sexta-feira, 6 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte II (2)

— Valha-a Deus! O senhor pode fechá-los e dizer: "Um minuto de descanso." Representa, em
relação a eles, o papel de um deus. Mas quem conseguiu já alguma vez livrar-se das garras que o
apertam, uma vez ligado o televisor? A semente que o senhor semeou cresce em si e pode modificá-la
como lhe apetecer, segundo os seus desejos. Ei-lo mergulhado num meio tão real como o mundo. Ele
devem, ele é a verdade. Pode atacar os livros com a sua razão. Mas com todos os meus conhecimentos e
o meu cepticismo, nunca fui capaz de discutir com uma orquestra sinfônica de cem instrumentos,
afogado em cores a três dimensões, absorvido, digerido por esses incríveis écrans. Como vê, na minha
sala apenas há quatro paredes brancas. E isto —Faber brandiu duas pequenas rolhas de borracha—
para os meus ouvidos, quando me aventuro no "metro".
— Dentífrico Denham; eles não trabalham nem correm — disse Montag, de olhos fechados. — Que
nos resta fazer? Os livros não nos ajudarão?
— Somente se a terceira condição necessária puder ser cumprida. Primeiro, como lhe disse, a
qualidade do conhecimento. Em seguida, tempo para assimilar. Enfim, o direito de realizar
actos1 baseados sobre aquilo que nos ensinou a interacção dos dois primeiros elementos. E duvido
muito que um velho e um bombeiro revoltado possam fazer grande coisa, quando o jogo está quase no
fim...
— Posso arranjar livros.
— Corre um enorme risco.
— É o belo lado da morte. Quando não há nada a perder, aceita-se correr todos os riscos.
— Ora aí está uma interessante declaração — disse Faber, rindo. — E parece-me que não foi
lida em nenhum livro!
— As coisas são assim nos livros? Isto veio-me de repente à cabeça!
— Melhor ainda. Essa idéia não foi calculada para mim ou qualquer outro, nem sequer para si.
Montag inclinou-se para a frente.
— Esta tarde pensei que, se os livros valem a pena, podíamos talvez encontrar uma
tipografia e imprimir alguns...
— Podíamos...?
— O senhor e eu.
— Oh, não! — Faber ergueu-se, na cadeira.
— Deixe-me expor-lhe o meu plano...
— Se insiste nesse assunto, vejo-me obrigado a pedir—lhe para se retirar.
— Então isto não lhe interessa?
— Não com idéias que podem levar-me a ser queimado. Aceitaria ouvi-lo na medida em que a
própria estrutura do sistema que o senhor representa pudesse ser queimada. Se me sugere imprimir
algumas obras e encontrar um meio de as espalhar e esconder no domicílio dos bombeiros de todo o
país, de maneira a semear a dúvida e a suspeita entre esses pirómanos, então direi: Bravo!
— Espalhar os livros, desencadear o alarme e ver as casas dos bombeiros arder, não é o que
quer dizer?
Faber ergueu as sobrancelhas e olhou Montag, como se um novo homem acabasse de surgir à
sua frente.
— Estava a brincar.
— Se acha que esse plano vale a pena ser executado, gostaria de ter a sua palavra de que ele
poderia dar um resultado.
— Não se pode garantir semelhante empreendimento! O que procura, Montag, encontra-se
no mundo, mas a única possibilidade para um homem de lhe conhecer noventa e nove por
cento, é abrir os livros. Não peça garantias. E não espere ser salvo por uma idéia, uma pessoa, uma
máquina, uma biblioteca. Trate de se conservar à sua própria superfície e, se se afogar, morra sabendo
pelo menos que se dirige para a margem.
Faber levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
— Então? — perguntou Montag.
— Mas está de facto a falar a sério?
— Evidentemente.
— Devo dizer que é um plano insidioso. —Faber deu uma olhadela ansiosa para o seu quarto.
— Ver os quartéis dos bombeiros a arder por todo o país, destruídos como focos de traição. A
salamandra devorando a própria cauda!
— Tenho a lista de todos os domicílios dos bombeiros. Com um pouco de trabalho
clandestino...
— É impossível ter confiança nas pessoas. É este o lado mau do caso. Nós dois postos de lado,
quem fará o trabalho?
— Não haverá professores como o senhor, antigos escritores, historiadores, lingüistas?...
— Mortos, ou muito velhos.
— Quanto mais velhos sejam, melhor; não serão notados. Conhece-os às dúzias, confesse!
— Sim, será possível tirar partido do ressentimento e utilizar a raiva edificante desses
historiadores que não escrevem uma linha há quarenta anos.
— Claro!
— Mas apenas afloraremos o assunto. A cultura, na sua totalidade, foi abatida. Meu Deus, não é
tão simples como ir desenterrar um livro esquecido há meio século. Lembre-se que a presença dos
bombeiros raramente é necessária. As pessoas deixaram de ler por si mesmas. Poucos têm o desejo de
se revoltar, nos nossos dias. E, nessa minoria, a maior parte, como eu, amedronta-se facilmente.
Pode dançar mais depressa que o Palhaço Branco, gritar mais alto que o "Sr. Gimmick" e as "famílias"?
