segunda-feira, 16 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 1 ao 10

O CONDE DE MONTE CRISTO
Capítulo I


Marselha. - A Checada

            Em 24 de Fevereiro de 1815, o vigia de Nossa Senhora da Guarda assinalou o três mastros Pharaon, vindo de Esmirna, Trieste e Nápoles.
            Como de costume, um piloto costeiro largou imediatamente do porto, passou rente ao Castelo de If e abordou o navio entre o cabo de Morgion e a ilha de Rion.
            Também como de costume, a plataforma do Forte de S. João encheu-se imediatamente de curiosos. Porque em Marselha a chegada de um navio era sempre um grande acontecimento, sobretudo quando esse navio, como no caso do Pharaon, fora construído, aparelhado e estivado nos estaleiros da velha Phocée e pertencia a um armador da cidade.
            Entretanto, o navio aproximava-se. Transpusera sem dificuldade o estreito que alguma erupção vulcânica abrira entre a ilha de Calasareigne e a ilha de Jaros, deixara para trás Pomêgue e avançava com os seus três mastros, a sua bojarrona e a sua bergantina, mas tão devagar e com um ar tão triste que os curiosos, com esse instinto que pressente a desgraça, perguntavam a si mesmos que acidente teria acontecido a bordo. No entanto, os entendidos em navegação reconheciam que, se houvera algum acidente, não se dera com o próprio navio, pois este aproximava-se com todas as condições de um navio perfeitamente governado, a âncora prestes a ser largada e os cabos gurupés soltos; e junto do piloto, que se preparava para dirigir o Pharaon através da entrada estreita do porto de Marselha, encontrava-se um jovem desembaraçado e de olhar atento, que vigiava cada movimento do navio e repetia cada ordem do piloto.
            A vaga inquietação que pairava sobre a multidão atingira especialmente um dos espectadores da esplanada de S. João, e de tal modo que não lhe permitiu esperar a entrada do navio no porto. Saltou para um barquinho e mandou remar ao encontro do Pharaon, que alcançou defronte da enseada da Reserve.

            Ao ver aproximar-se aquele homem, o jovem marinheiro deixou o seu lugar ao pé do piloto e, de chapéu na mão, encostou-se à amurada do navio.
            Era um rapaz de dezoito a vinte anos, alto, esbelto, de belos olhos negros e cabelo cor de ébano. Havia em toda a sua pessoa esse ar calmo e resoluto característico dos homens habituados desde a infância a enfrentar o perigo.
            - Ah, é você, Dantés! - gritou o homem do barco. - Que aconteceu, a que se deve esse ar de tristeza que paira a bordo?
            - Uma grande desgraça, Sr. Morrel! - respondeu o jovem. - Uma grande desgraça, sobretudo para mim. Por alturas de Civita-Vecchia perdemos o nosso querido comandante Leclére.
            - E a carga? - perguntou vivamente o armador?
            - Chegou a bom porto, Sr. Morrel, e creio que a esse respeito ficará  contente; mas o pobre comandante Leclére...
            - Que lhe aconteceu? - perguntou o armador com ar visivelmente aliviado. - Que aconteceu a esse digno comandante?
            - Morreu.
            - Caiu ao mar?
            - Não, senhor. Morreu de febre cerebral, no meio de horríveis sofrimentos.
            Depois, virando-se para os seus homens:
            - Olá, eh! - gritou. - Todos a postos para a ancoragem!
            A tripulação obedeceu. Ato contínuo, os oito ou dez marinheiros que a compunham correram uns para as escotas, outros para os braços, outros para as adriças, outros para os cutelos e finalmente outros para as carregadeiras das velas.
            O jovem marinheiro deitou um olhar breve ao começo da manobra e, vendo que as suas ordens estavam sendo executadas, tornou a virar-se para o seu interlocutor.
            - E como aconteceu essa desgraça? - continuou o armador, retomando o diálogo no ponto em que o jovem marinheiro o deixara.
            - Meu Deus, senhor, da forma mais imprevista! Depois de uma longa conversa com o comandante do porto, o comandante Leclére deixou Nápoles muito agitado; passadas vinte e quatro horas a febre atacou-o; três dias depois estava morto... Fizemos-lhe o funeral do costume e repousa, decentemente embrulhado no pano de uma maca, com um pelouro de trinta e seis aos pés e outro à cabeça, por alturas da ilha de El Giglio. Trazemos, para entregar à viúva, a sua Cruz de Honra e a sua espada. Valia bem a pena - continuou o jovem, - com um sorriso melancólico - andar dez anos guerreando com os Ingleses para no fim morrer na cama como toda a gente.
            - Pois sim, mas que quer, Sr. Edmond - prosseguiu o armador, que parecia cada vez mais conformado –, somos todos mortais e é preciso que os mais velhos dêem lugar aos novos. Sem isso não haveria progresso; e uma vez que me garante que a carga...
            - ...está em bom estado, Sr. Morrel, asseguro-lhe. Aconselho-o a não negociar esta viagem com menos de 25.000 francos de lucro.
            Depois, como acabassem de ultrapassar a torre redonda:

            - Preparar para colher as velas da gávea, o cutelo e a bergantina! - gritou o jovem marinheiro. - Vamos!
            A ordem foi executada quase com tanta rapidez como num navio de guerra.
            - Amainar e colher tudo!
            À última ordem todas as velas desceram e o navio avançou quase insensivelmente, impelido apenas pelo impulso que trazia.
            - E agora se quiser subir, Sr. Morrel - disse Dantés ao ver a impaciência do armador –, aqui tem o seu guarda-livros, Sr. Danglars, que sai do seu camarote e que lhe dará todas as informações que desejar. Quanto a mim, tenho de vigiar a ancoragem e de pôr o navio de luto. 
            O armador não esperou que lho dissessem duas vezes. Agarrou o cabo que lhe deitou Dantés e, com uma destreza que faria inveja a um homem do mar, subiu os degraus fixados no bojo do navio, enquanto o jovem, reassumindo o seu lugar de imediato, cedia a palavra àquele que anunciara sob o nome de Danglars e que, saindo do seu camarote, avançava efetivamente ao encontro do armador.
            O recém-chegado era um homem de vinte e cinco a vinte e seis anos, de expressão bastante sombria, obsequioso para com os superiores e insolente para com os subordinados. Por isso, além do cargo de guarda-livros, sempre motivo de repulsa para os marinheiros, era geralmente tão malvisto pela tripulação quanto, pelo contrário, Edmond Dantés era estimado.
            - Então, Sr. Morrel - disse Danglars –, já sabe a desgraça que nos aconteceu, não é verdade?
            - Sei, sei. Pobre comandante Leclére! Era um excelente e digno homem!
            - E um bom marinheiro, sobretudo, envelhecido entre o céu e o mar, como convém a um homem encarregado dos interesses de uma casa tão importante como a casa Morrel e Filhos - respondeu Danglars.
            - Mas - disse o armador, seguindo com a vista Dantés, que procurava o seu ancoradouro –, mas parece-me que não é necessário ser tão velho marinheiro como você diz, Danglars, para um homem saber do seu ofício. Aí está o nosso amigo Edmond que me parece saber do seu como um homem que não necessita de pedir conselhos a ninguém.
            - Sim - perguntou Danglars, deitando a Dantés  um olhar oblíquo onde brilhou um relâmpago de ódio –, sim, é novo e por isso julga-se capaz de tudo. Mal o comandante morreu assumiu o comando sem consultar ninguém e fez-nos perder dia e meio na ilha de Elba, em vez de rumar diretamente para Marselha.
            - Quanto a tomar o comando do navio - disse o  armador - era o seu dever como imediato; quanto a perder dia e meio na ilha de Elba fez mal; a menos que o navio tenha tido necessidade de reparar alguma avaria.
            - O navio estava tão bem como eu estou e como desejo que esteja o Sr. Morrel. Esse dia e meio foi perdido por puro capricho, pelo prazer de ir a terra e mais nada.
            - Dantés - disse o armador virando-se para o rapaz –, chegue aqui.
            - Perdão, senhor - respondeu Dantés –, irei dentro de um instante.
            Depois, dirigindo-se à tripulação:
            - Ancorar!
            A âncora caiu imediatamente e a corrente deslizou com ruído. Apesar da presença do piloto, Dantés manteve-se no seu posto até esta última manobra estar concluída. Depois:
            - Descer a flâmula a meio mastro, pôr a bandeira a meia haste e cruzar as vergas!
            - Como vê - disse Danglars –, já se julga comandante, como acabo de lhe dizer.
            - E o é de fato - perguntou o armador.
            - Sim, caso tenha o seu acordo e o do seu sócio, Sr. Morrel.
            - E porque lhe não daríamos o lugar? - replicou o armador. - É novo, bem sei, mas parece-me capaz de desempenhar perfeitamente o cargo. 
            Passou uma nuvem pela testa de Danglars.
            - Perdão, Sr. Morrel - disse Dantés, aproximando-se. - Agora que o navio já está ancorado, estou às suas ordens. Chamou-me, não é verdade?
            Danglars deu um passo atrás.
            - Queria perguntar-lhe por que motivo se detiveram na ilha de Elba - respondeu Morrel.
            -Ignoro-o, senhor. Cumpri apenas a última ordem do comandante Leclére, que ao morrer me entregou um pacote para o grande marechal Bertrand.
            - Viu-o, portanto, Edmond?
            - Quem?
            - O grande marechal.
            - Vi.
            Morrel olhou à sua volta e puxou Dantés à parte.
            - E como está o imperador? - perguntou vivamente.
            - Bem, tanto quanto me foi dado julgar pelos meus olhos.
            - Quer dizer que também viu o imperador?
            - Entrou em casa do marechal quando me encontrava lá.
            - E você falou-lhe?
            - Bom, quem me falou foi ele, senhor - respondeu Dantés, sorrindo.
            - E que lhe disse?
            - Interrogou-me acerca do navio, de quando partia para Marselha, da rota seguida e da carga que transportava. Creio que se estivesse vazio e fosse meu a sua intenção seria comprá-lo. Mas disse-lhe que não passava de um simples imediato e que o navio pertencia à casa Morrel e Filhos. “Ah! Ah!, conheço-a!”, exclamou. “Os Morrels são armadores de pais para filhos e houve um Morrel que serviu no mesmo regimento que eu quando estive de guarnição em Valence.”
            - Por Deus, é verdade! - exclamou o armador, contentíssimo. - Era Policar Morrel, meu tio, que foi capitão. Dantés, se disser ao meu tio que o imperador se lembrou dele, verá  como o velho resmungão desata a chorar. Pronto, pronto - prosseguiu o armador, batendo amistosamente no ombro do rapaz –, fez bem, Dantés, em seguir as instruções do comandante Leclére e escalar a ilha de Elba, embora se se soubesse que entregou um pacote, ao marechal e conversou com o imperador, isso o pudesse comprometer.
            - Em que quer o senhor que isso me comprometa - redargüiu Dantes - se nem sequer sei o que continha o pacote e o imperador só me interrogou acerca de coisas que perguntaria ao primeiro que lhe aparecesse? Mas, perdão -prosseguiu Dantés –, aí estão a sanidade e a alfândega.  Dá-me licença, não é verdade?
            - Claro, claro, meu caro Dantés.
            O jovem afastou-se e, como ele se afastasse, Danglars tomou a aproximar-se.
            - Então, parece que lhe deu boas razões acerca da sua escala em Porto Ferraio...
            - Excelentes, meu caro Sr. Danglars.
            - Ah, tanto melhor! - exclamou este. - Porque é sempre desagradável ver um companheiro não cumprir o seu dever.
            - Dantés cumpriu o seu - respondeu o armador - e não há nada a dizer.
            - A propósito do comandante Leclére, não lhe entregou uma carta dele?
            - Quem?
            - Dantés.
            - A mim, não! Quer dizer que havia uma carta?
            - Julgava que, além do pacote, o comandante Leclére lhe confiara uma carta.
            - De que pacote fala, Danglars?
            - Daquele que Dantés entregou ao passar por Porto Ferraio.
            - Como sabe que tinha de entregar um pacote em Porto Ferraio?
            Danglars corou.
            - Passava diante da porta do comandante, que estava entreaberta, e vi-o entregar o pacote e a carta a Dantés.
            - Não me disse nada a esse respeito - redargüiu o armador mas se tem essa carta entregar-me-á.
            Danglars refletiu um instante.
            - Nesse caso, Sr. Morrel, peço-lhe que não diga nada disto a Dantés. Provavelmente, enganei-me
            Neste momento o jovem regressava. Danglars afastou-se.
            - Então, meu caro Dantés, já está livre? - perguntou o armador.
            - Estou, sim, senhor.
            - Não demorou muito tempo.
            - Pois não. Entreguei aos funcionários da Alfândega a lista das nossas mercadorias, e quanto à sanidade mandara com o piloto um homem a quem entreguei os nossos documentos.
            - Então já não tem mais nada que fazer aqui?
            Dantés deitou um olhar rápido à sua volta.
            - Não, está tudo em ordem - respondeu.
            - Nesse caso, pode vir jantar conosco?
            - Desculpe-me, Sr. Morrel, desculpe-me, peço-lhe, mas devo a minha primeira visita a meu pai. Mas nem por isso fico menos reconhecido pela honra que me concede.
            - É justo, Dantés, é justo. Sei que é um bom filho.
            - E... sabe se ele está bem... o meu pai? - perguntou Dantés, com certa hesitação.
            - Creio que sim, meu caro Edmond, embora o não tenha visto.

            - Sim, gosta de estar fechado no seu quartinho.
            - O que prova, pelo menos, que não lhe faltou nada durante a sua ausência.
            Dantés sorriu.
            - Meu pai é orgulhoso, senhor. Mesmo que lhe faltasse tudo duvido que pedisse qualquer coisa a quem quer que fosse no mundo, exceto a Deus.
            - Bom, depois dessa primeira visita contamos consigo.
            - Desculpe-me novamente, Sr. Morrel, mas depois desta primeira visita tenho uma segunda que me não é menos grata ao coração.
            - Ah, é verdade, Dantés? Esquecia-me de que há nos Catalães alguém que o deve esperar com não menos impaciência do que o seu pai: a bela Mercedes. 
            Dantés sorriu.
            - Ah, ah! - exclamou o armador. - Agora já me não admira que ela tenha vindo três vezes pedir-me notícias do Pharaon. Apre, Edmond, escusa de se queixar, tem ali uma bonita amante!
            - Não é minha amante, senhor - observou gravemente o jovem marinheiro –, é minha noiva.
            - É tudo a mesma coisa - comentou o armador, rindo.
            - Mas não para nós, senhor - respondeu Dantés.
            - Pronto, pronto, meu caro Edmond - prosseguiu o armador - não o retenho mais. Cuidou tão bem dos meus negócios que merece que lhe dê todo o tempo de que precisar para tratar dos seus. Precisa de dinheiro?
            - Não, senhor. Tenho todos os meus vencimentos de viagem, isto é, perto de três meses de soldo.
            - Você é um rapaz ajuizado, Edmond.
            - Acrescente que tenho um pai pobre, Sr. Morrel.
            - Sim, sim, sei que é um bom filho. Pronto, vá ver o seu pai. Também tenho um filho e levaria muito a mal a quem, depois de uma viagem de três meses, o retivesse longe de mim.
            - Nesse caso, se me dá licença... - disse o jovem cumprimentando.
            - Dou, se não tem mais nada a dizer-me.
            - Não.
            - O comandante Leclére não lhe deu, ao morrer, uma carta para mim?
            - Foi-lhe impossível escrever, senhor. Mas isso recorda-me que desejo pedir-lhe quinze dias de licença.
            - Para se casar?
            - Primeiro; depois para ir a Paris.
            - Pois sim, pois sim, tome o tempo que quiser, Dantés. Levaremos bem seis semanas a descarregar o navio e não voltaremos ao mar antes de três meses... Mas daqui a três meses tem de estar de volta. O Pharaon - continuou o armador, batendo no ombro do jovem marinheiro - não poderia partir sem o seu comandante.
            - Sem o seu comandante! - exclamou Dantés, com os olhos brilhantes de alegria. - Veja bem o que diz, senhor, pois acaba de corresponder às mais secretas esperanças do meu coração. Será sua intenção nomear-me comandante do Pharaon?
            - Se fosse sozinho, lhe estenderia a mão, meu caro Dantés, e lhe diria: “Está  feito.” Mas tenho um sócio e você conhece o provérbio italiano: “Che a compàgno a padrône.” Mas pelo menos metade do caminho está andado, porque de dois votos já pode contar com um. Confie em mim para obter o outro.
            - Oh, Sr. Morrel! - exclamou o jovem marinheiro com as lágrimas nos olhos, pegando nas mãos do armador. -Agradeço-lhe, Sr. Morrel, em nome de meu pai e de Mercedes.
            - Está bem, está bem, Edmond. há um Deus no Céu para as pessoas dignas, que diabo! Vá ver o seu pai, vá ver Mercedes e procure-me depois.
            - Não quer que o leve a terra?
            - Não, obrigado. Ficarei a tratar das minhas contas com Danglars. Ficou satisfeito com ele durante a viagem? 
            - Conforme o sentido que dê à pergunta, senhor. Se é como bom camarada, não, pois parece-me que não gosta de mim desde o dia em que cometi a tolice, depois de uma pequena discussão que tivemos, de lhe propor que nos detivéssemos dez minutos na ilha de Monte-Cristo para resolvermos a questão, proposta que não andei bem em fazer-lhe e que ele teve razão em recusar. Se é a
respeito do guarda-livros que me faz a pergunta, creio não haver nada a dizer e que ter  motivos para se sentir satisfeito com a forma como ele se desempenha da sua tarefa.
            - Mas... Vejamos, Dantés, se fosse comandante do Pharaon conservaria Danglars com prazer? - perguntou o armador.
            - Comandante ou imediato, Sr. Morrel - respondeu Dantés terei sempre a maior consideração por aqueles que possuírem a confiança dos meus armadores.
            - Está bem, está bem, Dantés, vejo que é um excelente rapaz sob todos os aspectos. Não o rebento mais; vá, pois bem vejo que está sobre brasas.
            - Posso contar com a minha licença? - perguntou Dantés.
            - Pois sim.
            - Permite-me que me sirva do seu barco?
            - À vontade.
            - Adeus, Sr. Morrel, e mil vezes obrigado.
            - Adeus, meu caro Edmond, felicidades!
            O jovem marinheiro saltou para o barco, sentou-se à popa e mandou seguir para a Cannebiére. Dois marinheiros inclinaram-se imediatamente sobre os remos e a embarcação deslizou tão rapidamente quanto possível por entre os numerosos barcos que obstruíam a espécie de rua estreita que conduzia, através de duas filas de navios, da entrada do porto ao cais de Orleães.
            O armador seguiu-o com a vista sorrindo, até  Dantés alcançar a muralha, saltar para as lajes do cais e desaparecer imediatamente no meio da multidão variegada que das cinco da manhã às nove da noite enche a famosa Rua da Cannebiére, de que tanto se orgulham os fócios modernos, os quais dizem com a maior seriedade do mundo e com a pronúncia que dá tanto caráter às suas palavras: “Se Paris tivesse a Cannebiére seria uma pequena Marselha.”
            Ao virar-se, o armador viu atrás de si Danglars, que aparentemente parecia esperar as suas ordens, mas que na realidade seguia também com a vista o jovem marinheiro.
            Simplesmente, havia uma grande diferença na expressão do duplo olhar que seguia o mesmo homem.





