uma cismática... sem dúvida alguma feiticeira como ele. Peço-lhe, não vá embora. Dedique-se amanhã às suas investigações, se quiser, mas hoje não o deixo sair daqui.
            Franz insistiu. 
            - Ouça - disse ela levantando-se –, vou embora. Não posso ficar até  ao fim do espetáculo, tenho a casa cheia de gente. Será tão pouco galante que me recuse a sua companhia?
            Não havia outra resposta a dar a não ser pegar no chapéu, abrir a porta e oferecer o braço à condessa. Foi o que ele fez.
            A condessa estava realmente muito impressionada, e o próprio Franz não conseguia afugentar certo terror supersticioso, tanto mais natural quanto é certo que o que era na condessa o produto de uma sensação instintiva, era nele o resultado de uma recordação.
            Franz sentiu que ela tremia ao subir para a carruagem. Acompanhou-a a casa. Não havia ninguém nem era de modo algum esperada. Franz mostrou-lhe o seu desagrado.
            - Na verdade - respondeu-lhe ela –, não me sinto bem e quero estar só. A vista desse homem perturbou-me muito.
            Franz tentou gracejar.
            - Não ria - disse-lhe ela. - Aliás, está rindo sem vontade. Prometa-me uma coisa.
            - O quê?
            - Prometa-me.
            - Prometo-lhe tudo o que quiser exceto renunciar a descobrir quem é aquele homem. Tenho motivos que lhe posso revelar para desejar saber quem é, de onde vem e para onde vai.
            - De onde vem, ignoro-o; mas para onde vai, posso dizer-lhe: vai para o Inferno sem dúvida nenhuma.
            - Voltemos à promessa que queria exigir de mim, condessa - disse Franz.
            - Oh, consiste em regressar diretamente ao hotel e não procurar ver esse homem esta noite! Há certas afinidades entre as pessoas que deixamos e as pessoas que procuramos. Não sirva de condutor entre esse homem e mim. Amanhã, corra atrás dele, se quiser; mas nunca me apresente, se não quiser fazer-me morrer de medo. E agora, boa noite. Procure dormir. Eu sei que não conseguirei pregar o olho.
            Ditas estas palavras, a condessa deixou Franz, que ficou indeciso, sem saber se ela estivera divertindo-se às suas custas, ou se realmente sentira o medo que dissera ter.
            No regresso ao hotel, Franz encontrou Albert de roupão e pijama, voluptuosamente recostado numa poltrona e fumando um charuto.
            - Ah, é você! - disse-lhe. - Palavra que só o esperava amanhã.
            - Meu caro Albert - respondeu Franz –, ainda bem que tenho oportunidade de lhe dizer de uma vez para sempre que tem a mais falsa das idéias a respeito das mulheres italianas. Parece-me no entanto que as suas desilusões amorosas deveriam ter-lha feito perder.
            - Que quer, essas mulheres endiabradas são impossíveis de compreender! Pegam-nos na mão, apertam-na, falam-nos baixinho, convidam-nos a acompanhá-las a casa... enfim, com um quarto de
semelhante maneira de proceder uma parisiense perderia a reputação. 
            - Bom, precisamente por não terem nada a esconder e viverem às claras é que as mulheres são tão livres no belo país onde ressoa o si, como diz Dante. Aliás, você bem viu que a condessa estava realmente cheia de medo.
            - Medo de quê? Do respeitável cavalheiro que estava defronte de nós com aquela bonita grega? Pois eu quis vê-los de perto e quando saíram cruzei-me com eles no corredor. Não sei onde diabo vocês foram buscar todas essas idéias do outro mundo! Trata-se de um homem simpatissíssimo e muito elegante, com
todo o ar de se vestir na França, no Blin ou no Humann. Um bocadinho pálido, é verdade, mas você bem sabe que a palidez é um sinal de distinção.
            Franz sorriu. Albert tinha grandes pretensões de ser pálido.
            - Por isso - disse-lhe Franz –, estou convencido de que as idéias da condessa acerca desse homem não têm sentido. Falou ao pé de si e você ouviu algumas das suas palavras?
            - Falou, mas em grego moderno. Reconheci o idioma por algumas palavras desfiguradas. Devo dizer-lhe, meu caro, que no colégio era fortíssimo em grego.
            - Portanto falava grego moderno?
            - É provável.
            - Não tenho qualquer dúvida - murmurou Franz –, é ele.
            - O que você disse?