Se pode, ganhou a partida, Montag. De qualquer maneira, o senhor é um idiota. As pessoas divertem-se
— Suicidando-se! Cometendo crimes!
Durante toda a conversa, um grupo de bombardeiros passava em direcção ao oeste e só então,
calados, os dois homens estremeceram com o longo rugido dos reactores.
— Paciência, Montag. Deixe a guerra eliminar as "famílias". A nossa civilização está a ponto de
se reduzir a poeira. Conserve-se à parte da força centrífuga.
— É preciso que alguém esteja pronto para o momento 'em que tudo explodir.
— Quem? Homens que citarão Milton? Que dirão: "Lembro-me de Sófocles"? Que
recordarão aos sobreviventes que o homem também tem um lado bom? Contentar—se-ão em reunir as
ruínas para as atirar à cabeça uns dos outros. Vá para casa, Montag. Vá-se deitar. Porque perde as suas
últimas horas a correr à volta da sua gaiola, negando que nada mais é do que um esquilo?
— Então, o caso não lhe interessa?
— Interessa-me tanto que estou doente.
— Mas não quer ajudar-me?
— Boa noite, boa noite.
As mãos de Montag pegaram na Bíblia. Teve consciência do seu gesto e pareceu surpreendido.
— Gostaria de possuir este livro?
— Daria o meu braço direito — disse Faber. Montag, de pé, imóvel, esperava o que se ia
passar.
As suas mãos, como dois operários trabalhando de comum acordo, começaram a arrancar as
páginas do livro. Arrancaram primeiro a página de guarda, depois a página um, depois a dois.
— Imbecil, que está a fazer? — Faber saltou como se o tivessem esbofeteado. Correu para
Montag. Montag repeliu-o e as suas mãos continuaram a trabalhar. Seis outras páginas caíram no chão.
.Pegou nelas e fê-las numa bola, sob os olhos de Faber.
— Não, peco-lhe, não! — gritou o velho.
— Quem pode fazer-me parar? Sou bombeiro. Posso mesmo queimá-lo.
O velho olhou-o fixamente.
— Não faria uma coisa dessas.
— Porque não?
— O livro. Não o rasgue mais. —Faber deixou-se cair num mapk, o rosto pálido, os lábios a
tremer.— Não aumente ainda mais o meu esgotamento. Que quer, afinal?
— Tenho necessidade de aprender consigo.
— Bem, bem.
Montag largou o livro. Depois pegou nas folhas amarrotadas e alisou-as, sob o olhar cansado do
velho. Faber sacudiu a cabeça como se acordasse.
— Montag, tem dinheiro?
— Algum. Quatrocentos ou quinhentos dólares. Porquê?
— Traga-mos. Conheço um homem que imprimia o boletim do nosso colégio, há
cinqüenta anos. Foi nesse ano que eu encontrei na minha aula um único aluno para seguir o curso de
teatro de Esquilo a O'Neill. Faz uma idéia do que era? Lembro-me dos jornais, que morriam como
borboletas gigantes. Ninguém queria ouvir falar neles. Ninguém os pedia. E o Governo, verificando até
que ponto era vantajoso não dar outra leitura além dos beijos apaixonados e dos socos no estômago,
manteve esse estado de coisas com os vossos vomitadores de fogo. E, assim, aí temos um impressor
sem trabalho, Montag. Poderíamos começar alguns livros, esperando que a guerra desloque o sistema e
estenda a nossa acção, segundo as circunstâncias. Algumas bombas, e as "famílias" nas paredes de todas
as casas calar-se-ão como ratos! No silêncio, os nossos murmúrios talvez sejam ouvidos.
Ambos contemplaram o livro, sobre a mesa.
— Como eu gostaria de ter qualquer coisa para dizer ao capitão! — disse Montag. — Ele tem
lido suficientemente para ter resposta para tudo, ou dar impressão disso. A sua voz é como manteiga.
Receio que, com a sua conversa, me leve ao ponto de partida. Há oito dias apenas, ao lançar a gasolina
pela minha mangueira, dizia comigo mesmo: "Como isto é divertido!..." O velho sacudiu a cabeça.
— Aqueles que não constróem, devem queimar. É história antiga.
— Eis o que eu sou.
— Todos nós estamos mais ou menos marcados com esse sinal.
Montag dirigiu-se para a porta.
O velho respirou fundo. Uma segunda vez respirou com força, os olhos fechados, os lábios
cerrados...
— Montag... Venha comigo. Só tinha uma idéia: vê-lo partir. Sou um velho e inapto poltrão.
Faber abriu a porta do quarto e fez entrar Montag num pequeno compartimento mobilado com
uma mesa carregada de ferramentas, numa confusão de bobinas microscópicas, de fios metálicos finos
como cabelos, de minúsculos quartzos.
— Que é isto? — perguntou Montag.
— A prova do meu terror pânico. Brincar com a técnica radioeléctrica tornou-se o meu
passatempo. O meu medo tomou tais proporções que me vi quase forçado a inventar isto.
Pegou num pequeno objecto de metal verde, não maior que uma bala de calibre 22 curto.
— Paguei tudo isto... como? Jogando na Bolsa, claro, esse último refúgio existente no mundo
para o aventureiro intelectual sem trabalho. Sim, joguei na Bolsa, construí este aparelho e esperei.
