sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Odisseia - Parte II - Capítulos 9 ao 12

Parte II
Na qual Ulisses conta suas aventuras nos mares desde que saiu
de Tróia até chegar à terra dos feácios

9

Ulisses contou então a sua história.
Contou que era Ulisses, filho de Laertes e rei da ilha de Ítaca,
aquela que se avista de longe. Contou como lutou em Tróia, ao lado do
exército grego. E como, quando deixou Tróia, com seus homens e seus
navios, foi aportar no país dos cícones, em Ismaros.
Para falar a verdade, os homens de Ulisses, que vinham da
guerra, ainda tinham vontade de lutar e foram logo atacando as cidades
dos cícones, que estavam sem defesa. Só que depois de algumas vitórias
e de terem saqueado algumas populações, a sorte mudou e eles foram
derrotados; muitos soldados morreram e eles tiveram que fugir nos seus
navios.
Navegaram alguns dias e chegaram a um lugar estranhíssimo,
onde as pessoas comiam flores de lótus e eram chamadas de lotófagas.
Essas flores provocavam uma sensação tão grande de felicidade
que alguns homens, depois de comê-las, acharam ótimo e não quiseram
mais ir embora.
Ulisses mandou que os prendessem dentro dos navios e tratou
de sair daquele lugar.
Depois de muito navegar, chegaram à terra dos ciclopes,
gigantes enormes de um olho só que viviam em grutas e não precisavam
plantar nada, pois tudo crescia nesse lugar, sem que se precisasse
plantar.
Eles então pararam numa pequena ilha perto da ilha dos
ciclopes. Descansaram, comeram à vontade, pois ali havia grandes
rebanhos de cabras, e beberam do vinho que ainda havia nos navios.
Ulisses resolveu deixar a maior parte de seus homens
descansando naquele lugar. Com um só navio e apenas alguns homens,
dirigiu-se à ilha, para conhecer os ciclopes e saber que tipo de gente
eles eram.
Aproximaram-se da ilha e Ulisses pôde ver uma caverna
sombreada por altas árvores. Muitas cabras e carneiros pastavam em
volta, e quem tomava conta do rebanho era um dos gigantes de um olho
só. Ele parecia viver longe dos outros.
Ulisses escolheu doze companheiros para acompanhá-lo. Levou
um saco de provisões e um odre do melhor vinho que ele tinha.
Quando chegaram à caverna não havia ninguém, pois o gigante
estava fora, tomando conta do rebanho.
Dentro da caverna, que era muito grande, havia muitos
estábulos, com filhotes de várias idades. As prateleiras estavam cheias
de queijos.
Os companheiros de Ulisses quiseram logo se apossar de alguns
cabritos e queijos e fugir dali o mais depressa possível.
Mas Ulisses achou que ainda podia receber presentes de
hospitalidade e resolveu esperar pelo dono da casa. Ficaram então por
ali, comendo os queijos do gigante e esperando sua volta.
Quando o gigante apareceu, trazia seu rebanho e um enorme
feixe de lenha, que jogou no chão, causando um barulho tão assustador
que os homens correram todos para o fundo da gruta, amedrontados.
O ciclope tapou a entrada da gruta com uma pedra enorme e
pesadíssima. Sentou-se e começou a ordenhar as ovelhas e as cabras.
Quando acabou, acendeu o fogo e então se deu conta da presença dos
homens.
— Quem são vocês? — gritou com sua voz poderosa. — De onde
vêm sulcando os úmidos caminhos?
Ulisses ficou apavorado com sua voz e seu ar ameaçador, mas
adiantou-se e respondeu, dizendo que eram gregos que voltavam de
Tróia e que suplicavam que ele os respeitasse como hóspedes, em nome
de Zeus.
O ciclope respondeu caçoando, dizendo que eles, os ciclopes,
eram mais fortes do que qualquer deus e que ele não ia poupar
ninguém. Perguntou em seguida onde estava a nau que os trouxera.
Estava claro que as intenções dele eram as piores, e por isso
Ulisses respondeu que Poseidon tinha destruído o navio.
Então, sem dizer uma única palavra, o gigante levantou-se,
agarrou dois dos marinheiros e atirou-os ao chão, arrebentando suas
cabeças. Depois retalhou seus corpos e, calmamente, preparou-os para
lhe servir de ceia. Comeu os dois, deitou-se e dormiu.