Capítulo II

O pai e o filho

            Deixemos Danglars, a braços com o gênio do ódio, tentar soprar contra o companheiro alguma maligna suposição ao ouvido do armador e sigamos Dantés, que, depois de percorrer a Cannebiére em todo o seu comprimento,  entrou na Rua de Noailles, em seguida numa casita situada ao lado das Alamedas de Meilhan, subiu rapidamente os quatro andares de uma escada escura e, segurando-se ao corrimão com uma das mãos e comprimindo com a outra as pulsações do coração, parou diante de uma porta entreaberta que deixava ver um quarto até  ao fundo.
            Era naquele quarto que morava o pai de Dantés.
            A notícia da chegada do Pharaon ainda não chegara aos ouvidos do velhote, o qual, empoleirado numa cadeira, se entretinha a prender com mão trêmula algumas capuchinhas e clematites que trepavam ao longo do ripado da janela.
            De súbito, sentiu-se agarrado pela cintura e ouviu uma voz bem conhecida exclamar atrás dele:
            - Meu pai, meu bom pai!
            O velho soltou um grito e virou-se; depois, ao ver o filho, deixou-se transportar nos seus braços, muito trêmulo e pálido.
            - Que tens, pai? - perguntou o rapaz, inquieto. - Está doente?
            - Não, não, não, meu querido Edmond, meu filho, meu menino, não. Mas não te esperava, e a alegria, a surpresa de te ver assim de repente... Ah, meu Deus, parece-me que vou morrer!
            - Pronto, sossega, pai! Sou eu, sou mesmo eu! Sempre ouvi dizer que a alegria não faz mal e por isso entrei assim, sem preparação. Vamos, sorri-me em vez de me olhares dessa maneira, com os olhos esgazeados. Estou de volta e vamos ser felizes.
            - Ah, ainda bem, rapaz! - exclamou o velho. - Mas vamos ser felizes como? Não me deixas mais? Anda, conta-me em que consiste a tua felicidade!
            - Que o Senhor me perdoe - disse o rapaz - por me regozijar com uma felicidade conseguida à custa do luto de uma família! Mas Deus sabe que não desejei essa felicidade. Uma vez, porém, que aconteceu, não está mais na minha mão, não consigo afligir-me. O digno comandante Leclére morreu, meu pai, e é provável que graças à proteção do Sr. Morrel me dêem o seu lugar. Compreende, meu pai? Comandante aos vinte anos! Com cem luíses de soldo e parte dos lucros! Não é mais do que podia realmente esperar um pobre marinheiro como eu?
            - Sim, meu filho, sim, de fato é uma felicidade - disse o velhote.
            - Por isso, quero que com o primeiro dinheiro que ganhar tenha uma casinha com jardim para plantar as suas clematites, as suas capuchinhas e as suas madressilvas... Mas que tens, pai, dir-se-ia que te sentes mal...
            - Calma, calma! Isto não é nada.
            Mas as forças faltaram-lhe e o velho deixou-se cair para trás.
            - Então, então! - exclamou o rapaz. - Tome um copo de vinho, meu pai; vai ver que o reanima. Onde tem o vinho?
            - Não, obrigado, escusas de o procurar; não é preciso - redargüiu o velho, procurando reter o filho.
            - Não é preciso, não é preciso... Então, pai, diga-me onde está - e abriu dois ou três armários.
            - Inútil... - murmurou o velho - já não há vinho.
            - Como, já não há vinho?! - surpreendeu-se Dantés, empalidecendo por seu turno e olhando alternadamente para as faces cavadas e macilentas do  velho e para os armários vazios.
            - Como é que já não há vinho? Tiveste falta de dinheiro, meu pai?
            - Não tenho falta de nada desde que estás aqui - respondeu o velhote.
            - No entanto - balbuciou Dantés, limpando o suor que lhe escorria da testa –, no entanto, deixei-lhe duzentos francos quando parti há três meses.
            - Sim, sim, Edmond, é verdade. Mas quando partiste esqueceste-te de uma pequena dívida em casa do vizinho Caderousse. Ele lembrou-ma e disse-me que se a não pagasse por ti iria pedir o pagamento ao Sr. Morrel. Então, compreendes, com medo que isso te prejudicasse...
            - Que fez?
            - Que fiz? Paguei-a eu.
            - Mas eu devia cento e quarenta francos a Caderousse exclamou Dantés.
            - Pois devias - balbuciou o velhote.
            - E pagou-lhos dos duzentos francos que lhe deixei?
            O velhote acenou que sim com a cabeça.
            - De modo que viveu três meses com sessenta francos! - murmurou o rapaz.
            - Bem sabes que me contento com pouco - disse o velhote.
            - Oh, meu Deus, meu Deus, perdoai-me! - exclamou Edmond, caindo de joelhos diante do pobre homem.
            - Que fazes?
            - Oh, dilacerou-me o coração!
            - Mas agora estás aqui - observou o velhote, sorrindo. - Agora está  tudo esquecido porque tudo está bem.
            - Sim, estou aqui - disse o rapaz. - Estou aqui com um excelente futuro e algum dinheiro. Tome, pai. Tome, tome e mande buscar imediatamente qualquer coisa.
            E despejou em cima da mesa as algibeiras, que continham uma dúzia de moedas de ouro, cinco ou seis moedas de cinco francos e alguns trocos.
            O rosto do velho Dantés iluminou-se.
            - De quem é isso? - perguntou.
            - Mas... é meu!... É teu!... É nosso!... Tome, compre comida. Sejamos felizes. Amanhã haverá mais.
            - Devagar, devagar... - contrapós o velhote, sorrindo. - Com tua licença, me servirei moderadamente da tua bolsa. Se me vissem comprar demasiadas coisas ao mesmo tempo, julgariam que me vi obrigado a esperar o teu regresso para as adquirir.
            - Faça como quiser. Mas antes de mais nada toma uma criada, pai. Não quero que continues sozinho. Tenho café de contrabando e excelente tabaco num bauzinho no porão. Eu os darei amanhã. Mas caluda que vem aí alguém!
            - É Caderousse. Deve ter sabido da tua chegada e vem, sem dúvida, dar-te as boas-vindas.
            - Deus nos livre dos lábios que dizem uma coisa enquanto o coração sente outra - murmurou Edmond. - Mas não importa, é um vizinho que noutros tempos nos ajudou; que seja bem-vindo.
            Com efeito, quando Edmond acabava esta frase em voz baixa apareceu enquadrada na porta do patamar a cabeça negra e barbuda de Caderousse. Era um homem de vinte e cinco a vinte seis anos. Trazia na mão um bocado de  tecido que, na sua qualidade de alfaiate, se preparava para transformar numa banda de casaca.
            - Com que então de volta, hem, Edmond - disse com um aceno marselhês dos mais pronunciados e um amplo sorriso que lhe descobriu os dentes brancos como marfim.
            - É como vê, vizinho Caderousse, e pronto a ser-lhe agradável no que quer que seja - respondeu Dantés, escondendo mal a sua frieza debaixo desta oferta de serviços.
            - Obrigado, obrigado. Felizmente, não preciso de nada, e às vezes até são os outros que precisam de mim...
            Dantés esboçou um gesto.
            - Não digo isto por ti, rapaz - prosseguiu o outro. - Emprestei-te dinheiro, me pagaste. São coisas que se trazem entre bons vizinhos e estamos quites.
            - Nunca estamos quites para com aqueles que nos obsequiaram - declarou Dantés. - Porque quando já lhos não devemos dinheiro devemos-lhe reconhecimento.
            - Que adianta falar disso? O que lá vai, lá vai! Falemos antes do teu feliz regresso, rapaz. Passava por acaso pelo porto para ir comprar fazenda castanha quando encontrei o amigo Danglars.
            - Você em Marselha?
            - Claro, como vê - respondeu-me.
            - Julgava-te em Esmirna.
            - Acabo de chegar de lá.
            - E Edmond, onde está ?
            - Em casa do pai, sem dúvida - respondeu Danglars. - E foi então que resolvi vir - continuou Caderousse - para ter o prazer de apertar a mão a um amigo!
            - Este bom Caderousse gosta tanto de nós - observou o velhote.
            - Claro que gosto de vocês e também que os estimo, atendendo a que as pessoas honestas são raras! Mas parece que enriqueceste, rapaz... - continuou o alfaiate, deitando um olhar de esguelha ao punhado de ouro e prata que Dantés pusera em cima da mesa.
            O jovem notou o relâmpago de cupidez que iluminou os olhos negros do vizinho.
            – Por Deus - disse negligentemente –, esse dinheiro não é meu. Manifestava ao pai o receio de que lhe tivesse faltado alguma coisa na minha ausência e, para me tranqüilizar, ele despejou a bolsa em cima da mesa. Vamos, pai - continuou Dantés –, guarde esse dinheiro no seu mealheiro. A não ser que o vizinho Caderousse tenha, por sua vez, necessidade dele, pois nesse caso está  às suas ordens.
            - Não - rapaz - disse Caderousse –, não tenho necessidade de nada. Graças a Deus, o Estado cuida dos seus homens. Guarda o teu dinheiro, guarda; nunca é demais. O que me não impede de te agradecer a tua oferta como se a tivesse aceitado.
            - Era de boa vontade - declarou Dantés.
            - Acredito. Você está com excelentes relações com o Sr. Morrel, hein?... Espertalhão!... 
            - O Sr. Morrel foi sempre muito bondoso para comigo - respondeu Dantés.
            - Nesse caso, não devia recusar o convite para jantar.
            - Como recusar o seu convite? - interveio o velho Dantés. - Ele o convidou para jantar?
            - Convidou, meu pai - respondeu Edmond, sorrindo do espanto que causava ao pai as grandes honras de que era alvo.
            - E por que recusou, filho? - perguntou o velhote.
            - Para chegar mais cedo junto de si meu pai - respondeu o rapaz. - Tinha pressa de vê-lo.
            - O bom do Sr. Morrel deve ter ficado contrariado com isso - insinuou  Caderousse. - E quando se visa ser comandante é um erro contrariar o  armador...
            - Expliquei-lhe o motivo da minha recusa e ele compreendeu-o, espero - redargüiu Dantés.
            - Convém não esquecer que para se ser comandante é necessário adular um bocadinho os patrões...
            - Espero ser comandante sem isso - respondeu Dantés.
            - Tanto melhor, tanto melhor! Será um prazer para todos os velhos amigos e sei de alguém lá em baixo, atrás da Cidadela de S. Nicolau, que não ficará nada aborrecido com isso...
            - Mercedes? - perguntou o velhote.
            - Sim, meu pai - respondeu Dantés. - E com sua licença, agora que já o vi, agora que sei que está de saúde e que tem tudo quanto precisa, permita-me que vá visitar os Catalães.
            - Vai, meu filho - disse o velho Dantés –, e que Deus te abençoe na tua mulher como me abençoou no meu filho.
            - Sua mulher? - interveio Caderousse. - Como vai depressa, Tio Dantés! Ainda não o é, parece-me!
            - Não. Mas é muito provável que não tarde a sê-lo -respondeu Edmond.
            - Não importa, não importa - observou Caderousse. - Fazes bem em despachar-te, rapaz.
            - Porquê?
            - Porque Mercedes é uma moça bonita e às moças bonitas não faltam apaixonados. Ela, sobretudo, tem-nos às dúzias.
            - Deveras? - disse Edmond, com um sorriso em que se notavam uns
ligeiros laivos de inquietação.
            - Claro! - confirmou Caderousse. - E bons partidos, até . Mas, compreendes, você será comandante e nessas condições quem é que te recusaria?...
            - O que quer dizer - comentou - Dantés com um sorriso que disfarçava mal a sua inquietação - que se não fosse comandante...
            - Eh, eh! - gargalhou Caderousse.
            - Vamos, vamos - atalhou o rapaz –, tenho melhor opiniãodo que você acerca das mulheres em geral e de Mercedes em particular e estou convencido de que, seja ou não comandante, ela me permanecerá fiel.
            - Tanto melhor, tanto melhor! - exclamou Caderousse. - É sempre bom um homem ter fé quando se vai casar. Mas não importa! Acredita no que  te digo, rapaz: não percas tempo a ir anunciar-lhe a tua chegada e a dar-lhe conta das tuas esperanças.
            - Estou indo - disse Edmond.
            Beijou o pai, cumprimentou Caderousse com um aceno e saiu.
            Caderousse ficou mais um instante. Depois, despediu-se do velho Dantés, desceu por seu turno e foi ter com Danglars, que o esperava à esquina da Rua Senac.
            - Então, você o viu? - perguntou Danglars.
            - Acabo de deixá-lo - respondeu Caderousse.
            - Falou da sua esperança de ser comandante?
            - Falou e como se já o fosse.
            - Pois que tenha paciência - redargüiu Danglars. - Parece-me que vai um bocadinho depressa demais...
            - Demônio, mas se a coisa lhe foi prometida pelo Sr. Morrel!...
            - De maneira que está contentíssimo?
            - Será melhor dizer que está insolente. Me ofereceu os seus serviços  como se fosse uma grande personagem e ofereceu-se até  para me emprestar dinheiro como se fosse um banqueiro.
            - E você recusou?
            - Evidentemente, embora pudesse muito bem aceitar, atendendo a que fui eu quem lhe pôs na mão as primeiras moedas de prata em que tocou. Mas agora o Sr. Dantés já não precisará de ninguém, vai ser comandante.
            - Ora, ainda o não é! - atalhou Danglars.
            - Palavra que seria bem feito que o não fosse - declarou Caderousse. - De contrário, ninguém poderá com a sua vida.
            - Pois se nós quisermos - insinuou Danglars - ficará o que é e talvez até  se torne menos do que é...
            - O que você disse?
            - Nada, falo comigo mesmo. Continua apaixonado pela bela catalã?
            - Está louco por ela. Foi vê-la. Mas ou me engano muito ou espera-o um desgosto desse lado.
            - Explique-se.
            - Para quê?
            - É mais importante do que julga. Não gostas do Dantés, não é verdade?
            - Não gosto dos arrogantes.
            - Então, desembucha, diga-me o que sabe acerca da catalã.
            - Não sei nada de muito positivo; apenas tenho visto coisas que me  levam a crer, como te disse, que o futuro comandante terá um desgosto nas imediações do Caminho das Vieilles-infirmeries.
            - O que você viu? Vamos, diga.
            - Bom, vi que todas as vezes que Mercedes vem à cidade a acompanha um rapaz de olhos negros, corado, muito moreno, muito ardente, com todo o ar de catalão e a quem ela trata por “meu primo”.
            - Sim?... E acha que esse primo a corteja?
            - Suponho que sim. Que diabo pode fazer um rapaz de vinte e um anos a uma bonita moça de dezessete?
            - E você diz que Dantés foi aos Catalães?
            - Saiu antes de mim. 
            - Se fôssemos para o mesmo lado, pararíamos na Réserve e enquanto
bebêssemos um copo de vinho de La Malgue esperaríamos notícias...
            - E quem as daria?
            - Ficaríamos no caminho e veríamos no rosto de Dantés o que se tivesse passado...         
            - Vamos - disse Caderousse. - Mas é você que paga...
            - Claro - respondeu Danglars.
            E ambos se dirigiram em passo rápido para o local indicado. Chegando lá, mandaram vir uma garrafa e dois copos.
            O Tio Pamphile vira passar Dantés ainda não havia dez minutos.
            Certos de que Dantés se encontrava nos Catalães, sentaram-se debaixo da folhagem nascente dos plátanos e dos sicômoros, nos ramos dos quais um alegre bando de pássaros cantava um dos primeiros dias bonitos de Primavera.



Capítulo III

Os Catalães


            A cem passos do local em que os dois amigos, de olhos postos no horizonte e ouvido à escuta, saboreavam o vinho espumante de La Malgue, erguia-se atrás de uma colina escalvada e roída pelo sol e pelo mistral a aldeia dos Catalães.
            Um dia, uma colônia misteriosa partiu de Espanha e desembarcou na língua de terra onde ainda hoje se encontra. Vinha ninguém sabia donde e falava uma língua desconhecida. Um dos chefes, que entendia o provençal, pediu à comuna de Marselha que lhes dessem aquele promontório nu e árido em que, como os marinheiros antigos, acabavam de varar os seus barcos. O pedido foi satisfeito e três meses mais tarde erguia-se uma aldeiazinha à volta dos doze ou quinze barcos trazidos por aqueles ciganos do mar.
            Essa aldeia construída de forma estranha e pitoresca, meio moura, meio espanhola, é aquela que vemos hoje ser habitada por descendentes desses homens, que falam a língua dos pais. Há três ou quatro séculos que se  conservam fiéis a esse promontoriozinho, sobre o qual desceram como um bando de aves marinhas, sem se misturarem em nada com a população marselhesa, casando entre si e conservando os costumes e o traje dos seus avós, tal como conservaram a sua linguagem.
            Queiram os nossos leitores seguir-nos através da única rua da aldeiazinha e entrar conosco numa destas casas a que o sol deu por fora essa bela cor de folha morta particular aos monumentos da região e por dentro uma camada de têmpera, essa tinta branca que constitui o único ornamento das pousadas espanholas.
            Uma bonita moça de cabelo negro como o azeviche e olhos aveludados como os das gazelas encontrava-se encostada, de pé, a um tabique e esfregava entre os dedos afilados e de um desenho antigo uma urze inocente cujas flores arrancava e cujos restos juncavam já no chão. Além disso, os seus braços nus  até  ao cotovelo - os seus braços morenos, mas que pareciam modelados pelos da Vênus de Arles - fremiam numa espécie de impaciência febril e ela batia no chão com o pé flexível e arqueado de uma maneira que se entrevia a forma pura, orgulhosa e ousada da perna, metida numa meia de algodão encarnado com baguettes cinzentas e azuis.
            A três passos dela, sentado numa cadeira que balançava num movimento brusco, apoiando o cotovelo num velho móvel carunchoso, um rapaz de vinte e dois anos olhava-a com um ar em que se misturavam a inquietação e o despeito. Os seus olhos interrogavam, mas o olhar firme da moça dominava o seu interlocutor.
            - Vejamos, Mercedes - dizia o rapaz –, a Páscoa vem aí e é o momento pensar no casamento. Responde-me!
            - Já te respondi cem vezes, Fernand, e na verdade é preciso que seja muito inimigo de você mesmo para continuar a perguntar-me!
            - Pois repete-o mais uma vez, suplico-te, repete-o novamente para que o acredite. Diga-me pela centésima vez que recusa o meu amor, que a tua mãe aprovava; deixe-me entender que te é indiferente a minha felicidade, que a minha vida e a minha morte não significam nada para ti. Ah, meu Deus, meu Deus! Ter sonhado dez anos em ser teu marido, Mercedes, e perder essa esperança que era o único objetivo da minha vida!
            - Pelo menos não fui eu, Fernand, que alguma vez alimentei essa esperança - respondeu Mercedes. - Não tem a censurar-me uma única coqueteria para contigo. Sempre te disse: “Gosto de ti como um irmão, mas não exija de mim outra coisa que não seja esta amizade fraterna, pois o meu  coração pertence a outro.” Não foi o que sempre te disse, Fernand?
            - Foi, bem sei, Mercedes - respondeu o rapaz. - Sim, tiveste para comigo o mérito cruel da franqueza. Mas esquece que entre os Catalães constitui uma lei sagrada casarem entre si?
            - Você se engana Fernand, não se trata de uma lei, trata-se apenas de um hábito. E, acredita no que te digo, não invoques esse hábito a seu favor. Foi chamado às fileiras, Fernand. A liberdade que te concedem não passa de mera tolerância. De um momento para o outro pode ser chamado. Uma vez soldado, que faria de mim, isto é, de uma pobre órfã, triste, sem fortuna, possuindo como única riqueza uma cabana quase em ruínas, onde pendem algumas redes velhas, herança miserável deixada por meu pai à minha mãe e pela minha mãe a mim? Faz um ano que ela morreu e desde então lembre-se, Fernand, vivo quase da caridade pública! Às vezes finge que te sou útil, mas para ter o direito de dividir a pesca comigo. E eu aceito, Fernand, porque você é filho de um irmão do meu pai, porque fomos criados juntos e sobretudo porque te desgostaria muito se recusasse. Mas sinto bem que o peixe que vou vender e com que obtenho o dinheiro que me permite comprar o cânhamo que fio, sinto bem, Fernand, que é uma esmola.
            - E que importa, Mercedes, se, por mais pobre e isolada que seja, me convém assim, mais do que a filha do mais orgulhoso armador ou do mais rico banqueiro de Marselha? De que precisamos nós? De uma mulher honesta e de uma boa dona de casa. Onde encontraria alguém melhor do que você nesses dois aspectos? 
            - Fernand - respondeu Mercedes abanando a cabeça –, uma mulher
torna-se má dona de casa e não pode comprometer-se a ser honesta quando ama outro homem em vez do seu marido. Contente-se com a minha amizade porque, repito-te, é tudo o que posso oferecer, e eu só ofereço aquilo que estou certa de poder dar.
            - Compreendo - disse Fernand. - Suporta com paciência a tua miséria, mas tem medo da minha. Pois bem, Mercedes, amado por você tentarei a fortuna; você me dará sorte e enriquecerei. Posso tirar melhor partido da minha profissão de pescador; posso empregar-me numa casa comercial; eu posso próprio tornar-me comerciante!
            - Não pode tentar nenhuma dessas coisas, Fernand. Você é um soldado
e se ainda está nos Catalães é porque não há guerra. Continua a ser pescador; não se entregue a sonhos que te fariam parecer a realidade ainda mais terrível, e contente-se com a minha amizade, pois não posso dar outra coisa.
            - Tem razão, Mercedes, serei marinheiro. Terei, em vez do traje dos nossos pais, que despreza, um chapéu de oleado, uma blusa às riscas e uma jaqueta azul com ancoras nos botões. Não é assim que devo me vestir para te agradar?
            - Que quer dizer? - perguntou Mercedes, deitando-lhe um olhar imperioso. - Que quer dizer? Não te compreendo.
            - Quero dizer, Mercedes, que você só é tão dura e cruel para mim porque esperas alguém que se veste assim. Mas esse que espera talvez seja inconstante, e se o não é, o mar o será ele.
            - Fernand, julgava-te bom, mas me enganei! - gritou Mercedes. - Fernand, só um mau coração chamaria em auxílio do seu ciúme as cóleras de Deus! Sim, não o escondo mais, espero e amo aquele que você diz, e se ele não voltar, em vez de o acusar da inconstância a que te refere, direi que morreu amando-me.
            O jovem catalão fez um gesto de raiva.
            - Compreendo, Fernand odeia-o porque não te amo e está disposto a cruzar a tua navalha catalã com o seu punhal! Mas onde te levará isso? A perder a minha amizade se sair vencido e a ver a minha amizade transformar-se em ódio se saír vencedor. Acredita no que te digo: procurar brigar com um
homem é uma péssima maneira de agradar à mulher que ama esse homem. Não, Fernand, não ceda assim aos seus maus pensamentos. Se não pode me ter como mulher, contente-se com ter-me por amiga e irmã. E depois - acrescentou com os olhos nublados e cheios de lágrimas –, espera, espera, Fernand. Como disseste há pouco, o mar é pérfido, e já lá vão quatro meses que ele partiu; e nesses quatro meses contei muitas tempestades!
            Fernand permaneceu impassível. Não procurou enxugar as lágrimas que rolavam pelas faces de Mercedes. E no entanto daria um copo do seu sangue por cada uma dessas lágrimas. Mas essas lágrimas corriam por outro.
            Levantou-se, deu uma volta na cabana e tornou a parar diante de
Mercedes, de olhos sombrios e punhos fechados.
            - Vejamos, Mercedes - disse por fim –, responde-me mais uma vez:
isso está decidido?
            - Amo Edmond Dantés - respondeu friamente a jovem - e nenhum outro a não ser Edmond será meu marido. 
            - E o amará sempre?
            - Enquanto viver.
            Fernand baixou a cabeça como um homem desanimado e soltou um
suspiro que mais parecia um gemido. Depois, de repente, levantou a cabeça e perguntou, com os dentes apertados e as narinas frementes:
            - E se morreu?
            - Se morreu, morrerei também.
            - E se te esqueceu?
            - Mercedes! - gritou uma voz alegre fora de casa. - Mercedes!
            - Ah! - exclamou a jovem, corando de alegria e estremecendo de amor. - Bem vês que não me esqueceu, pois está aqui!
            E correu para a porta, que abriu gritando:
            - Aqui, Edmond, estou aqui!
            Fernand, pálido e fremente, recuou como um viajante à vista de uma serpente e foi de encontro à cadeira, na qual caiu sentado.
            Edmond e Mercedes estavam nos braços um do outro. O sol ardente
de Marselha, que penetrava através da abertura da porta, inundava-os de uma torrente de luz. De início não viram nada do que os rodeava; uma felicidade imensa isolava-os do mundo e só dirigiam um ao outro frases entrecortadas, impulsos de uma alegria tão viva que chegavam a parecer expressões de dor. Mas de súbito Edmond descobriu a silhueta escura de Fernand, que se
recortava na sombra, pálida e ameaçadora. Num gesto de que ele próprio não tinha consciência, o jovem catalão pousava a mão na faca que trazia à cintura.
            - Ah, perdão! - exclamou Dantés, franzindo por sua vez o sobrolho. - Não tinha notado que éramos três.
            Depois, virando-se para Mercedes, perguntou:
            - Quem é este senhor?
            - Este senhor será o teu melhor amigo, Dantés, porque é meu amigo, meu primo, meu irmão. É Fernand, isto é, o homem que depois de ti, Edmond, mais amo no mundo. Não o reconhece?
            - Ah, com certeza! - respondeu Edmond.
            E sem largar Mercedes, cuja mão apertava numa das suas, estendeu
num gesto de cordialidade a outra ao catalão.
            Mas, em vez de corresponder a esse gesto amistoso, Fernand ficou
mudo e imóvel como uma estátua.
            Então, Edmond passeou o seu olhar investigador de Mercedes, comovida e trêmula, para Fernand, sombrio e ameaçador. Esse simples olhar revelou-lhe tudo. A cólera subiu-lhe à cabeça.
            - Não teria vindo com tanta pressa a tua casa, Mercedes, se soubesse que encontrava nela um inimigo.
            - Um inimigo! - exclamou Mercedes, dirigindo um olhar irado ao primo. - Um inimigo em minha casa, você diz, Edmond? Se acreditasse nisso, te daria o braço e iria contigo para Marselha, deixaria esta casa para nunca mais voltar.
            Os olhos de Fernand relampejaram.
            - E se te acontecesse alguma desgraça, meu Edmond - continuou a
jovem, com a mesma fleuma implacável que provava a Fernand que lera até  ao  mais fundo do seu sinistro pensamento-, se te acontecesse alguma desgraça subiria ao cabo de Morgion e me atiraria de cabeça nos rochedos.
            Fernand empalideceu horrivelmente.
            - Mas está enganado, Edmond - prosseguiu –, não tem nenhum inimigo aqui. Só Fernand, o meu irmão, que vai apertar a sua mão como a um amigo  dedicado.
            Proferidas estas palavras, a jovem fixou o seu olhar imperioso no catalão que, como que fascinado por esse olhar, se aproximou lentamente de Edmond e lhe estendeu a mão.
            O seu ódio, semelhante a uma vaga impotente, embora furiosa, quebrava-se contra o ascendente que aquela mulher exercia sobre ele.
            Mas assim que tocou na mão de Edmond, que sentiu que fizera tudo o que podia fazer, correu para fora de casa.
            - Oh! - gritava correndo como um insensato e metendo os dedos nos
cabelos. - Oh, quem me livrasse deste homem! Que infelicidade a minha! Que infelicidade a minha!
            - Eh, catalão! Eh, Fernand! Aonde vai correndo assim? -perguntou uma voz.
            O rapaz parou de repente, olhou à sua volta e viu Caderousse sentado a uma mesa com Danglars, debaixo de uma latada de folhagem.
            - Eh! - insistiu Caderousse. - Por que não se aproxima?  Está assim com tanta pressa que nem tem tempo de cumprimentar os amigos?
            - Sobretudo quando têm ainda uma garrafa quase cheia diante de si - acrescentou Danglars.
            Fernand olhou os dois homens com ar aparvalhado e não disse nada.
            - Parece muito excitado - observou Danglars, tocando com o joelho em Caderousse. - Não nos teremos enganado e, ao contrário do que prevíamos, ter  sido Dantés; quem levou a melhor?
            - Demônio, temos de tirar isso a limpo! - disse Caderousse.
            E virando-se para o rapaz:
            - Então, catalão, decide ou não?
            Fernand enxugou o suor que lhe escorria da testa e entrou lentamente debaixo da latada, cuja sombra pareceu restituir-lhe um pouco de calma aos sentidos e a frescura um pouco de bem-estar ao corpo exausto.
            - Bom dia - cumprimentou. - Chamaram-me, não chamaram?
            E mais caiu do que se sentou numa das cadeiras que rodeavam a mesa.
            - Chamei porque corria como um louco e porque receei que fosse se atirar ao mar - redargüiu Caderousse, rindo. - Que diabo, os amigos não são só para oferecer um copo de vinho, são também para nos impedir de beber três ou quatro litros de água!
            Fernand soltou um gemido que mais pareceu um soluço e deixou cair a cabeça nos braços pousados em cruz em cima da mesa.
            - Se quer que te diga, Fernand - prosseguiu Caderousse, encetando a conversa com a brutalidade grosseira da gente do povo, a quem a curiosidade faz esquecer toda a diplomacia –, tem o ar de um amante derrotado!
            E sublinhou o gracejo com uma grande gargalhada.
            - Ora - interveio Danglars –, um rapaz dessa pinta não nasceu para ser infeliz no amor. Está brincando, Caderousse.
            - Estou? - perguntou este. - Pois escuta como ele suspira... Então, então, Fernand, levanta o nariz e responde-nos. Não é amável não responder aos  amigos que nos perguntam como estamos de saúde.
            - A minha saúde vai bem - disse Fernand, crispando os punhos, mas
sem levantar a cabeça.
            - Ah! Está vendo, Danglars? - disse Caderousse, piscando o olho ao amigo. - Fernand, que vê aqui e é um bom e digno catalão, um dos melhores pescadores de Marselha, está apaixonado por uma linda moça chamada Mercedes. Mas, infelizmente, parece que a linda moça está, por sua vez, apaixonada pelo imediato do Pharaon. E como o pharaon entrou hoje mesmo no porto... compreende?
            - Não, não compreendo-respondeu Danglars.
            - O pobre Fernand deve ter sido posto com dono - concluiu Caderousse.
            - E depois? - interveio Fernand, levantando a cabeça e fitando Caderousse como um homem que procura alguém sobre quem descarregar a sua cólera. - Mercedes não depende de ninguém? É absolutamente livre para amar quem quiser.
            - Ah, se encara o caso assim isso é outra coisa! - perguntou Caderousse. - Eo o julgava um catalão; e tinham me dito que os Catalães não eram homens que se deixassem suplantar por um rival. Disseram-me até que sobretudo você, Fernand, era terrível nas suas vinganças.
            Fernand sorriu palidamente.
            - Um apaixonado nunca é terrível - observou.
            - Pobre rapaz! - disse Danglars, fingindo lamentar o jovem do mais fundo do coração. - Que quer, não esperava ver regressar assim Dantés, de repente. Talvez o julgasse morto, infiel, quem sabe! Essas coisas são tanto mais dolorosas quanto mais de surpresa nos acontecem.
            - Em todo o caso - insinuou Caderousse, que bebia enquanto falava e em quem o famoso vinho de La Malgue começava a produzir efeito –, em todo o caso, dou-lhes a minha palavra de que Fernand não é o único a quem a feliz chegada de Dantés contraria. Não é verdade, Danglars?
            - Claro que é verdade, e quase me atreveria a dizer que isso lhe dará azar...
            - Mas não importa - prosseguiu Caderousse, deitando um copo de vinho a Fernand e enchendo pela oitava ou décima vez o seu próprio copo, enquanto Danglars mal tocara no seu. - Não importa porque entretanto ele casa com Mercedes, a bela Mercedes. Pelo menos foi para isso que voltou.
            Enquanto Caderousse falava, Danglars envolvia num olhar penetrante o jovem Fernand, no coração do qual as palavras do alfaiate calavam como chumbo derretido.
            - Quando é o casamento? - perguntou.
            - Oh, ainda não está marcado! - murmurou Fernand.
            - Não está, mas estará - salientou Caderousse –, tão certo como Dantés será o comandante do pharaon não é verdade, Danglars?
            Danglars acusou a estocada inesperada e virou-se para Caderousse,
cujo rosto observou, para ver se o golpe fora premeditado. Mas só viu inveja naquelo rosto já quase estupidificada pela embriaguez. 
            - Pois bem - disse, enchendo os copos –, bebamos ao comandante
Edmond Dantés, marido da bela catalã!
            Caderousse levou o copo à boca com mão pouco firme e despejou-o
de um gole. Fernand pegou no seu e partiu-o no chão.
            -Eh eh, eh! - gargalhou Caderousse. - Mas quem vem ali, no alto da
colina, na direção dos Catalães? Olha, Fernand, que tem melhor vista do que eu. Creio que começo a ver tudo turvo e como sabe o vinho é traiçoeiro... Parecem dois namorados que caminham ao lado um do outro, de mãos dadas. Deus me perdoe, não desconfiam que os vemos e beijam-se!
            Danglars não perdia nenhum sinal de angústia de Fernand, cujo rosto se descompunha a olhos vistos.
            - Conhece-os, Sr. Fernand? - Perguntou.
            - Conheço - respondeu este, com voz surda. - São o Sr. Edmond e
Mademoiselle Mercedes.
            - Ora vejam! - exclamou Caderousse. - E eu que não os reconhecia.. Olá, Dantés! Olá, linda menina! Venham até  aqui um bocadinho e digam-nos quando é o casamento, pois o Sr. Fernand é tão teimoso que não quer dizer.
            - Faça o favor de se calar? - interveio Danglars, simulando conter
Caderousse, que com a tenacidade dos bêbados se inclinava para fora da latada. - Deixe os apaixonados amarem-se tranquilamente. Põe os olhos aqui no Sr. Fernand e segue-lhe o exemplo. É um homem razoável.
            Talvez Fernand, de cabeça perdida, aguilhoado por Danglars como o touro pelos bandarilheiros, fosse finalmente explodir, tanto mais que já se levantara e parecia dobrar-se sobre si para saltar sobre o rival; mas Mercedes, risonha e decidida, levantou a bela cabeça e deixou ver o seu olhar puro e resplandecente.
            Então Fernand lembrou-se da ameaça que ela fizera, de morrer se
Edmond morresse, e deixou-se cair, desanimado, no seu lugar.
            Danglars olhou sucessivamente para os dois homens: um embrutecido
pela embriaguez, o outro dominado pelo amor.
            - Não conseguirei nada destes idiotas - murmurou - e não é muito seguro para mim estar aqui entre um bêbado e um valentão. Eis um invejoso que se embebeda com vinho, quando deveria inebriar-se com fel, e um imbecil a quem acabam de roubar a amante diante do nariz e que se limita a choramingar e a lamentar-se como um garoto. E no entanto possui olhos chamejantes como esses espanhóis, esses sicilianos e esses calabreses, que se vingam tão bem, e punhos capazes de esmagar a cabeça de um boi tão seguramente como a maça de um magarefe. Decididamente, o destino de Edmond está traçado: casará com aquela linda moça, será comandante e rirá  de nós. A menos que... - um sorriso lívido desenhou-se nos lábios de Danglars - a menos que eu interfira nele - acrescentou.
            - Olá! - continuava a gritar Caderousse, semilevantado e com os punhos na mesa. - Olá, Edmond! Não vê os amigos ou já se tornou tão orgulhoso que não lhes falas?
            - Não, meu caro Caderousse - respondeu Dantés. - Não me tornei orgulhoso, mas sinto-me feliz e a felicidade cega, creio, ainda mais do que o orgulho. 
            - Ainda bem! Aí está uma boa explicação - admitiu Caderousse.
            - Eh, bom dia, Sra Dantés!
            Mercedes cumprimentou gravemente.
            - Esse não é ainda o meu nome - perguntou - e na minha terra isso da   azar, dizem. Não se deve chamar as moças pelo nome do noivo antes do noivo ser seu marido. Trate-me apenas por Mercedes, peço-lhe.
            - Temos de perdoar essas coisas ao nosso bom vizinho Caderousse
- interveio Dantés. - Engana-se tão pouco!...
            - Quer dizer que o casamento será em breve, Sr. Dantés? - perguntou
Danglars, cumprimentando os dois jovens.
            - Será o mais depressa possível, Sr. Danglars. Hoje se realizarão os esponsais em casa do meu pai e amanhã ou depois de amanhã, o mais tardar, o jantar de noivado, aqui, na Réserve. Espero que os amigos não faltem e escusado será dizer que está convidado, Sr. Danglars. E você também,  Caderousse.
            - E Fernand? - perguntou Caderousse, rindo com voz pastosa. - E
Fernand também?
            - O irmão da minha mulher é meu irmão - declarou Edmond - e tanto
Mercedes como eu o veríamos com profundo pesar afastar-se de nós em semelhante momento.
            Fernand abriu a boca para responder, mas a voz morreu-lhe na garganta e não conseguiu articular uma única palavra.
            - Hoje os esponsais, amanhã ou depois de amanhã o noivado... Demônio, está com muita pressa, comandante!
            - Danglars - perguntou Edmond, sorrindo –, digo-lhe o mesmo que Mercedes disse há pouco a Caderousse: não me trate pelo posto que ainda não me pertence, pois me daria azar.
            - Perdão - respondeu Danglars –, queria dizer simplesmente que parecia com muita pressa. E, que diabo, temos tempo: o pharaon não se fará ao mar antes de três meses.
            - Tem-se sempre pressa de ser feliz, Sr. Danglars, porque quando se sofreu durante muito tempo tem-se muita dificuldade em acreditar na felicidade. Mas não é apenas o egoísmo que me impele - também tenho de ir a Paris.
            - A Paris?! É a primeira vez que vai até lá, Dantés?
            - É.
            - O que vai fazer por lá?
            - Nada meu, apenas uma última comissão do nosso pobre comandante
Leclére. Como deve compreender, Danglars, trata-se de um encargo sagrado. Mas esteja tranquilo, não me demorarei mais do que o tempo de ir e vir.
            - Sim, sim, compreendo - disse em voz alta Danglars.
            E depois, baixinho:
            - Vai a Paris para entregar, sem dúvida, ao seu destinatário a carta que o grande marechal lhe deu. Por Deus, essa carta dá-me uma idéia, uma excelente idéia! Ah!, Dantés, meu amigo, ainda não figura no registo do pharaon sob o número 1.
            Depois virando-se para Edmond, que já se afastava, gritou-lhe:
            - Boa viagem! 
            - Obrigado - respondeu Edmond, virando a cabeça e acompanhando este movimento com um gesto amistoso. Em seguida os dois namorados  continuaram o seu caminho, calmos e alegres como dois eleitos que sobem ao Céu.


