segunda-feira, 2 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte I

Fahrenheit 451
A temperatura a que um livro se inflama e consome...

PRIMEIRA PARTE
- A Fornalha e a Salamandra

QUEIMAR ERA UM PRAZER.
Era um prazer muito especial ver as coisas arderem, vê-las calcinar-se e mudar.
Punho de cobre na mão, armado desse imenso piton que cuspia o veneno da sua gasolina sobre
o mundo, sentia o sangue bater-lhe nas têmporas e as suas mãos tornavam-se as mãos de uma espécie
de maestro prodigioso dirigindo todas as sinfonias do fogo e do incêndio, ao ritmo das quais se
desmoronavam os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.
Avançou, entre um fulgor de pirilampos.
Teria gostado acima de tudo, segundo a velha tradição, de mergulhar no braseiro uma
alcachofra presa na ponta de um pau, enquanto os livros, com um bater de asas, morriam no umbral da
casa e no jardim. Enquanto os livros se estorciam entre nuvens de fagulhas e partiam, calcinados, com
o vento.
Montag sorriu, com o áspero sorriso de todos os homens chamuscados e repelidos pelas
chamas.
Sabia que, ao voltar à caserna dos bombeiros, poderia contemplar-se ao espelho, piscando os
olhos, transformado em trovador, escurecido como a cortiça queimada. Mais tarde, antes de adormecer
na escuridão, sentiria ainda os músculos do rosto arrepanhados pelo sorriso do fogo. Nunca esse
sorriso o abandonava, nunca o tinha abandonado, tanto quanto se podia lembrar.
Tirou o capacete negro, de reflexos acobreados, e limpou-o. Pendurou com cuidado o seu
casaco ignífugo; tomou um banho, voluptuosamente; depois, de mãos nas algibeiras e assobiando,
atravessou o andar superior do edifício e deixou-se escorregar pelo poço central. No último momento,
quase a esmagar-se em baixo, tirou as mãos das algibeiras e travou a descida, agarrado à vara de bronze.
Os pés a alguns centímetros do chão de cimento, imobilizou-se num silvo agudo.
Saiu da caserna e dirigiu-se ao "metro", pela rua nocturna.
O comboio, movido a ar comprimido, deslizava sem ruído ao longo do túnel subterrâneo e
depositou-o, entre uma nuvem de ar quente, no patamar movediço da escada automática que subia para
os arredores da cidade.
Assobiando sempre, deixou-se conduzir pela escada até às margens da noite, no ar tranqüilo.
Caminhou até à esquina da rua, sem pensar em nada. No entanto, antes de a atingir, diminuiu o passo,
como sob o efeito de um súbito golpe de vento, como se tivesse ouvido chamar pelo seu nome.
Durante as últimas noites, ao voltar para casa, sob o céu estrelado, tinha experimentado uma
vaga sensação sempre naquele lugar, antes de atingir a esquina. Tinha sentido como que uma presença,
no momento de a dobrar.
O ar parecia carregado de uma estranha calma. Alguém o esperava, imóvel, e, um instante antes
da sua chegada, transformava-se em sombra e deixava-o passar.
inútil tentar compreender. Cada vez que mudava de direcção, nada mais via do que a curva
branca e deserta do passeio. Talvez, uma noite, tivesse entrevisto um movimento fugitivo em qualquer
jardim, já desaparecido antes que lhe tivesse sido possível dizer uma palavra. Mas, nessa noite, quase
parou.
Tinha-lhe parecido ouvir um murmúrio apenas perceptível. Uma respiração? Ou apenas o ar
que se comprimia contra o ser que o esperava, de pé, silencioso?
Virou a esquina.
As folhas do Outono voavam rente ao chão iluminado pelo luar e a rapariga que caminhava em
sua direcção, como sobre uma passadeira rolante, parecia deixar-se levar pelo movimento do vento e
das folhas. A cabeça inclinada para a frente, olhava os sapatos, entre os remoinhos circulares da
folhagem. Tinha um pequeno rosto de um branco leitoso, com uma expressão terna e ávida de insaciável
curiosidade por tudo o que a rodeava. Os olhos sombrios, de expressão surpreendida, fixavam-se
no mundo com uma tal intensidade que nenhum movimento das coisas lhe podia escapar. Vestia um
fato branco com pregas murmurantes.
Ele quase julgou ouvir o movimento das suas mãos enquanto ela se aproximava, depois um leve
ruído quando voltou o rosto pálido, descobrindo à sua frente um homem que a esperava, parado no
meio do passeio. Sobre eles, num remoto agitar de folhas, as árvores deixavam tombar suavemente a
sua chuva seca.