Apavorados, os homens choraram de medo.
Ulisses pensou em matar o gigante com sua espada, mas logo
viu que, se fizesse isso, ficariam todos presos na caverna, já que não
poderiam tirar a pedra que fechava a entrada.
Quando amanheceu, o gigante acordou, acendeu o fogo,
ordenhou suas ovelhas e cabras e agarrou mais dois dos homens e os
devorou.
Retirou a pedra de entrada, fez que o rebanho saísse e tornou a
botá-la no lugar.
Ulisses tratou então de inventar um plano para livrar-se e livrar
seus companheiros dessa terrível situação. Descobriu num canto um
tronco de oliveira que estava secando. Cortou um bom pedaço e pediu
aos companheiros que o descascassem.
Aguçou a extremidade e endureceu a ponta no fogo. Escondeu
então essa arma no meio do estrume que havia no chão.
Quando o monstro chegou, fez tudo como tinha feito na véspera,
inclusive devorar mais dois dos homens.
Ulisses então chegou junto dele e lhe ofereceu uma gamela cheia
do vinho que ele tinha trazido.
O gigante bebeu rapidamente e pediu mais, dizendo que daria a
Ulisses um presente de hospitalidade por causa do vinho, que era muito
bom. Por três vezes o ciclope esvaziou a gamela.
Então perguntou a Ulisses seu nome.
Ulisses, o mais astuto dos gregos, respondeu:
— Ninguém! Ninguém é meu nome.
— Pois bem! — disse o gigante. — Você será o último a ser
devorado! Este será meu presente de hospitalidade!
Mas ele estava muito bêbado e caiu de costas, dormindo
profundamente.
Mais que depressa, Ulisses pôs em prática seu plano. Com a
ajuda dos companheiros, desenterrou o enorme espeto que tinha
preparado e pôs a ponta do espeto no fogo, até que ficou em brasa.
Então, todos juntos, enterraram com força aquele tição no olho
do ciclope, e giraram e giraram e forçaram para dentro até que boa
parte do espeto ficou enterrada.
O gigante soltou um tremendo berro, levantou-se com
dificuldade e arrancou o tição do olho.
Começou então a gritar e a chamar pelos outros ciclopes, que
logo chegaram de todos os lados da ilha e se reuniram em frente à
caverna, perguntando:
— O que aconteceu?
— Quem foi que te fez mal?
— Responde, Polifemo — este era o nome do monstro. E o
ciclope, de dentro da caverna, respondia:
— Ninguém! Ninguém está me matando! Ninguém!
Os companheiros dele não entenderam nada e responderam:
—Se ninguém está te matando, deves ter algum mal causado por
Zeus. Chama Poseidon, nosso pai, para que o socorra!
E foram embora.
O monstro, louco de dor, retirou a pedra que fechava a gruta e
sentou-se na saída, estendendo os braços em todas as direções para
que nenhum dos homens fugisse.
Ulisses, então, amarrou as ovelhas e as cabras de três em três e
debaixo de cada grupo de animais prendeu um dos seus homens. Ele
mesmo escolheu o maior de todos os animais e agarrou-se embaixo,
segurando firmemente.
Ulisses sabia que o ciclope deveria levar os animais para pastar.
Realmente, logo amanheceu e o gigante começou a deixar que os
animais saíssem, sempre passando a mão pelo dorso de cada um,
temendo que os homens escapassem montados neles.
Foram todos saindo até que Ulisses, o inventador de artimanhas,
saiu, por sua vez.
Desprenderam-se todos dos carneiros e rumaram para o navio,
empurrando ainda alguns animais.
Imediatamente embarcaram os carneiros de lindo pêlo e
partiram o mais rapidamente possível.
Quando o navio já estava a alguma distância, mas ainda dava
para o monstro ouvir sua voz, Ulisses começou a gritar
desafiadoramente:
— Ciclope, você abusou da hospitalidade e devorou meus
companheiros. Mas Zeus o fez pagar por seus pecados.
O ciclope, que já estava danado, ficou ainda mais furioso!
Arrancou uma enorme pedra de um morro e arremessou em direção ao
barco.
A rocha caiu a pouca distância do navio e provocou um rede
moinho, arrastando a nau para perto da praia. Mas os homens
remaram com força e conseguiram afastar bastante a embarcação.
