quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 91 ao 100

Capítulo XCI


A mãe e o filho

            O conde de Monte-Cristo cumprimentou os cinco jovens com um sorriso cheio de melancolia e dignidade e voltou a subir para a sua carruagem com Maximilien e Emmanuel. Albert, Beauchamp e Château-Renaud ficaram sozinhos no campo de batalha.
            O jovem dirigiu às suas duas testemunhas um olhar que, sem ser tímido, parecia no entanto pedir-lhes a sua opinião acerca do que acabava de se passar.
            - Palavra, meu caro amigo, permita-me que o felicite! - foi Beauchamp o primeiro a dizer, quer por ter mais sensibilidade, quer por possuir menos capacidade de dissimulação. - Aí está um desenlace deveras inesperado num caso tão desagradável.
            Albert ficou calado e absorto nos seus pensamentos. Château-Renaud limitou-se a bater na bota com a bengala flexível.
            - Não vamos embora? - perguntou, depois de um silêncio embaraçoso.
            - Quando quiser - respondeu Beauchamp. - Conceda-me apenas o tempo de cumprimentar o Sr. de Morcerf. Deu hoje provas de uma generosidade tão cavalheiresca... tão rara!
            - Oh, com certeza!-concordou Château-Renaud.
            - É magnífico um homem poder conservar sobre si mesmo um domínio tão grande! - continuou Beauchamp.
            - Sem dúvida. Quanto a mim, teria sido incapaz - declarou Château-Renaud com uma frieza das mais significativas.
            - Meus senhores - interrompeu-os Albert –, creio que não compreenderam que entre o Sr. de Monte-Cristo e mim se passou algo muito grave...
            - Pois sim, pois sim - perguntou imediatamente Beauchamp -, mas nenhum dos nossos seria capaz de compreender o heroísmo, e cedo ou tarde talvez se visse obrigado a explicar-lhe mais energicamente do que convém à saúde do seu corpo e à duração da sua vida. Quer que lhe dê um conselho de amigo? Parta para Nápoles, para Haia ou para Sampetersburgo, países calmos, onde as pessoas são mais inteligentes sobre pontos de honra do que os nossos desmiolados parisienses. Uma vez lá, treine-se bem à pistola e faça muitas quartas e terças à espada. Entretanto, torne-se suficientemente esquecido para poder voltar a França com toda a tranquilidade passados alguns anos, ou suficientemente temível nos exercícios acadêmicos para conquistar essa tranquilidade. Não acha, Sr. de Château-Renaud, que tenho razão?
            - É exatamente a minha opinião- respondeu o gentil-homem. - Nada atrai mais os duelos sérios do que um duelo sem resultado.
            - Obrigado, meus senhores - respondeu Albert, com um sorriso frio. - Seguirei o seu conselho, não porque me deram, mas sim porque já tencionava deixar a França. Agradeço-lhes igualmente o favor que me prestaram servindo-me de testemunha. Tenho-o profundamente gravado no coração, de tal modo que, depois das palavras que acabo de ouvir, só me lembro dele. 
            Château-Renaud e Beauchamp entreolharam-se. Ambos tinham a mesma impressão, e o tom em que Morcerf proferira o seu agradecimento estava impregnado de tal resolução que a situação se tornaria muito embaraçosa para todos se a conversa continuasse.
            - Adeus, Albert - despediu-se de súbito Beauchamp, estendendo negligentemente a mão ao jovem, sem que este parecesse sair da sua letargia. Com efeito, não disse nada nem apertou a mão que lhe
ofereciam.
            - Adeus - disse por seu turno Château-Renaud, conservando na mão esquerda a sua bengalinha e cumprimentando com a direita. Os lábios de Albert murmuraram apenas: “Adeus!" Mas o seu olhar era mais explícito: encerrava todo um poema de cóleras contidas, de orgulhosos desdéns e de generosas indignações.
            Depois das duas testemunhas subirem para a carruagem, ainda conservou durante algum tempo a sua atitude imóvel e melancólica. Por fim, soltou o cavalo da arvorezinha à volta da qual o criado atara as rédeas, saltou agilmente para a sela e retomou a galope o caminho de Paris. Um quarto de hora mais tarde entrava no palácio da Rua do Helder.
            Ao descer do cavalo, pareceu-lhe ver, atrás da cortina do  quarto do conde, o rosto pálido do pai. Albert virou a cabeça, com um suspiro, e entrou no seu pavilhão. Uma vez lá dentro, deitou um último olhar a todas aquelas riquezas que lhe tinham tornado a vida agradável e feliz desde a infância; olhou mais uma vez aqueles quadros, cuias figuras pareciam sorrir-lhe e cujas paisagens diriam animadas de cores brilhantes.
            Depois, tirou da sua armação de carvalho o retrato da mãe, que enrolou, deixando vazia a moldura dourada que o rodeava. Em seguida, pôs em ordem as suas belas armas turcas, as suas excelentes espingardas inglesas, as suas porcelanas japonesas, as suas taças engastadas, os seus bronzes artísticos,
assinados por Feuchéres ou Barye, passou em revista os armários e colocou as chaves em cada um deles, atirou para dentro de uma gaveta da sua mesa, que deixou aberta, todo o dinheiro miúdo que tinha consigo, juntou-lhe as muitas jóias de fantasia que enchiam as suas taças, os seus estojos e as suas estantes, fez um inventário exato e minucioso de tudo e colocou-o no lugar mais visível de uma mesa, depois de a libertar dos livros e papéis que a cobriam.
            No início deste trabalho o criado, apesar da ordem que Albert lhe dera para o deixar só, entrara no quarto.
            - Que quer? - perguntou-lhe Albert, em tom mais triste do que irritado.
            - Perdão, senhor - disse o criado de quarto. - De fato o senhor proibiu-me de o incomodar, mas o Sr. Conde de Morcerf mandou chamar...
            - E então? - perguntou Albert.
            - Não quis ir aos aposentos do Sr. Conde sem ordem do senhor...
            - Porquê?
            - Porque o Sr. Conde sabe decerto que acompanhei o senhor ao local do duelo.
            - É provável - admitiu Albert.
            - E se me manda chamar é com certeza para me interrogar acerca do que se passou no bosque. Que devo responder? 
            - A verdade.
            - Então direi que o duelo não se realizou?
            - Dirá que apresentei desculpas ao Sr. Conde de Monte-Cristo. Vai.
            O criado inclinou-se e saiu. Albert dedicara-se então ao inventário.
            Quando concluía este trabalho, chamou-lhe a atenção o ruído de cavalos no pátio e de rodas de uma carruagem que faziam estremecer os vidros. Aproximou-se da janela e viu o pai meter-se na sua caleça e partir.
            Mal o portão do palácio voltou a se fechar atrás do conde, Albert dirigiu-se para os aposentos da mãe e, como não houvesse ninguém para anunciá-lo, penetrou até  ao quarto de cama de Mercedes, à porta do qual parou com o coração amargurado pelo que via e pelo que adivinhava.
            Como se a mesma alma animasse aqueles dois corpos, Mercedes fazia nos seus aposentos o que Albert acabara de fazer nos seus. Estava tudo em ordem as rendas, os adereços, as jóias, as roupas e o dinheiro alinhavam-se nas gavetas. Nas quais a condessa punha cuidadosamente as chaves.
            Albert viu todos aqueles preparativos; compreendeu-os e gritando “Minha mãe!" correu a lançar os braços ao pescoço de Mercedes.
            O pintor que conseguisse captar a expressão daqueles dois rostos faria sem dúvida um belo quadro.
            Com efeito, todo aquele ambiente de uma resolução enérgica que não atemorizara Albert pelo que lhe dizia respeito, assustava-o pela mãe.
            - Que está fazendo? - perguntou.
            - E você? - respondeu ela.
            - Oh, minha mãe, não pode seguir o meu exemplo! - gritou Albert, comovido a ponto de quase não poder falar. - Não, a senhora não pode ter resolvido o que resolvi, pois venho comunicar-lhe que digo adeus à sua casa e... e a Si.
            - Também eu, Albert - respondeu Mercedes. - Também eu parto. Contara, confesso, que o meu filho me acompanhasse... Enganei-me?
            - Minha mãe - declarou Albert com firmeza -, não posso fazê-la compartilhar o futuro que me destino. Daqui em diante terei de viver sem nome e sem fortuna; terei, para começar a aprendizagem dessa dura existência, de pedir a um amigo o pão que comerei daqui até  ao momento em que ganharei outro. Assim,
minha boa mãe, vou daqui a casa de Franz lhe pedir que me empreste a pequena importância que calculei ser necessária.
            - Você, meu pobre filho! - exclamou Mercedes. - Você conhecer a miséria, passar fome?! Oh. não diga isso ou quebra todas as minhas resoluções!
            - Mas não as minhas, minha mãe - respondeu Albert. - Sou novo, sou forte e creio que sou corajoso, e desde ontem aprendi o que pode a vontade. Felizmente, minha mãe, ainda há pessoas que depois de tanto sofrerem não só não morreram como ainda ergueram nova fortuna sobre as ruínas de todas as promessas de
felicidade que o céu lhes fizera, sobre os restos de todas as esperanças que Deus lhes dera! Aprendi isso, minha mãe, vi tais homens. E sei que do fundo do abismo onde os lançaram os seus inimigos se ergueram com tanto vigor e glória que dominaram o seu antigo vencedor e o derrubaram por seu turno. Não, minha mãe, não; rompi a partir de hoje com o passado e não aceito mais nada dele, nem mesmo o meu nome, porque
(compreende, minha mãe, não  é verdade?) o seu filho não pode usar o nome de um homem que deve corar diante dos outros homens!
            - Albert, meu filho - disse Mercedes -, se tivesse um coração mais forte seria esse o conselho que te daria. A tua consciência falou quando a minha voz se calava; escuta a tua consciência mas não desesperes, em nome da tua mãe! A vida ainda é bela na tua idade, meu caro Albert, pois tens apenas vinte e dois anos. E como a um coração tão puro como o teu é necessário um nome sem mácula, toma o do meu pai, que se
chamava Herrera. Conheço-te, meu Albert; seja qual for a carreira que siga, se tornará dentro de pouco tempo esse nome ilustre. Então, meu amigo, reaparecerá na sociedade ainda mais brilhante do que antes das tuas passadas desventuras; e se assim não acontecer, apesar de todas as minhas previsões, deixa-me ao menos esta esperança, a mim que só terei um único pensamento, a mim que já não tenho futuro e para quem a
sepultura começa no limiar desta casa.
            - Farei o que deseja, minha mãe - prometeu o jovem. - Sim, partilho a sua esperança: a cólera do céu não nos perseguir é a si tão pura e a mim tão inocente. Mas uma vez que estamos resolvidos, mãos à obra. O Sr. de Morcerf saiu do palácio há cerca de meia hora. Como vê, a ocasião é favorável para evitar rumores e explicações.
            - Fico à sua espera, meu filho - declarou Mercedes.
            Albert correu imediatamente ao bulevar, de onde trouxe o fiacre que deveria levá-los para fora do palácio. Recordava-se de certa casinha mobilada, na Rua dos Sains-Pêres, onde a mãe encontraria alojamento modesto, mas decente. Foi buscar a condessa.
            No momento em que o fiacre parou diante da porta e Albert se preparava para descer aproximou-se dele um homem, que lhe entregou uma carta. Albert reconheceu o intendente.
            - Do conde - disse Bertuccio.
            Albert pegou a carta, abriu-a e a leu. Depois de ler procurou com os olhos Bertuccio, mas enquanto
o jovem lia a carta, Bertuccio desaparecera.
            Então Albert, com as lágrimas nos olhos e o peito cheio de emoção, reentrou nos aposentos de Mercedes e, sem pronunciar uma palavra, estendeu-lhe a carta.
            Mercedes leu:
            Albert:
           
            Mostrando-lhe que adivinhei o projeto que se prepara para pôr em prática, creio mostrar-lhe também que compreendo a sua dificuldade. Está livre, deixa o palácio do conde e leva consigo a sua mãe, livre como o senhor. Mas, pense nisto, Albert: o senhor deve-lhe mais do que lhe pode pagar, pobre nobre coração que é. Guarde para si a luta, reclame para si o sofrimento, mas poupe-a da miséria inicial que acompanhar
inevitavelmente os seus primeiros esforços. Porque ela não merece sequer a sombra da desgraça que hoje a atinge e a Providência não quer que o inocente pague pelo culpado.
            Sei que ambos deixarão a casa da Rua do Helder sem levar nada Como o soube, não procure descobrir. Sei-o e é quanto basta. 
            Ouça, Albert:
            Há vinte e quatro anos regressava muito contente e orgulhoso à minha pátria. Tinha uma noiva, Albert, uma santa moça que adorava, e trazia à minha noiva cento e cinquenta luíses amealhados penosamente à custa de um trabalho sem descanso. Esse dinheiro era para ela, destinava-o, e sabendo como o mar é pérfido, enterrara o nosso tesouro no jardinzinho da casa que o meu pai habitava em Marselha, nas Alamedas de Meilhan.
            A sua mãe, Albert, conhece bem essa pobre e querida casa.
            Recentemente, ao regressar a Paris, passei por Marselha e fui ver essa casa de dolorosas recordações. E uma noite, de enxada na mão, sondei o canto onde enterrara o meu tesouro. A caixa de ferro estava ainda no mesmo lugar; ninguém lhe tocara; está no canto que uma bonita figueira, plantada por
meu pai no dia do meu nascimento, cobre com a sua sombra.
            Pois bem, Albert, esse dinheiro que outrora se destinava a ajudar na vida e a proporcionar tranquilidade à mulher que adorava, encontrou hoje, por um acaso estranho e doloroso, o mesmo emprego. Oh, compreenda bem o meu pensamento! Eu, que podia oferecer milhões a essa pobre mulher, dou-lhe apenas o naco de pão escuro esquecido debaixo do meu pobre teto desde o dia em que me separei daquela que amava.
            O senhor é um homem generoso, Albert; mas talvez esteja ainda cego pelo orgulho ou pelo ressentimento. Se recusar, se pedir a outro o que tenho o direito de lhe oferecer, direi que é pouco generoso da sua parte recusar a vida da sua mãe  oferecida por um homem a quem o seu pai fez morrer o pai nos
horrores da fome e do desespero.
             Terminada a leitura, Albert permaneceu, pálido e imóvel, à espera do que decidisse a mãe. Mercedes ergueu ao céu um olhar de expressão inefável.
            - Aceito - disse. - Tem o direito de pagar o dote que levarei para um convento!
            E metendo a carta no seio, tomou o braço do filho e, com passo mais firme do que talvez ela própria esperasse, dirigiu-se para a escada.


Capítulo XCII

O suicídio


            Entretanto, Monte-Cristo também regressara à cidade com Emmanuel e Maximilien.
            O regresso foi alegre. Emmanuel não escondia a satisfação que lhe causava ver suceder a paz à guerra e confessava em voz alta as suas preferências filantrópicas. Morrel, a um canto da carruagem, deixava a alegria do cunhado evaporar-se em palavras e guardava para si uma alegria não menos sincera, mas que brilhava apenas no seu olhar. 
            Na Barreira do Trono encontraram Bertuccio, que esperava, imóvel como uma sentinela no seu posto.
            Monte-Cristo deitou a cabeça fora da portinhola, trocou com ele algumas palavras em voz baixa e o intendente desapareceu.
            - Sr. Conde - pediu Emmanuel quando chegaram às imediações da Praça Royale –, peço-lhe que me deixe ficar à minha porta, para que a minha mulher não tenha um só momento de inquietação nem pelo senhor nem por mim.
            - Se não fosse ridículo exibir o seu triunfo, convidaria o Sr. Conde a entrar em nossa casa - disse Morrel. - Mas o Sr. Conde também tem, em dúvida, corações trêmulos a tranquilizar. Chegamos, Emmanuel; – cumprimentemos o nosso amigo e deixemo-lo continuar o seu caminho.
            - Um momento, não me prive assim de uma assentada dos meus dois companheiros - pediu Monte-Cristo. - Entre o senhor, Emmanuel, vá ter com a sua encantadora esposa à qual o encarrego de apresentar os meus cumprimentos, e acompanhe-me o senhor aos Campos Elísios, Morrel.
            - Perfeitamente - respondeu Maximilien -, tanto mais que tenho que fazer no seu bairro, conde.
            - O esperamos para almoçar? - perguntou Emmanuel.
            - Não - respondeu o rapaz.
            A portinhola fechou-se e a carruagem continuou o seu caminho.
            - Como vê, dei-lhe sorte - observou Morrel quando ficou sozinho com o conde. - Ainda não tinha pensado nisso?
            - Certamente - respondeu Monte-Cristo - e por isso gostaria de te-lo sempre junto de mim.
            - É miraculoso! - continuou Morrel, respondendo ao seu próprio pensamento.
            - O quê? - perguntou Monte-Cristo.
            - O que acaba de acontecer.
            - Sim - concordou o conde com um sorriso. - Disse a palavra exata, Morrel: é miraculoso!
            - Porque, enfim - prosseguiu Morrel -, Albert é corajoso.
            - Muito corajoso - acrescentou Monte-Cristo. - Vi-o dormir com o punhal suspenso sobre a sua cabeça.
            - E eu sei que se bateu duas vezes, e muito bem batido - declarou Morrel. - Concilie isso com o seu comportamento desta manhã.
            - Mais uma vez a sua influência - insinuou Monte-Cristo sorrindo.
            - Ainda bem que Albert não é soldado - disse Morrel.
            - Porquê?
            - Desculpas no campo da honra!... - exclamou o jovem capitão, abanando a cabeça.
            - Então, espero que não vá  cair nos preconceitos dos homens vulgares, Morrel... - observou o conde com suavidade. - Não chegou à conclusão de que, uma vez que Albert é corajoso, não pode ser covarde? Que devia ter algum motivo para proceder como procedeu esta manhã e que portanto a sua conduta foi mais
heróica do que outra coisa?
            – Sem dúvida, sem dúvida - respondeu Morrel. - Mas é caso para dizer como o espanhol: - foi menos corajoso hoje do que ontem. 
            - Almoca comigo, não é verdade, Morrel? - perguntou Monte-Cristo para mudar de assunto.
            - Não, deixo-o às dez horas.
            - O seu encontro é então para almoçar?... Morrel sorriu e abanou a cabeça.
            - Mas, enfim, com certeza tem de almoçar em algum lado...
            - E se eu não tiver fome? - observou o rapaz.
            - Oh, só conheço dois sentimentos que cortam assim o apetite: a dor (e como, felizmente, o vejo contentíssimo, não se trata disso) e o amor! Ora, depois do que me disse a propósito do seu coração,é-me permitido supor...
            - Palavra, conde, que não o desminto! - replicou alegremente Morrel.
            - E não me dizia nada, Maximilien? - notou o conde, num tom tão vivo que deixava transparecer o interesse que tinha em conhecer o segredo.
            - Mostrei-lhe esta manhã que tinha um coração, não é verdade, conde?
            Como única resposta, Monte-Cristo estendeu a mão ao jovem.
            - Pois bem - continuou este –, desde que esse coração já não está com o senhor no Bosque de Vincennes, será em outro lado que terei de o procurar...
            - Vá - disse lentamente o conde -, vá, querido amigo, mas, por favor, se esbarrar com algum obstáculo, lembre-se de que tenho algum poder neste mundo, que tenho prazer em empregar esse poder em proveito das pessoas que estimo... e que o estimo, Morrel.
            - Me lembrarei disso como os filhos egoístas se lembram dos pais quando precisam deles - declarou Morrel. - Quando precisar do senhor, e talvez esse momento surja, recorrerei ao senhor, conde.
            - Fico com a sua palavra. Adeus.
            - Até  breve.
            Tinham chegado à porta da casa dos Campos Elísios. Monte-Cristo abriu a portinhola e Morrel saltou para a calçada. Bertuccio, esperava na escadaria.
            Morrel meteu pela Avenida de Marigny e Monte-Cristo dirigiu-se vivamente ao encontro de Bertuccio.
            - Então? - perguntou.
            - Ela vai deixar a casa - respondeu o intendente.
            - E o filho?
            - Florentin, seu criado de quarto, pensa que vai fazer o mesmo.
            - Venha.
            Monte-Cristo levou Bertuccio para o seu gabinete, escreveu a carta que vimos e entregou-a ao intendente.
            - Vá depressa. A propósito, mande prevenir Haydée de que já voltei.
            - Aqui estou - anunciou-se a jovem, que descera ao ouvir o ruído da carruagem e cujo rosto estava radiante de alegria por ver o conde são e salvo. Bertuccio saiu.
            Haydée experimentou nos primeiros instantes daquele regresso esperado por ela com tanta impaciência todos os transportes de uma filha ao rever o pai querido e todos os delírios de uma amante ao rever o amante adorado.
            Claro que, por ser menos expansiva, a alegria de Monte-Cristo não era mais pequena. Para os corações que sofreram longamente, a alegria é como o orvalho  para as terras ressequidas pelo sol. Coração e terra absorvem essa chuva benfazeja que cai sobre eles e nada aparece de fora. Havia alguns dias que Monte-Cristo descobrira uma coisa em que há muito tempo não ousava acreditar: que existiam duas Mercedes no mundo e que ainda poderia ser feliz.
            O seu olhar ardente de felicidade mergulhava com avidez nos olhos úmidos de Haydée quando de súbito a porta se abriu.  O conde franziu o sobrolho.
            - O Sr. de Morcerf! - anunciou Baptistin, como se este nome encerrasse a sua desculpa.
            Com efeito, o rosto do conde desanuviou-se.
            - Qual, o visconde ou o conde? - perguntou.
            - O conde.
            - Meu Deus! - exclamou Haydée. - Então isto ainda não acabou?
            - Não sei se acabou, minha filha bem-amada - respondeu Monte-Cristo, pegando nas mãos da jovem –, mas o que sei é que não tem nada a temer.
            - Oh, mas é o miserável...
            - Esse homem não pode nada contra mim, Haydée - tranquilizou-a Monte-Cristo. - Quando o caso era com o filho é que havia motivo para receios.
            - Por isso nunca saberá o que sofri, meu senhor - declarou a jovem.
            Monte-Cristo sorriu.
            - Pela sepultura do meu pai - disse Monte-Cristo, estendendo a mão sobre a cabeça da moça –, juro que se acontecer alguma desgraça não será a mim.
            - Acredito-te, meu senhor, como se Deus me falasse - respondeu Haydée, estendendo a fronte ao conde.           
            Monte-Cristo depositou naquela fronte tão pura e tão bela um beijo, que fez bater simultaneamente dois corações, um com violência e o outro surdamente.
            - Oh, meu Deus, permiti que eu possa amar ainda!... - murmurou o conde. -Mande entrar o Sr. Conde de Morcerf para a sala - disse a Baptistin, enquanto conduzia a bela grega para uma escada oculta.
            Uma palavra de explicação acerca desta visita, talvez esperada pelo conde de Monte-Cristo, mas inesperada, sem dúvida, para os nossos leitores.
            Enquanto Mercedes fazia, como dissemos, nos seus aposentos, a espécie de inventário que Albert fizera nos seus; enquanto ela arrumava as suas jóias, fechava as suas gavetas e reunia as suas chaves a fim de deixar tudo numa ordem perfeita, não notara que um rosto pálido e sinistro aparecera atrás dos vidros de uma porta que deixava entrar a luz no corredor. Daí não só se podia ver como também se podia ouvir. Quem assim olhava, muito provavelmente sem ser visto nem ouvido, viu e ouviu portanto tudo o que se passava nos aposentos da Sra de Morcerf.
            Da porta envidraçada, o homem de rosto pálido dirigiu-se para o quarto de cama do conde de Morcerf e, chegado lá, ergueu com mão contraída a cortina de uma janela que dava para o pátio. Permaneceu ai dez minutos, imóvel, mudo, escutando as pulsações do seu próprio coração. Para ele, dez minutos era muito tempo. Foi então que Albert, regressando do local do duelo, viu o pai, que espreitava o seu regresso atrás da cortina, e virou a cabeça.
            O conde arregalou os olhos. Sabia que o insulto de Albert a Monte-Cristo fora terrível e que semelhante insulto provocava em todos os países do mundo  um duelo de morte. Ora, Albert regressava são e salvo; portanto, o conde estava vingado.
            Um clarão de indizível alegria iluminou aquele rosto lúgubre, como acontece com o último raio de Sol antes de desaparecer nas nuvens, que parecem menos a cama do que o túmulo do astro-rei.
            Mas, como já dissemos, esperou em vão que o jovem subisse aos seus aposentos para lhe dar conta do seu triunfo. Que o filho, antes do combate, não tivesse querido ver o pai, cuja honra ia vingar, compreendia-se; mas uma vez a honra do pai vingada, porque não vinha esse filho lançar-se nos braços?
            Foi então que o conde, não podendo ver Albert, mandara chamar o seu criado. Sabemos que Albert o autorizou a nada ocultar ao conde.
            Dez minutos depois, viu-se aparecer na escadaria da entrada o general de Morcerf, de sobrecasaca preta com gola militar, calcas e luvas também pretas. Dera, ao que parece, ordens anteriores, pois assim que pôs o pé no último degrau da escadaria, a sua carruagem, completamente atrelada, saiu da cocheira e veio parar diante dele.
            O seu criado de quarto veio então depositar na carruagem um capote militar, que envolvia duas espadas. Em seguida fechou a portinhola e sentou-se ao lado do cocheiro. O cocheiro inclinou-se diante da caleça para pedir ordens.
            - Aos Campos Elísios, a casa do conde de Monte-Cristo - ordenou o general. - Depressa!
            Os cavalos saltaram debaixo do chicote; cinco minutos depois paravam diante da casa do conde.
            O Sr. de Morcerf abriu pessoalmente a portinhola, com a carruagem ainda a rodar, e saltou como um rapaz na alameda lateral, tocou e desapareceu na porta escancarada com o seu criado.
            Um segundo mais tarde, Baptistin anunciava ao Sr. de Monte-Cristo o conde de Morcerf, e Monte-Cristo,  fazendo sair Haydée, ordenou que mandassem entrar na sala o conde de Morcerf.
            O general media pela terceira vez a sala em todo o seu comprimento quando, virando-se, viu Monte-Cristo de pé no limiar.
            - Ah, é o Sr. de Morcerf! - disse tranquilamente Monte-Cristo. - Julgava ter ouvido mal.
            - Sim, sou eu - perguntou o conde, com uma horrível contração de lábios que o impedia de articular claramente.
            - Só me resta portanto saber agora - disse Monte-Cristo -  o motivo que me proporciona o prazer de ver o Sr. Conde de Morcerf tão cedo.
            - Teve esta manhã um duelo com o meu filho, senhor? - perguntou o general.
            - Sabe disso? - respondeu o conde.
            - E também sei que o meu filho tinha boas razões para desejar bater-se com o senhor e fazer tudo o que pudesse para matá-lo.
            - Com efeito, senhor, tinha muito boas razões para isso! Mas, como vê, apesar dessas razões, não me matou, e até  nem se bateu.
            - E no entanto considerava-o a causa da desonra do pai, bem como a causa da ruína horrível em que neste momento mergulha a minha casa. 
            - É verdade, senhor - replicou Monte-Cristo, com a sua terrível calma. - Causa secundária,  evidentemente, e não principal.
            - Decerto lhe apresentou alguma desculpa ou deu qualquer explicação...
            - Não lhe dei nenhuma explicação e foi ele quem me apresentou desculpas.
            - A que atribui essa conduta?
            - À convicção, provavelmente, de que havia em tudo isto um homem mais culpado do que eu.
            - E quem era esse homem?
            - O pai.
            - Seja - admitiu o conde, empalidecendo. - Mas, como sabe, o culpado não gosta de ser acusado de culpabilidade.
            - Pois sei... Por isso esperava o que acontece neste momento.
            - O senhor esperava que o meu filho fosse um covarde?! - gritou o conde.
            - O Sr. Albert de Morcerf não é um covarde - perguntou Monte-Cristo.
            - Um homem que empunha uma espada, um homem que tem ao alcance dessa espada um inimigo mortal, se esse homem não se bate, é um covarde! É pena ele não estar aqui para lhe dizer!
            - Senhor - respondeu friamente Monte-Cristo –, presumo quenão veio me procurar para me contar as suas pequenas desavenças familiares. Vá dizer isso ao Sr. Albert e talvez ele saiba responder-lhe.
            - Oh, não, não, tem razão, não vim para isso! - replicou o general com um sorriso, que se esfumou tão depressa como aparecera. - Vim para lhe dizer que também eu o considero meu inimigo! Vim para lhe dizer que o odeio instintivamente, que me parece que sempre o conheci e odiei! E, por último, que, uma vez que os jovens deste século já se não batem, compete-nos a nós bater-nos... Não é desta opnião, senhor?
            - Perfeitamente. Por isso, quando lhe disse que previra que aconteceria isto, era da honra da sua visita que queria falar.
            - Tanto melhor... Os seus preparativos estão feitos, então?
            - Estão sempre, senhor.
            - Sabe que nos bateremos até  à morte de um dos dois? - perguntou o general, com os dentes apertados pela raiva.
            - Até  à morte de um dos dois - repetiu o conde de Monte-Cristo, acenando ligeiramente com a cabeça de cima a baixo.
            - Vamos então; não necessitamos de testemunhas.
            - Com efeito - disse Monte-Cristo –, é inútil.  Conhecemo-nos tão bem!...
            - Pelo contrário - perguntou o conde –, não nos conhecemos de parte alguma.
            - Ora, ora! - exclamou Monte-Cristo com a mesma fleuma exasperante. - Vejamos um pouco... O senhor não é o soldado Fernand que desertou na véspera da batalha de Waterloo? Não é o tenente Fernand que serviu de guia e espião ao exército francês na Espanha? Não é o coronel Fernand que traiu, vendeu e assassinou o seu benfeitor Ali? E todos estes reunidos não constituem o tenente-general conde de Morcerf; par de França?
            - Oh! - exclamou o general, atingido por estas palavras como por um ferro em brasa. - Oh, miserável, que me lembra a minha vergonha no momento em que talvez vá me matar!... Não, não disse que te era desconhecido; sei bem demônio, que penetraste na noite do passado e leste, ignoro à luz de que archote,
cada página da minha vida! Mas talvez ainda haja mais honra em mim, no meu opróbrio, do que em ti, debaixo das tuas aparências pomposas. Não, não, me conheces, bem sei, mas eu não te conheço, aventureiro coberto de ouro e pedrarias! Te conheço, aventureiro coberto de ouro e pedrarias! Te apresentaste em Paris como o conde de Monte-Cristo, na Itália, como Simbad real que te pergunto, é o teu verdadeiro nome que quero saber, no meio das tuas centenas de nomes, a fim de o pronunciar no campo da luta, no momento em que te cravar a minha espada no coração.
            O conde de Monte-Cristo empalideceu terrivelmente. Os seus olhos fulvos incendiaram-se num fogo devorador. Deu um salto ao gabinete contíguo ao seu quarto de cama, e em menos de um segundo, depois de arrancar a gravata, a sobrecasaca e o colete, envergou uma blusa de marinheiro e colocou na cabeça
um chapéu de embarcadiço, sob o qual se desenrolaram os seus longos cabelos negros.
            Voltou assim, terrível, implacável, caminhando de braços cruzados ao encontro do general, que não compreendera a que se devera o seu desaparecimento, que o esperava e que, sentindo os dentes entrechocarem-se-lhe e as pernas vergarem-se-lhe debaixo do corpo, recuou um passo e só se deteve quando encontrou numa mesa um ponto de apoio para a sua mão crispada.
            - Fernand! - gritou-lhe Monte-Cristo. - Dos meus cem nomes, bastaria te dizer um só para te fulminar. Mas você adivinha esse nome, não é verdade? Ou antes, o recorda. Porque apesar de todos os meus desgostos, de todas as minhas torturas, te mostro hoje um rosto que o prazer da vingança rejuvenesce,
umo rosto que deve ter visto muitas vezes nos teus sonhos depois do teu casamento... com Mercedes, minha noiva!
            Com a cabeça inclinada para trás, as mãos estendidas e o olhar fixo, o general assistiu em silêncio ao espetáculo.  Depois, procurou o apoio da parede e deslizou lentamente até  à porta, pela qual saiu às arrecuas, deixando escapar apenas este grito lúgubre, lamentoso, dilacerante:
            - Edmond Dantés!
            Em seguida, com suspiros que não tinham nada de humanos, arrastou-se até  ao peristilo da casa, atravessou o pátio como um ébrio e caiu nos braços do seu criado de quarto, murmurando apenas em voz ininteligível:
            - Para o palácio! Para o palácio!
            Pelo caminho, o ar fresco e a vergonha que lhe causava a atenção das pessoas puseram-no em estado de coordenar idéias. Mas o trajeto foi curto e, à medida que se aproximava de casa, o conde sentia se renovare todos os seus sofrimentos.
            A poucos passos de casa, o conde mandou parar e apeou.  A porta do palácio estava escancarada. Um fiacre, cujo cocheiro ficara muito surpreendido por ser chamado àquela magnífica mansão, estava parado no meio do pátio. O conde olhou o fiacre com terror, mas não ousou interrogar ninguém e correu para os seus aposentos.
            Duas pessoas desceram a escada e só teve tempo de se esconder num gabinete para as evitar.
            Era Mercedes, apoiada no braço do filho; ambos deixavam o palácio. Passaram a curta distância do desventurado, que, oculto atrás do reposteiro de damasco, foi mesmo assim aflorado pelo vestido de seda de Mercedes e sentiu no rosto o hálito tépido destas palavras pronunciadas pelo filho: 
            - Coragem, minha mãe! Venha, venha, aqui já não é a nossa casa.
            As palavras extinguiram-se e os passos afastaram-se.
            O general endireitou-se, suspenso pelas mãos crispadas no reposteiro de damasco. Comprimia o mais horrível soluço jamais saído do peito de um pai, abandonado simultaneamente pela mulher e pelo filho.
            Não tardou a ouvir bater a portinhola de ferro do fiacre, em seguida a voz do cocheiro, e depois o rodar da pesada carruagem fez estremecer os vidros. Então, correu ao seu quarto de cama para ver mais uma vez tudo o que amara no mundo. Mas o fiacre partiu sem que a cabeça de Mercedes ou de Albert aparecesse à portinhola para lançar à casa solitária, ao pai e ao marido abandonado o último olhar, o adeus e o pesar, isto é, o perdão.
            Por isso, no momento exato em que as rodas do fiacre faziam vibrar o pavimento da abóbada soou um tiro e um fumo escuro saiu por um dos vidros da janela do quarto de cama, quebrado pela força da explosão.


Capítulo XCIII

Valentine


            O leitor já adivinhou aonde é que Morrel tinha de ir e em casa de quem era o seu encontro.
            Sim, logo que deixou Monte-Cristo, Morrel dirigiu-se para casa de Villefort, caminhando lentamente.
            Dizemos lentamente porque Morrel dispunha de mais de meia hora para percorrer quinhentos passos. Mas, apesar de ter tempo mais do que suficiente, apressara-se em deixar Monte-Cristo, pois tinha pressa de ficar só com os seus pensamentos. Sabia bem qual era a sua hora, aquela em que Valentine assistia ao almoço de Noirtier e estava certa de não ser perturbada no seu piedoso dever. Noirtier e Valentine tinham-lhe concedido duas visitas por semana e ele vinha gozar desse direito.
            Quando chegou, Valentine já o esperava. Inquieta, quase desorientada, pegou-lhe na mão e levou-o à presença do avô. Tal inquietação, levada, como dizemos, quase até  à desorientação, provinha do barulho que a aventura de Morcerf produzira na sociedade. Sabia-se (na sociedade sabe-se tudo) do escândalo da Ópera. Em casa de Villefort ninguém duvidava que um duelo fosse a consequência forçada desse escândalo. Com o seu instinto de mulher, Valentine adivinhara que Morrel seria testemunha de Monte-Cristo e, devido à coragem bem conhecida do jovem e à profunda amizade que ela lhe conhecia pelo conde, receava que ele se não limitasse ao papel passivo que lhe competia.
            Compreende-se, pois, com que avidez os pormenores da aventura foram pedidos, dados e recebidos, e Morrel pôde ler uma alegria indizível nos olhos da sua bem-amada quando ela soube que o terrível caso tivera um desfecho não menos feliz do que inesperado. 
            - Agora - disse Valentine, fazendo sinal a Morrel para se sentar ao lado do velho e sentando-se ela mesma no banco onde repousavam os pés do avô –, agora falemos um bocadinho das nossas coisas. Como sabe, Maximilien, o avozinho teve por momentos a idéia de deixar esta casa e alugar um apartamento fora do palácio do Sr. de Villefort...
            - Sim, claro - respondeu Maximilien. - Recordo-me desse projeto e de o ter até  aplaudido muito.
            - Pois então - disse Valentine - aplauda-o novamente, Maximilien porque o avozinho voltou à sua idéia.
            - Bravo! - exclamou Maximilien.
            - E sabe que razão dá o avozinho para deixar esta casa? - perguntou Valentine.
            Noirtier olhava a neta para lhe impor silêncio com a vista, mas Valentine não olhava para Noirtier; os seus olhos e o seu sorriso eram para Morrel.
            - Oh, seja qual for a razão que dê o Sr. Noirtier, declaro-a boa! - exclamou Morrel.
            - Ótimo - disse Valentine. - Ele pretende que o ar do Arrabalde Saint-Honoré não é bom para mim.
            - De fato... - declarou Morrel. - Ouça, Valentine: o Sr. Noirtier talvez tenha razão; há quinze dias que noto que a sua saúde se altera.
            - Sim, um bocadinho, é verdade - admitiu Valentine. - Por isso, o avozinho constituiu-se meu médico, e como o avozinho sabe tudo, tenho a maior confiança nele.
            - Mas, enfim, é verdade que se sente doente, Valentine? - perguntou vivamente Morrel.
            - Meu Deus, não se pode dizer que me sinta doente; experimento apenas um mal-estar geral. Perdi o apetite e parece-me que o meu estômago trava uma luta para se habituar a qualquer coisa.
            Noirtier não perdia uma palavra de Valentine.
            - E qual é o tratamento que segue contra essa doença desconhecida?
            - Oh, muito simples! - respondeu Valentine. - Tomo todas as manhãs uma colher da poção que dão ao meu avô. Digo uma colher, mas a verdade é que comecei por uma e agora já vou em quatro... O avô pretende que é uma panaceia.
            Valentine sorria, mas havia algo de triste e sofredor no seu sorriso.
            Maximilien, ébrio de amor, olhava-a em silêncio. Estava linda, mas a sua palidez adquirira um tom mais macilento, nos seus olhos brilhava um fogo mais ardente do que de costume e as suas mãos, habitualmente de um branco de madrepérola, pareciam mãos de cera que com o tempo adquirissem um tom amarelado.
            De Valentine, o jovem olhou para Noirtier, que observava com estranha e profunda atenção a neta, absorta no seu amor.  Também o velho, como Morrel, notava aqueles vestígios de um sofrimento surdo, tão pouco visíveis, Aliás, que tinham escapado aos olhos de todos, exceto aos do avô e do apaixonado.
            - Mas essa poção, de que já vai em quatro colheres, creio ter sido receitada ao Sr. Noirtier... - observou Morrel.
            - É verdade - respondeu Valentine. - E é muito amarga... Tão amarga que tudo o que bebo depois me parece ter o mesmo gosto.
            Noirtier olhou a neta com ar interrogador. 
            - Sim, avozinho - confirmou Valentine –, é como lhe digo. Ainda há bocado, antes de descer, bebi um copo de água açucarada. Pois tive de desistir no meio, de tal forma a  água me pareceu amarga.
            Noirtier empalideceu e fez sinal de que queria falar. Valentine levantou-se para ir buscar o dicionário.
            Noirtier seguiu-a com a vista, visivelmente angustiado. Com efeito, o sangue subia à cabeça da jovem, coloria-lhe as faces.
            - É singular: um deslumbramento! – exclamou Valentine, sem perder nada da sua boa disposição. - Como é que o sol me bateu nos olhos?...
            E apoiou-se no parapeito da janela.
            - Não há sol - disse Morrel, ainda mais inquieto com a expressão de Noirtier do que com a indisposição de Valentine. Correu para ela. A jovem sorriu.
            - Sossegue, avô - disse a Noirtier. - Tranquilize-se, Maximilien. Isto não é nada e já passou. Mas ouçam: não é o barulho de uma carruagem que ouço no pátio?
            Abriu a porta de Noirtier, correu à janela do corredor e voltou precipitadamente.
            - Sim - disse –, é a Sra Danglars e a filha que nos vêm visitar. Adeus, vou-me embora antes que me venham procurar aqui; isto é, até  breve, fique com o avozinho, Maximilien, pois prometo não me demorar.
            Morrel seguiu-a com a vista, viu-a fechar a porta e ouviu-a subir a escadinha que levava simultaneamente aos aposentos da Sra de Villefort e aos dela própria.
            Logo que a jovem desapareceu, Noirtier fez sinal a Morrel para ir buscar o dicionário. Morrel obedeceu. Orientado por Valentine, depressa se habituara a compreender o velho.
            No entanto, por mais prático que estivesse, como era preciso passar em revista parte das vinte e quatro letras do alfabeto e encontrar cada palavra no dicionário, só ao cabo de dez minutos o pensamento do velho foi traduzido por estas palavras:
            “Mande buscar o copo de água e a garrafa que estão no quarto de Valentine."
            Morrel chamou imediatamente o criado que substituíra Barrois e, em nome de Noirtier, deu-lhe aquela ordem. O criado regressou pouco depois. A garrafa e o copo estavam completamente vazios.
            Noirtier fez sinal de que queria falar.
            - Por que motivo estão o copo e a garrafa vazios? -  perguntou. - Valentine disse que só bebeu metade do copo.
            A tradução desta nova pergunta levou mais cinco minutos.
            - Não sei - respondeu o criado. - Mas a criada de quarto está nos aposentos de Mademoiselle Valentine. Foi talvez ela quem os despejou.
            - Pergunte-lhe - disse Morrel, traduzindo desta vez o pensamento de Noirtier pelo olhar.
            O criado saiu e voltou quase imediatamente.
            - Mademoiselle Valentine passou pelo seu quarto para ir ao da Sra de Villefort - informou. - E ao passar, como tinha sede, bebeu o que restava no copo. Quanto à garrafa, o Sr. Edouard despejou-a para fazer um lago para os seus  canários. 
             Noirtier ergueu os olhos ao céu como um jogador que arrisca numa jogada tudo o que possui.
            Em seguida, os olhos do velho fixaram-se na porta e não deixaram mais essa direção.
            Fora, com efeito, a Sra Danglars e a filha que Valentine vira. Tinham-nas conduzido ao quarto da Sra de Villefort, que dissera recebê-las nos seus aposentos. Por isso, Valentine passara pelo seu quarto, que ficava no mesmo andar do da madrasta, apenas separados pelo de Edouard.
            As duas mulheres entraram com essa espécie de rigidez oficial que faz pressagiar uma comunicação.
            Entre pessoas do mesmo nível social, um pequeno cambiante ‚ imediatamente notado. A Sra de Villefort correspondeu àquela solenidade com igual solenidade.
            Nesse momento entrou Valentine, e as reverências recomeçaram.
            - Cara amiga - disse a baronesa, enquanto as duas jovens davam as mãos –, venho com Eugênie anunciar-lhe em primeira mão o próximo casamento da minha filha com o príncipe Cavalcanti.
            Danglars mantivera o título de príncipe. O banqueiro popular achara que isso era melhor do que conde.
            - Então, permita que lhe dê os meus sinceros parabéns respondeu a Sra de Villefort. - O Sr. Príncipe Cavalcanti parece-me um rapaz cheio de raras qualidades.
            - Bom - disse a baronesa, sorrindo –, falando como amigas, devo dizer-lhe que o príncipe não nos parece ser ainda o que será. Há nele um pouco dessa extravagância que nos permite a nós, Franceses, reconhecer ao primeiro olhar um gentil-homem italiano ou alemão. No entanto, revela um excelente coração,
muita delicadeza de espírito, e quanto a vantagens, o Sr. Danglars afirma que a sua fortuna é majestosa; é esta a sua palavra.
            - Além disso - interveio Eugénie, folheando o álbum da Sra de Villefort –, acrescente, minha senhora, que tem uma inclinação muito especial por esse rapaz.
            - Claro que escuso de lhe perguntar se partilha essa inclinação... - insinuou a Sra de Villefort.
            - Eu?!-respondeu EugÊnie com a sua habitual altivez. - Oh, de modo nenhum, minha senhora! A minha vocação era não me acorrentar aos cuidados de um lar ou aos caprichos de um homem, fosse qual fosse. A minha vocação era ser artista e consequentemente livre de coração, de corpo e de pensamento.
            Eugênie pronunciou estas palavras em tom tão vibrante e firme que o rubor subiu à cara de Valentine. A tímida moça não podia compreender aquela natureza enérgica, que parecia não possuir nenhum dos complexos da mulher.
            - De resto - continuou Eugénie –, já que o meu destino é casar, quer queira, quer não, devo agradecer à Providência ter-me ao menos proporcionado os desdéns do Sr. Albert de Morcerf, sem essa Providência, seria hoje a mulher de um homem desonrado.
            - É de fato assim - confirmou a baronesa, com a estranha ingenuidade que se encontra por vezes nas grandes damas e que o convívio rotineiro lhes não consegue fazer perder por completo. - Sem essa hesitação dos Morcerfs, a minha filha casaria com o Sr. Albert. O general fazia muito empenho no casamento e até  veio pressionar o Sr. Danglars. Escapamos de boa! 
            - Mas então toda essa vergonha do pai recai sobre o filho? - perguntou timidamente Valentine. - O Sr. Albert parece-me completamente inocente de todas essas traições do general.
            - Perdão, querida amiga - atalhou a implacável Eugênie mas o Sr. Albert reclamou e merece a sua parte nessas traições. Parece que depois de ter provocado ontem o Sr. de Monte-Cristo na Ópera lhe apresentou hoje desculpas no campo da honra.
            - Impossível! - exclamou a Sra de Villefort.
            - Ah, querida amiga - interveio a Sra Danglars com a mesma ingenuidade que já lhe apontamos –, é absolutamente verdade! Soube-o pelo Sr. Debray, que assistiu à explicação.
            Valentine também conhecia a verdade, mas não se pronunciou. Atraída por uma palavra às suas recordações, encontrava-se em pensamento no quarto de Noirtier, onde a esperava Maximilien.
            Absorta nessa espécie de contemplação intima, Valentine havia um instante que deixara de tomar parte na conversa; seria até impossível repetir o que fora dito nos últimos minutos, quando de súbito a mão da Sra Danglars, apoiando-se no seu braço, a tirou do seu devaneio.
            - Que disse, minha senhora? - perguntou Valentine, estremecendo ao contato dos dedos da Sra Danglars como estremeceria a um contato elétrico.
            - Disse, minha querida Valentine, que decerto não está bem...
            - Eu? - perguntou a jovem, passando a mão pela testa escaldante.
            - Sim. Veja-se naquele espelho. Corou e empalideceu sucessivamente três ou quatro vezes no espaço de um minuto.
            - De fato, está muito pálida! - exclamou Eugénie.
            - Oh, não se preocupe, Eugénie! Ando assim há uns dias. E por menos experiente que fosse, a jovem compreendeu que era ocasião de sair. Aliás, a Sra de Villefort veio em seu auxílio.
            - Retire-se, Valentine - disse. - está realmente doente e esta senhoras se dignarão a desculpá-la. Beba um copo de água pura e ficará melhor.
            Valentine beijou Eugénie, cumprimentou a Sra Danglars, já levantada para se retirar, e saiu.
            - Esta pobre criança - disse a Sra de Villefort depois de Valentine sair - preocupa-me seriamente e não me admiraria nada se lhe acontecesse algum acidente grave.
            Entretanto, Valentine, numa espécie de exaltação de que se não dava conta, atravessara o quarto de Edouard sem responder a não sei que travessura do garoto e, através do seu quarto, chegara à escadinha. Descera todos os degraus, exceto os três últimos, e ouvia já a voz de Morrel quando de súbito lhe passou uma nuvem pelos olhos, o seu pé hirto falhou o degrau, as suas mãos não tiveram força para se agarrar ao corrimão e, roçando pela parede, rolou, mais do que desceu, do alto dos três últimos degraus.
            Morrel abriu a porta de um salto e encontrou Valentine estendida no patamar. Rápido como o relâmpago, levantou-a nos braços e sentou-a numa poltrona. Valentine abriu os olhos.
            - Oh, que grande desajeitada! - exclamou com febril volubilidade. - já não sei o que faço... esqueci-me de que havia mais três degraus antes do patamar!
            - Feriu-se, Valentine? - perguntou Morrel. - Oh, meu Deus, meu Deus! 
            Valentine olhou à sua volta e viu o mais profundo terror pintado nos olhos de Noirtier.
            - Sossega, avozinho - disse, procurando sorrir. - Não foi nada, não foi nada... Foi apenas uma tontura.
            - Mais uma vertigem! - exclamou Morrel, juntando as mãos. - Oh, tenha cuidado com isso, Valentine, suplico-lhe!
            - Mas porquê, porquê, se lhe digo que tudo passou e não foi nada? - perguntou Valentine. - Agora deixem-me dar-lhes uma novidade: Eugénie casa-se dentro de oito dias e daqui a três dias haverá uma espécie de grande festim, um banquete de noivado. Estamos todos convidados, o meu pai, a Sra de
Villefort e eu... Foi pelo menos o que deduzi.
            - Quando será a nossa vez de nos ocuparmos desses pormenores? - suspirou Maximilien. - Oh, Valentine, já que tem tanto poder sobre o nosso avozinho, procure que ele lhe responda: “Em breve!"
            - Quer dizer que conta comigo para estimular a lentidão e despertar a memória do avozinho? - perguntou Valentine.
            - Claro! - exclamou Morrel. - Meu Deus, meu Deus, apresse-se. Enquanto não for minha, Valentine, parecerá  sempre que vai fugir.
            - Oh! - exclamou Valentine num gesto convulsivo. - Oh, na verdade, Maximilien, é demasiado tímido para um oficial, para um soldado que, segundo dizem, nunca conheceu o medo... Ah, ah, ah!
            E rompeu num riso estridente e doloroso. Os braços retesaram-se-lhe e contorceram-se, a cabeça caiu-lhe para trás na poltrona e ficou imóvel. O grito de terror que Deus acorrentava nos lábios de Noirtier
brotou-lhe do olhar. Morrei compreendeu: era urgente pedir socorro.
            O rapaz agarrou-se à campainha. A criada de quarto que estava nos aposentos de Valentine e o criado que substituíra Barrois acorreram simultaneamente. Valentine estava tão pálida, tão fria e tão inanimada que, sem escutarem o que lhes diziam, se deixaram dominar pelo medo que velava constantemente sobre aquela casa maldita e saíram para os corredores a gritar por socorro.
            A Sra Danglars e Eugénie retiravam-se naquele preciso instante, mas puderam ainda saber a causa de todo aquele rebuliço.
            - Bem lhes tinha dito! - exclamou a Sra de Villefort. - Pobre criança!
           

Capítulo XCIV

A confissão


            No mesmo instante ouviu-se a voz do Sr. de Villefort, que gritava do seu gabinete:
            - Que se passa?
            Morrel consultou com o olhar Noirtier, que acabava de recuperar todo o seu sangue-frio e num relance de olhos lhe indicou o gabinete onde já uma vez, em circunstâncias mais ou menos semelhantes, o rapaz se escondera. Só teve tempo de pegar no chapéu e correr para lá, arquejante. Já se ouviam os passos do procurador régio no corredor.
            Villefort precipitou-se no quarto, correu para Valentine e tomou-a nos braços.
            - Um médico! Um médico!... O Sr. de Avrigny! - gritou Villefort. - Ou antes, vou eu mesmo buscá-lo.
            E correu para fora da sala.
            Pela outra porta corria Morrel.
            Acabava de ser ferido no coração por uma horrível lembrança: a conversa entre Villefort e o médico que ouvira na noite da morte da Sra de Saint-Méran, e que lhe acudia agora à memória. Aqueles sintomas, num grau menos assustador, eram também os mesmos que haviam precedido a morte de Barrois.
            Ao mesmo tempo, parecera-lhe sussurrar-lhe ao ouvido a voz de Monte-Cristo quando lhe dissera, havia apenas duas horas: “Se precisar de alguma coisa, Morrel, venha ter comigo. Eu posso muito..."
            Mais rápido do que o pensamento, correu portanto do Arrabalde Saint-Honoré para a Rua Matignon e da Rua Matignon para a Avenida dos Campos Elísios.
            Entretanto, o Sr. de Villefort chegava num cabriolé de praça à porta do Sr. de Avrigny. Tocou com tanta violência que o porteiro veio abrir com ar assustado. Villefort correu para a escada sem forças para falar. Mas o porteiro conhecia-o e deixou-o passar, gritando apenas:
            - No gabinete, Sr. Procurador régio! No gabinete!
            Villefort empurrava já, ou antes, metia a porta dentro.
            - Ah, é o senhor!... - exclamou o médico.
            - Pois sou - respondeu Villefort fechando a porta atrás de si. - Pois sou, doutor, sou eu que lhe venho perguntar agora se estamos bem sós. Doutor, a minha casa é uma casa amaldiçoada!
            - O quê, tem mais alguém doente? - perguntou o médico com aparente frieza, mas com profunda emoção interior.
            - Tenho, doutor! - gritou Villefort, agarrando com a mão convulsa um punhado de cabelos. - Tenho!
            O olhar de Avrigny significou: “Tinha-lhe predito.."
            Depois os seus lábios proferiram lentamente estas palavras:
            - Quem vai morrer em sua casa e que nova vítima nos vai acusar de fraqueza perante Deus?
            Um soluço doloroso brotou do coração de Villefort.  Aproximou-se do médico, agarrou-lhe o braço e respondeu:
            - Valentine! Chegou a vez de Valentine!
            - A sua filha?! - exclamou Avrigny, fulminado de dor e surpresa.
            - Como vê, estava enganado - murmurou o magistrado. - Venha vê-la e peça-lhe perdão no seu leito de dor por ter desconfiado dela.
            - Todas as vezes que me chamou era demasiado tarde - observou o Sr. de Avrigny. - Mas não importa, vamos. No entanto, apressemo-nos, senhor, pois com os inimigos que atacam em sua casa não há tempo a perder.
            - Oh, desta vez, doutor, não me censurará mais a minha fraqueza! Desta vez saberei quem é o assassino e o castigarei.
            - Tentemos salvar a vitima antes de pensarmos em vingá-la - perguntou Avrigny. - Venha.  
            E o cabriolé que trouxera Villefort levou-o a galope, acompanhado de Avrigny, no preciso instante em que pela sua parte Morrel batia à porta de Monte-Cristo. O conde estava no seu gabinete e lia, muito preocupado, um bilhete que Bertuccio acabava de lhe enviar à pressa.
            Ao ouvir anunciar Morrel, que o deixara havia apenas duas horas, o conde levantou a cabeça.
            Tinham decerto acontecido muitas coisas naquelas duas horas, pois o jovem que o deixara de sorriso nos lábios trazia o rosto transtornado. O conde levantou-se e foi ao encontro de Morrel.
            - Que aconteceu, Maximilien? - perguntou-lhe. - está pálido e tem a testa coberta de suor...
            Morrel mais se deixou cair do que se sentou numa poltrona.
            - Sim, vim depressa porque necessitava lhe falar - disse por mim.
            - Estão todos bem na sua família? - perguntou o conde, num tom de interesse afetuoso, cuja sinceridade não enganaria ninguém.
            - Obrigado, conde, obrigado - respondeu o rapaz, visivelmente embaraçado para começar a conversa. - Sim, na minha família estão todos bem.
            - Tanto melhor. No entanto, tem alguma coisa a dizer-me? - insistiu o conde, cada vez mais inquieto.
            - Tenho - respondeu Morrel. - A verdade é que acabo de sair de uma casa onde a morte acabava de entrar e só tive tempo de correr para aqui.
            - Vem portanto de casa do Sr. de Morcerf? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não - respondeu Morrel. - Morreu alguém em casa do Sr. de Morcerf?
            - O general acaba de se suicidar - respondeu Monte-Cristo.
            - Oh, que horrível desgraça! - exclamou Maximilien.
            - Mas não para a condessa nem para Albert - observou Monte-Cristo. - Mais vale um pai e um marido mortos do que um pai e um marido desonrados. Sangue lava a desonra.
            - Pobre condessa! - disse Maximilien. -  É ela quem mais lamento. Uma mulher tão nobre!
            - Lamente também Albert, Maximilien, porque, acredite, é digno filho da condessa. Mas voltemos ao que o traz por aqui . Correu para cá, disse-me. Terei a sorte de precisar de mim?
            - Sim, preciso do senhor, isto é, acreditei como um insensato que me poderia ajudar numa circunstância em que só Deus me pode valer.
            - Diga - respondeu Monte-Cristo.
            - Oh, não sei, na verdade, se me será permitido revelar semelhante segredo a ouvidos humanos! Mas a necessidade e a fatalidade obrigam-me a isso, conde.
            Morrel calou-se por momentos.
            - Acredita que o estimo? - perguntou Monte-Cristo, pegando afetuosamente na mão do rapaz.
            - Oh, o senhor encoraja-me e depois qualquer coisa me diz aqui - e Morrel pôs a mão no coração - que não devo ter segredos para o senhor.
            - Tem razão, Morrel. É Deus que fala ao seu coração e é o seu coração que lhe fala. Repita-me tudo o que lhe disse o seu coração.
            - Conde, permite-me que mande Baptistin pedir da sua parte notícias de alguém que o senhor conhece? 
            - Se me pus à sua disposição, com mais forte razão ponho os meus criados.
            - Oh, é que não viverei enquanto não tiver a certeza de que ela está melhor!
            - Quer que chame Baptistin?
            - Não, eu próprio falo com ele.
            Morrel saiu, chamou Baptistin e disse-lhe algumas palavras em voz baixa. O criado de quarto saiu correndo.
            - Então, já o mandou? - perguntou Monte-Cristo ao ver entrar Morrel.
            - Sim e espero ficar um pouco mais tranquilo.
            - Estou à espera de ouvir o que tem para me dizer - lembrou Monte-Cristo, sorrindo.
            - Tem razão, escute. Uma noite encontrava-me num jardim, escondido por um renque de árvores, e ninguém desconfiava da minha presença ali. Duas pessoas passaram perto de mim. Permita-me que cale provisoriamente os seus nomes.  Conversavam em voz baixa e no entanto eu tinha tanto interesse em ouvir as suas palavras que não perdia uma só das que diziam.
            - O caso anuncia-se lugubremente, a julgar pela sua palidez e pela sua emoção, Morrel.
            - Oh, sim, muito lugubremente, meu amigo! Acabava de morrer alguém em casa do dono do jardim onde me encontrava. Uma das duas pessoas cuja conversa escutava era o dono do jardim e a outra o médico. Ora, o primeiro confiava ao segundo os seus receios e os seus desgostos, porque era a segunda vez no espaço de um mês que a morte se abatia, rápida e imprevista, sobre aquela casa, que se diria designada por algum anjo exterminador à cólera de Deus.
            - Ah, ah! - exclamou Monte-Cristo, olhando fixamente o rapaz e virando a sua poltrona num movimento imperceptível, de forma a ficar na sombra, enquanto a luz batia no rosto de Maximilien.
            - Sim - continuou este –, a morte entrara duas vezes naquela casa no espaço de um mês.
            - E que respondia o médico? - perguntou Monte-Cristo.
            - Respondia... respondia que aquela morte não fora natural e que era necessário atribuí-la...
            - A quê?
            - Ao veneno!
            - Deveras? - disse Monte-Cristo, com a tossezinha ligeira que nos momentos de grande emoção lhe servia para disfarçar quer o seu rubor, quer a sua palidez, quer ainda a própria atenção com que ouvia.
            - Maximilien, ouviu realmente dizer isso?
            - Ouvi, meu caro conde, ouvi, e o médico acrescentou que se o caso se repetisse se julgaria obrigado a comunicá-lo à justiça.
            Monte-Cristo escutava ou parecia escutar com a maior calma.
            - Pois bem - prosseguiu Maximilien –, a morte feriu terceira vez e nem o dono da casa nem o médico fizeram nada. Agora a morte vai ferir talvez pela quarta vez. A que lhe parece que o conhecimento deste segredo me obriga?
            - Meu caro amigo - disse Monte-Cristo –, parece-me que acaba de contar uma a ventura que ambos sabemos de cor. Conheço a casa onde ouviu isso, ou pelo menos conheço uma idêntica; uma casa onde há um jardim, um chefe de família, um médico... uma casa onde se verificaram três mortes estranhas e
inesperadas... Bom, olhe para mim, que não interceptei nenhuma confidência,  mas que no entanto sei tudo isso tão bem como o senhor; tenho porventura escrúpulos de consciência? Não! Isso não me diz respeito. Diz que um anjo exterminador parece designar essa casa à cólera do Senhor; pois bem, quem lhe garante que a sua suposição não é uma realidade? Não veja as coisas que não querem ver aqueles que têm interesse em vê-las. Se for a justiça e não a cólera de Deus, não passeie por essa casa, Maximilien, vire o rosto e deixe passar a justiça de Deus.
            Morrel estremeceu. Havia qualquer coisa ao mesmo tempo lúgubre e solene, para não dizer terrível, no tom do conde.
            - Aliás - prosseguiu este numa voz tão diferente que se diria que estas últimas palavras não saíram da boca do mesmo homem. - Aliás, quem lhe garante que isso continuará?
            - Já continuou, conde! - exclamou Morrel. - Por isso corri para sua casa.
            - Bom, que quer que eu faça, Morrel? Quer por acaso que previna o procurador régio?
            Monte-Cristo articulou estas últimas palavras com tanta clareza e em tom tão vibrante que Morrel se levantou de súbito e gritou:
            - Conde! Conde, o senhor sabe de quem estou falando, não sabe?!
            - Perfeitamente, meu bom amigo, e vou provar-lhe pondo os pontos nos is, ou antes, dando os nomes aos homens. O senhor passeou uma noite no jardim do Sr. de Villefort. De acordo com o que me disse, presumo que foi na noite da morte da Sra de Saint-Méran. Ouviu o Sr. de Villefort conversar com o Sr. de
Avrigny da morte do Sr. de Saint-Méran e da não menos surpreendente da marquesa. O Sr. de Avrigny dizia que acreditava num envenenamento e até  em dois envenenamentos. E ei-lo, meu caro Maximilien, homem honesto por excelência, ei-lo desde esse momento ocupado a tatear o seu coração, a sondar a sua consciência, para saber se deve revelar esse segredo ou calá-lo. Já não estamos na Idade Média, caro amigo, e já não existe Santa Vehme nem juízes francos. Que diabo pretende dessa gente? “Consciência, que me queres?", como diz Sterne. Vamos, meu caro, deixe-os dormir se dormem, deixe-os empalidecer nas suas insônias, se têm insônias, e, pelo amor de Deus, durma, visto não ter remorsos que o impeçam de
dormir.
            Uma dor horrível transpareceu no rosto de Morrel, que pegou na mão do conde e repetiu:
            - Mas aquilo continua!
            - E então? - perguntou o conde, surpreendido com aquela insistência que não compreendia e olhando Maximilien atentamente. - Deixe continuar. É uma família de Atridas; Deus condenou-os e cumprirão a sentença; desaparecerão todos como aqueles frades que as crianças fazem com cartas dobradas e que
caem um após outro sob o sopro do seu criador, mesmo que sejam duzentos. Foi o Sr. de Saint-Méran há três meses; foi a Sra de Saint-Méran há dois meses; foi Barrois no outro dia, e hoje é o velho Noirtier ou a jovem Valentine.
            - O senhor sabia?! - exclamou Morrel, num tal paroxismo de terror que Monte-Cristo estremeceu, ele que ficaria impassível se o céu desabasse. - O senhor sabia e não dizia nada!
            - Que me interessava? - respondeu Monte-Cristo, encolhendo os ombros. - Conheço porventura essa gente, para salvar um à custa de perder outro? Palavra que entre o culpado e a vítima não tenho preferência. 
            - Mas eu, eu! - gritou Morrel, mal podendo conter a sua dor. - Eu a amo!
            - Ama quem? - perguntou Monte-Cristo, pondo-se em pé de um salto e agarrando as mãos que Morrel erguia, torcendo-as, para o céu.
            - Amo perdidamente, amo como um insensato, amo como um homem que daria todo o seu sangue para lhe poupar uma lágrima; amo Valentine de Villefort, que estão assassinando neste momento! Ouça bem: amo-a e pergunto a Deus e ao senhor como hei de salvá-la!
            Monte-Cristo soltou um grito selvagem, do qual só poderão fazer idéia aqueles que já ouviram o rugido do leão ferido.
            - Desgraçado! - exclamou torcendo as mãos por sua vez. - Desgraçado! Ama Valentine, amaessa filha de uma raça maldita?!
            Nunca Morrel vira semelhante expressão; nunca olhar tão terrível chamejara diante de si; nunca o gênio do terror, que tantas vezes vira surgir nos campos de batalha ou nas noites homicidas da Argélia, lançara à sua volta raios mais sinistros.
            Recuou apavorado.
            Quanto a Monte-Cristo, depois desta explosão fechou um momento os olhos, como que deslumbrado por relâmpagos interiores, e entretanto recolheu-se com tanta força que se viu acalmar pouco a pouco a agitação que lhe fazia ondular o peito repleto de tempestades, como depois da passagem da nuvem negra carregada de chuva o sol doura as vagas turbulentas e espumosas.
            Aquele silêncio, aquele recolhimento, aquela luta duraram cerca de vinte segundos. Depois o conde ergueu a fronte pálida.
            - Veja - disse numa voz já quase normal –, veja, caro amigo, como Deus sabe castigar com a sua indiferença os homens mais fanfarrões e mais frios perante os espetáculos terríveis que lhes proporciona. Eu que assistia, impassível e curioso, ao desenrolar dessa lúgubre tragédia; eu que, como o anjo mau, ria do mal que os homens praticam em segredo (e o segredo é fácil de guardar aos ricos e aos poderosos), sinto-me por minha vez mordido por essa serpente cujo movimento tortuoso observava, e mordido no coração!
            Morrel soltou um gemido abafado.
            - Vamos, vamos, basta de queixumes - continuou o conde. - Seja homem, seja forte, tenha esperança, porque eu estou aqui e velo por si.
            Morrel abanou tristemente a cabeça.
            - Disse-lhe que tivesse esperança! Compreendeu? -  impacientou-se Monte-Cristo. - Sabe muito bem que nunca minto, que nunca me engano. É meio-dia, Maximilien; dê graças a Deus por ter vindo ao meio-dia em vez de vir à noite, em vez de vir amanhã de manhã. Ouça o que lhe vou dizer, Morrel: é meio-dia; se Valentine não morreu até  agora, não morrerá.
            - Oh, meu Deus, meu Deus! - exclamou Morrel. - Mas se a deixei moribunda!
            Monte-Cristo levou uma das mãos à testa.
            Que se passou naquela cabeça tão carregada de segredos horríveis?
            Que disse àquele espírito simultaneamente implacável e humano o anjo da luz ou o anjo das trevas?
            Só Deus o sabia! 
            Monte-Cristo levantou a cabeça mais uma vez, e desta vez estava tão calmo como uma criança ao acordar.
            - Maximilien - disse –, volte tranquilamente para casa. Recomendo-lhe que não dê um passo, que não tente nenhuma diligência, que não consinta que lhe tolde o rosto a sombra de uma preocupação. Lhe mandarei notícias. Vá.
            - Meu Deus! Meu Deus! - exclamou Morrel. - O senhor assusta-me conde, com esse sangue-frio. Pode alguma coisa contra a morte? É mais do que um homem? É um anjo? É Deus?
            E o jovem, que nenhum perigo fizera recuar um passo, recuava diante de Monte-Cristo, dominado por indizível terror. Mas Monte-Cristo olhou-o com um sorriso ao mesmo tempo tão melancólico e meigo que Maximilien sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos.
            - Posso muito, meu amigo - respondeu o conde. - Vá, tenho necessidade de ficar sozinho.
            Morrel, subjugado pelo prodigioso ascendente que Monte-Cristo exercia sobre tudo o que o rodeava, nem sequer tentou subtrair-se-lhe. Apertou a mão ao conde e saiu.
            Somente à porta se deteve para esperar Baptistin, que acabava de ver aparecer à esquina da Rua Matignon e que regressava a correr.
            Entretanto, Villefort e Avrigny tinham-se apressado. Quando chegaram, Valentine continuava desmaiada e o médico observara a doente com o cuidado que as circunstâncias exigiam e com a profundidade imposta pelo seu conhecimento do segredo da doença.
            Suspenso do olhar e dos lábios do médico, Villefort aguardava do resultado do exame. Noirtier, mais pálido do que a jovem e mais ansioso por uma solução do que o próprio Villefort, esperava igualmente e tudo nele era inteligência e sensibilidade.
            Por fim, Avrigny disse lentamente:
            - Ainda vive.
            - Ainda! - exclamou Villefort. - Oh, doutor, que palavra terrível acaba de pronunciar!
            - Sim - disse o médico –, e repito a minha frase: ainda vive, o que me surpreende muito.
            - Mas salva-se? - perguntou o pai.
            - Salva, visto ainda estar viva.
            Neste momento, o olhar de Avrigny encontrou o de Noirtier, no qual brilhava uma alegria tão extraordinária e uma inteligência de tal modo rica e fecunda que o médico ficou impressionado.
            Deixou a jovem voltar a cair na poltrona (Valentine tinha os lábios tão pálidos que mal se distinguiam no rosto) e ficou imóvel olhando para Noirtier, para quem qualquer gesto do médico se revestia de excepcional importância.
            - Senhor - disse então Avrigny a Villefort –, chame a criada de quarto de Mademoiselle Valentine, por favor.
            Villefort largou a cabeça da filha, que amparava, e correu ele próprio a chamar a criada.
            Assim que Villefort fechou a porta, Avrigny aproximou-se de Noirtier.
            - Tem alguma coisa a dizer-me? - perguntou.  
            O velho piscou expressivamente os olhos. Era, lembramos, o único sinal afirmativo que tinha à sua disposição.
            - Só a mim?
            - Sim - respondeu Noirtier.
            - Bom, ficarei consigo.
            Neste momento, Villefort regressou seguido da criada de quarto. Atrás desta vinha a Sra de Villefort.
            - Mas que aconteceu a esta querida filha?! - exclamou. - Quando me deixou queixava-se de estar indisposta, mas nunca imaginei que o caso fosse tão grave.
            E a jovem senhora, com as lágrimas nos olhos e todas as mostras de afeição de uma verdadeira mãe, aproximou-se de Valentine e pegou-lhe na mão. Avrigny continuou a fitar Noirtier. Viu os olhos do velho
dilatarem-se e arregalarem-se, as faces tornarem-se lívidas e tremer; o suor perlou-lhe a testa.
            - Ah! - exclamou involuntariamente o médico, seguindo a direção do olhar de Noirtier, isto é, pousando os olhos na Sra de Villefort, que repetia:
            - Esta pobre criança estará melhor na cama. Venha, Fanny, vamos deitá-la.
            O Sr. de Avrigny, que via nesta proposta um meio de ficar só com Noirtier acenou com a cabeça a significar que era efetivamente o melhor que havia a fazer, mas proibiu que a doente tomasse fosse o que fosse sem ele ordenar.
            Levaram Valentine, que recuperara os sentidos, mas que se encontrava incapaz de agir e quase de falar, de tal modo tinha os membros quebrados pelo abalo que acabava de experimentar. No entanto, ainda teve forças para se despedir com a vista do avô, a quem pareciam arrancar a alma levando-a.
            Avrigny seguiu a doente, receitou e ordenou a Villefort que se metesse num cabriole e fosse pessoalmente à farmácia mandar preparar na sua presença as poções prescritas, as trouxesse ele mesmo e o esperasse no quarto da filha.
            Em seguida, depois de renovar a ordem de nada deixarem tomar a Valentine, voltou a descer aos aposentos de Noirtier, fechou cuidadosamente as portas e disse, depois de se assegurar que ninguém os escutava:
            - Vejamos, sabe alguma coisa acerca da doença da sua neta?
            - Sei - respondeu o velho.
            - Ouça, não temos tempo a perder. Vou interrogá-lo e o senhor vai me responder.
            Noirtier fez sinal de que estava pronto para isso.
            - Previu o acidente que aconteceu hoje a Valentine?
            - Previ.
            Avrigny refletiu um instante e acrescentou, aproximando-se de Noirtier:
            - Perdoe-me o que lhe vou dizer, mas nenhum indício deve ser esquecido na situação terrível em que nos encontramos. Viu morrer o pobre Barrois?
            Noirtier ergueu os olhos ao céu.
            - Sabe de que morreu? - perguntou Avrigny, pousando a mão no ombro de Noirtier.
            - Sei - respondeu o velho.
            - Acha que a sua morte foi natural?
            Qualquer coisa como um sorriso esboçou-se nos lábios inertes de Noirtier.
            - Nesse caso, ocorreu-lhe a idéia de Barrois ter sido envenenado? 
            - Sim.
            - Parece-lhe que o veneno que o vitimou lhe era destinado?
            - Não.
            - E agora acha que tenha sido a mesma mão que feriu Barrois, embora querendo atingir outra pessoa a que feriu hoje Valentine?
            - Sim.
            - Ela vai portanto sucumbir também? - perguntou Avrigny, fixando o seu olhar profundo em Noirtier.
            E esperou o efeito desta frase no velho.
            - Não - respondeu o inválido com um ar de triunfo capaz de desorientar todas as conjecturas do mais hábil adivinho.
            - Então tem esperança? - perguntou Avrigny com surpresa.
            - Tenho.
            - Em quê?
            O velho deu a entender com os olhos que não podia responder.
            - Ah, sim, é verdade! - murmurou Avrigny.
            Depois, dirigindo-se a Noirtier, perguntou:
            - Tem esperança em que o assassino se canse?
            - Não.
            - Então que o veneno não produza efeito em Valentine?
            - Sim.
            - Porque não lhe dou nenhuma novidade dizendo-lhe que tentaram envenenar Valentine, não é verdade? - acrescentou Avrigny.
            O velho fez sinal com os olhos de que não tinha qualquer dúvida a tal respeito.
            - Então como espera que Valentine se salve?
            Noirtier manteve obstinadamente os olhos fixos no mesmo lugar. Avrigny seguiu-lhe a direção do olhar e viu que incidia numa garrafa que continha a poção que lhe davam todas as manhãs.
            - Ah, ah! - exclamou Avrigny, assaltado por uma idéia súbita. - Terá o senhor se lembrado...
            Noirtier não o deixou terminar.
            - Sim - respondeu.
            -... de a imunizar contra o veneno?...
            - Sim.
            - Habituando-a pouco a pouco...
            - Sim, sim, sim - respondeu Noirtier, encantado por ser compreendido. - Com efeito, ouviu-me dizer que nas poções que lhe dou entrava a brucina, não é verdade?
            - É.
            - E habituando-a a esse veneno quis neutralizar os efeitos de outro?
            A mesma alegria triunfante de Noirtier.
            - E conseguiu-o, sem dúvida nenhuma! - exclamou Avrigny. - Sem essa precaução, Valentine estaria morta hoje, morta sem socorro possível, morta sem misericórdia. O abalo foi violento, mas não passou disso, e pelo menos desta vez Valentine não morrerá.
            Uma alegria sobre-humana enchia os olhos do velho, erguidos ao céu com uma expressão de infinito reconhecimento. Neste momento, Villefort entrou.
            - Pronto, doutor, aqui tem o que me pediu.
            - Esta poção foi preparada na sua presença?
            - Foi - respondeu o procurador régio.
            - E não saiu das suas mãos?
            - Não.
            Avrigny pegou na garrafa, deitou algumas gotas da beberagem que ela continha na palma da mão e engoliu-as.
            - Bem - disse –, subamos ao quarto de Valentine, onde darei as minhas instruções a todas as pessoas, e o senhor velará pessoalmente, Sr. de Villefort, para que ninguém se afaste delas.
            No momento em que Avrigny entrava no quarto de Valentine acompanhado de Villefort, um padre italiano, de aspecto severo e palavras calmas e decididas, alugava para sua habitação a casa contígua ao palácio habitado pelo Sr. de Villefort.
            Impossível saber devido a que transação os três inquilinos dessa casa se mudaram passadas duas horas; mas o boato que correu geralmente no bairro foi de que a casa se não encontrava muito solidamente assente nos seus alicerces e ameaçava ruína, o que de modo algum impediu o novo inquilino de se instalar com o seu modesto mobiliário, nesse mesmo dia por volta das cinco horas.
            O arrendamento foi feito por três, seis ou nove anos pelo novo inquilino, o qual, conforme o hábito estabelecido pelos proprietários, pagou seis meses adiantados. O novo inquilino, que, como dissemos, era italiano, chamava-se Signor giacomo Busoni.
            Foram imediatamente chamados operários, e nessa mesma noite os raros transeuntes retardatários do cimo do arrabalde viram com surpresa os carpinteiros e os pedreiros ocupados a consertar de alto a baixo a casa vacilante.

Capítulo XCV

O pai e a filha


            Vimos, no capitulo anterior, a Sra Danglars ir anunciar oficialmente à Sra de Villefort o próximo casamento de Mademoiselle Eugénie Danglars com o Sr. Andrea Cavalcanti.
            Esse anúncio oficial. que indicava ou parecia indicar uma resolução tomada por todos os interessados nesse grande acontecimento, fora no entanto precedido de uma cena de que devemos dar conta aos nossos leitores.
            Pedimo-lhes portanto que dêem um passo atrás e se transportem à própria manhã desse dia de grandes catástrofes, no belo salão cheio de dourados que lhes demos a conhecer e que era o orgulho do seu proprietário, o Sr. Barão Danglars.
            Com efeito, nesse salão, por volta das dez horas da manhã, passeava havia alguns minutos, muito pensativo e visivelmente inquieto, o próprio barão, que olhava para todas as portas e se detinha a cada ruído.
            Quando a sua reserva de paciência se esgotou, chamou o criado de quarto. 
            - Etienne - disse-lhe –, veja por que motivo Mademoiselle Eugénie me pediu que a esperasse no salão e informe-se porque me faz esperar há tanto tempo.
            Expelido este acesso de mau humor, o barão recuperou um pouco a calma.
            Efetivamente, Mademoiselle Danglars mandara pedir uma audiência ao pai logo que acordara e designara o salão dourado como o local dessa audiência. A singularidade de semelhante diligência, e sobretudo o seu carater “oficial", não tinham de modo algum surpreendido o banqueiro, que acedera
imediatamente ao pedido da filha e fora o primeiro a chegar ao salão.
            Etienne em breve regressou da sua embaixada.
            - A criada de quarto da menina - disse - informou-me que a menina estava acabando de se arranjar e não tardaria a vir.
            Danglars fez. um sinal de cabeça indicativo de que estava satisfeito. Perante a sociedade, e até  perante a família, Danglars afetava ser um bonacheirão e um pai fraco. Era um aspecto do papel que se impusera na comédia popular que desempenhava, era uma máscara que adotara e que parecia convir-lhe, tal como convinha aos perfis direitos das máscaras das personagens do teatro antigo ter os lábios arrepanhados e risonhos, enquanto o lado esquerdo tinha os lábios descaídos e chorosos.
            Apressamo-nos a dizer que na intimidade os lábios arrepanhados e risonhos desciam ao nível dos lábios descaídos e chorosos, de modo que na maior parte do tempo o bonacheirão desaparecia e entrava em cena o marido brutal e o pai déspota.
            - Por que diabo essa louca quer me falar, segundo diz, não vai simplesmente ao meu gabinete? - murmurava Danglars. - E por que me quer falar?
            Moía pela vigésima vez este pensamento inquietante no cérebro quando a porta se abriu e Eugénie apareceu, de vestido do cetim preto salpicado de flores mates da mesma cor, em cabelo e enluvada como se fosse ocupar a sua poltrona no Teatro Italiano.
            - Então, Eugénie, que temos? - perguntou o pai. - E porquê o salão, com toda a sua solenidade, quando podia estar tão bem no meu gabinete particular?
            - Tem toda a razão, senhor - respondeu Eugénie, fazendo sinal ao pai de que se podia sentar –, e acaba de fazer duas perguntas que resumem antecipadamente toda a conversa que vamos ter. Vou portanto responder a ambas. E contra as leis do hábito, primeiro à segunda, por ser a menos complexa. Escolhi
o salão, senhor, para local de encontro, a fim de evitar as impressões desagradáveis e as influências do gabinete de um banqueiro. Os livros de caixa, por mais dourados que sejam, as gavetas fechadas como portas de fortalezas, os maços de notas vindos ninguém sabe donde e as quantidades de cartas vindas de
Inglaterra, da Holanda, da Espanha, da índia, da China e do Peru atuam em geral estranhamente sobre o espírito de um pai e fazem-no esquecer que existe no mundo um interesse maior e mais sagrado do que o da posição social e da opinião dos seus clientes. Escolhi portanto o salão, onde vê, sorridentes e felizes nas suas magníficas molduras, o seu retrato, o meu, o da minha mãe e todo o gênero de paisagens pastoris e bucólicas enternecedoras. Confio muito na influência das impressões exteriores. Talvez, sobretudo em relação ao senhor, seja um erro; mas que quer, não seria artista se me não restassem algumas ilusões. 
            - Muito bem - respondeu o Sr. Danglars, que escutara a tirada com imperturbável sangue-frio, mas sem compreender uma palavra, absorto como estava, como qualquer homem cheio de idéias preconcebidas, a procurar o fio da sua própria idéia nas idéias da interlocutora.
            - Está portanto o segundo ponto esclarecido, ou quase - disse Eugénie, sem o menor constrangimento e com a desenvoltura muito masculina que o caracterizava –, e o senhor parece-me satisfeito com a explicação. Agora voltemos ao primeiro. Perguntava-me por que solicitara esta audiência. Vou dizer-lhe
em duas palavras. Ei-las, senhor: não quero casar com o Sr. Conde Andrea Cavalcanti.
            Danglars deu um pulo na poltrona e, no impulso, levantou ao mesmo tempo os olhos e os braços ao céu.
            - Meu Deus, sim, senhor - continuou Eugénie, sempre muito calma. - está surpreendido, bem vejo, porque desde que toda essa combinaçãozinha está em marcha não manifestei a mais pequena oposição, certa como estou sempre de, no momento apropriado, opor francamente às pessoas que em nada me
consultaram e às coisas que me desagradam uma vontade franca e absoluta. No entanto, desta vez, essa tranquilidade, essa passividade, como dizem os filósofos, tinha outra origem; provinha de, como filha submissa e dedicada... - um sorriso breve desenhou-se nos lábios carminados da jovem - tentar a obediência.
            - E então? - perguntou Danglars.
            - E então, senhor - prosseguiu Eugénie –, tentei até  ao limite das minhas forças, e agora que chegou o momento, apesar de todos os esforços que empreguei sobre mim própria, sinto-me incapaz de obedecer.
            - Mas enfim, Eugénie, a razão? - perguntou Danglars, que, espírito primário, parecia antes de mais nada esmagado pelo peso daquela lógica implacável, cuja fleuma denotava tanta premeditação e força de vontade. - Qual a razão dessa recusa?
            - A razão? - replicou a jovem. - Oh, meu Deus, não é que o homem seja mais feio, mais estúpido ou mais desagrável do que outro, não. O Sr. Andrea Cavalcanti pode até  passar, junto daqueles que apreciam os homens pelo rosto e pela figura, por ser um modelo muitíssimo aceitável. Também não é porque o meu
coração esteja menos inclinado para ele do que para qualquer outro; isso seria uma razão de colegial que considero absolutamente abaixo de mim. Não amo absolutamente ninguém, senhor; sabe-o, não é verdade? Não vejo, portanto, por que motivo, sem disso ter absoluta necessidade, iria embaraçar a minha vida com um companheiro eterno. Não disse o sábio algures: “Nada de excessos!"? E em outro passo: “Trazei tudo convosco"? até  aprendi estes dois aforismos em latim e em grego. Um é, creio, de Fedro, e o outro, de Bias. Pois bem, meu querido pai, no naufrágio da vida, porque a vida é um naufrágio eterno das nossas esperanças, lanço ao mar a minha bagagem inútil, muito simplesmente, e fico com a minha vontade, disposta a viver absolutamente só e portanto absolutamente livre.
            - Desgraçada! Desgraçada! - murmurou Danglars, empalidecendo, pois conhecia por longa experiência a solidez do obstáculo com que deparava tão de repente.
            - “Desgraçada! Desgraçada", diz o senhor? - prosseguiu Eugénie. - Mas não, na realidade, e a exclamação parece-me absolutamente teatral e afetada.  Pelo contrário, feliz porque lhe pergunto: que me falta? A sociedade acha-me bela, e isso é qualquer coisa que merece ser acolhida favoravelmente Gosto dos bons acolhimentos: alegram as caras e os que me rodeiam parecem-me também menos feios. Sou dotada de algum espírito e de certa sensibilidade relativa, que me permite extrair da existência geral para o fazer entrar na minha o que nela encontro de bom, como faz o macaco quando parte a noz verde para lhe extrair o que contém. Sou rica, porque o senhor possui uma das maiores fortunas da França e porque sou sua filha única e o senhor não é tão teimoso como o são os pais da Porta Saint-Martin e da Gaieté, que deserdam as filhas por lhes não quererem dar netos. Aliás, a lei, previdente, tirou-lhe o direito de me deserdar, pelo menos por completo, tal como lhe tirou o poder de me obrigar a casar com o Sr. Fulano ou o Sr. Sicrano. Assim, bela,
espirituosa, possuidora de algum talento, como dizem nas operas cômicas, e rica... Mas é uma felicidade, senhor! Por que me chama desgraçada?
            Danglars, vendo a filha sorridente e orgulhosa até  à insolência, não pôde reprimir um gesto de brutalidade, acompanhado de alguns berros, mas mais nada. Debaixo do olhar interrogador da filha, diante daquele belo sobrolho negro, franzido pela interrogação, virou-se com prudência e acalmou-se  imediatamente, domado pela mão de ferro da circunspecção.
            - De fato, minha filha - respondeu com um sorriso -, você é tudo o que se gaba de ser, exceto uma única coisa, minha filha. Não quero porém dizer-te qual demasiado bruscamente; prefiro deixar-te adivinha-la...
            Eugénie olhou Danglars, muito surpreendida por lhe contestarem um dos florões da coroa de orgulho que acabava de colocar tão soberbamente na cabeça.
            - Minha filha - continuou o banqueiro -, explicou-me perfeitamente quais eram os sentimentos que presidiam às resoluções de uma jovem como você quando decidia não se casar. Agora é o momento de dizer quais são os motivos de um pai como eu quando decide que a filha se casará.
            Eugénie inclinou-se, não como filha submissa que escuta, mas sim como adversária prestes a discutir que espera.
            - Minha filha - prosseguiu Danglars -, quando um pai pede à filha que tome um marido, tem sempre um motivo qualquer para desejar o casamento. Uns são dominados pela mania a que te referia há pouco, ou seja, a se verem reviver nos netos. Não tenho essa fraqueza, começo por te dizer, pois as alegrias da família são quase indiferentes. Creio que posso confessar isto a uma filha que sei ser bastante filósofa para compreender esta indiferença e não a considerar um crime.
            - Com certeza - declarou Eugénie. - Falemos com franqueza, senhor, prefiro isso.
            - Oh, bem vê que, sem compartilhar, de modo geral, a sua simpatia pela franqueza, me submeto a ela quando creio que as circunstâncias a tal me convidam! - perguntou Danglars. - Continuo, portanto. Te propus um marido, não por você, porque na verdade não pensava por nada deste mundo em você nesse momento
(gosta da franqueza, pois aqui a tem, suponho), mas sim porque necessitava que pressionasse esse marido o mais depressa possível no sentido de participar em certas combinações comerciais que estou em vias de estabelecer neste momento.
            Eugénie fez um gesto. 
            - E como tenho a honra de te dizer, minha filha, e não me deve querer mal por isso porque foi você  quem me obrigou a falar. É com pesar, como deve compreender, que entro nestas explicações aritméticas com uma artista como você, que receia entrar no gabinete de um banqueiro porque pode deparar com
impressões ou sensações desagradáveis ou antipoéticas.
            "Mas fique sabendo, minha querida menina, que nesse gabinete de banqueiro, em que, apesar de tudo, se dignou a entrar anteontem para me pedir os mil francos que lhee dou todos os meses para os teus alfinetes, se aprendem muitas coisas proveitosas até  às jovens que não se querem casar. Aprende-se,
por exemplo, e em atenção para com a tua susceptibilidade nervosa lhe explicarei neste salão, aprende-se, dizia, que o crédito de um banqueiro é a sua vida física e moral, que o crédito sustenta o homem tal como a respiração anima o corpo, e a tal respeito o Sr. de Monte-Cristo fez-me um dia um discurso que nunca mais esqueci. Aprende-se que à medida que o crédito desaparece o corpo se transforma em cadáver e que isso
deve acontecer dentro de muito pouco tempo ao banqueiro que honra ser pai de uma filha tão forte em lógica.
            Mas Eugénie, em vez de se curvar, reagiu ao golpe.
            - Arruinado! - exclamou.
            - Encontrou a expressão exata, minha filha, a boa expressão - declarou Danglars, coçando o peito com as unhas e conservando nas feições rudes o sorriso de homem sem coração, mas não sem espírito. - Arruinado! É isso.
            - Ah! - exclamou Eugénie.
            - Sim, arruinado! Pronto, eis portanto revelado esse segredo cheio de horror, como diz o poeta trágico.
Agora, minha filha, ouve da minha boca como esta desgraça se pode tornar mais pequena para você; não digo para mim, mas sim para você.
            - Oh, o senhor é mau fisionomista se imagina que é por mim que deploro a catástrofe que me expõe! - exclamou Eugénie. Eu arruinada! E que me importa? Não me resta o meu talento? Não posso, como a Pasta, como a Malibran ou como a Grisi, conseguir o que o senhor nunca me daria, fosse qual fosse a sua fortuna, isto é, cem ou cento e cinquenta mil libras de rendimento, que deverei unicamente a mim, e que, em vez de me chegarem às mãos como chegam esses pobres doze mil francos que o senhor me dá com olhares impertinentes e palavras de censura pela minha prodigalidade, me virão acompanhados de aclamações,
de bravos e de flores? E quando não tivesse esse talento de que o seu sorriso me prova que desconfia, não me restaria ainda este profundo amor pela independência que me ocupará sempre o lugar de todos os tesouros e que domina em mim até o instinto da conservação?
            "Não, não é por mim que fico triste, pois eu saberei sempre tirar-me de apuros; os meus livros, os meus lápis, o meu piano, são tudo coisas que não custam caro e que poderei sempre proporcionar-me, nunca me faltarão. Pensa talvez que me aflijo pela Sra Danglars?... Desiluda-se também. Ou eu me engano muito ou a minha mãe tomou todas as precauções contra a catástrofe que o ameaça e que passará sem a atingir.
Ela colocou-se ao abrigo dessa contingência, creio, e não foi velando por mim que descurou as suas preocupações de fortuna. Porque, graças a Deus, deixou-me toda a minha independência a pretexto de que eu amava a minha  liberdade. 
            "Oh, não, senhor, desde a infância que vejo acontecerem muitas coisas à minha volta! E sempre as compreendi tão bem que a infelicidade nunca me causou mais impressão do que devia causar. Desde que me conheço que não sou amada por ninguém Claro que isso me levou muito naturalmente a não amar ninguém. Tanto melhor! Agora já tem a minha profissão de fé.
            - Então - disse Danglars, pálido de uma cólera que não devia nada ao amor paterno ofendido –, então a menina persiste em querer consumar a minha ruína?
            - A sua ruína! Eu consumar a sua ruína! - exclamou Eugénie. - Que quer dizer? Não o compreendo.
            - Tanto melhor, pois isso deixa-me um raio de esperança. Escute...
            - Estou escutando - respondeu Eugénie, olhando tão fixamente o pai que este teve de fazer um estorço para não baixar os olhos diante do olhar poderoso da filha.
            - O Sr. Cavalcanti casa contigo - continuou Danglars - e casando contigo traz três milhões de dote, que coloca no meu banco.
            - Ah, muito bem! - exclamou Eugénie com soberano desprezo e alisando as luvas uma sobre a outra.
            - Julga que lhe ficarei com esses três milhões? - perguntou Danglars. - De modo nenhum Esses três milhões destinam-se a produzir pelo menos dez. Obtive com um banqueiro meu colega a concessão de um caminho-de-ferro, a única indústria que nos nossos dias oferece as probabilidades fabulosas de êxito
imediato que noutros tempos Law atribuiu, para levar à certa os pobres Parisienses, esses eternos anjinhos da especulação, a um Mississipi fantástico. Pelos meus cálculos, deve-se possuir um milionésimo de via férrea como antes se possuía uma jeira de terra em pousio nas margens do Ohio. Trata-se de um investimento hipotecário, o que é um progresso, como verá, pois teremos pelo menos dez, quinze, vinte, cem libras de ferro em troca do nosso dinheiro. Pois bem, pela minha parte tenho de depositar dentro de oito dias quatro milhões! Quatro milhões, te repito, que renderão dez ou doze.
            - Mas durante a visita que lhe fiz anteontem, senhor, e de que se dignou lembrar-se - perguntou Eugénie –, vi-o receber em depósito (é este o termo, não é?) cinco milhões e meio. Até  me mostrou esse dinheiro em dois saques sobre o Tesouro, e se admirou de que um papel de tão grande valor não me deslumbrasse como se fosse um relâmpago.
            - Pois sim, mas esses cinco milhões e meio não me pertencem, são apenas uma prova da confiança que depositam em mim O meu titulo de banqueiro popular valeu-me a confiança dos hospitais, e os cinco milhões e meio são dos hospitais. Em outro tempo, não hesitaria em servir-me deles, mas hoje são conhecidos os grandes prejuízos; que tenho sofrido e, como te disse, o crédito começa a fugir-me. De um momento para o outro, a administração pode reclamar o depósito e se o tivesse empregado em outra coisa seria obrigado a abrir falência fraudulenta. Não receio as falências, acredita, mas as falências que enriquecem e não as que arruinam. Ora, se casar com o Sr. Cavalcanti e eu receber os três milhões do
dote, ou mesmo só que acreditem que os recebi ou vou receber, o meu crédito restabelece-se e a minha fortuna, que há um ou dois meses se engolfou em abismos abertos sob os meus passos por uma fatalidade inconcebível, consolida-se. Compreende? 
            - Perfeitamente. Empenha-me por três milhões, não é?
            - Quanto mais alta a importância, mais lisonjeira; dá uma idéia do teu valor.
            - Obrigada. Só mais uma palavra, senhor: promete-me que, embora servindo-se à vontade do valor nominal do dote que deve trazer o Sr. Cavalcanti, não tocará no dinheiro? Não se trata de um caso de egoísmo, trata-se de um caso de delicadeza. Desejo muito ajudá-lo a recuperar a sua fortuna, mas não quero
ser sua cúmplice na ruína dos outros.
            - Mas se te digo que com esses três milhões... - começou a protestar Danglars.
            - Acha que se pode tirar de apuros, senhor, sem necessitar mexer nesses três milhões?
            - Assim espero, mas sempre com a condição do casamento consolidar o meu crédito.
            - Poderá pagar ao Sr. Cavalcanti os quinhentos mil francos que me dá pelo meu contrato?
            - Ele os receberá -  assim que regressarmos do registro civil.
            - Ótimo!
            - Ótimo?... Que quer dizer?
            - Quero dizer que, logo que assine, poderei dispor livremente da minha pessoa?
            - Absolutamente.
            - Então, ótimo. Como lhe dizia, senhor, estou pronta a casar com o Sr. Cavalcanti.
            - Mas quais são os seus projetos?
            - Oh, isso é o meu segredo! Onde estaria a minha superioridade sobre o senhor se, conhecendo o seu, lhe revelasse o meu?
            Danglars mordeu os lábios.
            - Portanto, está pronta a fazer as poucas visitas oficiais que são absolutamente indispensáveis?
            - Estou - respondeu Eugénie.
            - E a assinar o contrato dentro de três dias?
            - Sim.
            - Nesse caso, é a minha vez de te dizer: ótimo!
            E Danglars pegou na mão da filha e apertou-a entre as suas. Mas, coisa extraordinária, enquanto lhe apertava a mão, o pai não se atreveu a dizer. “Obrigado, minha filha!", nem a filha teve um sorriso para o pai.
            - A conferência terminou? - perguntou Eugénie, levantando-se.
            Danglars fez sinal com a cabeça de que não havia mais nada a dizer.
            Cinco minutos mais tarde, o piano soava debaixo dos dedos de Mademoiselle de Armilly, e Mademoiselle Danglars cantava a maldição de Brabantio. No fim do trecho, Etienne entrou e anunciou a Eugénie que os cavalos estavam atrelados e que a baronesa a esperava para irem fazer visitas.
            Vimos as duas mulheres passarem por casa de Villefort, donde saíram para continuarem as suas voltas. 


Capítulo XCVI

O contrato


            Três dias depois da cena que acabamos de contar, isto é, por volta das cinco horas da tarde do dia fixado para a assinatura do contrato de Mademoiselle Eugénie Danglars com Andrea Cavalcanti, que o banqueiro se obstinara em manter príncipe, quando uma brisa fresca agitava todas as folhas do jardinzinho
situado diante da casa do conde de Monte-Cristo, no momento, em que este se preparava para sair e enquanto os seus cavalos esperavam batendo com as patas, seguros pela mão do cocheiro sentado havia já um quarto de hora no seu lugar, o elegante faeton com o qual já diversas vezes nos cruzamos e sobretudo
durante a testa em Auteuil, transpôs rapidamente a porta de entrada e projetou, mais do que depositou, nos degraus da escadaria o Sr. Andrea Cavalcanti, tão feliz e radiante como se pela sua parte estivesse prestes a casar com uma princesa.
            Informou-se da saúde do conde com a familiaridade que lhe era habitual e subiu agilmente ao primeiro andar, onde o encontrou pessoalmente ao cimo da escada. Ao ver o rapaz, o conde parou. Quanto a Andrea Cavalcanti, estava lançado, e quando estava lançado nada o detinha.
            - Eh, boa tarde, caro Sr. de Monte-Cristo! - disse ao conde.
            - Ah, o Sr. Andrea! - respondeu este na sua voz meio zomboteira. - Como está?
            - Ótimo, como vê. Venho conversar consigo acerca de inúmeras coisas. Mas primeiro diga-me: saía ou entrava?
            - Saía, senhor.
            - Então, para não o atrasar, subirei, se não se importar, para a sua caleça e Tom nos seguirá no meu faeton.
            - Não - respondeu com um imperceptível sorriso de desprezo o conde, que não desejava ser visto na companhia do rapaz. - Não, prefiro ouvi-lo, aqui, caro Sr. Andrea.  Conversa-se melhor numa sala, sem cocheiro que surpreenda as nossas palavras no ar.
            O conde entrou portanto numa salinha que fazia parte do primeiro andar, sentou-se, cruzou as pernas e fez sinal ao jovem para se sentar também. Andrea tomou o seu ar mais risonho.
            - Como sabe, caro conde - disse –, a cerimônia efetua-se esta noite. Às nove horas assina-se o contrato em casa do meu sogro.
            - Sim?... - disse Monte-Cristo.
            - Como, não sabia? Não foi prevenido da cerimônia pelo Sr. Danglars?
            - De fato - respondeu o conde –, recebi ontem uma carta dele, mas não creio que indicasse a hora.
            - É possível. O meu sogro terá contado com a notoriedade pública.
            - Pronto, ei-lo feliz, Sr. Cavalcanti - declarou Monte-Cristo. - Vai contrair uma aliança das mais vantajosas e além disso Mademoiselle Danglars é bonita.
            - Decerto - respondeu Cavalcanti, num tom cheio de modéstia. 
            - Ela é sobretudo muito rica, segundo creio, pelo menos - disse Monte-Cristo.
            - Muito rica... Acha que sim? - inquiriu o rapaz.
            - Sem dúvida. Diz-se que o Sr. Danglars esconde pelo menos metade da sua fortuna.
            - E ele confessa possuir quinze ou vinte milhões - notou Andrea, com um olhar cintilante de alegria.
            - Sem contar-acrescentou Monte-Cristo - que está em vésperas de entrar num gênero de especulação já um pouco gasto nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas absolutamente novo na França.
            - Sim, sim, sei a que se refere: o caminho-de-ferro cuja adjudicação acaba de obter, não é verdade?
            - Exatamente! Ganhará pelo menos, é a opinião geral, pelo menos dez milhões nesse negócio.
            - Dez milhões! Acha? É magnífico! - exclamou Cavalcanti, inebriado com este ruído metálico de palavras douradas.
            - Sem contar - prosseguiu Monte-Cristo - que toda essa fortuna irá parar às suas mãos, meu amigo, como é de justiça, visto Mademoiselle Danglars ser filha única. Aliás, a sua fortuna, meu caro, pelo menos segundo me disse o seu pai, é quase igual à da sua noiva. Mas ponhamos um pouco de parte os negócios de dinheiro. Sabe, Sr. Andrea, que conduziu um tanto lesta e habilmente todo esse negócio?...
            - Menos mal, menos mal - confessou o rapaz. - Nasci para diplomata.
            - Pois nada impede que o metam na diplomacia! Como sabe, a diplomacia não se aprende, é uma questão de instinto... O coração está portanto preso?
            - Na verdade, desconfio que sim - respondeu Andrea, no tom em que vira, no Teatro Francês, Dorante ou Valére responder a Alceste.
            - Ama-a um bocadinho?
            - Acho que sim, uma vez que me caso - respondeu Andrea, com um sorriso de vencedor. - No entanto, não esqueçamos um pormenor importante.
            - Qual?
            - Que fui singularmente ajudado em tudo isto.
            - Ora!...
            - Certamente.
            - Pelas circunstâncias?
            - Não, pelo senhor.
            - Por mim? Não diga isso, príncipe - protestou Monte-Cristo, sublinhando com afetação o título. - Que podia eu fazer por si? Não bastavam o seu nome, a sua posição social e o seu mérito?
            - Não - negou Andrea –, não. E por mais que diga, Sr. Conde, insisto que a posição de um homem como o senhor fez mais do que o meu nome, a minha posição social e o meu mérito.
            - Engana-se completamente, senhor - disse Monte-Cristo, sentindo a astúcia pérfida do rapaz e compreendendo o alcance das suas palavras. - A minha proteção só lhe foi concedida depois de tomar conhecimento da influência e da fortuna do senhor seu pai. E quem me proporcionou, a mim que nunca os
tinha visto, nem a si nem ao autor dos seus dias, o prazer de os conhecer? Dois dos meus amigos, Lorde Wilmore e o abade Busoni. Quem me encorajou, não a servir-lhe de garantia, mas a patrociná-lo? O nome do seu pai, tão conhecido e respeitado na Itália. Pessoalmente, não o conhecia.
            Esta calma e este perfeito à-vontade fizeram compreender a Andrea que se encontrava de momento seguro por uma mão mais musculosa do que a sua e que dispunha de uma força que não poderia ser facilmente quebrada.
            - Claro, claro! - apressou-se a concordar Andrea. - Mas‚ então éverdade que o meu pai possui realmente uma enorme fortuna, Sr. Conde?
            - Parece que sim, senhor - respondeu Monte-Cristo.
            - Sabe se o dote que me prometeu já chegou?
            - Já recebi a carta-aviso.
            - Mas os três milhões?
            - Os três milhões estão a caminho, muito provavelmente.
            - Isso quer dizer que os receberei de fato?
            - Ora essa! - exclamou o conde. - Parece-me que até  agora lhe não faltou o dinheiro, senhor!
            Andrea ficou de tal modo surpreendido que não pode se impedir de sonhar um momento.
            - Visto isso - disse, saindo do seu alheamento –, só me resta, senhor, fazer-lhe um pedido, que decerto compreenderá, mesmo que lhe seja desagrável.
            - Fale - disse Monte-Cristo.
            - Graças à minha fortuna, relacionei-me com muitas pessoas distintas e tenho até  de momento, pelo menos, inúmeros amigos. Mas casando-me, como me caso, perante toda a sociedade parisiense, devo ser apadrinhado por um nome ilustre, e à falta da mão paterna deverá ser uma mão poderosa a conduzir-me
ao altar. Ora o meu pai não vem a Paris, pois não?
            - Está velho, coberto de feridas e sofre horrivelmente sempre que viaja - respondeu Monte-Cristo.
            - Compreendo. Por isso lhe venho fazer um pedido...
            - A mim?
            - Sim, ao senhor.
            - E qual, meu Deus?
            - Que o substitua.
            - Então, meu caro senhor, que é isso?... Depois das numerosas relações que tive a honra de ter consigo ainda me conhece tão mal que me faz semelhante pedido? Peça-me meio milhão emprestado e, embora tal empréstimo seja bastante raro, dou-lhe a minha palavra de honra de que me será menos
embaraçoso. Como sabe, pelo menos creio já lho ter dito, na sua participação, sobretudo moral, nas coisas deste mundo nunca o conde de Monte-Cristo deixou de conservar os escrúpulos, direi mais, as superstições de um homem do Oriente. Eu, que tenho um serralho no Cairo, outro em Esmirna e outro em Constantinopla, presidir a um casamento? Nunca!
            - Portanto, recusa?
            - Redondamente. E fosse o senhor meu filho ou meu irmão, recusaria da mesma maneira.
            - Não me diga! - exclamou Andrea, decepcionado. - Mas então que fazer?
            - Como o senhor mesmo acaba de dizer, tem centenas de amigos...
            - De acordo, mas foi o senhor que me apresentou em casa do Sr. Danglars. 
            - Alto! Reponhamos os fatos em toda a sua verdade: fui eu que contribuí para que o senhor jantasse com ele em Auteuil, mas foi o senhor que se apresentou pessoalmente. Diabo, é muito diferente!
            - Pois sim, mas o meu casamento... o senhor ajudou.
            - Eu? Em coisíssima nenhuma, peço-lhe que acredite. Lembre-se do que lhe respondi quando veio solicitar-me que fizesse o pedido: “Oh, nunca me meto em casamentos, meu caro príncipe, é um princípio arraigado em mim!"
            Andrea mordeu os lábios.
            - Mas, enfim, ao menos assistirá? - perguntou.
            - Toda a sociedade parisiense estar  presente?
            - Com certeza!
            - Nesse caso, lá estarei, como toda a sociedade parisiense.
            - Assinará o contrato?
            - Não vejo nisso nenhum inconveniente. Os meus escrúpulos não vão tão longe.
            - Enfim, uma vez que me não quer conceder mais, devo contentar-me com o que me dá. Só mais uma palavra, conde.
            - Por que não?
            - Um conselho.
            - Cautela, um conselho é pior do que um favor.
            - Oh, este pode dar-me sem se comprometer!
            - Diga.
            - O dote da minha mulher é de quinhentas mil libras.
            - Foi a importância que o Sr. Danglars anunciou a mim mesmo.
            - Devo recebê-lo ou deixá-lo nas mãos do tabelião?
            - Vejamos como geralmente se passam as coisas quando se quer que se passem elegantemente: os dois tabeliões combinam encontrar-se no dia seguinte ou dois dias depois do contrato; no dia seguinte ou dois dias depois trocam os dotes, e se dão mutuamente recibo; uma vez o casamento realizado, põem os
milhões à sua disposição, como cabeça de casal.
            - É que - disse Andrea, com certa inquietação mal dissimulada - creio ter ouvido dizer ao meu sogro que tinha a intenção de colocar os nossos fundos nesse famoso negócio ferroviário de que o senhor me falava há pouco.
            - Mas isso, segundo toda a gente afirma - respondeu Monte-Cristo -, é um meio de os seus capitais triplicarem num ano. O Sr. Barão Danglars é bom pai e sabe contar.
            - Nesse caso - disse Andrea - tudo vai bem, exceto a sua recusa, que me causa um grande desgosto.
            - Atribua-a apenas a escrúpulos muito naturais em semelhantes circunstâncias.
            - Perfeitamente. Seja como quer. até  logo, às nove horas.
            - Até  logo.
            E, apesar de uma leve resistência de Monte-Cristo, cujos lábios empalideceram, mas que no entanto conservou o seu sorriso de cerimônia, Andrea pegou na mão do conde, apertou-a, saltou para o seu faeton e desapareceu.
            Às quatro ou cinco horas que lhe restavam até  às nove gastou-as Andrea em voltas, em visitas destinadas a interessar os amigos de que falara a aparecerem em casa do banqueiro com todo o luxo das suas carruagens, deslumbrando-os com promessas de ações que desde então fizeram todas as cabeças andar à roda e de que naquele momento Danglars tinha a iniciativa.
            Com efeito, às oito e meia o grande salão de Danglars, a galeria contígua a esse salão e os três outros salões do mesmo andar estavam cheios de uma multidão perfumada que atraia muito pouco a simpatia, mas muito a irresistível necessidade de estar onde se sabe haver novidades.
            Um acadêmico diria que as festas de sociedade são coleções de flores que atraem borboletas inconstantes, abelhas famintas e zangãos zumbidores. Desnecessário dizer que os salões estavam resplandecentes de velas, a luz jorrava das molduras douradas dispostas nas paredes forradas de seda e todo o mau gosto do mobiliário, que tinha apenas a seu favor a riqueza, resplandecia estrepitosamente.
            Mademoiselle Eugénie estava vestida com a mais elegante simplicidade: vestido de seda branca e brocado da mesma cor, uma rosa branca meio escondida nos seus cabelos de um negro de azeviche, e pronto, era tudo quanto constituía a sua toilette, que não enriquecia a mais pequena jóia.
            Poderia-se no entanto ler nos seus olhos uma segurança perfeita, que desmentia o que aquela cândida toilette tinha de vulgarmente virginal a seus próprios olhos.
            A Sra Danglars, a trinta passos dela, conversava com Debray, Beauchamp e Château-Renaud. Debray entrara naquela casa para assistir à grande solenidade, mas como todas as pessoas e sem nenhum privilégio especial.
            O Sr. Danglars, rodeado de deputados e financeiros, explicava uma teoria de novas contribuições que esperava pôr em prática quando a força das circunstâncias obrigasse o governo a chamá-lo ao ministério.
            Andrea, segurando pelo braço um dos mais elegantes dandys da Ópera, explicava-lhe com bastante impertinência, atendendo a que necessitava de ser insolente para parecer à vontade, os seus projetos de vida futura e os progressos de luxo que contava fazer com as suas setenta e cinco mil libras de rendimento na fashion parisiense.
            A multidão geral percorria os salões como um fluxo e um refluxo de turquesas, rubis, esmeraldas, opalas e diamantes. Como sempre, notava-se serem as mulheres mais velhas as mais arrebicadas e as mais feias as que se exibiam mais obstinadamente. Se havia algum belo lírio branco ou alguma rosa suave e
perfumada, era necessário procurá-lo e descobri-lo, escondido em qualquer canto por uma mãe de turbante ou por uma tia com plumas de ave-do-paraíso.
            A cada instante, no meio daquela balbúrdia, daquele burburinho, daqueles risos, a voz dos porteiros gritava um nome conhecido nas Finanças, respeitado no Exército ou ilustre nas Letras, enquanto um fraco movimento dos grupos acolhia esse nome.
            Mas por cada um que tinha o privilégio de agitar aquele oceano de vagas humanas, quantos passavam acolhidos pela indiferença ou pelo riso desdenhoso! No momento em que o ponteiro do relógio maciço, do relógio que representava Endimião adormecido, marcava nove horas no mostrador dourado, e em que a campainha, fiel reprodutora do pensamento maquinal, soava nove vezes, soou também o nome do conde de Monte-Cristo e, como que impelida, pela flama elétrica, toda a assistência se virou para a porta. 
            O conde estava vestido de preto e com a sua simplicidade habitual. O colete branco desenhava-lhe o peito amplo e nobre; a sua gravata preta parecia de uma frescura singular, de tal modo sobressaía na máscula palidez do rosto; como única jóia trazia uma corrente no colete, tão delicada que o delgado fio de ouro mal se via no pique branco.
            Fez-se imediatamente um círculo à roda da porta.
            Num só relance de olhos o conde viu a Sra Danglars numa extremidade do salão, o Sr. Danglars na outra e Mademoiselle Eugénie diante de si.
            Aproximou-se primeiro da baronesa, que conversava com a Sra de Villefort, que viera sozinha, pois Valentine continuava doente; e sem se desviar, de tal modo o caminho se abria diante dele, passou da baronesa a Eugénie, que cumprimentou em termos tão rápidos e reservados que a orgulhosa artista ficou
surpreendida.
            Junto dela encontrava-se Mademaiselle, Louise de Armilly, que agradeceu ao conde as cartas de recomendação que tão amavelmente lhe dera para a Itália e das quais contava, disse, servir-se frequentemente. Quando deixou as senhoras, virou-se e encontrou-se perto de Danglars, que se aproximara para cumprimentá-lo.
            Cumpridos estes três deveres sociais, Monte-Cristo deteve-se e passeou à sua volta o olhar firme, dotado dessa expressão característica das pessoas de certo meio, e sobretudo de certa capacidade, olhar que parecia dizer. “Fiz o que devia; agora os outros que façam o que me devem.”
            Andrea, que se encontrava num salão contíguo, sentiu a espécie de frêmito que Monte-Cristo imprimira à multidão e correu a cumprimentar o conde.
            Encontrou-o completamente cercado; os convidados disputavam-lhe as palavras, como acontece sempre com as pessoas que falam pouco e nunca dizem uma palavra sem valor. Os tabeliões entraram nesse momento e foram colocar os seus papéis garatujados em cima do veludo bordado a ouro que cobria a mesa preparada para a assinatura, mesa de madeira dourada.
            Um dos tabeliões sentou-se, o outro ficou de pé. Ia-se proceder à leitura do contrato que metade de Paris, presente na solenidade, deveria assinar.
            Cada um tomou o seu lugar, ou antes, as mulheres fizeram círculo, enquanto os homens, mais indiferentes no tocante ao estilo enérgico, como diz Boileau, comentavam a agitação febril de Andrea, a atenção do Sr. Danglars, a impassibilidade de Eugénie e a forma expedita e descontraída como a baronesa
tratava aquele importante assunto.   
            O contrato foi lido no meio de profundo silêncio. Mas assim que a leitura terminou, o rumor recomeçou nos salões e a dobrar do que fora anteriormente. Aquelas importâncias avultadas, aqueles milhões rolando no futuro dos dois jovens e que vinham completar a exposição que se organizara, numa sala exclusivamente dedicada a esse fim, da corbelha da noiva e dos diamantes da jovem, tinham-se repercutido com todo o seu
prestígio na invejosa assistência.
            Os encantos de Mademoiselle Danglars eram por isso duplos aos olhos dos jovens e de momento ofuscavam o brilho do Sol. Quanto às mulheres, descnecessário dizer que, embora cobiçando aqueles milhões, não achavam precisar deles para serem belas.
            Andrea, perseguido pelos amigos, cumprimentado, adulado, começando a acreditar na realidade do sonho em que vivia, Andrea estava prestes a perder a cabeça. O tabelião pegou solenemente na pena, ergueu-a acima da cabeça e disse:
            - Meus senhores, vamos assinar o contrato.
            O barão devia ser o primeiro a assinar, seguido do procurador do Sr. Cavalcanti pai, da baronesa e dos futuros cônjuges, como se diz no estilo abominável usado no papel selado. O barão pegou a pena e assinou, e depois o procurador. A baronesa aproximou-se pelo braço da Sra de Villefort.
            - Meu amigo - disse, pegando na pena –, não é desesperante? Um incidente inesperado, no caso, de assassínio e roubo, de que o Sr. Conde de Monte-Cristo esteve quase a ser vítima priva-nos da presença do Sr. de Villefort.
            - Oh, meu Deus! - exclamou Danglars no mesmo tom em que diria: “Palavra que tudo isso me é absolutamente indiferente!"
            - Meu Deus, receio muito ser a causa involuntária dessa ausência! - disse Monte-Cristo, aproximando-se.
            - Como?... O senhor, conde? - admirou-se a Sra Danglars, assinando. - Se é assim, acautele-se, porque nunca lhe perdoarei.
            Andrea arrebitava as orelhas.
            - No entanto, se assim for, a culpa não será minha, como vão ter oportunidade de verificar - desculpou-se o conde.
            Todos escutavam avidamente. Monte-Cristo, que tão raramente abria a boca, ia falar.
            - Decerto se lembram - começou o conde no meio do mais profundo silêncio - que foi em minha casa que morreu o desgraçado que viera para me roubar e que ao sair foi morto, ao que se julga, pelo cúmplice?...
            - Sim, lembramos - respondeu Danglars.
            - Pois bem, para o socorrer, despiram-no e atiraram-lhe as roupas para um canto, onde a justiça as apanhou. Mas a justiça, quando tomou conta da sobrecasaca e das calças, para as depositar no cartório, esqueceu-se do colete.
            Andrea empalideceu visivelmente e aproximou-se devagarinho da porta. Via surgir uma nuvem no horizonte, nuvem que lhe parecia trazer temporal.
            - Bom, o malfadado colete foi encontrado hoje todo coberto de sangue e furado no lugar do coração.
            As damas soltaram um grito e duas ou três prepararam-se para desmaiar.
            - Trouxeram-me. Ninguém era capaz de adivinhar de onde viera semelhante trapo; só eu pensei que se tratava, provavelmente, do colete da vítima. De súbito, o meu criado de quarto, revistando com nojo e precaução a fúnebre relíquia, sentiu um papel na algibeira e tirou-o. Era uma carta dirigida a quem? Ao senhor, barão.
            - A mim?! - exclamou Danglars.
            - Oh, meu Deus, ao senhor, sim! Consegui ler o seu nome através do sangue que manchava a carta - respondeu Monte-Cristo no meio das exclamações de surpresa geral.
            - Mas por que motivo isso reteve o Sr. de Villefort? - perguntou a Sra Danglars, olhando o marido com inquietação.
            - É muito simples, minha senhora - respondeu Monte-Cristo. - O colete e a carta eram o que se chama provas materiais. Carta e colete foram por mim  enviados ao Sr. Procurador régio, pois, como deve compreender, meu caro barão, a via legal é a mais segura em matéria criminal. Talvez se tratasse de alguma
maquinação contra o senhor...
            Andrea olhou fixamente Monte-Cristo e desapareceu no segundo salão.
            - É possível - disse Danglars. - Esse homem assassinado não era um antigo forçado?
            - Sim, era um antigo forçado chamado Caderousse - respondeu o conde.
            Danglars empalideceu ligeiramente. Andrea deixou o segundo salão e alcançou a antecâmara.
            - Mas assinem, assinem! - exclamou Monte-Cristo. - Verifico que a minha história impressionou a todos e peço-lhes humildemente perdão, Sra Baronesa e Mademoiselle Danglars.
            A baronesa, que acabava de assinar, entregou a pena ao tabelião.
            - O Sr. Príncipe Cavalcanti! - chamou o tabelião. - Onde está o Sr. Príncipe Cavalcanti?
            - Andrea! Andrea! - repetiram várias vozes de jovens que tinham já chegado com o nobre italiano a esse grau de intimidade que permite tratar as pessoas pelo nome de batismo.
            - Chame o príncipe, previna-o de que é ele a assinar! - gritou Danglars a um porteiro.
            Mas ao mesmo tempo a multidão dos assistentes refluiu, aterrada, para o salão principal, como se algum monstro pavoroso tivesse entrado ali, quaerens quem devoret.
            Havia efetivamente motivo para recuarem, se assustarem e gritarem. Um oficial de gendarmaria colocava dois guardas à porta de cada salão e avançava para Danglars, precedido de um comissário de polícia com a sua faixa à cintura. A Sra Danglars soltou um grito e desmaiou.
            Danglars, que se julgava ameaçado (certas consciências nunca estão tranquilas), ofereceu aos olhos dos seus convidados um rosto descomposto pelo terror.
            - Que se passa, senhor? - perguntou Monte-Cristo, indo ao encontro do comissário.
            - Qual dos senhores - perguntou o magistrado, sem responder ao conde - se chama Andrea Cavalcanti?
            Um grito de espanto partiu de todos os cantos do salão. Procuraram, interrogaram.
            - Mas quem é afinal esse Andrea Cavalcanti? - perguntou Danglars quase alucinado.
            - Um antigo forçado evadido das galés de Toulon.
            - E que crime cometeu?
            - É acusado - respondeu o comissário, na sua voz impassível - de ter assassinado um tal Caderousse, seu antigo companheiro de grilheta, no momento em que saía de casa do conde de Monte-Cristo.
            Monte-Cristo olhou rapidamente à sua volta. Andrea desaparecera. 


Capítulo XCVII

A estrada da Bélgica


            Pouco depois da cena de confusão produzida nos salões do Sr. Danglars pelo aparecimento inesperado do oficial de gendarmaria e pela revelação que se lhe seguira, o vasto palácio esvaziara-se com uma rapidez idêntica à que teria provocado o anúncio de um caso de peste ou cólera-morbo verificado entre os convidados. Em poucos minutos, por todas as portas, por todas as escadas, por todas as saídas, todas as
pessoas se apressaram em retirar-se, ou antes, a fugir. Porque se estava perante uma dessas situações em que nem sequer se deve tentar dar as vulgares consolações, que tornam, nas grandes cat´sstrofes, os melhores amigos tão importunos.
            Só ficaram no palácio do banqueiro o próprio Danglars, fechado no seu gabinete, depondo perante o oficial de gendarmaria, a Sra Danglars, aterrada, no boudoir que já conhecemos, e Eugénie, que, de olhar altivo e lábios desdenhosos, se retirara para o seu quarto com a sua inseparável companheira, Mademoiselle Louise de Armilly.
            Quanto aos numerosos criados, mais numerosos ainda naquela noite do que de costume, porque se lhes juntaram, por causa da festa, os sorveteiros, os cozinheiros e os chefes de mesa do Café de Paris, virando contra os patrões a cólera do que chamavam a sua afronta, estavam reunidos em grupos na copa,
nas cozinhas e nos seus aposentos, pouquíssimo preocupados com o serviço, que, aliás, se encontrava muito naturalmente interrompido.
            No meio destas diferentes personagens, movidas por interesses diversos, apenas duas merecem que nos ocupemos delas: Mademoiselle Eugénie Danglars e Mademoiselle Louise de Armilly.
            A jovem noiva retirara-se, como já dissemos, com ar altivo e lábios desdenhosos, qual rainha ultrajada, seguida da companheira, mais pálida e impressionada do que ela. Quando chegaram ao seu quarto, Eugénie fechou a porta por dentro, enquanto Louise caía numa cadeira.
            - Oh, meu Deus, meu Deus, que coisa horrível! - exclamou a jovem música. - Mas quem podia suspeitar? O Sr. Andrea Cavalcanti... um assassino... um evadido das galés... um forçado!
            Um sorriso irônico crispou os lábios de Eugénie.
            - Na verdade, estava predestinada - disse. - Escapei ao Morcerf para ir cair no Cavalcanti!
            - Oh, não confunda um com o outro, Eugénie!
            - Cale-se! Todos os homens são infames e sinto-me feliz por poder fazer mais do que detestá-los; agora desprezo-os.
            - Que vamos fazer? - perguntou Louise.
            - Que vamos fazer?
            - Sim.
            - Mas o que devíamos ter feito há três dias: partir...
            - Assim, embora já se não case, continua a querer?... 
            - Escute, Louise: horroriza-me esta vida de sociedade, ordenada, compassada, pautada como o nosso papel de música. O que sempre desejei. ambicionei, quis, foi a vida de artista, a vida livre, independente, onde cada um só depende de si, onde só tem de dar contas a si próprio. Ficar para quê? Para daqui a um mês tentarem voltar a casar-me? E com quem? Talvez com o Sr. Dehray, como se chegou a aventar. Não, Louise; não, a aventura desta noite me servirá de pretexto. Não o procurei, nem o pedi; Deus manda-me este e é bem-vindo.
            - Como você é forte e corajosa! - exclamou a loura e frágil moça à sua morena companheira.
            - Ainda não me conhece? Vamos, Louise, tratemos das nossas coisas. A carruagem de posta...
            - Nós a compramos sem dificuldade há três dias.
            - Mandou levá-la para onde a devemos tomar?
            - Mandei.
            - O nosso passaporte?
            - Está aqui!
            Eugénie desdobrou um papel e leu, com a sua arrogância habitual: “Sr. Léon de Armilly, de vinte anos, de profissão artista, cabelos pretos, olhos pretos, que viaja com sua  irmã..."
            - Ótimo! Por intermédio de quem arranjou este passaporte?
            - Quando fui pedir ao Sr. de Monte-Cristo cartas para os diretores dos teatros de Roma e Nápoles, exprimi-lhe os meus receios de viajar como mulher. Ele compreendeu-os perfeitamente e pôs-se à minha disposição para me arranjar um passaporte de homem, e dois dias depois recebi este, ao qual acrescentei pelo meu punho: “... que viaja com a sua irmã".
            - Pronto, agora trata-se apenas de fazer as malas! - exclamou alegremente Eugénie. - Partimos na noite da assinatura do contrato em vez de partirmos na noite do casamento; é a única alteração.
            - Pense bem, Eugénie...
            - Oh, já pensei! Estou cansada de ouvir falar de prorrogações, de fins de mês, e alta, de baixa, de fundos espanhóis, de papel haitiano. Em vez disso, Louise, compreende, o ar, a liberdade, o canto dos passarinhos, as planícies da Lombardia, os canais de Veneza, os palácios de Roma, a praia de Nápoles.
Quanto temos?
            A jovem Louise tirou de uma mesa entalhada uma carteirinha com fechadura, abriu-a e contou vinte e três notas de mil.
            - Vinte e três mil francos - informou.
            - E outro tanto, pelo menos, em pérolas, diamantes e jóias - disse Eugénie. - Estamos ricas! Com quarenta e cinco mil francos temos para viver como princesas durante dois anos, ou razoavelmente durante quatro. Mas antes de seis meses, você com a sua música e eu com a minha voz duplicaremos o nosso
capital. Vamos, encarrega-te do dinheiro que eu encarrego-me do cofre das jóias. Assim, se uma tiver a pouca sorte de perder o seu tesouro, a outra terá o seu. Agora a mala. Despachemo-nos, a mala!
            - Espere - pediu Louise, indo escutar à porta da Sra Danglars.
            - Que receia?
            - Que nos surpreendam. 
            - A porta está fechada.
            - Que nos mandem abri-la.
            - Pois que mandem; não a abriremos!
            - É uma autêntica amazona, Eugénie!
            E as duas jovens começaram com prodigiosa atividade, a meter numa mala todos os objetos de viagem que julgavam necessitar.
            - Agora - disse Eugénie –, enquanto mudo de roupa, fecha a mala.
            Louise carregou com toda a força das suas mãozinhas brancas na tampa da mala.
            - Não posso! - exclamou. - Não tenho força suficiente. Feche-a você.
            - Ah, tem razão! - perguntou Eugénie, rindo. - já me esquecia de que sou Hércules e você apenas a pálida ãnfale.
             E a jovem apoiou o joelho na mala e retesou os braços brancose musculosos até  os dois compartimentos da mala se juntarem e Mademoiselle de Armilly enfiar o cadeado. Terminada esta operação, Eugénie abriu uma cômoda de que tinha a chave e tirou uma manta de viagem de seda acolchoada.
            - Tome - disse. - Como vê, pensei em tudo. Com esta manta não terá frio.
            - E você?
            - Oh, eu nunca tenho frio, bem sabe! De resto, vestida de homem...
            - Vai se vestir aqui?
            - Claro.
            - E terá tempo?
            - Não tenha medo, poltrona! Todo o pessoal está ocupado com o grande escândalo. Aliás, que tem de extraordinário, quando se pensa no desespero em que devo estar, que me tenha fechado?
            - Nada, é verdade. Tranquiliza-me.
            - Anda, vem ajudar-me.
            E da mesma gaveta de onde tirara a manta que acabava de dar a Mademoiselle de Armilly e que esta já pusera pelos ombros, tirou um traje de homem completo, desde as botinas até  à sobrecasaca, bem como uma provisão de roupa branca, onde não havia nada de supérfluo, mas onde se encontrava o necessário.
            Então, com um desembaraço indicativo de que não era decerto a primeira vez que, por brincadeira, vestia as roupas do outro sexo, Eugénie calçou as botinas, vestiu as calças, deu o laço na gravata, abotoou até  ao pescoço o colete alto e envergou uma sobrecasaca que lhe desenhava a cintura fina e arqueada.
            - Oh, está muito bem! Sinceramente, está muito bem! - exclamou Louise, olhando-a com admiração. - Mas esses belos cabelos negros, essas tranças magníficas que faziam suspirar de inveja todas as mulheres, caberão num chapéu de homem como esse que vejo aí?
            - Já vai ver - respondeu Eugénie.
            E agarrando com a mão esquerda a trança grossa, na qual os seus longos dedos mal conseguiam fechar-se, pegou com a mão direita numa grande tesoura, e em breve o aço rangeu no meio da rica e esplêndida cabeleira, que caiu inteirinha aos pés da moça, inclinada para trás para não deixar cabelos na
sobrecasaca.
            Cortada a trança superior, Eugénie passou às das têmporas, que cortou sucessivamente, sem manifestar o mais pequeno pesar. Pelo contrário, os seus  olhos brilharam mais cintilantes e alegres ainda do que de costume debaixo das sobrancelhas negras como o ébano.
            - Oh, o teu magnífico cabelo! - exclamou Lonise, com pesar.
            - Então não estou cem vezes melhor assim? - perguntou Eugénie, alisando as madeixas esparsas do penteado, agora muito masculino. - Não me acha mais bonita assim?
            - Oh, você é bonita, é sempre bonita! - exclamou Louise. - Agora para onde vamos?
            - Para Bruxelas, se quiser. É a fronteira mais próxima. De Bruxelas seguiremos para Liêge e Aix-la-Chapelle, subiremos o reno até  Estrasburgo, atravessaremos a Suíça e entraremos em Itália pelo Saint-Gothard. Concorda?
            - Claro.
            - Para que está olhando?
            - Para você. Na verdade, está adorável assim. Diria que vai me raptar...
            - Meu Deus, e não deixa de haver certa razão nisso!
            - Mas não era o que tinha me prometido, Eugénie?...
            E as duas jovens, que toda a gente julgaria lavadas em lágrimas, uma por motivo próprio e a outra por dedicação à amiga, desataram a rir enquanto faziam desaparecer os vestígios mais visíveis da desordem que naturalmente acompanhara os preparativos da sua fuga.
            Depois de apagarem as luzes, de olhos bem abertos, ouvido à escuta de pescoço estendido, as duas fugitivas abriram a porta de um quarto de vestir que dava para uma escada de serviço que descia até  ao pátio. Eugénie caminhava à frente, segurando a mala com um braço, enquanto pela asa oposta Mademoiselle de Armilly mal a conseguia levantar com ambas as mãos. O pátio estava vazio. Dava meia-noite. O porteiro ainda velava.
            Eugénie aproximou-se muito devagarinho e viu o digno suíço a dormir ao fundo do cubículo, estiraçado na sua poltrona. Voltou para junto de Louise, tornou a pegar na mula que por instantes pousara no chão, e ambas, seguindo a sombra projetada pela parede, alcançaram a abóbada.
            Eugénie escondeu Louise no canto da porta, de maneira que, se por acaso o porteiro acordasse, só visse uma pessoa. Depois, expondo-se pessoalmente à luz do candeeiro que iluminava o pátio, gritou na sua mais deliciosa voz de contralto, batendo no vidro:
            - A porta!
            O porteiro levantou-se, como previra Eugénie, e deu até  alguns passos para identificar a pessoa que saía. Mas vendo um rapaz que batia impacientemente nas calças com o pingalim, abriu imediatamente.
            Ato contínuo, Louise esgueirou-se como uma cobra pela porta entreaberta e saltou agilmente para fora. Eugénie, aparentemente calma, embora, segundo todas as probabilidades, o seu coração desse mais pulsações do que no seu estado habitual, saiu por sua vez. Um moço de fretes que passava naquele momento prontificou-se a carregar a mala depois de as duas jovens lhe indicarem que iam para a Rua da Vitória, número 36.  Seguiram o homem, cuja presença tranquilizava Louise; quanto a Eugénie, era forte como uma Judite ou uma Dalila.
            Chegaram ao número indicado. Eugénie ordenou ao moço de fretes que pusesse a mala no chão, deu-lhe algumas moedas e, depois de bater no postigo, mandou-o embora. O postigo a que batia Eugénie era o de uma roupeira prevenida antecipadamente. Não estava ainda deitada e abriu.
            - Menina, diga ao porteiro que tire a caleça da cocheira e que vá buscar os cavalos à estação de posta - ordenou Eugénie. - Aqui estão cinco francos pelo trabalho.
            - Na verdade, admiro-te e quase diria que te respeito - confessou Louise.
            A roupeira olhava, atônita. Mas como estava combinado que receberia vinte luíses, não fez qualquer observação. Passado um quarto de hora, o porteiro voltava com o postilhão e os cavalos, que num abrir e fechar de olhos foram atrelados à carruagem, na qual o porteiro prendeu a mala com uma corda e um torniquete.
            - Aqui está o passaporte - disse o postilhão. - Que estrada tomamos, meu jovem burguês?
            - A estrada de Fontainebleau - respondeu Eugénie, numa voz quase masculina.
            - Que está dizendo? - perguntou Louise, surpreendida.
            - É para despistar - respondeu Eugénie. - A mulher a quem demos vinte luíses pode nos trair por quarenta. No bulevar tomaremos outra direção.
            E a jovem saltou para a brisca, transformada em excelente sege de viagem, sem quase tocar no estribo.
            - Tem sempre razão, Eugénie - disse a professora de canto, instalando-se junto da amiga.
            Um quarto de hora mais tarde, o postilhão, posto no caminho correto, transpunha, fazendo estalar o chicote, o portão da Barreira Saint-Martin.
            - Ah! - exclamou Louise, respirando. - até  que enfim saímos de Paris!
            - Sim, minha querida, e o rapto está realmente consumado - respondeu Eugénie.
            - Sim, mas sem violência - observou Louise.
            - Farei valer isso como circunstância atenuante - declarou Eugénie.
            Estas palavras perderam-se no meio do barulho que fazia a carruagem rodando no calcetamento da Villette.
            O Sr. Danglars já não tinha filha.


Capítulo XCVIII

A estalagem do sino e da garrafa


            E agora deixemos Mademoiselle Danglars e a amiga rodar pela estrada de Bruxelas e voltemos ao pobre Andrea Cavalcanti, tão malfadadamente detido no caminho da fortuna.
            Apesar da sua idade ainda pouco avançada, o Sr. Andrea Cavalcanti era um rapaz muito hábil e inteligente.
            Por isso, vimo-lo, aos primeiros rumores que penetraram no salão, aproximar-se gradualmente da porta, atravessar uma ou duas salas e por fim desaparecer.
            Uma das circunstâncias que nos esquecemos de mencionar, e que, no entanto, não deve ser omitida, é que numa das duas salas atravessadas por Cavalcanti se encontrava exposta a corbelha da noiva, constituída por diamantes, xales de caxemira, rendas de Valenciennes, véus da Inglaterra... por tudo o que compõe, enfim, esse acervo de objetos tentadores cujo nome basta para fazer pular de alegria o coração das jovens e que se chama enxoval.
            Ora, ao passar por essa sala, Andrea - o que prova que era não só rapaz muito inteligente e hábil, mas também previdente - apoderou-se do mais rico de todos os adereços expostos.
            Munido desse viático, Andrea sentira-se metade mais leve para saltar pela janela e esgueirar-se por entre as mãos dos guardas. Alto e esbelto como um lutador antigo, musculoso como um espartano, Andrea empreendera uma corrida de um quarto de hora, sem saber para onde ia, apenas com o fito de se afastar
do local onde estivera quase a ser preso.
            Partido da Rua do Mont-Blanc, encontrara-se, com esse instinto das barreiras que os ladrões possuem, tal como a lebre o da toca, ao fundo da Rua Lafayette. Aí, sufocado, arquejante, parou.
            Estava absolutamente só e tinha à esquerda a tapada de Saint-Lazare, um vasto deserto, e à direita, Paris em toda a sua profundidade.
            - Estarei perdido? - perguntou a si mesmo. - Não, se puder desenvolver uma soma de atividade superior à dos meus inimigos. A minha salvação não passa, portanto, muito simplesmente de uma questão de miriâmetros.
            Neste momento viu, vindo do alto do Arrabalde Poissonoiêre, um cabriolé de praça cujo cocheiro, abatido e fumando o seu cachimbo, parecia querer regressar às extremidades do Arrabalde Saint-Denis, onde sem dúvida estacionava habitualmente.
            - Eh, amigo! - chamou-o Benedetto.
            - Que deseja o nosso burguês? - perguntou o cocheiro.
            - O seu cavalo está cansado?
            - Cansado? Pois bem!... Não fez nada todo o santo dia.  Quatro péssimas corridas e vinte soldos de gorjeta; sete francos ao todo e tenho de entregar dez ao patrão!
            - Quer juntar a esses sete francos estes vinte?
            - Com prazer, burguês! Vinte francos não é coisa que se despreze. Que é preciso fazer para isso?
            - Uma coisa muito fácil se o seu cavalo não estiver cansado.
            - Garanto-lhe que voará como o vento; basta dizer para que lado deve voar...
            - Para o lado de Louvres.
            - Ah, ah, conheço! Terra do ratafia, não é?...
            - Exatamente. Trata-se apenas de apanhar um dos meus amigos com quem devo caçar amanhã na Chapelle-en-Serval. Devia esperar-me aqui com o seu cabriolé até  às onze e meia e ‚ meia-noite. Deve-se ter cansado de esperar e partiu sozinho.
            - É provável.
            - Bom, quer tentar apanhá-lo? 
            - Não pretendo outra coisa.
            - Mas se o não apanharmos daqui ao Bourget, receberá vinte francos, e se o não apanharmos daqui a Louvres, trinta.
            - E se o apanharmos?
            - Quarenta! - respondeu Andrea, que tivera um momento de hesitação, mas refletira que não arriscava nada em prometer.
            - Vamos a isso! - disse o cocheiro. - Suba e a caminho.  Prrrum!...
            Andrea subiu para o cabriolé, que, numa corrida rápida, atravessou o Arrabalde Saint-Denis, seguiu ao longo do Arrabalde Saint-Martin, atravessou a barreira e meteu pela interminável Villette.
            Embora estivessem bem livres de apanhar o quimérico amigo, de vez em quando Cavalcanti perguntava aos transeuntes retardatários ou nas tabernas ainda abertas se tinham visto passar um cabriolé verde puxado por um cavalo baio escuro; e como na estrada dos Países Baixos circulam muitos cabriolés.
nove décimos dos quais verdes, as informações choviam a cada passo.
            Acabavam sempre de o ver passar; não levava mais de quinhentos, duzentos ou cem passos de avanço; por fim, ultrapassavam-no e não era ele. Uma vez o cabriolé foi por seu turno ultrapassado por uma
caleça puxada rapidamente a galope por dois cavalos de posta.
            - Ah, se tivesse aquela caleça, aqueles dois bons cavalos e sobretudo o passaporte que foi preciso para os alugar!... - suspirou Cavalcanti.
            Aquela caleça era a que levava Mademoiselle Danglars e Mademoiselle de Armilly.
            - Depressa! Depressa! - gritou Andrea. - Não deve faltar muito para o apanharmos.
            E o pobre cavalo retomou o trote furioso em que viera desde a barreira e chegou todo fumegante a Louvres.
            - Decididamente - disse Andrea –, não conseguirei apanhar o meu amigo e acabarei por matar o cavalo. Portanto, é melhor ficar por aqui. Tome os seus trinta francos; vou dormir no Cavalo Vermelho e seguirei na primeira carruagem em que tiver lugar. Boa noite, meu amigo.
            E Andrea, depois de meter seis moedas de cinco francos na mão do cocheiro, saltou lestamente para a estrada.
            O cocheiro, guardou alegremente o dinheiro e retomou a passo o caminho de Paris. Entretanto, Andrea fingiu dirigir-se para a Estalagem do Cavalo Vermelho; mas depois de parar um instante à porta a ouvir o cabriolé afastar-se até  desaparecer no horizonte, retomou a sua corrida e, num passo de ginástica muito firme, percorreu mais duas léguas.
            Depois, descansou. Devia estar muito perto da Chapelle-en-Serval, aonde dissera que ia.
            Não fora a fadiga que obrigara Andrea Cavalcanti a parar; fora a necessidade de tomar uma decisão, de estabelecer um plano.
            Meter-se na diligência era impossível; optar pela posta era igualmente impossível. Para viajar de qualquer das maneiras era indispensável um passaporte.
            Permanecer no departamento do Oise, ou seja, num dos departamentos mais descampados e vigiados de França, era também impossível, sobretudo tratando-se de um homem tão experiente como Andrea em matéria criminal. Sentado no parapeito do fosso, Andrea deixou cair a cabeça entre as mãos e refletiu. Dez minutos depois levantou a cabeça; a sua resolução estava tomada.
            Cobriu de pó todo um lado do sobretudo que tivera tempo de tirar do cabide na antecâmara e vestir por cima do traje de cerimônia. dirigiu-se para a Chapelle-en-Serval e foi bater ousadamente à porta da única estalagem da terra.
            O estalajadeiro veio abrir.
            - Meu amigo - disse Andrea –, ia de Montrelontaine para Senlis quando o meu cavalo, que é um animal difícil, saltou bruscamente de lado e atirou comigo a dez passos de  distância. Ora eu tenho de chegar esta noite a Compiêgne, sob pena de causar as mais graves preocupações à minha  família; tem um cavalo que me alugue?
            Bom ou mau, um estalajadeiro tem sempre um cavalo.
            O estalajadeiro da Chapelle-en-Serval chamou o moço de estrebaria, ordenou-lhe que selasse o Branco e acordou o filho, um garoto de sete anos, para que acompanhasse o cliente montado na garupa e trouxesse o quadrúpede de volta.
            Andrea deu vinte francos ao estalajadeiro e, ao tirá-los da algibeira, deixou cair um cartão de visita.
            Esse cartão de visita era de um dos seus amigos do Café de Paris; assim, o estalajadeiro, quando Andrea partiu e apanhou o cartão que caíra da algibeira do rapaz, ficou convencido de que alugara o cavalo ao Sr. Conde de Mauicon, Rua de Saint-Dominique, 25, nome e endereço que figuravam no cartão.
            O Branco não ia depressa, mas ia num passo igual e constante. Em três horas e meia, Andrea percorreu as nove léguas que o separavam de Compiêgne, e davam quatro horas no relógio da câmara municipal quando chegou à praça onde param as diligências.
            Existe em Compiêgne uma excelente estalagem, de que se recordam mesmo aqueles que só lá ficaram uma vez.
            Andrea, que lá se hospedara numa das suas excursões aos arredores de Paris, lembrava-se da Estalagem do Sino e da Garrafa. Orientou-se, viu à luz de um candeeiro a tabuleta indicadora e depois de mandar embora o garoto, a quem deu todo o dinheiro miúdo que trazia consigo, foi bater à porta da
estalagem, pensando com muito bom-senso que tinha diante de si três ou quatro horas e que o melhor era precaver-se, mediante um bom sono e uma boa ceia, contra as fadigas futuras.
            Foi um criado quem veio abrir.
            - Meu amigo - disse Andrea –, venho de Saint-Jean-au-Bois, onde jantei, e contava apanhar a carruagem que passa à meia-noite; mas perdi-me como um estúpido e há quatro horas que percorro a floresta. Dê-me pois um desses bonitos quartos que deitam para o pátio e mande levar-me lá um frango frio e
uma garrafa de vinho de Bordéus.
            O criado não teve nenhuma suspeita: Andrea falava com a mais perfeita tranquilidade, de charuto na boca e com as mãos nas algibeiras do sobretudo. O seu traje era elegante, estava bem barbeado e as suas botas apresentavam-se impecáveis; tinha, quando muito, o ar de um habitante da terra retardatário.
            Enquanto o criado lhe preparava o quarto, a estalajadeira levantou-se. Andrea acolheu-a com o seu mais encantador sorriso e perguntou-lhe se não poderia ficar no número 3, onde já pernoitara na sua última passagem por Compiêgne. Infelizmente, o número 3 estava ocupado por um rapaz que viajava com a irmã.
            Andrea pareceu contrariado e só se conformou quando a estalajadeira lhe garantiu que o número 7, que lhe estavam preparando, tinha absolutamente a mesma disposição que o número 3. Assim, esperou, aquecendo os pés e conversando acerca das últimas corridas de Chantilly, que lhe viessem anunciar que o
quarto estava pronto.
            Não fora sem motivo que Andrea falara dos bonitos quartos que davam para o pátio. De fato, o pátio da Estalagem do Sino, com a sua tripla fileira de galerias que lhe davam o ar de uma sala de espetáculos, com os seus jasmins e as suas clematites que subiam ao longo das suas colunatas, leves como uma
decoração natural, era uma das mais encantadoras entradas de estalagem existentes no mundo.
            O frango estava ótimo, o vinho era velho e o lume crepitava alegremente. Andrea surpreendeu-se a cear com tanto apetite como se nada tivesse acontecido. Depois deitou-se e adormeceu quase imediatamente, num desses sonos implacáveis que o homem encontra sempre aos vinte anos, mesmo quando tem remorsos.
            Ora somos forçados a confessar que Andrea poderia ter remorsos, mas não os tinha.
            Eis qual era o plano de Andrea, plano que lhe dera a maior parte da sua tranquilidade: ao amanhecer, se levantaria e  sairia da estalagem depois de pagar escrupulosamente a conta; se dirigiria para a floresta e compraria, a pretexto de se dedicar a estudos de pintura, a hospitalidade de um camponês; arranjaria um traje de lenhador e um machado, ou seja, despiria as galas de “leão" para envergar as vestes de operário. Depois, com as mãos terrosas, o cabelo escurecido por um pente de chumbo e o rosto bronzeado com um preparado de que os seus antigos camaradas lhe tinham dado a receita, alcançaria, de floresta em floresta, a fronteira mais próxima, caminhando de noite, dormindo de dia nos bosques ou nas pedreiras e só se aproximando de lugares habitados para comprar de vez em quando um pão.
            Uma vez atravessada a fronteira, Andrea venderia os diamantes por uma importância a que juntaria uma dezena de notas que trazia sempre consigo para qualquer eventualidade e se encontraria ainda de posse de umas cinquenta mil libras, o que não parecia à sua filosofia um começo de vida demasiado
rigoroso.
            De resto, contava muito com o interesse que os Danglars teriam em extinguir o falatório acerca da sua desventura. Eis por que, além da fadiga, Andrea adormeceu tão depressa e dormiu tão bem.
            No entanto, para acordar mais cedo, Andrea não fechara as persianas; limitara-se apenas a correr o fecho da porta e a deixar aberta, em cima da mesa-de-cabeceira, uma navalha aguçadíssima, cuja excelente têmpera conhecia e de que nunca se separava.
            Por volta das sete da manhã, Andrea foi acordado por um raio de sol que lhe veio, tépido e brilhante, brincar no rosto.
            Em qualquer cérebro bem organizado a idéia dominante - e existe sempre uma –, a idéia dominante, dizíamos, é a que, depois de ser a última a adormecer, é também a primeira que ilumina o despertar do pensamento.  Ainda Andrea não abrira por completo os olhos e já o seu pensamento dominante se lhe impunha e segredava que dormira demais.
            Saltou da cama e correu à janela. Um guarda atravessava o pátio.
            Um guarda é um dos indivíduos mais impressionantes que existem no mundo, mesmo aos olhos de um homem que não tem nada a temer; mas para uma consciência assustada e que tem algum motivo para o estar, o amarelo, o azul e o branco de que se compõe o seu uniforme adquirem aspectos assustadores.
            “Porquê um guarda ?", pensou Andrea.
            De súbito, respondeu a si mesmo com a lógica que o leitor já lhe deve ter notado: “Um guarda não tem nada de extraordinário numa estalagem. Em todo o caso, vistamo-nos..."
            E o jovem vestiu-se com uma rapidez que não conseguira fazer-lhe perder o seu criado de quarto durante os poucos meses de vida social que levara em Paris.
            - Bom - disse Andrea enquanto se vestia esperarei que se vá embora e quando se for embora, escaparei.
            E ditas estas palavras, Andrea, já calçado e engravatado, aproximou-se devagarinho da janela e soergueu pela segunda vez a cortina de musselina.
            Não só o primeiro guarda não fora embora, como ainda surgiu aos olhos do jovem segundo uniforme azul, amarelo e branco, ao fundo da escada, a única pela qual poderia descer, enquanto um terceiro, a cavalo e de mosquetão em punho, se conservava de sentinela diante da grande porta da rua, a única pela qual poderia sair.
            O terceiro guarda era deveras significativo, e isto porque atrás dele se estendia um semicírculo de curiosos que bloqueavam hermeticamente a porta da estalagem.
            “Procuram-me!", foi o primeiro pensamento de Andrea. “Diabo!"
            A palidez invadiu a fronte do rapaz; olhou à sua volta com ansiedade.
            O seu quarto, como todos os daquele andar, só tinha saída para a galeria exterior, aberta a todos os olhares. “Estou perdido!", foi o seu segundo pensamento.
            Com efeito, para um homem na situação de Andrea a prisão significava: julgamento, sentença e morte, a morte sem misericórdia e sem demora. Por instantes comprimiu convulsivamente a cabeça entre as mãos.
            Durante esses instantes, quase enlouqueceu de medo.
            Mas daquele mundo de pensamentos que se lhe entrechocavam na cabeça não tardou a brotar um pensamento de esperança. Nos lábios descorados desenhou-se-lhe um sorriso pálido, que lhe iluminou as faces contraídas.
            Olhou à sua volta. Os objetos que procurava encontravam-se reunidos em cima do mármore de uma mesa: eram uma pena, tinta e papel.
            Molhou a pena na tinta e escreveu com mão que se esforçou por tornar firme as seguintes linhas, na primeira folha do caderno:

            Não tenho dinheiro para pagar, mas não sou um homem desonesto. Deixo em penhor este alfinete, que vale dez vezes a despesa que fiz.
            Espero me desculpem Ter fugido ao amanhecer, tive vergonha!
           
            Tirou o alfinete da gravata e colocou-o em cima do papel. Feito isto, em vez de deixar o fecho corrido, abriu-o, entreabriu mesmo a porta, como se tivesse saído do quarto e se houvesse esquecido de o fechar,  metendo-se na chaminé como homem habituado àquele gênero de ginástica, puxou para si a antepara de papel que representava Aquiles com Deidamia, apagou com os próprios pés os vestígios dos seus passos nas cinzas e começou a escalar o tubo curvo que lhe oferecia a única via de salvação em que ainda podia ter alguma esperança.
            Naquele preciso momento, o primeiro guarda que Andrea vira subia a escada, precedido pelo comissário de polícia, e apoiado pelo segundo guarda, que guardava o fundo da escada, o qual contava por seu turno com o apoio do que se encontrava à porta.
            Eis a que circunstância Andrea devia a visita que com tanta dificuldade se dispunha a receber.
            Ao amanhecer, os telégrafos tinham funcionado em todas as direções, e cada posto, prevenido quase imediatamente, avisara as autoridades e lançara a força pública em busca do assassino de Caderousse.
            Compiêgne, residência real: Compiêgne, cidade de caça; Compiêgne, cidade de guarnição, estava abundantemente fornecida de autoridades, guardas e comissários de polícia. As buscas tinham portanto começado logo após a recepção da ordem telegráfica, e como a Estalagem do Sino e da Garrafa era o principal estabelecimento hoteleiro da cidade, começara-se muito naturalmente por ele.
            Aliás, segundo o relatório das sentinelas que tinham estado durante a noite de guarda à câmara municipal (a câmara municipal ficava contígua à Estalagem do sino), segundo o relatório das sentinelas, dizíamos, verificara-se durante a noite a chegada de vários viajantes à estalagem.
            A sentinela que fora rendida às seis da manhã recordava-se até  de, no momento em que ocupara o seu posto, isto é, às quatro horas e poucos minutos, ter visto um jovem montado num cavalo branco e com um camponiozito na garupa, jovem que desmontara na praça, mandara embora o campônio e o cavalo e fora bater à porta da Estalagem do Sino, que se abrira diante dele e se fechara nas suas costas.
            Fora sobre esse jovem tão singularmente retardatário que tinham recaído as suspeitas.
            Ora, o jovem era precisamente Andrea.
            E era baseados nestes dados que o comissário de polícia e o guarda, um cabo, se encaminhavam para a porta de Andrea, que estava entreaberta.
            - Oh, oh, mau sinal uma porta aberta! - exclamou o cabo, velha raposa batida nas manhas da profissão. - Preferia vê-la fechada a sete chaves!
            Com efeito, o bilhete e o alfinete deixados por Andrea em cima da secretária confirmaram ou, antes, apoiaram a triste realidade: Andrea fugira.
            Dizemos apoiaram porque o cabo não era homem que se contentasse com uma única prova.
            Olhou à sua volta, espreitou debaixo da cama, correu os cortinados, abriu os armários e por fim deteve-se diante da chaminé.
            Graças às precauções de Andrea, nenhum vestígio da sua passagem ficara nas cinzas. 
            Contudo, era uma saída, e nas circunstâncias em que se encontravam, todas as saídas deviam ser objeto de rigorosa investigação.
            O cabo mandou portanto trazer um molho de lenha e palha e encheu a chaminé como se fosse um morteiro. Em seguida largou fogo a tudo.
            O lume fez estalar as paredes de tijolo e uma densa coluna de fumo subiu pela chaminé e foi expelida para o céu como o jato negro de um vulcão. Ninguém viu, porém, cair o fugitivo, como se esperava.
            É que Andrea, desde a sua primeira juventude em luta com a sociedade, valia bem um guarda, ainda que esse guarda fosse um respeitável cabo: previra portanto o incêndio, alcançara o telhado e escondera-se atrás da chaminé.
            Por momentos teve alguma esperança de se encontrar salvo, pois ouviu o cabo chamar os dois guardas e gritar-lhes:
            - Não está aqui !
            Mas, estendendo cautelosamente o pescoço, viu que os dois guardas, em vez de se retirarem, como seria natural, à primeira chamada, viu, dizíamos, que, pelo contrário, os dois guardas redobravam de atenção.
            Olhou por seu turno em redor: a câmara municipal, edifício colossal do século XVI, erguia-se diante de si como uma muralha sombria; à direita, pelas janelas do monumento, podiam-se observar lodos os cantos e recantos do telhado da estalagem, tal como do alto de uma montanha se vê o vale.
            Andrea adivinhou que de um momento para o outro veria aparecer a cabeça do cabo de guardas em qualquer daquelas janelas. Descoberto, estaria perdido; uma perseguição nos telhados não lhe apresentava nenhuma probabilidade de êxito.
            Resolveu portanto voltar a descer, não pelo mesmo caminho por onde viera, mas sim por um caminho análogo.
            Procurou com a vista uma chaminé donde não saísse qualquer fumo, alcançou-a rastejando pelo telhado e desapareceu no orifício sem ser visto por ninguém
            No mesmo instante abriu-se uma janelinha da câmara municipal e deu passagem à cabeça do cabo de guardas. Por momentos essa cabeça ficou imóvel como um dos relevos de pedra que decoravam o edifício, depois, com um longo suspiro de decepção, a cabeça desapareceu.
            O cabo, calmo e digno como a lei que representava, passou sem responder às mil e uma perguntas da multidão aglomerada na praça e voltou a entrar na estalagem.
            - Então? - perguntaram por sua vez os dois guardas.
            - Então, meus rapazes, parece que de fato o bandido se distanciou de nós esta manhã ao nascer do dia - respondeu o cabo. - Mas vamos mandar pessoal para as estradas de Villers-Cotterets e Noyon e revistar a floresta, onde sem dúvida nenhuma o apanharemos.
            O respeitável funcionário acabava de proferir estas palavras com a intonação característica dos cabos de guardas, quando um longo grito de terror, acompanhado do toque repetido de uma campainha, soou no pátio da estalagem.
            - Oh ! Que é aquilo? - gritou o cabo.
            - Ora aí está um viajante que parece cheio de pressa  - comentou o estalajadeiro. - Em que número estão a tocar? 
            - No número 3.
            - Corre, rapaz!
            Neste momento, os gritos e os toques de campainha aumentaram. O criado desatou a correr.
            - Não - disse o cabo, detendo o rapaz. - Quem toca parece pedir mais alguma coisa do que o criado e nós vamos mandar-lhe um guarda. Quem está hospedado no número 3?
            - O jovem que chegou esta noite com a irmã numa sege de posta e pediu um quarto com duas camas.
            A campainha tocou terceira vez com uma insistência cheia de angústia.
            - Vamos, Sr. comissário! - gritou o cabo. - Siga-me o mais de perto possível.
            - Um momento! - interveio o estalajadeiro. - Para o quarto número 3 há duas escadas: uma exterior e outra interior.
            - Bom, irei pela interior - respondeu o cabo. - As carabinas estão carregadas?
            - Estão, sim, cabo.
            - Então, vigiem vocês o exterior e se ele tentar fugir, atirem-lhe. É um grande criminoso, segundo disse o telégrafo.
            O cabo, seguido do comissário, desapareceu imediatamente na escada interior, acompanhado pelo sussurro que as suas revelações acerca de Andrea acabava de provocar na multidão.
            Eis o que acontecera:
            Andrea descera perfeitamente dois terços da chaminé, mas, chegado aí, o pé falhara-lhe e, apesar de se apoiar nas mãos, descera com mais velocidade e sobretudo com mais barulho do que desejaria. Isso não teria importância se o quarto estivesse vazio; mas, por infelicidade sua, estava ocupado.
            Duas mulheres que dormiam na mesma cama tinham sido acordadas pelo barulho. Os seus olhos estavam cravados no ponto de onde viera o barulho e tinham visto aparecer um homem pela abertura da chaminé.
            Fora uma das mulheres, a loura, que soltara o grito terrível que ecoara por toda a casa, enquanto a outra, que era morena, se agarrava ao cordão da campainha e dava o alarme, tocando com todas as suas forças.
            Como se vê, Andrea estava em maré de azar.
            - Por piedade! - gritou, pálido, desorientado, sem ver as pessoas a quem se dirigia. - Por piedade, não chamem, salvem-me! Não quero lhes fazer mal.
            - Andrea, o assassino! - gritou uma das moças.
            - Eugénie! Mademoiselle Danglars! - murmurou Cavalcanti, passando do terror ao espanto.
            - Socorro! Socorro! - gritou Mademoiselle de Armilly, tirando a campainha das mãos inertes de Eugénie e tocando ainda com mais força do que a companheira.
            - Salvem-me, perseguem-me! - suplicou Andrea juntando as mãos. - Por piedade, por compaixão, não me entreguem!
            - É demasiado tarde, ouço subir - respondeu Eugénie.
            - Então escondam-me em qualquer parte e digam que se assustaram sem motivo. Desviarão as suspeitas e me salvarão a vida. 
            As duas mulheres, agarradas uma à outra envoltas na roupa da cama, ficaram mudas àquela voz suplicante. Todas as apreensões, todas as repugnâncias se entrechocavam no seu espírito!
            - Está bem, seja! - acedeu Eugénie. -Volte pelo caminho por onde veio, desgraçado. Parta e não diremos nada.
            - Aqui está ele! Aqui está ele! - gritou uma voz no patamar. - Aqui está ele, estou vendo-o!
            Com efeito, o cabo colara um olho à fechadura e vira Andrea de pé e suplicante.
            Uma violenta coronhada fez saltar a fechadura e mais duas fizeram saltar o ferrolho. A porta, quebrada, caiu para dentro.
            Andrea correu para a outra porta, a que deitava para a galeria do pátio, abriu-a e preparou-se para saltar. Mas os dois guardas estavam lá com as suas carabinas e levaram-nas à cara.
            Andrea parou bruscamente. De pé, pálido, com o corpo um pouco inclinado para trás, segurava a navalha, agora inútil, na mão crispada.
            - Fuja! - gritou Mademoiselle de Armilly, no coração da qual entrava a piedade à medida que o terror saía. - Fuja!
            - Ou mate-se! - acrescentou Eugénie no tom e na atitude de uma daquelas vestais que no circo ordenavam com o polegar, ao gladiador vitorioso, que acabasse com o seu adversário vencido.
            Andrea estremeceu e fitou a jovem com um sorriso de desprezo, demonstrativo de que a sua corrupção não compreendia aquela sublime ferocidade da honra.
            - Matar-me! - exclamou, largando a navalha. - Para quê?
            - Mas você mesmo disse que o condenarão à morte e o executarão como o último dos criminosos! - gritou Mademoiselle Danglars.
            - Ora!... - replicou Cavalcanti, cruzando os braços. - Tenho amigos...
            O cabo avançou para ele de sabre em punho.
            - Pronto, pronto, meu caro, meta isso na bainha! - disse Cavalcanti. - Não vale a pena tanto espalhafato, uma vez que me rendo...
            E estendeu as mãos para as algemas.
            As duas jovens assistiam com terror àquela horrível metamorfose que se operava diante dos seus olhos: a de um homem de sociedade que se despojava do seu invólucro e voltava à sua condição de forçado.
Andrea virou-se para elas e perguntou com um sorriso de impudência:
            - Tem algum recado para o senhor seu pai, Mademoiselle Eugénie? Porque, segundo todas as probabilidades, regresso a Paris...
            Eugénie escondeu o rosto nas mãos.
            - Oh, não tem de que se envergonhar nem lhe quero mal por se ter metido numa carruagem e corrido atrás de mim!... - exclamou Andrea. - Não era quase seu marido?
            E depois desta graçola, Andrea saiu deixando as duas fugitivas entregues às amarguras da vergonha e aos comentários dos curiosos.
            Uma hora mais tarde, envergando ambas a sua indumentária feminina, subiam para a sua caleça de viagem. 
            Tinham fechado a porta da estalagem para as subtrair aos primeiros olhares, mas mesmo assim, quando a porta se abriu, tiveram de passar entre alas de curiosos de olhos chamejantes e lábios murmurantes. Eugénie desceu os estores; mas se já não via, continuava a ouvir os risos escarninhos.
            - Oh, porque não será o mundo um deserto?! - exclamou, lançando-se nos braços de Mademoiselle de Armilly, com os olhos cintilantes da raiva que fazia desejar a Nero que o  mundo romano tivesse apenas uma cabeça para a cortar de um só golpe. No dia seguinte hospedavam-se no Hotel da Flandres, em Bruxelas.
            Andrea entrara na véspera na Conciergerie.

Capítulo XCIX

A lei


            Já vimos com que tranquilidade Mademoiselle Danglars e Mademoiselle de Armilly tinham conseguido disfarçar-se e fugir. É que todos estavam demasiado ocupados com os seus problemas pessoais para se ocuparem dos delas.
            Deixaremos o banqueiro, com a testa coberta de suor, alinhar perante o fantasma da falência as enormes colunas do seu passivo e seguiremos a baronesa, que, depois de ficar um instante esmagada pela violência do golpe que acabava de atingi-la, fora procurar o seu conselheiro habitual, Lucien Debray.
            Com efeito, a baronesa contava com o casamento da filha para se libertar finalmente de uma tutela que, com uma moça do temperamento de Eugénie, não deixava de ser muitíssimo difícil. Porque, naquelas espécies de contratos tácitos que mantinham o vínculo hierárquico da família, a mãe só era na realidade senhora da filha com a condição de ser continuamente para ela um exemplo de sensatez e um tipo  de perfeição.
            Ora, a Sra Danglars temia a perspicácia de Eugénie e os conselhos de Mademoiselle de Armilly. Já surpreendera certos olhares desdenhosos lançados pela filha a Debray - olhares que pareciam significar que a filha conhecia todo o mistério das suas relações amorosas e pecuniárias com o secretário íntimo
- é e uma interpretação mais sagaz e aprofundada desses olhares teria demonstrado à baronesa que Eugénie detestava Debray não por ser na casa paterna um pomo de discórdia e de escândalo, mas sim porque o classificava muito simplesmente na categoria dos bípedes que Diôgenes pretendia já não considerar homens e que Platão designava pela perífrase de animais de duas patas e sem penas.
            Do seu ponto de vista - e infelizmente neste mundo cada um tem o seu ponto de vista que o impede de ver o ponto de vista dos outros -, a Sra Danglars lamentava portanto infinitamente que o casamento de Eugénie tivesse falhado, não por se tratar de um casamento conveniente e capaz de fazer a felicidade da
filha, mas sim por ser um casamento que lhe restituía a liberdade.
            Correu, portanto, como dissemos, a casa de Debray, que, depois de ter, como todas as pessoas em Paris, assistido à festa do contrato e ao escândalo que se seguira,  se apressara a retirar-se para o seu clube, onde, com alguns amigos, conversava acerca do acontecimento que era àquela hora tema obrigatório de conversa de três quartos de uma cidade eminentemente mexeriqueira, a que chamam a capital do mundo.
            No momento em que a Sra Danglars, de vestido preto e de véu, subia a escada que conduzia ao apartamento de Debray, apesar da certeza que lhe dera o porteiro de que o jovem se não encontrava em casa, Debray procurava repelir as insinuações de um amigo que tentava provar-lhe que depois do escândalo
terrível que acabava de se verificar era seu dever de amigo da casa casar com Mademoiselle Eugénie Danglars e os seus dois milhões.
            Debray defendia-se como um homem que não deseja outra coisa senão ser vencido; porque tal idéia lhe acudira por si mesma com frequência ao espírito. Depois, como conhecia Eugénie e o seu temperamento independente e altivo, retomava de vez em quando uma atitude completamente defensiva, dizendo que tal
união era impossível, embora intimamente se deixasse lisonjear pela sua eventualidade e cedesse a um mau pensamento, que, no dizer de todos os moralistas, preocupa incessantemente o homem mais probo e puro e vela no fundo da sua alma como Satanás vela atrás da cruz. O chá, o jogo e a conversa, interessante como se vê, uma vez que se discutiam tão graves interesses, duraram até  à uma hora da manhã.
            Entretanto, a Sra Danglars, recebida pelo criado de quarto de Lucien, esperava, velada e palpitante, na salinha verde, entre dois açafates de flores que ela própria mandara de manhã e que Debray, deve-se dizê-lo, dispusera, arranjara e cortara pessoalmente com um cuidado que fez perdoar a sua ausência à pobre mulher.
            Às onze horas e quarenta minutos a Sra Danglars, farta de esperar inutilmente, voltou a meter-se num fiacre e regressou para casa. As mulheres de certa classe têm isso em comum com as costureirinhas galantes: não recolhem habitualmente depois da meia-noite. A baronesa entrou no palácio com tanta precaução como Eugénie tomara para sair e subiu ligeiramente, com o coração apertado, a escada que levava aos seus aposentos, contíguos, como se sabe, aos de Eugénie.
            Temia tanto provocar qualquer comentário e acreditava tão firmemente - pobre mulher respeitável, pelo menos nesse ponto - na inocência da filha e na sua fidelidade ao lar paterno!...
            Chegada aos seus aposentos, escutou à porta de Eugénie e depois, não ouvindo nenhum ruído, tentou entrar; mas os fechos estavam corridos. A Sra Danglars julgou que Eugénie, cansada das terríveis emoções da noite, se metera na cama e dormia. No entanto, chamou a criada de quarto e interrogou-a.
            - Mademoiselle Eugénie - respondeu a criada - regressou aos seus aposentos com Mademoiselle de Armilly, tomaram chá juntas e depois mandaram-me embora dizendo que não precisavam mais de mim.
            Desde então a criada de quarto estivera na copa e, como toda a gente, julgava as duas moças nos aposentos de Eugénie.
            A Sra Danglars deitou-se sem a sombra de uma suspeita; mas, tranquila a respeito das pessoas, o seu espírito deteve-se nos acontecimentos. À medida que as idéias se lhe esclareciam na cabeça, as
proporções da cena do contrato aumentavam: já se não tratava de um escândalo, mas sim de uma indecência, nem de uma vergonha, mas sim de uma ignomínia.
            Mal-grado seu, a baronesa lembrou-se então de que não tivera compaixão da pobre Mercedes, ferida recentemente, no marido e no filho, por uma desgraça também grande.
            - Eugénie - disse para consigo - está perdida e nós também. O caso, tal como vai ser comentado, cobre-nos de opróbrio, porque numa sociedade como a nossa certos ridículos são chagas vivas, sangrentas, incuráveis. Ainda bem que Deus dotou Eugénie daquele temperamento estranho que tantas vezes me tem
assustado!
            E o seu olhar reconhecido ergueu-se ao céu, cuja misteriosa providência dispõe tudo antecipadamente, conforme os acontecimentos se devem suceder, e de um defeito, de um vício mesmo, faz às vezes uma virtude.
            Depois o seu pensamento transpôs o espaço, como fazem, abrindo as asas, as aves dos abismos, e deteve-se em Cavalcanti.
            - O tal Andrea era um miserável, um ladrão, um assassino; e no entanto possuía maneiras que indicavam uma semieducação, senão uma educação completa. Ainda por cima, apresentou-se na sociedade aparentando possuir grande fortuna e com o apoio de nomes respeitáveis...
            Como ver claro naquele dédalo? A quem se dirigir para sair daquela cruel situação?
            Debray, para quem correra ao primeiro impulso da mulher que procura auxílio no homem que ama e que por vezes a perde, Debray só poderia dar-lhe um conselho. Era a alguém mais poderoso que devia recorrer. A baronesa pensou então no Sr. de Villefort.
            Fora o Sr. de Villefort que decidira prender Cavalcanti; fora o Sr. de Villefort que, sem compaixão, levara a desventura ao seio da sua família como se fosse uma família estranha. Mas não; pensando melhor, o procurador régio não era um homem sem compaixão, era um magistrado escravo do seu dever, um amigo leal e firme que brutalmente, mas com mão segura, escalpelizara a corrupção. Não era um carrasco, era um
cirurgião, e um cirurgião que quisera isolar aos olhos do mundo a honra dos Danglars da ignomínia daquele rapaz perdido que tinham apresentado à sociedade como seu futuro genro.
            Uma vez que o Sr. de Villefort, amigo da família Danglars, procedia assim, já não havia motivo para supor que o procurador régio soubera de alguma coisa antecipadamente e se prestara a qualquer manejo de Andrea.
            Pensando bem, o comportamento de Villefort apresentava-se ainda à baronesa sob um aspecto mutuamente vantajoso. Mas a inflexibilidade do procurador régio deveria ficar por aí.  No dia seguinte o procuraria e conseguiria, senão que faltasse aos seus deveres de magistrado, pelo menos que lhe
concedesse toda a latitude da indulgência.
            A baronesa invocaria o passado, rejuvenesceria as suas recordações e suplicaria em nome de um tempo culpado, mas feliz. O Sr. de Villefort abafaria o caso ou pelo menos deixaria (e para o conseguir só tinha de desviar os olhos para outro lado), ou pelo menos deixaria fugir Cavalcanti e só procederia judicialmente contra esse simulacro de crime chamado contumácia. 
            Só então adormeceu mais tranquila.
            No dia seguinte, às nove horas, levantou-se e, sem tocar a chamar a criada de quarto, sem dar sinal de existência a quem quer que fosse, arranjou-se e, vestida com a mesma simplicidade da véspera, desceu a escada, saiu do palácio, foi a pé até  à Rua da Provença, meteu-se num fiacre e fez-se conduzir a casa do Sr. de Villefort.
            Havia um mês que aquela casa maldita apresentava o aspecto lúgubre de um lazareto onde a peste se tivesse declarado.  Parte dos aposentos estavam fechados interior e exteriormente. As persianas corridas só se abriam um instante para renovar o ar. Nessas ocasiões, via-se então aparecer à janela o rosto assustada de um lacaio. Depois a janela fechava-se como a laje de um túmulo cai sobre um sepulcro e os vizinhos cochichavam: “Iremos ver hoje sair novamente um caixão da casa do Sr. Procurador régio?"
            A Sra Danglars sentiu um arrepio perante o aspecto daquela casa desolada. Apeou-se do fiacre e, com os joelhos pouco firmes, aproximou-se da porta fechada e tocou.
            Só ao terceiro toque de campainha, cujo som lúgubre parecia participar da tristeza geral, apareceu um porteiro que entreabriu a porta apenas o indispens vel para deixar passar as suas palavras.
            Viu uma mulher, uma mulher da alta, uma mulher elegantemente vestida, e no entanto a porta continuou a permanecer quase fechada.
            - Abra! - ordenou a baronesa.
            - Antes de mais nada, quem é a senhora? - perguntou o porteiro.
            - Quem sou?... Mas você conhece-me muito bem?
            - Já não conhecemos ninguém, minha senhora.
            - Mas você enlouqueceu, meu amigo! - exclamou a baronesa.
            - Da parte de quem vem?
            - Oh, isto é de mais!
            - Minha senhora, são ordens, desculpe. O seu nome?
            - Sra Baronesa Danglars. Você já me viu mais de vinte vezes.
            - É possível, minha senhora. Agora, que deseja?
            - Oh, que impertinente! Hei-de queixar-me ao Sr. de Villefort da impertinência dos seus criados.
            - Minha senhora, não se trata de impertinência, mas sim de precaução. Ninguém entra aqui sem licença do Sr. de Avrigny ou sem ter falado com o Sr. Procurador régio.
            - Mas é precisamente com o Sr. Procurador régio que desejo falar.
            - Assunto urgente?
            - Pode bem calcular que sim, visto ainda não ter tomado a subir para a minha carruagem. Mas acabemos com isto: aqui tem o meu cartão, leve-o ao seu amo.
            - A senhora espera que eu volte?
            - Espero. Vá.
            O porteiro fechou a porta e deixou a Sra Danglars na rua.
            Verdade seja que a baronesa não esperou muito tempo. Pouco depois a porta voltou a abrir-se numa largura suficiente para dar passagem à baronesa. Ela entrou e a porta fechou-se novamente.
            Chegada ao pátio, o porteiro, sem perder um instante a porta de vista, puxou de um apito de algibeira e apitou. 
            O criado de quarto do Sr. de Villefort apareceu na escadaria.
            - Minha senhora, tenha a bondade de desculpar esse pobre homem - disse, vindo ao encontro da baronesa -, mas as suas ordens são rigorosas e o Sr. de Villefort encarregou-me de dizer à senhora que ele não podia fazer o contrário do que fez.
            No pátio estava um fornecedor que fora introduzido com as mesmas precauções e cujas mercadorias examinavam.
            A baronesa subiu a escadaria. Sentia-se profundamente impressionada com aquela tristeza, que aumentava por assim dizer o círculo da sua, e, sempre guiada pelo criado de quarto, introduziram-na, sem que o seu guia a perdesse de vista, no gabinete do magistrado.
            Por mais preocupada que a Sra Danglars estivesse com o motivo que ali a levava, a recepção que lhe dispensara toda a criadagem parecera-lhe tão indigna que começou por se queixar.
            Mas Villefort levantou a cabeça, que o sofrimento vergara, e olhou-a com um sorriso tão triste que as queixas morreram-lhe nos lábios.
            - Desculpe aos meus criados um terror de que os não posso culpar. Suspeitos, tornaram-se suspeitosos.
            A Sra Danglars ouvira já falar muitas vezes, na sociedade, do terror a que se referia o magistrado, mas nunca suporia, se não visse com os seus próprios olhos, que semelhante sentimento pudesse chegar àquele ponto.
            - O senhor também tem motivos para se sentir desventurado?
            - Tenho, sim, minha senhora - respondeu o magistrado.
            - Lamenta-me então?
            - Sinceramente, minha senhora.
            - E compreende o que me traz aqui ?
            - Vem falar-me do que lhe aconteceu, não é verdade?
            - Venho, sim, senhor; uma desgraça horrível.
            - Quer dizer, uma contrariedade...
            - Uma contrariedade?! - exclamou a baronesa.
            - Ai de mim, minha senhora - respondeu o procurador régio com a sua calma imperturbável –, habituei-me a só chamar desgraça às coisas irreparáveis!
            - Acha então que as pessoas esquecerão?...
            - Tudo esquece, minha senhora - respondeu Villefort, - O casamento da sua filha acontecerá amanhã, se não acontecer hoje, ou daqui a oito dias, se não acontecer amanhã. E quanto a lamentar o futuro de Mademoiselle Eugénie, não creio que seja essa a sua idéia.
            A Sra Danglars fitou Villefort, estupefata por lhe ver aquela tranquilidade quase zombeteira.
            - Terei vindo procurar um amigo? - perguntou num tom cheio de dolorosa dignidade.
            - Bem sabe que sim, minha senhora - respondeu Villefort, cujas faces se cobriram de um leve rubor ao fazer esta afirmação.
            Com efeito, tal afirmação referia-se a outros acontecimentos e não àqueles que ocupavam naquele momento a baronesa e ele próprio.
            - Nesse caso, seja mais afetuoso, meu caro Villefort - perguntou a baronesa. - Fale-me como amigo e não como magistrado, e quando me sinto profundamente infeliz não me diga que devo estar alegre. 
            Villefort inclinou-se.
            - Quando ouço falar de desventuras, minha senhora, não posso deixar de me lembrar que adquiri há três meses o hábito de pensar nas minhas, e então, mal-grado meu, realiza-se no meu espírito essa egoísta operação do paralelo. É por isso que, comparadas com as minhas desventuras, as suas me parecem
contrariedades. E é por isso também que, comparada com a minha funesta situação, a sua me parece invejável. Mas se isso a contraria, deixemo-lo. Dizia, minha senhora?...
            - Venho pedir-lhe que me diga, meu amigo, em que pé se  encontra o caso desse impostor - respondeu a baronesa.
            - Impostor! - repetiu Villefort. - Decididamente, minha senhora, é pecha sua atenuar certas coisas e exagerar outras. Impostor o Sr. Andrea Cavalcanti, ou antes o Sr. Benedetto! Engana-se, minha senhora, o Sr. Benedetto é realmente um assassino.
            - Senhor, não nego a justeza da sua retificação; mas quanto mais severamente se encarniçar contra esse desgraçado, tanto mais prejudicará a nossa família. Vamos, esqueça-o por um momento; em vez de o perseguir, deixe-o fugir...
            - Chegou demasiado tarde, minha senhora; as ordens já foram dadas.
            - Nesse caso, se o apanharem... Acha que o apanham?
            - Tenho essa esperança.
            - Se o apanharem... ouça, sempre ouvi dizer que as prisões estão transbordando... Pois se o apanharem, deixe-o na prisão.
            O procurador régio fez um gesto negativo.
            - Pelo menos até  a minha filha se casar - acrescentou a baronesa.
            - Impossível, minha senhora. A justiça tem as suas formalidades.
            - Mesmo para mim? - observou a baronesa, meio sorridente, meio séria.
            - Para todos - respondeu Villefort. - E para mim mesmo como para os outros.
            - Ah! - exclamou a baronesa, sem acrescentar em palavras o que o seu pensamento acabava de deixar transparecer nesta exclamação.
            Villefort fitou-a com o olhar com que sondava os pensamentos.
            - Sim, sei o que quer dizer - prosseguiu. - Refere-se a esses boatos terríveis espalhados na sociedade de que todas estas mortes que há três meses me vestem de luto e de que a morte à qual, como que por milagre, acaba de escapar Valentine não são naturais.
            - Não pensava de modo algum nisso - replicou vivamente a Sra Danglars.
            - Pensava, sim, minha senhora, e era justo, pois não podia deixar de pensar e dizer para consigo, baixinho: “Você, que persegue o crime, responde: "Porque se verificam à tua volta crimes que ficam impune?"
            A baronesa empalideceu.
            - Dizia isto para consigo, não é verdade, minha senhora?
            - Sim... confesso.
            – Vou responder-lhe.
            Villefort aproximou a sua poltrona da cadeira da Sra Danglars, apoiou as mãos na mesa e disse, numa intonação mais abafada do que de costume:
            - Há crimes que permanecem impunes porque se não sabe quem são os criminosos e se receia atingir uma cabeça inocente em vez de uma cabeça  culpada. Mas quando esses criminosos forem descobertos - e Villefort, estendeu a mão para um crucifixo colocado defronte da mesa -, quando esses criminosos forem descobertos - repetiu –, pelo Deus vivo, minha senhora, sejam quem forem, morrerão! Agora, depois do juramento que acabo de fazer e que cumprirei, minha senhora, ainda ousa pedir-me compaixão para esse miserável?
            - Tem certeza de que é tão culpado como dizem? - inquiriu a Sra Danglars.
            - Tenho aqui o seu processo. Escute: Benedetto, condenado inicialmente a cinco anos de galés por falsificação, aos dezesseis anos. (O rapaz prometia, como vê...) Depois evadido e em seguida assassino.
            - E quem é esse desgraçado?
            - Oh, isso sabe-se! Um vagabundo, um corso.
            - Ninguém intercedeu por ele?
            - Ninguém. Não se sabe quem são os seus pais.
            - Mas esse homem que veio de Luca?
            - Outro patife como ele; seu cúmplice, talvez.
            A baronesa juntou as mãos.
            - Villefort... - disse com a sua mais meiga e acariciadora intonação.
            - Por Deus, minha senhora-respondeu o procurador régio com uma firmeza não isenta de secura –, por Deus, nunca me peça que tenha compaixão de um culpado!
            "Quem sou eu? A lei. Ora a lei tem porventura olhos para ver a sua tristeza? Ouvidos para escutar a sua meiga voz? memória para aplicar a si própria os seus delicados pensamentos? Não, minha senhora, a lei ordena, e quando a lei ordena, fere.
            "Me dirá que sou um ser vivo e não um código; um homem e não um volume. Olhe para mim, minha senhora, olhe à minha volta: os homens trataram-me como irmão? Amaram-me? Pouparam-me? Consideraram-me? Alguém pediu compaixão para o Sr. de Villefort e houve porventura quem concedesse a esse alguém perdão para o Sr. de Villefort? Não, não, não! Feriram-no, feriram-no sempre!
            "Persiste, mulher, como sereia que é, em me falar com esse olhar encantador e expressivo que me recorda que devo corar. Sim, sem dúvida, corar do que sabe e talvez, talvez de mais outra coisa.
            "Mas enfim, desde que eu próprio falhei, e talvez mais profundamente do que os outros, desde esse tempo tenho sacudido as roupas dos outros em busca da úlcera, e encontrei-a, e direi mais: encontrei-a com prazer, com alegria, esse sinal da fraqueza ou da perversidade humana.
            "Porque cada homem que reconhecia culpado, e cada culpado que feria, parecia-me uma prova viva, uma nova prova de que eu não era uma hedionda exceção.  Infelizmente - sim, infelizmente, infelizmente! - toda a gente é má, minha senhora; provemo-lo e firamos o mau!
            Villefort pronunciou estas últimas palavras com raiva febril, que dava à sua linguagem uma eloquência feroz.
            - Mas - prosseguiu a Sra Danglars, procurando tentar um último esforço - o senhor não diz que esse rapaz é um vagabundo, um orfão abandonado por todos?  
            - Tanto pior, tanto pior, ou antes, tanto melhor. A Providência fê-lo assim para ninguém ter de chorar por ele.
            - Isso é encarniçar-se contra um fraco, senhor.
            - Um fraco que assassina!
            - A sua desonra recairia sobre a minha casa.
            - Não tenho eu a morte na minha!
            - Oh, senhor, da sua parte não há piedade para os outros! - exclamou a baronesa. - Pois bem, sou eu quem lhe diz, também não haverá piedade para si!
            - Seja! - perguntou Villefort, erguendo, num gesto de ameaça, o braço do céu.
            - Adie ao menos a causa desse desventurado, se ele for preso, para o próximo período judicial. Isso nos dará seis meses para que o caso seja esquecido.
            - Não - recusou Villefort. - Ainda tenho cinco dias; a instrução está concluída, e cinco dias é mais tempo do que necessito. Aliás, não compreende, minha senhora, que também necessito esquecer? Quando trabalho, e trabalho dia e noite, quando trabalho há momentos em que me esqueço, e quando me esqueço sou feliz como são os mortos. Mas mesmo .Assim isso é ainda preferível a sofrer.
            - Ele fugiu, senhor. Deixe-o fugir. A inércia é uma clemência fácil.
            - Mas se já lhe disse que era demasiado tarde! O telégrafo funcionou ao romper do dia, e a esta hora...
            - Senhor - disse o criado de quarto, entrando –, um dragão traz este ofício do ministro do Interior.
            Villefort pegou na carta e abriu-a vivamente. A Sra Danglars estremeceu de terror e Villefort de alegria.
            - Preso! - exclamou Villefort. - Prenderam-no em compiêgne. Acabou-se.
            A Sra Danglars levantou-se, fria e pálida.
            - Adeus, senhor.
            - Adeus, minha senhora - respondeu o procurador régio, quase alegre, acompanhando-a até  à porta.
            Depois, regressando à mesa, disse, batendo na carta com as costas da mão direita:
            - Pronto, tinha uma falsificação, três roubos e dois incêndios. Só me faltava um assassínio. Ei-lo! A sessão será bela.


Capítulo C


A aparição


            Como dissera o procurador régio à Sra Danglars, Valentine ainda não estava restabelecida.
            Quebrada pela fadiga, conservava-se de cama e foi no seu quarto e da boca da Sra de Villefort que tomou conhecimento dos acontecimentos que acabamos de contar, isto é, da fuga de Eugénie e da prisão de Andrea Cavalcanti, ou antes de Benedetto, assim como da acusação de assassínio formulada contra ele. 
            Mas Valentine estava tão fraca que tais acontecimentos não produziram nela o efeito que talvez tivessem produzido se se encontrasse no seu estado de saúde habitual.
            Efetivamente, tudo se resumiu a algumas idéias vagas, a algumas formas imprecisas, ainda por cima misturadas com idéias estranhas e fantasmas fugazes que se lhe formavam no cérebro doente ou lhe passavam diante dos olhos, e em breve até tudo isso se desvaneceu para só lhe deixar dedicar todas
as suas energias às sensações pessoais.
            Durante o dia, Valentine mantinha ainda consciência da realidade graças à presença de Noirtier, que se fazia conduzir aos aposentos da neta e lá permanecia, vigiando Valentine com o seu olhar paternal. Depois, quando regressava do palácio da Justiça, era Villefort quem, por sua vez, passava uma hora ou
duas com o pai e a filha.
            Às seis horas, Villefort retirava-se para o seu gabinete; às oito chegava o Sr. de Avrigny, que trazia pessoalmente a poção noturna preparada para a jovem; depois, levavam Noirtier.
            Uma enfermeira escolhida pelo médico substituía todas as pessoas e só se retirava quando, por volta das dez ou onze horas, Valentine adormecia.
            Quando descia, entregava pessoalmente as chaves do quarto de Valentine ao Sr. de Villefort, de forma que dali em diante só se podia entrar no quarto da doente atravessando os aposentos da Sra de Villefort e o quarto do pequeno Edouard.
            Morrel vinha todas as manhãs aos aposentos de Noirtier saber notícias de Valentine. Mas, coisa extraordinária, parecia de dia para dia menos inquieto.
            Em primeiro lugar, apesar de dominada por uma violenta exaltação nervosa, Valentine estava cada vez melhor, depois, não lhe dissera Monte-Cristo, quando correra de cabeça perdida para casa do conde, que se Valentine não morresse dentro de duas horas, estaria salva?
            Ora, Valentine ainda estava viva e já se tinham passado quatro dias.
            A exaltação nervosa a que nos referimos perseguia Valentine até no sono ou, antes, no estado de sonolência que se sucedia à vigília. Era então que, no silêncio da noite e na  semi-obscuridade que deixava reinar a lamparina pousada na chaminé, via passar as sombras que povoam o quarto dos doentes é que estimulam a febre com as suas asas frementes.
            Então parecia-lhe ver aparecer ora a madrasta que a ameaçava, ora Morrel que lhe estendia os braços, ora seres quase estranhos à sua vida habitual, como o conde de Monte-Cristo. Nesses momentos de delírio até  os móveis lhe pareciam mover-se. E isso prolongava-se assim até  às duas ou três horas da manhã, momento em que um sono de chumbo se apoderava da jovem e a conduzia até  ao dia.
            Na noite que se seguiu à manhã em que Valentine soube da fuga de Eugénie e da prisão de Benedetto, e em que, depois de se terem confundido um instante com as sensações da sua própria
existência, esses acontecimentos lhe começavam a sair pouco a pouco da idéia; depois da sucessiva retirada de Villefort, de Avrigny e de Noirtier; quando soavam onze horas em Saint-Philippe du Roule e a enfermeira, após colocar ao alcance da mão da doente a beberagem preparada pelo médico e fechar a porta do quarto, escutava palpitante, na copa para onde se dirigira, os comentários dos criados, e guardava na
memória as histórias lúgubres  que havia três meses alimentavam os serões da criadagem do procurador régio - verificou-se uma cena inesperada naquele quarto tão cuidadosamente fechado.
            Havia já cerca de dez minutos que a enfermeira se retirara.
            Valentine, presa havia uma hora da febre que a assaltava todas as noites. Deixava a cabeça, insubmissa à sua vontade, continuar o trabalho ativo, monótono e implacável do cérebro, que se esgota a reproduzir incessantemente os mesmos pensamentos ou a conceber as mesmas imagens.
            Da mecha da lamparina partiam milhares e milhares de irradiações, todas impregnadas de significados estranhos, quando de súbito, à sua chama trêmula, Valentine julgou ver a sua estante, colocada ao lado da chaminé, numa cavidade da parede, abrir-se lentamente sem que os gonzos em que parecia
girar produzissem o mais pequeno ruído.
            Em outro momenot, Valentine teria pegado na campainha e puxado o cordão de seda a pedir socorro; mas já nada a surpreendia, na situação em que se encontrava. Tinha consciência de que todas as visões que a rodeavam eram fruto do seu delírio e esta convicção arreigara-se-lhe depois de verificar que, de manhã,
nunca restava qualquer vestígio dos fantasmas da noite, que desapareciam ao amanhecer.
            Atrás da porta apareceu uma figura humana.
            Devido à febre, Valentine estava demasiado familiarizada com semelhantes aparições para se assustar; arregalou apenas os olhos, esperando reconhecer Morrel. A figura continuou a aproximar-se da cama e depois parou e pareceu escutar com profunda atenção.
            Nesse momento, um reflexo da lamparina iluminou o rosto do visitante nocturno.
            - Não é ele!... - murmurou a jovem.
            E esperou, convencida de que sonhava, que aquele homem, como acontece nos sonhos, desaparecesse ou se transformasse em qualquer outra pessoa.
            Entretanto, apalpou o pulso e, sentindo-o bater violentamente, lembrou-se de que o melhor meio de fazer desaparecer aquelas visões importunas era beber: a frescura da bebida, preparada de resto para acalmar as agitações de que Valentine se queixara ao médico, contribuía, fazendo baixar a febre, para
renovar as sensações do cérebro. Depois de beber, sofria menos durante algum tempo.
            Valentine estende pois a mão, a fim de pegar no copo do pires de cristal onde se encontrava. Mas no momento em que estendia fora da cama o braço trêmulo, a aparição deu novamente, com mais rapidez do que nunca, dois passos para a cama e chegou tão perto da jovem que esta ouviu-lhe a respiração e julgou
sentir-lhe a pressão da mão.
            Desta vez a ilusão, ou antes a realidade, ultrapassava tudo o que Valentine experimentara até  ali; começou a considerar-se bem acordada e viva; teve consciência de se encontrar de posse de toda a sua razão e estremeceu.
            A pressão que Valentine sentira destinava-se a deter-lhe o braço. Valentine retirou-o lentamente para si.
            Então a figura, da qual não conseguia despregar os olhos, e que, de resto, parecia mais protetora do que ameaçadora, essa figura pegou no copo,  aproximou-se da lamparina e observou a beberagem, como se quisesse apreciar-lhe a transparência e a limpidez.
            Mas esta primeira prova não bastou.
            O homem, ou antes o fantasma - porque andava tão suavemente que o tapete abafava o ruído dos seus passos -, tirou do copo uma colher da beberagem e engoliu-a. Valentine observava o que se passava diante dos seus olhos com profundo espanto.         
            Estava convencidíssima de que tudo aquilo não tardaria a desaparecer para dar lugar a outro quadro; mas o homem, em vez de se sumir como uma sombra, voltou a aproximar-se, estendeu o copo a Valentine e disse-lhe numa voz cheia de emoção:
            - Agora, beba!...
            Valentine estremeceu.
            Era a primeira vez que uma das suas visões lhe falava naquele timbre vibrante.
            Abriu a boca para gritar.
            O homem pôs-lhe um dedo no lábios.
            - O Sr. Conde de Monte-Cristo!... - murmurou ela.
            Pelo terror que transpareceu dos olhos da jovem, pela tremura das suas mãos e pelo gesto rápido que esboçou para se esconder debaixo dos lençóis, podia-se reconhecer a última luta da dúvida contra a convicção, de fato, a presença de Monte-Cristo no seu quarto a semelhante hora e a sua entrada misteriosa, fantástica, inexplicável, por uma parede, pareciam coisas impossíveis à razão abalada de Valentine.
            - Não chame, não se assuste - disse o conde –, nem tenha sequer no fundo do coração a réstia de uma desconfiança ou a sombra de uma inquietação. O homem que vê diante de si (porque desta vez tem razão, Valentine, e não se trata de uma ilusão), o homem que vê diante de si é o mais terno pai e o mais respeitoso amigo que possa imaginar.
            Valentine não soube que responder. Tinha tanto medo daquela voz que lhe revelava a presença real daquele que falava que temia associar-lhe a sua. Mas o seu olhar aterrado queria dizer. “Se as suas intenções são puras, porque está aqui?"
            Com a sua maravilhosa sagacidade, o conde compreendeu tudo o que se passava no coração da jovem.
            - Ouça-me - disse -, ou antes, olhe-me: vê os meus olhos avermelhados e a minho rosto ainda mais pálida do que de costume? É porque há quatro noites que não durmo um só instante; há quatro noites que velo por si, a protejo, a conservo ao nosso amigo Maximilien.
            Uma onda de sangue subiu rapidamente às faces da doente; porque o nome que o conde acabava de pronunciar punha termo ao resto de desconfiança que ele lhe inspirara.
            - Maximilien!... - repetiu Valentine, de tal forma lhe era agradável pronunciar esse nome. - Maximilien!... Quer dizer que ele lhe contou tudo?
            - Tudo, Disse-me que a sua vida era a dele e prometi-lhe que Valentine viveria.
            - O senhor prometeu-lhe que eu viveria?
            - Prometi. 
            - De fato, senhor, acaba de falar de vigilância e proteção. Isso quer dizer que é médico?
            - Quer, e o melhor que o Céu lhe poderia enviar neste momento, acredite.
            - Diz que tem velado por mim? - perguntou Valentine, inquieta. - Onde? Nunca o vi...
            O conde estendeu a mão na direção da estante.
            - Tenho estado escondido atrás daquela porta - respondeu -, porta que dá para a casa contígua, que aluguei.
            Num assomo de orgulho pudico, Valentine desviou os olhos e disse com soberano desprezo:
            - O que fez, senhor, é de uma demência sem exemplo e essa proteção que me concedeu assemelha-se muito a um insulto.
            - Valentine, durante a minha longa vigília apenas vi as pessoas que a visitavam, os alimentos que lhe preparavam, as bebidas que lhe serviam. Depois, quando essas bebidas me pareciam perigosas, entrava como entrei agora, despejava-lhe o copo e substituía o veneno por uma beberagem benéfica que, em
vez da morte que lhe preparavam, fazia circular a vida nas suas veias.
            - O veneno! A morte! - exclamou Valentine, julgando-se de novo sob o império de alguma febril alucinação. - Que quer dizer com isso, senhor?
            - Cale-se, minha filha! - recomendou Monte-Cristo, levando o dedo aos lábios. - Disse o veneno; sim, disse a morte, e repito, a morte. Mas beba primeiro isto - e o conde tirou da algibeira um frasco que continha um licor vermelho de que deitou algumas gotas no copo. - Depois de beber, não tome mais nada esta noite.
            Valentine estendeu a mão; mas assim que tocou no copo, retirou-a com terror.
            Monte-Cristo pegou no copo, bebeu metade do líquido e apresentou-o a Valentine, que bebeu, sorrindo, o resto do licor que continha.
            - Sim, reconheço o gosto das minhas beberagens noturnas, da água que restitua um pouco de frescura ao meu peito e um pouco de calma ao meu cérebro. Obrigada, senhor, obrigada.
            - Aqui tem como viveu quatro noites, Valentine - disse o conde. - Mas eu, como vivi? Oh, que horas cruéis me fez passar! Oh, que horríveis torturas me infligiu quando via deitar-lhe no copo o veneno mortal, quando temia que tivesse tempo de bebe-lo antes de eu ter tempo de despeja-lo na chaminé!
            - Diz - prosseguiu Valentine no cúmulo do terror - que sofreu mil torturas ao ver deitar no meu copo o veneno mortal? Mas se viu deitarem-me o veneno no copo, também viu a pessoa que o deitava?
            - Também.
            Valentine sentou-se na cama e, aconchegando ao peito, mais pálida do que a neve, a cambraia bordada, ainda úmida do suor frio do delírio, ao qual começava a juntar-se o suor ainda mais gelado do terror, repetiu.
            - Viu-a?
            - Vi - respondeu pela segunda vez o conde.
            - O que me diz é horrível, senhor! O que pretende me fazer crer é algo infernal! O quê, na casa do meu pai, no meu quarto, no meu leito de dor continuam a assassinar-me?! Oh, retire-se, senhor! Isso é tentar a minha consciência, blasfemar da bondade divina, é impossível, não pode ser! 
            - É porventura a primeira pessoa que essa mão fere, Valentine? Não viu cair à sua volta o Sr. de Saint-Méran, a Sra de Saint-Méran, e Barrois? Não teria visto cair o Sr. Noirtier, se o tratamento que segue há cerca de três anos o não protegesse, combatendo o veneno através da habituação ao veneno?
            - Oh, meu Deus, será por isso que há perto de um mês o avozinho exige que compartilhe todas as suas bebidas?! - exclamou Valentine.
            - E essas bebidas têm um gosto amargo como o da casca de laranja meio seca, não é verdade? - perguntou Monte-Cristo.
            - Têm, sim, meu Deus, têm!
            - Isso explica-me tudo - declarou Monte-Cristo. - Ele também sabe que se envenena aqui e talvez saiba quem envenena. Assim, preservou a neta bem amada contra a substância mortal, e a substância mortal perdeu grande parte da sua eficácia devido a esse princípio de habituação! Aí está porque se encontra ainda
viva, o que eu não compreendia, depois de ser envenenada há quatro dias com um veneno que habitualmente não perdoa.
            - Mas quem é o assassino?
            - Uma pergunta: nunca viu entrar ninguém, de noite, no seu quarto?
            - Vi. Muitas vezes julguei ver passar como que umas sombras... essas sombras aproximarem-se, afastarem-se e desapareceram; mas tomava-as por visões da minha febre e ainda há pouco, quando o senhor mesmo entrou... Bom, julguei durante muito tempo que delirava ou sonhava.
            - Portanto, não conhece a pessoa que lhe quer tirar a vida?
            - Não - respondeu Valentine. - Porque havia alguém de me desejar a morte?
            - Vai conhecê-la, então - respondeu Monte-Cristo, apurando o ouvido.
            - Como assim? - perguntou Valentine, olhando com terror à sua volta.
            - Porque esta noite a Valentine já não tem febre nem delira; porque esta noite está bem acordada, porque acaba de dar meia-noite, a hora dos assassinos.
            - Meu Deus, meu Deus!... - murmurou Valentine, enxugando com a mão o suor que lhe perlava a testa.
            Com efeito, soava lenta e tristemente a meia-noite e diria que cada pancada do martelo de bronze batia no coração da jovem.
            - Valentine - continuou o conde –, chame todas as suas forças em seu socorro, comprima o coração no peito, contenha a voz na garganta, finja dormir... e verá, verá!
            Valentine pegou na mão do conde.
            - Parece-me ouvir um ruído - disse. - Retire-se!
            - Adeus, ou antes até  breve - respondeu o conde.
            Depois, com um sorriso tão triste e tão paternal que o coração da jovem se sentiu cheio de reconhecimento, alcançou em pontas de pés a porta da estante.
            Mas, virando-se antes de a fechar atrás de si, recomendou:
            - Nem um gesto, nem uma palavra. É necessário que a julguem dormindo, pois de contrário talvez a matassem antes de eu ter tempo de acorrer.
            E depois desta pavorosa recomendação, o conde desapareceu atrás da porta, que se fechou silenciosamente.  

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