A rapariga parou, pareceu querer voltar para trás, mas, em vez disso, fixou em Montag uns
olhos tão negros, tão brilhantes e tão cheios de vida que ele teve a impressão de ter dito qualquer coisa
de maravilhoso. Mas sabia que apenas tinha mexido os lábios para dizer "boa noite". Depois, como ela
parecia hipnotizada pela salamandra bordada no braço e pelo círculo encerrando uma fénix do seu
peito, ele falou de novo: — É verdade — disse—, você é a nossa nova vizinha, não é assim?
— E o senhor deve ser... — ela desviou o olhar das insígnias profissionais — ... bombeiro.
— Disse isso de uma maneira curiosa!
— Eu... eu tê-lo-ia reconhecido de olhos fechados — respondeu lentamente.
— Ah... o cheiro da gasolina? A minha mulher gosta dele — disse Montag, rindo. — Nunca se
consegue fazê-lo desaparecer completamente.
— Pois não — retorquiu ela, em voz baixa.
— A gasolina — continuou Montag, no silêncio que se prolongava — para mim é um perfume.
— Está a falar a sério?
— Claro, porque não?
Ela reflectiu um momento.
— Não sei... Dá-me licença que vá consigo? Chamo-me Clarisse McClellan.
— Clarisse. Guy Montag. Vamos. Que faz na rua a estas horas? Que idade tem?
Caminhavam na brisa simultaneamente morna e fresca da noite, sobre o passeio de prata. Um
ligeiro perfume de pêssegos maduros e morangos flutuava no ar. Ele olhou em volta e notou que tal
coisa era impossível, em época tão avançada do ano.
— Parece-me que lhe devo dizer — disse Clarisse.— Tenho dezassete anos e sou maluca. O
meu tio afirma que as duas coisas acontecem sempre ao mesmo tempo. "Se te perguntarem a idade",
diz-me ele, "responde sempre que tens dezassete anos e que não és boa da cabeça." Mas não acha que é
uma maravilhosa hora para dar um passeio? Gosto de cheirar as coisas, de as olhar, e algumas vezes
passo a noite de pé, a andar, e vejo o Sol nascer.
Deram mais alguns passos em silêncio. Depois ela declarou, pensativamente: — Sabe, não
tenho medo nenhum de si.
— Porque havia de o ter? — perguntou Montag, surpreendido.
— Tanta gente tem medo! Medo dos bombeiros, quero dizer. Mas o senhor, apesar de tudo, é
apenas um homem...
Clarisse virou o rosto para ele, um rosto de cristal leitoso e frágil, iluminado por uma luz doce e
contínua.
Não era a luz histérica da electricidade mas... —como dizer? — ... mas a luz estranhamente
confortável e rara, a luz acariciadora de uma vela.
Um dia, quando ele era pequeno, durante uma falta de electricidade, sua mãe tinha encontrado e
aceso uma última vela e, durante uma breve hora, tinham redescoberto que o espaço, nessa claridade,
perdia as suas vastas dimensões e enrolava-se, amigo, à volta deles, e ambos, mãe e filho, sós,
transformados, tinham desejado que a corrente não voltasse tão depressa...
— Permite que lhe faça uma pergunta? — disse, de súbito, Clarisse. — Há quanto tempo
trabalha como bombeiro?
— Há dez anos. Tinha então vinte.
— Nunca lê os livros que queima? Montag riu.
— É contra a lei.
— Ah, é verdade!
— É um bom trabalho. Segunda-feira queimar Millay, quarta-feira Whitman, sexta-feira
Faulkner, transformá-los em cinzas, e depois queimar as cinzas. É o nosso estribilho oficial.
Andaram mais alguns metros. Depois, Clarisse perguntou: — É verdade que dantes os
bombeiros apagavam o fogo em vez de o acender?
— Não. As casas foram sempre ignífugas, creio.
— É estranho. Ouvi dizer uma vez que, há muito tempo, as casas incendiavam-se algumas
vezes por acidente e que chamavam os bombeiros para apagar o incêndio.
Montag tornou a rir.
— Porque ri? — perguntou-lhe a rapariga.
— Não sei.
Deu ainda uma gargalhada, e parou.
— Porquê? Ri quando eu nada digo de engraçado e responde imediatamente. Nunca pensa nas
perguntas que lhe fazem.
Ele parou de andar.
— Você é que é estranha — disse, olhando-a. — Não tem respeito por coisa alguma?
— Não queria ofendê-lo. Parece-me apenas que gosto de ver as reacções das pessoas.
— E isto não lhe diz nada? — perguntou Montag, apontando o 451 bordado na manga suja de
fumo.
— Sim — murmurou ela, e acelerou o passo. — Já viu passar os automóveis de jacto, nas
avenidas?