Só que Ulisses ainda não estava contente.
Queria que o ciclope soubesse quem é que o tinha ferido.
Embora os homens tentassem dissuadi-lo de fazer isso, ele ainda gritou:
— Ciclope, se alguém perguntar a causa de sua cegueira, diga
que o culpado foi Ulisses, o saqueador de cidades! Ulisses, filho de
Laertes, que tem sua casa em Ítaca.
O gigante respondeu, fingindo-se arrependido:
— Pobre de mim! Cumpriu-se a antiga profecia segundo a qual
eu perderia a visão por culpa de Ulisses. Mas volte, Ulisses, que eu lhe
darei muitos presentes e recomendarei a Poseidon, meu pai, que o
reconduza à sua terra.
Mas Ulisses não se deixou enganar e continuou gritando com o
infeliz:
— Eu gostaria que você morresse e fosse parar no inferno. Nem
mesmo Poseidon, o sacudidor de terras, poderá curá-lo!
Então o gigante levantou as mãos para o céu e invocou seu pai:
— Poseidon, portador da Terra, deus dos cabelos anelados. Não
deixes que esse Ulisses jamais consiga voltar à sua terra. Mas, se voltar,
que leve muito tempo. Que ele perca todos os seus homens, chegue em
navio estranho e encontre sua casa ameaçada por muitos problemas!
Poseidon ouviu seu filho. Ergueu uma rocha enorme que atirou
sobre o navio. A pedra não atingiu a nau, mas causou terrível agitação
nas águas e arrastou-a para perto da costa novamente.
Mais uma vez os viajantes escaparam e dirigiram-se à pequena
ilha onde o restante dos companheiros esperava.
Dividiram os animais entre todos e o maior deles, que coube a
Ulisses, foi sacrificado a Zeus, deus das nuvens escuras, filho de
Cronos, o Tempo, que reina sobre todos os seres.
Mas Zeus não aceitou o sacrifício de Ulisses.
Não sabemos como foi que Ulisses percebeu isso. Mas, para os
gregos, qualquer acontecimento podia servir como presságio. Por
exemplo: se a fumaça da oferenda subisse diretamente ao céu, isso
podia ser sinal de que Zeus tinha aceitado o sacrifício; um vento que
desfizesse a fumaça podia ser um sinal contrário.
No dia seguinte partiram da ilha, contentes por terem escapado
da morte, mas, ao mesmo tempo, tristes por terem perdido tantos
companheiros.

10
Depois de navegar durante alguns dias, os viajantes chegaram à
Eólia, ilha flutuante onde morava Éolo, guardião dos ventos, e sua
grande família.
Ulisses e seus homens foram muito bem-recebidos e lá ficaram
durante um mês.
Quando resolveram partir, Éolo deu a Ulisses um enorme odre
de couro onde estavam guardados todos os ventos perigosos. Ulisses
amarrou o odre muito bem amarrado no porão do seu navio, que partiu
com os melhores ventos ventando a favor.
Por nove dias e nove noites, sempre com ventos favoráveis, os
navios foram atravessando os mares e Ulisses, que controlava as velas
de sua nau, não dormiu um só momento. Quando já se podiam avistar
as costas de Ítaca, o sono venceu nosso herói.
Então, enquanto Ulisses dormia, seus companheiros começaram
a imaginar o que haveria dentro do odre, achando que Ulisses havia
recebido um grande tesouro e não queria dividi-lo com eles. Abriram o
odre e libertaram todos os ventos mais violentos e perigosos. A
tempestade levou os navios de volta ao alto-mar, para longe de Ítaca.
Eles foram arrastados novamente de volta à ilha Eólia.
Ulisses dirigiu-se ao palácio em busca de ajuda, mas Éolo e seus
filhos expulsaram os homens da ilha.
— Zarpa já desta ilha — gritou Éolo. — Não darei ajuda a
homens que são detestados pelos deuses!
Os navios saíram da ilha e todos os tripulantes ficaram muito
abatidos. Depois de seis dias e seis noites chegaram à ilha dos
lestrigões.
As naus ficaram encalhadas num local onde não havia ondas.
Apenas o navio de Ulisses ficou fora do porto, preso a um rochedo. Três
homens foram enviados para tomar informações sobre os habitantes da
ilha.
