sexta-feira, 6 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte II

SEGUNDA PARTE
- A Peneira e a Areia -

PASSARAM uma longa tarde a ler, enquanto a chuva fria de Novembro caía sobre a casa
tranqüila.
Estavam instalados no corredor. A sala estava vazia e cinzenta, estava morta sem as suas
paredes iluminadas e Mildred lançava-lhes constantemente mornas olhadelas, enquanto Montag,
andando de um lado para o outro, lia e relia dez vezes a mesma página, em voz alta: Não se pode di^er
precisamente o momento em que nasce a amizade. Se se enche de água, gota a gota, um barco, chega a última que o fazç_
afundar; assim, quando os testemunhos de afeição se sucedem, chega um que submerge o coração.
Montag sentou-se e pôs-se a ouvir a chuva.
— Teria sido assim com a rapariga aqui do lado? Tentei tanto compreender!
— Ela morreu. Ao menos, falemos dos vivos, peço-te. Montag, sem se voltar para a sua
mulher, que tremia.
i entrou na cozinha ao fundo do corredor e ficou um longo momento a observar a chuva que
crepitava nas janelas. Espera tornar a encontrar a calma, para voltar à luz cinzenta do corredor. Abriu
outro livro.
Este assunto favorito. Eu mesmo. Franzindo a testa, olhou a parede. Este assunto favorito. Eu mesmo.
— Isso compreendo eu — disse Mildred.
— Mas o assunto favorito de Clarisse não era ela mesma. Eram os outros... e eu. Era a primeira
pessoa, não sei há quanto tempo para cá, que me agradava verdadeiramente. A primeira de quem eu
conservo a recordação e que me olhava como se eu representasse alguma coisa para ela.
Olhou os volumes que tinha na mão.
— Estes homens morreram há muito tempo, mas sei que, de uma maneira ou de outra, as suas
palavras se dirigiam a Clarisse.
Lá fora, na porta de entrada, à chuva, houve um ligeiro arranhar.
Montag estacou. Viu Mildred encolher-se contra a parede e abafar um grito.
— Está alguém... à porta. Porque não nos avisou a voz?
— Desliguei-a.
Lá fora, houve um resfolgar lento e inquiridor, uma onda de vapor eléctrico. Mildred começou
a rir.
— É apenas um cão. Queres que o vá enxotar?
— Fica onde estás!
Silêncio. A chuva fria que cai. E os eflúvios azulados da electricidade, que passam sob a porta
fechada.
— Voltemos ao trabalho — disse Montag calmamente. Mildred deu um pontapé num livro.
— Os livros não são pessoas. Tu lês e eu olho à minha volta, mas não vejo ninguém!
Ele olhou a sala cinzenta e sem vida, como as águas de um oceano que um sol electrónico
subitamente ligado tivesse o poder de animar.
— Compreendes — disse Mildred. — A minha "família", os meus amigos. Dizem-me coisas; eu
rio, eles riem! E todas essas cores!
— Sim, já sei.
— Além disso, se o capitão Beatty soubesse de todos estes livros...—Ela reflectiu um instante.
Pouco a pouco a surpresa, depois o medo, pintaram-se no seu rosto. — Ele poderia vir aqui, queimar a
casa. e a "família". É terrível! Pensa em todo o dinheiro que aqui está metido. Porque devo eu ler? Sim,
porquê?
— Porquê? — disse Montag. — Vi a serpente mais repugnante do mundo, uma noite destas.
Estava morta, mas vivia. Via sem ver. Queres ver essa serpente? Está no hospital, onde eles fazem o
relatório de todas as sujidades que a serpente tirou de ti! Queres ir examinar o teu dossier? Estás talvez
classificada em Montag, ou em Terror, ou em Guerra. Queres ir ver essa casa que ardeu a noite
passada? E procurar nas cinzas para encontrar os ossos dessa mulher que lançou fogo à sua própria
casa? E Clarisse McClellan, onde devemos ir procurá-la? A Morgue! Ouve!