Esperei, tremendo, durante metade de uma vida, que alguém me dirigisse a palavra. Não ousei falar a
ninguém. Naquele dia, no parque, quando nos sentámos um ao lado do outro, soube que um dia o
tornaria a encontrar, fosse como amigo, fosse como incendiado, isso era difícil de prever. Este pequeno
aparelho está pronto há meses. Mas eu ia deixá-lo partir. Tenho tanto medo!
— Parece um micro-rádio.
— Pois parece, mas é muito superior. Este aparelho ouve! Se o meter na sua orelha, Montag,
posso ficar tranqüilamente instalado em casa e surpreender e analisar ao mesmo tempo os seus
congêneres, os bombeiros, e notar os seus pontos fracos sem perigo algum. Sou a rainha das abelhas,
em segurança no centro da colmeia. O senhor será a que trabalha, a orelha viajante. De facto, poderei
instalar orelhas em todos os bairros da cidade, com homens de confiança para ouvir e registar. Se os
outros morrem, eu fico sempre são e salvo, em minha casa, controlando o meu medo com o máximo
do .conforto e o mínimo de riscos. Vê como eu me agarro à minha segurança, como sou desprezível?
Montag colocou a bala verde no ouvido. O velho pôs um aparelho idêntico junto do seu
tímpano e moveu os lábios.
— Montag!
A voz vibrou na cabeça de Montag.
— Mas estou a ouvi-lo! O velho começou a rir.
— Eu ouço-o também com toda a nitidez.
Faber murmurava, mas a sua voz era nítida na cabeça de Montag.
— Vá ao quartel à hora fixada. Estarei consigo. Ouviremos juntos esse capitão Beatty. Talvez
ele seja dos nossos. Quem sabe? Ditar-lhe-ei as réplicas. Faremos uma demonstração cuidada.
Detesta-me pela minha cobardia electrónica? Eis que o envio pela noite dentro, ficando na retaguarda
com as minhas danadas orelhas que se arriscam a ouvir a sua sentença de morte.
— Cada um faz o que pode — disse Montag. Colocou a Bíblia entre as mãos de Faber. —
Tome. Tratarei de arranjar outro livro para a substituir. Amanhã...
— Irei ver esse impressor desempregado, claro. Pelo menos, disso sou eu capaz.
— Boa noite, professor.
— Boa noite, não. Não o abandonarei toda a noite. Zumbir-lhe-ei à orelha como um
mosquito. Enfim, no entanto boa noite, e boa sorte.
A porta abriu-se e fechou-se. Montag encontrou-se na rua sombria, observando o mundo que o
rodeava.
Montag afastou-se a pé do "metro" com o dinheiro na algibeira (tinha passado pelo banco,
aberto toda a noite com os seus empregados-robots aos guichets) e, enquanto caminhava, escutava o
micro-rádio numa das suas orelhas.
— Mobilizámos um milhão de homens. Obteremos uma vitória-relâmpago se a guerra for
desencadeada... — Uma vaga de música submergiu rapidamente a voz.
— Dez milhões de homens mobilizados — murmurou Faber na sua outra orelha. — Mas
apenas se anuncia um, é menos assustador.
— Faber?
— Que é?
— Não penso em nada. Faço o que me ordenam, como sempre. O senhor disse-me: "Vá
buscar o dinheiro", e eu fui. Quando começarei a tomar as minhas próprias decisões?
— Já começou, ao dizer o que disse. Tem de acreditar-me —Já acreditei noutros!
— Sim, e veja onde isso o levou. Vai andar algum tempo como um cego. Estendo-lhe o meu
braço para se encostar.
— Não quero mudar de idéias e contentar-me em receber instruções. Não há razão nenhuma
para mudar, se não temos mais nada a esperar.
— Já começa a ser cabeçudo!
Montag sentiu que os pés o levavam em direcção a casa.
— Continue a falar — disse.
— Quer que lhe leia qualquer coisa? Lerei de maneira que se possa recordar. Não durmo senão
cinco horas por noite. Nada tenho que fazer. Portanto, se lhe interessa, ler-lhe-ei enquanto dorme.
Parece que se retém o que se ouve, mesmo adormecido, se alguém nos murmura ao ouvido.
— Comece.
— Escute. — Muito longe, no outro extremo da cidade, no meio da noite, adivinhou o
ruído de uma página virada, O LJpro de Job.
A Lua subia no céu. Montag continuava a andar, os lábios animados por estremecimentos
apenas perceptíveis.
As nove da noite, comia ele um jantar leve, quando a porta de entrada chamou, no corredor.
Mildred correu para fora da sala como um fugitivo de uma erupção do Vesúvio. A sr.a Phelps e a sra
Bowles atravessaram o umbral e desapareceram na goela do vulcão, martinis na mão. Montag parou de
comer. Elas faziam-lhe lembrar um monstruoso lustre de cristal tilintando com mil berloques, via os
seus sorrisos de gatos de Cheshire (') reflectindo-se nas paredes da casa e, em seguida, um concerto de
cacarejes por entre o ruído geral.
Montag encontrou-se à porta da sala, com a boca cheia.
— Como tudo é encantador!
— Encantador.