Novo infortúnio esperava os viajantes: o rei dos lestrigões, um
gigante pavoroso, assim que se encontrou com os homens e antes
mesmo de ouvir o que diziam, agarrou um deles e o devorou.
Os outros correram para as naus o mais depressa que
puderam,! mas o rei já estava chamando os habitantes da ilha, todos
gigantescos. Quando viram as embarcações, começaram a jogar grandes
pedras sobre elas. Além disso, fisgavam os homens para comê-los, como
?e fossem peixes.
Vendo aquele horror, Ulisses cortou mais que depressa as
amarras de sua nau. Procurou animar os companheiros, para que
remassem com energia e conseguissem fugir.
Novamente Ulisses sentiu-se alegre por ter escapado com seu
navio, mas, por outro lado, sentiu-se muito triste, pois todos os
tripulantes dos outros navios estavam mortos.
Por dias e dias os viajantes navegaram, até que chegaram à ilha
Eéia, onde vivia a misteriosa feiticeira dotada de linguagem humana, a
legendária Circe.
Estavam todos exaustos. Descansaram por isso dois dias e duas
noites. Então, com muito medo, um grupo de homens dirigiu-se ao
palácio de Circe.
Ao chegar, viram que à volta do palácio havia lobos e leões, todos
enfeitiçados, que se aproximavam deles sem lhes fazer mal, como se
fossem cães, e que eram, na verdade, marinheiros que tinham aportado
um dia na ilha e haviam sido transformados em animais pela feiticeira.
Os homens tremiam de medo. Pararam na entrada do palácio e
puderam ouvir uma voz muito linda, que vinha lá de dentro. Chamaram
pela moradora, que logo apareceu na porta e convidou os viajantes a
entrar. Todos, menos Euríloco, aceitaram o convite.
A misteriosa deusa recebeu-os muito bem, mandou que se
sentassem e serviu-lhes uma bebida preparada por ela. Os homens
beberam, sem desconfiar que era uma bebida enfeitiçada.
Então Circe tocou-os com sua varinha e os transformou em
porcos, que prendeu em suas pocilgas.
Euríloco, apavorado, voltou ao acampamento para contar o que
tinha acontecido.
Ulisses resolveu ir pessoalmente ver o que ainda podia fazer por
seus homens. Estava quase chegando ao palácio quando encontrou um
adolescente que, na verdade, era o deus Hermes. O rapaz preveniu
Ulisses contra os sortilégios de Circe:
— A feiticeira vai te servir uma bebida maléfica. Mas vou te dar
esta erva, que deves comer antes de entrar no palácio; ela vai te
proteger contra os efeitos da beberagem. Depois Circe vai te tocar com
sua varinha. Saca tua espada e ameaça matá-la. Circe vai convidar-te a
partilhar seu leito. A uma deusa não se pode recusar esse pedido. Mas
podes obrigá-la a prometer que soltará teus companheiros e os libertara
dos encantamentos que ela lançou sobre eles. Também deves fazê-la
prometer que não te fará nenhum mal enquanto dormires a seu lado,
pois ela pretende privar-te de tua virilidade.
Hermes se foi e Ulisses dirigiu-se ao palácio, depois de ter
comido a planta que ele lhe deu. Quando chegou à entrada, gritou pela
deusa.
Circe abriu a porta reluzente e convidou-o para entrar, para
sentar-se, e, como Hermes previra, serviu-lhe uma bebida preparada
por ela. Ulisses, sem medo, esvaziou a taça. Circe aproximou-se e
tocou-o com sua varinha, dizendo:
— Vai! Vai juntar-te a teus companheiros na pocilga!
Ulisses desembainhou a espada e investiu contra a feiticeira,
como se fosse matá-la. Amedrontada, ela abraçou-se a seus joelhos e
começou a perguntar quem ele era e de onde vinha, e até convidou-o
para ir ao seu leito, porque assim poderiam confiar um no outro.
Ulisses respondeu:
— Como podes querer que eu seja amável contigo, quando
transformaste meus amigos em porcos e estás tramando fazer comigo
uma maldade se eu for contigo para o teu leito? Só farei tua vontade se
jurares não me fazer mal e libertar meus amigos do encanto que os
transformou em porcos.
Circe atendeu aos pedidos de Ulisses e deu forma humana a
todos os seus companheiros. Depois lhe disse que fosse buscar os
outros marinheiros e os trouxesse para o seu palácio e ainda prometeu
que os deixaria partir quando quisessem.