— Está a mudar de assunto!
— Algumas vezes penso que os condutores nem sequer sabem o que pode ser a erva ou as
flores. Vão sempre tão depressa! Se se aponta a um condutor uma mancha vaga e verde, ele deve dizer:
"Oh, claro, é erva! Uma mancha rosada? São rosas num jardim! As manchas brancas são casas. As
castanhas, vacas." Uma vez o meu tio conduziu lentamente numa auto-estrada — apenas a setenta por
hora. Meteram-no na prisão por dez dias. É esquisito, não acha?... E triste, também!
— Pensa de mais — disse Montag, pouco à vontade.
— Raramente olho para a televisão mural, nunca vou às corridas ou aos parques de atracções.
Por isso tenho muito tempo para pensar idéias esquisitas. Viu os cartazes de cem metros de
comprimento no campo, à saída da cidade? Sabe que dantes tinham apenas uma dezena de metros? Mas
os carros vão tão depressa agora que tiveram de perlongá-los para que a publicidade conserve ainda o
seu efeito.
— Não sabia — disse Montag, com um riso seco.
— Aposto que posso ainda ensinar-lhe outra coisa. De manhã há orvalho nas ervas.
Ele sentiu-se subitamente incapaz de se lembrar se o sabia ou não e experimentou uma viva
irritação.
— E se olhar bem...—Clarisse ergueu a cabeça para o céu — verá um homem na Lua.
Há muito tempo já que ele não olhava a Lua.
Acabaram o trajecto num silêncio, para ela pensativo, para ele contrariado, crispado.
Chegaram à casa da rapariga. Todas as janelas estavam iluminadas.
— Que se passa?
Raramente Montag tinha visto um tal desperdício de iluminação.
— Oh, é apenas o meu pai e a minha mãe que conversam com o meu tio... É um pouco como
passear a pé, mas ainda mais estranho! Meu tio foi preso uma outra vez. Não lhe contei já?... Porque
passeava a pé. Oh, nós somos umas pessoas muito especiais!
— Mas conversar a respeito de quê? Ela contentou-se em rir.
— Boa noite — disse. E entrou no jardim. Depois, pareceu lembrar-se de qualquer coisa,
voltou para trás e pousou em Montag um olhar curioso. — É feliz?
— Sou o quê? — gritou ele.
Mas Clarisse já tinha partido, correndo, ao luar. E a porta fechou-se docemente atrás dela.
Feliz! Que idiotice.
Tinha deixado de rir.
Colocou a mão no fecho da porta e fez-lhe reconhecer as impressões digitais. A porta abriu-se.
"Naturalmente que sou feliz! Que pensa ela? Que o não sou?" Ergueu os olhos para a rede do
ventilador no corredor e, de repente, lembrou-se que alguma coisa estava escondida atrás dessa rede,
qualquer coisa que parecia observá-lo nesse momento, lá de cima.
Desviou vivamente o olhar.
Que encontro estranho nessa estranha noite! Não se lembrava de nenhuma aventura semelhante a não
ser, um ano atrás, o encontro, numa tarde no parque, de um velhote com o qual tinha ío...
Montag sacudiu a cabeça e olhou a parede nua. O rosto da rapariga lá estava, à sua frente, de
uma grande beleza na sua memória — espantoso, de facto.
Ela tinha um rosto muito delicado, evocando o mostrador de um pequeno relógio entrevisto
num quarto às escuras quando, no meio da noite, acordamos para ver as horas... E o relógio diz-nos a
hora, o minuto e o segundo, numa auréola pálida e silenciosa, anuncia-nos, com toda a certeza da sua
sabedoria, que a noite desliza e mergulha nas trevas mas, ao mesmo tempo, avança para um novo sol.
Montag abriu a porta do quarto.
Dir-se-ia ter penetrado num mausoléu de mármore, numa noite sem lua. Obscuridade total,
nem o menor reflexo do mundo prateado do exterior, trevas hermeticamente fechadas; o quarto era
como uma cave onde nenhum rumor da imensa cidade pudesse penetrar.
Mas não estava vazio.
Apurou o ouvido.
O delicado zumbido de um mosquito no ar, o murmúrio eléctrico de uma vespa invisível
recolhida no seu ninho rosado e quente.
Conseguiu quase seguir a melodia da música que se elevava.
Sentiu o sorriso gelar-se-lhe no rosto, fundir-se, como a cera de uma vela, fantástica, que arde
há muito tempo já, se derrete e apaga a chama. Noite negra. Não era feliz. Não era feliz. Repetiu a frase.