— Tens um aspecto óptimo, Millie!
(*) Cheshire cot, o gato-fantasma àeA.lice no Tais das Maravilhas. ÇSf. do T.)
— Óptimo.
— Toda a gente está satisfeita!
— Está satisfeita.
Montag, imóvel, observava-as.
— Paciência — murmurou Faber.
— Eu não devia estar aqui — ciciou Montag. — Devia estar a caminho da sua casa, com o
dinheiro!
— Será suficiente amanhã. Atenção!
— Não acham este número sensacional? — gritou Mildred. — Sensacional!
Numa das paredes uma mulher sorria e, simultaneamente, engolia um sumo de laranja. "Como
pode ela fazer as duas coisas ao mesmo tempo?", perguntou-se Montag, estupidamente.
Nas outras paredes, a mesma mulher era vista aos raios X e podia-se seguir, nas contracções
internas, o trajecto da bebida refrescante até ao seu estômago contentíssimo! Bruscamente, a sala
desapareceu nas nuvens e mergulhou num mar verde-pálido onde peixes azuis devoravam peixes
amarelos e encarnados. Um minuto depois, três palhaços brancos de desenho animado amputavam-se
mútua e alegremente diversos "membros, entre explosões de riso. Dois minutos mais e a sala foi
projectada fora da cidade, em frente de uma pista onde carros a reacção rodavam com frenesim,
chocando uns contra os outros. Montag viu um bom número de condutores projectados no ar.
— Millie, já viste isto?
— É maravilhoso.
Montag introduziu a mão numa abertura da parede e desligou a televisão. As imagens vacilaram
e deslocaram-se, como repuxos saindo de um gigantesco bocal de cristal cheio de peixes assustados.
As três mulheres voltaram-se lentamente e olharam Montag com uma irritação evidente, depois
com um profundo desprezo.
— Quando pensam que começará a guerra? — perguntou ele. — Notei a ausência dos vossos
maridos, esta noite.
— Oh! Eles vão e vêm constantemente — disse a sr.a Phelps. — Finnegan tanto está
aqui como está ausente; o Exército chamou Pete ontem. Voltará na próxima semana. Foi o que lhe
disseram. Quarenta e oito horas, segundo eles, e toda a gente voltará para casa. É o que dizem no
Exército. Uma guerra-relàmpago. Pete foi chamado ontem e garantiram-lhe que seria licenciado na pró
xima semana. É rápido...
As três mulheres agitaram-se e olharam com nervosismo as paredes vazias e cinzentas.
— Eu não me incomodo com isso — continuou a sr.a Phelps. — Deixo o assunto a Pete.
Esse bom Pete bate-se por nós dois. Sim,* não há dúvida de que não me incomodo.
— Claro — disse Millie —, deixemos o velho Pete resolver as coisas.
— São sempre os maridos das outras que ficam, como se costuma dizer.
— Parece que sim. Em todo o caso, nunca conheci um homem que tivesse morrido na guerra.
Caindo de um telhado, sim, como o marido de Glória, na semana passada, mas na guerra, nunca.
— Na guerra, nunca — afirmou a Sra.Phelps. — Além disso, Pete e eu estamos sempre de
acordo: nada de lágrimas nem comoções. É o terceiro casamento de cada um de nós e somos
independentes. Conservemo-nos independentes, é o que dizemos sempre. "Se eu morrer", diz ele,
"continua como se nada se tivesse passado e não chores. Casa-te novamente e não penses mais em
mim." — A propósito — disse Mildred. — Leram o romance—minuto de Clara Dove ontem à noite,
nos vossos écrans? É a história de uma mulher que...
Montag nada disse, mas olhou o rosto das três mulheres como tinha examinado uma vez as
cabeças dos santos, numa igreja desconhecida, quando era pequeno. Nada tinha sentido, nessa ocasião.
Era como se tivesse entrado, por acaso, num bazar insólito onde o seu dinheiro não tivesse curso, e o
seu coração ficara frio, mesmo ao tocar na madeira, no gesso e no barro das estátuas.
E agora, no seu próprio salão, tornava a encontrar essa sensação perante aquelas mulheres que
se agitavam nos mapks, acendiam cigarros, sopravam nuvens de fumo, remexiam nos cabelos secos e
examinavam as unhas fulgurantes que pareciam incendiar-se sob o seu olhar. A angústia do silêncio
começava a invadir-lhes os rostos. A transpiração e a agitação dessas mulheres que se consumiam de
ansiedade, vibrava, no silêncio. De um momento para o outro, dariam um longo silvo e explodiriam.
Montag moveu os lábios:
— E se conversássemos?
As mulheres sobressaltaram-se.
— Como estão os seus filhos, sr.a Phelps? — perguntou Montag.
— Sabe muito bem que os não tenho! Nenhuma mulher com um mínimo de bom senso
pensará em tê-los! — respondeu a Sra.Phelps, sem saber muito bem porque detestava aquele homem.
— Não estou de acordo — disse a Sra.Bowles. — Tive dois filhos, por cesariana. Não vale a
pena sofrer todo esse martírio para ter um bebe. Os homens devem reproduzir-se, como sabe, a raça
deve perpetuar-se. Além disso, algumas vezes eles são parecidos connosco e isso tem piada. Duas
cesarianas e o caso ficou arrumado. Oh! O meu médico disse: "Não há necessidade de cesariana, a sua
bacia suporta perfeitamente, é normal", mas eu insisti.