Capítulo IV

A Conspiração


            Danglars seguiu Edmond e Mercedes com a vista até  os dois namorados desaparecerem numa das esquinas do Forte de S. Nicolau. Depois virou-se e olhou para Fernand, que se deixara cair, pálido e fremente, na sua cadeira, enquanto Caderousse balbuciava a letra de uma canção báquica.
            - Ora aí está, meu caro senhor - disse Danglars a Fernand um casamento que me não parece fazer a felicidade de todos...
            - A mim desespera-me - confessou Fernand.
            - Quer dizer que ama Mercedes?
            - Adoro-a!
            - Há muito tempo?
            - Sempre a amei, desde que nos conhecemos.
            - E está para aí a arrancar os cabelos em vez de procurar remédio para o caso! Que diabo, não julgava que as pessoas da sua nação procedessem assim!
            - Que quer que faça? - perguntou Fernand.
            - Sei lá! Porventura o caso me diz respeito? Não sou eu, parece-me que estou apaixonado por Mademoiselle Mercedes, mas sim o senhor. Procurai, diz o Evangelho, e encontrareis.
            - Já encontrei.
            - O quê?
            - Desejaria apunhalar o “homem”, mas a mulher disse-me que se acontecesse alguma coisa ao noivo se mataria.
            - Ora, ora! Essas coisas se dizem, mas não se fazem!
            - Não conhece Mercedes, senhor: desde o momento que ameaçou,
cumpriria a sua ameaça.
            - Imbecil! - murmurou Danglars. - Quero lá saber que se mate ou não, contanto que Dantés não seja comandante.
            - E antes de Mercedes morrer - prosseguiu Fernand em tom de firme
decisão –, morreria eu.
            - O que é o amor! - exclamou Caderousse em voz cada vez mais avinhada. - Se isso não é amor, já não sei quem sou!
            - Vejamos - disse Danglars –, o senhor parece-me um rapaz simpático e diabos me levem se não gostaria de o ajudar; mas...
            - Sim - disse Caderousse –, vejamos...
            - Meu caro - prosseguiu Danglars –, está três quartos bêbado; acaba a garrafa e ficará por completo. Beba e não se meta no que fazemos, porque para o fazer é preciso ter a cabeça bem no seu lugar.
            - Eu bêbado? - protestou Caderousse. - Ora essa! Fica sabendo que seria capaz de beber mais quatro das tuas garrafas, que não são maiores do que frascos de água-de-colônia! Tio Pamphile, vinho.
            E juntando o gesto à palavra, Caderousse bateu com o copo na mesa.
            - Dizia então, senhor?... - disse Fernand, esperando com avidez o seguimento da frase interrompida.
            - Que dizia eu? Não me lembro. Este bêbado do Caderousse me fez perder o fio dos meus pensamentos.
            - Sou tão bêbado como você. Tanto pior para aqueles que têm medo do vinho. É porque têm algum mau pensamento que receiam que o vinho lhes descubra.
            E Caderousse pôs-se a cantar os dois últimos versos de uma canção
popular na época:
            Todos os maus bebem água,
            Como bem o provou o dilúvio.
            - Dizia, senhor - insistiu Fernand –, que gostaria de me ajudar. Mas acrescentou...
            - Sim, mas acrescentei... para ajudá-lo‚ preciso que Dantés não case com aquela que o senhor ama, e parece-me que o casamento pode muito bem não se realizar sem que Dantés morra.
            - Só a morte os separará - disse Fernand.
            - Meu amigo, você raciocina como se não tivesse nada na cabeça - atalhou Caderousse –, e aqui Danglars, que é um finório, um manhoso, um espertalhão, vai-lhe provar que está enganado. Prove, Danglars. Respondo por você. Diga-lhe que não é necessário que Dantés morra; aliás, seria uma pena que Dantés morresse. É bom rapaz e gosto dele, à saúde de Dantés!
            Fernand levantou-se com impaciência.
            - Deixe-o - interveio Danglars, retendo o rapaz. - De resto por mais  bêbado que esteja não faz grande diferença. A ausência separa tão bem como a morte... Suponha que existia entre Edmond e Mercedes os muros de uma prisão; estariam tão separados como se houvesse entre eles a pedra de um túmulo.
            - Pois sim, mas sai-se da prisão - observou Caderousse, que se agarrava à conversa com os restos da sua inteligência. E quando aquele que sai da  prisão se chama Edmond Dantés, vinga-se.
            - Que importa! - murmurou Fernand.
            - De resto - prosseguiu Caderousse –, sob que acusação se meteria Dantés na prisão? Não roubou, nem matou, nem assassinou.
            - Cale-se - ordenou Danglars.
            - Não me quero calar - perguntou Caderousse. - Quero que me digam sob que acusação meteriam Dantés na prisão. Gosto de Dantés. À sua saúde, Dantés!
            E despejou novo copo de vinho.
            Danglars verificou pelos olhos inexpressivos do alfaiate os progressos da embriaguez e prosseguiu, virando-se para Fernand:
            - Então, já viu que não há necessidade de matá-lo? 
            - De fato não há se, como o senhor dizia há pouco, houver maneira de conseguir que Dantés seja preso. O senhor sabe qual é essa maneira?
            - Procurando bem, será possível encontrá-la - respondeu Danglars. - Mas - continuou - por que diabo hei de me meter nisso? Porventura é alguma coisa comigo?
            - Não sei se é alguma coisa consigo ou não - replicou Fernand, agarrando-o por um braço –, mas o que sei é que o senhor tem qualquer motivo especial de ódio contra Dantés. Quem odeia não se engana a respeito dos sentimentos dos outros.
            - Eu motivos de ódio contra Dantés? Palavra que não tenho nenhum. Eu o vi infeliz, meu amigo, e a sua infelicidade interessou-me, mais nada. Mas unia vez que julga que procedo em meu próprio benefício, passe muito bem, meu caro amigo, desenrasque-se como puder.
            E Danglars simulou levantar-se por sua vez.
            - Não vá embora, espere! - pediu Fernand, retendo-o. - No fim de contas, pouco me importa que queira ou não queira mal a Dantés; quero-lhe eu, confesso-o bem alto. Descubra a maneira e eu executo-a, contando que não haja morte do homem, pois Mercedes jurou que se mataria se alguém matasse Dantés.
            Caderousse, que deixara cair a cabeça em cima da mesa, levantou-a e, olhando Fernand e Danglars com os olhos mortiços e embrutecidos, observou:
            - Matar Dantés? Quem fala aqui em matar Dantés? Não consinto que o matem. E meu amigo, ainda esta manhã se ofereceu para compartilhar o seu dinheiro comigo, como compartilhei o meu com ele. Não consinto que matem Dantés!
            - E quem fala em matá-lo, imbecil? - perguntou Danglars. - Trata-se  apenas de uma brincadeira. Beba à sua saúde - acrescentou, enchendo o copo de Caderousse - e deixe-nos tranquilos.
            - Sim, sim, à saúde de Dantés! - exclamou Caderousse, despejando o copo. - à sua saúde!... à sua saúde!...
            - Mas o meio... o meio? - insistiu Fernand.
            - Ainda o não encontrou?
            - Não, o senhor é que se encarregou disso.
            - É verdade - concordou Danglars. - Os Franceses têm esta vantagem sobre os espanhóis: enquanto os espanhóis ruminam, os Franceses inventam.
            - Então invente - perguntou Fernand, com impaciência.
            - Criado, uma pena, tinta e papel! - pediu Danglars.
            - Uma pena, tinta e papel... - murmurou Fernand.
            - Sim, sou guarda-livros: a pena, a tinta e o papel são as minhas
ferramentas, e sem as minhas ferramentas não sei fazer nada.
            - Uma pena, tinta e papel! - gritou por sua vez Fernand.
            - Têm o que desejam em cima daquela mesa - disse o criado, indicando os objetos pedidos.
            - Então nos dê.
            O criado pegou o papel, a tinta e a pena e colocou-os em cima da mesa da latada.
            - Quando penso - comentou Caderousse, deixando cair a mão em cima
do papel - que há aqui com que matar um homem mais seguramente do que  se o esperassem no recanto de um bosque para o assassinar!... Sempre tive mais medo de uma pena, dum tinteiro e de uma folha de papel do que de uma  espada ou de uma pistola.
            - O velhaco não está ainda tão bêbado como parece - observou
Danglars. - Dê-lhe de beber, Fernand.
            Fernand voltou a encher o copo de Caderousse e este, como bom bebedor que era, levantou a mão de cima do papel e levou-a ao copo.
            O catalão seguiu-lhe o gesto até  Caderousse, quase vencido por aquele novo ataque, pousar, ou antes deixar cair, o copo em cima da mesa.
            - Então? - perguntou o catalão, vendo que o resto da razão de Caderousse começava a desaparecer depois do último copo de vinho.
            - Então, dizia eu - prosseguiu Danglars - que se, por exemplo, depois de uma viagem como a que acaba de fazer Dantés, e durante a qual escalou Nápoles e a ilha de Elba, alguém o denunciasse ao procurador régio como agente bonapartista...
            - Denuncio-o eu! - disse vivamente o rapaz.
            - Pois sim, mas nesse caso obrigam-no a assinar a denúncia e acareiam-no com o denunciado. E claro que lhe fornecerei o necessário para sustentar a sua acusação, o problema não é esse, mas Dantés não ficará  eternamente na prisão, mais dia menos dia sairá, e no dia em que sair... pobre daquele que o  fez entrar!
            - Oh, não peço outra coisa senão que me procure para lutarmos! - declarou Fernand.
            - Claro! E Mercedes? Mercedes que o odiará se você tiver a infelicidade de arranhar sequer a pele do seu bem-amado Edmond?
            - Tem razão - admitiu Fernand.
            - Não, não - prosseguiu Danglars. - Se está decidido a fazer semelhante coisa o melhor é pegar tranquilamente, como eu faço, nesta pena, molhá-la na tinta e escrever com a mão esquerda, para que a letra não seja conhecida, uma denunciazinha assim concebida...
            E Danglars, juntando o exemplo à palavra, escreveu com a mão esquerda, com letra inclinada para trás que não tinha qualquer analogia com a sua caligrafia habitual, as seguintes linhas, que passou a Fernand e que Fernand leu a meia voz:
            " O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris.
            Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon."
            - Assim, sim - prosseguiu Danglars. - Assim a sua vingança teria sentido, porque de modo algum recairia sobre si e o caso seguiria o seu curso  sozinho. Bastaria dobrar esta carta, como eu faço, e escrever por fora: “Ao Sr. Procurador Régio.” Estaria tudo resolvido.
            E Danglars escreveu o endereço, gracejando.
            - Sim, estaria tudo resolvido! - gritou Caderousse, que num derradeiro esforço de inteligência seguira a leitura e compreendera instintivamente a desgraça que semelhante denúncia poderia ocasionar. Sim estaria tudo resolvido; simplesmente, seria uma infâmia!
            E estendeu o braço para pegar a carta.
            - Por isso - disse Danglars, colocando-a fora do alcance da mão de Caderousse –, por isso, o que digo e o que faço não passa de uma brincadeira, e seria o primeiro a lamentar se acontecesse alguma coisa a esse bom Dantés! Assim, olhe...
            Pegou a carta, amarrotou-a nas mãos e atirou-a para um canto da
latada.
            - Agora estamos de acordo - disse Caderousse. - Dantés é meu amigo e não quero que lhe façam mal.
            - E quem diaho pensa fazer-lhe mal? Nem eu nem Fernand! - perguntou Danglars, levantando-se e olhando para o rapaz, que ficara sentado, mas cujos olhos devoravam de soslaio o papel denunciador caído a um canto.
            - Nesse caso - acrescentou Caderousse –, que nos dêem vinho. Quero beber à saúde de Edmond e da bela Mercedes.
            - Já bebeu demais, bêbado - volveu-lhe Danglars –, e se continuar a beber assim terá de dormir aqui, pois não se aguentará nas pernas.
            - Quem, eu? - replicou Caderousse, levantando-se com a fatuidade dos bêbedos. - Eu não me aguentar nas pernas! Aposto que sou capaz de subir ao campanário de Accoules e sem cambalear!
            - Está bem, aposto, mas amanhã? - acedeu Danglars. - Hoje são horas de voltar para casa; dê-me o braço e vamos.
            - Vamos - concordou Caderousse –, mas não preciso do seu braço para nada. - Vem, Fernand? Vem conosco até  Marselha?
            - Não, regresso aos Catalães - respondeu Fernand.
            - Faz mal. Vem conosco até  Marselha, anda.
            - Não tenho nada que fazer em Marselha e nem quero ir até lá.
            - Como você diz isso! Não quer, hein! Pobre rapaz? Pronto, faça o que quiseres! Liberdade para toda a gente!  Anda, Danglars, e deixemos o cavalheiro regressar aos Catalães...
            Danglars aproveitou aquele momento de boa vontade de Caderousse
para se arrastar na direção de Marselha. Simplesmente, para proporcionar a Fernand um caminho mais curto e mais fácil, em vez de voltar pelo Cais da Rive-Neuve, regressou pela Porta de Saint-Victor. Caderousse segui-o, cambaleando, agarrado ao seu braço.
            Depois de dar uma vintena de passos, Danglars virou-se e viu Fernand precipitar-se para o papel, que meteu na algibeira.  Em seguida, correu imediatamente para fora da latada e dirigiu-se para o lado do Pillon.
            - Aonde é que ele vai? - perguntou Caderousse. - Mentiu, disse que ia para os Catalães e vai para a cidade! Ei, Fernand, está enganado, meu rapaz!
            - Você é que não está vendo bem - observou Danglars. - Vai direitinho pelo caminho das Vieilles-infirmeries. 
            - É verdade - admitiu Caderousse. - Pois olha que juraria que o vi virar à direita. Decididamente, o vinho é um traidor.
            - Vamos, vamos - murmurou Danglars. - Agora creio que as coisas estão bem encaminhadas e que basta deixá-las seguir sozinhas.