Os bombardeiros passavam e tornavam a passar no céu sobre a casa, rugindo, murmurando,
silvando, como um imenso espantalho invisível, descrevendo grandes círculos no nada.
— Senhor! — disse Montag. — Sempre estas infernais máquinas no céu! Que fazem esses
danados aparelhos, para não nos deixarem um segundo de paz! Porque se recusa toda a gente a falar
neles? Nós provocámos e ganhámos duas guerras atômicas, depois de 1960! Divertir— se-ão todos de tal
maneira no nosso país que esqueceram o resto do mundo? Será porque nós somos muito ricos e os
outros muito pobres, que somos de tal maneira indiferentes? Ouvi boatos que circulam; o mundo
morre de fome, mas nós estamos cheios a rebentar. Será verdade que o mundo inteiro labuta e nós nos
divertimos à custa dele? Será por essa razão que todos nos odeiam tanto? Ouvi falar também de ódio,
de vez em quando, num ano ou noutro. Sabes porquê? Eu não, em todo o caso. Talvez os livros nos
possam fazer sair um pouco deste buraco negro, nos impedir de tornar a fazer as mesmas loucuras!
Esses pobres cretinos que falam na tua sala, nunca dizem uma palavra. Bom Deus, Millie, então não
vês? 'Uma hora por dia, duas horas, com estes livros e talvez...
O telefone tocou. Mildred atendeu.
— Ann! — começou a rir. — Sim, o Palhaço Branco representa esta noite!
Montag dirigiu-se para a cozinha e atirou o livro ao chão.
— Montag — disse —, és completamente idiota. Que fazer agora? Deitar fora os livros e
recomeçar de novo?
Abriu o livro para continuar a leitura, ao som do riso de Mildred. "Pobre Millie", pensou.
"Pobre Montag, tu também não percebes nada. Mas onde encontrar um auxílio? Onde encontrar um
guia, tão tarde? Espera." Fechou os olhos. "Mas, claro, com certeza." De novo se surpreendeu a sonhar
com o parque verdejante de um ano antes. Esse pensamento tinha-o perseguido freqüentemente nos
últimos tempos, mas agora lembrava-se claramente desse dia no jardim do parque público e no gesto
rápido desse velho, vestido de negro, para esconder qualquer coisa sob o casaco... O velho tinha dado
um salto, como prestes a fugir, correndo. E Montag tinha gritado: "Espere aí!" — Não fiz mal! —
dissera o velho, tremendo.
— Ninguém o acusou.
Tinham-se sentado na doce luz verde, sem dizer uma palavra durante um momento; depois,
Montag tinha começado a falar do tempo e o velho tinha-lhe respondido com uma voz sem timbre.
Fora um curioso encontro. O velho tinha confessado que era professor de Literatura, reformado, que
tinha sido posto na rua quarenta anos antes, na altura do encerramento, por falta de alunos, da última
escola de artes liberais. Chamava-se Faber e quando, enfim, o medo que lhe inspirara Montag se
dissipou, começou a falar com uma voz cadenciada, olhando o céu, as árvores, a verdura do parque e,
ao fim de uma hora, tinha recitado certas frases a Montag e Montag percebera que se tratava de um
poema em prosa. Depois, o velho tinha-se entusiasmado pouco a pouco e tinha recitado outra coisa
que era também um poema. Faber, com uma mão na algibeira esquerda do casaco, tinha falado com
uma voz doce e Montag sabia que, com um gesto, teria feito sair um livro de poemas da algibeira do
seu interlocutor. Mas não se tinha mexido. As mãos continuavam pousadas nos joelhos, pesadas,
inúteis.
— Não falo das coisas, senhor — dissera Faber—, falo do sentido das coisas. Estou aqui,
sentado, e sei que estou vivo.
E nada mais se tinha passado, de facto. Uma hora de monólogo, um poema, uma breve
explicação e depois, sem mesmo notar que Montag era bombeiro, Faber, com os dedos a tremer um
pouco, tinha escrito a sua morada num pedaço de papel.
— Para o seu dossier — dissera. — Para o caso em que decida desencadear a sua cólera contra
mim.
— Mas eu não estou encolerizado — disse Montag, surpreendido.
Mildred ria estridentemente, no corredor.
Montag foi até ao armário do seu quarto, folheou o seu classificador e parou no parágrafo
"INVESTIGAÇÕES FUTURAS".
O nome de Faber estava aí inscrito. Não o tinha denunciado e também não o tinha feito
desaparecer. Marcou o número num telefone auxiliar. O telefone do outro lado da linha chamou o
nome de Faber uma dúzia de vezes, depois o professor respondeu com uma voz abafada. Mon-tag
declarou a sua identidade e um silêncio prolongado lhe respondeu.
— Faz favor de dizer, sr. Montag.
— Prof. Faber, tenho uma pergunta bastante bizarra a fazer-lhe. Quantos exemplares da Bíblia
restam no nosso país?
— Não sei do que está a falar!
— Quero saber se não haverá um único exemplar que seja.
— É uma armadilha! Não posso responder a qualquer pessoa que me telefona.
— E quantos exemplares de Shakespeare e de Platão?
— Nenhum. O senhor sabe isso tão bem como eu. Nenhum!
Faber desligou.
Montag empurrou o telefone. Nenhum. Já o sabia, bem entendido, segundo as listas do quartel.
Mas, no entanto, tinha querido ouvi-lo dizer pela voz de Faber.
No corredor, Mildred tinha o rosto brilhante de excitação.
— Enfim, vão chegar as senhoras! Montag mostrou-lhe um livro:
— É o Antigo e o Novo Testamento, e...
— Ah! Vais recomeçar!
— É talvez o último exemplar que existe nesta parte do mundo.
— Vais devolvê-lo esta noite, não? O capitão Beatty sabe que tu o tens?
— Não creio que ele saiba que livro roubei eu. Mas como escolher um substituto? Dar-lhe-ei
Jefferson? Thoreau? Qual o que tem menos valor? Se escolho um e, por acaso, Beatty sabe qual roubei,
vai pensar que eu tenho uma biblioteca inteira.
Mildred crispou os lábios.
— Vê lá o que fazes! Estás a meter-nos num bom sarilho! Que é que te interessa mais, eu ou a
Bíblia?
Ela começou a chorar, sentada como uma boneca de cera que se derrete com o próprio calor. A
Montag, parecia-lhe ouvir a voz de Beatty.
— Senta-te, Montag. Olha bem. Delicadamente como as pétalas de uma flor. Deita fogo à
primeira página, depois à segunda. Cada uma se transforma numa borboleta negra. Lindo, hem? Acende
a terceira página na segunda e assim sucessivamente, umas atrás das outras, capítulo por capítulo, todas
essas noções absurdas que as palavras evocam, todas as falsas promessas, todas essas idéias em segunda
mão e essas filosofias antiquadas.
Beatty lá estava, transpirando ligeiramente, o chão juncado de fragmentos negros que tinham
sucumbido numa única tempestade.
Mildred deixou de soluçar tão subitamente como tinha começado. Montag já não lhe prestava
atenção.
— Há apenas uma coisa a fazer — disse ele. — Antes de restituir este livro a Beatty, hoje à
noite, é necessário que mande fazer uma cópia.
— Mas não estarás aqui para ver o Palhaço Branco... quando as senhoras vierem? — gritou
Mildred.
Montag parou à porta, de costas viradas.
— Millie? Um silêncio.
— Que é?
— Milhe, esse Palhaço Branco gosta de ti? Não houve resposta.
— Millie, será que... —ele humedeceu os lábios.— Será que a tua "família" te ama, te ama
'., te ama de todo o seu coração, de toda a sua alma?
Sentiu que ela lhe olhava a nuca, de olhos franzidos.
— Porque me perguntas semelhante asneira?
Por um pouco, Montag teria chorado, mas os seus olhos conservaram-se secos, a boca fechada.
— Se vires esse cão lá fora — disse Mildred — dá-lhe um pontapé por minha conta. , Ele
hesitou, escutou à porta. Depois abriu-a e saiu.
A chuva tinha parado e o Sol brilhava num céu claro. A rua, o jardim, os degraus, estavam
desertos. Deu um longo suspiro.
E bateu com a porta.
Estava no "metro".
O comboio passou velozmente, numa série de reflexos, amarelo e negro, amarelo e negro,
depois desapareceu na escuridão.
Há muito tempo, quando era criança, estava sentado numa duna à beira-mar, num tórrido e
azulado dia de Verão. Tentava encher uma peneira com areia porque um vago primo, um garoto cruel,
lhe tinha dito: "Se conseguires encher essa peneira, dou-te dois tostões!" E quanto mais depressa
deitava a areia, mais depressa a peneira se esvaziava, com um ruído sedoso. Os seus dedos cansavam-se,
a areia queimava e a peneira estava vazia.
Nesse dia de Julho, canicular e silencioso, sentiu as lágrimas correrem-lhe pelo rosto.
E agora, enquanto o comboio a ar comprimido o transportava, mergulhando nas imensas
cavernas vazias da cidade, lembrava-se da terrível lógica dessa peneira e, baixando os olhos, reparou que
conservava a Bíblia aberta, na mão. Havia muita gente no compartimento, mas ele apertou o livro entre
os dedos e teve a absurda idéia de que, se lesse muito depressa, de uma ponta a outra, talvez um pouco
de areia ficasse no fundo da peneira.
Mas lia, e as palavras não ficavam e ele pensava: "Dentro de poucas horas, estarei perante
Beatty e estender—lhe-ei o livro. Nenhuma frase me deve escapar. Cada linha deve ficar inscrita na
minha memória. É preciso que o consiga, sozinho." As suas mãos crisparam-se no livro.
Sons explodiram:
— Dentífrico Denham.
— Basta — murmurou Montag. — Olhai os lírios do campo...
— Dentífrico Denham.
— Eles não trabalham...
— Dentífrico...
— Olhai os lírios do campo. Basta! Basta!
— Denham!...
Abriu o livro com um gesto brusco e pôs-se a folheá-lo. Tacteava as páginas como se estivesse
cego, seguindo com o dedo o contorno de cada letra, o olhar fixo.
— Denham. Soletrem: D-E-N...
Um zumbido de areia ardente através de uma peneira vazia.
—'Todos exigem Denham!
— Olhai os lírios, os lírios, os lírios...
— Denham defende o esmalte dos dentes...
— Basta! Basta! Basta! — Era um esconjuro, um grito tão terrível que Montag se encontrou de
pé, alvo dos olhares de todos os passageiros escandalizados, que se afastavam desse homem com rosto
de demente, inflamado, boca seca, vociferante, um livro palpitante em punho. Pessoas que, um instante
antes, estavam sentadas, batendo com os pés ao ritmo do slogan "Dentífrico Denham, Denham": umdois,
um-dois-três, um-dois, um-dois-três. Essas pessoas cujos lábios se agitavam ligeiramente
repetindo a palavra "Dentífrico, Dentífrico, Dentífrico". A rádio do comboio, em represália, vomitava
sobre Montag uma esmagadora cacofonia de zinco, cobre, prata, cromo, bronze.
Os viajantes eram esmagados por essa avalancha.
— Os lírios do campo.
— Denham.
— Os lírios, digo eu!
As pessoas abriram uns olhos assustados.
— É melhor chamar a polícia.
— Este tipo está maluco...
— Knoll View!
O comboio abrandou, com um longo silvo.
— Knoll View! — um grito.
— Denham — um murmúrio. Montag balbuciava: — Os lírios...
A porta do comboio abriu-se com um rugido. Montag ficou de pé, imóvel. A porta deu um
suspiro e começou a fechar-se. Só então Montag saltou por entre os passageiros e mergulhou
precisamente a tempo de sair. Internou-se pelos túneis e subiu a quatro e quatro os degraus brancos,
não ligando importância à escada automática. Queria sentir correr os seus pés, os seus braços
balançarem, os seus pulmões contraírem-se e dilatarem-se, a sua garganta entrar em contacto com o ar
vivo. Uma voz diminuía atrás de si: "Denham, Denham, Denham." O comboio silvou como uma
serpente e depois desapareceu no seu buraco.
-Quem é? - Montag. -Que deseja?
— Deixe-me entrar.
— Não fiz mal algum.
— Estou só, valha-o Deus.
— Jura-o?
— Juro-o.
A porta abriu-se lentamente. Faber espreitou furtivamente. Parecia muito velho à luz do dia,
muito frágil e muito assustado. Dir-se-ia que não saía de casa há muitos anos. Ele e as paredes da casa,
caiadas de branco, assemelhavam-se espantosamente.
Havia branco na carne dos seus lábios e das suas faces; os cabelos eram brancos, e o azul vago
dos olhos estava descolorido. Depois, o seu olhar pousou no livro que Montag conservava sob o braço
e, então, pareceu menos velho e menos frágil.
Lentamente, os seus receios abandonaram-no.
— Desculpe — disse. — Vemo-nos obrigados a ser prudentes.
Olhava insistentemente o livro de Montag.
— Então, é verdade — murmurou.
Montag atravessou o umbral. A porta fechou-se.
— Sente-se.
Faber recuou, como se temesse o desaparecimento do livro, se deixasse de o olhar. Atrás dele
estava aberta uma porta dando para um aposento onde, sobre uma mesa, se viam espalhados diversos
utensílios de aço.
Montag apenas teve um momento para os ver. Faber, seguindo o olhar de Montag, tinha-se
virado vivamente e fechado a porta. Com uma mão tremula pousada no fecho, voltou-se para Montag,
uma expressão inquieta no rosto. Montag estava sentado, o livro sobre os joelhos.
— Esse livro... Onde o conseguiu...?
— Roubei-o.
Faber, pela primeira vez, ergueu a cabeça e olhou Montag nos olhos.
— O senhor é corajoso — disse.
— Não — respondeu Montag. — A minha mulher está à morte. Uma amiga já morreu. Uma
outra pessoa que teria podido ser uma amiga, foi queimada há menos de vinte e quatro horas. Apenas
resta o senhor para me ajudar. Para me ajudar a ver... A ver...
As mãos de Faber, pousadas nos joelhos, agitavam-se.
— Posso ver?
— Oh, desculpe! — disse Montag, estendendo-lhe o livro.
— Há tanto tempo! Não sou crente... mas há tanto, tanto tempo...!
Faber começou a virar as páginas, parando de vez em quando, para ler.
—É tão belo como a recordação que dele tinha. Senhor, como eles mudaram tudo nas "salas"
dos nossos dias! O Cristo faz agora parte da "família". Pergunto freqüentemente a mim mesmo se
Deus reconheceria o seu próprio filho sob o ridículo trajo que lhe arranjaram? Agora é um autêntico
chupa-chupa de mentol, todo em açúcar pile e sacarina, isso quando não serve de referência a certos
produtos comerciais que os seus adoradores não podem dispensar, segundo parece. — Faber cheirou o
volume. — Sabe que este livro cheira a noz-moscada, ou a qualquer outra especiaria exótica? Eu
gostava destes cheiros, quando era garoto. Meu Deus, corno havia lindos livros, dantes, antes que os
tivéssemos deixado desaparecer! — Faber fechou a Bíblia. — Bem... se me dissesse o motivo da sua
visita?
— Agora ninguém quer ouvir nada. Não posso falar às paredes, elas não param de me zunir aos
ouvidos. Não posso falar à minha mulher, ela escuta as paredes; desejo apenas alguém para ouvir aquilo
que tenho a dizer. E, se falar bastante tempo, talvez as minhas palavras tenham algum sentido. E quero
também que me ensine a compreender o que leio.
Faber examinou o rosto magro de Montag e as suas faces azuladas.
— Como lhe aconteceu tal sacudidela? Quem arrancou a tocha das suas mãos?
— Não sei. Temos tudo o que é preciso para sermos felizes, mas não somos felizes. Falta
qualquer coisa. Olhei em volta e os únicos objectos cuja desaparição me pareceu certa, foram os livros
que tenho queimado durante dez ou doze anos. Pensei então que os livros poderiam ser de grande
auxílio.
— O senhor é um romântico incurável — disse Faber. — Seria engraçado, se não fosse tão
grave. Não é dos livros que tem necessidade, mas daquilo que, dantes, se podia encontrar nos livros. O
que se poderia ainda hoje encontrar nessas "famílias" murais. Os mesmos pormenores minuciosos, os
mesmos conhecimentos, poderiam ser transmitidos pela rádio e nos écrans de televisão, mas não o são.
Não, não são de facto os livros o que procura! Pode encontrá-lo em toda a parte, nos velhos discos, nos
velhos filmes e em casa dos velhos amigos; observe a natureza à sua volta, procure em si mesmo. Os
livros são apenas um meio de recolher, de conservar um conjunto de coisas que tememos esquecer.
Não há nada de mágico neles, absolutamente nada. A magia apenas repousa no que dizem os livros, na
rede dos elementos do universo que eles tecem para nos vestir. Bem entendido, o senhor não pode
sabê-lo; não pode ainda compreender o que eu quero dizer. Mas, intuitivamente, está na verdade, e é o
que importa. Três coisas nos faltam. Primo: sabe porque livros como este têm uma tal importância? Por
causa da sua qualidade. E que significa a palavra "qualidade"? Para mim quer dizer: estrutura. Este livro
tem poros. Podemos pô-lo sob um microscópio. Sob a lente, notará a vida, uma agitação constante.
Quanto mais poros há, mais são os pormenores vivos, sinceramente anotados por centímetro quadrado
sobre uma folha de papel e maior será a verdadeira "literatura". Pelo menos, é a minha definição. Dar
pormenores, pormenores tomados à vida. Os bons escritores tocam freqüentemente a vida com os
dedos. Os medíocres apenas a afloram, de passagem. E os maus violam-na e abandonam-na às moscas.
Compreende agora de onde vem o ódio, o terror aos livros? Eles mostram os poros do rosto da vida.
Aqueles que vivem no conforto, bem sentados, não querem ver outros rostos que não sejam luas de
cera, sem poros, sem cabelos, sem expressão. Vivemos num tempo em que as flores se esforçam por
subsistir por si mesmas, e não pela terra rica e pela chuva benfazeja. Os próprios fogos de artifício, com
as suas alegres explosões, saíram dos produtos químicos da terra. E, no entanto, nós não nos julgamos
capazes de sobreviver a partir das flores e dos fogos de artifício, sem acabar o ciclo do real. Conhece a
lenda de Hércules e de Anteu, esse lutador gigantesco cuja força era incomensurável desde que tivesse
os pés bem enterrados no solo? Mas uma vez afastado da terra, suspenso no vácuo por Hércules,
sucumbiu facilmente. Se não há nada nesta lenda que nós possamos aproveitar, hoje, nesta cidade,
então eu sou louco varrido. Bem! Eis a primeira noção de que tínhamos necessidade. A qualidade, a
rede dos nossos conhecimentos.
— E a segunda?
— O repouso.
— Oh! Mas nós temos muitas horas livres.
— Horas livres, sim. Mas tempo para pensar? Se não guia a cento e cinqüenta por hora, uma
velocidade que apenas permite pensar no perigo, faz qualquer desporto ou fica sentado numa sala onde
é impossível discutir com as quatro paredes do televisor. Porquê? O televisor é real Está presente. Tem
dimensões. Ele diz-lhe o que deve pensar, uiva-lhe na cara. Ele deve ter ra^ão. Parece ter razão. Empurravos
com tal ritmo para as suas conclusões que o espírito não tem tempo de gritar: "É idiota!" — Apesar
de tudo, a "família" são "pessoas".
— Como?
— A minha mulher diz que os livros não têm "realidade".

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