Ela exprimia um facto. Usava a felicidade como uma máscara e a rapariga tinha fugido através do
jardim com essa máscara. Não existia nenhum meio de lhe ir bater à porta e de lha pedir.
Sem acender a luz, imaginou o aspecto do quarto.
A sua mulher estendida na cama, fria, como um cadáver estendido num túmulo, os olhos fixos
no tecto por invisíveis fios de aço, imutáveis. E nas orelhas as pequenas conchas, os micro-rádios
colocados com extremo cuidado, e um oceano electrónico de sons de música, de palavras, de música,
de palavras, batendo sem cessar na margem do seu espírito sempre acordado.
Na verdade, o quarto estava bem va^io.
Cada noite, as vagas vinham e levavam-na, flutuando de olhos abertos, nas suas cristas, para a
manhã. Durante dez anos nem uma só noite tinha passado sem que Mildred nadasse nesse mar, sem
que aí mergulhasse com delícia.
O quarto estava fresco e, no entanto, ele não conseguia ali respirar.
Com a sensação de um homem que em breve vai morrer de asfixia, dirigiu-se às apalpadelas
para a sua cama aberta, separada, fria. O pé chocou-se com qualquer coisa. O objecto emitiu um som
surdo e deslizou, no escuro. Imóvel, direito, escutou o ser estendido sobre a cama, na noite sem rosto.
O sopro exalado pelas narinas era tão fraco que apenas fazia palpitar os extremos mais distantes da
vida, uma folha minúscula, uma pluma negra, um único cabelo.
Recusando-se sempre a deixar entrar a luz de fora, tirou o acendedor da algibeira, apalpou a
salamandra gravada no seu disco de prata e fez um gesto seco... Duas pedras de lua acenderam-se,
como dois olhos erguidos para ele à luz da pequena chama que tinha na mão; duas pedras de lua
afogadas no fundo de um rio transparente e sob as quais corria a vida do mundo, sem as tocar.
— Mildred!
O rosto dela era como uma ilha coberta de neve, lavado por uma chuva de que não sentia as
gotas, sobrevoado por nuvens de sombras móveis, mas que não via.
Apenas se ouvia o zunido de vespa dos pequenos aparelhos que lhe obturavam as orelhas. De
olhos vítreos, parecia duvidar do ritmo doce e fraco da sua respiração. O objecto que ele tinha
projectado com o pé brilhava agora junto do seu próprio leito. O pequeno frasco do remédio para
dormir, que de dia continha ainda trinta comprimidos, jazia agora destapado e vazio.
Enquanto ele se conservava quieto e silencioso, um terrível rugido atravessou o espaço, por
cima da casa. Duas mãos gigantescas rasgavam quilômetros de silêncio. Montag, como que
despedaçado, sentiu o peito abrir-se e explodir. Os bombardeiros de jacto que passavam, um, dois, um,
dois, um, dois, eram seis, nove, doze, uivavam para ele. Abriu a boca e deixou sair um urro estridente
por entre os dentes arreganhados.
As pedras de lua desapareceram. Sentiu a mão mergulhar para o telefone. Os aviões estavam
longe. Os seus lábios aproximaram-se do aparelho.
— Clínica de urgência. — Um murmúrio terrível. Pensou que as estrelas tinham sido
pulverizadas pelos aviões negros e que, de manhã, a sua poeira cobriria a terra como uma estranha
neve. Tal foi a sua absurda reflexão enquanto tremia na escuridão, agitando os lábios sem cessar.
Eles tinham um aparelho. Na verdade, tinham mesmo dois aparelhos.
Um deles mergulhava no estômago como uma cobra de azeviche num poço forrado de ecos, à
procura da água e do tempo que aí se corrompia. Aspirava o líquido verde que vinha à superfície num
borbulhar pastoso. Beberia ele a escuridão? Sugaria ele todos os venenos acumulados com os anos?
Alimentava-se em silêncio, emitindo de vez em quando uma espécie de soluço estrangulado. E tinha
um olho.
O operador, indiferente, que trabalhava com a máquina podia, munido de um capacete óptico
especial, mergulhar o olhar na alma do paciente a quem sugava as entranhas. Que via o Olho? Não o
dizia. O homem via, mas sem ver o que via o Olho. A operação tinha uma vaga semelhança com a
limpeza de uma fossa no fundo de um velho pátio.
A mulher, estendida na cama, nada mais era que um pedaço de mármore. O
operador, de pé, fumava um cigarro. O outro aparelho funcionava
igualmente.
Era manobrado por um indivíduo também indiferente, t vestindo um fato impermeável,
ca stanho-avermelhado.
Essa máquina sugava todo o sangue do corpo e substituía-o por sangue fresco e sérum.