Capítulo V

O banquete de noivado


            No dia seguinte o tempo estava bom. O Sol levantou-se puro e brilhante e os seus primeiros raios, de um vermelho-púrpura, recamaram de rubis as extremidades espumantes das vagas.
            O banquete fora preparado no primeiro andar daquela mesma Réserve
cuja latada já conhecemos. Era uma grande sala iluminada por cinco ou seis janelas, por cima de cada uma das quais (explique o fenômeno quem puder!) se encontrava escrito o nome de uma das grandes cidades de França.
            Uma balaustrada de madeira, como o resto da construção, seguia ao  longo das janelas.
            Embora o banquete estivesse marcado para o meio-dia, desde as onze horas da manhã que a balaustrada regurgitava de passeantes impacientes. Eram marinheiros privilegiados do pharaon e alguns soldados amigos de Dantés. Para honrar os noivos, todos tinham envergado os seus mais belos trajes.
            Entre os futuros convivas circulava o rumor de que os armadores do Pharoan honrariam com a sua presença o banquete de noivado do seu imediato; mas tratava-se da sua parte de tão grande honra concedida a Dantés que ninguém ousava ainda acreditar nisso.
            No entanto, quando chegou com Caderousse, Danglars confirmou a
notícia. Estivera de manhã com o próprio Sr. Morrel e o Sr. Morrel dissera-lhe que viria almoçar na Réserve.
            Com efeito, pouco depois deles o Sr. Morrel entrou por sua vez na sala e foi saudado pelos marinheiros do Pharaon com um “hurra!” unanime de aplauso. A presença do armador era para eles a confirmação do rumor que corria já de que Dantés seria nomeado comandante. E como Dantés era muito estimado a bordo, aquela boa gente agradecia assim ao armador de que uma vez por acaso a sua escolha estivesse de acordo com os desejos deles. Assim que o
Sr. Morrel entrou, Danglars e Caderousse foram unanimemente encarregados de prevenir o noivo. Era essa a sua missão: preveni-lo da chegada da importante personagem cujo aparecimento produziria tão viva sensação e dizer-lhe que se apressasse.
            Danglars e Caderousse saíram correndo, mas ainda mal tinham dado cem passos quando, próximo do armazém da pôlvora, depararam com um grupinho que se aproximava.
            O grupinho era constituído por quatro jovens amigas de Mercedes e catalãs como ela, e acompanhava a noiva, a quem Edmond dava o braço, junto da noiva vinha o Tio Dantés e atrás Fernand com o seu sorriso maligno. 
            Mas nem Mercedes; nem Edmond reparavam no sorriso maligno de Fernand. As pobres crianças estavam tão felizes que só se viam um ao outro e o céu belo e puro que os abençoava.
            Danglars e Caderousse desempenharam-se da sua missão de embaixadores. Em seguida, depois de trocarem um aperto de mão muito enérgico e amistoso com Edmond, retiraram-se, Danglars para tomar lugar junto de Fernand e Caderousse para se colocar ao lado do Tio Dantés, centro da atenção geral.
            O velhote envergava uma bela casaca de tafetá canelado, adornada com grandes botões de aço facetados. As pernas, magras mas nervosas, ostentavam magníficas meias de algodão mosqueado, que cheiravam à léguas a contrabando inglês. Do chapéu de três bicos pendia-lhe um laço de fitas brancas e azuis.
            Finalmente, apoiava-se numa bengala torcida e retorcida em cima com o pedum antigo. Dir-se-ia um desses janotas que se pavoneavam em 1796 nos jardins pouco antes reabertos do Luxemburgo e das Tulherias.
            Como já dissemos, Caderousse esgueirara-se para junto dele. Caderousse a quem a esperança de uma boa refeição acabara de reconciliar com os Dantés; Caderousse a quem restava na memória uma vaga lembrança do que se passara na véspera, tal como ao acordarmos de manhã e encontramos no espírito da sombra do sonho que tivemos durante o sono.
            Aproximando-se de Fernand, Danglars lançara ao amante rejeitado um olhar profundo. Fernand que caminhava atrás do futuro casal completamente esquecido por Mercedes, que no egoísmo juvenil e encantador do amor só tinha olhos para o seu Edmond; Fernand que estava pálido, mas que de vez em quando corava em acessos súbitos, que desapareciam e davam lugar a uma palidez crescente.
            A intervalos olhava para os lados de Marselha e então apoderava-se-lhe dos membros um tremor nervoso e involuntário. Fernand parecia esperar ou pelo menos prever qualquer grande acontecimento.
            Dantés vestia com simplicidade. Como pertencia à marinha mercante, o seu traje era meio militar, meio civil e dava-lhe um aspecto, para mais realçado pela alegria e pela beleza da noiva, deveras atraente.
            Mercedes estava linda, parecia uma dessas gregas de Chipre ou de
Keos, de olhos de ébano e lábios de coral. Caminhava com esse passo livre e franco com que caminham as Arlesianas e as Andaluzas. Uma moça citadina talvez procurasse esconder a sua alegria debaixo de um véu ou pelo menos do veludo das pálpebras, mas Mercedes sorria e olhava todos os que a rodeavam e o seu sorriso e o seu olhar diziam tão francamente quanto o poderiam dizer estas palavras: “Se são meus amigos, regozijem-se comigo, porque na verdade sou feliz!”
            Assim que os noivos e aqueles que os acompanhavam chegaram à vista da Réserve, o Sr. Morrel desceu e foi por sua vez ao encontro deles, seguido dos marinheiros e dos soldados com que ficara e aos quais renovara a promessa já feita a Dantés de que este sucederia ao comandante Leclére. Ao vê-lo chegar, Edmond largou o braço da noiva e passou-o para o do Sr. Morrel. O armador e a jovem deram então o exemplo e subiram à frente a escada de madeira que levava à sala onde o banquete estava servido e que rangeu durante cinco minutos sob os passos pesados dos convivas. 
            - Meu pai - disse Mercedes, parando a meio da mesa e dirigindo-se
ao velho Dantés –, fique à minha direita, peço-lhe. Quanto à minha esquerda reservo-a para aquele que me serviu de irmão - declarou com uma doçura que penetrou profundamente no coração de Fernand como um punhalada.
            Os seus lábios empalideceram e sob o tom bistrado do seu rosto desagradável foi possível ver mais uma vez o sangue desaparecer pouco a pouco para afluir ao coração.
            Entretanto, Dantés executara a mesma manobra: à sua direita colocara o Sr. Morrel: à sua esquerda, Danglars. Depois, com a mão, fizera sinal a todos para se sentarem onde quisessem.
            Pouco depois corriam à volta da mesa os salsichões de Arles, de carne bem curada e aroma acentuado: as lagostas de carapaça fascinante; as palurdas de concha rosada; os ouriços-do-mar, que parecem castanhas no seu invôlucro espinhoso; as amêijoas, que têm a pretensão de substituir com vantagem, na opiniãodos gastrônomos do Meio-Dia, as ostras do Norte; enfim, todos esses acepipes delicados que as vagas lançam nas margens arenosas e
que os pescadores reconhecidos designam pelo nome genérico de mariscos.
            - Que estranho silêncio! - observou o velhote, saboreando um copo de vinho dourado como o topázio que o Tio Pamphile em pessoa acabava de colocar diante de Mercedes. - Não se diria que não estão aqui trinta pessoas que só desejam rir...
            - Eh, um marido nem sempre está alegre! - exclamou Caderousse.
            - A verdade - confessou Dantés - é que me sinto neste momento demasiado feliz para estar alegre. Se é isto que quer dizer, vizinho, tem razão. A alegria causa às vezes um efeito estranho, oprime como a dor.
            Danglars observou Fernand, cuja natureza impressionável absorvia e refletia todas as emoções.
            - Então, ainda receia alguma coisa? - perguntou a Dantés. - Parece-me, pelo contrário, que tudo corre de acordo com os seus desejos!
            - É precisamente isso que me assusta - respondeu Dantés. - Parece-me que o homem não nasceu para ser tão facilmente feliz! A felicidade é como esses palácios das ilhas encantadas que têm as portas guardadas por dragões. É necessário lutar para conquistá-la e eu, para ser franco, não sei por que mereci a felicidade de ser marido de Mercedes.
            - O marido, o marido... - interveio Caderousse, rindo - ainda não, meu comandante. Experimente se fazer de marido e verá como será recebido!
            Mercedes corou.
            Fernand agitava-se na cadeira, estremecia ao mais pequeno ruído e de vez em quando limpava as grossas bagas de suor que lhe perlavam a testa  como as primeiras gotas de uma chuvada tempestuosa.
            - Palavra, vizinho Caderousse - perguntou Dantés –, que não vale a pena desmentir-me por tão pouco. Mercedes ainda não é minha mulher, é certo... - puxou do relógio - mas o será  dentro de hora e meia!
            Todos soltaram um grito de surpresa, com excepção do Tio Dantés, que exibiu os dentes, ainda bonitos, numa grande gargalhada. Mercedes sorriu e não corou. Fernand apertou convulsivamente o cabo da sua faca.
            - Dentro de uma hora? - sobressaltou-se Danglars, empalidecendo por seu turno. - Como assim? 
            - Sim, meus amigos - respondeu Dantés. - Graças ao crédito do Sr.
Morrel, o homem, depois do meu pai, a quem mais devo no mundo, todas as dificuldades estão aplanadas. Compramos os banhos e o maire de Marselha espera-nos às duas e meia na Câmara Municipal. Ora como acaba de dar uma hora e um quarto, não creio enganar-me muito dizendo que dentro de uma hora e trinta minutos Mercedes se chamará Sra Dantés.
            Fernand fechou os olhos. Uma nuvem de fogo queimou-lhe as pálpebras. Encostou-se à mesa para não desfalecer e, apesar de todos os seus esforços, não pôde conter um gemido abafado que se perdeu no meio do ruído dos risos e dos parabéns dos convivas.
            - Isto é que é desembaraço, hem? - comentou o Tio Dantés. - É o que se chama não perder tempo, não acham? Chegado ontem de manhã, casado hoje às três horas! Não me venham dizer que os marinheiros não são despachados!
            - Mas as outras formalidades? - objetou timidamente Danglars. - O  contrato, as escrituras?...
            - O contrato? - perguntou Dantés, rindo. - O contrato está pronto. Mercedes não tem nada e eu também não! Casamo-nos em regime de comunhão e pronto! Foi coisa que não levou muito tempo a escrever nem custar  muito cara.
            Esta saída suscitou uma nova explosão de alegria e de bravos.
            - Portanto, o que tomamos por um banquete de noivado é muito simplesmente um banquete de casamento - observou Danglars.
            - Não - contrapôs Dantés. - Não perderão nada com isto, estejam
tranqüilos. Amanhã de manhã parto para Paris. Quatro dias para ir, quatro dias para voltar, um dia para me desempenhar conscienciosamente da missão de que estou encarregado e em 1 de Março estarei de volta; em 2 de Março, portanto, o verdadeiro banquete de casamento.
            A perspectiva de novo festim redobrou a hilaridade ao ponto de o Tio Dantés, que no início do banquete se queixava do silêncio reinante, fazer agora, no meio da conversação geral, vãos esforços para formular o seu voto de prosperidade a favor dos futuros esposos.
            Dantés adivinhou o pensamento do pai e correspondeu-lhe com um sorriso cheio de amor. Mercedes começou a ver as horas no relógio de cuco da sala e fez um sinalzinho a Edmond.
            Havia à roda da mesa a hilaridade ruidosa e a liberdade individual que acompanham, entre as pessoas de condição inferior, o fim dos repastos. Aqueles que não gostavam do seu lugar tinham-se levantado da mesa e procurado outros vizinhos. Todos começavam a falar ao mesmo tempo e ninguém se dava ao trabalho de responder ao que o seu interlocutor lhe dizia, mas apenas aos seus próprios pensamentos.
            A palidez de Fernand quase passara para as faces de Danglars. Quanto ao próprio Fernand, já não vivia e parecia um condenado às penas eternas no meio de um mar de fogo. Fora um dos primeiros a levantar-se e passeava de um lado para o outro da sala procurando isolar o ouvido do barulho das canções e do choque dos copos.
            Caderousse aproximou-se dele no momento em que Danglars, que
parecia fugir, acabava de se lhe juntar a um canto da  sala. 
            - Na verdade - disse Caderousse, a quem a modéstia de Dantés e sobretudo o bom vinho do Tio Pamphile tinham levado todos os restos de rancor que a felicidade inesperada de Dantés lhe fizera germinar na alma –, na verdade, Dantés é um excelente rapaz. E quando o vejo sentado ao pé da noiva digo para comigo que não estaria certo pregar-lhe a partida que vocês tramavam ontem.
            - Por isso, bem viste que a coisa não teve seguimento - perguntou Danglars. - O pobre Sr. Fernand estava tão transtornado que a princípio me fez pena; mas uma vez que tomou a sua decisão, a ponto de apadrinhar o seu rival, não tenho mais nada a dizer.
            Caderousse olhou para Fernand, que estava lívido.
            - O sacrifício é tanto maior - continuou Danglars - quanto mais bonita é, na realidade, a noiva. Sempre me saiu um felizardo o espertalhão do meu futuro comandante! Gostaria de me chamar Dantés apenas durante doze horas.
            - Vamos? - perguntou a voz meiga de Mercedes. - São duas horas e esperam-nos dentro de um quarto de hora.
            - Sim, sim, vamos! - disse Dantés, levantando-se vivamente.
            - Vamos! - repetiram em coro todos os convivas.
            No mesmo instante, Danglars, que não perdia de vista Fernand, sentado no bordo da janela, viu-o abrir muito os olhos, levantar-se como que convulsivamente e voltar a cair sentado no parapeito da janela. Quase  imediatamente soou na escada um ruído abafado: o eco de passos pesados e um rumor de vozes confuso, misturados com o tinir de armas, sobrepuseram-se às exclamações dos convivas, apesar de ruidosas, e atraíram a atenção de todos, que se remeteram a um silêncio inquieto.
            O barulho aproximou-se. Soaram três pancadas na porta. Cada um olhou para o vizinho com ar atônito.
            - Em nome da lei! - gritou uma voz vibrante à qual nenhuma outra respondeu.
            A porta abriu-se imediatamente e um comissário, com a sua faixa à cintura, entrou na sala seguido de quatro soldados armados, comandados por um cabo.
            A inquietação cedeu o lugar ao terror.
            - Que se passa? - perguntou o armador indo ao encontro do comissário, que conhecia. - Trata-se com certeza de algum equívoco, senhor.
            - Se houver equívoco, Sr. Morrel - respondeu o comissário creia que será  prontamente reparado. Entretanto, sou portador de um mandado de captura. E embora seja com pesar que me desempenho da minha missão, nem por isso tenho menos de desempenhá-la. Qual dos senhores é Edmond Dantés?
            Todos os olhares se viraram para o jovem que, muito impressionado, mas sem perder a dignidade, deu um passo em frente e disse:
            - Sou eu, senhor.
            - Edmond Dantés - prosseguiu o comissário –, em nome da lei, está preso!
            - Prende-me? - perguntou Edmond, com uma ligeira palidez. - Mas prende-me porquê?
            - Ignoro, senhor, mas saberá-  no seu primeiro interrogatório.
            O Sr. Morrel compreendeu que não havia nada a fazer contra a inflexibilidade da situação. Um comissário com a sua faixa à cintura já não é um homem, é a estátua da lei, fria, surda e muda.
            O velho, pelo contrário, precipitou-se para o oficial; há coisas que o coração de um pai ou de uma mãe nunca compreendem. Pediu e suplicou, mas as suas lágrimas e as suas súplicas não podiam nada. Contudo, o seu desespero era tão grande que o comissário se comoveu.
            - Senhor - disse-lhe –, sossegue. Talvez o seu filho se tenha esquecido de cumprir alguma formalidade aduaneira ou sanitária e muito provavelmente, depois de prestar todas as informações que pretendam dele, será  posto em liberdade.
            - Oh!... Que significa isto? - perguntou, franzindo o sobrolho,
Caderousse a Danglars, que simulava surpresa.
            - Sei lá! - respondeu Danglars. - Estou como você: vejo o que se passa, não compreendo nada e fico confuso.
            Caderousse procurou com a vista Fernand: desaparecera.
            Toda a cena da véspera se lhe apresentou então no espírito com terrível lucidez.
            Poderia se dizer que a catástrofe acabava de afastar o véu que a
embriaguez da véspera colocara entre ele e a sua memória.
            - Oh, oh!... - exclamou com voz rouca. - Será isto o resultado da brincadeira de que falavam ontem, Danglars? Nesse caso, ai de quem a pôs em prática, porque é muito triste.
            - Não diga isso! - protestou Danglars. Sabe perfeitamente que rasguei a carta.
            - Não a rasgou - corrigiu Caderousse. Limitou-se a atirá-la a um canto.
            - Cale-se, você não viu nada, estava bêbado.
            - Onde está Fernand? - perguntou Caderousse.
            - Sei lá! - respondeu Danglars. - Provavelmente foi cuidar da sua vida.
Mas em vez de perdermos tempo com isso vamos ajudar esses pobres
infelizes.
            Com efeito, durante esta conversa, Dantés apertara, sorrindo, a mão a todos os seus amigos e constituíra-se prisioneiro dizendo:
            - Fiquem tranqüilos, o erro será corrigido e provavelmente nem sequer entrarei na cadeia.
            - Com certeza, estou convencido disso! - disse Danglars, que naquele 
momento se aproximava, como dissemos, do grupo principal.
            Dantés desceu a escada, precedido pelo comissário de polícia e rodeado pelos soldados. Uma carruagem com a portinhola aberta esperava à porta. Subiu para ela, dois soldados e o comissário subiram depois dele, a portinhola fechou-se e a carruagem tomou o caminho de Marselha.
            - Adeus, Dantés! Adeus, Edmond! - gritou Mercedes debruçando-se da balaustrada.
            O prisioneiro ouviu este último grito, saído como um soluço do coração dilacerado da noiva. Colocou a cabeça fora da portinhola e gritou, antes de desaparecer numa das esquinas do Forte de S. Nicolau:
            - Até à vista, Mercedes! 
            - Esperem aqui por mim - disse o armador. - Pegarei a primeira carruagem que encontrar, correrei a Marselha e voltarei com notícias.
            - Vá! - gritaram todas as vozes. - Vá e volte depressa! Depois das duas saídas houve um momento de terrível torpor entre todos os que ficaram.
            O velho e Mercedes permaneceram durante algum tempo absortos, cada um na sua própria dor. Mas por fim os seus olhos reencontraram se, ambos se reconheceram como duas vítimas atingidas pelo mesmo golpe e lançaram-se nos braços um do outro.
            Entretanto, Fernand regressou, encheu um copo de água, bebeu-o e foi sentar-se numa cadeira.
            O acaso fez com que, ao sair dos braços do velhote, Mercedes se
deixasse cair numa cadeira vizinha.
            Num momento instintivo, Fernand recuou a dele.
            - Foi ele - disse a Danglars o alfaiate Caderousse, que não perdera de vista o catalão.
            - Não creio - respondeu Danglars. - Seria demasiado estúpido. Em todo o caso, que o golpe recaia sobre quem o desferiu.
            - Se esquece daquele que o aconselhou - perguntou Caderousse.
            - Diabos te levem, como se um homem fosse responsável por tudo o que diz no ar!
            - E é, quando o que diz no ar fere alguém.
            Entretanto, os grupos comentavam a prisão em todos os tons.
            - E você, Danglars, que pensa disto? - perguntou uma voz.
            - Por mim - respondeu Danglars - creio que terá  trazido alguns fardos de mercadorias proibidas.
            - Mas se fosse isso você deveria saber, Danglars, visto ser o guarda-livros.           
            - Sim, é verdade, mas o guarda-livros só conhece as mercadorias que lhe declaram. Sei que carregamos algodão e mais nada; que o carregamento foi embarcado em Alexandria pelo Sr. Pastret e em Esmirna pelo Sr. Pascal; não me perguntem mais nada.
            - Oh, agora me lembro! - murmurou o pobre pai, agarrando-se a esse destroço. - Agora me lembro ter-me dito ontem que trazia para mim uma caixa de café e uma caixa de tabaco.
            - Vê? - disse Danglars. - Deve ser isso. Na nossa ausência a alfândega terá feito uma visita a bordo do Pharaon e descoberto a caixa.
            Mas Mercedes não acreditava em nada daquilo. Se contera até ali, a sua dor desfez-se de súbito em soluços.
            - Então, então, é preciso ter esperança! - disse sem saber muito bem o que dizia o Tio Dantés.
            - Sim, esperança - repetiu Danglars.
            - Esperança - tentou murmurar Fernand.
            Mas a palavra sufocava-o. Agitou os lábios e não conseguiu que nenhum som lhe saísse da boca.
            - Senhores! - gritou um dos convivas que ficara de atalaia na balaustrada. - Senhores, uma carruagem! Ah, é o Sr. Morrel! Coragem, coragem! Traz-nos com certeza boas notícias. 
            Mercedes e o velho pai correram ao encontro do armador, que encontraram à porta. O Sr. Morrel estava muito pálido.
            - Então? - perguntaram ao mesmo tempo.
            - Então, meus amigos - respondeu o armador abanando a cabeça - o caso é mais grave do que nós pensávamos.
            - Mas, senhor, ele é inocente! - gritou Mercedes.
            - Acredito - respondeu o Sr. Morrel. - Mas acusam-no...
            - De quê? - perguntou o velho Dantés.
            - De ser agente bonapartista.
            Aqueles dos meus leitores que viveram na época em que se passa esta história se recordarão que terrível acusação era então aquela que o Sr. Morrel acabava de formular. Mercedes soltou um grito; o velho deixou-se cair numa cadeira.
            - Ah! - murmurou Caderousse. - Vocês enganaram-me, Danglars, e pregaram a partida a Dantés. Mas não quero ver morrer de dor esse velho e essa garota e vou dizer-lhes tudo.
            - Cale-se, desgraçado - ordenou-lhe Danglars, agarrando a mão de
Caderousse –, ou não respondo por mim. Quem te disse que Dantés não é realmente culpado? O navio escalou a ilha de Elba e ele desembarcou e ficou um dia inteiro em Porto Ferraio. Se lhe encontrassem alguma carta comprometedora, aqueles que o tivessem defendido passariam por seus cúmplices.
            Com o instinto apurado do egoísmo, Caderousse compreendeu a
perfeita solidez deste raciocínio. Fitou Danglars com olhos embrutecidos pelo medo e pela dor e por um passo que dera em frente deu dois atrás.
            - Esperemos então - murmurou.
            - Sim, esperemos - disse Danglars. - Se estiver inocente, o colocarão em liberdade; se for culpado, é inútil nos comprometermos por um conspirador.
            - Então saiamos porque não posso ficar mais tempo aqui.
            - Sim, vamos - concordou Danglars, encantado por encontrar um companheiro de retirada. - Vamos e eles que se arranjem como puderem.
            Saíram. Fernand, que reassumira o seu papel de amparo da jovem,
pegou na mão de Mercedes; e reconduziu-a aos Catalães. Os amigos de Dantés, pela sua parte, acompanharam às Alamedas de Meilhan o velho quase desfalecido.
            Em breve se espalhou por toda a cidade o boato de que Dantés fora
preso como agente bonapartista.
            - Pode acreditar em semelhante coisa, meu caro Danglars? - perguntou
o Sr. Morrel, juntando-se ao seu guarda-livros e a Caderousse, pois ele próprio regressava apressadamente à cidade a fim de procurar saber alguma notícia direta de Edmond através do substituto do procurador régio, Sr. de Villefort, que conhecia superficialmente. - Acredita em semelhante coisa?
            - Ora essa, senhor! - respondeu Danglars. - já lhe tinha dito que Dantés, sem nenhum motivo, aportara à ilha de Elba e que essa escala me parecera suspeita.
            - Mas deu conta das suas suspeitas a mais alguém além de mim?
            - Nem por sombras, senhor - respondeu Danglars, baixinho. - O senhor bem sabe que por causa do seu tio, Sr. Policar Morrel, que serviu o outro e que não oculta as suas idéias, há quem desconfie que lamenta a sorte  de Napoleão. Recearia prejudicar Edmond e depois o senhor. Há coisas que um subordinado tem o dever de dizer ao seu armador e esconder rigorosamente dos outros.
            - Muito bem, Danglars, muito bem! - aprovou o armador. - Você é um excelente rapaz. Por isso, pensei antecipadamente em si, no caso do pobre Dantés vir a ser comandante do Pharaon.
            - Como assim, senhor?
            - Sim, perguntei previamente a Dantés o que pensava a seu respeito e se teria alguma repugnância em conservá-lo no seu lugar. Porque, não sei porquê, julguei ter notado certa frieza entre vocês.
            - E que lhe respondeu ele?
            - Que efetivamente julgava ter tido, numa circunstância que me não revelou, algumas razões de queixa a seu respeito, mas que qualquer pessoa que tivesse a confiança do armador teria a dele.
            - Hipócrita! - murmurou Danglars.
            - Pobre Dantés! - suspirou Caderousse. - Não há dúvida que era um excelente rapaz.
            - Pois sim, mas entretanto o Pharaon está sem comandante - observou o Sr. Morrel.
            - Oh - disse Danglars –, é preciso esperar, pois só podemos partir daqui a três meses e entretanto Dantés será posto em liberdade!
            - Decerto. Mas até lá ?
            - Bom, até lá estou às suas ordens, Sr. Morrel - respondeu Danglars. - Sabe perfeitamente que sou capaz de dirigir um navio tão bem como qualquer comandante de longo curso de fresca data. Além disso, utilizando os meus préstimos terá a vantagem de não estar em favor com ninguém quando Edmond sair da prisão: ele ocupará o seu lugar e eu o meu e pronto.
            - Obrigado, Danglars - disse o armador. - De fato, isso concilia tudo.  Tome, pois, o comando com minha autorização e vigie o desembarque. Não é forçoso que sempre que acontece alguma catástrofe aos indivíduos os negócios sofram.
            - Esteja descansado, senhor. Mas poderemos ao menos ver o pobre
Edmond?
            - Lhe responderei daqui a pouco, Danglars. Vou procurar falar com o Sr. de Villefort e interceder junto dele a favor do prisioneiro. Bem sei que é um monárquico arrebatado, mas que diabo, por mais monárquico e procurador régio que seja também é um homem e não o creio mau.
            - Pois não - admitiu Danglars –, mas ouvi dizer que era ambicioso e isso assemelha-se muito.
            - Enfim, veremos - disse o Sr. Morrel, suspirando. - Vá para bordo que irei ter com ele.
            E deixemos os dois amigos para tomar o caminho do Palácio da Justiça.
            - Está vendo o aspecto que o caso adquiriu? - disse Danglars a Caderousse. - Ainda quer defender Dantés? 