            - Nada. Que fazia você aqui?
            - Preparava-lhe uma surpresa.
            - Qual?
            - Sabe que é impossível arranjar uma caleça?
            - Olha que descoberta! Então não fizemos inutilmente tudo o que era humanamente possível fazer para arranjá-la?
            - Pois bem, tenho uma idéia maravilhosa.
            Franz olhou para Albert como se não tivesse grande confiança na sua imaginação.
            - Meu caro - observou Albert –, honra-me com um olhar que merecia bem que lhe pedisse uma reparação.
            - Estou pronto a dar-lhe, caro amigo, se a idéia for tão engenhosa como diz.
            - Escute.
            - Estou escutando.
            - Não há meio de se arranjar carruagem, não é verdade?
            - É.
            - Nem cavalos?
            - Também não.
            - Mas podemos arranjar uma carroça...
            - Talvez.
            - E uma junta de bois...
            - É provável.
            - Pois, meu caro, temos o problema resolvido! Mandarei decorar a carroça, vestimo-nos de ceifeiros napolitanos e representamos ao natural o magnífico quadro de Léopold Robert. Se, para maior semelhança, a condessa concordasse a usar o traje de uma mulher de Pouzzole ou de Sorrento, isso completaria a mascarada, e ela é bastante bonita para a tomarem pelo original da Femme   l'enfant. 
            - Por Deus, desta vez tem razão, Sr. Albert! - exclamou Franz.
            - É uma idéia verdadeiramente original.
            - E muito nacionalista, inspirada nos reis indolentes, meu caro, nada mais, nada menos! Ah, Srs. Romanos, julgavam que íamos correr a pé pelas suas ruas, como lazzaroni, por não terem caleças e cavalos?... Pois bem, os inventaremos!
            - Já contou a alguém essa idéia genial?
            - Ao nosso hoteleiro. Quando entrei, mandei chamá-lo e expus-lhe os meus desejos. Garantiu-me que não havia nada mais fácil. Eu queria mandar dourar os cornos dos bois, mas ele me disse que para isso seriam precisos três dias. Teremos portanto de passar sem essa ninharia.
            - Onde está ele?
            - Quem?
            - O nosso hoteleiro?
            - À procura do que pretendemos. Amanhã talvez fosse já um bocadinho tarde.
            - De forma que nos dará resposta ainda esta noite?
            - Assim espero.
            Neste momento a porta abriu-se e mestre Pastrini meteu a cabeça.
            - Permesso? - pediu.
            - Claro que pode entrar! - exclamou Franz.
            - Então, arranjou-nos a carroça e os bois que pretendíamos? - perguntou Albert.
            - Arranjei melhor do que isso - respondeu o hoteleiro, com ar de quem está plenamente satisfeito consigo mesmo.
            - Calma, meu caro anfitrião - observou Albert. - Olhe que o ótimo é inimigo do bom.
            - Confiem em mim, Excelências - perguntou mestre Pastrini em tom convicto.
            - Mas, enfim, que há? - perguntou Franz por seu turno.
            - Sabem - disse o hoteleiro - que o conde de Monte-Cristo ocupa o mesmo andar que os senhores?
            - Sabemos - respondeu Albert –, pois é graças a ele que estamos instalados como dois estudantes da Rua Saint-Nicolas-du-Chardounet.
            - Pois sabendo da dificuldade em que se encontram, manda oferecer-lhes dois lugares na sua carruagem e dois lugares nas suas janelas do Palácio Rospoli.
            Albert e Franz entreolharam-se.
            - Mas - perguntou Albert - deveremos aceitar a oferta desse estrangeiro, de um homem que não conhecemos?
            - Que homem é esse conde de Monte-Cristo? - perguntou Franz ao hoteleiro.
            - Um grandíssimo fidalgo siciliano ou maltês, não sei ao certo, mas nobre como um Borghese e rico como uma mina de ouro.
            - Parece-me - observou Franz a Albert - que se esse homem tivesse tão boas maneiras como diz o nosso hoteleiro, deveria enviar-nos o seu convite de outra maneira, quer escrevendo-nos, quer...
            Neste momento bateram à porta.
            - Entre - disse Franz.
            Um criado de libré perfeitamente elegante apareceu à entrada do quarto. 
            - Da parte do conde de Monte-Cristo para o Sr. Franz de Epinay e para o Sr. Visconde Albert de Morcerf - disse.