— Com cesarianas ou sem elas, as crianças são péssimas. Você é doida! — observou a sr.a
Phelps.
— Os garotos estão na escola nove dias em cada dez. Apenas tenho que suportá-los em casa
três dias por mês. É um bom sistema. Metem-se na sala e fecha-se a porta. É como a lavagem. Mete-se
a roupa na máquina e fecha-se a tampa. —A Sra.Bowles teve um riso seco.— Cair-me—iam em cima
aos pontapés, ao mesmo tempo que me beijassem. Vallia-nos Deus, sei-me defender!
As três mulheres começaram a rir.
Mildred esperou um momento e, depois, vendo que Montag continuava de pé no umbral da
porta, bateu as palmas.
— Se falássemos de política, para agradar a Guy?
— Boa idéia — disse a Sra.Bowles. — Votei nas últimas eleições, como toda a gente, pelo
presidente Noble, é claro. Creio que nunca vi um homem tão bonito nomeado presidente.
— Oh, mas aquele que apresentaram contra ele!
— Era horrível, não era? Pequenino, gorducho, nem sequer bem barbeado ou com o chapéu
bem posto!
— Que idéia foi aquela de o escolherem como candidato? Não se apresenta um pobre diabo
como aquele contra um homem elegante. E além disso... gaguejava. Nunca cheguei a perceber metade
do que ele dizia. E as raras frases que distingui, não as compreendi!
— E que grande barriga! Nem mesmo sabia vestir-se para disfarçar a gordura. Não é de admirar
que Wilson Noble fosse eleito. Até mesmo os nomes representaram um papel. Comparem dez
segundos Wilson Noble e Hu-bert Hoag e a escolha fica feita.
— Ora essa! Que é que sabem de Hoag e Noble? — perguntou Montag.
— Como! Vimo-los no écran da televisão ainda não há seis meses. Hoag esfregava o nariz
constantemente. Ia ficando maluca!
— Vejamos, sr. Montag — disse a sr.a Phelps—, com certeza que não queria que votássemos
em tal indivíduo.
Mildred tinha um ar encantado.
— Não fiques à porta, Guy. Pões-nos os nervos em franja.
Montag desapareceu e voltou um momento depois, com um livro na mão.
— Guy!
— Merda! Merda! Merda!
— Que é isso? Um livro, não? Pensava que todo o vosso treino era feito com filmes — disse a
Sra.Phelps.— Está a rever o seu manual teórico?
— Estou-me nas tintas para o manual — respondeu Montag. — Isto é poesia.
— Montag... — disse Faber, num murmúrio.
— Não me chateie! — Montag sentiu-se arrastado por um turbilhão que lhe rugia aos ouvidos.
— Montag, atenção, atenção...
— Está a ouvi-las? Está a ouvir esses monstros falar de outros monstros? Oh! Esta maneira de
papaguear a propósito das pessoas, dos seus próprios filhos e delas mesmas; esta maneira de falar dos
maridos, da guerra — merda! Estou aqui, em frente delas e não consigo acreditar nas minhas orelhas.
— Quero fazer-lhe notar que não disse uma única palavra acerca de qualquer guerra — disse a
Sra.Phelps.
— Por mim, tenho horror à poesia — disse a sr.a Bowles.
— Já ouviu alguma vez?
— Montag. —A voz distante de Faber vibrava.— Vai estragar tudo. Cale-se, desgraçado!
As três mulheres estavam de pé.
— Sentem-se.
Elas tornaram a sentar-se.
— Tenho de voltar para casa — disse a Sra.Bowles, com voz tremente.
— Montag, Montag, que diabo vai fazer? — murmurou Faber, suplicante.
— Porque não nos lê um dos poemas do seu livro? — disse a sr.a Phelps com um sinal de
cabeça aprovador.— Na minha opinião, seria muito interessante.
— Isto não está certo — gemeu a Sra.Bowles. — Não temos esse direito!
— Mas olhe o sr. Montag! Está a morrer de desejo. E se o ouvirmos delicadamente, ficará
encantado e depois poderemos talvez ficar tranqüilas e fazer outra coisa.
Lançou uma olhadela inquieta às grandes paredes vazias que a rodeavam.
— Montag, se insiste, corto o contacto e deixo-o só — zunia-lhe o insecto na orelha. — Para
que serve essa comédia, que é que vai ganhar com isso?
— Vou muito simplesmente pregar-lhes um susto, um susto de ficar verde.
Mildred tinha o olhar vago.
— Montag, oiça, há apenas uma solução: finja que está a brincar, deixe-as acreditar que não está
a falar a sério. Depois... vá direito ao incinerador e deite o livro dentro!
Mildred, instintivamente, tinha-se já antecipado.
— Caras amigas — disse, numa voz pouco segura —, uma vez por ano, cada bombeiro é
autorizado a trazer para casa um livro antigo para mostrar à família como essas coisas eram estúpidas,
como podiam irritar as pessoas. Guy quis fazer-lhes uma surpresa esta noite, dando-lhes uma amostra
dessas insanidades, para que os nossos pequenos cérebros não voltem a preocupar-se com essas
asneiras, não é, querido? Ele crispou os dedos no livro.