Capítulo VI

O substituto do Procurador Régio


            Na Rua do Grand-Cours, defronte da Fonte das Medusas, numa dessas velhas casas de arquitetura aristocrática edificadas por Puget, celebrava-se também no mesmo dia e à mesma hora um banquete de noivado.
            Simplesmente, em vez dos atores desta outra cena serem gente do povo, marinheiros e soldados, pertenciam à alta sociedade marselhosa. Eram antigos magistrados que se tinham demitido dos seus cargos durante a usurpação, velhos oficiais que tinham desertado das fileiras para se alistarem nas do exército de Cond‚ e jovens educados pela família ainda mal tranqüilizada acerca da sua existência, apesar dos quatro ou cinco substitutos que pagara, no ódio a esse homem de que cinco anos de exílio fariam um mártir e quinze anos de restauração um deus.
            Estava-se à mesa e a conversa seguia o seu curso, animada por todas as paixões, as paixões da época, paixões tanto mais terríveis, vivas e  encarniçadas no Meio-Dia quanto é certo que havia quinhentos anos os ódios religiosos alimentavam os ódios políticos.
            O imperador, rei da ilha de Elba depois de ter sido soberano de parte do mundo, reinando sobre uma população de cinco a seis mil almas depois de ter ouvido gritar “Viva Napoleão!” por cento e vinte milhões de súditos e em dez línguas diferentes, era tratado ali como um homem perdido para sempre para a França e para o trono. Os magistrados salientavam os erros políticos, os militares falavam de Moscou e Leipzig e as mulheres do seu divórcio de Josefina. Parecia àquela sociedade monárquica alegre e triunfante, não pela queda do homem, mas sim pelo aniquilamento do príncipe, que a vida recomeçava para ela e que saía de um sonho desagradável.
            Um velho, condecorado com a cruz de S. Luís, levantou-se e propôs aos convivas um brinde à saúde do rei Luís XVIII. Era o marquês de Saint-Méran.
            Por via desse brinde, que recordava ao mesmo tempo o exilado de
Hartwell e o rei pacificador da França, estabeleceu-se grande rumor, os copos ergueram-se à moda inglesa e as mulheres desmancharam os seus ramalhetes e juncaram com eles a toalha. Foi um entusiasmo quase poético.
            - Eles teriam de admitir, se estivessem aqui - disse a marquesa de Saint-Méran, mulher de olhar severo, lábios finos e aspecto aristocrático e ainda elegante, apesar dos seus cinqüenta anos –, teriam de admitir, todos esses revolucionários que nos expulsaram e que por nossa vez deixamos conspirar tranquilamente nos nossos velhos castelos que compraram por uma cãdea no tempo do Terror, que a verdadeira dedicação esteve no nosso lado, pois nós ligamos o nosso destino ao da monarquia que se desmoronava, ao passo que eles, pelo contrário, saudaram o sol nascente e fizeram a sua fortuna enquanto nós perdíamos a nossa. E também teriam de admitir que para nos o nosso rei era unicamente Luís, o Bem-amado, enquanto para eles o seu usurpador nunca passou de Napoleão, o maldito. Não é verdade, Villefort?
            - Que diz, Sra Marquesa?... Perdoai-me, mas não estava seguindo a conversa. 
            - Então, deixe essas crianças, marquesa - interveio o velho que fizera o brinde. - Essas crianças vão se casar e muito naturalmente têm mais de que falar do que de política.
            - Peço-lhe perdão, minha mãe - disse uma linda moça de cabelo
louro e olhos de veludo nadando num fluido nacarado. - Restituo-lhe o Sr. de Villefort, que monopolizei por um instante. Sr de Villefort, a minha mãe está  falando consigo.
            - Estou pronto a responder-lhe, minha senhora, se se dignar repetir a sua pergunta, que mal ouvi - disse o Sr. de Villefort.
            - Está perdoada, Renée - declarou a marquesa, com um sorriso terno que se não esperaria ver florir naquele rosto severo. Mas o coração da mulher é assim: por mais árido que o bafo dos preconceitos e as exigências da etiqueta o tornem, possui sempre um recanto fértil e ridente, aquele que Deus consagrou ao amor materno. - Estão perdoados... Pois eu dizia, Villefort, que os bonapartistas não tinham nem a nossa convicção, nem o nosso entusiasmo, nem a nossa dedicação.
            - Mas, minha senhora, têm pelo menos uma coisa que substitui tudo
isso: o fanatismo. Napoleão é o Maomé do Ocidente; é para todos esses homens vulgares, mas de ambições supremas, não só um legislador e um mestre, mas também um modelo, o modelo da igualdade.
            - Da igualdade! - exclamou a marquesa. - Napoleão o modelo da igualdade! E que reserva então para o Sr. de Robespierre? Parece-me que lhe rouba o lugar para o dar ao corso; de qualquer modo, parece-me que se trata pelo menos de uma usurpação.
            - Não, minha senhora - respondeu Villefort. - Deixo cada um no seu pedestal: Robespierre coloca Luís XVI no seu cadafalso; Napoleão coloca Vedame na sua coluna, simplesmente, um praticou a igualdade que rebaixa e o outro a igualdade que eleva. Um rebaixou os reis ao nível da guilhotina, o outro o povo ao nível do trono... Mas isso não significa - acrescentou Villefort, rindo
- que ambos não sejam infames revolucionários e que o 9 do Termidor e o 4 de Abril de 1814 não constituam dois dias felizes para a França e dignos de ser igualmente festejados pelos amigos da ordem e da monarquia. E explica também por que motivo, apesar de ter caído para nunca mais se levantar, assim espero, Napoleão conservou os seus fanáticos. Que quer, marquesa? Cromwell, que não era mais de metade de tudo o que foi Napoleão, também tinha os seus!
            - Sabe que tudo isso que acaba de dizer, Villefort, cheira a revolução à distância? Mas perdoo-lhe: não se pode ser filho de girondino sem se conservar alguns dos seus gostos.
            A fronte de Villefort cobriu-se de vivo rubor.
            - Meu pai era girondino, minha senhora, é verdade - perguntou –, mas foi proscrito por esse mesmo Terror que vos proscrevia, e pouco faltou para não lhe colocarem a cabeça no mesmo cadafalso que viu cair a do pai da Sra Marquesa.
            - É verdade - admitiu a marquesa, sem que tão sangrenta recordação provocasse a menor alteração no seu rosto. - Em todo o caso, seria por motivos diametralmente opostos que ambos subiriam ao cadafalso, e a prova é que toda a minha família permaneceu fiel aos príncipes exilados, enquanto o  seu pai se apressou a aderir ao novo governo e depois de o cidadão Noirtier ser girondino o conde Noirtier tornou-se senador.
            - Minha mãe - interveio Renée –, bem sabe que se combinou não voltar a falar dessas más recordações.
            - Minha senhora - prosseguiu Villefort –, junto-me a Mademoiselle de Saint-Méran para lhe pedir muito humildemente o esquecimento do passado. Que adianta estarmos com recriminações a respeito de coisas em que a própria vontade de Deus é importante? Deus pode modificar o futuro, mas não pode
modificar o passado. Nós, homens, o que podemos‚ senão renegá-lo, pelo
menos deitar-lhe um véu por cima. Pela minha parte afastei-me não só da opinião, mas também do nome do meu pai. Meu pai foi ou até talvez ainda seja bonapartista e chama-se Noirtier; eu sou monárquico e chamo-me Villefort. Deixe morrer no velho tronco um resto de seiva revolucionária e veja apenas, minha senhora, o rebento que se afasta desse tronco, sem poder, e quase direi sem querer, separar-se dele por completo.
            - Bravo, Villefort! - exclamou o marquês. - Bravo, bem respondido! Também eu tenho pregado constantemente à marquesa o esquecimento do passado sem nunca o conseguir. Espero que seja mais feliz do que eu.
            - Sim, está bem - condescendeu a marquesa –, esqueçamos o passado. Não desejo outra coisa e foi, de fato, o que se combinou. Mas que pelo menos Villefort seja inflexível no futuro. Não se esqueça, Villefort, de que respondemos por si perante Sua Majestade; de que também Sua Majestade se dignou esquecer, a nosso pedido, e estender-lhe a mão, tal como eu esqueço a seu pedido. Simplesmente, se lhe cair algum conspirador nas mãos, lembre-se que tem tantos mais olhos postos em si quanto se sabe pertencer a uma família que talvez esteja relacionada com esses conspiradores.
            - Infelizmente, minha senhora - respondeu Villefort –, a minha profissão e sobretudo o tempo em que vivemos ordenam-me que seja severo. E eu o serei. Tenho já algumas acusações políticas a sustentar a esse respeito tenho dado as minhas provas. Desgraçadamente estamos longe do fim.
            - Acha? - perguntou a marquesa.
            - Muito o receio. Napoleão, na ilha de Elba, está pertíssimo da França. A sua presença quase à vista das nossas costas alimenta a esperança dos seus partidários. Marselha está cheia de oficiais a meio soldo que todos os dias, sob qualquer pretexto fútil, procuram questões com os monárquicos. Daí duelos entre pessoas de classes elevadas, dai assassínios entre o povo.
            - Pois sim - disse o conde de Salvieux, velho amigo do Sr. de Saint-Méran e camareiro do Sr. Conde de Artois –, pois sim, mas como sabem a Santa Aliança pensa transferi-lo.
            - Sim, falava-se disso quando da nossa partida de Paris - declarou o Sr. de Saint-Méran. - Mas para onde?
            - Para Santa Helena.
            - Santa Helena? Que é isso? - perguntou a marquesa.
            - Uma ilha situada a duas mil léguas daqui, para lá  do equador - respondeu o conde.
            - Ainda bem. Como disse Villefort, foi uma grande imprudência deixar semelhante homem entre a Côrsega, onde nasceu, e Nápoles, onde ainda reina o cunhado, e diante da Itália, de que queria fazer um reino para o filho. 
            - Infelizmente - observou Villefort –, temos os tratados de 1814 e não é possível tocar em Napoleão sem desrespeitar esses tratados.
            - Pois vamos desrespeitá-los! - replicou o Sr. de Salvieux. - Acaso ele esteve com tantas  contemplações quando se tratou de fuzilar o infeliz duque de Enghien?
            - Pronto, está combinado - interveio a marquesa. - A Santa Aliança desembaraça a Europa de Napoleão e Villefort desembaraça Marselha dos seus partidários. O rei reina ou não reina; se reina, o seu governo deve ser forte e os seus agentes inflexíveis. É o único meio de prevenir o mal.
            - Infelizmente, minha senhora - observou, sorrindo, Villefort –, um substituto do procurador régio chega sempre quando o mal já está feito.
            - Nesse caso, compete-lhe repará-lo.
            - Poderia dizer-lhe também, minha senhora, que não reparamos o mal, apenas o vingamos.
            - Oh, Sr. de Villefort - exclamou uma jovem e bonita conviva, filha do conde de Salvieux e amiga de Mademoiselle de Saint-Méran, veja se consegue arranjar um bom julgamento enquanto estivermos em Marselha! Nunca entrei num tribunal e dizem que é muito curioso.
            - É de fato muito curioso, mademoiselle - concordou o substituto. -  Porque em vez de uma tragédia fictícia, se trata de um drama autêntico; em vez de dores fingidas, trata-se de dores reais. O homem que se lá  vê, em lugar de, uma vez o pano descido, regressar a casa, jantar em família e deitar-se tranquilamente para recomeçar no dia seguinte, regressa à prisão onde se encontra o carrasco. Como sabe, para as pessoas nervosas, que procuram emoções, não existe espetáculo que se lhe compare. Fique descansada, mademoiselle, se as circunstâncias o permitirem, proporcionar-lho-ei.
            - O senhor brinca, mas esse espetáculo causa calafrios! - exclamou Renée, empalidecendo.
            - Que quer... trata-se de um duelo... já pedi cinco ou seis vezes a pena de morte para réus políticos ou outros... Pois bem, quem sabe quantos punhais se preparam a esta hora na sombra ou estão já apontados contra mim?
            - Oh, meu Deus! - exclamou de novo Renée, empalidecendo cada vez mais. - Fala sério, Sr. de Villefort?
            - O mais seriamente possível, mademoiselle - respondeu o jovem magistrado, de sorriso nos lábios. - E com os bons julgamentos que Mademoiselle de Salvieux deseja para satisfazer a sua curiosidade e que eu desejo para satisfazer a minha ambição, a situação só se agravará. Julga que todos esses soldados de
Napoleão, habituados a enfrentar cegamente o inimigo, refletem quando queimam um cartucho ou quando atacam à baioneta? Porventura refletirão mais para matar um homem que julgam seu inimigo pessoal do que para matar um russo, um austríaco ou um húngaro que nunca viram? Aliás, assim é preciso, pois de contrário a nossa profissão não se justificaria. Eu próprio, quando vejo brilhar nos olhos do réu o relâmpago da raiva, sinto-me animadíssimo, exalto-me. Já se não trata de um julgamento, trata-se de um combate; luto contra ele, ele responde, insisto, e o combate termina, como todos os combates, por uma vitória ou uma derrota. Aqui tem o que é pleitear! É o perigo que dá a eloqüência. Um acusado que me sorrisse depois da minha réplica me levaria a supor que falara mal, que o que dissera fora frouxo, sem  vigor, insuficiente. Pense, pois, na sensação de orgulho que experimenta um procurador régio convencido da culpabilidade do réu quando vê empalidecer e inclinar-se o seu culpado sob o peso das provas e os raios da sua eloqüência... Essa cabeça que se baixa cairá.
            Renée soltou um gritinho.
            - Assim é que é falar - disse um dos convivas.
            - Eis o homem que é preciso em tempos como os nossos! - observou um segundo.
            - Por isso - disse um terceiro –, no seu último julgamento foi soberbo, meu caro Villefort. Lembra-se, retiro-lhe aquele homem que assassinara o pai... Pois o caso é que você o matou literalmente antes de o carrasco lhe tocar.
            - Oh, quando se trata de parricidas pouco me importo! - exclamou Renée. - Não há suplício suficientemente grande para semelhantes homens. Mas para os pobres acusados políticos!...
            - Isso é ainda pior, Renée, porque o rei é o pai da nação e querer derrubar ou matar o rei é querer matar o pai de trinta e dois milhões de homens.
            - Oh, é a mesma coisa, Sr. de Villefort! - perguntou Renée. - Prometa-me ser indulgente com aqueles que lhe recomendar?
            - Fique descansada - respondeu Villefort com o seu sorriso mais encantador –, faremos juntos os meus requisitórios.
            - Minha querida - interveio a marquesa –, cuide dos seus colibris, dos seus cães e dos seus trapos e deixe o seu futuro marido cumprir o seu dever. Hoje as armas descansam e é a vez da toga. A este respeito existe uma frase latina de grande profundidade...
            - Cedant arma togoe - disse Villefort, inclinando-se.
            - Não me atrevo a falar latim - declarou a marquesa.
            - Creio que preferiria que fosse médico - prosseguiu Renée. - O anjo exterminador, por mais anjo que seja, sempre me meteu muito medo.
            - Querida Renée! - murmurou Villefort, envolvendo a jovem num olhar apaixonado.
            - Minha filha - disse o marquês –, o Sr. de Villefort, será o médico moral e político desta província. Acredite que é um papel digno de ser representado.
            - E será  uma maneira de fazer esquecer o que desempenhou o pai - acrescentou a incorrigível marquesa.
            - Minha senhora - perguntou Villefort com um sorriso triste –,  tive a honra de lhe dizer que o meu pai abjurara, pelo menos assim o espero, os erros do seu passado; que se tornara um amigo zeloso da religião e da ordem, melhor monárquico do que eu, talvez, pois ele o faz com arrependimento e eu sou apenas com
paixão.
            E depois desta frase torneada, Villefort, para apreciar o efeito da sua facúndia, olhou os convivas como depois de uma frase equivalente olharia o auditório no tribunal.
            - Bom, meu caro Villefort - interveio o conde de Salvieux foi precisamente isso que respondi anteontem nas Tulherias ao ministro da Casa Real, que me levantava algumas objeções acerca da singular aliança entre a filha de um girondino e a filha de um oficial do exército de Condé. E o ministro compreendeu perfeitamente. Aliás, tal união é do agrado de Luís XVIII, pois o rei, que sem que suspeitássemos escutava a nossa conversa, interrompeu-nos dizendo: “Villefort” - notem que o rei não pronunciou o nome de Noirtier e pelo contrário sublinhou o de Villefort –, “Villefort”, disse o rei, “fará uma boa carreira. Trata-se de um rapaz já amadurecido e da minha confiança. Vi com prazer o marquês e a marquesa de Saint-Méran tomarem-no como genro e lhes teria aconselhado essa aliança se não tivessem sido os primeiros a pedir-me licença para a contrair.” - o rei disse isso, conde? - exclamou Villefort, extasiado.
            - Foram as suas próprias palavras, e se o marquês quiser ser franco confessará que o que acabo de dizer se harmoniza perfeitamente com o que o rei lhe disse a ele próprio quando lhe falou, há seis meses, de um projeto de casamento entre a filha e você.
            - É verdade - confirmou o marquês.
            - Oh, deverei tudo a esse digno príncipe! Por isso, que não farei para o servir!
            - Ora até  que enfim! - disse a marquesa. - É assim que gosto de o ver. Se neste momento aparecesse um conspirador, seria bem-vindo.
            - Pois eu, minha mãe - atalhou Renée –, peço a Deus que não a escute e envie ao Sr. de Villefort apenas uns ladrõezecos, modestos falidos e tímidos vigaristas. Se assim acontecer, dormirei tranqüila.
            - É como se desejasse ao médico enxaquecas, sarampos e picadas de vespas, tudo coisas que afetam apenas a epiderme - observou Villefort, rindo - Ora se, pelo contrário, me quiser ver procurador régio deseje-me dessas doenças terríveis cuja cura honra o médico.
            Neste momento, e como se o acaso nada mais tivesse esperado do que a formulação do desejo de Villefort para o satisfazer, entrou um criado que lhe disse algumas palavras ao ouvido. Villefort pediu licença para deixar a mesa e voltou pouco depois de rosto aberto e lábios sorridentes.
            Renée olhou-o com amor. Porque visto assim, com os seus olhos azuis, a sua tez mate e as suas suíças pretas, que lhe emolduravam o rosto, era realmente um elegante e bonito jovem. Por isso, todo o espírito da jovem pareceu ficar suspenso dos seus lábios enquanto esperava que ele explicasse a causa do seu desaparecimento momentâneo.
            - Bom - disse Villefort –, há pouco ambicionava, mademoiselle, ter por marido um médico. Ora eu tenho com os discípulos de Esculápio (ainda se falava assim em 1815) pelo menos esta semelhança: nunca me pertence o momento que passa, vêm incomodar-me mesmo junto de si, mesmo no meu banquete de
noivado.
            - E por que motivo o incomodaram, senhor? - perguntou a linda jovem, com uma ligeira inquietação.
            - Oh, por causa de um doente que, a crer no que me disseram, se deve encontrar em estado desesperado! Desta vez trata-se de um caso grave e a doença anda perto do cadafalso!
            - Oh, meu Deus! - exclamou Renée, empalidecendo.
            - Sim?! - disseram em uníssono os convivas.
            - Parece que se acaba de descobrir, muito simplesmente, uma conspiraçãozinha bonapartista...
            - Será possível? - perguntou a marquesa. 
            - Aqui está a carta denunciadora.
            E Villefort leu:
            " O Sr. Procurador Régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio foi encarregado por Murat de entregar unta carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris.
            Ter-se-á  a prova do seu crime prendendo-o pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai ou no seu camarote a bordo do Pharaon."
            - Mas - disse Renée - essa carta, que aliás não passa de uma carta anônima, é dirigida ao Sr. Procurador Régio e não a si.
            - Sim, mas o procurador régio está ausente. Na sua ausência a epístola foi entregue ao seu secretário, a quem compete abrir as cartas. Abriu portanto esta, mandou-me procurar e, como se não encontrasse, ordenou a prisão.
            - Assim, o culpado está preso? - perguntou a marquesa.
            - Quer dizer, o acusado - corrigiu Renée.
            - Está, sim, minha senhora - respondeu Villefort –, e como tive a honra de dizer há pouco a Mademoiselle Renée, se se encontrar a carta em questão o doente está muito doente.
            - E onde se encontra esse infeliz? - perguntou Renée.
            - Em minha casa.
            - Vá, meu amigo - disse o marquês –, não falte aos seus deveres por nossa causa, quando o serviço do rei o espera do outro lado. Vá pois onde o espera o serviço do rei.
            - Oh, Sr. de Villefort, seja indulgente, lembre-se de que é o dia do seu noivado! - exclamou Renée, juntando as mãos.
            Villefort contornou a mesa e, aproximando-se da cadeira da jovem, no espaldar da qual se apoiou, respondeu:
            - Para lhe poupar uma preocupação, farei tudo o que puder, querida Renée. Mas se os indícios forem seguros e a acusação verdadeira, terá de se cortar essa erva daninha bonapartista.
            Renée estremeceu ao ouvir a palavra “cortar”, porque a erva que se tratava de cortar era uma cabeça.
            - Ora, ora! - interveio a marquesa.- Não dê ouvidos a essa menina: ela tem de se ir habituando.
            E a marquesa estendeu a Villefort a mão seca, que ele beijou sem desfitar Renée e dizendo-lhe com os olhos: “É a sua mão que beijo, ou pelo menos que desejaria beijar neste momento.”
            - Tristes auspícios! - murmurou Renée.
            - Na verdade, menina - disse a marquesa –, é de uma infantilidade desesperante. Muito gostaria de saber que tem o destino do Estado a ver com as fantasias sentimentais e as suas pieguices de coração.
            - Oh, minha mãe! - murmurou Renée. 
            - Piedade para a má monárquica, Sra Marquesa - pediu Villefort. - Prometo-lhe desempenhar-me conscienciosamente da minha missão de substituto do procurador régio, isto é, ser horrivelmente severo.
            Mas ao mesmo tempo que o magistrado dirigia estas palavras à marquesa o noivo olhava de soslaio para a noiva e o seu olhar dizia; “Esteja tranquila, Renée, em atenção ao seu amor serei indulgente.”
            Renée correspondeu a esse olhar com o seu mais terno sorriso e Villefort saiu com o paraíso no coração.