            E apresentou ao hoteleiro duas cartas que este entregou aos jovens.
            - O Sr. Conde de Monte-Cristo - continuou o criado - manda pedir a esses senhores licença para se apresentar como vizinho amanhã de manhã nos seus aposentos. Ele terá a honra de se informar junto desses senhores a que horas estarão visíveis.
            - Palavra - disse Albert a Franz –, não há nada a reprovar-lhe. Está tudo certo.
            - Diga ao conde - respondeu Franz ao criado - que seremos nós que teremos a honra de visitá-lo.
            O criado retirou-se.
            - Ora aí está o que se chama rivalizar em cortesia - observou Albert. - Decididamente, tinha razão, mestre Pastrini: o seu conde de Monte-Cristo é um homem de inexcedível correção.
            - Então aceitam a sua oferta? - perguntou o hoteleiro.
            - Claro que aceitamos - respondeu Albert. - Confesso-lhes no entanto que tenho pena da nossa carroça e dos ceifeiros, e se não houvesse a janela do Palácio Rospoli para compensar o que perdemos, creio que voltaria à minha primeira idéia. Que diz a isto, Franz?
            - Digo que são também as janelas do Palácio Rospoli que me decidem - respondeu Franz a Albert.
            Com efeito, a oferta de dois lugares a uma janela do Palácio Rospoli recordara a Franz a conversa que ouvira nas ruínas do Coliseu entre o desconhecido e o trasteveriano, conversa durante a qual o homem da capa se comprometera a obter o adiamento da execução do condenado. Ora, se o homem da capa era, como tudo levava Franz a crer, o mesmo cuja aparição na sala do Argentina tanto o impressionara, o reconheceria sem dúvida nenhuma e então nada o impediria de satisfazer a sua curiosidade a seu respeito.
            Franz passou parte da noite sonhando com as suas duas aparições e desejando que amanhecesse. Com efeito, no dia seguinte tudo se esclareceria. E desta vez, a não ser que o seu anfitrião de Monte-Cristo possuísse o anel de Giges e, graças a esse anel, a faculdade de se tornar invisível, era evidente que não lhe escaparia. Por isso, acordou antes das oito horas.
            Quanto a Albert, como não tinha os motivos de Franz para madrugar, dormia ainda a sono solto.
            Franz mandou chamar o hoteleiro, que se apresentou com a sua obsequiosidade habitual.
            - Mestre Pastrini - perguntou-lhe –, não deve haver hoje uma execução?
            - Deve, Excelência. Mas se me pergunta isso para ter uma janela, lembrou-se muito tarde.
            - Não - respondeu Franz. - Aliás, se tivesse muito empenho em assistir a esse espetáculo, creio que arranjaria lugar no monte Píncio.
            - Oh, supus que Vossa Excelência não quisesse misturar-se com toda essa canalha no que é de certo modo o anfiteatro natural das execuções!
            - É provável que não vá - disse Franz. - Mas gostaria de saber alguns pormenores.
            - Quais? 
            - Gostaria de saber o número dos condenados, os seus nomes e o gênero do seu suplício.
            - A pergunta não podia ser mais oportuna, Excelência! Acabam precisamente de me trazer as tavolette.
            - Que são as tavolette?
            -As tavolette são tabuinhas que se colocam em todas as esquinas de rua da cidade na véspera das execuções e nas quais se indicam os nomes dos condenados, o motivo da sua condenação e a forma do seu suplício. Tal aviso tem por fim convidar os fiéis a rogar a Deus que dê aos culpados um arrependimento
sincero.
            - E trazem-lhe as tavolette para que junte as suas preces às dos fiéis? - perguntou Franz com ar de dúvida.
            - Não, Excelência. Eu é que me entendi com o colocador e ele traz-me as tavolette como me traz os cartazes dos espetáculos, para se alguns dos meus hóspedes desejarem assistir à execução estarem prevenidos.
            - Mas que atenção tão delicada! - exclamou Franz.
            - Oh, posso-me gabar de fazer tudo o que está ao meu alcance para satisfazer os nobres estrangeiros que me honram com a sua confiança! - declarou mestre Pastrini, sorrindo.
            - Bem vejo, meu caro anfitrião! E é o que repetirei a quem o quiser ouvir, pode ter a certeza. Entretanto, gostaria de ler uma dessas tavolette.
            - Nada mais fácil - respondeu o hoteleiro, abrindo a porta. Mandei colocar uma neste andar.