— Diga que sim.
Os seus lábios obedeceram à ordem de Faber: — Sim.
Mildred tirou-lhe o livro da mão, rindo.
— Olha! Lê este. Não, espera. Antes este, que é tão divertido e que me leste hoje. Minhas caras,
não vão perceber patavina. É um autêntico bla-bla... Vá, Guy. Nesta página, querido.
Ele baixou os olhos para o livro aberto. Uma mosca zumbia-lhe docemente no tímpano: —
Leia.
— Qual é o título, querido?
— A Traia de Dover— disse, com a boca seca.
— Agora lê-nos com voz clara... e lentamente. Começou a ler e a sua voz, primeiro baixa e
hesitante, afirmou-se lentamente e elevou-se no deserto incolor que rodeava as três mulheres, sentadas
no centro de um vácuo abafante.
A
fiW/fi /7f nfihv/ •Jf/líJ CA^Í tfyUt/íL
Mas agora apenas oiço o seu distante e melancólico rumor Que se
afasta e desaparece ao sopro do vento da noite.
/-\n ínfinn n/it Pfinvw/Pt P ffjfTfjhvpr A.ÍJ ti/fíyfs f-H-tj c/ífí///CJ c tpiyM-isi CJ f/ic wd-iirytpv/ní^pyf ir -/
Sobre os calhaus solitários do universo.
As três mulheres agitaram-se e fizeram estalar as cadeiras.
Montag acabou a leitura: Ah! meu amor, sejamos fiéis Um ao
outro!
Í4
\fs\i\i/C7An- iP/Cf'i ri tPttTíttVC/*7 f íÇ$)r/Pi CVAn-/f7rin>Pyi if-lCPAW-\ i/ £f&ií/p/£f JCTAJ-rf/it ifJli*P /W£&i ///£7 fi-¥tC/ fAiV-i i-f\l4P-CWAi rí/7TJn/ J_ \ CA-ÍJ fsfiri-
NempazÇj nem remédio para a dor.
E nós estamos aqui como numa tenebrosa planície
Onde cegos exércitos se despedaçam, ma noite.
A sr.a Phelps soluçava. As outras, no meio do deserto, viam-na chorar, de rosto desfeito.
Assustadas pelo seu desespero, conservavam-se sentadas, imóveis, sem lhe tocar. E ela não parava. O
próprio Montag estava espantado.
— Então, então — disse Mildred. — Acabou-se, Clara. Clara, domine-se um pouco! Mas que
tem, Clara?
— Eu... eu... —soluçava a sr.a Phelps — não sei, não sei; verdadeiramente, não sei... Oh,
oh!
A sr.a Bowles ergueu-se e fixou em Montag um olhar reprovador.
— Está a ver? Eu já sabia, é exactamente o que eu quero provar. Já sabia que isto ia acontecer.
Sempre tenho dito: poesia e lágrimas, poesia e suicídio, poesia e neurastenia, a poesia torna-nos
doentes; todas essas asneiras! Agora tenho a certeza. O senhor é mau, Montag, o senhor é um mau
homem!
— Agora... — disse Faber.
Montag, contra vontade, voltou-se, aproximou-se da parede e deitou o livro na boca de cobre
no fundo da qual as chamas esperavam.
C
— Palavras, palavras estúpidas, palavras prejudiciais, horríveis — disse a Sra.Bowles. —
Porque querem as pessoas magoar as outras? Não temos já suficientes aborrecimentos? É necessário
ainda incomodar toda a gente com tais porcarias?
— Então, Clara — implorava Mildred de braços estendidos—, não faças essa cara, vamos
divertir-nos. Vamos tomar a ligar a "família". Domina os nervos, então, não chores mais.
— Não — declarou a sr.a Bowles. — Eu vou para casa. Se quiserem vir e ver a minha "família",
muito bem. Mas não tornarei a pôr os pés na casa deste bombeiro tarado!
— Vá para casa. — Montag olhava-a calmamente. — Vá para casa, pense no seu primeiro
marido divorciado, no segundo que se matou no carro, no terceiro que fez saltar os miolos, volte para
casa e pense na boa dúzia de abortos que tem feito, vá para casa e pense nas suas danadas cesarianas,
nos filhos que a detestam! Vá para casa e pergunte a si mesma como aconteceu tudo isso e o que fez
para o evitar. Desapareça, desapareça — gritou —, antes que a ponha na rua a pontapé no rabo!
As portas bateram. A casa estava vazia. Montag encontrou-se só, no coração do Inverno, entre
as paredes do salão, cor de neve suja. No quarto de banho, a água começou a correr. Ouviu Mildred
sacudir o tubo de comprimidos na palma da mão.
— Idiota, Montag, pobre idiota, triplodiota...
— Basta! — Arrancou a bala verde da orelha e meteu-a na algibeira.
— Idiota... idiota... — zumbiu fracamente o aparelho. Pôs-se a procurar e encontrou os livros
onde Mildred os tinha empilhado, atrás do frigorífico. Faltavam alguns. Portanto, ela já tinha começado
a destruí-los. Mas a sua cólera tinha desaparecido. Sentia-se simplesmente esgotado e um pouco
aturdido. Transportou os livros para o jardim das traseiras e escondeu-os nos arbustos perto do muro.