Capítulo VII

O interrogatório

            Assim que Villefort se viu fora da sala de jantar tirou a máscara de felicidade e tomou o ar grave de um homem chamado à Suprema função de se pronunciar sobre a vida do seu semelhante. Ora, apesar da mobilidade da sua fisionomia - mobilidade que o substituto, como deve fazer um bom ator, por mais de uma vez estudara diante do espelho –, desta vez teve dificuldade em franzir o sobrolho e carregar o semblante. Com efeito, excetuando a recordação da linha política seguida pelo pai e que podia, se dela não se afastasse completamente, prejudicar-lhe o futuro, Clérard de Villefort era naquele momento tão feliz quanto um homem poderia ambicionar. Rico por si mesmo, ocupava aos vinte e sete anos um lugar elevado na magistratura e ia casar com uma linda moça que amava não apaixonadamente, mas sim com a razão, como um substituto do procurador régio pode amar, e além da sua beleza, que era notável, Mademoiselle de Saint-Méran, sua noiva, pertencia a uma das famílias mais cotadas da época. Por outro lado, sem contar com a influência do pai e da mãe, que como não tinham outro filho podiam reservar toda inteira ao genro, a jovem levaria ainda ao marido um dote de cinqüenta mil escudos que graças às “esperanças”, essa palavra atroz inventada pelos casamenteiros, poderia ser completado um dia com uma herança de meio milhão.
            Todos estes elementos reunidos constituíam portanto para Villefort um total de felicidade deslumbrante, a ponto de lhe parecer ver manchas no Sol quando olhara demoradamente a sua vida interior com os olhos da alma.
            Encontrou à porta o comissário de polícia que o esperava. A presença do funcionário policial fê-lo cair imediatamente das alturas do terceiro céu na terra material em que nos movemos. Compôs a expressão como dissemos e declarou aproximando-se do oficial de justiça:
            - Aqui estou, senhor. Li a carta e fez bem em prender esse homem. Agora dê-me acerca dele e da conspiração todos os pormenores que obteve.
            - Acerca da conspiração, senhor, ainda não sabemos nada; todos os papéis que encontramos com o preso foram fechados num único maço e entregues, selados, no gabinete de V. Exª  Quanto ao arguido, V. Exª deve ter visto pela própria carta que o denunciado é um tal Edmond Dantés, imediato do três mastros Pharaon que se dedica ao comércio de algodão com Alexandria e Esmirna e pertence à casa Morrel e Filhos, de Marselha.
            - Antes de servir na marinha mercante serviu na marinha de guerra?
            - Oh, não, senhor? É ainda muito novo.
            - De que idade?
            - Dezenove ou vinte anos, no máximo.
            Neste momento, e como Villefort, seguindo a Grand-Rue, tivesse chegado à esquina da Rua dos Conseils, um homem que parecia esperar a sua passagem abordou-o. Era o Sr. Morrel.
            - Ah, Sr. de Villefort! - exclamou o excelente homem ao ver o substituto. - Ainda bem que o encontrei! Imagine que acaba de se cometer o equívoco mais estranho, mais inaudito: prenderam o imediato do meu navio, Edmond Dantés.
            - Bem sei - respondeu Villefort - e vou interrogá-lo.
            - Oh, senhor - continuou Morrel, levado pela sua amizade para com o jovem –, não conhece o acusado como eu conheço! Imagine o homem mais afável, o mais probo, e quase me atrevo a dizer o homem que melhor sabe do seu oficio de toda a marinha mercante... Oh, Sr. de Villefort, recomendo-lhe muito  sinceramente e de todo o meu coração!
            Como pudemos ver, Villetort pertencia à classe nobre da cidade e Morrel à classe plebéia. O primeiro era um monárquico ultra e o segundo suspeito de secreto bonapartismo. Villefort olhou desdenhosamente para Morrel e respondeu-lhe com frieza:
            - Como sabe, senhor, pode-se ser afável na vida privada, probo nas relações comerciais e sabedor da sua profissão e nem por isso ser menos um grande culpado, politicamente falando. Sabe-o, não é verdade, senhor?
            E o magistrado sublinhou as últimas palavras, como se quisesse aplicá-las ao próprio armador, enquanto o seu olhar perscrutador parecia querer penetrar até  ao fundo do coração daquele homem que
ousava interceder por outro quando devia saber que ele próprio necessitava de indulgência.
            Morrel corou, pois não se sentia com a consciência muito tranqüila a respeito das suas opiniões políticas. Além disso, a confidência que lhe fizera Dantés acerca da sua conversa com o grande marechal e das poucas palavras que lhe dirigira o imperador ainda lhe perturbava um pouco o espírito. No entanto,
acrescentou, em tom do mais profundo interesse:
            - Suplico-lhe, Sr. de Villefort, seja justo como deve ser, bom como sempre foi e “restitua-nos” depressa o pobre Dantés!
            O “restitua-nos” soou revolucionariamente ao ouvido do substituto do procurador régio.
            - Eh, eh, restitua-nos!... - disse baixinho. - Esse Dantés será filiado em alguma seita de carbonários para que o seu protetor empregue assim sem pensar a fórmula coletiva? Prenderam-no numa taberna, disse-me, segundo creio, o comissário. Em numerosa companhia, acrescentou. Deve ser alguma loja.
            Depois, em voz alta, respondeu:
            - Senhor, pode estar absolutamente tranqüilo que não terá recorrido inutilmente à minha justiça se o acusado estiver inocente. Mas se, pelo contrário, for culpado... Vivemos numa época difícil, senhor, em que a  impunidade seria um exemplo fatal. Nesse caso, serei obrigado a cumprir o meu dever.
            E em seguida, como tivesse chegado à porta de sua casa, contígua ao Palácio da Justiça, entrou majestosamente, depois de cumprimentar com uma polidez gelada o pobre armador, que ficou como que petrificado no lugar onde o deixara Villefort.
            A antecâmara estava cheia de guardas e agentes de polícia. No meio deles, guardado à vista e envolto em olhares chamejantes de ódio, via-se de pé, calmo e imóvel, o prisioneiro.
            Villefort atravessou a antecâmara, deitou um olhar oblíquo a Dantés e, depois de receber um maço de papéis que lhe entregou um agente, desapareceu dizendo:
            – Tragam o prisioneiro.
            Por mais rápido que tivesse sido esse olhar, bastara a Villefort para fazer uma idéia do homem que ia interrogar. Reconhecera a inteligência naquela testa ampla e franca, a coragem naquele olhar fixo e naquele sobrolho franzido e a sinceridade naqueles lábios carnudos e entreabertos que deixavam ver uma dupla
fileira de dentes brancos como o marfim.
            A primeira impressão fora favorável a Dantés; mas Villefort ouvira dizer tantas vezes, como uma frase de profundo sentido político que se devia desconfiar do primeiro impulso, visto ser o mais prudente, que aplicou a máxima à impressão sem ter em conta a diferença que havia entre as duas palavras.
            Sufocou portanto os bons instintos que lhe queriam invadir o coração para dai lhe tomarem de assalto o espírito, compôs diante do espelho a suo rosto dos grandes dias e sentou-se, sombrio e ameaçador, à secretária.
            Um instante depois dele entrou Dantés.
            O jovem continuava pálido, mas calmo e sorridente. Cumprimentou o seu juiz com natural delicadeza e em seguida procurou com os olhos uma cadeira, como se estivesse na sala do armador Morrel.
            Só então encontrou o olhar inexpressivo de Villefort, esse olhar característico dos magistrados, que não querem que lhes leiam o pensamento e que por isso transformam os olhos num vidro despolido. Aquele olhar revelou-lhe que se encontrava diante da justiça, figura de maneiras sombrias.
            - Quem é e como se chama? - perguntou Villefort, folheando os apontamentos que o agente lhe entregara ao entrar e que no espaço de uma hora se tinham tornado volumosos, de tal modo a corrupção
da espionagem se apodera depressa do corpo dos infelizes chamados arguidos.
            - Chamo-me Edmond Dantés, senhor - respondeu o jovem, em voz calma e sonora –, e sou imediato a bordo do navio Pharaon pertencente à firma Morrel & Filhos.
            - A sua idade? - continuou Villefort.
            - Dezenove anos - respondeu Dantés.
            - Que fazia quando foi preso?
            - Assistia ao banquete do meu próprio noivado, senhor - respondeu Dantés em voz ligeiramente comovida, de tal forma era doloroso o contraste entre esses momentos de alegria e aquela cerimônia
lúgubre, de tal forma o  rosto sombrio do Sr. de Villefort fazia brilhar em todo o seu esplendor o rosto radiante de Mercedes.
            - Assistia ao seu banquete de noivado - repetiu o substituto, estremecendo a seu pesar.
            - Sim, senhor, estou prestes a casar com uma mulher que amo há três anos.
            Villefort, apesar de se mostrar habitualmente impassível, ficou impressionado com a confidência, com a voz comovida de Dantés, surpreendido no meio da sua felicidade, e essa voz fez-lhe vibrar uma fibra simpática no fundo da alma. Também ele se ia casar, também ele era feliz, e acabavam de perturbar a sua felicidade a fim de o levarem a contribuir para a destruição da alegria de um homem que, como ele, tocava já a felicidade.
            Este paralelismo filosófico, pensou, produziria grande efeito no seu regresso ao salão do Sr. de Saint-Méran. E compôs antecipadamente no espírito, enquanto Dantés esperava novas perguntas, as palavras antitáticas com o auxílio das quais os oradores constroem essas frases sedentas de aplausos que por vezes fazem crer numa verdadeira eloqüência.
            Composto o seu pequeno speech interior, Villefort sorriu do efeito e disse, dirigindo-se a Dantés:
            - Continue, senhor.
            - Que deseja que continue?
            - A esclarecer a justiça.
            - A justiça que me diga em que ponto deseja ser esclarecida e lhe direi tudo o que sei. Simplesmente - acrescentou também com um sorriso –, previno-a de que não sei grande coisa.
            - Serviu no tempo do usurpador?
            – Ia ser incorporado na marinha de guerra quando ele caiu.
            - São conhecidas as suas opiniões políticas extremistas - insinuou Villefort, a quem ninguém dissera nada a tal respeito, mas que não achava despropositado afirmá-lo como quem formula uma acusação.
            - As minhas opiniões políticas, senhor? Bom, é quase vergonhoso dizê-lo, mas nunca tive o que se chama uma opinião. Tenho apenas dezenove anos, como já tive a honra de lhe dizer; não sei nada, não estou destinado a desempenhar qualquer papel; o pouco que sou e que serei, se me derem o lugar que ambiciono, devê-lo-ei ao Sr. Morrel. Por isso, todas as minhas opiniões, não direi políticas, mas pessoais, limitam-se a estes três sentimentos: amo o meu pai, respeito o Sr. Morrel e adoro Mercedes. Aqui tem, senhor, tudo o que posso dizer à justiça; como vê, é pouco interessante para ela
            À medida que Dantés falava, Villefort observava-lhe o rosto, ao mesmo tempo tão afável e tão franco, e sentia acudirem-lhe à memória as palavras de Renée que sem o conhecer lhe pedira indulgência para com o argüido. Com a prática que o substituto já possuía do crime e dos criminosos, via em cada palavra de Dantés surgir a prova da sua inocência. Com efeito, aquele rapaz, quase se poderia dizer, aquela criança, simples, natural e eloqüente, com essa eloqüência do coração que nunca se encontra quando se procura, cheio de afeição para todos porque era feliz e porque a felicidade torna bons os próprios maus, derramava até sobre o seu juiz a suave afabilidade que lhe  transbordava do coração Edmond não tinha no olhar, na voz e nos gestos, por mais rude e severo que Villefort tivesse sido para com ele, a não ser atenções e bondade para com aquele que o interrogava.
            “Por Deus”, disse Villefort para consigo, “aqui está um rapaz encantador que talvez me permita sem grande dificuldade, assim espero, ser agradável a Renée e satisfazer a primeira recomendação que me fez, o que me poderá valer um bom aperto de mão diante de toda a gente e um beijo terno num canto.”
            E com esta doce esperança o rosto de Villefort desanuviou-se. E assim, quando abandonou o fio do seu pensamento e olhou para Dantés, este, que seguia todos os movimentos da fisionomia do seu juiz, sorria como o próprio pensamento de Villefort.
            - Tem algum inimigo? - perguntou o substituto.
            - Inimigos, eu? - perguntou Dantés. - Tenho a sorte de ser demasiado insignificante para que a minha posição os arranje. Quanto ao meu temperamento, talvez um pouco vivo, sempre tentei suavizá-lo no trato com os meus subordinados. Tenho dez ou doze marinheiros sob as minhas ordens; interrogue-os, senhor, e lhe dirão que me estimam e respeitam, não como um pai, sou demasiado novo para isso, mas sim como um irmão mais velho.
            - Mas, à falta de inimigos, talvez tenha invejosos. Ia ser nomeado comandante aos dezenove anos, o que é um cargo elevado na sua idade, e ia casar com uma linda mulher que o ama, o que é uma felicidade rara em qualquer parte deste mundo. Estas duas preferências do destino podem ter-lhe granjeado invejosos.
            - Sim, tem razão. Deve conhecer os homens melhor do que eu é possível. Mas se esses invejosos se encontram entre os meus amigos, confesso-lhe que prefiro não os conhecer para não ser obrigado a odiá-los.
            - Engana-se. Tanto quanto possível, devemos ver sempre claramente à nossa volta. E na verdade o senhor parece-me um jovem tão digno que vou me desviar em seu benefício das regras habituais da justiça e ajudá-lo a fazer brotar a luz dando-lhe conhecimento da denúncia que o trouxe à minha presença. Aqui está o papel acusador. Reconhece a letra?
            E Villefort tirou a carta da algibeira e apresentou-a a Dantés, que a olhou e leu. Passou-lhe uma sombra pela testa e respondeu:
            - Não, senhor, não conheço esta letra; está disfarçada, embora seja bastante firme. De qualquer modo, foi traçada por mão experiente. Sinto-me feliz - acrescentou, olhando com reconhecimento para Villefort - por tratar com um homem como o senhor, pois com efeito o meu invejoso é um autêntico inimigo.
            E o relâmpago que passou pelos olhos do jovem ao pronunciar estas palavras permitiu a Villefort distinguir tudo o que havia de violenta energia debaixo da afabilidade inicial.
            - E agora - disse o substituto - responda-me francamente, senhor, não como um argüido ao seu juiz, mas sim como um homem numa posição falsa responde a outro homem que se interessa por ele: que há de verdade nesta acusação anônima?
            E Villefort atirou com repugnância para cima da mesa a carta que Dantés acabava de lhe restituir. 
            - Tudo e nada, senhor. Eis a verdade pura, pela minha honra de marinheiro, pelo meu amor por Mercedes e pela vida do meu pai.
            - Fale, senhor - disse em voz alta Villefort.
            Depois, baixinho, acrescentou:
            - Se Renée me pudesse ver, sem dúvida ficaria contente comigo e nunca mais me chamaria cortador de cabeças!
            - Bom, o comandante Leclére adoeceu com uma febre cerebral ao sairmos de Nápoles. Como não tínhamos médico a bordo e não quis escalar nenhum porto da costa, pois tinha pressa de chegar à ilha
de Elba, a doença agravou-se e ele chamou-me a sua presença.
            - Meu caro Dantés - disse-me –, jure-me pela sua honra fazer o que lhe vou dizer. Estão em jogo altos interesses.
            - Juro-lhe, comandante - respondi-lhe.
            - Muito bem! Como depois da minha morte lhe pertence o comando do navio, na qualidade de imediato, assuma-o, aproe à ilha de Elba, desembarque em Porto Ferraio, procure o grande marechal
e entregue-lhe esta carta. É possível que lhe entreguem outra carta e o encarreguem de qualquer missão. Essa missão me estava reservada, Dantés; cumpra-a em meu lugar e toda a honra disso será sua.
            - Assim farei, comandante, mas talvez não consiga chegar tão facilmente como pensa junto do grande marechal.
            - Aqui tem um anel que lhe mandará entregar - disse o comandante - e que removerá todas as dificuldades.
            - E ao dizer estas palavras entregou-me um anel.
            - Era tempo: duas horas mais tarde o delírio apoderou-se dele e no dia seguinte morreu.
            - Que fez então?
            - O que devia fazer, senhor, o que qualquer outro faria no meu lugar. Custe o que custar, as súplicas de um moribundo são sagradas; mas entre os marinheiros os pedidos de um superior são ordens que se devem cumprir. Fiz-me portanto de vela para a ilha de Elba, onde cheguei no dia seguinte, proibi a saída de toda a tripulação e desci sozinho a terra. Como previra, levantaram-me algumas dificuldades para me introduzir junto do grande marechal, mas mandei-lhe o anel que devia servir-me de sinal de reconhecimento e todas as portas se abriram diante de mim. Recebeu-me, interrogou-me acerca das últimas circunstâncias da morte do infeliz Leclére e, como este previra, entregou-me uma carta que me encarregou de levar pessoalmente a Paris. Prometi-lho, porque isso equivalia a cumprir as últimas vontades do meu comandante. Desembarquei e regularizei rapidamente todos os assuntos de bordo; depois, corri a ver a minha noiva, que encontrei mais bonita e apaixonada do que nunca. Graças ao Sr. Morrel, passamos por cima de todas as dificuldades eclesiásticas. Enfim, senhor, assistia como lhe disse ao banquete do meu noivado, ia casar-me dentro de uma hora e contava partir amanhã para Paris quando por via dessa denúncia, que o senhor parece desprezar agora tanto como eu, fui preso.
            - Sim, sim - murmurou Villefort –, tudo isso me parece ser verdade, e se o senhor é culpado, é de imprudência, embora essa imprudência seja legítima devido às ordens do seu comandante. Entregue-me essa carta que lhe deram na ilha de Elba, dê-me a sua palavra de que se apresentar  à primeira convocação e volte para junto dos seus amigos.
            - Quer dizer que estou livre, senhor?! - exclamou Dantés, no cúmulo da alegria.
            - Está, mas primeiro dê-me essa carta.
            - Deve estar diante de si, senhor, pois apreenderam-na com os meus outros papéis e reconheço alguns deles nesse maço.
            - Espere - disse o substituto a Dantés, que pegava as luvas e o chapéu. - Espere. A quem é dirigida?
            - Ao Sr. Noirtier, Rua Coq-H‚ron, em Paris.
            Um raio que caísse sobre Villefort não o fulminaria mais rápida e imprevistamente. Deixou-se cair na poltrona, de onde se soerguera para chegar ao maço de papéis apreendidos a Dantés, remexeu-o precipitadamente e tirou dele a carta fatal, à qual deitou um olhar cheio de indizível terror.
            - Sr. Noirtier, Rua Coq-H‚ron, nº  13 - murmurou, empalidecendo cada vez mais.
            - Sim, senhor - confirmou Dantés, atônito. - Conhece-o?
            - Não - respondeu vivamente Villefort. - Um fiel servidor do rei não conhece conspiradores.
            - Trata-se portanto de uma conspiração? - perguntou Dantés, que começava, por se julgar livre, a sentir-se novamente dominado por um terror maior do que ao princípio. - Seja como for, senhor, como já lhe disse ignoro completamente o conteúdo da correspondência de que fui portador.
            - Pois sim, mas sabe o nome daquele a quem era dirigida! - perguntou Villefort, com voz abafada.
            - Para lha entregar pessoalmente, senhor, era indispensável que o soubesse.
            - Não mostrou esta carta a ninguém? - perguntou Villefort, lendo-a e empalidecendo à medida que a lia.
            - A ninguém senhor, dou-lhe a minha palavra de honra!
            - Todos ignoram que era portador de uma carta vinda da ilha de Elba e endereçada ao Sr. Noirtier?
            - Todos gente, senhor, exceto quem me entregou.
            - É demasiado, é ainda demasiado! - murmurou Villefort.
            A fronte de Villefort nublava-se cada vez mais à medida que se aproximava do fim: os seus lábios brancos, as suas mãos trêmulas e os seus olhos ardentes faziam passar pelo espírito de Dantés as mais dolorosas apreensões. Terminada a leitura, Villefort deixou cair a cabeça nas mãos e ficou um instante acabrunhado.
            - Oh, meu Deus! Que se passa senhor? - perguntou timidamente Dantés.
            Villefort não respondeu. Mas passados alguns instantes levantou o rosto pálido e descomposto e releu segunda vez a carta.
            - E diz que não sabe o que contém esta carta? - insistiu Villefort.
            - Dou-lhe a minha palavra de honra, repito, senhor, de que o ignoro - respondeu Dantés. - Mas que tem o senhor, meu Deus? Sente-se mal, quer que toque, quer que chame? 
            - Não, senhor - respondeu Villefort, levantando-se vivamente.- Não se mexa, não diga nada; é a mim que compete dar ordens aqui e não ao senhor.
            - Era apenas para o ajudá-lo, senhor - protestou Dantés, magoado.
            - Não preciso de nada, foi apenas uma indisposição passageira. Ocupe-se de si e não de mim, responda.
            Dantés esperou o interrogatório anunciado por estas palavras, mas inutilmente: Villefort voltou a deixar-se cair na poltrona, passou a mão gelada pela testa coberta de suor e releu a carta pela terceira vez.
            - Oh, se ele soubesse o que contém esta carta? -  murmurou. - Se soubesse alguma vez que Noirtier é o pai de Villefort, seria eu quem estaria perdido, perdido para sempre!
            E de vez em quando olhava para Edmond, como se o seu olhar pudesse quebrar a barreira invisível que encerra no coração os segredos que a boca guarda.
            - Oh, deixemo-nos de hesitações! - exclamou de súbito.
            - Mas, em nome do Céu, senhor - pediu o pobre rapaz –, se desconfia de mim, se tem suspeitas a meu respeito, interrogue-me, estou pronto a responder-lhe.
            Villefort fez um esforço violento sobre si mesmo e disse num tom que pretendia tornar firme:
            - Senhor, as acusações mais graves resultam para si do seu interrogatório e não está portanto na minha mão, como de início esperei, po-lo imediatamente em liberdade; antes de tomar semelhante medida devo consultar o juiz de instrução. Entretanto, já viu de que forma o tenho tratado...
            - Oh, sim, senhor, e agradeço-lhe, pois tem sido para mim muito mais amigo do que um juiz! - declarou Dantés.
            - Pois bem, senhor, vou conservá-lo mais algum tempo preso, mas o menos que puder. A principal acusação que existe contra si é esta carta, e como vê...
            Villefort aproximou-se da chaminé, lançou-a ao fogo e deixou-se estar até  a carta ficar reduzida a cinzas.
            - E como vê - continuou - destruo-a.
            - Oh, o senhor é mais do que justiça, é a bondade! - exclamou Dantés.
            - Mas escute-me - prosseguiu Villefort.-Depois de semelhante ato, decerto compreende que pode confiar em mim, não é verdade?
            - Oh, senhor, ordene e cumprirei as suas ordens!
            - Não - disse Villefort aproximando-se do rapaz –, não são ordens o que lhe quero dar, são conselhos, compreende?
            - Diga-os e me conformarei com eles como se fossem ordens.
            - Vou conservá-lo aqui, no Palácio da Justiça, até  à noite. Talvez mais alguém o venha interrogar: diga tudo o que me disse, mas nem uma palavra acerca da carta.
            - Prometo-lhe, senhor.
            Agora era Villefort que parecia suplicar, era o argüido que tranqüilizava o juiz.
            - Compreende - disse, deitando um olhar às cinzas, que ainda conservavam a forma do papel e que esvoaçavam por cima das chamas –, agora a carta desapareceu, só o senhor e eu sabemos que ela existiu. Ninguém tornará a apresentá-la. Negue-a, pois, se lhe falarem dela, negue decididamente e estará salvo.
            - Negarei, senhor esteja tranqüilo - prometeu Dantés.
            - Muito bem, muito bem - aprovou Villefort, levando a mão ao cordão de uma campainha.
            Depois, detendo-se um momento de tocar:
            - Era a única carta que tinha - perguntou.
            - A única.
            - Jure.
            Dantés estendeu a mão.
            - Juro - disse.
            Villefort tocou.
            O comissário da polícia entrou.
            Villefort aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido a que o comissário respondeu com um simples aceno de cabeça.
            - Vá senhor – disse Villefort a Dantés.
            Dantés inclinou-se, deitou um último olhar de reconhecimento a Villefort e saiu.
            Assim que a porta se fechou atrás dele, as forças faltaram a Villefort, que caiu quase sem sentidos numa poltrona.
            Passado um instante, murmurou:
            - Oh, meu Deus, de que dependem a vida e a fortuna!... Se o procurador régio estivesse em Marselha, se o juiz de instrução tivesse sido chamado em meu lugar, estaria perdido: aquele papel, aquele papel maldito me precipitaria no abismo. Ah, meu pai, meu pai! Será sempre um obstáculo à minha felicidade neste mundo e deverei lutar eternamente com o seu passado?
            Depois, de súbito, um clarão inesperado pareceu passar-lhe pelo espírito e iluminou-lhe o rosto; desenhou-se-lhe um sorriso na boca ainda crispada e os seus olhos assustados tornaram-se fixos e pareceram deter-se num pensamento.
            - É isso - disse. - Sim, essa carta que me devia perder talvez faça a minha fortuna. Vamos, Villefort, mãos à obra.
            E depois de se assegurar de que o argüido já não estava na antecâmara, o substituto do procurador régio saiu por seu turno e dirigiu-se rapidamente para casa da noiva.