Durante um ano inteiro Ulisses e seus companheiros ali ficaram,
comendo, bebendo e descansando. Então, Ulisses pediu a Circe que
cumprisse sua promessa de deixá-los partir.
Circe disse a Ulisses que, antes de voltar a Ítaca, ele deveria ir
ao inferno, à morada de Hades e Perséfone, para interrogar o cego
Tirésias, único morto a quem Perséfone consentia que visse o futuro dos
homens. Ulisses deveria interrogar Tirésias para saber o que iria lhe
acontecer.
Os gregos acreditavam num inferno diferente do nosso. Para a
morada de Hades iam todas as pessoas que morriam e não só as
pessoas más.
Mas, mesmo assim, Ulisses ficou apavorado, abatido,
amedrontado. E perguntou a Circe quem iria guiá-lo nessa terrível
viagem.
Circe respondeu:
— Ergue o mastro, desfralda a vela e o sopro dos ventos te levará
até o fim do oceano, onde vais encontrar os bosques de Perséfone.
Dirige-te à morada de Hades. Vais encontrar dois rios que despencam
das rochas. Neste lugar cava um fosso quadrado, onde vais realizar
uma cerimônia para chamar os mortos e, com eles, Tirésias, que vai
prever o teu futuro. Em volta do fosso despeja primeiro leite e mel,
depois vinho saboroso e então água. Espalha por cima farinha de
cevada. Sacrifica um cordeiro e uma ovelha negra, cujo sangue deve
correr para o fosso. As almas dos mortos virão, sedentas de sangue.
Não consintas que os mortos bebam esse sangue antes que interrogues
Tirésias.
Chegou então a Aurora e Ulisses foi procurar os companheiros
para lhes dizer que iam partir, que não iriam ainda para casa, pois
teriam que ir à morada de Hades. Enquanto preparavam a partida,
todos, apavorados, se lamentavam por mais essa provação.
Circe, sem que os homens vissem, havia amarrado um cordeiro e
uma ovelha negra no barco, para que Ulisses pudesse fazer o sacrifício
que ela havia recomendado.

11
Os homens arrastaram a nau para a água. Levantaram o mastro
e desfraldaram a vela, que se enfunou com o vento enviado por Circe.
Choravam todos de medo. Durante todo o dia navegaram. E quando a
noite baixou, a nau chegou finalmente aos confins da Terra, onde a
bruma e as nuvens escondem o sol.
Encalharam a nau na areia e desembarcaram os animais.
Então, como Circe havia ordenado, cavaram a fossa e
derramaram o leite, o vinho e a água. Por cima espalharam a cevada.
Ulisses degolou os animais e despejou o sangue na fossa.
Invocou então os mortos, que vieram em grande número, e seu ruído
sinistro deixou a todos pálidos de terror. Ulisses não permitiu que
bebessem do sangue dos animais imolados até que viesse o tebano
Tirésias.
Quando o adivinho chegou, com seu cetro de ouro, reconheceu
Ulisses e fez as previsões sobre o futuro que o esperava.
Disse que Ulisses teria grande dificuldade em voltar para casa,
pois Poseidon, o sacudidor da Terra, estava furioso por causa de seu
filho Polifemo, que ele havia cegado.
— Mas — disse ainda — tu e teus companheiros poderão chegar
à pátria se ao aportarem à ilha do Tridente não perturbarem os bois e
os carneiros de Apoio, o Sol. Mas, se maltratarem os animais dele,
embora tu escapes da morte, vais perder todos os teus companheiros. E
vais chegar a teu lar em navio estranho e em tua casa encontrarás
problemas.
Então Tirésias se foi e as outras almas vieram beber do negro
sangue. Veio a mãe de Ulisses que lhe disse que tinha morrido de
saudade por ele e de preocupação. E vieram muitas mulheres que
contaram suas histórias.
Vieram também os companheiros de Ulisses que haviam morrido
na guerra. Veio Agamenon, que contou como morrera nas mãos de sua
esposa e de seu amante; e veio Aquiles e vieram muitos heróis, todos
aflitos e ansiosos por contar suas preocupações, que lembravam a
Ulisses o seu passado.
Os homens puderam ver ainda Tântalo, que estava condenado a
ficar de pé dentro de um lago, com a água chegando até sua boca, mas
sem jamais poder bebê-la. E frutas se debruçavam sobre ele das
árvores, mas ele jamais conseguia alcançá-las. E viram Sísifo,
condenado a arrastar montanha acima uma enorme pedra, que, assim
que chegava ao topo, despencava, obrigando-o a começar de novo seu
trabalho, pois, dependendo do que o mortal tivesse feito em vida, assim
seria sua vida no Hades.
Mas, de repente, Ulisses foi tomado de um pavor medonho,
quando lembrou que a terrível Perséfone poderia mandar contra ele
algum monstro, ofendida com a presença dele naquele lugar. Pensou
mesmo na cruel górgona de cabelos de serpente, a Medusa, que, mesmo
morta, poderia paralisá-lo apenas por olhar para ele.
Então, chamou os companheiros e juntos trataram de embarcar
e sair dali, primeiro a poder de remos, depois levados por um vento
favorável.

12
Voltaram então à ilha de Circe, para descansar de tão
extraordinárias aventuras.
Circe veio encontrar os viajantes trazendo vinho, pão e carne,
para que eles pudessem se recuperar.
A terrível feiticeira, dotada de linguagem humana, preveniu
Ulisses do que iria acontecer no resto da viagem.
Então, embarcaram todos e seguiram, até que se aproximaram
da ilha das sereias.
As sereias eram criaturas terríveis que atraíam os marinheiros
com suas vozes maravilhosas. Todos que passavam perto delas
acabavam se atirando ao mar, enlouquecidos pelo seu canto, e morriam
afogados; na ilha restavam apenas os esqueletos, recobertos por peles
ressequidas.
Ulisses fez como Circe lhe havia ensinado: amassou com as
próprias mãos uma boa porção de cera, que foi amolecendo graças
inclusive ao calor do sol. Tapou com a cera os ouvidos dos marinheiros.
Mas antes lhes pediu que, depois que tivessem os ouvidos bem tapados,
eles o amarrassem no mastro. Ulisses não tapou os próprios ouvidos,
pois queria ouvir o canto das sereias.
Quando o vento parou e o mar se tornou liso como espelho, os
homens recolheram a vela e começaram a remar, cada vez com mais
força. O barco foi se aproximando da ilha e Ulisses começou a ouvir
lindas vozes, que pareciam chamá-lo.
— Vem, Ulisses, vem! Vamos te contar muitas e muitas coisas.
Sabemos de tudo o que se passou em Tróia... Vamos te contar histórias
maravilhosas!
Vocês já perceberam que os gregos gostavam muito de histórias.
As sereias se aproveitavam disso e tentavam atrair os marinheiros que
passavam, prometendo contar o que eles mais gostariam de ouvir ao
mesmo tempo em que entoavam seus cantos envolventes, que tinham
levado tantos marinheiros à morte.
Ulisses, fascinado, começou a fazer sinais para que seus homens
o desamarrassem.
Dois marinheiros aproximaram-se dele, mas, em vez de
desamarrá-lo, apertaram as cordas com mais força.
Muito depois, quando a ilha já estava longe, os marinheiros
retiraram a cera dos ouvidos e desamarraram Ulisses.
Logo todos puderam ver, através da névoa, ondas enormes que
arrebentavam com terrível fragor.
Os homens se assustaram com o ruído e Ulisses teve que animálos,
dizendo-lhes que se lembrassem do que havia acontecido na ilha
dos ciclopes, dos graves problemas que haviam enfrentado, dos quais
ele, Ulisses, os tinha livrado.
Ulisses tinha contado a todos o que iria acontecer na ilha das
sereias. Mas não lhes disse o que estava por vir quando passassem
entre os rochedos de Cila e Caríbdes.
Circe havia dito que, depois da ilha das sereias, eles iriam
encontrar dois altíssimos rochedos, entre os quais teriam que passar.
De um lado, a meia altura da rocha, havia uma caverna muito
profunda. Nessa caverna havia um monstro pavoroso de seis cabeças,
Cila. Quando por ali passava algum navio, Cila saía do seu esconderijo
e avançava sobre ele, devorando quantos marinheiros pudesse.
Do outro lado havia um sorvedouro terrível, Caríbdes, que
engolia enormes quantidades de água, puxando os navios que
passavam para o abismo. Depois vomitava a água toda, o que provocava
a formação de altíssimas e destruidoras ondas.
Circe havia prevenido:
— Ninguém jamais conseguiu passar entre essas rochas, a não
ser a Argo, a nau de Jasão, que teve a ajuda de Hera.
Ulisses resolveu passar mais perto de Cila, na esperança de lhe
dar combate de alguma forma. Enquanto os homens vigiavam Caríbdes,
Cila arrebatou do convés seis dos melhores marinheiros.
Foi uma visão horrenda e Ulisses, contando esse episódio a
Alcino, dizia que foi o espetáculo mais apavorante que ele tinha visto em
sua vida.
Remando com vontade, conseguiram escapar da tenebrosa
passagem e logo chegaram à ilha onde estavam os rebanhos do deus
Hélio.
Ulisses não queria parar na ilha, pois havia sido avisado por
Tirésias e Circe sobre o perigo que correria se algum dos homens
matasse um só dos animais de Hélio.
Mas os homens estavam exaustos e ficaram revoltados por
Ulisses não querer parar.
Ulisses acabou concordando, mas fez que todos prometessem
não perturbar nenhum dos animais sagrados.
Desceram então, comeram, beberam e descansaram.
Mas à noite caiu uma tempestade e um vento forte começou a
soprar. Eles tiveram que levar o barco para o interior de uma côncava
gruta, onde, por um mês, esperaram que o vento amainasse.
Os mantimentos já estavam acabando. Por isso, Ulisses dirigiuse
ao interior da ilha, para rezar aos deuses. Depois de rezar, dormiu.
Enquanto isso, os homens, que estavam com muita fome,
começaram a achar que não ia fazer mal se sacrificassem alguns
animais dos deuses e comessem a carne.
Euríloco disse:
— Prefiro que os deuses nos matem do que morrer de fome
nessa ilha!
E assim, realmente mataram, esfolaram e devoraram algumas
das reses mais gordas do rebanho.
Ulisses acordou de seu sono e correu para a praia. Logo
começou a sentir o cheiro das carnes e das gorduras e percebeu o que
tinha acontecido.
Pediu perdão aos deuses, mas a notícia do crime já havia
chegado ao Olimpo e Zeus já tinha prometido a Hélio destruir a
embarcação de Ulisses.
Ulisses repreendeu seus amigos, mas o mal já estava feito. Os
deuses então se manifestaram mediante vários prodígios: as peles dos
animais mortos se puseram a dançar e as postas de carne mugiam
como se fossem vacas, causando entre os homens um grande pavor.
Depois de alguns dias o vento amainou. Embarcaram todos e
lançaram-se às águas. E quando já estavam em pleno mar, o filho de
Cronos fez pairar sobre o navio uma negra nuvem, que escureceu o mar
profundo. E então o vento Zéfiro levantou-se assobiando e quebrou os
cabos do mastro, que caíram para trás. O instrumento de navegação foi
varrido para o mar. O piloto foi ferido e também caiu na água.
A nau deu várias voltas sobre si mesma e havia no ar um cheiro
de vapores de enxofre.
Enquanto isso, todos os homens, menos Ulisses, foram atirados
fora do navio, que foi se partindo e por fim havia apenas um pedaço da
quilha, ao qual Ulisses atou o que sobrava do mastro. Sentou-se sobre
esses restos e se deixou arrastar pelos ventos furiosos.
Durante toda a noite vagou sem rumo e então, ao nascer do sol,
viu que tinha voltado ao terrível rochedo de Caríbdes.
No instante em que chegou perto, o rochedo estava engolindo
água com estrondo. Ulisses atirou-se à figueira que nascia a meia altura
dele e ali ficou, agarrado, até que novamente a caverna vomitasse toda a
água que tinha engolido.
Junto com a água vieram o pedaço da quilha e o mastro do
navio. Ulisses jogou-se sobre essa embarcação improvisada e começou a
remar com as mãos.
Nove dias ele foi arrastado pelas ondas, até que chegou à ilha
Ogígia, onde morava a ninfa Calipso, a ninfa de belas trancas.
Ulisses então contou como Calipso o manteve prisioneiro na ilha
durante sete anos, pois estava apaixonada por ele.
E contou ainda que Calipso, obrigada por Zeus, forneceu-lhe os
meios para construir a jangada, na qual navegou nove dias antes de
chegar à Feácia.

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