— É necessário fazer duas limpezas — disse o operador, de pé, junto da mulher silenciosa. —
Não vale a pena limpar o estômago se não se limpa o sangue. Deixem todas essas porcarias no sangue e
o sangue ataca o cérebro como um martelo, bang! bang! E, algum tempo depois, as meninges vão-se
abaixo e tudo acaba.
— Basta —disse Montag.
— Era apenas para lhe explicar... — concluiu o operador.
— Acabaram? — perguntou Montag.
— Acabámos.
A raiva de Montag nem sequer os atingia. Conservavam-se à sua frente, com o fumo dos
cigarros a enrolar-se em volutas à volta do nariz, a subir-lhes para os olhos que não pestanejavam.
— São cinqüenta dólares.
— Porque não me dizem primeiro se ela está fora de perigo?
— Evidentemente que está fora de perigo. Vamos levar toda esta porcaria na nossa mala. Como
lhe dizia, chupa-se o que está velho para pôr novo em seu lugar e tudo fica outra vez certo.
— Nenhum de vocês é médico. Porque não enviou o Serviço de Urgência um médico?
— Para quê?—O cigarro do operador oscilava-lhe ao canto da boca. — Casos como este, há
nove ou dez por noite. Temos visto tantos, de há uns anos para cá, que se mandaram construir
máquinas especiais. Apenas a lente óptica é uma novidade, o resto é já velho. Para casos como este não
é preciso um médico. Tudo o que é preciso são dois tipos afinados, para liquidar o assunto em meia
hora. Bem — dirigiu-se para a porta —, temos de nos pôr a andar. Acabamos de receber nova chamada
no nosso micro-rádio. Perto daqui. Um tipo que engoliu um tubo de pílulas, inteirinho. Previna-nos, se
voltar a precisar de nós; ela que se conserve tranqüila. Demos-lhe um contra-sedativo. Vai acordar cheia
de fome. Até à vista.
E os homens de cigarros pendentes das bocas em cicatriz, os homens com olhos de
intoxicados, ergueram a sua carga de máquinas e tubos, a sua caixa de melancolia líquida, a sua
inominável escória sombria e viscosa, e saíram com passo arrastado.
Montag deixou-se cair numa cadeira e ficou a contemplar a mulher. Ela estava de olhos
fechados. Pôs-lhe a mão em frente da boca, para lhe sentir a respiração tépida.
— Mildred — disse, finalmente.
"Somos de mais", pensou ele. "Somos biliões, e isso é muito. Ninguém conhece ninguém.
Desconhecidos aparecem e violentam-vos. Desconhecidos aparecem e arrancam—vos o coração.
Desconhecidos chegam e tiram-vos o sangue. Bom Deus, quem eram esses homens? Nunca os tinha
visto na minha vida!" Meia hora passou.
O fluxo sangüíneo da mulher tinha sido inteiramente renovado e parecia tê-la transformado.
As faces estavam rosadas, os lábios muito frescos e coloridos. Pareciam doces e repousados. O
sangue de qualquer outro corria ali. Se, ao menos, eles tivessem também levado o seu espírito para a
tinturaria, para lhe limpar as algibeiras, passá-lo a ferro, remodelá-lo e torná-lo a trazer de manhã! Se, ao
menos... Levantou-se e foi abrir as janelas para deixar entrar o ar da noite. Eram duas horas da manhã.
Teria passado apenas uma hora desde o seu encontro com Clarisse McClellan na rua, a sua volta
para casa, o seu pontapé no pequeno frasco de cristal? Apenas uma hora, mas o mundo tinha-se
dissolvido e ressurgido sob uma forma nova e sem cor. Risos soavam no outro lado, do jardim
banhado pelo luar, na casa de Clarisse, onde os seus pais e o seu tio conversavam calmamente. Eram
risadas alegres, calorosas, sem sombra de medo e elevavam-se da casa brilhantemente iluminada no
meio da noite, enquanto todas as outras casas estavam mergulhadas na escuridão. Montag ouvia as
vozes falando, falando, respondendo-se, falando e tecendo a sua rede hipnótica.
Inclinando-se sobre Mildred, aconchegou-a com cuidado e foi estender-se na sua cama. O luar
inundava-lhe o rosto, escorria nas rugas da testa. O luar destilava-se nos seus olhos e velava-os com
uma cascata de prata.
Uma gota de chuva. Clarisse. Outra gota. Mildred. Uma terceira. O tio. Uma quarta. O fogo
dessa noite. Uma, Clarisse. Duas, Mildred. Três, o tio. Quatro, o fogo. Uma, Mildred, duas, Clarisse.
Uma, duas, três, quatro, cinco, Clarisse, Mildred, o tio, o fogo, os comprimidos para dormir. Um, dois,
três! Chuva. Tempestade. O tio que ri. O trovão que ribomba pela escada. O mundo inteiro que se
afunda. O fogo explodindo como um vulcão. Tudo começa a descer, entre turbilhões de uma torrente
rugidora, em direcção à manhã.
— Não sei nada, nada de coisa nenhuma — disse Montag, e deixou dissolver-se na língua um
losango dispensador de sono.
As nove da manhã a cama de Mildred estava vazia.
Montag levantou-se rapidamente, com o coração a bater, correu pelo corredor e parou à porta
da cozinha.
Uma torrada saltava da torradeira prateada. Uma mão de cristal em forma de aranha agarrou-a e
inundou-a de manteiga. Mildred viu-a aterrar no seu prato.
As abelhas electrónicas, zumbidoras, estavam fixadas nos seus tímpanos. Ergueu subitamente
os olhos, viu-o, e fez-lhe um sinal com a cabeça.
— Sentes-te bem? — perguntou ele.
Após dez anos de prática com as conchas dos micro—rádios, ela tinha-se tornado uma técnica
da leitura dos lábios. De novo concordou com a cabeça. Tornou a ligar a torradeira, para obter uma
segunda torrada.
Montag sentou-se.
— Gostava realmente de saber porque tenho tanta fome — disse-lhe a mulher.
— Tu...
— Estou a morrer de fome!
— Ontem à noite...—começou ele.
— Não conseguia dormir esta noite... sentia-me mal!
— disse Mildred. — Meu Deus, mas que fome! Não sei porquê.
— Ontem à noite... — disse ele de novo.
Ela olhava-lhe os lábios, com olhos distraídos.
— Que houve ontem à noite?
— Não te lembras?
— De quê? Tivemos alguma farra? A boca sabe-me de facto a papéis de música. Mas que fome
tenho! Quem estava lá?
— Pouca gente — respondeu Montag.
— Era o que me parecia. — Ela mastigou a torrada. — Sinto o estômago um pouco revolvido,
mas tenho uma destas f ornes!... Espero não ter feito asneiras durante a festa.
— Não — disse ele, calmamente.
A torradeira lançou mais uma loura fatia, em sua intenção. Ele recebeu-a na mão, com um
sentimento de sujeição.
— Tu também não estás com um aspecto muito brilhante— disse-lhe a mulher.
A tarde começou a chover e um véu acinzentado estendeu-se sobre todas as coisas.
No corredor da casa, Montag colocou a sua insígnia com a salamandra cor de fogo. Conservouse
um longo momento imóvel, os olhos erguidos para a rede do climatizador. A sua mulher, na sala da
televisão, parou de ler o programa e olhou-o.
— Olá! — disse. — Mas este homem pensa!
— Pois penso — respondeu-lhe Montag. — Queria falar-te— interrompeu-se. — Engoliste
todos os comprimidos do teu frasco, na noite passada.
— Eu? Tens cada uma! — disse ela, surpreendida.
— O frasco estava vazio.
— Mas eu nunca faria tal coisa!... Porque queres que o tivesse feito?
— Talvez tenhas tomado dois comprimidos, depois esquecido, depois outros dois comprimidos
e mais uma vez esquecido. Finalmente, ficaste de tal maneira tonta que continuaste sem parar até trinta
ou quarenta.
— Safa! Porque pensas que tivesse feito tamanha asneira?
— Não sei.
Ela esperava visivelmente que ele saísse.
— Nunca faria uma coisa dessas. É uma estupidez.— E mergulhou na leitura do programa.
— Qual é o programa desta tarde? — perguntou ele, indiferente.
Mildred ergueu os olhos do texto.
— É uma peça que vai aparecer dentro de dez minutos, no écran múltiplo. Enviaram-me o meu
papel pelo correio desta manhã. Escrevem a peça com um papel vago. É uma nova idéia. O espectador,
neste caso eu, representa o papel que falta. No momento em que chega a minha réplica, eles olham-me
todos, das três paredes, e eu recito-a. Por exemplo, aqui, o homem diz: "Que pensa da minha posição,
Helen?" Então olha para mim, sentada no meio da cena, estás a ver? E eu respondo, eu respondo... —
parou e sublinhou com a unha uma linha do texto.— "Parece-me perfeita." Depois a peça continua até
que o tipo diga: "Está de acordo, Helen?" E eu respondo: "Absolutamente." Não achas engraçado,
Guy?
De pé, no corredor, ele olhou-a.
— Eu acho isto divertidíssimo — disse ela.
— De que trata a peça?
— Acabo de te dizer. Há três personagens: Bob, Ruth e Helen.
— Oh!