"Apenas por esta noite", pensou, "para evitar que ela queime mais." Voltou para casa.
— Mildred? — chamou à porta do quarto, mergulhado na escuridão. Silêncio.
Fora, ao atravessar o jardim para se dirigir ao trabalho, esforçou-se por não ver até que ponto a
casa de Clarisse McClellan estava sombria e deserta...
Ao dirigir-se para o centro da cidade, sentia-se completamente isolado, sentindo o irresistível
desejo de ouvir, na noite, as inflexões quentes e doces de uma voz amiga. Faber parecia-lhe já um
amigo de sempre. Seriam Montag + Faber, o fogo + a água. Depois, um dia, quando a amizade fosse
perfeita, inteira e se cumprisse, no silêncio, já não haveria fogo nem água, mas sim vinho.
De dois elementos separados, opostos, nasceria um terceiro.
Era agradável ouvir esse zumbido de insecto, esse zunido sonolento de mosquito, o delicado
murmúrio da voz do velho que lhe dava reprimendas e depois o consolava, enquanto ele emergia do
"metro" e se dirigia para o quartel dos bombeiros.
— Seja compreensivo, Montag, compreensivo. Não seja irônico e não os provoque. Ainda
recentemente estava do lado deles. E eles estão tão seguros de si mesmos que podem continuar
indefinidamente. Mas não continuarão. Não sabem que é um único e gigantesco meteoro que abrasa o
espaço, mas que, um dia, esse meteoro chegará ao fim. Eles apenas vêem a chama, o belo rasto fiamejante,
que por si próprio foi visto. Montag, os velhos metidos em casa, medrosos, tratando das suas
velhas e secas carcaças, não têm o direito de criticar. Mas você ia destruindo tudo, logo ao princípio.
Tome cuidado! Estou sempre consigo, não esqueça. Compreendo perfeitamente o que se passou. Devo
reconhecer que o seu acesso de cólera me revigorou. Meu Deus! Como me senti jovem! Mas agora...
desejo que se sinta velho, desejo que um pouco do meu receio passe para si. Durante as horas que se
vão seguir, quando encontrar o capitão Beatty, ande à volta dele nos bicos dos pés, deixe-me ouvir, por
si, esclarecer a situação. Sobreviver, é o nosso fim. Esqueça essas infelizes e estúpidas mulheres...
— Tornei-as mais infelizes do que o tinham sido há uns anos para cá, creio — disse Montag. —
Senti um choque ao ver chorar a Sra.Phelps. Talvez elas tenham razão, talvez valha mais a pena não
atacar as coisas de frente e divertir-se simplesmente. Não sei. Sinto-me culpado...
— Não, não deve sentir-se! Se não houvesse guerra, se a paz reinasse no mundo, dir-lhe-ia:
Optimo, divirta-se! Mas, Montag, para si não se trata de tornar a ser um bombeiro. Todas as coisas
andam ao contrário, por esse mundo.
Montag transpirava.
— Montag, está a ouvir-me?
— São os meus pés — disse Montag. —Não posso movê-los. Sinto-me idiota. Não posso
avançar nem um passo!
— Oiça. Agora acalme-se — disse docemente a voz do velho. — Eu sei, eu sei que tem medo
de cometer erros. Não tenha. Pode-se tirar partido dos erros. Quando eu era mais novo, Montag,
atirava a minha ignorância à cara das pessoas. E elas caíam-me em cima, à cacetada. Quando atingi os
quarenta anos, o meu processo de combate, ao princípio rombo, tinha adquirido uma ponta aguçada. Se
esconder a sua ignorância, ninguém lhe baterá, mas também não aprenderá nada. Agora caminhe,
direito ao quartel! Somos como irmãos gêmeos, nunca ficaremos sós, isolados em casas
estranhas, em contacto possível. Se tiver necessidade de auxílio quando Beatty o interrogar, estarei
junto de si, escondido na sua orelha, tomando notas!
Montag sentiu o pé direito deslocar-se, depois o pé esquerdo.
— Faber — disse—, não me abandone.
O Cão-Polícia Mecânico não estava lá. O canil estava vazio. Na caserna silenciosa, a salamandra
vermelha dormia, o ventre cheio de gasolina, os lança-chamas cruzados nos flancos. Montag avançou,
tocou o mastro de bronze e elevou-se na semi-obscuridade, olhando o canil deserto.
Beatty estava de pé, junto do orifício do mastro, de costas voltadas, como se não o esperasse.
— Ora aí está! — disse aos seus homens, que jogavam às cartas. — Eis que nos chega um
animal; um animal que, em todas as línguas, se chama um pobre idiota.
Estendeu a mão, como para receber um presente. Montag entregou-lhe o livro. Sem olhar o
título, Beatty lançou o livro num cesto de papéis e acendeu um cigarro.
— "Aqueles que têm um vestígio de inteligência são os mais estúpidos." Sê bem-vindo,
Montag. Espero que ficarás connosco, agora que a tua febre desapareceu e a doença acabou. Jogas uma
partida depoker?
Sentaram-se e um deles distribuiu as cartas.
Duas vezes, em meia hora, Montag se levantou para ir lavar as mãos; quando voltava, escondiaas
debaixo da mesa.
Beatty pôs-se a rir.
— Mostra as mãos, Montag. Não é que desconfiemos de ti, mas, apesar disso...
Todos os outros começaram a rir.
— Enfim — disse Beatty—, a crise passou e tudo se arranja. A ovelha tresmalhada volta ao
redil. Todos nós somos ovelhas que, uma vez ou outra, abandonaram o rebanho. "A verdade é a
verdade, no fim de contas", gritámos nós. Aqueles que estão acompanhados de nobres pensamentos,
nunca estão sós. Suave alimento de uma ciência suavemente enunciada, declara Sir Philip Sidney. Mas, por
outro lado: As palavras são como tolhas e, onde elas se acumulam em abundância, raro é encontrar por baixo os frutos
da ra^ão. Alexandre Pope. Que dizes tu a isto, Montag?
— Não conheço.
— Atenção! — murmurava Faber, muito longe, num outro mundo.
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das Musas. Ai, as águas de superfície intoxicam o cérebro, mas se bebes a saciedade, receberás a lucide^. Pope, no
mesmo ensaio. Então, como te sentes, depois disto?
Montag mordeu o lábio.
— Vou dizer-te. — Beatty, • sorrindo, contemplava as cartas. — Durante algum tempo, serás
como um bêbedo. Lês algumas linhas e saltas no vácuo, do alto da falésia. Bum! Estás pronto a fazer
saltar o mundo, a cortar cabeças, a esmagar mulheres e crianças, destruíres a autoridade. Conheço-o
bem, passei por lá.
— Mas eu sinto-me optimamente — disse Montag, nervoso.
— Não cores. Não quero provocar-te. De facto, não quero. Há uma hora, tive um sonho,
calcula! Tinha-me deitado para repousar um pouco e, no meu sonho, eu e tu tínhamos começado uma
violenta discussão sobre os livros. Tu espumavas de raiva e bombardeavas-me com citações. Eu
aparava calmamente todos os golpes. A força, dizia eu. E tu, citando o Dr. Johnson: A Ciência é superior à
forçai Eu respondia: O Dr. Johnson, meu rapa% disse igualmente: "Nenhum sábio do mundo trocará uma certeza por
uma incerteza.n Conserva-te bombeiro, Montag. Tudo o mais é apenas um caos sinistro!
— Não o oiça! — murmurou Faber. — Ele tenta confundir-lhe as idéias. É um terreno
perigoso. Atenção!
Montag sentia a cabeça envolta num turbilhão. Queria gritar: "Não! Basta, está a misturar tudo,
pare!" Os dedos de Beatty apertaram-lhe o pulso.
— Meu Deus, que pulsação! Assustei-te, hem, Montag? Cos diabos! O teu pulso bate como em
véspera de guerra!
— Montag, agüente! — O insecto zunia na orelha de Montag. — Ele tenta turvar a água!
— Tu sentias um medo assustador — disse Beatty —, pois eu usava um truque infalível,
servindo-me dos mesmos livros que tu te servias, para refutar toda a tua argumentação! Que traições
contêm os livros! Julga-se que eles nos vão auxiliar, e eles voltam-se contra nós. No fim do sonho, eu
chegava com a Salamandra e dizia: Vens comigo? Tu subias e voltávamos para o quartel num
silêncio delicioso.
Beatty largou o pulso de Montag, cuja mão caiu inerte, na mesa.
— E, assim, tudo acabou bem.
Silêncio. Então, Faber começou docemente: — Optimo. Ele deu a sua opinião. Tome nota.
Agora, darei eu a minha. Tome igualmente nota. Em seguida, compare e trate de fazer a escolha. É
necessário que essa decisão parta de si e não do capitão ou de mim. Mas lembre-se que o capitão está
do lado dos piores inimigos da verdade e da liberdade, que pertence ao rebanho cego da maioria. Oh! A
terrível tirania da maioria. Todos nós temos a nossa opinião a dar. E compete-lhe a si escolher a orelha
com que quer ouvir.
Montag abriu a boca para responder a Faber e foi salvo desse erro pelo som repentino da
companhia de alarme. A voz do avisador saiu do tecto. Houve um rápido estalo, enquanto o telescritor
registava a morada assinalada. O capitão Beatty, de cartas na mão, dirigiu-se ao telefone com exagerada
lentidão e arrancou o papel, uma vez o relatório terminado. Examinou-o com atenção e meteu-o na
algibeira. Depois, voltou a sentar-se à mesa. Os outros voltaram-se para ele. • — Restam-me ainda
quarenta segundos para lhes limpar todas as vossas apostas — disse Beatty, jovialmente.
Montag pousou as cartas.
— Estás cansado, Montag? Abandonas a partida?
— Estou.
— Agüenta, homem. Mas... de facto, podemos continuar a partida mais tarde. Deixem as cartas
como estão e vão preparar o material. Vá, a passo ginástico! — E Beatty ergueu-se de novo. —
Montag, isso não vai bem? Não quereria ver-te com uma recaída.
— Não é nada. Há de passar.

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