Capítulo VIII

O Castelo de If

            Ao atravessar a antecâmara, o comissário de polícia fez sinal a dois guardas, os quais se colocaram um à direita e o outro à esquerda da Dantés. Abriu-se uma porta que punha em comunicação
os aposentos do procurador régio com o Palácio da Justiça e seguiram durante algum tempo por um desses  grandes corredores sombrios que arrepiam aqueles que os percorrem, mesmo quando não têm nenhum motivo para se arrepiar.
            Assim como os aposentos de Villefort comunicavam com o Palácio da Justiça, também o Palácio da Justiça comunicava com a prisão, edifício sombrio contíguo ao palácio e que olhava curiosamente, com todas as suas aberturas medonhas, o campanário dos Accouies que se erguia diante dele.
            Depois de várias voltas, Dantés viu o corredor por onde seguia desembocar numa porta com um postigo de ferro. O comissário de polícia bateu com uma aldraba de ferro três pancadas que soaram para Dantés como se fossem desferidas no seu próprio coração. A porta abriu-se e os dois guardas empurraram levemente o prisioneiro, que hesitou novamente. Dantés transpôs o temível limiar e a porta tornou a fechar-se atrás dele. Respirava-se ali outro ar, um ar mefítico e pesado: estava numa prisão.
            Conduziram-no a um quarto bastante limpo, mas gradeado e aferrolhado. No entanto, o aspecto do alojamento não o assustou. Aliás, as palavras do substituto do procurador régio, proferidas numa voz que parecera a Dantés tão cheia de interesse, ecoavam-lhe aos ouvidos como uma suave promessa de esperança.
            Eram já quatro horas quando Dantés fora conduzido à sua cela. Estava-se, como já dissemos, em 1 de Março. O prisioneiro não tardou a encontrar-se às escuras.
            Então o sentido do ouvido substituiu nele o sentido da vista, que acabava de perder. Ao menor ruído que chegava até  ele, convencido de que o vinham pôr em liberdade, levantava-se vivamente e dava um passo para a porta; mas em breve o ruído ia morrendo noutra direção e Dantés tornava a deixar-se cair no banco.
            Por fim, cerca das dez horas da noite, quanto Dantés começava a perder a esperança, ouviu-se novo ruído que lhe pareceu dirigir-se para a sua cela. Com efeito, soaram passos no corredor que se detiveram diante da sua porta. Uma chave girou na fechadura, os ferrolhos rangeram e a maciça barreira de carvalho
abriu-se e deixou entrar de súbito na cela a luz deslumbrante de dois archotes.
            Ao clarão desses dois archotes, Dantés viu brilhar os sabres e os mosquetões de quatro guardas.
            Dera dois passos em frente, mas ficou imóvel no seu lugar ao ver aquele aumento de forças.
            - Vêm buscar-me? - perguntou Dantés.
            - Viemos - respondeu um dos guardas.
            - Da parte do Sr. Substituto do Procurador régio?
            - Creio que sim.
            - Bom, estou pronto a acompanhá-los - declarou Dantés.
            A convicção de que vinham buscá-lo da parte do Sr. de Villefort tirava todo o receio do infeliz rapaz. Avançou, pois, de espírito calmo e andar desembaraçado e colocou-se ele próprio no meio da escolta.
            À porta esperava uma carruagem com o cocheiro no seu lugar e um polícial sentado ao lado do cocheiro.
            - É para mim que esta carruagem está aqui? - perguntou Dantés.
            - É para você - respondeu um dos guardas. - Suba. 
            Dantés quis fazer algumas observações, mas a portinhola abriu-se e sentiu-se empurrado. Não havia possibilidade nem sequer intenção de opor resistência, pelo que se encontrou num instante sentado ao fundo da carruagem, entre dois guardas. Os outros dois sentaram-se no banquinho fronteiro e o pesado veiculo
começou a rodar com um ruído sinistro.
            O prisioneiro olhou para as janelas; eram gradeadas. Mudara apenas de prisão. A única diferença era aquele rodar e transportá-lo para destino ignorado. Através dos varões apertados a ponto de mal poder passar a mão entre eles, Dantés reconheceu no entanto que percorriam a Rua Caisserie e que pela Rua Tamaris desciam para o cais.
            Em breve distinguiu através das suas grades e das do monumento junto do qual se encontrava as luzes da Consigne.
            A carruagem parou e o policial desceu e aproximou-se da casa da guarda. Saiu uma dúzia de soldados que formaram alas. Ao clarão dos candeeiros do cais, Dantés viu reluzirem-lhes as espingardas.
            “Será por minha causa que se exibe semelhante força militar?”, perguntou Dantés a si mesmo.
            Ao abrir a portinhola fechada à chave, o policial respondeu a esta interrogação, embora sem pronunciar uma única palavra, pois Dantés viu entre as duas alas de soldados um caminho aberto para
ele, da carruagem ao porto.
            Os dois guardas que estavam sentados no banco da frente foram os primeiros a descer, depois fizeram-no descer a ele e por fim seguiram-no os que se sentavam a seu lado.  Encaminharam-se para um escaler que um marinheiro da alfândega mantinha junto do cais, seguro por uma corrente. Os soldados
viram passar Dantés com ar de curiosidade aparvalhada. Instalaram-no num instante à popa do barco, sempre no meio de quatro guardas, enquanto o policial se mantinha à proa. Um empurrão violento afastou o barco da muralha e quatro remadores remaram vigorosamente na direção de Pilon. A um grito soltado
do barco a corrente que fechava o porto desceu e Dantés encontrou-se no chamado Frioul, isto é, fora do porto.
            O primeiro impulso do prisioneiro ao ver-se ao ar livre fora um impulso de alegria. O ar era quase a liberdade. Respirou, pois, a plenos pulmões aquela brisa fresca, que trazia nas asas todos os aromas desconhecidos da noite e do mar. Não tardou, porém, a soltar um suspiro ao passar diante da Réserve, onde fora tão feliz naquela mesma manhã, durante a hora que precedera a sua prisão. Através de duas janelas abertas chegava até  ele o barulho alegre de um baile.
            Dantés juntou as mãos, ergueu os olhos ao céu e rezou.
            O escaler continuava a sua rota. Ultrapassara a Caveira e estava defronte da enseada do Pharao. Ia contornar a bateria, o que era uma manobra incompreensível para Dantés.
            - Para onde me levam? - perguntou a um dos guardas.
            - Em breve saberá.
            - Mas então...
            - Estamos proibidos de lhe dar qualquer explicação.
            Dantés era meio soldado. Interrogar subordinados aos quais fora proibido responder pareceu-lhe uma coisa absurda e por isso calou-se. 
            Então, acudiram-lhe ao espírito os pensamentos mais estranhos. Como se não podia fazer grande viagem em semelhante barco e não havia nenhum navio ancorado do lado para onde se dirigiam, pensou
que o iam desembarcar num ponto afastado da costa e dizer-lhe que estava livre. Não se encontrava amarrado nem tinham feito qualquer tentativa para o algemar, o que lhe parecia de bom  augúrio. Aliás, não lhe dissera o substituto, que tão bom fora para ele, que contanto que não pronunciasse o nome fatal de
Noirtier nada tinha a temer? Não destruíra Villefort, na sua presença, aquela carta perigosa, única prova existente contra ele?
            Esperou, pois, mudo e pensativo, procurando devassar com os olhos de marinheiro conhecedor das trevas e habituado ao espaço a escuridão da noite.
            Tinham deixado à direita a ilha Ratonneau, onde ardia um farol, e, seguindo quase ao longo da costa, haviam chegado à altura da enseada dos Catalães. Ali, os olhares do prisioneiro tornaram-se mais  perscrutadores, era ali que estava Mercedes, e parecia-lhe a cada instante ver desenhar-se na margem sombria a forma vaga e indecisa de uma mulher.
            Porque não diria um pressentimento a Mercedes que o seu apaixonado passava a trezentos passos dela?
            Brilhava uma única luz nos Catalães. Observando a posição dessa luz, Dantés reconheceu que ela iluminava o quarto da noiva. Mercedes era a única que velava em toda a coloniazinha. Se gritasse com força, o jovem poderia fazer-se ouvir pela noiva.
            Uma vergonha injustificada conteve-o. Que diriam os homens que o olhavam se o ouvissem gritar como um insensato?  Ficou portanto mudo e com os olhos cravados naquela luz.
            Entretanto, o barco continuava a sua rota. Mas o prisioneiro não pensava no escaler, pensava em Mercedes. Um acidente de terreno fez desaparecer a luz. Dantés virou-se e verificou que o barco se dirigia para o largo.
            Enquanto olhava, absorto nos seus próprios pensamentos, tinham substituído os remos por velas e o barco avançava agora impelido pelo vento.
            Apesar da repugnância que Dantés experimentava em dirigir ao guarda novas perguntas, aproximou-se dele e disse-lhe, pegando-lhe na mão:
            - Camarada, em nome da sua consciência e da sua qualidade de soldado peço-lhe que tenha compaixão de mim e me responda. Sou o comandante Dantés, bom e leal francês, apesar de acusado de
não sei que traição. Para onde me levam? Diga-me e, palavra de marinheiro, cumprirei o meu dever e resignar-me-ei com a minha sorte.
            O guarda coçou a orelha e olhou para o seu camarada. Este fez um gesto que significava pouco mais ou menos: “Parece-me que no ponto em que estamos não há inconveniente.” O outro virou-se então para Dantés e disse-lhe:
            - O senhor é marselhês e marinheiro e ainda nos pergunta para onde vamos?
            - Pergunto porque, pela minha honra, ignoro-o.
            - Nem, desconfia?
            - De modo nenhum.
            - Não é possível. 
            - Juro-lhe pelo que tenho de mais sagrado no mundo. Responda-me, por piedade!
            - Mas as ordens?
            - As ordens não o proíbem de me informar do que saberei dentro de dez minutos, de meia hora ou talvez de uma hora. Apenas me poupará, entretanto, séculos de incerteza. Peço-lhe como se fosse meu amigo. Repare, não pretendo revoltar-me nem fugir. De resto, não posso. Para onde vamos?
            - A menos que tenha uma venda nos olhos ou que nunca tenha saído do porto de Marselha, deve no entanto adivinhar para onde vai.
            - Não.
            - Nesse caso, olhe à sua volta.
            Dantés levantou-se, olhou naturalmente para o ponto para onde parecia dirigir-se o barco e, cem toesas à sua frente, viu erguer-se a rocha negra e escarpada em que se elevava, com uma superfetação do sílex, o sombrio Castelo de If.
            Aquela forma estranha, aquela prisão envolta em tão profundo terror, aquela fortaleza que havia trezentos anos impunha as suas lúgubres tradições a Marselha, aparecendo assim de repente a Dantés, que não pensava nela, produziu-lhe o efeito que produz ao condenado à morte o aspecto do cadafalso.
            - Ah, meu Deus, o Castelo de If! - exclamou. - E que vamos fazer lá?
            O guarda sorriu.
            - Vão-me encarcerar lá? - continuou Dantés. - Mas o Castelo de If é uma prisão de Estado destinada apenas aos grandes criminosos políticos. Ora, eu não cometi nenhum crime. No Castelo de If existem, porventura, juízes de instrução ou quaisquer outros magistrados?
            - Suponho que só existe um governador, carcereiros, uma guarnição e bons muros. Vamos, vamos, amigo, não mostre tanto espanto; porque na verdade me faria supor que retribui a minha condescendência troçando de mim.
            Dantés apertou a mão do guarda como se lha quisesse partir.
            - Pretende - insistiu - que me conduzem ao Castelo de If para me encerrar?
            - É provável - respondeu o guarda. - Seja como for, camarada, é inútil apertar-me a mão com tanta força.
            - Sem mais investigações, sem mais formalidades? - perguntou o jovem.
            - As formalidades estão preenchidas e as investigações concluídas.
            - Assim, apesar da promessa do Sr. de Villefort?...
            - Não sei se o Sr. de Villefort lhe fez alguma promessa - perguntou o guarda –, mas o que sei é que vamos para o Castelo de If. Eh, lá, que está fazendo?! A mim, camaradas, a mim!
            Num gesto rápido como um relâmpago, mas que no entanto fora previsto pelo olhar experiente do guarda, Dantés quisera lançar-se ao mar. Mas quatro mãos vigorosas seguraram-no no momento em que os seus pés deixavam o fundo do barco e fizeram-no cair dentro dele bramindo de raiva.
            - Ora aí está! - exclamou o guarda, pondo-lhe um joelho no peito. - Ora aí está como cumpre a sua palavra de marinheiro. Isso é o que recebemos por acreditar em  gente de fala mansa... Pois agora, meu caro amigo, se fizer um movimento, um só, meto-lhe uma bala na cabeça. Não cumpri a minha primeira ordem, mas garanto-lhe que cumprirei a segunda.
            E baixou efetivamente a carabina na direção de Dantés, que sentiu encostar-lhe a ponta do cano à têmpora.
            Por um instante sentiu a tentação de fazer o movimento proibido e de acabar assim, violentamente, com a desgraça inesperada que se abatera sobre ele e o tomara de súbito nas suas garras de abutre. Mas precisamente por essa desgraça ser inesperada, Dantés pensou que não podia ser duradoura. Depois, acudiram-lhe ao espírito as promessas do Sr. de Villefort; por último, forçoso é dizê-lo, a morte no fundo de
um barco, dada pela mão de um guarda, pareceu-lhe indecorosa e indigna.
            Deixou-se cair no fundo do barco, soltando um bramido de raiva e mordendo as mãos com furor.
            Quase no mesmo instante um choque violento sacudiu o escaler. Um barqueiro saltou para a rocha que a proa da embarcação acabava de tocar, uma corda chiou ao desenrolar-se à volta de um moitão e Dantés compreendeu que tinham chegado e amarravam o barco.
            Com efeito, os guardas, que o seguravam ao mesmo tempo pelos braços e pela gola da veste, obrigaram-no a levantar-se e a desembarcar e arrastaram-no para os degraus que subiam até  à porta da cidadela, enquanto o polícial, armado com um mosquetão de baioneta calada, seguia atrás dele.
            Aliás, Dantés não esboçou sequer uma resistência que seria inútil: a sua lentidão devia-se mais à inércia do que à oposição. Estava aturdido e cambaleava como um ébrio. Viu de novo os soldados escalonarem-se nos taludes íngremes, sentiu os degraus obrigarem-no a levantar os pés e notou que transpunha uma porta e que essa porta se fechava atrás de si, mas tudo isto maquinalmente, como que através de um nevoeiro, sem nada distinguir de positivo. Nem sequer via o mar, essa dor imensa dos prisioneiros, que olham o espaço com o sentimento terrível de que são impotentes para o transpor.
            Houve um breve alto, durante o qual procurou concentrar idéias. Olhou à sua volta: estava num pátio quadrado, formado por quatro altas muralhas. Ouvia-se o passo lento e regular das sentinelas e todas as vezes que passavam diante dos dois ou três reflexos que projetavam nas muralhas o clarão de duas ou três luzes que brilhavam no interior do castelo via-se cintilar o cano das suas espingardas.
            Esperaram ali dez minutos, pouco mais ou menos. Certos de que Dantés já não podia fugir, os guardas tinham-no largado. Pareciam esperar ordens. Essas ordens chegaram.
            - Onde está o prisioneiro? - perguntou uma voz.
            - Está aqui - responderam os guardas.
            - Que venha comigo; vou conduzi-lo ao seu alojamento.
            - Vá - disseram os guardas, empurrando Dantés.
            O prisioneiro seguiu o indivíduo, que o conduziu efetivamente a uma sala quase subterrânea cujas paredes nuas e suadas pareciam impregnadas de um vapor de lágrimas. Uma espécie de lampião pousado num banco e cuja mecha nadava numa gordura fétida iluminava as paredes luzidias da horrível sala e  mostrava a Dantés o seu acompanhante, espécie de carcereiro subalterno, mal vestido e de cara desagradável.
            - Aqui tem o seu quarto para esta noite - informou. É tarde e o Sr. Governador está deitado. Amanhã, quando acordar e tomar conhecimento das ordens que lhe dizem respeito, talvez o mude de instalação. Entretanto, aqui tem pão. Há  água naquela bilha e palha ali no canto. É tudo o que um prisioneiro pode desejar. Boa noite.
            E antes de Dantés pensar em abrir a boca para lhe responder, antes de ver onde o carcereiro pousava o pão, antes de se dar conta do lugar onde estava a bilha e antes de volver os olhos para o canto onde se encontrava a palha destinada a servir-lhe de cama, o carcereiro pegou no lampião, saiu, fechou a porta e
privou o prisioneiro da luz baça que lhe mostrara como que ao clarão de um relâmpago as paredes encharcadas da sua prisão.
            Encontrou-se então sozinho no meio das trevas e do silêncio, tão mudo e tão sombrio como as abóbadas cujo frio glacial sentia descer sobre a testa escaldante.
            Quando os primeiros raios da alvorada trouxeram um pouco de claridade àquele antro, o carcereiro voltou com a ordem de deixar o prisioneiro onde se encontrava. Dantés nem sequer mudara de lugar. Uma mão de ferro parecia tê-lo pregado no mesmo local onde na véspera se detivera. Apenas o seu olhar profundo se ocultava debaixo de um inchaço causado pelo vapor úmido das suas lágrimas. Estava imóvel e olhava para o chão.
            Passara assim toda a noite de pé e sem dormir um só instante. O carcereiro aproximou-se dele, andou à sua volta, mas Dantés não pareceu vê-lo.
            Bateu-lhe no ombro, Dantés estremeceu e abanou a cabeça.
            - Não dormiu? - perguntou-lhe o carcereiro.
            - Não sei - respondeu Dantés.
            O carcereiro olhou-o com espanto.
            - Não tem fome? - continuou.
            - Não sei - respondeu novamente Dantés.
            - Quer alguma coisa?
            - Queria ver o governador.
            O carcereiro encolheu os ombros e saiu.
            Dantés seguiu-o com a vista, estendeu as mãos para a porta entreaberta, mas a porta fechou-se.
            Então o peito pareceu rasgar-se-lhe num longo soluço. As lágrimas que lhe enchiam o peito brotaram como dois riachos. Ajoelhou-se, encostou a testa ao chão e rezou durante muito tempo. Repassou no espírito toda a sua vida passada e perguntou a si mesmo que crime cometera na vida, tão jovem ainda, que  merecesse tão cruel punição.
            O dia passou-se assim. Comeu apenas alguns nacos de pão e bebeu alguns goles de água. Tão depressa ficava sentado e absorto nos seus pensamentos como caminhava a toda a volta da prisão, qual
fera encerrada numa jaula de ferro.
            Havia sobretudo um pensamento que o punha fora de si: o de que durante a travessia, onde, na ignorância do local para onde o conduziam, permanecera tão calmo e tranqüilo, poderia ter-se dez vezes deitado ao mar e, uma vez na água, graças à sua perícia de nadador, graças ao hábito que o tornara um dos  mais hábeis mergulhadores de Marselha, desaparecer debaixo d'água, fugir dos guardas, alcançar a costa, escapar, esconder-se em qualquer enseada deserta, esperar um navio genovês ou catalão, alcançar a Itália ou a Espanha, e de lá escrever a Mercedes para que se juntasse a ele. Quanto à sua vida em qualquer pais era coisa que não o preocupava. Em toda a parte os marinheiros eram raros e falava italiano como um toscano e espanhol como um natural de Castela-a-Velha. Viveria livre e feliz com Mercedes e com o pai,
pois o pai também iria ter com ele, ao passo que assim estava prisioneiro, encerrado no Castelo de lf, naquela prisão intransponível, sem saber o que era feito do pai nem de Mercedes, e tudo isso porque acreditara na palavra de Villefort. Era de enlouquecer. Por isso, Dantés rebolava-se furioso na palha fresca
que lhe trouxera o carcereiro.
            No dia seguinte, à mesma hora, o carcereiro voltou.
            - Então, está hoje mais razoável do que ontem? - perguntou-lhe.
            Dantés não respondeu.
            - Que diabo, um pouco de coragem! - insistiu o carcereiro. - Deseja alguma coisa que esteja ao meu alcance? Vamos, diga.
            - Desejo falar com o governador.
            - O quê? Já lhe disse que é impossível - perguntou o carcereiro com impaciência.
            - Impossível porquê?
            - Porque pelos regulamentos da prisão não é permitido aos prisioneiros pedir isso.
            - Então, que é permitido aqui? - perguntou Dantés.
            - Melhor alimentação, pagando, passear e às vezes livros.
            - Não preciso de livros, não tenho nenhuma vontade de passear e acho a minha alimentação boa. Portanto, só quero uma coisa: ver o governador.
            - Se continua a repetir-me sempre a mesma coisa, não lhe trago mais de comer - ameaçou-o o carcereiro.
            - Se não me trouxeres mais de comer - respondeu Dantés –, morrerei de fome e pronto!
            O tom em que Dantés proferiu estas palavras provou ao carcereiro que o seu prisioneiro se daria por feliz se morresse.  Por isso, como qualquer prisioneiro rendia, bem feitas as contas, cerca de dez soldos por dia ao seu carcereiro, o de Dantés avaliou o prejuízo que lhe acarretaria tal morte e insistiu em tom mais ameno:
            - Ouça, o que deseja é impossível. Portanto, não insista, pois não há exemplo de, a pedido de um prisioneiro, o governador ir à sua cela. Mas se o senhor se portar bem lhe permitirão o passeio e é possível que um dia, enquanto passeia, o governador passe... Então, poderá  dirigir-lhe a palavra e se ele lhe quiser
responder é lá com ele.
            - Mas quanto tempo posso esperar assim sem que esse acaso se verifique? - perguntou Dantés.
            - Sei lá! - respondeu o carcereiro. - Um mês, três meses, seis meses, talvez um ano...
            - É demasiado - perguntou Dantés. - Quero vê-lo imediatamente.
            - Bom, o melhor é não se entregar assim a um único desejo impossível ou antes de quinze dias estará  louco. 
            - Acha? - perguntou Dantés.
            - Sim, louco. É sempre assim que começa a loucura; temos aqui um exemplo disso. Foi por estar constantemente a oferecer um milhão ao governador, se o pusesse em liberdade, que o cérebro do
abade que esteve nesta cela antes do senhor se avariou.
            - E há quanto tempo deixou esta cela?
            - Dois anos.
            - Puseram-no em liberdade?
            - Não, meteram-no numa masmorra.
            - Escute - disse Dantés. - Não sou um abade nem sou um louco. Talvez venha a ser, mas infelizmente, neste momento, ainda estou em meu perfeito juízo. Vou fazer te outra proposta.
            - Qual?
            - Não te oferecerei um milhão, porque não poderia lhe dar; mas te oferecerei cem escudos se quiser, na primeira vez que for a Marselha, descer até  aos Catalães e entregar uma carta a uma moça chamada Mercedes. Nem sequer uma carta, apenas duas linhas.
            - Se levasse essas duas linhas e fosse descoberto, perderia o meu lugar, que é de mil libras por ano, sem contar com os extraordinários e com a alimentação. Como vê, seria um grande imbecil se me arriscasse a perder mil libras para ganhar trezentas.
            - Nesse caso, escuta e toma bem nota disto - disse Dantés. - Se recusa levar duas linhas a Mercedes ou pelo menos preveni-la de que estou aqui, um dia te esperarei escondido atrás da minha porta e quando entrar te quebrarei a cabeça com este banco.
            - Ameaças!... - exclamou o carcereiro, dando um passo atrás e pondo-se na defensiva. -  Decididamente, não está bom da cabeça. O abade começou como o senhor e dentro de três dias o senhor
estará doido varrido como ele. Felizmente não faltam masmorras no Castelo de If.
            Dantés pegou no banco e fê-lo girar à volta da cabeça.
            - Está bem, está bem! - disse o carcereiro. - Pronto, uma vez que insiste, vou prevenir o governador.
            - Depressa! - perguntou Dantés, voltando a pousar o banco no chão e sentando-se nele, de cabeça baixa e olhos esgazeados, como se realmente tivesse enlouquecido.
            O carcereiro saiu e regressou pouco depois com quatro soldados e um cabo.
            - Por ordem do governador - disse –, desçam o prisioneiro para o andar por baixo deste.
            - Para as masmorras, então - observou o cabo.
            - Sim, para as masmorras. Devem pôr-se os loucos junto dos loucos.
            Os quatro soldados agarraram Dantés, que caiu numa espécie de atonia e os acompanhou sem resistência.
            Fizeram-no descer quinze degraus e abriram a porta de uma masmorra na qual entrou murmurando:
            - Tem razão, devem pôr-se os loucos junto dos loucos.
            A porta voltou a fechar-se e Dantés caminhou em frente com as mãos estendidas até  tocar na parede. Então, sentou-se num canto e ficou imóvel,  enquanto os seus olhos se habituavam pouco a pouco à obscuridade e começavam a distinguir os objetos.
            O carcereiro tinha razão: faltava muito pouco para que Dantés enlouquecesse.