— É verdadeiramente divertido. E será ainda mais quando pudermos fazer a instalação
da quarta parede. Dentro de quanto tempo pensas que teremos suficiente dinheiro para demolir a
quarta parede e fazê-la substituir por um écran? Custa apenas dois mil dólares.
— O que representa um terço do meu soldo anual.
— Apenas dois mil dólares — continuou ela. — Bem podias pensar em mim de vez em
quando. Se tivéssemos a quarta parede, sabes, seria como se a sala não fosse nossa mas de uma
quantidade de gente verdadeiramente extraordinária. Podíamos dispensar algumas outras coisas...
— Dispensámos já bastantes coisas para pagar a terceira parede. Foi colocada apenas há dois
meses, lembras-te?
— Só? — Olhou-o um longo momento. — Enfim, até logo, meu querido.
— Até logo — disse ele. — E a peça acaba bem?
— Ainda não a li até ao fim.
Montag voltou atrás,, leu a última página, meneou a cabeça e devolveu-lhe o texto.
Depois, saiu da casa para a chuva que caía.
A chuva diminuía e a rapariga caminhava pelo meio do passeio, a cabeça erguida, oferecendo o
rosto às gotas que se espaçavam.
Sorriu ao ver Montag.
— Olá!
Ele disse "olá!" e acrescentou: — Que anda a fazer?
— Continuo a ser doida. A chuva é tão doce! Adoro caminhar sob a chuva.
— Creio que isso, para mim, não serviria.
— É preciso experimentar para saber.
— Nunca o fiz.
Ela lambeu os lábios.
— A chuva tem um gosto delicioso. — Olhou qualquer coisa que tinha na mão.
— Que tem aí?
— Creio que é o último dente-de-leão deste ano. Não pensava encontrar ainda um na erva,
nesta época. Nunca lhe disseram que se esfrega o queixo com ele? Olhe.— Encostou a flor ao queixo,
rindo.
— Para quê?
— Se destinge, quer dizer que estou apaixonada... Destingiu?
Ele apenas podia olhar.
— Então?
— Tem o queixo todo amarelo.
— Optimo! Vamos experimentar consigo.
— Não dará nada.
— Já está!
Antes que ele tivesse podido fazer um gesto, ela tinha—lhe encostado a flor ao queixo.
Montag recuou e ela começou a rir.
— Não se mexa! — Examinou-lhe o queixo e franziu os sobrolhos.
— Então? — perguntou ele.
— Que pena! Não está apaixonado por ninguém.
— Estou sim!
— Mas não se vê.
— Estou mesmo muito apaixonado. — Esforçou-se por evocar um rosto em apoio da sua
afirmação, mas o rosto não apareceu. — Muito apaixonado — repetiu.
— Por favor, não fale dessa maneira.
— A culpa é do seu dente-de-leão. O pó ficou todo em si. Por isso não resultou comigo.
— Claro. Tem razão. Magoei-o... bem o vejo. Estou sinceramente desolada, pode acreditar.
Pousou-lhe a mão no braço.
— Oh, não! — disse ele, muito depressa. — Não tem importância.
— Tenho de me ir embora. Diga-me que me perdoa: não quero que fique zangado comigo.
— Não estou zangado. Talvez aborrecido.
— Devo ir visitar o meu psicanalista. Obrigam-me a ir. Invento histórias para lhe contar. Não sei
o que ele pensa de mim. Diz que eu sou uma verdadeira cebola. Tem um trabalhão para descascar todas
as camadas.
— Acredito facilmente que precise de um psicanalista — disse Montag.
— Não pensou o que disse. Ele suspirou.
— Não, não pensei o que disse.
— O psicanalista quer saber porque passeio, porque caminho pelos bosques, porque olho os
pássaros e colecciono borboletas. Um dia hei de mostrar-lhe a minha colecção.
— Boa idéia.
— Querem saber o que faço de todo o meu tempo. Respondo-lhes que me acontece algumas
vezes ficar simplesmente sentada e reflectir. Mas não lhes digo em quê. Levo-os à certa. E outras vezes
digo-lhes que gosto de atirar a cabeça para trás, como agora, e deixar a chuva correr-me pela boca. Tem
o mesmo sabor que o vinho. Nunca experimentou?
— Não, eu...
— Já me perdoou, não é verdade?
— Já. — Ele meditou um instante. — Sim, já lhe perdoei. Só Deus sabe porquê. Você é bizarra,
é exasperante e, no entanto, com facilidade se lhe perdoa. Disse-me que tinha dezassete anos?
— Bem... no próximo mês.