            Saiu, desprendeu a tavolette e apresentou-a a Franz.
            Eis a tradução literal do cartaz patibular:
            Faz-se saber a todos que na terça-feira, 12 de Fevereiro, primeiro dia de Carnaval, serão, por sentença do Tribunal da Rota, executados na Praça del Popolo o réu Andrea Rondolo, culpado de assassínio na pessoa respeitabilíssima e veneradíssima de D. César Terlini, cônego da Igreja de S. João de Latrão, e o réu Peppino, também conhecido por Rocca Priori, culpado de cumplicidade com o detestável bandido Luigi Vampa e os homens da sua quadrilha.
            O primeiro será mazzolato. E o segundo decapitato.
            Suplica-se às almas caridosas que peçam a Deus o arrependimento sincero dos dois infelizes condenados.

            Era exatamente o que Franz ouvira na antevéspera, nas ruínas do Coliseu, e o programa em nada fora alterado: os nomes dos condenados, o motivo do seu suplício e o gênero da sua execução eram exatamente os mesmos.
            Assim, segundo todas as probabilidades, o trasteveriano não era outro senão o bandido Luigi Vampa e o homem da capa Simbad, o Marinheiro, que em Roma, como em Porto-Vecchio e em Tunes, se continuava a dedicar às suas filantrópicas expedições.
            Entretanto o tempo passava, eram já nove horas, e Franz ia acordar Albert quando, com grande espanto seu, o viu sair completamente vestido do quarto. O Carnaval não lhe safa da idéia e acordara-o mais cedo do que o amigo esperava. 
            - Bom - disse Franz ao hoteleiro – , agora que já estamos prontos os dois, acha, meu caro Sr. Pastrini, que podemos nos apresentar nos aposentos do conde de Monte-Cristo?
            - Com certeza! O conde de Monte-Cristo tem o hábito de ser muito madrugador e estou certo de que se encontra acordado há mais de duas horas.
            - E parece-lhe que não haverá indiscrição em nos apresentarmos nos seus aposentos agora?
            - Nenhuma.
            - Nesse caso, Albert, se está pronto...
            - Inteiramente pronto - respondeu Albert.
            - Então, vamos agradecer ao nosso vizinho a sua cortesia.
            - Vamos!
            Franz e Albert só tinham de atravessar o patamar. O hoteleiro se adiantou e tocou por eles. Um criado veio abrir.
            - Sígnori Francesi - disse o hoteleiro.
            O criado inclinou-se e fez-lhes sinal para entrarem.
            Atravessaram duas divisões mobiladas com um luxo que não esperavam encontrar no hotel de mestre Pastrini, e chegaram por fim a uma sala de uma elegância perfeita. Cobria o chão um tapete turco e os móveis mais confortáveis ofereciam as suas almofadas bem cheias e os seus encostos inclinados para trás.
Das paredes pendiam magníficos quadros de mestres, intercalados com trofeus de armas esplêndidas. Diante das portas adejavam grandes reposteiros de tapeçaria.
            - Se Suas Excelências quiserem sentar, vou prevenir o Sr. Conde - disse o criado.
            E desapareceu por uma das portas.
            Quando a porta se abriu chegou aos ouvidos dos dois amigos o som de uma guzla, mas extinguiu-se imediatamente. A porta, fechada quase ao mesmo tempo que fora aberta, apenas deixara por assim dizer penetrar na sala uma lufada de harmonia.
            Franz e Albert entreolharam-se e percorreram com a vista os móveis, os quadros e as armas. Tudo aquilo lhes pareceu, à segunda vista, ainda mais magnífico do que à primeira.
            - Então que diz a isto? - perguntou Franz ao amigo.
            - Digo, meu caro, que o nosso vizinho é algum corretor que jogou na baixa dos fundos espanhóis ou algum príncipe que viaja incógnito.
            - Cale-se! - atalhou Franz. - Isso é o que vamos saber, pois ele vem aí.
            Com efeito, o ruído de uma porta girando nos gonzos acabava de chegar aos ouvidos dos visitantes. E quase ao mesmo tempo o reposteiro abriu-se e deu passagem ao proprietário de todas aquelas riquezas.
            Albert avançou ao seu encontro, mas Franz ficou pregado no seu lugar.
            Aquele que acabava de entrar era nem mais nem menos do que o homem da capa do Coliseu, o desconhecido do camarote e o anfitrião misterioso de Monte-Cristo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário