sexta-feira, 20 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 41 ao 50

Capítulo XLI

A apresentação


            Quando Albert ficou sozinho com Monte-Cristo, disse-lhe: - Sr. Conde permita-me que inicie consigo o meu ofício de cicerone, mostrando-lhe o espécime de um apartamento de rapaz. Habituado aos palácios da Itália, será para si um estudo interessante calcular em quantos pés quadrados pode viver um jovem parisiense que não passa por ser dos pior alojados. À medida que passarmos de uma divisão para a outra abriremos as
janelas para que possa respirar.
            Monte-Cristo conhecia já a sala de jantar e a sala de visitas do térreo. Albert levou-o primeiro ao seu atelier, se bem se lembram a sua divisão predileta.
            Monte-Cristo era um digno apreciador de todas as coisas que Albert acumulara naquela divisão: velhas arcas, porcelanas do Japão, tecidos do Oriente, vidrilhos de Veneza, armas de todos os países do mundo, tudo lhe era familiar, e ao primeiro olhar reconhecia o século, o país e a origem. Morcerf julgara que seria ele o explicador e, pelo contrário, fazia sob a orientação do conde um curso de arqueologia, mineralogia e história natural. Desceram ao primeiro andar. Albert introduziu o seu hóspede na sala. Esta tinha as paredes cobertas de obras de pintores modernos. Havia paisagens de Dupré, de extensos canaviais, árvores elegantes, vacas mugidoras e céus maravilhosos; cavaleiros árabes de Delacroix, de longos albornozes brancos, faixas brilhantes e armas  lavradas, cujos cavalos se mordiam com raiva, enquanto os homens se dilaceravam com maças de ferro; aguarelas de Boulanger, representando Nossa Senhora de Paris, com o vigor que tornava o pintor o êmulo do poeta; telas de Diaz, que fazia as flores mais belas do que as flores e o Sol mais brilhante do que o Sol: desenhos de Decamps, tão coloridos  como os de Salvator Rosa, mas mais poéticos; pastéis de Giraud e de Muller representando crianças com caras de anjo e mulheres com expressões de virgem; esboços arrancados ao álbum da viagem ao Oriente de Dauzats, rabiscados em poucos segundos na sela de um camelo ou debaixo da cúpula de uma mesquita; enfim, tudo o que a arte moderna pode dar em troca e em compensação da arte perdida e desaparecida nos séculos anteriores.
            Albert esperava mostrar, pelo menos desta vez, algo de novo ao estranho viajante; mas com grande espanto seu, este, sem necessitar de procurar as assinaturas, algumas das quais não passavam, de resto, de iniciais, aplicou instantaneamente o nome de cada autor à sua obra, de forma que era fácil de ver que não só cada um daqueles nomes lhe era familiar, mas também que cada um daqueles talentos fora estudado e apreciado por ele.
            Da sala passaram ao quarto de dormir. Era ao mesmo tempo um modelo de elegância e de gosto severo. Ali havia um único retrato, mas assinado por Léopold Robert, e que resplandecia na sua moldura de ouro fosco. Esse retrato atraiu imediatamente o olhar do conde de e Monte-Cristo, que deu três passos rápidos no quarto e parou  de súbito diante dele.
            Era o retrato de uma mulher nova, de vinte e cinco a vinte e seis anos, morena e de olhar ardente, velado por pálpebras languidas. Envergava o traje pitoresco das pescadoras catalãs, com o seu corpete vermelho e negro e as suas agulhas de ouro espetadas no cabelo. Olhava o mar e a sua silhueta elegante
destacava-se no duplo azul das vagas e do céu.
            Estava escuro no quarto, pois de contrário Albert teria visto a palidez lívida que se espalhou pelas faces do conde e surpreendido o estremecimento nervoso que lhe aflorou os ombros e o peito.
            Reinou um instante de silêncio, durante o qual Monte-Cristo manteve os olhos obstinadamente fitos naquela pintura.
            - Tem aqui uma bela amante, visconde - disse Monte-Cristo, numa voz perfeitamente calma. E o traje, traje de baile, sem dúvida, assenta-lhe na realidade maravilhosamente.
            - Ah, senhor - disse Albert –, aí está um equívoco que não lhe perdoaria se ao lado desse retrato tivesse visto qualquer outro! Não conhece a minha mãe, senhor; é ela quem vê nesse quadro. Mandou-se pintar assim há seis ou oito anos. Esse traje é um traje de fantasia, ao que parece, e a semelhança é tão grande que creio verá ainda minha mãe tal como era em 1830. A condessa mandou fazer esse retrato durante uma ausência do conde. Sem dúvida esperava proporcionar-lhe no regresso uma agrável surpresa. Mas, coisa estranha, o retrato não agradou a meu pai, e nem o valor da pintura, que é, como vê, uma das belas telas de Leopold Robert, foi capaz de o demover da antipatia que lhe tomou. Diga-se em abono da verdade, aqui entre nós, meu caro conde, que o Sr. de Morcerf é um dos pares mais assíduos no Luxemburgo e um general famoso pela teoria, mas um amador de arte dos mais medíocres. O mesmo não acontece com a minha mãe, que pinta notavelmente, e que, estimando demasiado essa obra para se separar  dela por completo, me ofereceu, para que junto de mim estivesse menos exposta ao desagrado do Sr. de Morcerf; de
quem lhe mostrarei o retrato pintado por gros. Desculpe-me se lhe falo assim tão intimamente, mas como vou ter a honra de acompanhá-lo junto do conde, digo-lhe isto para que não caia em gabar este retrato diante dele. De resto, ele tem tido uma funesta influência: é raro que a minha mãe venha aos meus aposentos sem o ver e mais raro ainda que o veja sem chorar. A nuvem que trouxe este quadro ao palácio é aliás a única que se ergueu entre o conde e a condessa, os quais, apesar de casados há mais de vinte anos, ainda estão unidos como no primeiro dia.
            Monte-Cristo deitou um olhar rápido a Albert, como se procurasse uma intenção oculta nas suas palavras; mas era evidente que o rapaz as dissera com toda a simplicidade da sua alma.
            -  Agora já viu todas as minhas riquezas, Sr. Conde - declarou Albert. - Permita-me que as ofereça, por muito indignas que sejam. Faça de conta que está em sua casa e para o pôr ainda mais à vontade queira acompanhar-me aos aposentos do Sr. de Morcerf a quem escrevi de Roma descrevendo o serviço que o
senhor me prestou e anunciei a visita que me prometera. Posso dizer-lhe que o conde e a condessa esperam com impaciência que lhes seja permitido agradecer-lhe. Bem sei, Sr. Conde, que é um pouco insensível a todas as coisas e que as cenas familiares não têm muita influência sobre Simbad, o Marinheiro, que já viu outras. No entanto, aceite o que lhe proponho como iniciação na vida parisiense, vida de cortesias, de visitas e de apresentações.
            Monte-Cristo inclinou-se para responder. Aceitava a proposta sem entusiasmo nem contrariedade, como uma das convenções da sociedade que todo o homem educado cumpre como um dever. Albert chamou o criado e ordenou-lhe que tosse prevenir o Sr. e a Sra de Morcerf da próxima chegada do conde de
Monte-Cristo.
            Albert seguiu-o com o conde.
            Na antecâmara do conde via-se por cima da porta que dava para a sala um brasão, que, pelo seu ornato rico e a sua harmonia com a decoração da divisão, indicava a importância que o proprietário do palácio lhe atribuía.
            Monte-Cristo deteve-se diante do brasão, que examinou com atenção.
            - Em azul sete melras de ouro pousadas em bando. É sem dúvida o brasão da sua família, senhor? - perguntou. - Excetuando o acontecimento das peças do brasão que me permitem decifrá-lo, sou muito ignorante em matéria heráldica, eu, conde de acaso, fabricado pela Toscana com o auxílio de uma comendadoria de Santo Estêvão, que me teria dispensado de armar em grande senhor se me não tivessem repetido que quando se viaja muito é coisa absolutamente necessária. Porque, enfim, quanto mais não seja para que os funcionários aduaneiros nos não incomodem, é preciso ter qualquer coisa nas portinholas da carruagem. Desculpe-me pois semelhante pergunta.
            - Não é de modo algum indiscreto, senhor - respondeu Morcerf com a simplicidade da convicção –, e de fato acertou: são as nossas armas, isto é, as de chefe do meu pai. Mas estão, como vê, ligadas a um brasão de gola e torre de prata, que é do chefe de minha mãe. Pelo lado materno sou espanhol, mas a casa
de Morcerf é francesa e até é segundo ouvi dizer, uma das mais antigas do Meio-Dia da França. 
            - Sim - prosseguiu Monte-Cristo –, é o que indicam as melras. Quase todos os peregrinos armados que tentaram ou fizeram a conquista da Terra Santa tomaram como armas ou cruzes, sinal da missão a que se tinham votado, ou pássaros migradores, símbolo da longa viagem que iam empreender e que esperavam concluir nas asas da fé. Um dos seus antepassados paternos terá sido de alguma das vossas cruzadas, e mesmo supondo que fosse apenas a de S. Luís, isso já nos faz remontar ao século XIII, o que é ainda muito bonito.
            - É possível - concordou Morcerf. - No gabinete de meu pai existe em qualquer parte uma árvore genealógica que nos dirá isso e na qual cheguei a anotar comentários que seriam muito elucidativos para Hozier e Jaucourt. Agora já me não preocupo com isso. No entanto, sempre lhe digo, Sr. Conde, e isto entra
nas minhas atribuições de cicerone, que as pessoas começam a ocupar-se muito dessas coisas sob o nosso Governo Popular.
            - Bom, nesse caso o vosso Governo deveria ter escolhido no seu passado coisa melhor do que os dois cartazes que notei nos vossos monumentos e que não têm nenhum sentido heráldico. Quanto a si, visconde - prosseguiu Monte-Cristo, voltando a Morcerf –, é mais feliz do que o seu Governo, pois as suas armas são realmente belas e falam à imaginação. Sim, é isso mesmo: o senhor é ao mesmo tempo da Provença e de Espanha. E o que explica, se o retrato que me mostrou está parecido, a bela cor morena que tanto admirei no rosto da nobre catalã.
            Seria preciso ser Édipo ou a própria esfinge para adivinhar a ironia que o conde pôs nas suas palavras, aparentemente cheias da maior delicadeza. Por isso, Morcerf agradeceu-lhe com um sorriso e, passando à frente para lhe indicar o caminho, empurrou a porta que se abria por baixo das suas armas e que,
como dissemos, dava para a sala de visitas. No lugar mais em evidência da sala via-se também um retrato: o
de um homem de trinta e cinco a trinta e oito anos, em uniforme de oficial general, com dragonas em canutilho, sinal dos graus superiores, a fita da Legião de Honra ao pescoço, o que indicava que era comendador, e no peito, à direita, a placa de grande-oficial da Ordem do Salvador e, à esquerda, a da grã-cruz de Carlos III, o que indicava que a pessoa retratada participara nas guerras da Grécia e da Espanha ou, o que significava absolutamente o mesmo em matéria de condecorações, desempenhara qualquer missão diplomática nos dois países.
            Monte-Cristo estava ocupado a observar em pormenor o retrato, com não menos cuidado do que observara o outro, quando se abriu uma porta lateral e se encontrou diante do próprio conde de Morcerf.
            Era um homem de quarenta a quarenta e cinco anos, mas que parecia ter pelo menos cinquenta, e cujo bigode, bem como as sobrancelhas pretas, contrastavam estranhamente com os cabelos quase brancos, cortados à escovinha, em estilo militar. Vestia à paisana e trazia na lapela uma fita cujas várias seções
indicavam as diversas ordens com que era condecorado. Entrou com passo bastante nobre e uma espécie de precipitação. Monte-Cristo viu-o vir ao seu encontro sem dar um único passo; diria-se que os seus pés estavam colados ao chão, tal como os seus olhos ao rosto do conde de Morcerf.
            - Meu pai - disse o rapaz –, tenho a honra de lhe apresentar o Sr. Conde de Monte-Cristo, o generoso amigo que tive a felicidade de encontrar nas circunstâncias difíceis que conhece. 
            - Seja bem-vindo entre nós, senhor - disse o conde de Morcerf, cumprimentando Monte-Cristo com um sorriso.  - Prestou à nossa casa, conservando-lhe o seu único herdeiro, um serviço que terá eternamente o nosso reconhecimento.        
            E, ao dizer estas palavras, o conde de Morcerf indicava uma poltrona a Monte-Cristo, ao mesmo tempo que ele próprio se sentava defronte da janela.
            Quanto a Monte-Cristo, ao ocupar a poltrona indicada pelo conde de Morcerf arranjou maneira de ficar oculto na sombra dos grandes reposteiros de veludo, de modo a ler daí, nas feições marcadas de fadiga e preocupações do conde, toda uma história de sofrimentos íntimos escrita em cada ruga que o tempo lhe trouxera.
            - A Sra Condessa - disse Morcerf - estava arrumando-se quando o visconde, a mandou prevenir da visita que ia ter a honra de receber, mas vai descer e dentro de dez minutos estará na sala.
            - É muita honra para mim - declarou Monte-Cristo - ser assim, logo no dia da minha chegada a Paris, apresentado a um homem cujo mérito iguala a reputação e com quem a fortuna, justa uma vez, não incorreu em erro. Mas não terá ela ainda, nas planícies de Mitidja ou nas montanhas do Atlas, um bastão de marechal para lhe oferecer?
            - Infelizmente, senhor - respondeu Morcerf corando um pouco –, deixei o serviço. Nomeado par durante a Restauração, participei na primeira campanha e servi sob as ordens do marechal de Bourmont. Podia portanto aspirar a um comando superior e quem sabe se isso não teria acontecido se o ramo primogênito tivesse permanecido no trono! Mas a revolução de Julho era, ao que parece, bastante gloriosa para se permitir ser ingrata, e foi-o no tocante a qualquer serviço que não datasse do período imperial. Apresentei pois a minha demissão, porque, quando se ganharam as dragonas no campo de batalha, não se sabe manobrar muito bem no terreno escorregadio dos salões. Renunciei à espada, lancei-me na política, dedico-me à indústria e estudo as artes úteis. Durante os vinte anos que permaneci ao serviço, bem o desejei, mas nunca tive tempo para isso.
            - São essas coisas que mantêm a superioridade da vossa nação sobre os outros países, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Fidalgo oriundo de uma grande casa, possuidor de uma bela fortuna, o senhor começou por consentir em ganhar os primeiros postos como soldado obscuro, o que é raríssimo; depois, já
general e par de França, comendador da Legião de Honra, consentiu em recomeçar segunda aprendizagem, sem outra esperança, sem outra recompensa além da de um dia ser útil aos seus semelhantes... Ah, senhor, isso é realmente belo! Direi mais, é sublime.
            Albert olhava e escutava Monte-Cristo com espanto; não estava habituado a vê-lo perfilhar idéias tão entusiastas.
            - Infelizmente - continuou o estrangeiro, sem dúvida para fazer desaparecer a nuvem imperceptível que as suas palavras acabavam de provocar na testa de Morcerf –, não procedemos assim na Itália: crescemos consoante a nossa casta e a nossa espécie, e conservamos a mesma folhagem, o mesmo tamanho e muitas vezes a mesma inutilidade toda a nossa vida.
            - Mas, senhor - respondeu o conde de Morcerf –, para um homem do seu mérito, a Itália não é uma pátria e a França talvez não seja ingrata com todos. Trata mal os seus filhos, mas habitualmente acolhe com generosidade os estrangeiros.
            - Então, meu pai - interveio Albert com um sorriso –, bem se vê que não conhece o Sr. Conde de Monte-Cristo. As suas satisfações não são deste mundo; não aspira a quaisquer honras e só aceita as que podem caber num passaporte.
            - Ora aí está a expressão mais justa que alguma vez ouvi a meu respeito - declarou o visitante.
            – Tem sabido ser senhor do seu futuro - disse o conde de Morcerf, com um suspiro - e escolheu um caminho florido.
            - Exatamente, senhor - replicou Monte-Cristo, com um daqueles sorrisos que um pintor nunca conseguirá reproduzir e que um fisionomista desesperará sempre de analisar.
            - Se não receasse cansar o Sr. Conde - disse o general, evidentemente cativado pelas maneiras de Monte-Cristo -, o levaria à Câmara. Há hoje uma sessão curiosa para quem não conhece os nossos senadores modernos.
            -  Ficarei muito reconhecido, senhor, se se dignar a renovar o convite em outro momento; mas hoje lisonjeia-me tanto a esperança de ser apresentado à Sra Condessa que prefiro esperar.
            - Oh, aí está a minha mãe! - exclamou o visconde.
            Com efeito, ao virar-se rapidamente, Monte-Cristo viu a Sra de Morcerf à entrada da sala, no limiar da porta oposta àquela por onde entrara o marido. imóvel e pálida, deixou, quando Monte-Cristo se virou para ela, cair o braço que, sem que se soubesse porquê, apoiara na ombreira dourada.  Estava ali havia alguns segundos e ouvira as últimas palavras pronunciadas pelo visitante transalpino.
            Este levantou-se e cumprimentou profundamente a condessa, que se inclinou por seu turno, muda e cerimoniosa.
            - Meu Deus, senhora, que tem? - perguntou o conde. - Será por acaso o calor desta sala que a incomoda?
            - Sente-se mal, minha mãe? - perguntou o visconde, correndo ao encontro de Mercedes.
            Ela agradeceu a ambos com um sorriso.
            - Não - disse –, mas experimentei certa emoção ao ver pela primeira vez aquele sem cuja intervenção estaríamos agora mergulhados em lágrimas e em luto. Senhor -  continuou a condessa, adiantando-se com a majestade de uma rainha -, devo-lhe a vida do meu filho e por esse benefício o abençoo. Além disso, agradeço-lhe o prazer que me proporcionou dando-me ensejo de lhe agradecer como o abençoei, isto é, do fundo do coração.
            O conde inclinou-se novamente, ainda mais do que da primeira vez. Estava ainda mais pálido do que Mercedes.
            - Minha senhora - disse –, o Sr. Conde e V. Exa recompensam-me com excessiva generosidade de uma ação muito simples. Salvar um homem, poupar sofrimentos a um pai e a sensibilidade de uma mulher não é de modo algum uma boa ação, é praticar um ato de humanidade.
            A estas palavras, pronunciadas com uma doçura e uma delicadeza requintadas, respondeu a Sra de Morcerf em tom comovido:
            - É deveras feliz o meu filho em o ter como amigo, senhor, e agradeço a Deus ter feito as coisas assim. 
            E Mercedes ergueu os seus belos olhos ao céu com uma gratidão tão infinita que o conde julgou ver tremer neles duas lágrimas.
            O Sr. de Morcerf aproximou-se dela.
            - Minha senhora - disse - , já apresentei as minhas  desculpas ao Sr. Conde por ser obrigado a deixá-lo, e peço-lhe que as renove. A sessão abriu às duas horas, são três e devo falar.
            - Vá, senhor. Procurarei fazer esquecer a sua ausência ao nosso hóspede - respondeu a condessa no mesmo tom comovido. - Sr. Conde - continuou virando-se para Monte-Cristo - quer dar-nos a honra de passar o resto do dia conosco?
            - Obrigado, minha senhora, e peço-lhe que acredite que não poderia estar-lhe mais reconhecido do que estou pelo seu convite. Mas apeei-me esta manhã à sua porta da minha carruagem de viagem. Como estou instalado em Paris? Ignoro. Onde estou? Mal o sei. Trata-se de uma preocupação superficial, bem sei, mas mesmo assim apreciável.
            - Teremos esse prazer outra vez, pelo menos, promete-nos? - pediu a condessa.
            Monte-Cristo inclinou-se sem responder, mas o gesto podia passar por um assentimento.
            - Então não o retenho mais, senhor - disse a condessa pois não quero que o meu reconhecimento se transforme numa indiscrição ou numa importunidade.
            - Meu caro conde - disse Albert –, se me permite, tentarei retribuir-lhe em Paris a sua graciosa cortesia de Roma e pôr o meu cupe à sua disposição até  que tenha tempo de adquirir as suas carruagens e os seus cavalos.
            - Mil vezes obrigado pela sua gentileza, visconde - agradeceu Monte-Cristo –, mas presumo que o Sr. Bertuccio terá empregado convenientemente as quatro horas e meia que acabo de lhe proporcionar e que encontrarei à porta uma carruagem com os respectivos cavalos.
            Albert estava habituado a estas saídas da parte do conde; sabia que era como Nero na busca do impossível e já nada o surpreendia. No entanto, quis ver pessoalmente de que forma as ordens do conde tinham sido cumpridas e acompanhou-o à porta do palácio.
            Monte-Cristo não se enganara. Assim que aparecera na antecâmara do conde de Morcerf, um lacaio, o mesmo que em Roma levara a carta do conde aos dois jovens e lhes anunciara a sua visita, correra para fora do peristilo, de forma que ao chegar à escadaria o ilustre viajante encontrou efetivamente a sua carruagem à sua espera.
            Era um cupe saído das oficinas de Keller e uma parelha que ainda na véspera Drake recusara vender por dezoito mil francos, conforme sabiam todos os “leões” de Paris.
            - Senhor - disse o conde a Albert –, não o convido para me acompanhar a minha casa, porque só lhe poderia mostrar uma casa improvisada, e como sabe tenho, no tocante a improvisações, uma reputação a defender. Conceda-me um dia e prometo-lhe então convidá-lo. Estarei assim mais certo de não faltar às leis da hospitalidade.
            - Se me pede um dia, Sr. Conde, posso estar tranquilo; já não será uma casa que me mostrará, será um palácio. Decididamente, o senhor tem qualquer gênio à sua disposição. 
            - Por favor, deixe que acreditem nisso - pediu Monte-Cristo, pondo o pé no estribo guarnecido de veludo da sua esplêndida carruagem. - Sempre me beneficiará um pouco junto das senhoras.
            E entrou na carruagem, que se fechou atrás dele e partiu a galope, mas não tão depressa que o conde não visse o movimento imperceptível que fez tremer o reposteiro da sala onde deixara a Sra de Morcerf.
            Quando Albert voltou para junto da mãe encontrou a condessa no boudoir, enterrada numa grande poltrona de veludo. Todo o aposento mergulhado em sombra, só deixava ver o reflexo cintilante emitido aqui e ali pelo ventre de qualquer jarrão ou pelo canto de alguma moldura dourada.
            Albert não pode ver o rosto da condessa, oculto numa nuvem de gaza que ela enrolara à volta do cabelo como uma auréola vaporosa, mas pareceu-lhe que tinha a voz alterada.  Distinguiu também, entre os perfumes das rosas e dos heliotrôpios da jardineira, o cheiro acre e penetrante dos sais de vinagre. Com efeito, o frasco da condessa, tirado da sua capa de chagrém e colocado numa das taças cinzeladas da
chaminé, atraiu a atenção inquieta do jovem.
            - Dói-lhe alguma coisa, minha mãe? - perguntou assim que entrou. -  Sentiu-se mal durante a minha ausência?
            - Eu? Não, Albert. Mas, compreenda, estas rosas, estas tuberosas e estas flores de laranjeira exalam durante estes primeiros calores, a que não estamos habituados, um perfume tão intenso...
            - Então, minha mãe - perguntou Morcerf, levando a mão à campainha - é preciso mandar levá-las para a sua antecâmara. Está realmente indisposta. Há pouco, quando entrou, estava muito pálida.
            - Estava pálida?
            - De uma palidez que lhe fica maravilhosamente, minha mãe, mas que nem por isso nos assustou menos, a meu pai e a mim.
            - O teu pai falou-te disso? - perguntou vivamente Mercedes.
            - Não, senhora, mas foi a si própria, lembre-se, que ele fez essa observação.
            - Não me recordo - disse a condessa.
            Entrou um criado. Acudia ao toque de campainha de Albert.
            - Leve estas flores para a antecâmara ou para o quarto de vestir - ordenou o visconde. - Incomodam a Sra Condessa.
            O criado obedeceu.
            Seguiu-se um longo silêncio, que durou durante todo o tempo que levou a transferir as flores.
            - Que nome é esse de Monte-Cristo? - perguntou a condessa, quando o criado saiu levando a última jarra de flores. - é um nome de família, o nome de uma terra ou um simples título?
            - Creio que é apenas um título, minha mãe. O conde comprou uma ilha no arquipélago toscano e, segundo ele próprio dizia esta manhã, instituiu uma comendadoria. Como sabe, isso era prática corrente em Santo Estêvão de Florença, S. Jorge Constantiniano de Parma e até  na Ordem de Malta. Aliás, não tem nenhuma pretensão à nobreza e diz-se um conde de acaso, embora a opinião geral em Roma seja que o conde é um grande senhor.
            - As suas maneiras são excelentes - declarou a condessa. - Pelo menos segundo me foi dado apreciar nos curtos instantes em que aqui esteve. 
            - Oh, perfeitas, minha mãe! Tão perfeitas até  que excedem em muito tudo o que tenho conhecido de mais aristocrático nas três nobrezas mais orgulhosas da Europa, isto é, na nobreza inglesa, na nobreza espanhola e na nobreza alemã.
            A condessa refletiu um instante e depois de curta hesitação prosseguiu:
            - Como compreenderá, meu querido Albert, a pergunta que vou fazer é uma pergunta de mãe. Conviveste de perto com o Sr. de Monte-Cristo e possui a perspicácia, a experiência do mundo e mais tato do que é habitual na tua idade. Acha que o conde é o que parece realmente ser?
            - E que parece ele?
            - Você próprio o disse há pouco: um grande senhor.
            - Disse-lhe, minha mãe, que o consideravam como tal.
            - Mas qual é a sua opnião, Albert?
            - Confesso-lhe que não tenho opinião formada a seu respeito. Julgo que é maltez.
            - Não te perguntei qual era a sua origem; interrogo-te acerca da sua pessoa.
            - Ah, acerca da sua pessoa é diferente! Tenho visto tantas coisas estranhas nele que, se quer que lhe diga o que penso, respondo-lhe que o compararia sem custo com um desses homens de Byron, que a desgraça marcou com o seu selo fatal; com um Manfredo, com um Lara, com um Werner; com um desses “restos”, enfim, de qualquer velha família que, privados da fortuna paterna, arranjaram outra a poder do seu espírito aventureiro, que os colocou acima das leis da sociedade.
            - Diz...
            - Digo que Monte-Cristo é uma ilha no meio do Mediterrâneo, sem habitantes, sem guarnição, covil de contrabandistas de todas as nações, de piratas de todos os países. Quem sabe se esses dignos industriais não pagam ao seu senhor um direito de asilo?
            - É possível - admitiu a condessa, pensativa.
            - Mas não importa - prosseguiu o jovem. -  Contrabandista ou não, tem de admitir, minha mãe, uma vez que o viu, que o Sr. Conde de Monte-Cristo é um homem notável e que terá o maior êxito nos salões de Paris. Olhe, esta manhã mesmo, nos meus aposentos, inaugurou a sua entrada na sociedade enchendo de
estupefação até  Château-Renaud.
            - Que idade pode ter o conde? - perguntou Mercedes, ligando visivelmente grande importância à pergunta.
            - Trinta e cinco a trinta e seis anos, minha mãe.
            - Tão novo? É impossível! - perguntou Mercedes, respondendo ao mesmo tempo ao que lhe dizia Albert e ao que dizia o seu próprio pensamento.
            - Mas é verdade. Disse-me três ou quatro vezes, e decerto sem premeditação, que em tal época tinha cinco anos, noutra dez e noutra doze. E eu, a quem a curiosidade mantinha atento a tais pormenores, comparei as datas e nunca o apanhei em falta. A idade daquele homem singular, que não tem idade, é pois, estou certo, de trinta e cinco anos. De resto, lembre-se, minha mãe, como o seu olhar é vivo, como os seus cabelos são pretos e como a sua testa, apesar de pálida, não tem rugas. Trata-se de uma natureza não só vigorosa, mas também jovem.
            A condessa baixou a cabeça como que sob uma vaga demasiado pesada de pensamentos amargos. 
            - E esse homem te concedeu a sua amizade, Albert?  - perguntou, com um arrepio nervoso.
            - Creio que sim, senhora.
            - E você... também gosta dele?
            - Inspira-me simpatia, senhora, apesar de Franz de Epinay o querer fazer passar a meus olhos por um homem vindo do outro mundo.
            A condessa esboçou um gesto de terror.
            - Albert - disse com voz alterada –, sempre te recomendei que tivesses cuidado com os novos conhecimentos. Agora é um homem e poderias dar-me conselhos a mim própria; no entanto, repito-te: sê prudente, Albert.
            - Para que o conselho me fosse útil seria necessário, querida mãe, que soubesse antecipadamente de que me devo acautelar. O conde nunca joga, o conde só bebe água dourada por uma gota de vinho espanhol, o conde declarou-se tão rico que me não poderia pedir dinheiro emprestado sem cair no ridículo. Que quer que tema da parte do conde?
            - Tem razão - reconheceu a condessa - e os meus terrores são loucos em tomarem por alvo um homem que ainda por cima te salvou a vida. A propósito, o teu pai recebeu-o bem, Albert? É importante que sejamos mais do que delicados com o conde. Ora, o Sr. de Morcerf anda às vezes preocupado, os seus negócios
absorvem-no, e poderia sem querer...
            - O meu pai foi perfeito, senhora - interrompeu-a Albert. - Direi mais: pareceu ficar infinitamente lisonjeado com dois ou três cumprimentos deveras hábeis que o conde insinuou com tanta felicidade como a propósito, como se o conhecesse há trinta anos. Cada uma daquelas flechazinhas elogiosas deve ter
deleitado o meu pai - acrescentou Albert, rindo –, de modo que se separaram os melhores amigos do mundo, a ponto de o Sr. de Morcerf até querer levá-lo à Câmara para que o ouvisse discursar.
            A condessa não respondeu; estava absorta numa meditação tão profunda que fechara mesmo os olhos pouco a pouco. De pé, diante dela, o jovem olhava-a com esse amor filial mais terno e afetuoso nos filhos cujas mães ainda são novas e belas. Depois de ve-la fechar os olhos, ouviu-a respirar um instante na sua suave imobilidade, até  que, julgando-a a dormitar, se afastou nas pontas dos pés e fechou cautelosamente a porta da divisão onde deixava a mãe.
            - Diabo do homem - murmurou abanando a cabeça –, bem lhe predisse em Roma que causaria sensação na sociedade. Avalio o seu efeito por um termômetro infalível: a minha mãe notou-o, e se o notou é porque deve ser notável.
            E desceu às cavalariças com o secreto despeito de, sem seque ter pensado nisso, o conde de Monte-Cristo ter comprado uma parelha que remetia os seus baios para segundo lugar no espírito dos conhecedores.
            - Decididamente - disse –, os homens não são todos iguais. Tenho de pedir ao meu pai que desenvolva este teorema na Câmara Alta. 


Capítulo XLII

O Sr. Bertuccio


            Entretanto, o conde chegara em casa, depois de gastar seis minutos no caminho. Mas esses seis minutos tinham bastado para ser visto por vinte jovens que, conhecedores do preço da parelha que eles próprios não tinham podido comprar, haviam posto a montaria a galope para ver quem era o grande senhor que adquirira para seu uso cavalos de dez mil francos cada um.
            A casa escolhida por Ali e que devia servir de residência ao conde Monte-Cristo ficava situada à direita, subindo os Campos Elísios, entre pátio e jardim. Um maciço muito frondoso que se erguia no meio do pátio ocultava parte da fachada. Partindo desse maciço abriam-se como dois braços duas alamedas que se prolongavam à direita e à esquerda e conduziam as carruagens, uma vez transposto o portão, a uma dupla
escadaria, em cada degrau da qual se via um vaso de porcelana cheio de flores. A casa, isolada no meio de um grande espaço, tinha, além da entrada principal, outra pela Rua de Ponthieu.
            Antes mesmo do cocheiro chamar o porteiro, o portão maciço girou nos gonzos: tinham visto aproximar-se o conde e, em Paris como em Roma, como em toda aparte, ele era servido com a rapidez do relâmpago. O cocheiro entrou, descreveu o semicírculo sem diminuir o andamento e o portão já se fechara quando as rodas ainda rangiam no saibro da alameda.
            A carruagem parou do lado esquerdo da escadaria. Apareceram dois homens à portinhola: um era Ali, que sorriu ao amo com incrível expressão de alegria e se considerou pago com um simples olhar de Monte-Cristo; o outro cumprimentou humildemente e ofereceu o braço ao conde para o ajudar a descer a carruagem.
            - Obrigado, Sr. Bertuccio - agradeceu o conde, saltando agilmente os três degraus do estribo. - O tabelião?
            - Está na salinha, Excelência - respondeu Bertuccio.
            - E os cartões de visita que lhe disse mandasse gravar assim que soubesse o número da casa?
            - Já mandei faze-los, Sr. Conde. Procurei o melhor gravador do Palais-Royal, que executou a chapa diante de mim. O primeiro cartão tirado foi imediatamente levado, conforme as suas ordens, ao Sr. Barão Danglars, deputado, residente na Rua da Chauss‚e-d'Antin, nº  7. Os outros estão em cima da chaminé
do quarto de V. Exª .
            - Muito bem. Que horas são?
            - Quatro horas.
            Monte-Cristo entregou as luvas, o chapéu e a bengala ao mesmo criado francês que correra para fora da antecâmara do conde de Morcerf a fim de chamar a carruagem e entrou na salinha, acompanhado por Bertuccio, que lhe mostrou o caminho.
            - Que mármores pobres os desta antecâmara - observou Monte-Cristo. - Espero que mandem substituir tudo isto.
            Bertuccio inclinou-se. Como dissera o intendente, o tabelião esperava na salinha.
            Era uma respeitável figura de segundo ajudante de tabelião em Paris, elevado à dignidade intransponível de tabelião dos subúrbios. 
            - O senhor é o tabelião encarregado de vender a casa de campo que pretendo comprar? - perguntou Monte-Cristo.
            - Sou, sim, Sr. Conde - respondeu o tabelião.
            - A escritura de venda está pronta?
            - Está sim, Sr. Conde.
            - Trouxe-a?
            - Aqui está.
            - Perfeitamente. E onde fica essa casa que vou comprar? -  perguntou negligentemente Monte-Cristo, dirigindo-se em parte a Bertuccio e em parte ao tabelião.
            O intendente fez um gesto que significava: “Não sei.”
            O tabelião olhou Monte-Cristo com espanto.
            - Como, o Sr. Conde não sabe onde fica a casa que vai comprar? - perguntou.
            - Palavra que não - respondeu o conde.
            - o Sr. Conde não a conhece?
            - E como diabo a devia conhecer se cheguei de Cádiz esta manhã, nunca vim a Paris e é a primeira vez que ponho os pés na França?
            - Isso então é outra coisa - perguntou o tabelião. - A casa que o Sr. Conde vai comprar está situada em Auteuil.
            Ao ouvir estas palavras, Bertuccio empalideceu visivelmente.
            - E onde fica Auteuil? - perguntou Monte-Cristo.
            - A dois passos daqui, Sr. Conde-respondeu o tabelião. - Um pouco depois de Passy, numa situação encantadora, no meio do Bosque de Bolonha.
            - Tão perto? - estranhou Monte-Cristo. - Mas isso não é campo.
            - Eu?! - exclamou o intendente, com estranha precipitação. - Não foi a mim que o Sr. Conde encarregou de escolher essa casa. Digne-se o Sr. Conde recordar-se, procurar na memória, recorrer aos seus próprios apontamentos.
            - Tem razão, agora me lembro! - disse Monte-Cristo. -  Li um anúncio no jornal e deixei-me seduzir pelo título mentiroso: “Casa de campo.”
            - Ainda há tempo de desistir - interveio vivamente Bertuccio. - Se V. Exª  me quiser encarregar de procurar em outro lado, lhe arranjarei o que houver de melhor, quer em Enghien, quer em Fontenay-aux-Roses, quer em Bellevue.
            - Não vale a pena - perguntou Monte-Cristo, despreocupadamente. - já que me saiu esta na rifa, ficarei com ela.
            - E tem razão, senhor - declarou vivamente o tabelião, que receava perder os seus honorários. - É uma propriedade encantadora: muita água, bosques frondosos, habitação confortável, apesar de abandonada há muito tempo... sem contar com o mobiliário, que, por mais velho que seja, tem valor, sobretudo hoje que todas as pessoas procuram antiguidades. Perdão, mas julgo que o Sr. Conde tem o gosto da sua época.
            - Diga que ainda tenho - corrigiu Monte-Cristo. - É então aceitável?
            - Oh, senhor, é melhor do que isso, é magnífica!
            - Pronto, não percamos semelhante oportunidade - disse Monte-Cristo. - A escritura, por favor, Sr. tabelião.
            E assinou-a rapidamente, depois de deitar uma olhadela ao lugar onde figuravam a situação da casa e os nomes dos proprietários.
            - Bertuccio, dê cinquenta e cinco mil francos a este senhor. 
            O intendente saiu com passo pouco firme e voltou com um maço de notas, que o tabelião contou como homem habituado a receber o seu dinheiro apenas depois de cumpridas todas as formalidades legais.
            - E agora. Está tudo em ordem? - perguntou o conde.
            - Tudo, Sr. Conde.
            - Tem as chaves?
            - Estão em poder do porteiro que guarda a casa, mas aqui está uma ordem minha para entregá-las ao novo proprietário.
            - Muito bem.
            E Monte-Cristo fez ao tabelião um sinal de cabeça que queria dizer: “Já não preciso de si, pode ir embora.”
            - Mas - arriscou o respeitável tabelião - parece-me que o Sr. Conde se enganou: ao todo são apenas cinquenta mil francos.
            - E os seus honorários?
            - Estão incluídos nesta importância, Sr. Conde.
            - Mas o senhor não veio de Autouil até aqui?
            - Vim, sem dúvida.
            - Nesse caso, devo lhe pagar o incômodo - perguntou o conde.
            E despediu-o com um aceno.
            O tabelião saiu às arrecuas e inclinando-se até  ao chão. Era a primeira vez, desde que assumira as suas funções, que encontrava um cliente assim.
            - Acompanhe esse senhor - ordenou o conde a Bertuccio.
            O intendente saiu atrás do tabelião.
            Assim que ficou só, o conde tirou da algibeira uma carteira com fechadura, que abriu com uma chavinha que trazia ao pescoço e de que nunca se separava.
            Depois de procurar um instante, deteve-se numa folha de papel com alguns apontamentos, que confrontou com a escritura de venda que estava em cima da mesa, e, apelando para as suas recordações, murmurou:
            - Auteuil, Rua de la Fontaine, nº  28... É isto, não há dúvida. E agora, deverei confiar numa confissão arrancada pelo terror religioso ou pelo terror físico? Enfim, dentro de uma hora saberei tudo. Bertuccio! - chamou, batendo com uma espécie de martelinho de cabo dobrável numa campainha, que emitiu um som agudo e prolongado, semelhante ao de um gongo. - Bertuccio!
            O intendente apareceu no limiar.
            - Sr. Bertuccio, não me disse uma vez que já viajara na França? - perguntou o conde.
            - Por certas partes da França, sim, Excelência.
            - Conhece os arredores de Paris, sem dúvida?
            - Não, Excelência, não - respondeu o intendente, com uma espécie de tremor nervoso que Monte-Cristo, bom conhecedor de emoções, atribuiu, e com razão, a uma grande inquietação.
            - É deplorável que nunca tenha visitado os arredores de Paris, pois desejo visitar esta mesma tarde a minha nova propriedade, e acompanhando-me me daria sem dúvida informações úteis.
            - Ir a Auteuil?! - exclamou Bertuccio, cujo rosto acobreado se tornou quase lívido. - Eu, ir a Auteuil?!
            - Então, que tem de extraordinário que vá a Auteuil, quer me dizer? Quando eu residir em Auteuil terá de ir até lá, uma vez que faz parte do pessoal. 
            Bertuccio baixou a cabeça diante do olhar imperioso do amo e ficou imóvel, sem responder.
            - Esta agora! Que mosca lhe mordeu? Terei de tocar segunda vez a chamar a carruagem? - disse Monte-Cristo no tom com que Luís XIV pronunciou o famoso: “Quase esperei! “
            Bertuccio não deu mais do que um salto da salinha à antecâmara, e gritou com a voz rouca:
            - Os cavalos de Sua Excelência!
            Monte-Cristo escreveu duas ou três cartas. Quando lacrava a última, o intendente reapareceu.
            - A carruagem de Sua Excelência está na porta - anunciou.
            - Muito bem! Pegue nas suas luvas e no seu chapéu - ordenou Monte-Cristo.
            - Vou com o Sr. Conde? - surpreendeu-se Bertuccio.
            - Sem dúvida. Tem de dar as suas ordens, pois conto habitar aquela casa.
            Não havia exemplo de alguém ter replicado a uma ordem do conde. Por isso, sem fazer qualquer objeção, o intendente seguiu o amo, que seguiu para a carruagem e lhe fez sinal para o acompanhar. O intendente sentou-se respeitosamente no banco da frente.


Capítulo

A casa de Auteuil


            Monte-Cristo notara que ao descer a escadaria Bertuccio se benzera à moda dos Corsos, isto é, cortando o ar em cruz com o polegar, e que ao tomar o seu lugar na carruagem murmurara muito baixo uma curta prece. Qualquer outro que não fosse um homem curioso teria compaixão da singular repugnância
manifestada pelo digno intendente acerca do passeio extra muros planejado pelo conde; mas, ao que parece, este era demasiado curioso para dispensar Bertuccio daquela viagenzinha.
            Dentro de vinte minutos estavam em Auteuil. A emoção do intendente fora sempre aumentando. Quando entraram na aldeia, Bertuccio, encolhido no canto da carruagem, começou a examinar febrilmente todas as casas diante das quais passavam.
            - Mande parar na Rua de la Fontaine, no nº  28 - ordenou o conde, cravando implacavelmente o olhar no intendente.
            O rosto de Bertuccio cobriu-se de suor; no entanto, obedeceu e, debruçando-se da carruagem, gritou ao cocheiro:
            - Rua de la Fontaine, nº  28!
            O nº  28 ficava na extremidade da aldeia. Durante a viagem anoitecera, ou antes, uma nuvem negra carregada de eletricidade dava às trevas prematuras a aparência e a solenidade de um episódio dramático.
            A carruagem parou e o trintanário precipitou-se para a portinhola, que abriu. 
            - Então, não desce, Sr. Bertuccio? Tenciona ficar na carruagem! Em que diabo pensa esta noite? - disse o conde.
            Bertuccio precipitou-se para a portinhola e ofereceu o ombro ao conde, que desta vez se apoiou nele e desceu um a um os três degraus do estribo.
            - Bata e anuncie-me - ordenou o conde.
            Bertuccio bateu, a porta abriu-se e o porteiro apareceu.
            - Quem é? - perguntou.
            - É o seu novo amo, bom homem - respondeu o trintanário, e estendeu ao porteiro o bilhete de apresentação dado pelo tabelião.
            - Então a casa foi vendida? - perguntou o porteiro. - E é esse senhor que a vem habitar?
            - Sou, sim, meu amigo - respondeu o conde. - E procurarei que não tenha saudades do seu antigo amo.
            - Oh, senhor, as saudades já eram poucas, pois o víamos muito raramente! - perguntou o porteiro. - há mais de cinco anos que não vinha aqui e fez muito bem em vender uma casa que lhe não rendia absolutamente nada.
            - Como se chamava o seu antigo amo? - perguntou Monte-Cristo.
            - Era o Sr. Marquês de Saint-Méran. Oh, com certeza não vendeu a casa pelo que ela lhe custou!
            - O marquês de Saint-Méran... - repetiu Monte-Cristo. - Parece que esse nome não é desconhecido. O marquês de Saint-Méran...
            Pareceu procurar na memória.
            - Um velho fidalgo - continuou o porteiro –, um fiel servidor dos Bourbons. Tinha uma filha única, que casou com o Sr. de Villefort, que foi procurador régio em Nímes e depois em Versalhes.
            Monte-Cristo deitou um olhar a Bertuccio, que encontrou mais lívido do que a parede a que se encostara para não cair.
            - Mas essa filha não morreu? - perguntou Monte-Cristo. - Parece-me que ouvi dizer isso.
            - Sim, senhor, há vinte e um anos, e desde então não vimos mais de três vezes o pobre marquês.
            - Obrigado, obrigado - agradeceu Monte-Cristo, considerando, em vista da prostração do intendente, que não devia esticar mais a corda, pois poderia quebrá-la. - Obrigado! Arranje-me luz, bom homem.
            - Devo acompanhar o senhor?
            - Não, é inútil. Bertuccio me iluminará.
            E Monte-Cristo acompanhou estas palavras da oferta de duas moedas de ouro, que provocaram uma explosão de bênçãos e suspiros.
            - Ah, senhor, não tenho velas aqui! - exclamou o porteiro depois de procurar inutilmente no rebordo da chaminé e nas prateleiras contíguas.
            - Traga uma das lanternas da carruagem, Bertuccio, e mostre-me as casas - ordenou o conde.
            O intendente obedeceu sem comentários, mas era fácil de ver, pela tremura da mão que segurava a lanterna, o que lhe custava obedecer.
            Percorreram o térreo, bastante vasto; o primeiro andar, composto de uma sala, uma casa de banho e dois quartos. Um dos quartos comunicava com uma escada de caracol, que terminava no jardim. 
            - Olha, uma escada de comunicação - observou o conde. - Não deixa de ser cômodo... Ilumine-me, Sr. Bertuccio. Passe adiante e vejamos aonde nos leva esta escada.
            - Vai dar ao jardim, senhor - informou Bertuccio.
            - Como sabe isso, pode me dizer?
            - Isto é, deve dar...
            - Bom, verifiquemos.
            Bertuccio soltou um suspiro e foi à frente. A escada terminava efetivamente no jardim.
            O intendente parou junto da porta exterior.
            - Vamos, Sr. Bertuccio! - chamou-o o conde.
            Mas o homem estava acabrunhado, aparvalhado, aniquilado. Os seus olhos alucinados procuravam à sua volta como que os vestígios de um passado terrível, e com as mãos crispadas parecia repelir recordações horríveis.
            - Então? - insistiu o conde.
            - Não! Não! - gritou Bertuccio, pousando a mão na esquina do muro interior.- Não, senhor, não irei mais longe, é impossível!
            - Que está dizendo? - inquiriu a voz irresistível de Monte-Cristo.
            - O senhor bem vê que nada disto é natural! - exclamou o intendente. - Que querendo comprar uma casa em Paris fosse comprar precisamente em Auteuil, e que comprando-a em Auteuil essa casa fosse o nº  28 da Rua de la Fontaine! Oh, porque lhe não disse tudo antes, senhor?! Com certeza não teria exigido que eu viesse. Esperava que a casa do Sr. Conde fosse outra e não esta. Como se não existisse outra casa em Auteuil além da do assassínio!
            - Oh! Oh! - exclamou o conde, parando de súbito. - Que palavra horrível acaba de pronunciar! Diabo de homem! Corso de uma figa! Sempre mistérios ou superstições! Vamos, pegue a lanterna e visitemos o jardim. Espero que não tenha medo na minha companhia!
            Bertuccio pegou na lanterna e obedeceu.
            Aberta a porta, depararam com um céu baço, no qual a Lua se esforçava em vão por lutar contra um mar de nuvens que a cobriam com as suas vagas sombrias, que iluminava um instante e em seguida desapareciam, ainda mais escuras, nas profundezas do infinito.
            O intendente quis seguir pela esquerda.
            - Não, senhor - disse Monte-Cristo. - Para que havemos de ir pelas alamedas? Temos aqui um excelente relvado, sigamos em frente.
            Bertuccio enxugou o suor que lhe escorria da testa, mas obedeceu. No entanto, continuava a dirigir-se para a esquerda. Monte-Cristo, pelo contrário, dirigia-se para a direita.  Chegado junto de um maciço de  árvores deteve-se.
            O intendente não se conteve.
            - Afaste-se, senhor! - gritou. - Afaste-se, suplico-lhe! Está precisamente no lugar!
            - Qual lugar?
            - Mesmo no lugar onde ele caiu.
            - Meu caro Sr. Bertuccio - perguntou Monte-Cristo, rindo domine-se, peço-lhe. Não estamos aqui em Sartêne ou na Corte. Isto não é de modo algum  um matagal, mas sim um jardim inglês, mal conservado, admito, mas que lá por isso é desculpado caluniar.
            - Não fique aí senhor, não fique aí, suplico-lhe!
            - Creio que enlouqueceu, mestre Bertuccio - declarou  friamente o conde. - Se assim é, diga-me, pois o mandarei internar em qualquer manicômio antes que aconteça, alguma desgraça.
            - Infelizmente, Excelência - disse Bertuccio abanando a cabeça e agitando as mãos, numa atitude que faria rir o conde se pensamento de interesse superior o não tivessem dominado naquele momento e tornado atentíssimo às mais pequenas expansões daquela consciência timorata –, infelizmente Excelência, a desgraça já aconteceu.
            - Sr. Bertuccio - disse o conde –, desculpe dizer-lhe que a gesticular dessa maneira torce os braços e rola os olhos como um possesso de cujo corpo o Diabo não quer sair. Ora, tenho verificado que quase sempre o Diabo mais agarrado ao seu lugar é um segredo. Sabia que o senhor era corso, via-o constantemente carrancudo e a ruminar qualquer velha história de vendetta, e desculpava-lhe isso na Itália, porque na Itália essas coisas são compreensíveis, mas na França o assassinato é geralmente considerado de muito mau gosto. Há guardas que se ocupam dele, juizes que o condenam e cadafalsos que o vingam.
            Bertuccio juntou as mãos, e como, ao executar as suas diversas evoluções, não largava a lanterna, a luz iluminou-lhe o rosto transtornado.
            Monte-Cristo examinou-o com o mesmo olhar com que em Roma assistira ao suplício de Andrea. Depois, num tom de voz que fez correr um novo arrepio pelo corpo do pobre intendente, disse:
            - O abade Busoni mentiu-me, portanto, quando, depois da sua viagem a França em 1829, o mandou ter comigo com uma carta de recomendação em que me louvava as suas preciosas qualidades. Pois bem, vou escrever ao abade. E o tornarei responsável pelo seu protegido e saberei sem dúvida que caso de assassnato é esse. Mas desde já o previno, Sr. Bertuccio, que quando visito um país tenho o hábito de respeitar as suas leis e que não tenho vontade de, por sua causa, arranjar problemas com a justiça francesa.
            - Não faça isso, Excelência! Tenho-o servido fielmente, não é verdade? - protestou Bertuccio, desesperado. - Tenho sido sempre um homem honesto e até  praticado o máximo de boas ações ao meu alcance.
            - Não digo que não - perguntou o conde –, mas por que diabo está agitado dessa maneira? E mau sinal: - uma consciência pura não traz tanta palidez às faces nem tanta febre às mãos de um homem...
            - Mas, Sr. Conde - contrapós Bertuccio, hesitante –, não foi o senhor mesmo quem me disse que o Sr. Abade Busoni, que ouviu a minha confissão nas prisões de Nímes, o prevenira, ao mandar-me ter consigo, de que eu tinha um grande peso na consciência?
            - Pois preveniu, mas como mo recomendava dizendo-me que seria um excelente intendente, julguei que tivesse roubado, apenas.
            - Oh, Sr. Conde! - exclamou Bertuccio, com desdém.
            - Ou que, como era corso, não tivesse podido resistir ao desejo de “fazer uma pele”, como dizem na Côrsega por antífrase, quando, pelo contrário, “desfazem” uma. 
            - Pois bem, sim, meu senhor, sim, meu bom senhor, é isso! - gritou Bertuccio, ajoelhando diante do conde. - Sim, foi uma vingança, juro-lhe, uma simples vingança.
            - Compreendo, mas o que não compreendo é que seja precisamente esta casa a galvanizá-lo a esse ponto.
            - Mas, senhor, não é isso tudo quanto há de mais natural, se foi nesta casa que a vingança se  consumou?
            - O quê, na minha casa?!
            - Oh, senhor, ela ainda lhe não pertencia – respondeu ingenuamente Bertuccio.
            - De quem era então? Do Sr. Marquês de Saint-Méran, creio que foi o que nos disse o porteiro. Que diabo tinha o senhor contra o marquês de Saint-Méran para querer se vingar dele?
            - Oh, não era dele, senhor, era do outro!
            - Que estranha coincidência - murmurou Monte-Cristo, parecendo submeter-se às suas reflexões - vir ter por acaso, sem qualquer preparação, a uma casa onde se deu uma cena que lhe causa tão horríveis remorsos...
            - Senhor, tenho certeza de que é à fatalidade que se deve tudo isto - declarou o intendente. - O senhor começa por comprar uma casa precisamente em Auteuil, e essa casa é aquela onde cometi um assassinato; depois, o senhor desce ao jardim precisamente pela escada que ele desceu, e para precisamente no lugar onde ele recebeu a punhalada... A dois passos daí, debaixo desse plátano, estava a cova onde ele acabava de enterrar a criança. Nenhuma dessas coisas se deve ao acaso, não, porque nesse caso o acaso se assemelharia demasiado à Providência.
            - Vejamos então, Sr. Corso: suponhamos que tudo isto é obra da Providência; suponho sempre tudo o que quero... De resto, é necessário fazer concessões aos espíritos doentes. Vejamos, puxe pela memória e conte-me o que se passou.
            - Contei-o apenas uma vez e foi ao abade Busoni. Essas coisas - acrescentou Bertuccio, abanando a cabeça - só se dizem no segredo da confissão.
            - Nesse caso, meu caro Bertuccio - perguntou o conde - achará natural que o devolva ao seu confessor. Fará com ele frade cartuxo ou bernardo e confiarão um ao outro os seus segredos. Pela minha parte, receio ter ao meu serviço um homem que tem medo de semelhantes fantasmas e não me agrada que o meu pessoal não se  atreva a passear de noite no meu jardim. Depois, confesso, não apreciaria muito a visita de algum
comissário de polícia. Porque, tome nota disto, mestre Bertuccio: na Itália, só se paga à justiça quando ela se cala, mas na França só se paga, pelo contrário, quando ela fala. Julgava-o um bocadinho corso, muito contrabandista e habilíssimo intendente, mas verifico que ainda possui outras capacidades. Não quero mais nada consigo, Sr. Bertuccio.
            - Oh, senhor, senhor! - exclamou o intendente, aterrorizado com semelhante ameaça. - Oh, se é preciso apenas isso para que continue ao seu serviço, falarei, direi tudo! E se o deixar, que seja para subir ao cadafalso.
            - Bom, assim é diferente perguntou Monte-Cristo. - Mas se tenciona mentir, pense bem: será melhor não dizer nada.
            - Não, senhor, juro-lhe pela salvação da minha alma que lhe direi tudo! Porque o abade Busoni só soube uma parte do meu segredo... Mas primeiro  suplico-lhe que se afaste desse plátano. Veja, o luar vai embranquecer aquela nuvem, e aí, colocado como está, envolto nessa capa que me oculta a sua figura e a assemelha à do Sr. de Villefort...
            - Como, isso passou-se com o Sr. de Villefort?! - exclamou Monte-Cristo.
            - Vossa Excelência conhece-o?
            - O antigo procurador régio de Nímes?
            - Sim.
            - Aquele que casou com a filha do marquês de Saint-Méran?
            - Sim.
            - E que no foro tinha fama de ser o mais honesto, o mais severo e o mais rígido magistrado?
            - Bom, Sr. Conde - afirmou Bertuccio –, esse homem de reputação inatacável...
            - Sim.
            - Era um infame.
            - Ora, ora, impossível! - perguntou Monte-Cristo.
            – Pois garanto-lhe que é como lhe digo.
            - Deveras? - interessou-se Monte-Cristo. - E o senhor tem prova disso?
            - Tinha-a, pelo menos.
            - E perdeu-a, desastrado?
            - Perdi. Mas procurando bem será possível reencontrá-la.
            - Sim? - disse o conde. - Conte-me isso, Sr. Bertuccio, porque o caso começa realmente a interessar-me.
            E o conde, cantarolando uma ariazinha da lucia foi sentar-se num banco, enquanto Bertuccio o seguia procurando reunir as suas recordações e ficava de pé diante dele.


Capítulo XLIV

A “vendetta “


            - Por onde deseja que comece, Sr. Conde? - perguntou Bertuccio.
            - Por onde quiser - respondeu Monte-Cristo -, pois não sei absolutamente nada.
            - Mas eu julgava que o Sr. Abade Busoni dissera a V. Exª ...
            - Sim, contou-me alguns pormenores, sem dúvida, mas se  passaram sete ou oito anos e esqueci tudo isso.
            - Então posso, sem receio de aborrecer V. Exª ...
            - Vamos, Sr. Bertuccio, vamos! Me servirá de jornal da noite...
            - O caso remonta a 1815.
            - Ah, ah, não se pode dizer que foi ontem, 1815! - exclamou Monte-Cristo.
            - Não, senhor, e no entanto tenho tão presentes na memória os mais pequenos pormenores como se estivéssemos apenas no dia seguinte. Eu tinha um  irmão mais velho, que estava a serviço do imperador. Tinha o posto de tenente num regimento constituído inteiramente por corsos. Esse irmão era o meu único amigo. Tínhamos ficado órfãos, eu aos cinco anos e ele aos dezoito, e ele me criou como se fosse seu filho. Em 1814, no tempo dos Bourbons, ele casou-se. O imperador regressou da ilha de Elba, o meu irmão voltou imediatamente ao serviço e, ferido ligeiramente em Waterloo, retirou-se com o Exército para la do Loire.
            - Mas o que me está contando é a história dos Cem Dias, Sr. Bertuccio, e essa já está contada, se me não engano - observou o conde.
            - Desculpe, Excelência, mas estes primeiros pormenores são necessários e o senhor prometeu-me ser paciente.
            - Continue! Continue! Só tenho uma palavra.
            - Um dia recebemos uma carta. Devo dizer-lhe que residíamos na aldeiazinha de Rogliano, na extremidade do cabo Corso. A carta era do meu irmão. Dizia-nos que o Exército fora desmobilizado e que regressava por Châteauroux, Clermond-Ferrand, Le Puy e Nímes. Pedia-me que no caso de dispor de algum dinheiro, que o mandasse para Nímes, ao cuidado de um estalajadeiro nosso conhecido, com o qual eu mantinha certas relações.
            - De contrabando - acrescentou Monte-Cristo.
            - Meu Deus, Sr. Conde, é preciso viver!
            - Decerto. Continue.
            - Eu gostava muito do meu irmão, como já lhe disse, Excelência. Por isso, resolvi não lhe mandar o dinheiro, mas sim levar-lhe eu mesmo. Possuía um milhar de francos, deixei quinhentos com Assunta, a minha cunhada, peguei os outros quinhentos e pus-me a caminho de Nímes. Era coisa fácil, pois tinha a minha barca e um carregamento para transportar. Tudo secundava o meu projeto. Mas uma vez a barca carregada,
começaram a soprar ventos contrários e estivemos quatro ou cinco dias sem poder entrar no Rôdano. Por fim  conseguimos e subimos até  Arles. Deixei a barca entre Bellegarde e Beaucaire e tomei o caminho de Nímes.
            - Chegamos, não é verdade?
            - Sim, senhor. Desculpe, mas como V. Exª  verá, só lhe digo as coisas absolutamente necessárias. Ora, estava-se no momento dos famosos massacres do Meio-Dia. Andavam por lá dois ou três bandidos chamados Trestaillon, Truphemy e graffan, quem degolavam nas ruas todos aqueles que suspeitavam ser
bonapartistas. O Sr. Conde ouviu decerto falar desses assassínios?
            - Vagamente. Estava muito longe da França nessa época. Continue.
            - Quem entrava em Nímes caminhava literalmente sobre sangue. A cada passo se encontravam cadáveres. Os assassinos, organizados em quadrilhas, matavam, saqueavam e queimavam.
            “Arrepiei-me ao ver aquela carnificina. Não por mim. Eu, simples pescador corso, não tinha grande coisa a temer. Pelo contrário, aqueles tempos eram bons para nós, contrabandistas. Mas temi pelo meu irmão, soldado do Império, de regresso do Exercito do Loire, com o seu uniforme e as suas dragonas, e
que, por consequência, tinha tudo a recear.
            “Corri até a casa do nosso estalajadeiro. Os meus pressentimentos não me tinham enganado: o meu irmão chegara na véspera a Nímes e fora assassinado à porta daquele a quem ia pedir hospitalidade. 
            “Fiz tudo o que era possível para descobrir os assassinos, mas ninguém se atreveu a me dizer os seus nomes, de tal forma eram temidos. Lembrei-me então dessa justiça francesa de que tanto tinham me falado, que não teme nada, e fui ter com o procurador régio.
            - E esse procurador régio chamava-se Villefort? - perguntou negligentemente Monte-Cristo.
            - Chamava, Excelência. Viera de Marselha, onde fora substituto. O seu zelo valera-lhe a promoção. Dizia-se que fora dos primeiros a anunciar ao Governo o desembarque da ilha de Elba.
            - Portanto - prosseguiu Monte-Cristo –, apresentou-se no seu gabinete.
            “- Senhor - disse-lhe eu - o meu irmão foi assassinado ontem nas ruas de Nímes, não sei por quem, mas é sua missão sabê-lo. O senhor é aqui chefe da justiça e compete à justiça vingar aqueles que não soube defender.
            “- E quem era o seu irmão? - perguntou o procurador régio.
            “- O meu irmão era tenente do batalhão corso.
            “- Um soldado do usurpador, portanto?
            “- Um soldado dos exércitos franceses.
            “- Bom - replicou ele - empunhou a espada, morreu pela espada.
            “- Engana-se, senhor, morreu pelo punhal.
            “- Que quer que faça? - respondeu o magistrado.
            “- O que lhe disse: quero que o vingue.
            “- E de quem?
            “- Dos seus assassinos.
            “- Não sei quem são!
            “- Mande procurá-los.
            “- Para quê? O seu irmão deve ter tido qualquer questão e bateu-se em duelo. Todos esses antigos soldados se entregam a excessos, de que se saíam bem no tempo do Império, mas de que se saem mal agora. O povo do Meio-Dia não gosta de soldados nem de excessos.
            “- Senhor - insisti - não é por mim que lhe peço. Eu, chorarei ou me vingarei e pronto. Mas o meu pobre irmão tinha mulher. Se me acontecesse também alguma desgraça, essa pobre criatura morreria de fome, pois vivia exclusivamente dos ganhos do meu irmão. Obtenha-lhe uma pensão do Governo...
            “- Cada revolução tem as suas catástrofes - respondeu o Sr. de Villefort. - O seu irmão foi vítima desta, foi uma infelicidade, mas o Governo não deve nada à família por isso. Se fossemos julgar todas as vinganças que os partidários do usurpador exerceram sobre os partidários do rei quando por sua vez dispunham do poder, o seu irmão talvez fosse hoje condenado à morte. O que aconteceu é naturalíssimo; é a lei das represálias.
            “- O quê, senhor - gritei –, será possível que me fale assim, o senhor, um magistrado?!
            “- Todos estes corsos são loucos, palavra de honra! - respondeu o Sr. de Villefort. - Julgam ainda que o seu compatriota é imperador. Engana-se no tempo, meu caro. Devia ter vindo dizer-me isso há dois meses. Hoje é demasiado tarde. Retire-se, portanto, porque se não se retirar, mandarei-o pôr para fora.
            “Olhei-o um instante para ver se haveria alguma coisa a esperar de uma nova  súplica. Mas aquele homem era de pedra. Aproximei-me dele e disse-lhe a meia voz:
            “- Bom, uma vez que conhece os Corsos, deve saber que cumprem a sua palavra. Acha bom que tenham matado o meu irmão por ser bonapartista, porque o senhor é monárquico. Pois bem, eu que também sou banapartista, declaro-lhe uma coisa: que o matarei. A partir deste momento declaro-lhe a vendetta. Assim, acautele-se, tome o maior cuidado possível, porque da primeira vez que nos encontrarmos frente a frente soará a sua última hora.
            “E dito isto, antes que se recompusesse da surpresa, abri a porta e fugi.
            - Ah, ah! - exclamou Monte-Cristo. - Então o senhor, com essa cara de quem não quebra um prato, faz dessas coisas, Sr. Bertuccio? E a um procurador régio, ainda por cima! E ele sabia, ao menos, o que queria dizer a palavra vendetta?
            - Sabia-o tão bem que a partir daquele momento nunca mais saiu sozinho. Fechou-se em casa e mandou-me procurar por toda a parte. Felizmente estava tão bem escondido que não conseguiu encontrar-me. Então, o medo apoderou-se dele e receou ficar mais tempo em Nímes. Solicitou a transferência e, como era de fato um homem influente, nomearam-no para Versalhes. Mas, como o senhor sabe, não há distâncias para um corso que jurou vingar-se do seu inimigo, e a sua carruagem, por melhor conduzida que fosse, nunca teve mais do que meio dia de avanço sobre mim, que no entanto a seguia a pé.
            “O importante não era matá-lo; tive cem vezes oportunidade para isso. Mas era preciso matá-lo sem ser descoberto e sobretudo sem ser preso. Desde então já não me pertencia: tinha de proteger e sustentar a minha cunhada. Durante três meses vigiei o Sr. de Villefort; durante três meses não deu um passo, um passeio, sem que o meu olhar o não seguisse. Por fim, descobri que vinha misteriosamente a Auteuil. Voltei a
segui-lo e vi-o entrar nesta casa onde estamos. Simplesmente, em vez de entrar como entraria qualquer pessoa, pela porta principal, vinha a cavalo ou de carruagem, deixava a carruagem ou o cavalo na estalagem e entrava por aquela portinha que vê ali.
            Monte-Cristo acenou com a cabeça a confirmar que no meio da escuridão distinguia efetivamente a entrada indicada por Bertuccio.
            - Como já não necessitava permanecer em Versalhes, instalei-me em Auteuil e informei-me. Se o queria apanhar, era evidentemente aqui que devia armar a minha cilada.
            “- A casa pertencia, como o porteiro disse a V. Exª , ao Sr. de Saint-Méran, sogro de Villefort. O Sr. de Saint-Méran residia em Marselha, por consequência, esta casa de campo era-lhe inútil. Dizia-se por isso que a alugara a uma jovem viúva que todos conheciam apenas por "a baronesa".
            “De fato, uma noite, espreitando por cima do muro, vi uma mulher nova e bonita passear sozinha neste jardim, que nenhuma janela estranha dominava. Olhava com frequência para o lado da portinha e compreendi que naquela noite esperava o Sr. de Villefort. Quando chegou suficientemente perto para, apesar do escuro, poder distinguir as feições, vi uma mulher nova e bonita, de dezoito ou dezenove anos, alta e loura. Como
trazia um simples penteador e nada lhe comprimia a cintura, pude notar que estava grávida e que a gravidez parecia até bastante adiantada.
            “Pouco depois abriu-se a portinha. Entrou um homem. A jovem correu o  mais depressa que pode ao seu encontro. Lançaram-se nos braços um do outro, beijaram-se ternamente e dirigiram-se juntos para a casa.
            “Aquele homem era o Sr. de Villefort. Calculei que quando saísse, sobretudo se saísse alta noite, deveria atravessar sozinho o jardim em todo o seu comprimento.
            - E soube depois o nome da mulher? - perguntou o conde.
            - Não, Excelência - respondeu Bertuccio. - Como vai ver, não tive tempo de descobrir.
            - Continue.
            - Naquela noite - prosseguiu Bertuccio - talvez tivesse podido matar o procurador régio; mas ainda não conhecia suficientemente o jardim, em todos os seus pormenores, e receava não conseguir fugir se o não matasse depressa e alguém acorresse aos seus gritos. Adiei, pois, a morte para o próximo encontro, e para que nada me escapasse aluguei um quartinho com janela para a rua que corria ao longo do muro do jardim.
            “Três dias depois, por volta das sete horas da tarde, vi sair da casa um criado a cavalo, que tomou a galope o caminho que levava à estrada de Sevres. Presumi que ia a Versalhes e não me enganava. Três horas mais tarde, outro homem a pé, envolto numa capa, abriu a portinha, que se fechou atrás dele.
            “Desci rapidamente. Embora não tivesse visto o rosto de Villefort, reconheci-o pelas pulsações do meu coração. Atravessei a rua e alcancei um marco colocado na esquina do muro e com o auxílio do qual olhara pela primeira vez para o jardim
            “Desta vez não me limitei a olhar - tirei a minha navalha da algibeira, verifiquei se a ponta estava bem afiada e saltei por cima do muro.
            “O meu primeiro cuidado foi correr para a porta. Tinha deixado a chave na fechadura e tomara a simples precaução de lhe dar duas voltas.
            “Nada dificultava a minha fuga por aquele lado. Pus-me a estudar o local. O jardim formava um retângulo, tinha um relvado de fina relva inglesa no meio e aos cantos do relvado havia maciços de árvores de folhagem abundante e todas entrelaçadas de flores de Outono.
            “Para ir da casa à portinha ou da portinha à casa, quer entrasse, quer saísse, o Sr. de Villefort era obrigado a passar junto de um dos maciços.
            “Estavamos em fins de Setembro. O vento soprava com força. Um luar pálido e velado a cada instante por grossas nuvens que deslizavam rapidamente no céu clareava o saibro das alamedas que conduziam a casa, mas não conseguia penetrar nos maciços frondosos, nos quais se poderia esconder um homem sem receio de ser descoberto.
            “Ocultei-me no que ficava mais perto da passagem de Villefort. Mal me instalei, julguei ouvir gemidos no meio das rajadas de vento que curvavam as árvores por cima da minha cabeça. Mas, como sabe, ou antes, não sabe, Sr. Conde, aquele que espera o momento de cometer um assassinato julga sempre ouvir gritos abafados no ar. Passaram duas horas durante as quais, por várias vezes, me pareceu ouvir os mesmos
gemidos. Deu-se a meia-noite.
            “Quando o último som vibrava ainda, lúgubre e ressoante, vi um clarão iluminar as janelas da escada oculta pela qual descemos há pouco.
            “A porta abriu-se e o homem da capa reapareceu. Chegara o terrível momento. Mas havia tanto tempo que me preparara para ele que nada em mim fraquejou. Puxei da navalha, abri-a e esperei. 
            “O homem da capa veio direito a mim. Mas à medida que avançava no espaço descoberto, julguei notar que trazia uma arma na mão direita. Tive medo, não de uma luta, mas sim de um malogro. Quando, porém, chegou apenas a alguns passos de num, verifiquei que o que tomara por uma arma não passava de uma enxada.
            “Ainda não conseguira adivinhar com que fim o Sr. de Villefort trazia uma enxada na mão, quando ele parou na orla do maciço, deitou um olhar à sua volta e começou a abrir um buraco na terra. Foi então que descobri que havia qualquer coisa na capa, que acabava de depositar no relvado para ter os movimentos mais livres.
            “Então, confesso, insinuou-se no meu ódio um pouco de curiosidade. Quis ver o que vinha fazer ali Villefort. Fiquei imóvel, sem respirar, e esperei.
            “Depois acudiu-me uma idéia, que se confirmou quando vi o procurador régio tirar da capa um cofrezinho de dois pés de comprimento e seis a oito polegadas de largura.
            “Deixei-o depositar o cofre na cova e cobri-lo de terra. Em seguida, calcou com os pés a terra fresca, para fazer desaparecer os vestígios da sua obra noturna. Atirei-me então a ele e cravei-lhe a navalha no peito, dizendo:
            “- Sou Giovanni Bertuccio! A tua morte para o meu irmão, o teu tesouro para a sua viúva! Bem vês que a minha vingança é mais completa do que esperava.
            “Não sei se ouviu estas palavras; não creio, porque caiu sem soltar um grito. Senti as golfadas do seu sangue jorrarem-me escaldantes sobre as mãos e o rosto; mas estava ébrio, delirava, e aquele sangue refrescava-me em vez de me queimar. Num segundo, desenterrei o cofrezinho com o auxílio da enxada, e depois, para que ninguém notasse que o roubara, enchi por minha vez o buraco de terra, atirei a enxada por cima do muro, corri para a porta, saí e fechei-a com duas voltas pelo lado de fora. Guardei a chave e fugi.
            - Bom, pelo que vejo um assassiniozinho, seguido de roubo - observou Monte-Cristo.
            - Não, Excelência - respondeu Bertuccio –, uma vendetta, segui da de restituição.
            - E a importância era avultada, ao menos?
            - Não era dinheiro.
            - Ah! Sim, já me lembro - disse Monte-Cristo. – Não se referiu a uma criança?
            - Justamente, Excelência. Corri para o rio, sentei-me no talude e, ansioso por saber o que continha o cofre, fiz saltar a fechadura com a navalha.
            “Num cueiro de fina cambraia de linho estava envolta uma criança recém-nascida. O rosto purpúreo e as mãos roxas indicavam que devia ter sucumbido a asfixia causada por ligamentos naturais enrolados à volta do pescoço. No entanto, como ainda não estava fria, hesitei em atirá-la à  água que me corria aos pés. Com efeito, passado um instante, julguei notar uma leve pulsação na região do coração. Libertei-lhe o  pescoço do cordão que o envolvia e, como fora enfermeiro no hospital de Bástia, fiz o que faria um médico em semelhantes circunstâncias, isto é: insuflei-lhe corajosamente ar nos pulmões, e passado um quarto de hora de esforços inauditos vi a criança respirar e ouvi um grito sair-lhe do peito.
            “Soltei por minha vez um grito, mas um grito de alegria. "Deus não me  amaldiçoou", disse para comigo, "pois permite-me que restitua a vida a uma criatura humana em troca da vida que tirei a outra!"
            - E que fez dessa criança? - perguntou Monte-Cristo. - Era uma bagagem bastante embaraçosa para um homem que necessitava fugir.
            - Por isso não me passou sequer pela cabeça ficar com ela. Mas sabia que existia em Paris um hospício onde recebiam essas pobres crianças. Quando transpus a barreira, declarei ter achado a criança na estrada e informei-me. O cofre estava ali e era uma prova; o cueiro de cambraia indicava que a criança
tinha pais ricos; o sangue que me cobria tanto podia pertencer à criança como a qualquer outro indivíduo. Não me fizeram nenhuma objeção. Indicaram-me o hospício, que ficava mesmo ao fundo da Rua do Inferno, e, depois de tomar a precaução de cortar o cueiro em dois, de maneira que uma das duas letras que o marcavam ficasse na parte que envolvia o corpo da criança, depositei o, meu fardo na roda, toquei e raspei-me a toda a velocidade. Quinze dias mais tarde estava de volta a Rogliano e dizia a Assunta: “Consola-te, minha irmã; Israel morreu, mas vinguei-o.”
            “Então ela pediu-me explicações destas palavras e eu contei-lhe tudo o que se passara.
            “- Giovanni - disse-me Assunta –, devia ter trazido essa criança. Faríamos as vezes dos pais que perdeu, lhe chamariamos Benedetto, e graças a essa boa ação Deus nos abençoaria efetivamente.
            “Como única resposta entreguei-lhe a metade do cueiro que guardara, a fim de poder reclamar a criança se fossemos mais ricos.
            - E com que letras estava marcado o cueiro? - perguntou Monte-Cristo.
            - Com um H e um N encimados por uma fiada de pérolas de barão.
            - Creio, Deus me perdoe, que se serve de termos de heráldica, Sr. Bertuccio! Onde diabo estudou essa matéria?
            - Ao seu serviço, Sr. Conde, onde se aprendem todas as coisas.
            - Continue. Estou com curiosidade de saber dois pormenores.
            - Quais, senhor?
            - O que foi feito desse rapazinho... Não me disse que era um rapazinho, Sr. Bertuccio?
            - Não, Excelência. Não me lembro de dizer tal coisa.
            - Ah! Julgava ter ouvido, mas decerto enganei-me.
            - Não, não se enganou, porque era efetivamente um rapazinho. Mas V. Exª  desejava, dizia, saber dois pormenores. Qual é o segundo?
            - O segundo é o crime de que o acusavam quando pediu um confessor e o abade Busoni o foi encontrar na prisão de Nímes.
            - Essa história talvez seja demasiado longa, Excelência.
            - Que importa? São apenas dez horas, sabe que não durmo e suponho que da sua parte também não tenha grande vontade de dormir.
            Bertuccio inclinou-se e retomou a sua narrativa.
            - Em parte para expulsar as recordações que me assediavam e em parte para prover as necessidades da pobre viúva, entreguei-me com ardor à profissão de contrabandista, tornada mais fácil devido ao afrouxamento do cumprimento das leis que se segue sempre às revoluções. As costas do Meio-Dia, sobretudo, estavam mal guardadas devido aos eternos motins que se verificavam ora em Avinhão, ora em Nímes, ora em Uzes. Aproveitamos aquela espécie de trégua  que nos era concedida pelo Governo para estabelecer relações com todo o litoral. Desde o assassinato do meu irmão nas ruas de Nímes nunca mais
quisera entrar na cidade. Daí resultou que o estalajadeiro com que tínhamos negócios, vendo que já o não procurávamos, viera ter conosco e fundara uma sucursal da estalagem na estrada de Bellegarde a Beaucaire, a que dera o nome de Pont du Gard. Tínhamos assim, quer do lado de Aigues-Mortes, quer de Martigues, quer de Boucé uma dúzia de entrepostos onde depositávamos as mercadorias e, se necessário, encontrávamos refúgio contra os guardas-fiscais e os  guardas. A profissão de contrabandista é muito rendosa quando se pratica com alguma inteligência, secundada por certa atividade. Quanto a mim, vivia nas montanhas, pois tinha dobradas razões para temer guardas e guardas-fiscais, atendendo a que qualquer comparência perante os juizes podia originar uma investigação, a que essa investigação é sempre uma excursão pelo passado e a que no meu passado se podia encontrar então algo mais grave do que charutos contrabandeados ou barris de aguardente circulando sem guias de transito.
            Por isso, preferindo mil vezes a morte à prisão, fazia coisas espantosas e que por mais de uma vez me demonstraram que o excessivo cuidado que tomamos com a pele é quase o único obstáculo ao êxito dos nossos projetos, que exigem decisão rápida e execução enérgica e determinada. Com efeito; desde que estejamos dispostos a sacrificar a vida, deixamos de ser como os outros homens, ou antes, os outros homens é que deixam de ser como nós, e quem toma semelhante resolução sente decuplicar imediatamente as suas forças e alargar-se o seu horizonte.
            - Deixe-se de filosofia, Sr. Bertuccio! - interrompeu-o o conde. - Mas, pelos vistos, o senhor tem feito um pouco de tudo na sua vida...
            - Oh, perdão, Excelência, pela filosofia!
            - Não, não! Só lhe chamei a atenção porque às dez e meia da noite é um bocadinho tarde para filosofar... Tirando isso, não tenho mais nenhuma objeção a fazer, atendendo a que a acho exata, o que se não pode dizer de todas as filosofias.
            - As minhas incursões tornaram-se portanto cada vez mais numerosas e também mais frutuosas. Assunta era poupada e a nossa fortunazinha aumentava. Um dia, antes de partir para uma viagem, disse-me ela: “Vai, que no seu regresso te reservo uma surpresa.” Interroguei-a inutilmente, não me quis dizer mais
nada e parti.
            “A viagem durou perto de seis semanas. Fomos a Luca carregar azeite e a Liorne algodão inglês. Desembarcamos e descarregamos sem qualquer contratempo, fizemos o nosso negócio e regressamos alegremente.
            “Quando entrei em casa, a primeira coisa que vi no lugar mais em evidência do quarto de Assunta, num berço sumtuoso, relativamente ao resto da casa, foi uma criança de sete a oito meses. Soltei um grito de alegria. Os únicos momentos de tristeza que experimentara desde o assassínio do procurador régio tinham-me sido causados pelo abandono daquela criança.    
            “A pobre Assunta adivinhara tudo e aproveitara a minha ausência para munida de metade do cueiro, tendo inscrito, para não faltar nada, o dia e a hora exata em que a criança fora depositada no hospício, ir a Paris reclamá-la pessoalmente. Nenhuma objeção lhe fora feita e a criança fora-lhe entregue. 
            “Confesso, Sr. Conde, que ao ver a pobre criatura dormindo no seu berço meu peito se dilatou e as lágrimas me saltaram aos olhos.
            “- Na verdade, Assunta, és uma digna mulher e a Providência te abençoará! - gritei.
            - Isso já é menos exato do que a sua filosofia - comentou Monte-Cristo. - No fundo, trata-se apenas de uma questão de fé.
            - Infelizmente, Excelência - prosseguiu Bertuccio –, tem toda a razão e foi aquela mesma criança que Deus encarregou de me castigar. Nunca natureza mais perversa se declarou mais prematuramente, e no entanto ninguém poderá dizer que foi mal educado, pois a minha cunhada tratava-o como o filho de um
príncipe. Era um rapaz de rosto encantador, com olhos de um azul-claro como esses tons de faiança chinesa que também se harmonizam com o branco leitoso do tom geral. Apenas o cabelo, de um louro demasiado vivo, lhe dava ao rosto um aspecto estranho, que duplicava a vivacidade do seu olhar e a malícia do seu sorriso. Infelizmente, há um provérbio que diz que os ruços ou são muito bons ou são muito maus. O provérbio não mente no que diz respeito a Benedetto, que desde a juventude se mostrou muito mau. Também é verdade que a ternura da sua mãe adotiva encorajou as suas primeiras inclinações. O garoto, para quem a minha pobre cunhada ia ao mercado da cidade, situada a quatro ou cinco léguas de casa, comprar os primeiros frutos e as guloseimas mais delicadas, preferia, às laranjas de Palma de Maiorca e às conservas de Gênova, as castanhas roubadas ao vizinho saltando as sobes, ou as maçãs secas do seu celeiro, embora tivesse à sua disposição as castanhas e as maçãs do nosso pomar.
            “Um dia, teria Benedetio cinco ou seis anos, o vizinho Wasilio, que, conforme os hábitos da nossa terra, não fechava nem a sua bolsa nem as suas jóias, porque, como o Sr. Conde sabe melhor do que ninguém, na Côrsega não há ladrões... um dia, o vizinho Wasilio queixou-se de que lhe desaparecera um luís da bolsa. Pensamos que tivesse contado mal, mas ele afirmara que não. Nesse dia, Benedetto saíra de casa logo de manhã e estavamos numa grande inquietação, quando à tardinha o vimos chegar com um macaco que achara, dizia ele, preso a uma árvore.
            “Havia um mês que a paixão do terrível garoto, que não sabia que mais inventar, era ter um macaco. Um saltimbanco que passara por Rogliano e possuía vários desses animais, cujas piruetas o tinham divertido muito, é que lhe inspirara, sem dúvida, o malfadado capricho.
            “- Não há macacos nos nossos bosques - disse-lhe eu -, e sobretudo macacos amarrados. Diz-me portanto como arranjaste esse.
            “Benedetto manteve a mentira e acompanhou-a de pormenores que honravam mais a sua imaginação do que a sua veracidade. Irritei-me e ele desatou a rir, ameacei-o, e ele deu dois passos atrás.
            “- Não pode me bater - disse. - Não tem esse direito, não é o meu pai.
            “Ignoramos sempre quem lhe revelara o fatal segredo, que entretanto tínhamos ocultado com o maior cuidado. Como quer que fosse, tal resposta, em que o garoto se revelou por completo, quase me assustou e o meu braço erguido caiu, efetivamente, sem tocar no culpado. O pequeno triunfou e aquela vitória deu-lhe tal audácia que a partir dali todo o dinheiro de Assunta, cujo amor por ele parecia aumentar à medida que se tornava menos digno, se foi em caprichos que ela não sabia contrariar, em loucuras que ela não tinha a coragem de impedir. Quando eu estava em Rogliano, as coisas ainda iam razoavelmente; mas assim que eu partia, Benedetto apoderava-se da casa e tudo corria mal. Apesar de contar apenas onze anos, escolhia todos os seus camaradas entre os rapazes de dezoito ou vinte anos, dos piores de Bastia e de Corte, e já, devido a algumas travessuras que mereciam nome mais sério, foramos advertidos pela justiça.
            “Assustei-me. Qualquer investigação poderia ter consequências funestas. Ia precisamente ser obrigado a ausentar-me da Côrsega numa expedição importante. Pensei demoradamente e, no pressentimento de evitar qualquer desgraça, decidi levar Benedetto comigo. Esperava que a vida ativa e dura de contrabandista e a disciplina rigorosa de bordo modificassem aquele carater prestes a corromper-se, se não estivesse já horrivelmente corrompido.
            “Chamei portanto Benedetto de parte e propus-lhe que me acompanhasse, rodeando a proposta de todas as promessas que podem seduzir um garoto de doze anos.
            “Deixou-me ir até  ao fim, e quando acabei desatou a rir.
            “- Enlouqueceu, meu tio? - perguntou (tratava-me assim quando estava de bom humor) - Eu trocar a vida que levo pela que você leva, a minha boa e excelente ociosidade pelo horrível trabalho que lhe é imposto? Passar a noite no frio e o dia no calor, esconder-me constantemente, não poder me mostrar para
não ser corrido a tiro de espingarda, e tudo isso para ganhar algum dinheiro?... Dinheiro tenho eu todo o que quero! A minha mãe Assunta me dá assim que lhe peço. Bem vê, portanto, que seria um imbecil se aceitasse a sua proposta.”
            “Fiquei estupefato com semelhante audácia e semelhante raciocínio. Benedetto voltou para junto dos seus camaradas e o vi de longe a me apontar para eles como um idiota.
            - Encantadora criança! -  murmurou Monte-Cristo.
            - Oh, se me pertencesse - respondeu Bertuccio –, se fosse meu filho, ou pelo menos meu sobrinho, o teria trazido ao bom caminho, porque a consciência dá-nos força! Mas a idéia de bater numa criança cujo pai matara tornava-me todo e qualquer castigo impossível. Dava bons conselhos à minha cunhada, que nas nossas discussões tomava constantemente a defesa do “Pobrezinho”, e como me confessasse que por várias vezes lhe tinham desaparecido importâncias consideráveis, indiquei-lhe um lugar onde poderia esconder o nosso pequeno tesouro. Quanto a mim, a minha resolução estava tomada. Benedetto sabia perfeitamente ler, escrever e contar, porque quando por acaso se dispunha a trabalhar aprendia num dia o que os outros
aprendiam numa semana. Mas, dizia eu, a minha resolução estava tomada: tencionava matriculá-lo como secretário em qualquer navio de longo curso e, sem o prevenir de nada, mandar deitar-lhe a mão uma bela manhã e levá-lo para bordo. Assim, e recomendando-o ao comandante, todo o seu futuro dependeria dele. Tudo planejado, parti para França.
            “Daquela vez todas as nossas operações deveriam efetuar-se no golfo de Lião, o que era cada vez mais difícil, pois estavamos em 1829. A tranquilidade encontrava-se perfeitamente restabelecida, e por consequência o serviço de vigilância das costas tornara-se mais regular e rigoroso do que nunca. A
vigilância fora ainda aumentada momentaneamente devido à feira de Beaucaire, que acabava de abrir.
            “Os princípios da expedição decorreram sem contratempos. Amarramos a  nossa barca, que tinha um fundo duplo, onde escondíamos as mercadorias de contrabando, no meio de uma quantidade de barcos que cobriam as duas margens do Rôdano, de Beaucaire a Arles. Uma vez chegados,  começamos a descarregar
de noite as nossas mercadorias proibidas e a passá-las para a cidade por intermédio de pessoas  relacionadas conosco ou de estalajadeiros em casa dos quais tínhamos depósitos. Quer porque o êxito nos tivesse tornado imprudentes, quer por termos sido denunciados, uma tarde, por volta das cinco horas, quando nos preparavamos para merendar, o nosso grumete apareceu muito assustado dizendo que vira uma patrulha de guardas-fiscais dirigir-se para o nosso lado. Não era precisamente a patrulha que nos preocupava; a cada instante, sobretudo naquele momento, companhias inteiras percorriam as margens do Rôdano. O que nos preocupava eram as precauções que, no dizer do pequeno, a patrulha tomava para não ser vista. Levantamo-nos imediatamente, mas era demasiado tarde; a nossa barca, evidentemente o alvo das buscas, estava cercada.
            Entre os guardas-fiscais notei alguns guardas; e, tão medroso diante deles como era habitualmente corajoso diante de qualquer outro corpo militar, desci ao porão e, esgueirando-me por uma escotilha, deixei-me levar pelo rio e depois nadei entre duas águas, só respirando a grandes intervalos, até  que alcancei, sem ser visto, uma vala que acabavam de abrir e que punha em comunicação o Rôdano com o canal que vai de Beaucaire a Aigues-Mortes. Uma vez lá, estava salvo, pois podia seguir sem ser visto ao longo da vala. Cheguei portanto ao canal sem contratempos. Não fora por acaso e sem premeditação que seguira aquele caminho, já falei a V. Exª  de um estalajadeiro, de Nímes que abrira na estrada de Bellegarde a Beaucaire uma pequena hospedaria.
            - Sim, lembro-me perfeitamente - respondeu Monte-Cristo. - Se me não engano, esse digno homem era até  vosso associado.
            - Exato - confirmou Bertuccio. - Mas havia sete ou oito anos cedera o estabelecimento a um antigo alfaiate de Marselha, o qual, depois de se arruinar na sua profissão, resolvera tentar enriquecer noutra. Desnecessário dizer que os entendimentos que tínhamos com o primeiro proprietário foram mantidos com o
segundo. Era portanto a esse homem que esperava pedir asilo.
            - E como se chamava esse homem? - perguntou o conde, que parecia começar a interessar-se pela história de Bertuccio.
            - Chamava-se Gaspard Caderousse e era casado com uma mulher da aldeia de Carconte, que só conhecíamos pelo nome da sua terra. Tratava-se de uma pobre mulher atacada da febre dos pântanos, que ia morrendo de definhamento. Quanto ao homem, era um latagão de quarenta a quarenta e cinco anos, que por mais de uma vez, em circunstâncias difíceis, nos dera provas da sua presença de espírito e da sua coragem.
            - E diz - atalhou Monte-Cristo-que essas coisas se passavam por volta do ano de...
            - De 1829, Sr. Conde.
            - Em que mês?
            - No mês de Junho.
            - No princípio ou no fim?
            - No dia 3 à tarde. 
            - Ah! - exclamou Monte-Cristo - Com que então no dia 3 de Junho de 1829. Bem, continue.
            - Era portanto a Caderousse que contava pedir asilo. Mas, como habitualmente, mesmo em circunstâncias normais, não entravamos pela porta que dava para a estrada, resolvi não contrariar esse costume e saltei a sebe do jardim, deslizei agachado através das oliveiras raquíticas e das figueiras bravas e
alcancei, receando que Caderousse tivesse algum viajante na estalagem, uma espécie de desvão em que por mais de uma vez passara a noite como se dormisse na melhor cama. Esse desvão ficava separado da sala comum do térreo da estalagem apenas por um tabique de madeira, no qual, em nossa intenção, tinham sido abertos buracos a fim de, através deles, espreitarmos o momento oportuno de darmos a saber a nossa
presença nas imediações. Contava, se Caderousse estivesse sozinho, preveni-lo da minha chegada, acabar na casa dele a refeição interrompida pelo aparecimento dos guardas-fiscais e aproveitar a tempestade que se avizinhava para voltar às margens do Rôdano e verificar o que acontecera à barca e aos que lá  tinham ficado. Esgueirei-me portanto para o desvão, e fiz bem, pois nesse mesmo momento Caderousse entrava no
estabelecimento com um desconhecido.
            “Fiquei quieto e esperei, não com a intenção de surpreender os segredos do meu hospedeiro, mas sim porque não podia fazer outra coisa. Aliás, a mesma coisa já acontecera outras vezes.
            “O homem que acompanhava Caderousse era evidentemente estranho ao Meio-Dia da França. Tratava-se de um desses feirantes que vêm vender jóias à feira de Beaucaire e que, durante o mês que dura a feira, aonde afluem vendedores e compradores de todas as partes da Europa, fazem às vezes cem ou cento e cinquenta mil francos de transações.
            “Caderousse entrou, apressado, à frente do outro. Depois, vendo a sala de baixo vazia, como de costume, e guardada apenas pelo seu cão, chamou a mulher:
            “- Eh, Carconde! Aquele digno padre não nos enganou; o diamante é bom.
            “Ouviu-se uma exclamação de alegria e quase imediatamente a escada estalou debaixo de passos pesados devido à fraqueza e à doença.
            “- Que disse? - perguntou a mulher, mais pálida do que uma morta.
            “- Digo que o diamante é bom. Aqui está este senhor, um dos primeiros joalheiros de Paris, que está pronto a dar-nos cinquenta mil francos por ele. Apenas, para ter certeza de que o diamante é de fato nosso, deseja que lhe conte, como já lhe contei, de que forma miraculosa a pedra veio parar em nossas mãos. Entretanto, senhor, faça favor de sentar-se, e como o tempo está carregado, vou buscar-lhe qualquer coisa
para se refrescar. - O joalheiro examinava com atenção o interior da estalagem e a pobreza visível daqueles que lhe queriam vender um diamante que parecia saído do tesouro de um príncipe.
            “- Conte, minha senhora - pediu, querendo sem dúvida aproveitar a ausência do marido para que nenhum sinal da parte dele influenciasse a mulher e para verificar se as duas histórias encaixavam bem uma na outra.
            “- Meu Deus, foi uma bênção do Céu que estavamos muito longe de esperar! - disse a mulher, com volubilidade. - Imagine, meu caro senhor, que o meu marido conheceu em 1814 ou 1815 um marinheiro chamado Edmond Dantés. Esse pobre rapaz, que Caderousse esquecera por completo, não o esqueceu a ele e deixou-lhe ao morrer o diamante que o senhor acaba de ver. 
            “- Mas como se tomou ele possuidor do diamante? - perguntou o joalheiro.- Já o tinha antes de ser preso?
            “- Não, senhor - respondeu a mulher. - Mas parece que conheceu na prisão um inglês muito rico, e como na prisão o seu companheiro de cela adoeceu e Dantés o tratou como se fosse seu irmão, o inglês, ao sair do cativeiro, deixou ao pobre Dantés, que, menos feliz do que ele, morreu na prisão, esse diamante que ele nos legou por seu turno ao morrer e que encarregou o digno abade que aqui esteve esta manhã de nos
entregar.
            “É de fato a mesma coisa - murmurou o joalheiro. - E no fim de contas a história pode ser verdadeira, por mais inverosímil que pareça à primeira vista. Só falta ajustarmos portanto o preço, acerca do qual não estamos de acordo.
            “- Como é que não estamos de acordo? – interveio Caderousse. - Julgava que tinha aceitado o preço que lhe pedi...
            “- Não - perguntou o joalheiro –, eu ofereci quarenta mil francos.
            “- Quarenta mil! - gritou a Carconte. - Não espera que o vendamos por esse preço. O abade disse-nos que valia cinquenta mil francos, e sem engaste.
            “- E como se chamava esse abade? - perguntou o infatigável curioso.
            “- Abade Busoni - respondeu a mulher.
            “- Era então um estrangeiro?
            “- Era um italiano dos arredores de Mântua, segundo creio.
            “- Mostre-me o diamante - pediu o joalheiro. - Quero vê-lo outra vez. Muitas vezes julgam-se mal as pedras à primeira vista.
            “Caderousse tirou da algibeira um estojozinho de chagrém preto, abriu-o e passou-o ao joalheiro. Ao ver o diamante, que era do tamanho de uma avelã (lembro-me como se ainda o estivesse vendo), os olhos de Carconte cintilaram de cupidez.
            - E que pensou de tudo isso, senhor escutador às portas? - perguntou Monte-Cristo. - Acreditou nessa bela fábula?
            - Acreditei, Excelência. Não considerava Caderousse um mau homem e julgava-o incapaz de cometer um crime Ou mesmo um roubo.
            - Isso honra mais o seu coração do que a sua experiência, Sr. Bertuccio. Conheceu esse tal Edmond Dantés a que se referiam?
            - Não, Excelência, nunca ouvira falar dele até  ali, e depois disso só ouvi falar uma vez, ao próprio abade Busoni, quando o vi nas prisões de Nímes.
            - Bom, continue.
            - O joalheiro tirou o anel das mãos de Caderousse e depois, da algibeira, uma pinça de aço e uma balancinha de cobre. Seguidamente, abriu os grampos de ouro que prendiam a pedra ao anel, extraiu o diamante do seu alvéolo e pesou-o cuidadosamente na balança.
            “- Vou até  aos quarenta e cinco mil francos - declarou –, não dou nem mais um soldo. De resto, como era esse o valor do diamante, foi exatamente a importância que trouxe comigo.
            “- Oh, não seja por isso - perguntou Caderousse. - Voltarei consigo a Beaucaire e dará os cinco mil
francos.
            “- Não - respondeu o joalheiro, restituindo o anel e o diamante a Caderousse. - Isso não vale mais e já fiz mal em oferecer tal importância, pois  a pedra tem um defeito em que não reparei da primeira vez. Mas não importa, só tenho uma palavra; disse quarenta e cinco mil francos e não me desdigo.
            “- Ao menos volte a colocar o diamante no anel - pediu azedamente a Carconte.
            “- É justo - concordou o joalheiro, e recolocou a pedra no engaste.
            “- Bom, bom, o venderemos a outro - disse Caderousse, guardando o estojo na algibeira.
            “- Claro - replicou o joalheiro. - Mas a outro não será tão fácil vendê-lo como a mim. Outro não se contentará com as informações que me deram. Não é natural que um homem como o senhor possua um diamante de cinquenta mil francos. Ele irá  prevenir os magistrados e será  necessário descobrir o abade
Busoni.
            “Ora, os abades que dão diamantes de dois mil luíses são raros... A justiça começará por lhe deitar a mão e mete-lo na cadeia, e se o considera em inocente e o puserem em liberdade depois de três ou quatro meses de cativeiro, o anel terá se perdido no arquivo e lhe darão uma pedra falsa, que valerá três francos em vez de um diamante que vale cinquenta mil. Sim, a pedra talvez valha os cinquenta mil, mas tem de concordar, bom homem, que se correm certos riscos em comprá-la.
            “Caderousse e a mulher interrogaram-se com o olhar.
            “- Não - disse Caderousse –, não somos tão ricos que possamos perder cinco mil francos.
            “- Como queira, meu caro amigo - respondeu o joalheiro - Mas como vê, já vinha preparado com a massa...
            “E tirou de uma das algibeiras um punhado de ouro, que fez brilhar aos olhos deslumbrados do estalajadeiro, e da outra um maço de notas.
            “Travava-se visivelmente um rude combate no espírito de Caderousse. Era evidente que o estojo de chagrém que virava e revirava na mão não lhe parecia corresponder, como valor, à enorme quantia que lhe fascinava os olhos. Virou-se para a mulher.
            “- O que você diz? - perguntou-lhe em voz baixa.
            “- Venda-o - respondeu ela. - Se voltar a Beaucaire sem o diamante, nos denunciará; e como disse, quem sabe se alguma vez tornaremos a ver o abade Busoni.
            “- Pronto, seja! - exclamou Caderousse. - Fique lá com o diamante pelos quarenta e cinco mil francos. Mas a minha mulher quer um fio de ouro e eu um par de fivelas de prata.
            “O joalheiro tirou da algibeira uma caixa comprida e achatada, que continha várias amostras dos objetos pedidos.
            “- Como vê - observou –, sou honesto nos negócios. Escolham.
            “A mulher escolheu um fio de ouro, que podia valer cinco luíses, e o marido um par de fivelas, que podia valer quinze francos.
            “- Espero que não se arrependam - disse o joalheiro.
            “- O abade disse que valia cinquenta mil francos... murmurou Caderousse.
            “- Vamos, vamos, me de o diamante! Que homem terrível! - exclamou o joalheiro, tirando-lhe o diamante da mão. - Dou-lhe quarenta e cinco mil francos, que lhe podem proporcionar um rendimento de
duas mil e quinhentas libras, isto é, uma fortuna que eu próprio gostaria de ter, e ainda não está contente! 
            “- E os quarenta e cinco mil francos onde estão? - perguntou Caderousse com voz rouca.
            “- Ei-los - respondeu o joalheiro.
            “E contou em cima da mesa quinze mil francos em ouro e trinta mil em notas.
            “- Esperem que acenda o candeeiro - disse a Carconte. - Não está muito claro e podem se enganar...
            “Com efeito, anoitecera durante a discussão, e com a noite viera a tempestade, que ameaçava rebentar havia meia hora. Ouvia-se ribombar surdamente o trovão ao longe, mas nem o joalheiro, nem Caderousse, nem a Carconte pareciam preocupados com isso, dominados como estavam todos os três pelo demônio do ganho. Eu próprio experimentava uma estranha fascinação perante todo aquele ouro e todas aquelas notas. Parecia-me sonhar, e como acontece nos sonhos, sentia-me acorrentado ao meu lugar.
            “Caderousse contou e recontou o ouro e as notas e depois passou-os à mulher, que contou e recontou por seu turno. “Entretanto, o joalheiro fazia cintilar o diamante à luz do candeeiro e o diamante lançava relâmpagos que faziam esquecer aqueles que, precursores da tempestade, começavam a incendiar as janelas.
            “- Então, está certo? - perguntou o joalheiro.
            “- Está - respondeu Caderousse. - De-me a carteira e arranja um saco, Carconte.
            “Carconte foi a um armário e regressou com uma velha carteira de couro, da qual tirou algumas cartas ensebadas e no lugar das quais guardou as notas, e com um saco que continha duas ou três moedas de seis libras, que constituíam provavelmente toda a riqueza do miserável casal.
            “- Embora nos tenha roubado talvez uma dezena de milhar de francos, quer jantar conosco? É de boa vontade - ofereceu Caderousse.
            “- Obrigado - respondeu o joalheiro. - Começa a ficar tarde e tenho de regressar a Beaucaire. A minha mulher já deve estar preocupada... Com mil demônios! - exclamou depois de tirar o relógio da algibeira. - São quase nove horas, não estarei em Beaucaire antes da meia-noite! Adeus, meus filhos. Se por acaso tornarem a ser visitados pelo abade Busoni, lembrem-se de mim...
            “- Daqui a oito dias o senhor não estará em Beaucaire, pois a feira termina na próxima semana - observou Caderousse.
            “- Pois não, mas não tem importância. Escrevam-me para Paris, com este endereço Sr. Joannês, Palais-Royal, Galeria de Pierre, nº  45. Virei aqui se o negócio valer a pena.
            “Soou um trovão, acompanhado de um relâmpago tão intenso que quase se sobrepôs à luz do candeeiro.
            “- Oh, oh! - exclamou Caderousse. - Vai pôr-se a caminho com este tempo?
            “- As trovoadas não me metem medo - perguntou o joalheiro.
            “- E os ladrões? - perguntou a Carconte. - A estrada nunca é muito segura durante a feira.
            “- Oh, quanto aos ladrões, tenho isto para eles! - respondeu Joannês, e tirou da algibeira um par de pistolinhas carregadas até à boca. - Estes cães ladram e mordem ao mesmo tempo. Seriam para os dois primeiros que cobiçassem o seu diamante, Tio Caderousse. 
            “Caderousse e a mulher trocaram um olhar sombrio.  Diria-se que lhes acudira ao mesmo tempo qualquer pensamento terrível.
            “- Então, boa viagem! - disse Caderousse.
            “- Obrigado! - agradeceu o joalheiro.
            “Pegou a bengala, que deixara encostada a um velho baú, e saiu. No momento em que abriu a porta entrou tal rajada de vento que quase apagou o candeeiro.
            “- Oh, vem aí um rico tempo, e duas léguas debaixo de temporal!...
            “- Fique - insistiu Caderousse. - Pode muito bem dormir aqui .
            “- Sim, fique - insistiu também a Carconte, com voz trêmula. - Nós o trataremos como deve ser.
            “- Não, tenho de ir dormir a Beaucaire. Adeus.
            “Caderousse foi lentamente até  à porta.
            “- Não se vê céu nem terra – disse o joalheiro, já fora da casa. - Viro à direita ou à esquerda?
            “- À direita - respondeu Caderousse. - Não tem como se enganar: a estrada tem árvores de um lado e doutro.
            “- Bom, vou indo - disse o joalheiro, cuja voz já mal se ouvia ao longe.
            “- Fecha a porta - recomendou a Carconte. - Não gosto de portas abertas quando troveja.
            “- E quando há dinheiro em casa, não é verdade? - acrescentou Caderousse, dando duas voltas à chave.
            “Em seguida dirigiu-se para o armário, do qual tirou o saco e a carteira, e puseram-se ambos a contar pela terceira vez o seu ouro e as suas notas. Nunca vira expressão igual à daquelas duas caras, cuja cupidez transparecia à luz fraca do candeeiro. A mulher, sobretudo, estava hedionda. O tremor febril que  habitualmente a agitava redobrara. O seu rosto, de pálido, tornara-se lívido. Os seus olhos encovados chamejavam.
            “- Porque o convidou para dormir aqui? - perguntou com voz abafada.
            “- Para... para não ter de regressar a Beaucaire com este, tempo - respondeu Caderousse, estremecendo.
            “- Ah!... - exclamou a mulher, com uma expressão impossível de descrever. - Julguei que fosse por outra coisa...
            “- Mulher! Mulher! - gritou Caderousse. - Porque tem semelhantes idéias e porque, tendo-as, não as guarda para si?
            “- Tanto faz - disse a Carconte passado um instante de silêncio –, você não é um homem...
            “- O que disse? - perguntou Caderousse.
            “- Se fosse um homem, ele não sairia daqui.
            “- Mulher!
            “- A estrada dá uma volta, e ele é obrigado a seguir pela estrada, ao passo que ao longo do canal existe um caminho mais curto.
            “- Mulher, você ofende a Deus! Espere, escute...
            “Com efeito, ouviu-se um formidável trovão, ao mesmo tempo que um relâmpago azulado iluminava toda a sala, e a tempestade, diminuindo lentamente, pareceu afastar-se, como que contrariada, da casa maldita.
            “- Jesus! - exclamou a Carconte, benzendo-se. 
            “No mesmo instante, e no meio do silêncio aterrorizado que se segue habitualmente a uma trovoada, ouviu-se bater à porta. Caderousse e a mulher estremeceram e entreolharam-se assustados.
            “- Quem é? - gritou Caderousse, levantando-se e reunindo num só monte o ouro e as notas espalhadas em cima da mesa, e que cobriu com ambas as mãos.
            “- Sou eu! - respondeu uma voz
            “- Eu, quem?
            “- Por Deus! Joannês, o joalheiro!
            “- O que você dizia? Que ofendia Deus?.. observou a Carconte, com um sorriso medonho. - Pois aí o tem, e é Deus que o envia!
            “Caderousse deixou-se cair, pálido e arquejante, na sua cadeira. Carconte, pelo contrário, levantou-se e dirigiu-se com passo firme para a porta que abriu.
            “– Entre, caro Sr. Joannês - disse.
            “- Diria-se, palavra, que parece que o Diabo não quer que regresse esta noite a Beaucaire - observou o joalheiro, escorrendo água por todos os lados. - As asneiras mais pequenas são as melhores, meu caro Sr. Caderousse. Ofereceu-me hospitalidade; aceito-a e volto para dormir em sua casa.
            “Caderousse balbuciou algumas palavras e enxugou o suor que lhe escorria da testa. Carconte voltou para fechar a porta atrás do joalheiro e deu duas voltas na chave.


Capítulo XLV

A chuva de sangue


            - Quando entrou, o joalheiro deu um olhar interrogador à sua volta. Mas nada parecia susceptível de lhe despertar suspeitas, se não tinha, assim como nada parecia confirmá-las, se as tinha.
            “Caderousse continuava a cobrir com as mãos as suas notas e o seu ouro. A Carconte sorria ao seu hóspede o mais agradavelmente que lhe era possível.
            “- Ah, ah! - exclamou o joalheiro. - Parece que estavam com medo de faltar algum coisa e resolveram tornar a contar o seu tesouro depois da minha partida...
            “- Engana-se - perguntou Caderousse. - Mas a verdade é que o acontecimento que nos proporcionou este dinheiro foi tão inesperado que ainda nos custa a acreditar nele, a tal ponto que quando não temos a prova material diante dos olhos, julgamos sonhar.
            “O joalheiro sorriu.
            “- Têm viajantes na estalagem? - perguntou...
            “- Não - respondeu Caderousse. - Não damos dormidas. Estamos tão perto da cidade que ninguém para aqui.
            “- Nesse caso vou dar-lhe um grande incômodo.
            “- Incomodar-nos, o senhor? Não, meu caro amigo! - protestou amavelmente Carconte. - De modo nenhum, juro-lhe.
            “- Vejamos, onde me deitam?
            “- No quarto lá de cima.
            “- Mas não é o vosso quarto?
            “- Oh, não importa! Temos outra cama no quarto ao lado desse.
            “Caderousse olhou com espanto para a mulher. O joalheiro cantarolou uma cançãozinha enquanto aquecia as costas ao calor de um molho de lenha que a Carconte acendera na chaminé para o seu hóspede se secar.
            “Entretanto, punha a uma ponta da mesa, onde estendera um guardanapo, os magros restos de um jantar, a que juntou dois ou três ovos frescos. Caderousse voltara a guardar as notas na carteira, o ouro no
saco e tudo no armário. Passeava de um lado para o outro, sombrio e pensativo, e levantava de vez em quando a cabeça para olhar o joalheiro, que se conservava fumegante diante da lareira, e que à medida que secava de um lado se virava do outro.
            “- Pronto - anunciou a Carconte, pousando uma garrafa de vinho em cima da mesa –, quando quiser já pode jantar.
            “- E o senhor? - perguntou Joannês.
            “- Eu não janto - respondeu Caderousse.
            “- Almoçamos muito tarde - apressou-se a dizer Carconte.
            “- Então vou jantar sozinho? - comentou o joalheiro.
            “- Nós o serviremos - respondeu a Carconte, com uma prontidão que lhe não era habitual, mesmo para os hóspedes que pagavam.
            “De tempos a tempos, Caderousse deitava-lhe um olhar rápido como um relâmpago. A tempestade continuava.
            “- Ouça, ouça? - perguntou a Carconte. - Fez muito bem em voltar para trás.
            “- O que me não impedirá, se durante o jantar a tempestade amainar, de me pôr novamente a caminho - perguntou o joalheiro.
            “- É o mistral - disse Caderousse, abanando a cabeça. - Temos mau tempo para durar até  amanhã.
            “E soltou um suspiro.
            “- Paciência - declarou o joalheiro, sentando-se à mesa. Tanto pior para os que estão lá fora.
            “- Sim, passarão uma má noite - concordou a Carconte.
            “O joalheiro começou a jantar e Carconte continuou a dispensar-lhe todas as pequenas atenções de uma hospedeira atenta. Ela, habitualmente tão rabugenta e desabrida, tornara-se um modelo de eficiência e cortesia. Se o joalheiro a tivesse conhecido antes, tão grande mudança não teria, decerto, deixado de lhe inspirar algumas suspeitas. Quanto a Caderousse, não dizia nada; continuava a passear e até  parecia
hesitar em olhar o hóspede. Quando o jantar terminou, o próprio Caderousse foi abrir a porta.
            “- Parece-me que a tempestade amainou - disse.
            “Mas naquele momento, como que para o desmentir, um enorme trovão abalou a casa e uma rajada de vento e chuva entrou pela casa dentro e apagou o candeeiro.
            “Caderousse voltou a fechar a porta e a mulher acendeu uma vela no braseiro prestes a extinguir-se.
            “- Pronto - disse ela ao joalheiro. - Deve estar cansado. Pus lençóis lavados na cama; suba, deite-se e durma bem. 
            “Joannês ficou ainda um instante, para se assegurar de que a tempestade não amainava, e quando adquiriu a certeza de que a trovoada e a chuva aumentavam, deu as boas-noites aos seus hospedeiros e subiu a escada.
            “Passou-me por cima da cabeça e ouvi os degraus estalarem-lhe debaixo dos pés.
            “Carconte seguiu-o com olhar ávido, enquanto Caderousse, pelo contrário, lhe virava as costas e nem sequer olhava para o seu lado.
            “Todos estes pormenores, que desde então me têm acudido várias vezes ao espirito, não me  impressionaram absolutamente nada No momento em que se passaram, diante dos meus olhos. No fim de contas, não havia nada de mais natural e, excetuando a história do diamante, que me parecia um bocadinho inverosímil, tudo o resto era normalíssimo. Por isso, como estava exausto e eu próprio também desejava aproveitar a primeira aberta do temporal, resolvi dormir umas horas e pôr-me a andar no meio da noite.
            “Ouvia, no quarto de cima, o joalheiro tomar por seu turno todas as disposições para passar a noite o melhor possível. A cama não tardou a ranger debaixo dele; acabava de se deitar
            “Sentia os olhos fecharem-se, mal-grado meu, e como não concebera nenhuma suspeita não tentei lutar contra o sono. Lancei um último olhar à cozinha. Caderousse estava sentado ao lado de uma mesa comprida, num dos bancos de madeira que nas estalagens de aldeia substituem as cadeiras. Virava-me as
costas, de forma que não lhe podia ver o rosto. Aliás, mesmo que estivesse na posição contrária também lha não veria, pois tinha a cabeça escondida nas mãos.
            “Carconte olhou-o durante algum tempo, encolheu os ombros e foi sentar-se diante dele.
            “Naquele momento a chama moribunda pegou logo a um resto de lenha seca até  ali esquecido e um clarão um pouco mais vivo iluminou o sombrio interior. Carconte tinha os olhos cravados no marido, e como ele continuasse sempre na mesma posição, vi-a estender a mão adunca na sua direção e tocar-lhe na testa.
            “Caderousse estremeceu. Pareceu-me que a mulher movia os lábios, mas quer porque falasse muito baixo, quer por os meus sentidos estarem já embotados pelo sono, as suas palavras não chegaram até  mim. já via apenas através de um nevoeiro e com a incerteza precursora do sono, durante a qual julgamos começar
a sonhar. Por fim os olhos fecharam-se-me e perdi a consciência de mim mesmo.
            “Encontrava-me mergulhado no sono mais profundo quando fui acordado por um tiro de pistola, seguido de um grito horrível. Passos cambaleantes soaram no sobrado do quarto e uma massa inerte veio cair na escada, precisamente por cima da minha cabeça.
            “Não estava ainda bem senhor de mim quando ouvi gemidos e depois gritos abafados, como os que acompanham uma luta. Um derradeiro grito, mais prolongado do que os outros e que degenerou em gemidos, tirou-me completamente da minha letargia.
            “Soergui-me num braço, abri os olhos, que não viram nada nas trevas, e levei a mão à testa, sobre a qual me parecia cair através das tábuas da escada uma chuva morna e abundante.
            “O mais profundo silêncio sucedera àquele barulho horrível. Ouvi os passos  de um homem que caminhava por cima da minha cabeça, os quais a certa altura fizeram estalar a escada. O homem desceu à sala inferior, aproximou-se da chaminé e acendeu uma vela.
            “O homem era Caderousse. Estava pálido e tinha a camisa toda ensanguentada. Com a vela acesa voltou a subir rapidamente a escada e ouvi de novo os seus passos rápidos e inquietos. Um instante depois tornou a descer. Trazia o estojo na mão. Assegurou-se de que o diamante se encontrava lá dentro, procurou um momento em qual das algibeiras o meteria, e em seguida, decerto por não considerar as algibeiras esconderijo bastante seguro, enrolou-o no seu lenço de assoar encarnado, que atou ao pescoço.
            “Depois, correu ao armário, de onde tirou as notas e o ouro, meteu umas no bolsinho das calças e o outro na algibeira da jaqueta, pegou em duas ou três camisas, correu para a porta e desapareceu na escuridão. Então tudo se tornou claro e lúcido para mim e censurei-me pelo que acabava de acontecer como se fosse o verdadeiro culpado. Pareceu-me ouvir gemidos. O pobre joalheiro podia não estar morto. Talvez estivesse na minha mão, socorrendo-o, reparar parte do mal, não que eu cometera, mas sim que deixara cometer. Apoiei os ombros numa das tábuas mal juntas que separavam a espécie de cubículo em que me
encontrava deitado da sala inferior, as tábuas cederam e entrei na cozinha.
            “Corri para a vela e depois para a escada. Havia um corpo atravessado nela; era o cadáver de Carconte. O tiro de pistola que ouvira fora disparado contra ela. Tinha a garganta atravessada de lado a lado e, além do sangue que lhe jorrava desse duplo ferimento, também bolsava muito pela boca. Estava morta. Saltei por cima do seu corpo e passei.
            "O quarto oferecia o aspecto da mais horrível desordem. Dois ou três móveis estavam caídos. Os lençóis, aos quais o infeliz joalheiro se agarrara, arrastavam pelo chão. Ele próprio estava caído no sobrado, com a cabeça encostada à parede, no meio de um mar de sangue que lhe brotava de três grandes
ferimentos no peito.
            “No quarto tinha cravada uma grande faca de cozinha, de que só se via o cabo. Observei a segunda pistola, que não disparara, provavelmente pela pólvora estar molhada.
            “Aproximei-me do joalheiro; não estava morto, efetivamente. Devido ao barulho que fiz, e sobretudo ao estremecimento do sobrado, abriu uns olhos alucinados, que conseguiu fixar um instante em mim, agitou os lábios como se quisesse falar e expirou.
            “Aquele medonho espetáculo quase me pusera louco. Mas desde o momento em que não podia socorrer ninguém, só uma coisa me preocupava: fugir. Precipitei-me para a escada e enquanto a descia enterrava as mãos nos cabelos e soltava rugidos de terror.
            “Na sala de baixo encontravam-se cinco ou seis guardas-fiscais e dois ou três guardas, um autêntico
exército armado. Prenderam-me. Nem sequer tentei opor resistência; já não era senhor dos meus sentidos. Procurei falar, mas apenas soltei alguns gritos inarticulados.
            “Vi que os guardas-fiscais e os guardas me apontavam a dedo uns aos  outros; olhei para mim mesmo e verifiquei que estava todo coberto de sangue. A chuva morna que sentira cair sobre mim através das tábuas da escada era o sangue de Carconte.
            “Indiquei com o dedo o lugar onde estivera escondido.
            “- Que quer dizer? - perguntou um guarda.
            “Um guarda-fiscal foi ver.
            “- Quer dizer que estava escondido ali - respondeu, e mostrou o buraco por onde eu saíra.
            “Compreendi então que me tomavam pelo assassino. Recuperei a voz e as forças e soltei-me das mãos dos dois homens que me seguravam.
            “- Não fui eu! Não fui eu! - gritei.
            “Dois guardas apontaram-me as suas carabinas.
            “- Se fizer um movimento, morre - disseram.
            “- Repito-lhes que não fui eu! - tornei a gritar.
            “-Conte essa historia aos juízes de Nímes - responderam. - Entretanto, está nas nossas mãos, e se quer um conselho, não oponha resistência.
            “Essa não era de modo algum a minha intenção, estava abatido pela surpresa e pelo terror. Algemaram-me, amarraram-me à cauda de um cavalo e levaram-me para Nímes.
            “Fora seguido por um guarda-fiscal. Perdera-me de vista nas imediações da casa e desconfiara que passaria lá a noite. Prevenira os camaradas e tinham chegado precisamente a tempo de ouvir o tiro de pistola e prender-me no meio de tais provas de culpabilidade que compreendi imediatamente que seria
muito difícil fazer reconhecer a minha inocência.
            “Por isso agarrei-me apenas a uma coisa: o meu primeiro pedido ao juiz de instrução foi para lhe solicitar que mandasse procurar por toda a parte um tal abade Busoni que naquele dia estivera na Estalagem da Ponte-du-Gard. Se Caderousse inventara uma história e o abade não existisse, era evidente que estava perdido, a não ser que Caderousse também fosse preso e confessasse tudo.
            “Passaram dois meses durante os quais, devo dizê-lo em louvor do meu juiz, todas as buscas foram feitas para encontrar aquele que eu reclamava. já perdera toda a esperança. Caderousse não fora apanhado. Ia ser julgado na primeira audiência, quando, em 8 de Setembro, isto é, três meses e cinco dias depois do sucedido, o abade Busoni pelo qual já não esperava, se apresentou na cadeia dizendo que soubera que um
recluso lhe desejava falar. Recebera a noticia em Marselha, disse, e apressara-se a satisfazer o meu desejo.
            “Compreende decerto com que alvoroço o recebi. Contei-lhe tudo de que fora testemunha e referi-me, temeroso, à história do diamante. Contra a minha expectativa, era verdadeira de ponta a ponta, e também contra a minha expectativa, acreditou plenamente em tudo o que lhe disse. Foi então que, levado pela sua doce caridade, reconhecendo nele um profundo conhecimento dos costumes da minha terra e pensando que o perdão do único crime que cometera talvez pudesse sair dos seus lábios tão caridosos, lhe contei, sob segredo de confissão, a aventura de Auteuil em todos os seus pormenores. O que fizera por impulso obteve o mesmo resultado que obteria se o fizesse por cálculo. A confissão do primeiro assassínio, que nada me obrigava a revelar-lhe, provou-lhe  que não cometera o segundo, e quando me deixou provou-lhe que não cometera o segundo, E, ordenou-me que esperasse e prometeu-me fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para convencer os juízes da minha inocência.
            “Tive a prova de que efetivamente se ocupara de mim quando vi a minha prisão suavizar-se  gradualmente e soube que seria julgado a seguir às audiências já marcadas.
            “Entretanto, a Providência permitiu que Caderousse fosse preso no estrangeiro e extraditado para a França. Confessou tudo, mas lançou a premeditação e sobretudo a instigação para cima da mulher. Condenaram-no a prisão perpétua nas galés e a mim puseram-me em liberdade.
            - E foi então - disse Monte-Cristo - que me procurou, munido de uma carta do abade Busoni?
            - Foi, Excelência. Ele tomara por mim um interesse visível.
            “- A sua condição de contrabandista o perderà - disse-me. - Se conseguir sair daqui, deixe-a.
            “- Mas, Sr. Abade, como quer que viva e sustente a minha pobre cunhada?
            “- Um dos meus penitentes - respondeu-me - tem uma grande estima por mim e encarregou-me de lhe arranjar um homem de confiança. Quer ser esse homem?  O recomendarei.
            “- Oh, Sr. Abade, que bondade a sua! - exclamei.
            “- Mas jure que nunca terei de me arrepender?
            “Estendi a mão para jurar.
            “- É inútil - disse ele. - Conheço e gosto dos Corsos. Aqui está a minha recomendação.
            “E escreveu aquelas linhas que entreguei ao Sr. Conde e mediante as quais V. Exª  teve a bondade de me tomar ao seu serviço. Agora, pergunto com orgulho a V. Exª : alguma vez teve razão de queixa de mim?
            - Não - respondeu o conde. - E, confesso-o com prazer, tem sido um bom servidor, Bertuccio, embora pouco confiado.
            - Eu, Sr. Conde?!
            - Você, sim. Como é possível que tenha uma cunhada e um filho adotivo e nunca me tenha falado de uma nem de outro?
            - Porque, infelizmente, Excelência, ainda lhe não contei a parte mais triste da minha vida. Parti para a Côrsega. Tinha pressa, como deve compreender, de tornar a ver e confortar a minha pobre cunhada. Mas quando cheguei a Rogliano encontrei a casa de luto. Houvera uma cena terrível, de que os vizinhos ainda hoje se recordam! A minha pobre cunhada, segundo os meus conselhos; resistia às exigências de Benedetto, que a cada instante queria que ela lhe desse todo o dinheiro que houvesse em casa. Uma manhã, ameaçou-a e desapareceu durante todo o dia. Ela chorou, porque a querida Assunta tinha para o miserável um coração de mãe. Quando anoiteceu, esperou-o sem se deitar. às onze horas, quando ele regressou com dois dos seus amigos, companheiros habituais de todas as suas tropelias, ela estendeu-lhe os braços. Mas eles  apoderaram-se dela e um dos três - receio que aquele infernal rapaz –, um dos três gritou: “Experimentemos a tortura e talvez se resolva a dizer onde está o dinheiro.” Precisamente naquele dia, o vizinho Wasilio fora a Bástia e a mulher ficara sozinha em casa. Ninguém, exceto ela, poderia ver ou ouvir o que se passasse na casa da minha cunhada. Dois seguraram a pobre Assunta, que, não acreditando na possibilidade de  semelhante crime, sorria aos que iam ser seus carrascos. O terceiro foi fechar portas e janelas, voltou e todos os três juntos, abafando os gritos de terror que aqueles preparativos, mais sérios, lhe arrancavam,  aproximaram os pés de Assunta do braseiro com que contavam para a obrigar a dizer onde escondera o nosso pequeno tesouro. Mas na luta o fogo pegou-se às roupas e eles largaram-na para não se queimarem a si próprios. Envolta em chamas, ela correu para a porta, mas a porta estava fechada.
            “Atirou-se à janela; mas a janela encontrava-se barricada. Então, a vizinha ouviu gritos horríveis; era Assunta, que pedia socorro. Mas a sua voz não tardou a ser abafada; os gritos transformaram-se em gemidos, e no dia seguinte, depois de uma noite de terror e angústia, quando a mulher de Wasilio se atreveu a sair de casa e mandou abrir a porta da nossa com autorização do juiz, encontraram Assunta meio queimada, mas respirando ainda, os armários arrombados e o dinheiro desaparecido. Quanto a Benedetto, deixara Rogliano para sempre. Nunca mais o vi desde esse dia e nem sequer ouvi falar dele. Foi depois de saber estas tristes notícias que procurei, V. Exª . já não tinha de lhe falar de Benedetto, que desaparecera, nem da minha cunhada, que morrera.
            - E que pensou desse acontecimento? - Perguntou  Monte-Cristo.
            - Que era o castigo do crime que cometera - respondeu Bertuccio. - Ah, esses Villefort eram uma raça maldita!
            - Também me parece - murmurou o conde, em tom lúgubre.
            - E agora - prosseguiu Bertuccio –, V. Exª  compreende, não é verdade, por que motivo esta casa, que não tornei a ver desde então, este jardim, onde me encontrei de súbito, e este lugar, onde matei um homem, me causaram as sombrias emoções cuja origem desejou conhecer. Porque, enfim, não tenho a certeza de
que diante de mim, aí, a meus pés, o Sr. de Villefort não esteja deitado na cova que abrira para o filho.
            - Com efeito, tudo é possível - disse Monte-Cristo, levantando-se do banco onde estava sentado. - até  -
acrescentou baixinho-que o procurador régio não tenha morrido. O abade Busoni fez bem em mandá-lo ter comigo e o senhor fez bem em me contar a sua história, pois assim não terei maus pensamentos a seu respeito. Quanto ao malfadado Benedetto, nunca procurou encontrar-lhe o rastro? Nunca tentou saber que
fora feito dele?
            - Nunca. Se soubesse onde estava, em vez de ir ter com ele fugiria como se foge de um monstro. Não, felizmente nunca mais ouvi falar dele. Espero que tenha morrido.
            - Não espere, Bertuccio - disse o conde. - Os maus não morrem assim, pois Deus parece tomá-los sob a sua proteção para os tornar instrumento das suas vinganças.
            - Pois seja - concordou Bertuccio. - Tudo o que peço ao Céu é nunca mais tornar a ve-lo. Agora - continuou o intendente, baixando a cabeça - sabe tudo, Sr. Conde, e é o meu juiz, como Deus o será lá  em cima. Não me dirá algumas palavras de consolação?
            - Tem razão, com efeito, e posso dizer-lhe o que lhe diria o abade Busoni: aquele que abateu, esse Villefort, merecia ser castigado pelo que lhe fizera e talvez por outra coisa ainda. Benedetto, se vive, servirá, como lhe disse, para qualquer vingança divina e depois será castigado por seu turno. Quanto a você, só  tem na realidade uma coisa a censurar-se: pergunte a si mesmo por que motivo, depois de arrancar a criança da
morte, não a entregou à mãe. É esse o seu crime, Bertuccio.
            - Sim, senhor, foi esse o meu crime, o meu verdadeiro crime, porque me comportei como um covarde. Uma vez que conseguira trazer a criança à vida, só tinha uma coisa a fazer, como o senhor disse, era restituí-la à mãe. Mas para isso teria de fazer indagações, de chamar a atenção, de me entregar, talvez. Ora eu não queria morrer, tinha amor à vida pela minha cunhada, pelo amor-próprio inato entre nós de ficarmos firmes
e vitoriosos na nossa vingança. Ou talvez me agarrasse à vida simplesmente por amor à própria vida. Oh, eu não sou um bravo como era o meu pobre irmão!
            Bertuccio escondeu o rosto nas mãos e Monte-Cristo pousou nele um longo e indefinível olhar.
            Em seguida, depois de um instante de silêncio, tornado ainda mais solene devido à hora e ao local:
            - Para terminarmos dignamente esta conversa, que será a última acerca das suas aventuras, Sr. Bertuccio - disse o conde, num tom de melancolia que lhe não era habitual –, fixe bem as minhas palavras, que ouvi muitas vezes serem proferidas pelo próprio abade Busoni. Para todos os males há dois remédios: o
tempo e o silêncio. Agora, Sr. Bertuccio, deixe-me passear um instante no jardim. O que é para si uma emoção pungente, por ter sido ator nesta cena, será para mim uma sensação quase agrável e que duplicará o valor desta propriedade. As árvores, como o Sr. Bertuccio vê, só agradam porque dão sombra, e a própria sombra só agrada porque está cheia de sonhos e visões. Comprei um jardim julgando comprar um mero
recinto murado e mais nada, e de repente o recinto revela-se um jardim cheio de fantasmas, de modo algum incluídos na escritura. Ora eu gosto de fantasmas. Talvez porque nunca ouvi dizer que os mortos tenham feito tanto mal em seis mil anos como os vivos fazem num dia. Volte para casa, Sr. Bertuccio, e vá dormir em paz. Se o seu confessor, no momento supremo, for menos indulgente do que foi o abade Busoni, mande-me chamar, se eu for ainda deste mundo, e encontrarei para si palavras que embalarão a sua alma quando estiver prestes a pôr-se a caminho para fazer essa árdua viagem chamada eternidade. Bertuccio inclinou-se respeitosamente diante do conde e retirou-se, suspirando.
            Monte-Cristo ficou só. Deu quatro passos em frente e murmurou:
            - Aqui, ao pé deste plátano, a cova onde a criança foi depositada; lá adiante, a portinha por onde se entrava no jardim, àquele canto, a escada oculta que leva ao quarto. Parece-me que não necessito anotar tudo isto, pois tenho diante dos meus olhos, à minha volta e debaixo dos meus pés, a planta em relevo, a planta viva.
            Depois de uma última volta ao jardim, o conde dirigiu-se para a carruagem. Bertuccio, que o achou pensativo, subiu sem dizer nada para o lugar ao lado do cocheiro. A carruagem retomou o caminho de Paris.
            Naquela mesma noite, após chegar à casa dos Campos Elísios, o conde de Monte-Cristo visitou todo o edifício como o faria um homem familiarizado com  ele há longos anos. Nem uma só vez, embora fosse à frente, abriu uma porta por outra ou tomou por uma escada ou por um corredor que o não levasse diretamente
aonde contava ir. Ali acompanhava-o na sua revista noturna. O conde deu a Bertuccio várias ordens com vista ao embelezamento ou à nova arrumação da casa e, puxando do relógio, disse ao núbio, atento:
            - São onze e meia. Haydée não deve tardar. As mulheres francesas foram avisadas?
            Ali estendeu a mão para os aposentos destinados à bela grega, que ficavam de tal forma isolados que, ocultando a porta com uma tapeçaria, se podia visitar toda a casa sem suspeitar que havia ali uma sala e dois quartos habitados. Ali, dizíamos, estendeu a mão para os aposentos, fez o número três com os dedos da mão esquerda e, apoiando a cabeça nessa mesma mão, depois de aberta, fechou os olhos como se dormisse.
            - Ah! - exclamou o conde de Monte-Cristo, habituado àquela linguagem. - São três e estão à espera no quarto, não é?
            - Sim - respondeu Ali, agitando a cabeça de alto a baixo.
            - A senhora deve vir cansada, esta noite - continuou Monte-Cristo -, e sem duvida quererá dormir. Que não a façam falar. As criadas francesas devem cumprimentar apenas a sua nova ama e retirar-se.  Providenciará para que a criada grega não comunique com as criadas francesas.
            Ali inclinou-se.
            Pouco depois ouviu-se chamar o porteiro, o portão abriu-se, uma carruagem rodou na alameda e deteve-se diante da escadaria. O conde desceu. A portinhola já estava aberta. Estendeu a mão a uma mulher nova, envolta num manto de seda verde, todo bordado a ouro, que lhe cobria a cabeça.
            A jovem pegou na mão que lhe estendiam e beijou-a com certo amor, laivado de respeito. Trocaram algumas palavras, ternamente da parte da jovem e com meiga gravidade da parte do conde, na língua sonora que o velho Homero pôs na boca dos deuses.
            Em seguida, precedida por Ali, que levava uma tocha de cera cor-de-rosa, a jovem, que não era outra senão a bela grega, companheira habitual de Monte-Cristo na Itália, foi conduzida aos seus aposentos e o conde retirou-se para o pavilhão que reservara para si. À meia-noite e meia hora todas as luzes estavam apagadas na casa e diria-se que todos dormiam.


Capítulo XLVI

O crédito ilimitado


            No dia seguinte, por volta das duas horas da tarde, uma caleça puxada por dois magníficos cavalos ingleses parou diante da porta de Monte-Cristo. Um homem de casaca azul, com botões de seda da mesma cor, colete branco atravessado por enorme corrente de ouro e calças cor de avelã, e de cabelo tão preto
e descendo-lhe até  tão perto das sobrancelhas que se hesitaria em julgá-lo  natural, de tal forma parecia pouco de harmonia com as rugas inferiores, que não conseguia ocultar, um homem, enfim, de cinquenta a cinquenta e cinco anos e que procurava aparentar quarenta meteu a cabeça pela portinhola, em cuja
almofada se via pintada uma coroa de barão, e mandou o seu mandarete perguntar ao porteiro se o conde de Monte-Cristo estava em casa.
            Enquanto esperava, o homem pôs-se a observar, com uma atenção tão minuciosa, que se tornava quase impertinente, o exterior da casa, o que se podia distinguir do jardim e a libré de alguns criados que se viam ir e vir. O homem tinha um olhar vivo, mas mais astuto do que espiritual, e lábios tão delgados que em vez de lhe saírem da boca lhe entravam nela. Finalmente, a largura e a proeminência das maçãs-do-rosto,
sinal infalível de astúcia, a depressão da testa e a grossura do occipício, que ultrapassava muito as grandes orelhas nada aristocráticas, contribuíam para dar, aos olhos de qualquer fisionomista um caracter quase repelente à figura desta personagem muito recomendável aos olhos do vulgo, pelo seu cabelo magnífico, pelo enorme diamante que trazia na camisa e pela fita vermelha que se estendia de uma botoeira à outra da
casaca.
            O mandarete bateu no postigo do porteiro e perguntou:
            - É aqui que mora o Sr. Conde de Monte-Cristo?
            - Sim, é aqui que mora Sua Excelência - respondeu o porteiro. - Mas... E consultou Ali com a vista, o qual lhe fez um sinal negativo.
            - Mas?... - insistiu o mandarete.
            - Mas Sua Excelência não está visível - respondeu o porteiro.
            - Nesse caso, aqui está o cartão do meu amo, o Sr. Barão Danglars. Entregue-o ao conde de Monte-Cristo e diga-lhe que ao ir para a Câmara o meu amo se desviou do caminho para ter a honra de ve-lo.
            - Eu não falo com Sua Excelência - perguntou o porteiro  -, mas o criado de quarto lhe dará o recado.
            O mandarete voltou para a carruagem.
            - Então? - perguntou Danglars.
            O rapaz, muito envergonhado devido à lição que acabava de receber, transmitiu ao amo a resposta que lhe dera o porteiro.
            - Ora essa! - exclamou Danglars. - É algum príncipe esse cavalheiro a quem tratam por Excelência e a quem só o criado de quarto tem o direito de falar? Não faz mal, como tem um crédito sobre mim, o verei quando precisar de dinheiro!
            E Danglars recostou-se no fundo da carruagem, depois de gritar ao cocheiro, de forma que se pudesse ouvir do outro lado da rua:
            - À Camara dos Deputados!
            Através de uma persiana do seu pavilhão, Monte-Cristo, prevenido a tempo, vira e estudara o barão com o auxílio de um excelente binóculo com não menos atenção do que o Sr. Danglars pusera na análise da casa, do jardim e das librés.
            - Decididamente - murmurou com uma expressão de repugnância, guardando o binóculo no seu estojo de marfim –, decididamente aquele homem é uma criatura horrível. Como é possível não reconhecer nele, desde a primeira vez que se vê, a serpente de cabeça achatada, o abutre de crânio abaulado e o bútio de bico cortante? Ali! - gritou, e depois bateu numa campainha de cobre.
            Ali apareceu. 
            - Chame Bertuccio - ordenou-lhe.
            No mesmo momento, Bertuccio entrou.
            - V. Exª  ia mandar me chamar? - perguntou o intendente.
            - Ia, sim, senhor - respondeu o conde. - Viu os cavalos que estiveram parados diante da minha porta?
            - Decerto, Excelência. São mesmo muito bonitos.
            - Como é possível - prosseguiu Monte-Cristo, franzindo o sobrolho - que depois de lhe pedir que me arranjasse os dois mais belos cavalos de Paris haja em Paris dois cavalos tão bonitos como os meus e que esses cavalos não estejam nas minhas cavalariças?
            Perante o sobrolho franzido e o tom severo daquela voz, Ali baixou a cabeça.
            - A culpa não é sua, meu bom Ali - disse o conde em árabe, com uma doçura que se não julgaria poder encontrar nem na sua voz, nem no seu rosto. - Você não entende de cavalos ingleses.
            A serenidade reapareceu no rosto de Ali.
            - Sr. Conde - disse Bertuccio –, os cavalos a que se refere não estavam à venda.
            Monte-Cristo encolheu os ombros:
            - Fique sabendo, Sr. Intendente, que tudo está sempre à venda para quem pode pagar o preço.
            - O Sr. Danglars pagou-os por dezesseis mil francos, Sr. Conde.
            - Nesse caso, era oferecer-lhe trinta e dois mil. É banqueiro e um banqueiro nunca perde a oportunidade de duplicar o seu capital.
            - O Sr. Conde fala sério? - perguntou Bertuccio.
            Monte-Cristo fitou o intendente como um homem surpreendido por se atreverem a interrogá-lo.
            - Esta tarde vou fazer uma visita. Quero que esses dois cavalos estejam atrelados à minha carruagem com um arreio novo.
            Bertuccio cumprimentou e retirou-se. Mas parou ao pé da porta para perguntar:
            - A que horas conta V. Exª  fazer essa visita?
            - Às cinco horas - respondeu Monte-Cristo.
            - Permito-me observar a V. Exª  que já são duas horas - arriscou o intendente.
            - Bem sei - limitou-se a responder Monte-Cristo.
            Depois, virando-se para Ali:
            - Mande passar todos os cavalos diante da senhora para que escolha a parelha que mais lhe agradar e peça-lhe que mande me dizer se quer jantar comigo. Nesse caso, o jantar será servido nos seus aposentos. Vai. Quando descer, mande-me o meu criado de quarto.
            Ali acabava de desaparecer quando o criado de quarto entrou por seu turno.
            - Sr. Baptistin - disse-lhe o conde –, há um ano que está ao meu serviço; é o tempo de experiência que imponho habitualmente ao meu pessoal. O senhor serve-me. Baptistin inclinou-se.
            - Resta saber se eu lhe sirvo.
            - Oh, Sr. Conde! - apressou-se a dizer Baptistin.
            - Ouça-me até o fim - prosseguiu o conde. - O senhor ganha por ano  mil e quinhentos francos, isto é, o soldo de um bom e bravo oficial que arrisca todos os dias a vida, e tem uma mesa que muitos chefes de repartição, pobres servidores infinitamente mais ocupados do que o senhor, lhe invejariam. Criado, tem o senhor mesmo criados que lhe cuidam da roupa e das suas coisas. Além dos seus mil e quinhentos francos de ordenado, o senhor rouba-me, nas compras que faz para a minha toilette, mais cerca de mil e quinhentos francos por ano...
            - Oh, Excelência!
            - Não me queixo disso, Sr. Baptistin; é razoável. No entanto, desejo que as coisas fiquem por aí. O senhor não arranjaria em parte alguma um lugar como o que a sua boa fortuna lhe proporcionou. Nunca bato no meu pessoal, nunca praguejo, nunca me encolerizo, perdoo sempre um erro, mas nunca uma negligência ou um esquecimento. As minhas ordens são habitualmente curtas, mas claras e precisas. Prefiro repeti-las duas vezes, e até  três, a vê-las mal interpretadas. Sou bastante rico para saber tudo o que quero saber, e sou
muito curioso, previno-o. Se souber, portanto, que falou a meu respeito bem ou mal, comentou os meus atos ou vigiou a minha conduta, sairá da minha casa imediatamente. Nunca previno os meus criados mais do que uma vez. Está prevenido, pode-se retirar!
            Baptistin inclinou-se e deu três ou quatro passos para se retirar. - A propósito - prosseguiu o conde -, ia me esquecendo de dizer que todos os anos deposito determinada importância em nome do meu pessoal. Aqueles que despeço perdem inevitavelmente esse dinheiro, que aproveita aos que ficam e que a ele terão direito depois da minha morte. Está aqui há um ano, a sua fortuna começou, continue-a.
            Esta alocução feita diante de Ali, que permanecia impassível atendendo a que não percebia uma palavra de francês, produziu no Sr. Baptistin um efeito que compreenderão todos aqueles que estudaram a psicologia do criado francês.
            - Procurarei conformar-me em todos os pontos com os desejos de V. Exª  - disse. - Aliás, me guiarei pelo Sr. Ali.
            - Oh, de modo nenhum! - perguntou o conde, com uma frieza de mármore. - Ali tem muitos defeitos de mistura com as suas qualidades. Não siga portanto o seu exemplo, porque Ali é uma exceção. Não tem salário, não é um criado, é o meu escravo, o meu cão. Se faltasse ao seu dever, não o despediria, matava-o.
            Baptistin arregalou os olhos.
            - Duvida? - perguntou Monte-Cristo.
            E repetiu a Ali as mesmas palavras que acabava de dizer em francês a Baptistin.
            Ali ouviu, sorriu, aproximou-se do amo, pôs um joelho no chão e beijou-lhe respeitosamente a mão.
            Este corolariozinho da lição levou ao cúmulo a estupefação do Sr. Baptistin, o conde fez sinal a Baptistin para sair e a Ali para segui-lo. Ambos passaram ao gabinete do conde, onde conversaram
demoradamente.
            Às cinco horas o conde tocou três vezes a campainha. Um toque chamava Ali, dois toques Baptistin, e três toques Bertuccio.
            O intendente entrou.
            - Os meus cavalos? - perguntou Monte-Cristo. 
            - Estão atrelados à carruagem, Excelência - respondeu Bertuccio. - Devo acompanhar o Sr. Conde?
            - Não, apenas o cocheiro, Baptistin e Ali.
            O conde desceu e encontrou atrelados à carruagem os cavalos que admirara de manhã na carruagem de Danglars. Ao passar por eles deitou-lhe uma olhadela.
            - São lindos, de fato - declarou –, e fez bem em  comprá-los. Só é pena que tenha sido um bocadinho tarde...
            - Excelência - atalhou Bertuccio –, tive muita dificuldade em os conseguir e ficaram muito caros.
            - São por isso menos belos? - perguntou o conde, encolhendo os ombros.
            - Se V. Exª  está satisfeito é quanto basta - disse Bertuccio.
            - Aonde vai, Excelência?
            - À Rua da Chaussée-d'Antin, a casa do Sr. Barão Danglars.
            Esta conversa passava-se no alto da escadaria. Bertuccio deu um passo para descer o primeiro degrau.
            - Espere, senhor - disse Monte-Cristo, detendo-o. - Preciso de um terreno à beira-mar, na Normandia, por exemplo, entre o Havre e Bolonha. Dou-lhe espaço, como vê, conviria que o terreno tivesse um portinho, uma enseadazinha, uma baiazinha, onde pudesse entrar e ficar a minha corveta, que não precisa de mais de quinze pés de água. O navio estará sempre pronto a fazer-se ao mar, a qualquer hora do dia ou da noite que lhe dê ordem para isso. Informe-se junto de todos os tabeliões de uma propriedade nas condições que lhe disse. Quando souber de alguma, ir  vê-la, e se lhe agradar, compre-a  em seu nome. A corveta deve estar a caminho de Fécamp, não é verdade?
            - Vi-a fazer-se ao mar na própria tarde em que saímos de Marselha.
            - E o iate?
            - O iate tem ordem para permanecer em Martigues.
            - Bem, comunique de vez em quando com os dois patrões que os comandam a fim de não adormecerem.
            - E quanto ao navio a vapor?
            - O que está em Châlons?
            - Sim.
            - As mesmas ordens que para os dois navios à vela.
            - Muito bem!
            - Logo que a propriedade esteja comprada, instalarei mudas de cavalos de dez em dez léguas na estrada do Norte e na estrada do Meio-Dia.
            - V. Exª  pode contar comigo.
            O conde fez um sinal de satisfação, desceu os degraus e entrou na carruagem, a qual, levada pelo trote magnífico da parelha, só parou diante do palácio do banqueiro.
            Danglars presidia a uma comissão nomeada para estudar a instalação de uma via férrea quando lhe anunciaram a visita do conde de Monte-Cristo. A sessão estava, de resto, quase terminando.
            Ao ouvir o nome do conde, levantou-se.
            - Meus senhores  - disse, dirigindo-se aos colegas, muitos dos quais eram respeitáveis membros de uma ou de outra Câmara -, perdoem-me deixá-los assim, mas imaginem que a Casa Thomson & French, de Roma, me recomenda  um tal conde de Monte-Cristo, a quem abre em minha casa um crédito ilimitado.
É a brincadeira mais engraçada que os meus correspondentes estrangeiros até  agora se permitiram ter para comigo! Compreendem, fiquei cheio de curiosidade e ainda estou. Passei esta manhã pela casa do pretenso conde. Se fosse um verdadeiro conde, não seria tão rico, como calculam. O cavalheiro não estava visível. Que lhes parece? Não acham que mestre Monte-Cristo se dá ares de alteza ou de mulher bonita? Fora isso, a casa situada nos Campos Elísios, e que lhe pertence, segundo estou informado, pareceu-me bem. Mas um crédito ilimitado - prosseguiu Danglars, soltando um riso desagrável - torna muito exigente o banqueiro junto do qual o crédito é aberto. Tenho portanto pressa de ver o nosso homem. Julgo-me mistificado. Mas os meus correspondentes não sabem com quem estão metidos. Rirá melhor quem rir no fim.
            Ditas estas palavras, com uma ênfase que dilatou as narinas do Sr. Barão, este deixou os seus hóspedes e passou a uma sala pintada de branco e dourado, famosa na Chaussée-d'Antin.
            Fora para lá que ordenara levassem o visitante, a fim de o deslumbrar logo de entrada.
            O conde estava de pé, examinando cópias de Albane e Fattore, que tinham feito passar aos olhos do banqueiro por originais e que por isso mesmo destoavam gritantemente dos adornos de todas as cores que guarneciam o teto. Ao ouvir o ruído que Danglars fez ao entrar o conde virou-se.
            Danglars cumprimentou com uma leve inclinação de cabeça e fez sinal ao conde para se sentar numa cadeira de braços forrada de cetim branco e guarnecida de pregaria dourada. O conde sentou-se.
            - É o Sr. de Monte-Cristo que tenho a honra de falar?
            - E eu - respondeu o conde - ao Sr. Barão Danglars, cavaleiro da Legião de Honra e membro da Câmara dos Deputados?
            Monte-Cristo repetia todos os títulos que encontrara no cartão do barão. Danglars acusou o toque e mordeu os lábios.
            - Desculpe-me, senhor, não o ter tratado logo pelo título por que me foi anunciado, mas como vivemos sob um governo popular e sou um representante dos interesses do povo...
            - Embora conservando o hábito de se fazer tratar por barão, perdeu o de tratar os outros por conde - concluiu Monte-Cristo.
            - Oh, não é por mim, senhor! - respondeu negligentemente Danglars. - Nomearam-me barão e fizeram-me cavaleiro da Legião de Honra por alguns serviços prestados, mas...
            - Mas abdicou dos seus títulos, como fizeram outrora os Srs. de Montmorency e de Lafayette? Era um belo exemplo a seguir.
            - Que no entanto não segui inteiramente - admitiu  Danglars, embaraçado. - Mas compreende, os criados...
            - Sim, para os seus criados deve ser monsenhor, para os jornalistas, senhor, e para os seus  representados, cidadão. São cambiantes muito aplicáveis ao governo constitucional. Compreendo perfeitamente.
            Danglars beliscou os lábios. Viu que naquele terreno não era da força de Monte-Cristo e tentou portanto regressar a outro que lhe fosse mais familiar. 
            - Sr. Conde - disse, inclinando-se - recebi uma carta da Casa Thomson & French...
            - Ainda bem, Sr. Barão. Permita-me que o trate como o tratam os seus criados. É um mau hábito adquirido em países onde ainda existem barões precisamente porque já se não fazem. Ainda bem, dizia, porque assim não terei necessidade de me apresentar pessoalmente, o que é sempre embaraçoso. Recebeu
portanto, dizia, uma carta?
            - Sim - respondeu Danglars. - Mas confesso-lhe que lhe não compreendi perfeitamente o sentido.
            - Essa é boa!
            - E tive até  a honra de passar por sua casa para lhe pedir algumas explicações.
            - Pois aqui me tem, senhor, - pronto a ouvi-lo.
            - Tenho essa carta comigo, creio - disse Danglars, procurando-a na algibeira. - Sim, aqui está... Esta carta abre ao Sr. Conde de Monte-Cristo um crédito ilimitado na minha casa.
            - E que vê o Sr. Barão de obscuro aí?
            - Nada, senhor. Apenas a palavra ilimitado...
            - Não é uma palavra francesa?... Compreende, a carta foi escrita por anglo-alemães.
            - Oh, certamente, senhor! No tocante à sintaxe não há nada a dizer, mas o mesmo não acontece no tocante à contabilidade.
            - Porventura a Casa Thomson & French não é perfeitamente segura, na sua opnião, Sr. Barão? - perguntou Monte-Cristo com o ar mais ingênuo que conseguiu arranjar. - Diabo, isso me contrariaria, pois tenho alguns fundos colocados nela!
            - Oh, é perfeitamente segura - respondeu Danglars, com um sorriso quase zomboteiro. - Mas o sentido da palavra ilimitado, em matéria de finanças, é tão vago...
            - Que é ilimitado, não é verdade?-concluiu Monte-Cristo.
            - Era precisamente isso que queria dizer, senhor. O vago é duvidoso, e lá diz o ditado: “Na dúvida, abstenha-se.”
            - O que significa - prosseguiu Monte-Cristo - que se a Casa Thomson & French está disposta a cometer loucuras, a Casa Danglars não quer seguir-lhe o exemplo.
            - Como assim, Sr. Conde?
            - Sim, sem dúvida. Os Srs. Thomson & French negociam sem fixar os limites do seu crédito, mas o Sr. Danglars tem um limite para o seu; é um homem sensato, como há pouco dizia.
            - Senhor - respondeu orgulhosamente o banqueiro –, ainda ninguém recorreu em vão à minha caixa!
            - Nesse caso - perguntou friamente Monte-Cristo –, parece que serei eu o primeiro.
            - Quem lhe disse isso?
            - As explicações que me pode, senhor, e que se assemelham muito a hesitações...
            Danglars mordeu os lábios. Era a segunda vez que era batido por aquele homem, e desta vez no seu terreno. A sua cortesia zombeteira era apenas afetada e raiava quase a impertinência.
            Monte-Cristo, pelo contrário, sorria com a maior descontração deste mundo e possuía, quando queria, um certo ar ingênuo que lhe dava muitas vantagens.
            - Enfim, senhor - disse Danglars, após um momento de silêncio –, vou tentar fazer-me compreender, pedindo-lhe que fixe pessoalmente a quantia que conta levantar do meu banco.
            - Mas, senhor - perguntou Monte-Cristo, decidido a não perder uma polegada de terreno na discussão –, se pedi um crédito ilimitado sobre o senhor, foi precisamente por não saber de que dinheiro precisaria.
            O banqueiro julgou chegado, finalmente, o momento de atacar a fundo. Recostou-se na sua cadeira e disse, com um sorriso grosseiro e orgulhoso:
            - Oh, senhor, não tenha medo de pedir! Poderá então convencer-se de que o crédito da Casa Danglars, por muito limitado que seja, pode satisfazer as maiores exigências. Mesmo que pedisse um milhão...
            - Como? - perguntou Monte-Cristo.
            - Disse que mesmo que pedisse um milhão - repetiu Danglars com a arrogância da estupidez.
            - E que faria eu com um milhão? - perguntou o conde. - Meu Deus, senhor, se se tratasse apenas de um milhão não estaria aqui! Não me incomodaria em abrir um crédito por semelhante miséria! Um milhão? Mas se trago sempre um  milhão na carteira ou no meu estojo de viagem!
            E Monte-Cristo tirou de uma agendazinha onde trazia os cartões de visita duas ordens de pagamento de quinhentos mil francos cada uma, pagáveis ao portador, sobre o Tesouro. Um homem como Danglars devia ser desancado e não espicaçado. A bordoada produziu o seu efeito: o banqueiro cambaleou e sentiu
vertigens. Depois, pousou em Monte-Cristo dois olhos embrutecidos e com as pupilas horrivelmente dilatadas.
            - Vamos - disse Monte-Cristo –, confesse que desconfia da Casa Thomson & French... Meu Deus, é muito simples! Previ o caso e, apesar de não perceber nada de negócios, tomei as minhas precauções. Aqui estão portanto mais duas cartas idênticas à que lhe foi endereçada. Uma é da Casa Arestein & Eskoles, de Viena, sobre o Sr. Barão de Rothschild, e a outra é da Casa Baring, de Londres, sobre o Sr. Laff'tte. Diga-me
uma só palavra, senhor, e o livrarei de qualquer preocupação, dirigindo-me a uma ou a outra destas duas casas.
            Pronto, Danglars estava vencido. Abriu, visivelmente trêmulo, a carta de Viena e a carta de Londres, que o conde lhe estendia com a ponta dos dedos, e verificou a autenticidade das assinaturas com uma minúcia que seria insultante para Monte-Cristo se não fizesse parte da estupefação do banqueiro.
            - Oh, senhor, estão aqui três assinaturas que valem muitos milhões - declarou Danglars, levantando-se como que para cumprimentar o poder do ouro personificado naquele homem que tinha diante de si. - Três créditos ilimitados sobre as nossas casas! Perdoe-me, Sr. Conde, mas, embora deixando de ser desconfiado, ainda estou atônito.
            - Bom, não é caso para uma casa como a sua se surpreender assim -  declarou Monte-Cristo, com toda a urbanidade. - Pode portanto abonar-me algum dinheiro, não é verdade?
            - Fale, Sr. Conde, estou às suas ordens.
            - Bom - prosseguiu Monte-Cristo –, agora que já nos conhecemos... Porque nos entendemos, não é verdade?           
            Danglars acenou afirmativamente com a cabeça.
            - E já não tem nenhuma desconfiança? - continuou Monte-Cristo.
            - Oh, Sr. Conde, nunca tive! - exclamou o banqueiro.
            - Pois não, desejava apenas uma prova e mais nada. Bom, agora que já nos entendemos - repetiu o conde –, agora que já não tem nenhuma desconfiança, fixemos, se assim o deseja, uma importância geral para o primeiro ano: seis milhões, por exemplo.
            - Seja seis milhões! - concordou Danglars, sufocado.
            - Se precisar de mais - prosseguiu maquinalmente Monte-Cristo –, pedirei mais, mas não conto ficar mais de um ano na França e durante esse ano creio que não excederei essa verba... Enfim, veremos... Para começar, agradecia-lhe que me mandasse entregar amanhã quinhentos mil francos. Estarei em casa até  ao
meio-dia, mas se não estiver, deixarei um recibo ao meu intendente.
            - O dinheiro estará na sua casa amanhã às dez horas da manhã, Sr. Conde - respondeu Danglars. - Quere-o em ouro, em notas ou em prata?
            - Metade em ouro e metade em notas, por favor.
            E o conde levantou-se.
            - Devo confessar-lhe uma coisa, Sr. Conde - disse Danglars, por seu turno. -  Julgava ter noções exatas sobre todas as grandes fortunas da Europa, e no entanto a sua, que me parece considerável, era-me,  confesso, absolutamente desconhecida. É recente?
            - Não, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Pelo contrário, é antiquíssima. Era uma espécie de tesouro de família no qual era proibido tocar e cujos juros acumulados triplicaram o capital. A data fixada pelo testador chegou apenas há alguns anos, e portanto só há alguns anos entrei na posse dessa fortuna. A sua ignorância a tal respeito é pois absolutamente natural. De resto, dentro de algum tempo saberá melhor o que possuo...
            E o conde acompanhou estas palavras com um dos sorrisos pálidos que tanto medo metiam a Franz de Epinay.
            - Com os seus gostos e as suas intenções, senhor - continuou Danglars –, vai decerto exibir na capital um luxo que nos esmagará a todos, pobres pequenos milionários.  Entretanto, como me parece apreciador, porque quando entrei observava os meus quadros, peço-lhe licença para lhe mostrar a minha galeria. São todos quadros antigos, todos quadros de mestres garantidos como tal. Não gosto dos modernos.
            - Tem razão, senhor, porque têm geralmente um grande defeito: o de não terem tido ainda tempo de envelhecer.
            - Também lhe posso mostrar algumas estátuas de Thorwaldsen, de Bartoloni e de Canova, todos artistas estrangeiros. Como vê, não aprecio os artistas franceses.
            - Tem o direito de ser injusto com eles, senhor, visto serem seus compatriotas.
            - Mas tudo isto fica para mais tarde, para quando nos conhecermos melhor. 
            Por hoje me limitarei, se me permite, a apresentá-lo à Sra Baronesa Danglars. Desculpe a minha insistência, Sr. Conde, mas um cliente como o senhor faz quase parte da família.
            Monte-Cristo inclinou-se em sinal de que aceitava a honra que o financeiro lhe desejava conceder.
            Danglars tocou. Apareceu um lacaio de libré resplandecente.
            - A Sr. a Baronesa está nos seus aposentos? - perguntou Danglars.
            - Está sim, Sr. Barão - respondeu o lacaio.
            - Sozinha?
            - Não, a senhora tem visitas.
            - Não será  indiscrição apresentá-lo diante de outras pessoas, pois não, Sr. Conde? Não guarda o incógnito?
            - Não, Sr. Barão - respondeu Monte-Cristo, sorrindo. - Acho que não tenho esse direito.
            - E quem está com a senhora? O Sr. Debray? - perguntou Danglars, com uma bonomia que fez sorrir intimamente Monte-Cristo, já esclarecido acerca dos transparentes segredos familiares do financeiro.
            - É, sim, o Sr. Debray, Sr. Barão - respondeu o lacaio.
            Danglars acenou com a cabeça.
            Depois, virando-se para Monte-Cristo:
            - O Sr. Lucicn Debray - disse - é um velho amigo nosso, secretário particular do ministro do Interior. Quanto à minha mulher, desceu casando comigo, pois pertence a uma família antiga: era uma Serviêres, viúva em primeiras núpcias do Sr. Coronel Marquês de Nargonne.
            - Não tenho a honra de conhecer a Sra Danglars, mas já conheço o Sr. Lucien Debray.
            - Sim? - admirou-se Danglars. - E onde o conheceu?
            - Em casa do Sr. de Morcerf. - disse Danglars.
            - Ah, conhece o viscondezinho?
            - Encontramo-nos em Roma, no Carnaval.
            - Ah, sim, ouvi dizer qualquer coisa a respeito de uma aventura singular com bandidos, assaltantes nas rumas!... Parece que foi salvo milagrosamente. Creio que ele contou qualquer coisa a esse respeito à minha mulher e à minha filha, no seu regresso da Itália.
            - A Sra Baronesa espera-os, senhor - veio anunciar o lacaio.
            - Vou à frente para lhe indicar o caminho - declarou Danglars, inclinando-se.
            - E eu o sigo - respondeu Monte-Cristo.


Capítulo XLVII

A parelha pigarça


            O barão, seguido do conde, atravessou uma longa fila de salas notáveis pela sua pesada sumtuosidade e pelo seu faustoso mau gosto e chegou ao boudoir da Sra Danglars, uma salinha octogonal forrada de cetim cor-de-rosa e musselina da índia. As cadeiras eram de antiga madeira dourada e igualmente antigo era o tecido dos estofos. As bandeiras das portas representavam cenas bucólicas no gênero de Boucher. Finalmente, dois bonitos medalhões pintados em pastel, de harmonia com o resto da decoração, tornavam a salinha a única divisão do palácio com algum carater. É certo que escapara ao plano geral estabelecido entre o Sr. Danglars e o seu arquiteto, uma das mais altas e eminentes celebridades do
Império, e que fora a baronesa e Lucien Debray quem interviera unicamente na decoração. Por isso o Sr. Danglars, grande admirador do antigo conforme o entendia o Diretório, nutria grande desdém por aquele elegante redutozinho, onde, de resto, só era admitido, em geral, com a condição de justificar a sua presença acompanhando alguém. Não era, portanto, na realidade, Danglars quem apresentava, era, pelo contrário, ele que era apresentado e bem ou mal recebido, consoante o rosto do visitante agradava ou desagradava à baronesa.
            A Sra Danglars, cuja beleza ainda podia ser citada, apesar dos seus trinta e seis anos, estava ao piano, pequena obra-prima de marcenaria, enquanto Lucien Debray, sentado diante de uma mesa de costura, folheava um álbum.
            Antes da chegada do conde, Lucien já tivera ensejo de contar à baronesa muitas coisas a seu respeito. Sabemos como, durante o almoço em casa de Albert, Monte-Cristo impressionara os convivas. Ora, tal impressão, por muito pouco impressionável que ele fosse, ainda não se apagara em Debray e as informações que dera à baronesa acerca do conde tinham-se ressentido disso. A curiosidade da Sra Danglars, excitada pelos antigos pormenores dados por Morcerf e pelos novos fornecidos por Lucien, subira portanto ao cúmulo. Por isso, aquela disposição de piano e álbum não passava de uma dessas astuciazinhas da sociedade, com o auxílio das quais se ocultam maiores precauções. A baronesa recebeu, consequentemente, o Sr. Danglars com um sorriso, o que da sua parte não era coisa habitual. Quanto ao conde, teve em troca do seu cumprimento uma cerimoniosa mas ao mesmo tempo graciosa reverência.
            Pela sua parte, Lucien trocou com o conde um cumprimento de semiconhecimento e com Danglars um gesto de intimidade.
            - Sra Baronesa - disse Danglars –, permita-me que lhe apresente o Sr. Conde de Monte-Cristo, que me foi apresentado pelos meus correspondentes em Roma com as recomendações mais insistentes. A seu respeito tenho apenas a dizer que não tardará a ser disputadíssimo por todas as nossas belas damas. Está  em Paris com a intenção de permanecer um ano e de durante esse ano despender seis milhões de francos, o que promete uma série de bailes, de jantares e de ceias, para os quais espero que o Sr. Conde não se esqueça de nos convidar, tal como não nos esqueceremos de o convidá-lo para as nossas festinhas.
            Apesar da apresentação ser bastante grosseiramente elogiosa, é em geral coisa tão rara um homem chegar a Paris disposto a gastar num ano a fortuna de um príncipe que a Sra Danglars deitou ao conde um olhar que não era desprovido de certo interesse
            - Quando chegou, senhor? - perguntou a baronesa.
            - Anteontem de manhã, minha senhora.
            - E veio, conforme o seu hábito, pelo que me disseram, do cabo do mundo?
            - De Cadiz, desta vez, minha senhora; pura e simplesmente. 
            - Oh, chega numa estação horrível! Paris é detestável no Verão, não há bailes, nem reuniões, nem festas. A Ópera italiana está em Londres; a Ópera francesa está em toda a parte, exceto em Paris, e quanto ao teatro francês, como sabe, não está em parte nenhuma. Resta-nos portanto, como única distração, algumas pobres corridas no Campo de Marte e em Satory. Participará nas corridas, Sr. Conde?
            - Minha senhora - respondeu Monte-Cristo –, participarei em tudo o que se fizer em Paris se tiver a sorte de encontrar alguém que me informe convenientemente acerca dos hábitos franceses.
            - É apreciador de cavalos, Sr. Conde?
            - Passei parte da minha vida no Oriente, minha senhora, e os Orientais, como sabe, só apreciam duas coisas no mundo: a nobreza dos cavalos e a beleza das mulheres.
            - Então, Sr. Conde, devia ter tido a galantaria de colocar as mulheres em primeiro lugar... - observou a baronesa.
            - Como vê, minha senhora, tinha toda a razão quando há pouco desejava encontrar um preceptor capaz de me ensinar os hábitos franceses.
            Neste momento, a camareira favorita da Sra Baronesa Danglars entrou, aproximou-se da ama e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido. A Sra Danglars empalideceu.
            - Impossível! - exclamou.
            - Mas é a pura verdade, minha senhora - respondeu a camarista.
            A Sra Danglars virou-se para o marido.
            - É verdade, senhor?
            - O quê, minha senhora? - perguntou Danglars, visivelmente agitado.
            - O que me disse esta moça...
            - E que disse ela?
            - Disse-me que quando o meu cocheiro foi para atrelar os meus cavalos à minha carruagem não os encontrou na cavalariça. Que significa isto, diga-me?
            - Minha senhora, escute-me... - começou Danglars.
            - Oh, escuto-o, senhor, porque tenho curiosidade de saber o que me vai dizer! Farei estes senhores juízes entre nós e começo por lhes dizer o que se passa. Meus senhores - continuou a baronesa –, o Sr. Barão Danglars tem dez cavalos na cavalariça; entre esses dez cavalos há dois que são meus, cavalos encantadores, os mais belos cavalos de Paris. O senhor conhece-os, Debray, os meus pigarços! Pois bem, no momento em que a Sra de Villefort me pede emprestada a carruagem, e a prometo para ir amanhã ao Bosque, os dois cavalos desaparecem! O Sr. Danglars deve ter arranjado maneira de ganhar alguns
milhares de francos com eles e vendeu-os. Oh, meu Deus, que raça maldita, a dos especuladores!
            - Minha senhora - respondeu Danglars –, os cavalos eram demasiado fogosos, tinham apenas quatro anos e faziam-me recear horrivelmente por si...
            - Sabe perfeitamente - perguntou a baronesa - que tenho há mais de um mês ao meu serviço o melhor cocheiro de Paris, a não ser que também o tenha vendido com os cavalos.
            - Querida amiga, lhe arranjarei outros idênticos, ou mais bonitos ainda, se houver, mas cavalos sossegados, calmos e que me não inspirem semelhante terror. 
            A baronesa encolheu os ombros com ar de profundo desprezo. Danglars não pareceu notar o gesto mais do que conjugal e virou-se para Monte-Cristo:
            - Na verdade, lamento não o ter conhecido mais cedo, Sr. Conde - declarou. - está montando a sua casa?
            - Evidentemente - respondeu o conde.
            - Teria lhe oferecido. Imagine que os dei por nada, mas como lhe disse, queria desfazer-me deles. São cavalos para rapazes.
            - Agradeço-lhe, senhor - respondeu o conde –, mas comprei uns esta manhã, bastante bons e não demasiado caros. Olhe, veja-os, Sr. Debray; creio que é apreciador...
            Enquanto Debray se aproximava da janela, Danglars aproximou-se da mulher.
            - Imagine, minha senhora - disse-lhe baixinho –, que me vieram oferecer um preço exorbitante por esses cavalos. Não sei qual é o louco em vias de se arruinar que me mandou esta manhã o seu intendente, mas o caso é que ganhei dezasseis mil francos. Não se zangue comigo e lhe darei quatro mil e dois mil a Eugênie.
            A Sra Danglars deitou ao marido um olhar esmagador.
            - Oh, meu Deus! - exclamou Debray.
            - Que aconteceu? - perguntou a baronesa.
            - Mas não estou enganado, são os seus cavalos, os seus próprios cavalos atrelados à carruagem do conde.
            - Os meus pigarços?! - gritou a Sra Danglars.
            Correu para a janela.
            - Com efeito, são eles... - murmurou.
            Danglars estava estupefato.
            - Será possível? - disse Monte-Cristo, simulando surpresa.
            - É incrível! - exclamou o banqueiro.
            A baronesa disse qualquer coisa ao ouvido de Debray, que se aproximou de Monte-Cristo.
            - A baronesa manda perguntar por quanto lhe vendeu o marido a parelha.
            - Não sei muito bem - respondeu o Conde –, foi uma surpresa que o meu intendente me fez e me custou... creio que trinta mil francos.
            Debray foi transmitir a resposta à baronesa.
            Danglars estava tão pálido e desorientado que o conde simulou ter pena dele.
            - Veja como as mulheres são ingratas - disse-lhe. - A atenção que teve para com ela não impressionou nada a baronesa. Ingratas não é o termo, era loucas que deveria dizer. Mas, que quer, gostam sempre do que é nocivo. Por isso o mais sensato, acredite, caro barão, é deixá-las fazer sempre o que lhes venha à cabeça. Se a partirem, pelo menos só se poderão queixar delas próprias!
            Danglars não disse nada; previa num próximo futuro uma cena desastrosa. A Sra Baronesa já estava de sobrolho franzido, o que, como no caso de Júpiter Olímpico, pressagiava tempestade. Debray, que a sentia formar-se, pretextou um assunto a tratar e saiu. Monte-Cristo, que não desejava prejudicar a posição
que contava conquistar demorando-se mais tempo, cumprimentou a Sra Danglars e retirou-se, entregando o barão à cólera da mulher.
            “Bom”, pensou Monte-Cristo ao sair, “cheguei aonde queria chegar. Tenho  nas mãos a paz do casal e vou conquistar de uma assentada o coração do senhor e o coração da senhora...Que sorte! Mas”, crescentou, “no meio de tudo isto não fui apresentado à Menina Eugênie Danglars, que no entanto teria sido muito agrádavel conhecer. Mesmo assim”, prosseguiu, com o sorriso que lhe era característico, “eis-nos em Paris e com tempo à nossa frente... Ficará para mais tarde!...”
            após esta reflexão, o conde meteu-se na carruagem e regressou para casa.
            Duas horas mais tarde, a Sra Danglars recebeu uma carta encantadora do conde de Monte-Cristo, na qual este lhe declarava que, não querendo assinalar a sua entrada na sociedade parisiense com o desespero de uma linda mulher, lhe suplicava que aceitasse a restituição dos seus cavalos.
            Estes tinham os mesmos arreios que ela lhes vira de manhã; apenas no meio de cada roseta que traziam junto das orelhas o conde mandara colocar um diamante. Danglars também teve a sua carta.
            O conde pedia-lhe licença para tornar a baronesa beneficiára daquele capricho de milionário e solicitava-lhe que desculpasse as maneiras orientais que acompanhavam a restituição dos cavalos. À noite, Monte-Cristo partiu para Auteuil acompanhado de Ali.
            No dia seguinte, por volta das três horas, Ali, chamado por um toque de campainha, entrou no gabinete do conde.
            - Ali, têm-me falado muitas vezes da sua perícia a lançar o laço...
            Ali fez sinal que sim e endireitou-se orgulhosamente.
            - Muito bem... Serias capaz de apanhar um boi com o laço?
            Ali acenou que sim com a cabeça.
            - E um tigre?
            Ali fez o mesmo sinal.
            - E um leão ?
            Aliá simulou o gesto de um homem que lança o laço e imitou um rugido estrangulado.
            - Muito bem! Compreendo - disse Monte-Cristo. -  Caçou leões?
            Ali acenou com a cabeça, orgulhoso.
            - Mas seria capaz de deter na corrida dois cavalos que tivessem tomado o freio nos dentes?
            Ali sorriu.
            - Nesse caso, escute - disse-lhe Monte-Cristo. - Daqui a pouco passará uma carruagem puxada por dois cavalos pigarços, os mesmos que eu tinha ontem. Ainda que tenha de se deixar esmagar, você tem de deter essa carruagem diante da minha porta.
            Ali desceu à rua e traçou diante da porta uma linha na calçada; voltou a entrar e mostrou a linha ao conde, que o seguira com a vista. O conde bateu-lhe suavemente no ombro; era a sua maneira de agradecer a Ali. Depois o núbio foi fumar o seu chibuque sentado no marco situado à esquina da casa e da rua, enquanto Monte-Cristo voltava para dentro sem se ocupar de mais nada.
            No entanto, por volta das cinco horas, isto é, à hora em que o conde esperava a carruagem, poderia se ver surgir nele os sinais quase imperceptíveis de uma ligeira impaciência. Passeava numa sala que dava para a rua, apurava o ouvido a  intervalos e de vez em quando aproximava-se da janela, através da qual via Ali soltar baforadas de fumo de tabaco com uma regularidade indicadora de que o núbio estava todo entregue
àquela importante ocupação.
            De súbito, ouviu-se um rodar distante, mas que se aproximava com a rapidez do raio. Em seguida apareceu uma caleça, cujo cocheiro procurava inutilmente deter os cavalos, que avançavam furiosos, eriçados, saltando como se tivessem enlouquecido. Na caleça, uma mulher nova e um garoto de sete a oito anos, abraçados, tinham perdido, devido ao excessivo terror, até  a força para gritar. Bastaria uma pedra debaixo de uma roda ou uma árvore baixa para fazer a carruagem em pedaços, a qual estalava por todas as juntas. A viatura ocupava o meio da calçada e ouviam-se na rua os gritos de terror dos que a viam passar.
            De súbito, Ali pousou o chibuque, tirou da algibeira o laço, lançou-o e envolveu numa volta tripla as pernas da frente do cavalo da esquerda. Deixou-se arrastar três ou quatro passos pela violência do impulso, mas ao cabo desses três ou quatro passos o cavalo laçado caiu sobre o varal, que partiu, e paralisou os esforços do cavalo que ficara de pé para continuar a corrida. O cocheiro aproveitou a oportunidade para
saltar do seu lugar. Mas já Ali agarrara com os seus dedos de ferro as narinas do segundo cavalo, e o animal, relinchando de dor, caía convulsivamente junto do companheiro. Tudo isto se passou no tempo que uma bala leva a atingir o alvo.
            No entanto, foi quanto bastou para que da casa defronte da qual se dera o acidente um homem saísse correndo, seguido de vários criados. No momento em que o cocheiro abriu a portinhola, retirou da caleça a dama, que com uma das mãos se agarrava à almofada, enquanto com a outra apertava ao peito o filho desmaiado. Monte-Cristo levou ambos para a sala, e deitou-os num canapé.
            - Nada mais receie, minha senhora - disse. - está salva.
            A mulher voltou a si, e como resposta indicou-lhe o filho com um olhar mais eloquente do que todas as súplicas. Com efeito, o garoto continuava desmaiado.
            - Sim, minha senhora, compreendo - disse o conde, examinando o pequeno. - Mas esteja descansada que não lhe aconteceu nada. Foi apenas o medo que o pôs assim.
            - Oh, senhor, não me diz isso só para me tranquilizar? - perguntou a mãe. - Veja como está pálido! Meu filho, meu menino, meu Edouard, responde à tua mãe! Ah, senhor, mande chamar um médico. A minha fortuna a quem me restitua o meu filho!
            Monte-Cristo fez um gesto com a mão para acalmar a mãe lavada em lágrimas, abriu um cofrezinho do qual tirou um frasco de cristal da Boêmia incrustado de ouro contendo um licor vermelho como sangue e de que deixou cair uma única gota nos lábios da criança. O garoto, embora continuasse pálido, abriu  imediatamente os olhos.
            Ao ver isso, a mãe quase delirou de alegria.
            - Onde estou? - quis saber. - A quem devo tamanha felicidade depois de tão cruel experiência?
            - Minha senhora – respondeu Monte-Cristo –, está na casa do homem mais feliz do mundo por ter podido poupar-lhe um desgosto.
            - Oh, maldita curiosidade? - exclamou a dama. - Todos em Paris falam dos magníficos cavalos da Sra Danglars e tive a loucura de os querer experimentar. 
            - Como, aqueles cavalos são os da baronesa?! - perguntou o conde, com uma surpresa admiravelmente simulada
            - São, sim, senhor. Conhece-a?
            - A Sra Danglars?... Tenho essa honra e sinto dupla satisfação por te-la salvo do perigo que esses cavalos a fizeram correr. Porque esse perigo poderia ser atribuido a mim. Comprei ontem esses cavalos ao barão, mas a baronesa pareceu lamentar tanto a sua perda que os restituí ontem mesmo, suplicando-lhe que os não recusasse da minha mão.
            - Mas nesse caso, o senhor é o conde de Monte-Cristo, de quem Hermine tanto me falou ontem?
            - Sou, sim, minha senhora - confirmou o conde.
            - E eu, senhor, sou a Sra Helloise de Villefort.
            O conde cumprimentou como um homem diante do qual se pronuncia um nome perfeitamente desconhecido.
            - Oh, como o Sr. de Villefort lhe ficará reconhecido! - prosseguiu Heloise. - Porque, enfim, lhe deverá  a vida de ambos, visto que o senhor lhe restituiu a mulher e o filho. Certamente, sem a intervenção do seu generoso criado, esta querida criança e eu estaríamos mortos.
            - Infelizmente, minha senhora, e ainda tremo do perigo que correram!
            - Oh, espero que me permita recompensar contiguamente a dedicação desse homem!
            - Minha senhora - respondeu Monte-Cristo –, não me estrague Ali, peço-lhe, nem com elogios, nem com recompensas. São hábitos que não quero que ele tome. Ali é meu escravo; salvando-lhe a vida, serviu-me e é seu dever servir-me.
            - Mas ele arriscou a vida - perguntou a Sra de Villefort, a quem aquele tom de amo e senhor se impunha singularmente.
            - Salvei essa vida, minha senhora - respondeu Monte-Cristo. - Por consequência, ela pertence-me.
            A Sra de Villefort calou-se. Talvez refletisse acerca daquele homem, que à primeira vista causava tão profunda impressão nos espíritos.
            Enquanto durou o silêncio, o conde pode examinar à vontade o garoto, que a mãe cobria de beijos. Era pequeno, frágil, branco como as crianças ruivas, e no entanto uma floresta de cabelos pretos, rebeldes a qualquer frisagem, cobria-lhe a testa abaulada e, caindo-lhe sobre os ombros e emoldurando-lhe o rosto, redobravam-lhe a vivacidade dos olhos cheios de dissimulada malícia e de juvenil maldade. A boca, que ainda mal recuperara a sua cor vermelha, era grande e de lábios finos. As feições daquele garoto de oito anos eram já as de um rapaz de doze anos pelo menos. O seu primeiro movimento foi libertar-se com um safanão brusco dos braços da mãe e ir abrir o cofrezinho de onde o conde tirara o frasco de elixir. Em
seguida, sem pedir licença a ninguém, como uma criança habituada a satisfazer todos os seus caprichos, pôs-se a destapar os outros frascos.
            - Não mexa nisso, meu amigo - disse vivamente o conde. - Alguns desses licores são perigosos, não só bebidos, mas até respirados.
            A Sra de Villefort empalideceu e deteve o braço do filho, que puxou para si. Mas uma vez o seu receio acalmado, deitou imediatamente ao cofrezinho um curto mas expressivo olhar, que o conde interceptou de passagem. 
            Neste momento entrou Ali. A Sra de Villefort fez um movimento de alegria e disse, puxando o garoto ainda mais para perto de si:
            - Edouard, vês este bom servidor? Foi muito corajoso, pois expôs a vida para deter os cavalos que nos arrastavam e a carruagem prestes a quebrar-se. Agradece-lhe, pois, porque provavelmente sem ele a esta hora estaríamos ambos mortos.
            O garoto estendeu os lábios e virou desdenhosamente a cabeça.
            - É muito feio - disse.
            O conde sorriu, como se o pequeno acabasse de preencher uma das suas esperanças. Quanto à Sra de Villefort, ralhou ao filho com uma moderação que decerto não seria do gosto de Jean-Jacques Rousseau se o pequeno Edouard se chamasse Emile.
            - Vê? - disse em árabe o conde a Ali. - Esta dama pede ao filho que te agradeça teres salvo a vida e o garoto responde que você é muito feio.
            Ali virou um instante a cabeça inteligente e olhou o pequeno sem expressão aparente. Mas um simples frêmito das suas narinas mostrou a Monte-Cristo que o árabe acabava de ser ferido no coração.
            - Esta casa é a sua residência habitual? - perguntou a Sra de Villefort, levantando-se para se retirar.
            - Não, minha senhora - respondeu o conde. -  É uma espécie de casa de repouso que comprei. Moro na Avenida dos Campos Elísios, nº  30. Mas vejo que está completamente recomposta e que deseja retirar-se. Acabo de ordenar que atrelem esses mesmos cavalos à minha carruagem, e Ali, aquele rapaz tão feio
- disse sorrindo ao garoto –, vai ter a honra de levá-los para casa enquanto o seu cocheiro ficará  aqui para mandar consertar a caleça. Logo que essa tarefa indispensável esteja terminada, uma das minhas parelhas a levará diretamente a casa da Sra Danglars.
            - Mas - disse a Sra de Villefort –, com os mesmos cavalos nunca me atreverei a sair daqui.
            - Oh, verá, minha senhora! - perguntou Monte-Cristo. - Na mão de Ali, se tornarão mansos como cordeiros.
            Com efeito, Ali aproximara-se dos cavalos, que se tinham levantado com muita dificuldade. Levava na mão uma esponjazinha embebida em vinagre aromático, com a qual esfregou as narinas e as têmporas dos cavalos, cobertos de suor e de espuma, e quase imediatamente ambos começaram a resfolegar ruidosamente e a tremer muito durante alguns segundos.
            Depois, no meio de uma multidão numerosa, que os restos da carruagem e o barulho do acidente tinham atraído diante da casa, Ali mandou atrelar os cavalos ao cupe do conde, pegou nas rédeas, subiu para a boléia e com grande espanto dos assistentes que tinham visto aqueles cavalos galopar como se fossem arrastados por um turbilhão, viu-se obrigado a utilizar energicamente o chicote para os fazer andar, e mesmo assim não pode obter dos famosos pigarços, agora entorpecidos, petrificados, mortos, mais do que um trote tão pouco firme e tão frouxo que a Sra de Villefort levou quase duas horas para chegar ao arrabalde de Saint-Honoré, onde morava.
            Assim que chegou em casa, e uma vez acalmadas as primeiras emoções da família, escreveu o seguinte bilhete à Sra Danglars: 

 Querida Herminie:

            Acabo de ser miraculosamente salva, com o meu filho, pelo mesmo Monte-Cristo de quem tanto falamos ontem à noite e que estava longe de suspeitar que veria hoje. Ontem falou-me dele com um entusiasmo que não pude impedir que fosse alvo da troça da minha pobre inteligência, mas hoje considero esse entusiasmo muito abaixo do homem que o inspirava.
            Os seus cavalos tomaram o freio nos dentes no Ranelagh, como se tivessem enlouquecido, e ia-mos
provavelmente despedaçar-nos, o meu pobre Edouard e eu, contra a primeira árvore da estrada ou contra o primeiro marco da aldeia, quando um árabe, um negro, um núbio, um preto, enfim, ao serviço do conde, e a um sinal deste, segundo creio, deteve a galopada dos cavalos, com risco de ele próprio ser despedaçado, e foi realmente um milagre que o não tenha sido. Então o conde ocorreu e levou-nos para  sua casa, a Edouard e a mim, e trouxe o meu filho à vida.  Regressei a casa na sua própria carruagem: a da minha amiga lhe será  devolvida amanhã. Encontrará os seus cavalos muito enfraquecidos depois deste acidente. Estão como que
embotados. Diria-se que não podem perdoar a si mesmos terem-se deixado dominar por um homem. O conde encarregou-se de lhe dizer que dois dias de repouso na cavalariça e cevada como única alimentação os voltarão a pôr em estado tão fogoso, o que quer dizer tão assustador, como ontem.
            Adeus! Não lhe agradeço o meu passeio, e quando reflito acho uma ingratidão guarda-lhe rancor por causa dos caprichos da sua parelha já que devo a um desses caprichos ter visto o conde de Monte-Cristo, e o ilustre estrangeiro parece-me, à parte os milhões de que dispõe, um problema tão curioso e interessante que espero estudá-lo a todo o custo, nem que tenha de recomeçar um passeio ao Bosque com os cavalos da
minha amiga.
            Edouard suportou o acidente com uma coragem miraculosa. Desmaiou, mas antes disso não soltou um grito, nem verteu unta lágrima depois. Diria-me mais uma vez que o meu amor maternal me cega; mas existe uma alma de ferro naquele pobre corpinho tão frágil e delicado.
            A nossa querida Valentine manda cumprimentos para a sua querida Eugênie. Eu beijo-a minha amiga de todo o coração.
            Heloise de Villefort.
            P.S. - Seja como for, arranje maneira de me encontrar com o conde de Monte-Cristo em sua casa. Quero absolutamente tornar a vê-lo. Além disso acabo de convencer a Sr. de Villefort a fazer-lhe uma visita. Espero sinceramente que de fato a faça.
           
            À noite, o acidente de Auteuil era o assunto de todas as conversas: Albert contava-o à mãe, Château-Renaud, no Jockey-Club, e Debray, na sala do ministro. O próprio Beauchamp teve a gentileza de dedicar ao conde, no seu jornal, uma notícia de vinte linhas, que colocou o nobre estrangeiro como um herói no conceito de todas as mulheres da aristocracia.
            Muitas pessoas foram deixar o seu cartão na casa da Sra de Villefort, a fim de terem o direito de renovar a visita oportunamente e de ouvir então da sua boca todos os pormenores da pitoresca aventura.
            Quanto ao Sr. de Villefort, como dissera Heloise, vestira uma casaca preta e calçara luvas brancas, a sua mais elegante libré, e metera-se na sua carruagem, que, na mesma noite, parara à porta do nº  30 da casa dos Campos Elísios.



Capítulo XLVIII

Ideologia


            Se o conde de Monte-Cristo vivesse há mais tempo na sociedade parisiense apreciaria em todo o seu valor a visita do Sr. de Villefort.
            Bem visto na corte, quer o monarca reinante fosse do ramo mais velho, quer do ramo mais novo e o ministro que governasse fosse doutrinário, liberal ou conservador; reputado hábil por todos, como se reputam geralmente hábeis as pessoas que nunca experimentaram desastres políticos; odiado por muitos, mas calorosamente protegido por alguns, sem no entanto ser estimado por ninguém, o Sr. de Villefort ocupava uma das mais altas posições na magistratura e mantinha-se nessas alturas como um Harlay ou como um Molé. A sua sala, renovada por uma mulher nova e por uma filha do seu primeiro casamento que contava apenas dezoito anos de idade, nem por isso era menos uma dessas salas severas de Paris onde se praticava o culto das tradições e a religião da etiqueta. A polidez fria, a fidelidade absoluta aos princípios governamentais, um desprezo profundo pelas teorias e pelos teóricos e uma grande aversão aos ideólogos,
tais eram os elementos da vida íntima e pública exibidos pelo Sr. de Villefort.
            O Sr. de Villefort não era apenas um magistrado, era quase um diplomata. As suas relações com a antiga corte, da qual falava sempre com dignidade e deferência, impunham-no ao respeito da nova, e sabia tantas coisas que não só o tratavam sempre com deferência como ainda o consultavam algumas vezes. Talvez as coisas não se passassem assim se pudessem desembaraçar-se do Sr. de Villefort; mas ele residia, como os antigos senhores feudais rebeldes ao seu suserano, numa fortaleza inexpugnável. Essa fortaleza era o seu cargo de procurador régio, do qual explorava maravilhosamente todas as vantagens e que só deixaria para se fazer eleger deputado e substituir assim a neutralidade pela oposição.
            Em geral, o Sr. de Villefort fazia poucas visitas. A mulher visitava por ele. Era hábito aceite na sociedade, onde o levavam à conta das graves e numerosas ocupações de magistrado, embora na realidade não passasse de um cálculo orgulhoso, de uma quinta-essência aristocrática, da aplicação, enfim, deste axioma: “Finge que te estimas e te estimarão”, axioma muitíssimo mais útil na nossa sociedade do que o dos
Gregos: “Conhece-te a ti mesmo”, substituído nos nossos dias pela arte menos difícil e mais vantajosa de conhecer os outros.
            Para os seus amigos, o Sr. de Villefort era um protetor poderoso; para os seus inimigos, era um adversário oculto, mas encarniçado; para os indiferentes, era a estátua da Lei feita homem: trato altivo, fisionomia impassível, olhar ausente e inexpressivo ou insolentemente penetrante e perscrutador, tal era o homem a quem quatro revoluções habilmente sobrepostas umas sobre as outras tinham primeiro construído e depois cimentado o pedestal.
            O Sr. de Villefort possuía fama de ser o homem menos curioso e vulgar de França. Dava um baile todos os anos onde só aparecia um quarto de hora, isto é, quarenta e cinco minutos menos do que o rei nos seus. Nunca ninguém o via nem nos teatros, nem nos concertos, nem em qualquer lugar público. às vezes, mas raramente, jogava uma partida de whist, mas tinha-se o cuidado de escolher jogadores dignos dele: algum embaixador, algum, arcebispo, algum príncipe, algum presidente ou, por último, alguma duquesa idosa.
            Eis como era o homem cuja carruagem acabava de parar diante da porta de Monte-Cristo.
            O criado de quarto anunciou o Sr. de Villefort no momento em que o conde, inclinado sobre uma grande mesa, seguia num mapa um itinerário de Sampetersburgo à China.
            O procurador régio entrou com o mesmo andar grave e compassado com que entrava no tribunal. Era bem o mesmo homem, ou antes, a continuação do mesmo homem que conhecemos outrora como substituto em Marselha. A natureza, consequente com os seus princípios, nada alterara quanto a ele o curso que devia
seguir. De delgado, tornara-se magro, de pálido, tornara-se macilento; os seus olhos encovados quase desapareciam agora nas órbitas, e as suas lunetas de aros de ouro pareciam fazer parte do rosto, de tal modo se confundiam com as cavidades oculares. Excetuando a gravata branca, o resto do seu traje era perfeitamente preto, cor fúnebre apenas quebrada pela estreita fita vermelha que lhe passava imperceptível pela botoeira e parecia um traço de sangue feito a pincel.
            Por mais senhor de si que fosse Monte-Cristo, não deixou de examinar com visível curiosidade, ao retribuir-lhe o cumprimento, o magistrado, que, desconfiado por hábito e pouco crédulo, sobretudo quanto aos prodígios sociais, estava mais disposto a ver no nobre estrangeiro - era assim que chamavam a Monte-Cristo - um cavalheiro de indústria que viera explorar um novo terreno ou um malfeitor fugido do desterro do que um príncipe da Santaás‚ ou um sultão das Mil e Uma Noites.
            - Senhor - disse Villefort, no tom estridente adotado pelos magistrados nos seus períodos oratórios e de que não podem ou não querem desfazer-se no diálogo –, senhor, o assinalado serviço que ontem prestou à minha mulher e ao meu filho impõe-me o dever de lhe agradecer. Venho portanto cumprir esse dever e exprimir-lhe todo o meu reconhecimento.
            E ao pronunciar estas palavras, o olhar severo do magistrado nada perdera da sua arrogância habitual. As palavras que acabava de proferir articulara-as com a sua voz de procurador régio, com a mesma rigidez de pescoço e de ombros que, repetimos, levava os seus aduladores a dizer que ele era a estátua viva da Lei.
            - Senhor - replicou por seu turno o conde com uma frieza glacial –, sinto-me muito feliz por ter podido conservar um filho à sua mãe, pois diz-se que o sentimento da maternidade é o mais santo de todos, e a ventura que experimento dispensava-o, senhor, de cumprir um dever que me honra, sem dúvida, porque sei que o Sr. de Villefort não prodigaliza o favor que me faz, mas que, por mais precioso que seja, não vale no entanto para mim a minha satisfação íntima.
            Villefort, surpreendido por esta tirada que não esperava, estremeceu como um soldado que sente debaixo da armadura que o cobre o golpe que lhe vibram, e uma franzidela desdenhosa de lábios indicou que desde o início não tinha o conde de Monte-Cristo na conta de um gentil-homem muito bem-educado.
            Em seguida olhou à sua volta para ligar a qualquer coisa o diálogo caído e que ao cair parecia ter-se quebrado. Viu o mapa que Monte-Cristo consultava quando ele entrara e perguntou:
            - Ocupa-se de geografia, senhor? É um rico estudo, sobretudo para o senhor, que, ao que me afirmam, tem visitado tantos países quantos se encontram Impressos nesse atlas.
            - É verdade, senhor - respondeu o conde. - Pretendo fazer acerca do gênero humano, tomado em conjunto, o que o senhor pratica todos os dias a partir de excepções, isto é, um estudo fisiológico. Pensei que me seria mais fácil descer em seguida do todo para a parte do que da parte para o todo. Existe um axioma algébrico que aconselha a proceder do conhecido para o desconhecido e não do desconhecido para o conhecido... Mas sente-se, senhor, peço-lhe.
            E Monte-Cristo indicou com a mão ao procurador régio uma cadeira, que este foi obrigado a dar-se ao incômodo de puxar pessoalmente para diante, enquanto o conde teve apenas de se sentar naquela em que estava ajoelhado quando o procurador régio entrara. Assim, o conde ficou semivoltado para o visitante, de costas para a janela e com o cotovelo apoiado na carta geográfica que era alvo, naquele momento, do diálogo, o qual tomava, como acontecera em casa de Morcerf e de Danglars, feição absolutamente análoga, senão quanto à situação, pelo menos quanto às personagens.
            - Ah, gosta de filosofar! - exclamou Villefort, após um instante de silêncio, durante o qual, como um atleta que encontra um forte adversário, fizera provisão de forças. - Palavra de honra, senhor, se, como no seu caso, não tivesse nada que fazer, procuraria ocupação menos aborrecida!
            - Sim, é verdade, senhor, gosto de filosofar - admitiu Monte-Cristo. - Talvez porque o homem não passa de um verme horrível para quem o estuda ao microscópio solar. Mas acaba de dizer, creio, que não tenho nada que fazer. Vejamos, acaso o senhor julga ter alguma coisa que fazer? Ou, para falar mais claramente, acha que aquilo, que faz merece que se lhe chame alguma coisa?
            O espanto de Villefort redobrou depois deste segundo golpe tão rudemente desferido por aquele estranho adversário. Havia muito tempo que o magistrado não ouvia dizer um paradoxo daquele gênero, ou antes, para falar mais exatamente, era a primeira vez que o ouvia.
            O procurador régio apressou-se a responder:
            - O senhor é estrangeiro e, como é o primeiro a dizer, creio, passou parte da sua vida nos países orientais. Ignora portanto até que ponto a justiça humana, expedita nesses países bárbaros, tem entre nós aspectos prudentes e rigorosos.
            - Certamente, senhor, certamente; é o pede claudo antigo. Sei tudo isso porque me tenho ocupado sobretudo da justiça de todos os países e comparei o processo criminal de todas as nações com a justiça natural. E devo dizer-lhe,  senhor, que foi ainda a lei dos povos primitivos, isto é, a lei de talião, aquela que encontrei mais conforme com a lei de Deus.
            - Se essa lei fosse adotada, senhor - perguntou o procurador régio –, simplificaria muito os nossos códigos e portanto os nossos magistrados não teriam, como o senhor dizia há pouco, grande coisa que fazer.
            - Talvez isso venha a acontecer - disse Monte-Cristo. - Como sabe, as invenções humanas caminham do composto para o simples, e o simples é sempre a perfeição.
            - Entretanto - declarou o magistrado –, os nossos códigos existem, com os seus artigos contraditórios, extraídos dos costumes gauleses, das leis romanas e dos usos francos. Ora, o conhecimento de todas essas leis, como decerto admitirá, não se adquire sem demorado trabalho e é necessário um longo estudo para obter esse conhecimento e uma grande capacidade intelectual, uma vez adquirido esse conhecimento, para não o esquecer.
            - Sou da mesma opnião, senhor, mas tudo o que sabe acerca do código francês sei eu, não só a respeito desse código, mas também acerca dos códigos de todas as nações. As leis inglesas, turcas, japonesas e hindus me são tão familiares como as leis francesas. Tenho portanto motivo para dizer que
relativamente (como sabe, tudo é relativo), que relativamente a tudo que aprendi, o senhor tem ainda muito que aprender.
            - Mas com que fim aprendeu tudo isso? - perguntou Villefort, atônito.
            Monte-Cristo sorriu.
            - Vejo, senhor - respondeu –, que, a despeito da sua reputação de homem superior, encara todas as coisas do ponto de vista material e vulgar da sociedade, começando no homem e acabando no homem, isto é, do ponto de vista mais restrito e mesquinho que é permitido à inteligência humana abarcar.
            - Explique-se, senhor - pediu Villefort, cada vez mais atônito pois não o compreendo... muito bem.
            - Digo, senhor, que com os olhos postos na organização social das nações só se vê as engrenagens da máquina e não o operário sublime que a faz andar; digo que só reconhece na sua frente e à sua volta os titulares dos cargos cujas nomeações foram assinadas por ministros ou por um rei, e que os homens, que
Deus colocou acima dos titulares, dos ministros e dos reis, dando-lhes uma missão para continuar em vez de um cargo para preencher, digo que esses escapam à sua curta vista. Aliás, isso é próprio da natureza humana, cujos orgãos são fracos e imperfeitos. Tobias tomava o anjo que vinha restituir-lhe a vista por um jovem vulgar. As nações tomavam Átila, que as devia aniquilar, por um conquistador como todos os
conquistadores, e foi necessário que ambos revelassem as suas missões celestes para que os reconhecessem; foi necessário que um dissesse: “Eu sou o anjo do Senhor”; e o outro: “Eu sou o flagelo de Deus”, para que a essência divina de ambos se revelasse.
            - Então, o senhor considera-se um desses seres extraordinários que acaba de citar? - perguntou Villefort, cada vez mais espantado e julgando falar com um iluminado ou um louco.
            - Por que não? - perguntou friamente Monte-Cristo.
            - Perdão, senhor - prosseguiu Villefort, atordoado - mas espero que me desculpe o fato de, ao apresentar-me em sua casa, ignorar que entrava em casa de um homem cujos conhecimentos e cuja inteligência excedem de longe os conhecimentos vulgares e a inteligência habitual dos homens. Entre nós não é costume, talvez por sermos uns infelizes corrompidos pela civilização, que os fidalgos possuidores, como o senhor, de uma fortuna imensa, pelo menos ao que se afirma (note que não pergunto, apenas repito), não é costume, dizia, que esses privilegiados da riqueza percam o seu tempo em especulações sociais, em devaneios filosóficos, próprios, quando muito, para consolar aqueles a quem o destino deserdou de bens terrenos
            - Então, senhor, terá porventura chegado à situação eminente que ocupa sem ter admitido, e mesmo sem ter encontrado, exceções, nem nunca exercitou o seu olhar, que no entanto bem necessitaria de sagacidade e segurança, a adivinhar num relance que homem tem diante de si? - perguntou o conde. - Um
magistrado não deverá ser, não o melhor aplicador da lei, não o mais astuto intérprete das nebulosidades da chicana, mas sim uma sonda de aço para experimentar os corações ou uma pedra-de-toque para ensaiar o ouro de que cada alma é sempre feita, com mais ou menos mistura?
            - Confunde-me, senhor - declarou Villefort. - Palavra de honra que nunca ouvi ninguém falar como o senhor.
            - Porque tem permanecido constantemente encerrado no círculo das condições gerais e nunca se atreveu a subir, num batimento de asa, às esferas superiores que Deus povoou de seres invisíveis ou excepcionais.
            - E o senhor admite que essas esferas existem e que os seres excepcionais e invisíveis se juntam a nós?
            - Porque não? O senhor vê o ar que respira e sem o qual não poderia viver?
            - Então, não vemos esses seres a que se refere?
            - Claro que os vemos quando Deus permite que se materializem; tocamos-lhes, acotovelamo-los, falamos-lhes e eles nos respondem.
            - Ah! - exclamou Villefort, sorrindo. - Confesso que gostaria muito de ser prevenido quando um desses seres se encontrasse em contato comigo.
            - O seu desejo já foi satisfeito, senhor. Foi prevenido há pouco, e mais uma vez agora o previno.
            - Assim. O senhor mesmo?...
            - Sou um desses seres excepcionais, sim, senhor, e creio que até hoje nenhum homem se encontrou numa posição semelhante à minha. Os reinos dos reis são limitados, quer por montanhas, quer por rios, quer por uma mudança de costumes, quer por uma mutação de linguagem. Mas o meu reino é do tamanho do mundo, pois não sou nem italiano, nem francês, nem hindu, nem americano, nem espanhol; sou cosmopolita. Nenhum país pode dizer que me viu nascer. Só Deus sabe que terra me verá morrer. Adoto todos os usos, falo todas as línguas. Julga-me francês, não é verdade, porque falo o francês com a mesma facilidade e a mesma pureza que o senhor? Pois bem, Ali o meu núbio, julga-me árabe; Bertuccio, o meu intendente, julga-me romano, e Haydée, a minha escrava, Julga-me grego. Portanto, como decerto compreende, não pertencendo a nenhum país, não pedindo proteção a nenhum governo e não reconhecendo nenhum homem como meu irmão, nem um só dos escrúpulos que detêm os poderosos ou dos obstáculos que paralisam os fracos me paralisa ou detém. Só tenho dois adversários; não direi dois vencedores, porque com persistência submeto-os: são a distância e o tempo. O terceiro, e o mais terrível, é a minha condição de homem mortal. É a única coisa que me pode deter no caminho que sigo e antes de atingir o alvo que busco; tudo o mais está previsto. Aquilo a que os homens chamam os caprichos do destino, isto é, a ruína, a mudança, as  eventualidades, tenho-os todos previstos, e se alguns podem me atingir, nenhum pode me derrubar. A não ser
que morra, serei sempre o que sou. Aqui tem porque lhe digo coisas que nunca ouviu, mesmo da boca dos reis, porque os reis necessitam de si e os outros homens temem-no. Quem é que não diz para consigo, numa sociedade tão ridiculamente organizada como a nossa: “Talvez um dia tenha qualquer problema com o
procurador régio...”
            - Mas o senhor mesmo pode dizer isso a si próprio, porque desde o momento em que reside na França está naturalmente submetido às leis francesas.
            - Bem sei, senhor - respondeu Monte-Cristo. - Mas quando tenho de ir a um país, começo por estudar, por meios que me são próprios, todos os homens de quem posso ter alguma coisa a esperar ou a temer, e acabo por os conhecer tão bem e até  talvez melhor do que eles se conhecem a si próprios. Daí que o
procurador régio, fosse quem fosse, com quem tivesse problemas ficasse certamente mais embaraçado do que eu.
            - O que significa - prosseguiu Villefort, com hesitação que, dada a fraqueza da natureza humana, todo o homem, na sua opinião, cometeu... faltas?
            - Faltas... ou crimes - respondeu negligentemente Monte-Cristo.
            - E que só o senhor, entre os homens que não reconhece como seus irmãos, conforme disse - prosseguiu Villefort, com a voz ligeiramente alterada –, e que só o senhor é perfeito?
            - Não, perfeito, não - respondeu o conde. - Apenas impenetrável. Mas mudemos de assunto, senhor, se esta conversa lhe desagrada. Não estou mais ameaçado pela sua justiça do que o senhor o está pela minha vista dupla.
            - Não, não, senhor! - disse vivamente Villefort, que sem dúvida temia parecer abandonar o terreno. - Não! Graças à sua brilhante e quase sublime conversação, o senhor elevou-me acima dos níveis correntes; já não conversamos, dissertamos. Ora, deve saber como os catedráticos de Teologia da Sorbone, ou os filósofos nas suas disputas, dizem por vezes uns aos outros cruéis verdades. Supondo que discutimos teologia social e filosofia teológica, lhe direi isto, por mais rude que seja: meu irmão, sacrifica ao orgulho; está acima dos outros, mas acima de si há Deus.
            - Acima de todos, senhor! - respondeu Monte-Cristo em tom tão profundo que Villefort estremeceu involuntariamente. - Tenho o meu orgulho em relação aos homens, serpentes sempre prontas a erguer-se contra aquele que passa por elas sem as esmagar com o pé. Mas deponho este orgulho diante de Deus, que me tirou do nada para fazer de mim o que sou.
            - Então, Sr. Conde, admiro-o - declarou Villefort, que pela primeira vez neste estranho diálogo empregava esta fórmula aristocrática para com o estrangeiro que até ali só tratara por senhor. - Sim, digo-lhe que se é realmente forte, realmente superior, realmente santo ou impenetrável, o que, tem razão significa pouco mais ou menos o mesmo, seja sublime, senhor. E a lei das dominações. Mas tem com certeza uma
ambição qualquer?
            - Tenho uma, senhor.
            - Qual? 
            - Também eu, como acontece a qualquer homem uma vez na vida, fui levado por Satanás para a mais alta montanha da Terra. Chegado lá, ele mostrou-me o mundo inteiro e, como dissera uma vez a Cristo, disse-me a mim “Vejamos, filho dos homens, que queres para me adorar?” Refleti longamente, porque havia muito tempo uma terrível ambição me devorava efetivamente o coração. Depois respondi - “Escuta, sempre ouvi falar da Providência, e no entanto nunca a vi, nem nada que se lhe parecesse, o que me leva a crer que não existe. Quero ser a Providência, porque o que conheço de mais belo, de maior e de mais sublime no mundo é recompensar e punir.” Mas Satanás baixou a cabeça e suspirou: “Enganas-se”, disse, “a Providência existe. Somente não a vê porque, filha de Deus, é invisível como o seu pai. Nunca viu nada que se lhe assemelhasse, porque ela utiliza meios ocultos e caminha por vias indefinidas. Tudo o que posso fazer por ti é tornar-te um
dos agentes dessa Providência.” Fechou-se o negócio. Talvez perca nele a minha alma, mas não importa - declarou Monte-Cristo. - E se tivesse de fazer novamente o negócio, o faria.
            Villefort olhava Monte-Cristo com sublime espanto.
            - o Sr. Conde tem família? - perguntou.
            - Não, senhor, estou só no mundo.
            - É pena!
            - Porquê? - perguntou Monte-Cristo.
            - Porque poderia ver um espetáculo capaz de quebrar o seu orgulho. Só teme a morte, diz o senhor?
            - Não digo que a temo, digo que só ela me pode deter.
            - E a velhice?
            - A minha missão será  cumprida antes de chegar a velhice.
            - E a loucura?
            - Estive quase a enlouquecer, e o senhor conhece o axioma: non bis in idem. É um axioma criminal e portanto da sua especialidade.
            - Senhor - prosseguiu Villefort –, há ainda outra coisa a temer, além da morte, da velhice ou da loucura; há, por exemplo, a apoplexia, esse raio que nos fere sem nos destruir, e depois do qual, no entanto, tudo acaba. Continuamos a ser nós e todavia já não somos nós. Como Ariel, éramos quase um anjo; de um momento para o outro passamos a ser uma massa inerte que, como Calibão, muito se assemelha ao animal. A isto chama-se muito simplesmente na língua humana, como lhe dizia, uma apoplexia. V , se lhe agradar, continuar esta conversa em minha casa, Sr. Conde, num dia em que lhe apeteça defrontar um adversário capaz de o compreender e ansioso por o refutar, e lhe mostrarei meu pai, o Sr. Noirtier de Villefort, um dos
mais ardentes jacobinos da Revolução Francesa, isto é, a mais brilhante audácia posta ao serviço da mais poderosa organização; um homem que, como o senhor, talvez não tivesse visto todos os reinos da Terra, mas ajudou a destruir um dos mais poderosos; um homem que, como o senhor, se pretendia um dos enviados, não de Deus, mas sim do Ser Supremo, não da Providência, mas sim da Fatalidade. Pois bem, senhor, a ruptura de um vaso sanguíneo num lobo do cérebro destruiu tudo isso, não num dia, não numa hora, mas sim num segundo. Na véspera, o Sr. Noirtier, antigo jacobino, antigo senador, antigo carbonário, ria da guilhotina, ria do canhão, ria do punhal; pois o mesmo Sr. Noirtier que brincara às revoluções, o Sr. Noirtier para quem a França não passava de um vasto tabuleiro de xadrez do qual peões, torres, cavalos e rainha  deviam desaparecer para que o rei levasse mate; o  Sr. Noirtier, tão temível, era no dia seguinte o pobre Sr. Noirtier, um velho imóvel, à mercê dos caprichos da pessoa mais fraca da casa, ou seja, da sua netinha Valentine; um
cadaver mudo e gelado, enfim, que vive sem sofrimento, apenas para dar tempo à matéria de chegar sem sobressaltos à sua inteira decomposição.
            - Infelizmente, senhor - perguntou Monte-Cristo - esse espetáculo não é estranho nem aos meus olhos nem ao meu pensamento. Sou um nadinha médico e tenho, como os meus colegas, procurado mais de uma vez a alma na matéria viva ou na matéria morta; e, como a Providência, ela permaneceu invisível a meus olhos, embora presente no meu coração. Cem autores, desde Sócrates, desde Sêneca, desde Santo Agostinho, desde Gall, fizeram em prosa ou em verso a comparação que o senhor acaba de fazer; mas apesar disso compreendo que sofrimentos de um pai possam operar grandes transformações no espírito do filho. Irei, senhor, uma vez que se digna convidar-me, contemplar, em beneficio da minha humildade, esse
terrível espetáculo que muito deve entristecer a sua casa.
            - Assim seria, sem dúvida, se Deus me não tivesse amplamente recompensado. Diante do velho que desce, arrastando-se para a sepultura, perfilam-se duas crianças, que entram na vida: Valentine, filha do meu primeiro casamento com Mademoiselle de Saint-Méran, e Edouard, o filho a quem o senhor salvou a vida.
            - E que conclui dessa compensação, senhor? - perguntou Monte-Cristo.
            - Concluo, senhor - respondeu Villefort –, que o meu pai, desorientado pelas paixões, cometeu algumas dessas faltas que escapam à justiça humana, mas que caem sob a alçada da justiça de Deus, e que Deus, querendo punir apenas uma pessoa, só o feriu a ele.
            Com o sorriso nos lábios, Monte-Cristo soltou no fundo do coração um rugido, que faria fugir Villefort, se Villefort o pudesse ouvir.
            - Adeus, senhor - despediu-se o magistrado, que havia algum tempo se levantara e falava de pé. - Deixo-o, levando de si uma recordação de estima, que espero lhe possa ser agrável quando me conhecer melhor, pois não sou um homem vulgar, muito pelo contrário. Além disso, conquistou na Sra de Villefort
uma amiga eterna.
            O conde inclinou-se e limitou-se a acompanhar Villefort até  à porta do gabinete. O magistrado alcançou a sua carruagem precedido de dois lacaios, que, a um sinal do amo, se apressaram a abrir-la.
            Depois, quando o procurador régio desapareceu:
            - Vamos - disse Monte-Cristo, arrancando com esforço um sorriso do peito opresso. - Vamos, basta de veneno, e agora que o meu coração está cheio dele, vamos procurar o antídoto.
            E tocando uma vez a campainha, disse a Ali, quando este acorreu:
            - Subo aos aposentos da senhora. A carruagem que esteja pronta dentro de meia hora!


Capítulo XLIX

Haydée


            O leitor ainda se recorda, decerto, quem eram os novos, ou antes, os antigos conhecidos do conde de Monte-Cristo que moravam na Rua Meslay: eram Maximilien, Julie e Emmanuel.
            A esperança da agrável visita que ia fazer, dos curtos momentos felizes que ia passar, daquela luz do paraíso que ia penetrar no inferno onde voluntariamente se encerrara, espalhara, a partir do momento em que perdera de vista Villefort, a mais singular serenidade pelo rosto do conde, e Ali, que acorrera ao toque da campainha, ao ver aquele rosto irradiar uma alegria tão rara, retirara-se na ponta dos pés e contendo a respiração, como se não quisesse afugentar os bons pensamentos que julgava ver adejar à volta do amo.
Era meio-dia. O conde reservara uma hora para subir aos aposentos de Haydée. E diria-se que a alegria não podia reentrar de súbito naquela alma durante tanto tempo amargurada e que este necessitava de se preparar para as emoções ternas, como as outras almas necessitam de se preparar para as emoções
violentas.
            A jovem grega ocupava, como já dissemos, aposentos inteiramente separados dos aposentos do conde e todos eles mobilados em estilo oriental, isto é, com o chão coberto de espessos tapetes turcos, tecidos de brocado caindo ao longo das paredes e em cada divisão um amplo divã disposto a toda a volta, com montes de almofadas, que se colocavam à vontade daqueles que as usavam.
            Haydée tinha três criadas francesas e uma grega. As três criadas francesas mantinham-se na primeira sala, prontas a acorrer ao toque de uma campainha de ouro e a obedecer às ordens da escrava romaica, a qual sabia suficientemente francês para transmitir os desejos da ama às suas três camaristas, às quais Monte-Cristo recomendara que tivessem com Haydée as deferências que se têm com uma rainha.
            A jovem encontrava-se na sala mais recolhida dos seus aposentos, isto é, numa espécie de boudoir redondo, iluminado apenas por cima, e no qual a luz só penetrava através de vidros cor-de-rosa. Estava deitada no chão, em almofadas de cetim azul lavrado a prata, semi-inclinada para trás sobre o divã e com o braço direito suavemente torneado a emoldurar-lhe a cabeça, enquanto com o esquerdo segurava nos lábios o tubo de coral em que encaixava o tubo flexível de um narguilé, que só deixava chegar-lhe à boca o fumo perfumado pela  água de benjoim, através da qual a sua suave respiração o obrigava a passar.
            A sua atitude, naturalíssima numa mulher do Oriente, seria numa francesa de uma garridice talvez um pouco afetada.
            Quanto à sua indumentária, era a das mulheres do Epiro, ou seja, calça tufada de cetim branco adornada de flores cor-de-rosa, que deixava a descoberto dois pés de criança, que se diriam de mármore de Paros se não se tivessem visto brincar com duas sandaliazinhas de ponta recurvada, bordadas a ouro e pérolas; túnica de compridas riscas azuis e brancas e amplas mangas fendidas para os braços, com botoeiras de prata e botões de pérolas, e finalmente uma espécie de corpete que deixava, devido ao seu corte em forma de coração, ver o pescoço e  toda a parte de cima do peito e que se abotoava por baixo do seio com três botões de diamantes. Quanto à parte de baixo do corpete e à parte de cima das calças, desapareciam sob uma dessas faixas de cores vivas e longas franjas sedosas, que são a ambição das nossas elegantes parisienses.
            Cobria-lhe a cabeça um barretinho dourado bordado a pérolas, inclinado para um lado, e por baixo do barrete, do lado para onde estava inclinado, via-se uma linda rosa natural, cor de púrpura, que se destacava no meio do cabelo, tão preto que parecia azulado.
            Quanto à beleza do seu rosto, era a beleza grega em toda a perfeição do seu tipo, com os seus grandes olhos pretos aveludados, o seu nariz direito, os seus lábios de coral e os seus dentes de pérolas.
            Finalmente, sobre aquele conjunto encantador imperava a flor da juventude, com todo o seu brilho e todo o seu perfume; Haydée teria dezanove ou vinte anos.
            Monte-Cristo chamou a criada grega e mandou pedir a Haydée licença para entrar até  junto dela.
            Como única resposta, Haydée fez sinal à criada para levantar a tapeçaria que pendia diante da porta, cuja abertura quadrada emoldurou a jovem deitada como um quadro encantador, Monte-Cristo entrou.
            Haydée soergueu-se no cotovelo do braço com que segurava o narguilé e estendeu a mão ao conde, ao mesmo tempo que o acolhia com um sorriso.
            - Porque manda pedir licença para entrar nos meus aposentos? Não é o meu senhor, não sou a sua escrava? - perguntou na língua sonora das filhas de Esparta e Atenas. Monte-Cristo sorriu por seu turno.
            - Haydée, como sabe...
            - Porque não me trata por você como habitualmente? - interrompeu-o a jovem grega. - Cometi alguma falta? Nesse caso é preciso castigar-me, mas não deixar de me tratar por você.
            - Haydée - prosseguiu o conde –, você sabe que estamos na França, e por consequência você é livre.
            - Livre para fazer o quê? - perguntou a jovem.
            - Livre para me deixar.
            - Para te deixar?!... E porque eu te deixaria?
            - Sei lá. Vamos ver gente.
            - Não quero ver ninguém.
            - E se entre os belos rapazes que conhecer encontrar algum que te agrade, não serei injusto ao ponto...
            - Nunca vi homens mais belos do que você e nunca amei senão o meu pai e a você.
             - Pobre criança, porque quase só falou com o seu pai e comigo - disse Monte-Cristo.
            - E preciso porventura de falar com outros? O meu pai chamava-me sua alegria, você me chama de meu amor e ambos me chamam sua filha.
            - Lembras-se do seu pai, Haydée?
            A jovem sorriu.
            - Está aqui e aqui - respondeu, pondo a mão nos olhos e no coração.
            - E eu onde estou? - perguntou, sorrindo, Monte-Cristo.
            - Você está em todo o lado. 
            Monte-Cristo pegou na mão de Haydée para beijá-la; mas a ingênua criança retirou a mão e ofereceu-lhe a testa.
            - Agora, Haydée - disse-lhe ele –, sabe que é livre, que é dona e senhora de ti; pode conservar o seu traje ou deixá-lo, como te apetecer; ficará aqui quando quiser ficar e sairá quando quiseres sair; haverá   sempre uma carruagem atrelada para você. Ali e Myrto te acompanharão para todo o lado e estarão às tuas ordens. Apenas te peço uma coisa.
            - Diga.
            - Guarde o segredo do teu nascimento, não diga uma palavra acerca do teu passado, não pronuncie em nenhuma ocasião o nome do seu ilustre pai nem o da sua pobre mãe.
            - Já te disse, meu senhor, que não verei ninguém.
            - Escute, Haydée: talvez essa reclusão muito oriental seja impossível em Paris. Continue a aprender a vida dos nossos países do Norte, como fez em Roma, em Florença, em Milão e em Madrid. Isso lhe será sempre útil, quer continue a viver aqui, quer regresse ao Oriente.
            A jovem ergueu para o conde os seus grandes olhos úmidos e respondeu:
            - Ou regressemos ao Oriente, você quer dizer, não é verdade, meu senhor?
            - É, sim, minha filha - respondeu Monte-Cristo. - Bem sabe que nunca serei eu que te deixarei. Não é a árvore que deixa a flor é a flor que deixa a árvore.
            - Nunca te deixarei, senhor - disse Haydée –, porque estou certa de que não poderia.
            - Pobre criança! Dentro de dez anos serei velho e daqui a dez anos você ainda será nova.
            - O meu pai tinha uma comprida barba branca e isso não me impedia de amá-lo. O meu pai tinha sessenta anos e parecia-me mais belo do que todos os rapazes que via.
            - Anda, diga-me, acha que pode se habituar a viver aqui?
            - Eu o verei?
            - Todos os dias.
            - Nesse caso, para que me pergunta, senhor?
            - Receio que se aborreça.
            - Não, meu senhor, porque de manhã pensarei que virá e à noite me lembrarei de que veio. Aliás, quando estou sozinha tenho belas recordações: revejo quadros imensos, grandes horizontes com o Pindo e o Olimpo por fundo. Além disso, trago no coração três sentimentos com os quais nunca ninguém se aborrece: tristeza, amor e reconhecimento.
            - Você é uma digna filha do Epiro, Haydée. Graciosa e poética, bem se vê que descende da família de deusas que nasceu na tua terra. Fica pois tranquila, minha filha: arranjarei maneira da sua juventude não se perder, porque se me quer como teu pai, eu te amo como minha filha.
            - Engana-se, meu senhor. Não amava o meu pai como o amo; o meu amor por você é outro amor. O meu pai morreu e eu não morri, ao passo que se você morresse, eu morreria.
            O conde estendeu a mão à jovem com um sorriso de profunda ternura; ela beijou-a como de costume.
            E assim preparado para o encontro que ia ter com Morrel e a sua família, o conde saiu murmurando estes versos de Pindaro: “A juventude é uma flor de que  amor é o fruto... Feliz o vindimador que o colhe depois de o ter visto amadurecer lentamente.”
            Conforme as suas ordens, a carruagem estava pronta. Meteu-se nela e, como de costume, o veículo partiu a galope.


Capítulo L

A família Morrel


            O conde chegou em poucos minutos à Rua Meslay, nº  7. A casa era branca, alegre, e precedida de um pátio, no qual em dois pequenos canteiros se viam flores bastante bonitas. No porteiro que lhe abriu a porta, o conde reconheceu o velho Coclés. Mas como este, como se recordam, só tinha um olho, e passados nove anos esse olho enfraquecera consideravelmente, Coclés não reconheceu o conde.
            Para se deterem diante da entrada, as carruagens tinham de dar uma volta, a fim de evitar um repuxozinho que brotava de um tanque de rocaille, magnificência que provocara muitas invejas no bairro e que era a causa de chamarem à casa a Pequena Versalhes. Desnecessário dizer que no tanque nadavam inúmeros peixes vermelhos e amarelos.
            A casa erguia-se por cima de um piso de cozinhas e adegas e tinha, além do térreo, dois andares amplos e águas-furtadas. Os jovens tinham-na comprado com as dependências, que consistiam num enorme atelier, dois pavilhões ao fundo do jardim e no próprio jardim Emmanuel vira imediatamente naquela disposição a possibilidade de fazer uma especulaçãozinha. Reservara para si a casa e metade do jardim e
traçara uma linha, isto é, erguera um muro entre ele e os ateliers, que alugara com os pavilhões e a porção de jardim respectiva. Encontrava-se assim alojado por uma importância bastante módica e tão isolado em sua casa como o mais exigente proprietário de um palácio do arrabalde Saint-Germain.
            A sala de jantar era de carvalho, a sala, de mogno e veludo azul, e o quarto de limoeiro e damasco verde. Havia ainda, um gabinete de trabalho para Emmanuel, que não trabalhava, e uma sala de música para Julie, que não tocava.
            Todo o segundo andar estava reservado a Maximilien. A sua disposição era igualzinha à do andar de baixo, apenas com uma diferença: a sala de jantar fora transformada em sala de bilhar, onde ele recebia os amigos. Vigiava pessoalmente o tratamento do seu cavalo e fumava um charuto à entrada do jardim quando a carruagem do conde parou à porta.
            Coclés abriu-a, como dissemos, e Baptistin saltou do seu lugar e perguntou se o Sr. e a Sra Herbault e o Sr. Maximilien Morrel. Estavam visíveis para o conde de Monte-Cristo.
            - Para o conde de Monte-Cristo! - exclamou Morrel, atirando o charuto fora e correndo ao encontro do visitante. - Claro que estamos visíveis para  ele! Oh, obrigado, mil vezes obrigado, Sr. Conde, por não ter esquecido a sua promessa!
            E o jovem oficial apertou tão cordialmente a mão do conde que este não teve dúvidas a respeito da franqueza da manifestação e viu bem que fora esperado com impaciência e era recebido com alvoroço.
            - Venha, venha - disse Maximilien. - Quero ser eu a apresentá-lo. Um homem como o senhor não deve ser anunciado por um criado. A minha irmã está no jardim cortando as rosas murchas e o meu cunhado lê os seus dois jornais, la Presse e les Débats, a seis passos dela, porque por toda a parte em que se vê a Sra Herbault basta olhar num raio de quatro metros para se descobrir o Sr. Emmanuel, e reciprocamente, como se diz na Escola Politécnica.
            O ruído dos passos fez levantar a cabeça a uma jovem de vinte a vinte e cinco anos, de roupão de seda, que limpava com especial cuidado uma roseira cor de avelã. A jovem era a nossa Julie, que se tornara, como lhe predissera o mandatário da Casa Thomson & French, a Sra Emmanuel Herbault. Soltou um grito ao ver o estranho. Maximilien desatou a rir.
            - Não se aflija, minha irmã - disse. - O Sr. Conde está em Paris apenas há dois ou três dias, mas já sabe o que é uma proprietária do Marais, e se não souber, você lhe ensinará.
            - Ah, senhor - desculpou-se Julie-, trazê-lo assim é uma traição do meu irmão, que não tem para com a sua pobre irmã a menor consideração!... Penelon!... Penelon!...
            Um velho que cavava um canteiro de roseiras-de-bengala espetou a enxada na terra e aproximou-se, de barrete na mão e dissimulando o melhor que podia um bocado de tabaco de mascar metido momentaneamente nas profundezas da boca. Algumas madeixas brancas prateavam-lhe a cabeleira ainda
espessa, enquanto o rosto bronzeado e o olhar maroto e vivo denunciava o velho marinheiro crestado pelo sol do equador e pelo sopro das tempestades.
            - Creio que me chamou, Mademoiselle Julie. Aqui estou.
            Penelon conservara o hábito de chamar à filha do patrão Mademoiselle Julie e nunca conseguira adquirir o de a tratar por Sra Herbault.
            - Penelon - disse Julie –, vá avisar o Sr. Emmanuel da agrável visita que acaba de chegar, enquanto o Sr. Maximilien, acompanha o senhor à sala.
            Depois, virando-se para Monte-Cristo:
            - Permite-me que desapareça por um minuto, não é verdade?
            E, sem esperar o assentimento do conde, correu para trás de um maciço e alcançou a casa por uma alameda lateral.
            - Lamento, meu caro Sr. Morrel - disse Monte-Cristo –, causar tamanha revolução na sua família.
            - Veja, veja! - exclamou Maximilien rindo. - Veja além o marido, que também vai trocar o casaco por uma sobrecasaca! Como vê, já o conhecem na Rua Meslay e pode considerar-se anunciado.
            - Parece-me que tem aqui, senhor, uma família feliz -  observou o conde, respondendo ao seu próprio pensamento.
            - É verdade, Sr. Conde. Que quer, não lhos falta nada para serem felizes: são novos, alegres, amam-se, e com as suas vinte e cinco mil libras de rendimento julgam-se (eles que, no entanto, já viram de perto tantas imensa fortunas), julgam-se possuidores da riqueza dos Rothschilds.
            - É pouco, mesmo assim, vinte e cinco mil libras de rendimento - disse Monte-Cristo com tanta suavidade que as suas palavras penetraram no coração de Maximilien como penetrariam as de um terno pai. - Mas não ficarão por aí, se tornarão por seu turno milionários... O seu cunhado é advogado... médico?
            - Era comerciante, Sr. Conde, e tomara a casa do meu pobre pai. O Sr. Morrel deixou ao morrer uma fortuna de quinhentos mil francos. Recebi metade e a minha irmã a outra metade, pois éramos apenas dois filhos O marido, que casara com ela sem ter outro patrimônio além da sua nobre probidade, da sua inteligência de primeira ordem e da sua reputação sem mácula, quis possuir tanto como a mulher e trabalhou até  juntar duzentos e cinquenta mil francos. Bastaram-lhe seis anos. Juro-lhe, Sr. Conde, que era um espectáculo comovente ver aquelas duas crianças tão laboriosas, tão unidas, destinadas pela sua capacidade à mais alta fortuna, mas que, não tendo querido modificar em nada os hábitos da casa paterna, levaram seis anos a conseguir o que os inovadores conseguiriam em dois ou três. Por isso em Marselha ainda hoje se ouvem os louvores que seria impossível recusar a tanta corajosa abnegação Por fim, um dia, Emmanuel foi ter com a mulher, que acabava de pagar a última conta.
            “- Julie - disse-lhe –, aqui está o último rolo de cem francos que acaba de me entregar Coclés e que completa os duzentos e cinquenta mil francos que fixamos como limite dos nossos ganhos. Se contentará com este pouco com que teremos de viver daqui em diante? Escuta, a casa movimenta um milhão por ano e pode proporcionar quarenta mil francos de lucro. Se quisermos, venderemos numa hora a clientela por trezentos mil
francos, que é quanto nos oferece o Sr. Delauny nesta carta pelo negócio, que quer juntar ao dele. Que te parece que devemos fazer?
            “- Meu amigo - respondeu a minha irmã –, a Casa Morrel só pode ser gerida por um Morrel. Pôr para sempre a coberto dos maus transes da fortuna o nome de nosso pai não valerá bem trezentos mil francos?
            “- Penso que sim - respondeu Emmanuel. - No entanto, queria saber a sua opnião.
            “- Pois aqui a tem, meu amigo! Todas as nossas cobranças estão feitas e todas as nossas letras estão pagas. Podemos encerrar as contas no fim desta quinzena e fechar a casa.
            “Foi o que fizeram imediatamente. Eram três horas; às três e um quarto apareceu, um cliente para segurar a viagem de dois navios. Era um lucro líquido de quinze mil francos.
            “- Senhor - disse Emmanuel –, queira dirigir-se para fazer esse seguro ao nosso colega Sr. Delaunay. Nós deixamos os negócios.
            “- Desde quando? - perguntou o cliente, atônito.
            “- Há um quarto de hora.
            “E aqui tem, senhor - continuou, sorrindo, Maximilien –, por que motivo a minha irmã e o meu cunhado só têm vinte e cinco mil libras de rendimento.
            Mal Maximilien acabara de falar - e durante a sua narrativa o coração do conde dilatara-se cada vez mais -, Emmanuel reapareceu, agora de chapéu e sobrecasaca, e cumprimentou o conde como homem que conhece a categoria do visitante. Em seguida, depois de mostrar a Monte-Cristo o jardinzinho florido, levou-o para casa.
            A sala estava já perfumada por flores contidas a grande custo num enorme vaso do Japão, de asas naturais, e Julie, convenientemente vestida e elegantemente penteada (conseguira fazer tudo aquilo em dez minutos), apresentou-se para receber o conde à entrada.
            Ouvia-se chilrear os pássaros de um viveiro próximo; os ramos dos faisos-ébanos e das acácias-rosas vinham tocar com os seus cachos os cortinados de veludo azul; tudo naquele encantador retirozinho respirava calma, desde o canto dos pássaros até  ao sorriso dos donos da casa.
            Desde que ali entrara, o conde também já se impregnara daquela felicidade. Por isso se conservava calado, pensativo, esquecido de que o esperavam para retomar a conversação interrompida depois dos primeiros cumprimentos.
            Notou o silêncio que se estabelecera, tornado quase inconveniente, e arrancou-se com esforço ao seu devaneio.
            - Minha senhora - disse por fim -, perdoe-me uma emoção que a deve surpreender, habituada como está a esta paz e a esta felicidade que descubro aqui. Para mim é coisa tão nova como a satisfação num rosto humano, e da que me não canse de os olhar, a si e ao seu marido.
            - Somos de fato muito felizes, senhor - respondeu Julie. - Mas sofremos durante muito tempo e poucas pessoas compraram a felicidade tão cara como nós.
            A curiosidade transpareceu no rosto do conde.
            - Oh, trata-se de uma longa história de família, como lhe dizia no outro dia Château-Renaud! - interveio Maximilien. - Para si, Sr. Conde, habituado a ver ilustres desgraças e felicidades esplêndidas, este quadro íntimo teria pouco interesse. No entanto, como acaba de lhe dizer Julie, passamos por bem maus bocados, apesar de contidos neste pequeno âmbito...
            - E Deus derramou-lhes, como faz com todos, a consolação sobre o sofrimento? - perguntou Monte-Cristo.
            - Sim, Sr. Conde - respondeu Julie. - Podemos dizê-lo porque fez por nós o que só faz pelos seus eleitos: mandou-nos um dos seus anjos.
            O vermelho subiu às faces do conde, que tossiu, para ter um meio de dissimular a emoção, e levou o lenço à boca.
            - Aqueles que nasceram num berço de ouro e que nunca sentiram a falta de nada - disse Emmanuel - não sabem o que é a alegria de viver. De igual modo não conhecem o valor de um céu puro aqueles que nunca tiveram a vida à mercê de quatro tábuas lançadas num mar enfurecido.
            Monte-Cristo levantou-se e, sem responder, porque a tremura da sua voz poderia denunciar a comoção que o dominava, pôs-se a percorrer passo a passo a sala.
            - A nossa magnificência o faz sorrir, não é verdade, Sr. Conde? - perguntou Maximilien, que seguia Monte-Cristo com a vista.
            - Não, não - respondeu o conde, muito pálido e contendo com a mão as pulsações do coração, enquanto com a outra indicava ao jovem um globo de cristal que protegia uma bolsa de seda cuidadosamente colocada em cima de uma almofada de veludo preto. - Perguntava apenas a mim mesmo para que  serve essa bolsa, que de um lado contém um papel, parece-me, e do outro um diamante bastante bonito.
Maximilien tomou um ar grave e respondeu:
            - Isso, Sr. Conde, é o mais precioso dos nossos tesouros de família
            - De fato, o diamante é bastante bonito - repetiu Monte-Cristo.
            - Oh, o meu irmão não se refere ao valor da pedra, embora esteja calculado em cem mil francos, Sr. Conde! Quer apenas dizer que os objetos contidos nessa bolsa são as relíquias do anjo de que falamos há pouco.
            - Aí está uma coisa que não compreendo e que no entanto não devo pedir que me explique... minha senhora - declarou Monte-Cristo, inclinando-se. - Perdoem-me, não quis ser indiscreto.
            - Indiscreto, diz o senhor? Oh, não imagina como nos torna felizes, pelo contrário, dando-nos oportunidade de falarmos a tal respeito! Se ocultassemos como segredo a bela ação que recorda essa bolsa, não a exporíamos por assim dizer à vista. Oh, desejaríamos poder espalha-la por todo o universo, para que um estremecimento do nosso benfeitor nos revelasse a sua presença.
            - Deveras? - disse Monte-Cristo, com a voz embargada.
            - Senhor - prosseguiu Maximilien, levantando o globo de cristal e beijando religiosamente a bolsa de seda -, isto foi tocado pela mão de um homem por quem o meu pai foi salvo da morte, nós da ruína, e o nosso nome, da vergonha; de um homem graças ao qual nós, pobres crianças votadas à miséria e às lágrimas, podemos hoje ver as pessoas extasiarem-se perante a nossa felicidade. Esta carta - e Maximilien tirou um bilhete da bolsa e apresentou-o ao conde –, esta carta foi escrita por ele no dia em que meu pai tomara uma resolução desesperada, e este diamante foi dado em dote à minha irmã por esse generoso desconhecido.
            Monte-Cristo abriu a carta e leu-a com indefinível expressão de prazer. Era o bilhete que os nossos leitores conhecem, dirigido a Julie e assinado por Simbad, o Marinheiro.
            - Desconhecido, diz o senhor? Então o homem que lhes prestou esse favor não lhes deu a conhecer?
            - Não, senhor, nunca tivemos a felicidade de lhe apertar a mão. E não foi à falta de pedirmos a Deus esse favor - prosseguiu Maximilien. - Mas houve em todas as aventuras uma direção misteriosa que ainda não conseguimos compreender; foi tudo conduzido por uma mão invisível, poderosa como a de um encantador.
            - Oh, ainda não perdi de todo a esperança de beijar um dia essa mão como beijo a bolsa em que ela tocou! - interveio Julie. - há quatro anos, Penelon estava em Trieste. Penelon, Sr. Conde, é o excelente marinheiro que viu de enxada na mão e que de contramestre se fez jardineiro. Penelon estava pois em
Trieste quando viu no cais um inglês que ia embarcar num iate e reconheceu o homem que procurara o meu pai em 5 de Junho de 1829 e me escrevera esse bilhete em 5 de Setembro. Era sem dúvida o mesmo, ao que ele afirma, mas não se atreveu a falar-lhe.
            - Um inglês!.. - murmurou Monte-Cristo, pensativo, preocupado com os olhares que lhe deitava Julie. - Um inglês, diz a senhora?
            - Sim - confirmou Maximilien –, um inglês que se apresentou em nossa casa como mandatário da Casa Thomson & French, de Roma. Aqui tem por que motivo, quando disse no outro dia em casa do Sr. de Morcerf que  os Srs. Thomson & French eram os seus banqueiros, me viu estremecer. Em nome do Céu, senhor, isto passou-se, como lhe dissemos, em 1829; conheceu esse inglês?
            - Mas não me disseram também que a Casa Thomson & French negou terminantemente ter-lhes prestado esse serviço?
            - Dissemos.
            - Então esse inglês não seria um homem que, reconhecendo-se devedor para com o seu pai de alguma boa ação que o próprio Sr. Morrel teria esquecido, aproveitasse esse pretexto para lhe ser útil?
            - Tudo é possível, senhor, em semelhantes circunstâncias, até um milagre.
            - Como se chamava ele? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não deixou outro nome - respondeu Julie olhando o conde com a mais profunda atenção - a não ser aquele com que assinou o bilhete: “Simbad, o Marinheiro.”
            - O que não é um nome, evidentemente, mas sim um pseudônimo.
            Depois, como Julie o olhasse cada vez mais atentamente e procurasse apanhar no ar e reunir algumas notas da sua voz, prosseguiu:
            - Vejamos, não é um homem pouco mais ou menos da minha estatura, um bocadinho mais alto talvez, e um pouco mais magro, afogado numa gravata alta, abotoado, espartilhado, empertigado e sempre de lápis na mão?
            - Oh, mas então o senhor conhece-o! - exclamou Julie, com os olhos cintilantes de alegria.
            - Não - respondeu Monte-Cristo. - Suponho apenas.  Conheci um Lorde Wilmore que deixava assim atrás de si rastros de generosidade.
            - Sem se dar a conhecer?
            - Era um homem estranho, que não acreditava no reconhecimento.
            - Oh! - exclamou Julie em tom sublime e juntando as mãos. - Em que acreditava então o infeliz?
            - Não acreditava na gratidão, pelo menos na época em que o conheci - respondeu Monte-Cristo, a quem aquela voz vinda do fundo da alma fizera vibrar até  à última fibra. - Mas desde então é provável que tenha tido alguma prova do que o reconhecimento existia.
            - E o senhor conhece esse homem? - perguntou Emmanuel.
            - Oh, se o conhece, senhor, diga, diga! - exclamou Julie. - Pode levar-nos à sua presença, mostrar-nos, dizer-nos onde está? Maximilien, Emmanuel: se o encontrarmos alguma vez, temos de convence-lo a acreditar na memória do coração.
            Monte-Cristo sentiu duas lágrimas rolarem-lhe dos olhos. Deu mais alguns passos na sala.
            - Em nome do Céu, senhor, se sabe alguma coisa acerca desse homem, diga-nos o que sabe! - pediu Maximilien.
            - Infelizmente - respondeu Monte-Cristo, contendo a emoção da voz –, se foi Lorde Wilmore o seu benfeitor, receio muito que não o encontrem. Deixei-o há dois ou trás anos em Palermo, de partida para os países fabulosos; por isso duvido muito que algum dia volte.
            - O senhor é cruel! - exclamou Julie, espantada.
            E as lágrimas acudiram aos olhos da jovem.
            - Minha senhora - disse gravemente Monte-Cristo, devorando com a vista as duas pérolas líquidas que rolavam pelas faces de Julie –, se Lorde Wilmore  visse o que acabo de ver aqui, voltaria a amar a vida, pois as lágrimas que a senhora derrama o reconciliariam com o gênero humano.
            E estendeu a mão a Julie, que lhe deu a dela, dominada como estava pelo olhar e pelo tom do conde.
            - Mas esse Lorde Wilmore - insistiu a jovem, agarrando-se a uma derradeira esperança - tinha um país, uma família, parentes, era conhecido, enfim? Não poderíamos...
            - Oh, desista, minha senhora! - pediu o conde. - Não construa suaves quimeras sobre as palavras que deixei escapar. Não, Lorde Wilmore não é provavelmente o homem que procuram. Era meu amigo, eu conhecia todos os seus segredos e teria revelado esse.
            - E não lhe disse nada? - perguntou Julie.
            - Nada.
            - Nunca uma palavra que o pudesse levar a supor...
            - Nunca.
            - No entanto, o senhor citou-o imediatamente.
            - Bom, como sabe num caso assim supõe-se.
            - Minha irmã, minha irmã - interveio Maximilien em auxílio do conde –, o Sr. Conde tem razão. Lembra-se do que nos disse tantas vezes o nosso bom pai: não foi um inglês que nos prestou auxílio.
            Monte-Cristo estremeceu.
            - O seu pai dizia-lhes... Sr. Morrel?... - perguntou vivamente.
            - O meu pai, senhor, via naquela ação um milagre. O meu pai acreditava num benfeitor saído por nossa causa do túmulo. Oh, era tão comovente a sua superstição, senhor, que embora eu não acreditasse nela nunca me passou pela cabeça destruir tal crença no seu nobre coração! Quantas vezes devaneava
pronunciando baixinho o nome de um amigo perdido; e quando estava prestes a morrer, quando a proximidade da eternidade deu ao seu espírito qualquer coisa da inspiração da sepultura, aquela idéia, que até  ali não passara de uma suspeita, transformou-se numa convicção, e as últimas palavras que pronunciou foram estas: “Maximilien, foi Edmond Dantés!”
            A palidez do conde, que havia alguns segundos ia aumentando, tornou-se horrível depois destas palavras. Todo o sangue lhe afluíra ao coração e não conseguia falar. Puxou do relógio, como se se tivesse esquecido das horas, pegou no chapéu, apresentou à Sra Herbault um cumprimento brusco e embaraçado
e apertou a mão a Emmanuel e Maximilien.
            - Minha senhora - disse -, permita-me que venha algumas vezes apresentar-lhe os meus cumprimentos. Gosto da sua casa e estou grato pelo seu acolhimento, tão agrável que pela primeira vez em muitos anos me esqueci das horas. E saiu a passos largos.
            - É um homem singular, esse conde de Monte-Cristo - disse Emmanuel.
            - Pois é - concordou Maximilien –, mas creio que possui um excelente coração e estou certo de que gosta de nós.
            - E a mim - disse Julie - a sua voz penetrou-me até  ao coração e por duas ou três vezes pareceu-me que não era a primeira vez que a ouvia.  

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