Capítulo IX

A festa de noivado

            Como dissemos, Villefort retomara o caminho da praça Grand-Cours e quando entrou em casa da Sra de Saint-Méran encontrou os convivas, que deixara à mesa, tomando o café na sala.
            Renée esperava-o com uma impaciência que era compartilhada por todo o resto da sociedade. Foi, pois, acolhido com uma exclamação geral.
            - Então, cortador de cabeças, sustentáculo do Estado, Bruto monárquico, que aconteceu? - perguntou um. - Vamos, diga!
            - Estamos ameaçados por um novo regime de Terror? -  indagou outro.
            - O papão da Côrsega saiu da sua caverna? inquiriu terceiro.
            - Sra Marquesa - disse Villefort, aproximando-se da sua futura sogra –, suplico-lhe me desculpe de ser obrigado a deixá-la assim... Sr. Marquês, poderei ter a honra de lhe dizer duas palavras em particular?
            - Oh! Quer dizer que o caso é realmente grave? -  perguntou a marquesa, notando a sombra que obscurecia a testa de Villefort.
            - Tão grave que sou obrigado a pedir-lhes licença para me ausentar uns dias. Por aqui podem ver - continuou, virando-se para Renée - se o caso é ou não grave.
            - Parte, senhor? - perguntou Renée, incapaz de ocultar o abalo que lhe causava aquela noticia inesperada.
            - Infelizmente, menina - respondeu Villefort. - É preciso.
            - E aonde vai? - perguntou a marquesa.
            - É segredo de justiça, minha senhora. No entanto, se alguém aqui tem alguma coisa para Paris, um dos meus amigos partirá esta noite e se encarregará disso com prazer. Todos se entreolharam.
            - Pediu-me que o ouvisse por um momento? - lembrou o marquês.
            - Pedi. Passemos ao seu gabinete, por favor.
            O marquês tomou o braço de Villefort e saiu com ele.
            - Então, que se passa? - perguntou quando chegaram ao gabinete. - Vamos, fale.
            - Coisas que creio da mais alta gravidade e que exigem a minha partida neste instante para Paris. Agora, marquês, desculpe a indiscreta brutalidade da pergunta: possui títulos do Estado?
            - Toda a minha fortuna está em títulos da dívida pública; seiscentos a setecentos mil francos, pouco mais ou menos.
            - Venda-os marquês. Venda-os ou ficará arruinado. 
            - Mas como quer que os venda daqui?
            - Tem um corretor, não tem?
            - Tenho.
            - Dê-me uma carta para ele, e que venda sem perda de um minuto, sem perda de um segundo. Poderei chegar até  demasiado tarde.
            - Demônio, nesse caso não percamos tempo! - exclamou o marquês.
            Sentou-se à mesa e escreveu uma carta ao seu corretor na qual lhe ordenava que vendesse a todo o custo.
            - Agora que tenho esta carta - disse Villefort, guardando-a cuidadosamente na carteira - preciso de outra.
            - Para quem?
            - Para o rei.
            - Para o rei?
            - Sim.
            - Mas não me atrevo a escrever assim a Sua Majestade.
            - Por isso, não é ao senhor que a peço, mas encarrego-o de a pedir ao Sr. de Salvieux. É necessário que me dê uma carta com o auxílio da qual possa penetrar até  junto de Sua Majestade sem ser submetido a todas as formalidades de pedido de audiência que me podem fazer perder um tempo precioso.
            - Mas não tem o ministro da Justiça, que entra quando quer nas Tulherias e por intermédio do qual poderá, de dia e de noite, chegar junto do rei?
            - Tenho, sem dúvida, mas para quê partilhar com outro o mérito da notícia de que sou portador? Compreende o que quero dizer? O ministro me relegaria muito naturalmente para segundo plano e me privaria de todo o proveito no caso. Só lhe digo uma coisa, marquês: a minha carreira estará  assegurada se conseguir ser o primeiro a chegar às Tulherias, porque prestarei ao rei um serviço que lhe não será  permitido esquecer.
            - Nesse caso, meu caro, vá fazer as malas. Entretanto, chamarei Salvieux e lhe pedirei que escreva a carta que deverá servir-lhe de salvo-conduto.
            - Bom, não perca tempo, pois dentro de um quarto de hora tenho de tomar a sege de posta.
            - Mande parar a carruagem diante da porta.
            - Sem dúvida nenhuma... Desculpar-me-á  junto da marquesa, não é verdade? E também junto de Mademoiselle de Saint-Méran, que deixo num dia como este com bem profundo pesar.
            - Encontrará  ambas no meu gabinete e poderá  despedir-se delas.
            - Mil vezes obrigado. Trate da minha carta.
            O marquês tocou. Apareceu um lacaio.
            - Diga ao conde Salvieux que o espero... Vá agora - continuou o marquês dirigindo-se a Villefort.
            - Bom, é só o tempo de ir e vir.
            E Villefort saiu correndo. Mas à porta pensou que um substituto do procurador régio que fosse visto caminhando em passos precipitados se arriscaria a perturbar o repouso de toda a cidade. Retomou portanto o seu passo normal já dono de si, sua porta distinguiu na sombra como que um branco fantasma que o esperasse de pé e imóvel. 
            Era a bela moça catalã que, não tendo notícias de Edmond, esgueirara-se ao cair da noite do Pharao para vir saber pessoalmente o motivo da prisão do seu amado.
            Ao aproximar-se Villefort, afastou-se da parede a que se encostava e veio cortar-lhe o caminho. Dantés falara da noiva ao substituto e Mercedes não teve necessidade de se apresentar para que Villefort a reconhecesse. Ficou surpreendido com a dignidade daquela mulher e quando ela lhe perguntou que era feito do seu amado pareceu-lhe ser ele o acusado e ela o juiz.
            - O homem a que se refere - declarou Villefort, bruscamente - é um grande criminoso e não posso fazer nada por ele, menina.
            Mercedes deixou escapar um soluço e como Villefort procurasse seguir o seu caminho ela deteve-o segunda vez.
            - Mas ao menos onde está, para que me possa informar se se encontra morto ou vivo? - perguntou.
            - Não sei, já me não pertence - respondeu Villefort.
            E perturbado por aquele olhar meigo e por aquela atitude suplicante, afastou Mercedes, entrou e fechou rapidamente a porta, como que para deixar do lado de fora aquela dor que lhe traziam.
            Mas a dor não se deixou repelir assim. Como o dado mortal de que fala Virgílio, o homem ferido levou-a consigo. Villefort entrou, fechou a porta, mas quando chegou à sala as pernas fraquejaram-lhe por seu turno. Soltou um suspiro que parecia um soluço e deixou-se cair numa poltrona.
            Então, no fundo daquele coração doente nasceu o primeiro germe de uma úlcera mortal. Aquele homem que sacrificava à sua ambição, aquele inocente que pagava pelo seu pai culpado, apareceu-lhe
pálido e ameaçador, dando a mão à noiva, pálida como ele, e arrastando atrás de si o remorso, não o que faz saltar o doente como os furiosos da fatalidade antiga, mas sim esse tinido abafado e doloroso que em certos momentos atinge o coração e o deixa contuso, ao recordar uma ação passada, contusão cujas dores lancinantes cavam um mal que se vai aprofundando até  à morte.
            Então, houve na alma daquele homem ainda um instante de hesitação. Já diversas vezes pedira, e isso sem outra emoção do que a da luta do juiz com o acusado, a pena de morte contra os réus; e esses réus, executados graças à eloquência avassaladora com que dominara os juízes ou o júri, nem sequer lhe tinham
deixado uma sombra na fronte, porque eram culpados, ou pelo menos Villefort assim os considerava.
            Mas desta vez o caso era muito diferente: acabava de aplicar a um inocente uma pena de prisão perpétua, a um inocente que ia ser feliz e a quem roubava não só a liberdade, mas também a felicidade. Desta vez já não era juiz, era carrasco.
            Pensando nisto, sentia a palpitação abafada que descrevemos, e que até  ali desconhecera, ecoar-lhe no fundo do coração e encher-lhe o peito de vagas apreensões. É assim, através do violento sofrimento instintivo, que o ferido é avisado e jamais aproxima sem tremer o dedo da ferida aberta e sangrenta antes
de ela fechar.
            Mas a ferida que recebera Villefort era daquelas que não fecham, ou que só fecham para reabrir mais sangrentas e dolorosas do que anteriormente. 
            Se naquele momento a suave voz de Renée lhe tivesse soado aos ouvidos pedindo-lhe compaixão; se a bela Mercedes tivesse entrado e lhe tivesse dito: “Em nome de Deus que nos vê e nos julga, restitua-me o meu noivo"; sim, aquela fronte que as circunstâncias inclinavam até  meio teria se curvado por completo e as mãos geladas daquele homem teriam sem dúvida, com risco de tudo o que daí pudesse resultar para ele, assinado o mandado de soltura de Dantés. Mas nenhuma voz murmurou no silêncio e a porta só se abriu para entrar o criado de quarto de Villefort, que veio dizer que os cavalos de posta já estavam atrelados à cabeça
de viagem.
            Villefort levantou-se, ou antes, saltou como um homem que vence uma luta intima, correu para a mesa, meteu nas algibeiras todo o ouro que se encontrava numa gaveta, andou um instante sobressaltado, pelo aposento, com a mão na testa e proferindo palavras sem sentido, e por fim, sentindo que o criado acabava
de lhe pôr a capa pelos ombros, saiu, meteu-se na carruagem e ordenou com voz breve ao cocheiro que seguisse para a Rua do Grand-Cours, para casa do Sr. de Saint-Méran. O pobre Dantés estava condenado.
            Como o Sr. de Saint-Méran lhe prometera, Villefort encontrou a marquesa e Renée no gabinete. Ao ver Renée, o jovem estremeceu, pois julgou que ela lhe tosse pedir de novo a liberdade de Dantés. Mas, ai de nós, devemos confessá-lo para vergonha do nosso egoísmo, a linda moça estava preocupada com uma
coisa: a partida de Villefort.
            Amava Villefort e Villefort partia no momento de se tornar seu marido. Villefort não podia dizer quando voltaria e Renée, em vez de lamentar Dantés, amaldiçoou o homem que devido ao seu crime a separava do amado.
            E Mercedes?
            A pobre Mercedes encontrara Fernand, que a seguira, à esquina da Rua de Loge, regressara aos Catalães e, com a morte na alma, desesperada, atirara-se para cima da cama.
            Fernand ajoelhara diante dessa cama e, apertando a mão gelada de Mercedes, que esta não se lembrava de retirar, cobria-lha de beijos ardentes que Mercedes nem sequer sentia.
            A jovem passou a noite assim. O candeeiro apagou-se quando o azeite se acabou, mas Mercedes não deu mais pela obscuridade do que dera pela luz e o dia voltou sem que desse por ele. A dor pusera-lhe diante dos olhos uma venda que só a deixava ver Edmond.
            - Ah, está aí!... - disse por fim, virando-se para o lado de Fernand.
            - Desde ontem que te não deixo - respondeu Fernand, com um suspiro doloroso.
            O Sr. Morrel dera-se por vencido. Soubera que depois do seu interrogatório Dantés fora levado para a prisão. Correra então a casa de todos os seus amigos, apresentara-se em casa das pessoas de Marselha susceptíveis de possuírem influência, mas já se espalhara o boato de que o rapaz fora preso como agente
bonapartista, e como nessa época os mais otimistas consideravam um sonho insensato qualquer tentativa de Napoleão para recuperar o trono, só encontrara por toda a parte frieza, medo ou repúdio e regressara a casa desesperado e reconhecendo que a situação era grave e ninguém podia fazer nada. 
            Pela sua parte, Caderousse estava deveras inquieto e atormentado. Em vez de sair, como fizera o Sr. Morrel; em vez de tentar qualquer coisa a favor de Dantés, embora, aliás, nada pudesse fazer por ele, fechara-se em casa com duas garrafas de cássis e procurara afogar a inquietação na embriaguez. Mas no estado de
espírito em que se encontrava duas garrafas eram pouquíssimo para o porem inconsciente. Ficara portanto demasiado ébrio para ir buscar mais vinho e insuficientemente embriagado para que a embriaguez lhe extinguisse as recordações, apoiado nos cotovelos diante das duas garrafas vazias postas em cima de uma mesa coxa e vendo dançar, à luz da vela de pavio comprido, todos os espectros que Hoffmann espalhou pelos seus manuscritos úmidos de ponche como uma poalha negra e fantástica.
            Só Danglars não estava atormentado nem inquieto. Danglars estava até alegre, pois vingara-se de um inimigo e assegurara a bordo do Pharaon o lugar que temia perder. Danglars era um desses homens calculistas que nascem com uma pena atrás da orelha e um tinteiro no lugar do coração. Neste mundo tudo era para ele subtração ou multiplicação, e um número parecia-lhe muito mais precioso do que um homem, quando esse número podia aumentar o total que o homem podia diminuir.
            Portanto, Danglars deitara-se à hora habitual e dormia tranquilamente.
            Depois de receber a carta do Sr. Salvieux, beijar Renée nas duas faces, beijar a mão da Sra de Saint-Méran e apertar a do marquês, Villefort corria pela estrada de Aix. O Tio Dantés morria de dor e inquietação.
            Quanto a Edmond, sabemos o que lhe aconteceu.


Capítulo X

O Gabinetezinho das Tulherias


            Deixemos Villefort na estrada de Paris, onde, graças a não olhar a despesas, viaja a toda a velocidade, e penetremos através das duas ou três salas que o precedem no gabinetezinho das Tulherias,
de janela arqueada, tão bem conhecido por ter sido o gabinete  favorito de Napoleão e de Luís XVIII e ser hoje o de Luís  Filipe.
            Aí, nesse gabinete, sentado diante de uma mesa de nogueira que trouxera de Hartwell e que, por uma dessas manias familiares às grandes personagens, lhe era especialmente querida, o rei Luís XVIII escutava bastante superficialmente um homem de cinquenta a cinquenta e dois anos, de cabelos grisalhos, figura
aristocrática e aspecto impecável, enquanto anotava à margem um volume de Horácio, edição Gryphius, bastante incorreta apesar de valiosa, e que se prestava muito às sagazes observações filológicas de Sua Majestade.
            - Diz então, senhor... - interveio o rei.
            - Que estou deveras inquieto, sir.
            - Sim? Ter  sonhado com sete vacas gordas e sete vacas magras?
            - Não, Sir, pois isso só nos anunciaria sete anos de fertilidade e sete anos de penúria, e, com um rei tão previdente como Vossa Majestade, a penúria não é de temer.
            - Então de que outro flagelo se trata, meu caro Blacas?
            - Sire, tenho todos os motivos para crer que se está a formar uma tempestade para os lados do Meio-Dia.
            - Não, meu caro duque, creio que está mal informado - respondeu Luís XVIII. - Pelo contrário, sei positivamente que o tempo está excelente para esses lados.
            Como homem de espírito que era, Luís XVIII apreciava o gracejo fácil.
            - Sire - voltou à carga o Sr. de Blacas –, quanto mais não fosse para tranquilizar um fiel servidor, Vossa Majestade não poderia enviar ao Linguadoque, à Provença e ao Delfinado homens de confiança que lhe fizessem um relatório acerca do estado de espirito dessas três províncias?
            - Conimus surdis - respondeu o rei, continuando a anotar o seu Horácio.
            - Sire - perguntou o cortesão rindo, para ter o ar de compreender o hemistíquio do poeta de Venúsia –, Vossa Majestade pode ter perfeitamente razão contando com a sensatez da França; mas eu creio não estar completamente enganado receando qualquer tentativa desesperada.
            - Da parte de quem?
            - Da parte de Bonaparte ou pelo menos do seu partido.
            - Meu caro Blacas, impede-me de trabalhar, com os seus terrores - observou o rei.
            - E a mim, Sire, Vossa Majestade impede-me de dormir, com a sua confiança.
            - Espere, meu caro, espere. Tenho uma nota muito feliz a respeito do “Pastor quum traheret". Espere e continuará depois.
            Fez-se um instante de silêncio, durante o qual Luís XVIII escreveu, com letra tão pequena quanto possível uma nova nota à margem do seu Horácio. Depois dessa nota escrita, disse levantando-se com o ar satisfeito de um homem que julga ter tido uma idéia quando se limitou a comentar a idéia de outro:
            - Continue, meu caro duque. Continue, escuto-o.
            - Sire - começou Blacas, que por um instante alimentara a esperança de confiscar Villefort em seu proveito –, sou forçado a dizer-lhe que não são de modo algum simples boatos sem fundamento, simples palavras no ar que me preocupam. É um homem bem pensante, merecedor de toda a minha confiança e
encarregado por mim de vigiar o Meio-Dia (o duque hesitou ao pronunciar estas palavras), que chega pela posta para me dizer: “Um grande perigo ameaça o rei." é por isso que estou aqui, Sire.
            - “Mala ducis ari domum - continuou Luís XVIII a anotar.
            - Vossa Majestade ordena-me que não volte a insistir neste assunto?
            - Não, meu caro duque; mas estenda a mão.
            - Qual?
            - A que quiser, ali, à esquerda.
            - Aqui, Sire?
            - Digo-lhe à esquerda e você procura à direita... Quero dizer à minha  esquerda. Aí... Acertou. Deve encontrar aí o relatório do ministro da Polícia datado de ontem... Mas veja, aí está o próprio Sr. Dandré... Não foi o Sr. Dandré que disse? - interrompeu-se Luís XVIII, dirigindo-se ao contínuo que, efetivamente, acabava de anunciar o ministro da Polícia.
            - Foi, Sire, o Sr. Barão Dandré - repetiu o contínuo.
            - Vem a propósito, barão - prosseguiu Luís XVIII com um sorriso imperceptível. - Entre, barão, e conte ao duque o que sabe de mais recente acerca do Sr. Bonaparte. Não nos dissimule nada da situação, por mais grave que seja. Vejamos, a ilha de Elba é um vulcão do qual vamos ver sair a guerra chamejante e toda
eriçada: “Bella, horrida bella?"
            O Sr. Dandré balouçou-se muito graciosamente nas costas de uma poltrona em que apoiava as mãos e disse:
            - Vossa Majestade dignou-se consultar o relatório de ontem?
            - Sim, sim. Mas diga ao duque, que o não consegue encontrar, o que continha o relatório. Descreva-lhe em pormenor o que faz o usurpador na sua ilha.
            - Senhor - disse o barão ao duque –, todos os servidores de Sua Majestade devem se regozijar com as notícias que nos chegaram recentemente da ilha de Elba. Bonaparte...
            O Sr. Dandré olhou para Luís XVIII que, ocupado a escrever uma nota, nem sequer levantou a cabeça.
            - Bonaparte - continuou o barão - aborrece-se mortalmente. Passa dias inteiros a ver trabalhar os seus mineiros de Porto Longone.
            - E coça-se para se distrair - observou o rei.
            - Coça-se? - estranhou o duque. - Que quer dizer Vossa Majestade?
            - Sim, sim, meu caro duque. Esquece-se de que esse grande homem, esse herói, esse semideus, sofre de uma doença de pele que o devora, o “purigo"?
            - Mas há mais, Sr. Duque - continuou o ministro da Polícia. - Temos quase a certeza de que dentro de pouco tempo o usurpador estará  louco.
            - Louco?
            - Doido varrido. A sua cabeça enfraquece; tão depressa se desfaz em lágrimas como ri a bandeiras despregadas. Outras vezes passa horas à beira-mar a lançar seixos na àgua, e quando o seixo faz cinco ou seis ricochetes parece tão satisfeito como se tivesse ganho um outro Marengo ou um novo Austerlitz. Decerto
concordam que se trata de sinais de loucura.
            - Ou de sensatez, Sr. Barão, ou de sensatez - observou Luís XVIII rindo. - Era atirando seixos ao mar que se entretinham os grandes capitães da Antiguidade. Vejam Plutarco, na vida de Cipião-o-Africano.
            O Sr. de Blacas ficou pensativo entre as duas hipóteses. Villefort, que lhe não quisera dizer tudo para que o outro não lhe roubasse o lucro completo do seu segredo, dissera-lhe no entanto o suficiente para lhe dar graves inquietações.
            - Vamos, vamos, Dandré - insistiu Luís XVIII.
            - Blacas ainda não está convencido. Passe à conversão do usurpador.
            O ministro da Polícia inclinou-se.
            - A conversão do usurpador! - murmurou o duque, olhando o rei e Dandré, que alternavam como dois pastores de Virgílio. - O usurpador converteu-se?
            - Absolutamente, meu caro duque. 
            - Aos bons princípios? Explique isso, barão.
            - Aqui tem o que aconteceu, Sr. Duque - principiou o ministro com a maior seriedade do mundo. - Ultimamente, Napoleão passou uma revista e como dois ou três dos seus velhos súditos, como lhes chama, manifestassem vontade de regressar a França, autorizou-os e exortou-os a servir o seu bom rei. Foram estas as suas próprias palavras, Sr. Duque, garanto-lhe.
            - Então, Blacas, que me diz a isto? - perguntou o rei, triunfante, deixando por um instante de compulsar o calhamaço aberto diante de si.
            - Digo, Sire, que ou o Sr. Ministro da Polícia ou eu estamos enganados. Mas como é impossível que seja o ministro da Polícia, que tem à sua guarda a vida e a honra de Vossa Majestade, é provável que o erro seja meu. No entanto, Sire, no lugar de Vossa Majestade gostaria de interrogar a pessoa de quem lhe falei. Insisto até  em que Vossa Majestade lhe conceda essa honra.
            - Com muito prazer, duque. Sob os seus auspícios, receberei quem o senhor quiser. Mas quero recebê-lo de armas na mão. Sr. Ministro, não tem um relatório mais recente do que este? Este tem já a data de 20 de Fevereiro e estamos em 3 de Março!
            - Não, Sire, mas espero um de um momento para o outro. Saí de manhã e talvez tenha chegado na minha ausência.
            - Vá à Prefeituria e se não tiver chegado... bom - continuou, rindo, Luís XVIII –, faça um. Não é assim que resolve o problema?
            - Oh, Sire! - protestou o ministro. - Graças a Deus, quanto a esse relatório não é preciso inventar nada. Todos os dias as nossas repartições se enchem com as denúncias mais circunstanciadas, provenientes de uma multidão de pobres diabos que esperam um pouco de reconhecimento por serviços que não prestam, mas que desejariam prestar. Confiam no acaso e esperam que um dia qualquer acontecimento inesperado dê uma espécie de realidade às suas predições.
            - Pois sim. V , senhor - disse Luís XVIII –, e lembre-se de que o espero.
            - Irei num pé e voltarei noutro, Sire. Dentro de dez minutos estarei de volta.
            - E eu, Sire - disse o Sr. de Blacas –, vou buscar o meu mensageiro.
            - Espere, espere! - atalhou Luís XVIII. - Na verdade, Blacas, parece-me que devo modificar as suas armas: dar-lhe-ei uma águia de asas abertas segurando nas garras uma presa que procura inutilmente escapar-lhe, com esta divisa: “Tenax".
            - Sire, sou todo ouvidos - disse o Sr. de Blacas, que mal continha a sua impaciência.
            - Gostaria de consultá-lo acerca desta passagem: “Molli fugiens anhelitu”. Como sabe, trata-se de um veado que foge diante de um lobo. O senhor não é caçador e monteiro-mor? Que lhe parece, a esse duplo titulo, o “molli anhelitu".
            - Admirável, Sire. Mas o meu mensageiro é como o veado de que Vossa Majestade fala, pois acaba de percorrer 220 léguas em posta, e isso apenas em três dias.
            - Já é vontade de apanhar uma estafa e uma carga de preocupações, meu caro duque, quando temos o telégrafo que não gasta mais de três ou quatro horas, e isso sem que o seu fôlego se altere em absolutamente nada.
            - Ah, Sire, recompensa muito mal esse pobre rapaz que vem de tão longe  e com tanto ardor para dar a Vossa Majestade um aviso útil. Quanto mais não seja em atenção para com o Sr. de Salvieux, que mo recomenda, recebei-o bem, suplico-vos.
            - O Sr. de Salvieux, o camareiro do meu irmão?
            - O próprio.
            - Com efeito, ele está em Marselha.
            - É de lá que me escreve.
            - Fala-lhe também dessa conspiração?
            - Não, mas recomenda-me o Sr. de Villefort e encarrega-me de o introduzir junto de Vossa Majestade.
            - Sr. de Villefort? - sobressaltou-se o rei. - Esse mensageiro chama-se Sr. de Villefort?
            - Chama, sire.
            - E é ele que vem de Marselha?
            - Em pessoa.
            - Porque não me disse imediatamente o seu nome? - inquiriu o rei, deixando transparecer no rosto um princípio de inquietação.
            - Sire, julgava esse nome desconhecido de Vossa Majestade.
            - De modo nenhum, de modo nenhum, Blacas. Trata-se de um espírito sério, elevado, sobretudo ambicioso. E, evidentemente, você conhece de nome o pai dele.
            - O pai dele?
            - Sim, Noirtier.
            - Noirtier, o girondino? Noirtier, o senador?
            - Exatamente.
            - E Vossa Majestade empregou o filho de semelhante homem?
            - Blacas, meu amigo, você não percebe nada disto. Já lhe disse que Villefort era ambicioso. Para levar a  água ao seu moinho, Villefort sacrificará tudo, mesmo o pai.
            - Então, sire, devo mandá-lo entrar?
            - Imediatamente, duque. Onde está ele?
            - Deve esperar-me lá em baixo, na minha carruagem.
            - Vá buscá-lo.
            - Sem demora.
            O duque saiu com a vivacidade de um rapaz; o ardor do seu realismo sincero dava-lhe vinte anos.
            Luís XVIII ficou só, passando os olhos pelo seu Horácio entreaberto e murmurando: “Justum et tenacem propositi virum."
            O Sr. de Blacas tornou a subir com a mesma rapidez com que descera; mas na antecâmara foi obrigado a invocar a autoridade do rei. A sobrecasaca poeirenta de Villefort, todo o seu traje, onde nada estava de acordo com a apresentação de corte, ferira as suas susceptibilidades do Sr. de Brézé, que ficou espantado com a pretensão daquele jovem de aparecer assim vestido diante do rei. Mas o duque arredou todas as dificuldades com uma única palavra: “Ordem de Sua Majestade." E apesar das observações que
continuou a fazer o mestre de cerimônias, para honrar os princípios, Villefort foi introduzido.
            O rei estava sentado no mesmo lugar onde o deixara o duque. Ao abrir a  porta, Villefort encontrou-se precisamente diante dele. O primeiro impulso do jovem magistrado foi deter-se.
            - Entre, Sr. de Villefort, entre - disse o rei.
            Villefort cumprimentou, deu alguns passos em frente e esperou que o rei o interrogasse.
            - Sr. de Villefort - continuou Luís XVIII –, o duque de Blacas pretende que o senhor tem qualquer coisa importante a dizer-nos.
            - Sire, o Sr. Duque tem razão e espero que Vossa Majestade seja o primeiro a reconhecê-lo.
            - Antes de mais nada, senhor, o mal é assim tão grande, na sua opnião, como me querem fazer crer?
            - Sire, julgo-o instante; mas graças à diligência que fiz, julgo não ser irreparável.
            - Fale à vontade, senhor - disse o rei, que começava ele próprio a ceder à emoção que perturbava o rosto do Sr. de Blacas e alterara a voz de Villefort. - Fale e sobretudo comece pelo princípio: gosto de ordem em todas as coisas.
            - Sire - disse Villefort –, apresentarei a Vossa Majestade um relatório fiel, mas suplico-lhe me desculpe se a perturbação que me domina lançar alguma obscuridade nas minhas palavras.
            Uma olhadela deitada ao rei depois deste exórdio insinuante assegurou a Villefort a benevolência de seu augusto ouvinte. Continuou:
            - Sire, dirigi-me o mais rapidamente possível para Paris a fim de informar Vossa Majestade de que no exercício das minhas funções descobri não uma dessas conspirações vulgares e sem consequências, como as que se tramam todos os dias nas últimas camadas do povo e do Exército, mas sim uma verdadeira
conspiração, uma tempestade que ameaça nada menos do que o trono de Vossa Majestade. Sire, o usurpador armou três navios. Medita qualquer projeto, talvez insensato, mas também terrível, por mais insensato que seja. A esta hora deve ter deixado a ilha de Elba. Para ir aonde? Ignoro, mas com certeza para tentar um desembarque, quer em Nápoles, quer nas costas da Toscana, quer mesmo na França. Vossa Majestade não ignora que o soberano da ilha de Elba conservou relações com a Itália e com a França.
            - Sim. senhor, bem o sei - declarou o rei, muito impressionado- e ainda recentemente me avisaram de que se realizavam reuniões bonapartistas na Rua de Saint-Jacques. Mas continue, peço-lhe. Como soube desses pormenores?
            - Sire, são o resultado de um interrogatório a que submeti um homem de Marselha que vigiava havia muito tempo e que mandei prender no próprio dia da minha partida. Esse homem, marinheiro turbulento e de um bonapartismo que se me tornou suspeito, esteve secretamente na ilha de Elba, onde falou com o grande
marechal, que o encarregou de uma missão verbal para um bonapartista de Paris cujo nome não consegui obrigá-lo a dizer. Mas a missão consistia em encarregar esse bonapartista de preparar os espíritos para um regresso (note que estou reproduzindo o interrogatório. sire), para um regresso que não pode deixar de estar próximo.
            - E onde está esse homem? - perguntou Luís XVIII.
            - Na prisão, sire. 
            - E o caso pareceu-lhe grave?
            - Tão grave, sire, que tendo-me surpreendido no meio de uma festa de família, no próprio dia do meu noivado, deixei tudo, noiva e amigos, adiei tudo para outra altura, a fim de vir depor aos pés de Vossa Majestade, juntamente com os meus temores, a  certeza da minha dedicação.
            - De fato - disse Luís XVIII –, não havia um projeto de união entre o senhor e Mademoiselle de Saint-Méran?
            - A filha de um dos mais fiéis servidores de Vossa Majestade.
            - Sim, sim. Mas voltemos a essa conspiração, Sr. de Villefort.
            - Sire, receio que seja mais do que uma conspiração...
            - Nestes tempos - disse o rei, sorrindo –, uma conspiração é coisa fácil de planejar, mas mais difícil de conduzir ao seu fim, exatamente porque recolocados há pouco tempo no trono dos nossos antepassados, temos os olhos abertos ao mesmo tempo para o passado, para o presente e para o futuro. Há dez meses que os meus ministros redobram de vigilância para que o litoral do Mediterrâneo esteja bem guardado. Se Bonaparte desembarcasse em Nápoles, a coligação em peso estaria em pé de guerra antes dele chegar sequer ao Piombino. Se desembarcasse na Toscana, poria o pé em território inimigo. Se desembarcasse na França, será com um punhado de homens, e o venceremos facilmente, execrado como é pela população. Tranquilize-se portanto, senhor. Mas nem por isso conte menos com o nosso reconhecimento real.
            - Ah, cá está o Sr. Dandré! - exclamou o duque de Blacas. Nesta altura apareceu, com efeito, no limiar da porta o Sr. Ministro da Polícia, pálido, trêmulo, e cujo olhar vacilava como se tivesse sido vitima de um deslumbramento.
            Villefort deu um passo para se retirar, mas um aperto de mão do Sr. de Blacas reteve-o.

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