— Como é curioso... A minha mulher tem trinta anos e, apesar disso, você parece, às vezes,
muito mais velha do que ela. Não posso perceber.* — Também o senhor é estranho, Montag. De vez
em quando, chego mesmo a esquecer que é bombeiro. Oiça, não se vai zangar com o que lhe vou dizer?
— Diga.
— Como começou a sê-lo? Como entrou na organização? Como pôde pensar em fazer esse
trabalho? Não é como os outros. Tenho visto alguns. Eu sei. Quando lhe digo qualquer coisa, olha para
mim; quando falei da Lua ontem à noite, olhou para a Lua. Nunca os outros teriam feito isso. Ter-meiam
deixado de falar. Ou então ter-me—iam ameaçado. Ninguém tem agora um só instante para
consagrar aos outros. O senhor é um dos raros que parecem dispostos a suportar-me. Eis porque acho
estranho que seja bombeiro. Num certo sentido, isso não condiz nada consigo.
Ele sentiu o corpo rasgar-se em dois, meio a arder, meio gelado, meio terno, meio violento,
meio tremente, meio rígido, e as duas metades rangendo uma contra a outra.
— É melhor que vá andando para o seu encontro — respondeu-lhe ele.
Ela partiu e deixou-o de pé, sob a chuva. Ao fim de um longo momento, também Montag
começou a andar. Depois, muito lentamente, enquanto andava, deitou a cabeça para trás, entre a chuva,
um breve instante, e abriu a boca...
O Cão-Polícia Mecânico dormia sem dormir, vivia sem viver, rosnando e vibrando docemente
no fundo do seu canil, vagamente iluminado, a um canto da caserna dos bombeiros.
A luz difusa da uma hora da manhã, o luar descendo do céu límpido, punha vagos reflexos no
bronze, no cobre e no aço do animal, sacudido por um ligeiro frêmito. A luz brilhava nos pêlos
capilares de nylon das narinas do monstro, que estremecia docemente, docemente, com as suas oito
patas, munidas de ventosas de borracha, dobradas sobre si.
Montag deixou-se escorregar pelo mastro de cobre. Saiu para olhar a cidade e o céu agora sem
nuvens. Depois, acendeu um cigarro e veio inclinar-se sobre o monstro.
— Olá! — murmurou Montag, fascinado, como sempre, pelo animal simultaneamente morto e
vivo. A noite, quando não tinham nada que fazer, o que acontecia freqüentemente, os homens
escorregavam pelos tubos de cobre* ligavam as diversas combinações do sistema olfactivo do Cão-
Polícia e largavam ratos na sala, e, às vezes, galinhas ou gatos destinados fatalmente a morrer, e faziamse
apostas sobre os gatos, os frangos ou os ratos que o Cão-Polícia apanharia primeiro.
Os animais eram postos em liberdade e, três segundos depois, tudo estava acabado. O rato, o
gato ou o frango, apanhado em plena corrida, ficava prisioneiro das garras elásticas, enquanto uma
agulha oca, de aço, com dez centímetros de comprimento, lançada do focinho do Cão-Polícia, lhe
injectava doses maciças de morfina ou procaína. A vítima era em seguida lançada no incinerador e uma
outra corrida começava.
Montag ficava em cima a maior parte das vezes, enquanto os outros jogavam esse jogo. Dois
anos antes tinha apostado como os melhores de entre eles, perdido uma semana de soldo e agüentado o
furor de Mildred. Açora, ficava deitado na sua cama, voltado para a parede, ouvindo as risadas, as
corridas dos ratos e os grandes saltos silenciosos do Cão-Polícia que se abatia sobre a sua presa como
um insecto e a dominava, mergulhando-lhe o aguilhão e indo de novo adormecer no seu canil, como
sob a acção de um comutador.
Montag tocou no focinho do monstro.
O Cão-Polícia emitiu um grunhido.
Montag deu um salto para trás.
O Cão-Polícia ergueu-se um pouco no seu canil e fixou em Montag uns olhos bulbosos
subitamente animados de uma palpitação de néon azul-esverdeado. Rosnou de novo, com uma
vibração eléctrica onde se misturava como que um ruído de fritura, um rangido de metal e um silvo
hostil de parafusos ferrugentos.
— Não, não! — disse Montag, sobressaltado. Viu a agulha prateada aparecer alguns
centímetros, desaparecer, tornar a sair, tornar a desaparecer. O grunhido prolongou-se pelos flancos do
monstro, que olhava Montag.
Montag recuou um passo. O Cão-Polícia saiu para fora do canil. Montag agarrou o mastro de
cobre com uma mão. O mastro reagiu, deslizou para cima e transportou Montag através do
tecto.Montag parou na pequena varanda do andar superior, fracamente iluminado. Tremia, e o seu
rosto tinha tomado uma cor branco-esverdeada.

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