quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 101 ao 110

Capítulo CI

Locusta


            Valentine ficou sozinha. Mais dois relógios, atrasados em relação ao de Saint-Philippe du Roule, deram ainda a meia-noite a distâncias diferentes.
            Depois, excetuando o ruído de algumas carruagens distantes, tudo recaiu no silêncio.
            Então, toda a atenção de Valentine se concentrou no relógio do quarto, cujo pêndulo mareava os segundos.
            Pôs-se a contar esses segundos e notou que eram duas vezes mais lentos do que as pulsações do seu coração. E no entanto ainda duvidava. A inofensiva Valentine não podia conceber que alguém desejasse a sua morte. Porquê? Com que fim ? Que mal fizera que lhe tivesse suscitado um inimigo ?
            Não havia receio de que adormecesse.
            Uma única idéia, uma idéia terrível, ocupava o seu espirito tenso: a de que existia uma pessoa no mundo que tentara assassiná-la e que o ia tentar novamente.
            Desta vez essa pessoa, cansada de ver a ineficácia do veneno, ia, como lhe dissera Monte-Cristo, recorrer ao ferro! Se o conde não tivesse tempo de lhe acudir... Se tivesse chegado o seu último momento... Se nunca mais tornasse a ver Morrel... Perante semelhantes pensamentos, que a cobriam ao mesmo tempo
de uma palidez lívida e de um suor gelado, Valentine estava prestes a pegar no cordão da campainha e a pedir socorro.
            Mas parecia-lhe ver cintilar, através da porta da estante, o olhar do conde, esse olhar que pesava na sua memória e que, quando pensava nele, a dominava tal vergonha que perguntava a si mesma se alguma vez o reconhecimento conseguiria apagar o penoso efeito da indiscreta amizade do conde.
            Vinte minutos, vinte eternidades, passaram-se assim, e depois mais dez. Por fim o relógio rangeu com um segundo de antecedência e acabou por martelar uma vez o timbre sonoro. Nesse preciso momento um ruído de unhas quase imperceptível na madeira da estante avisou Valentine de que o conde velava e lhe recomendava que estivesse atenta. Com efeito, do lado oposto, isto é, para as bandas do quarto de Edouard, pareceu a Valentine ouvir ranger o parqué.  Apurou o ouvido e conteve a respiração até  quase sufocar. O
puxador da porta rangeu e esta girou nos gonzos.
            Valentine, que estava soerguida num cotovelo, só teve tempo de se deixar cair na cama e de esconder os olhos debaixo do braço.
            Depois, trêmula, agitada, com o coração apertado por indizível terror, esperou.
            Alguém se aproximou da cama e aflorou os cortinados. Valentine reuniu todas as suas forças e deixou ouvir e murmúrio regular da respiração que anuncia um sono tranquilo.
            - Valentine! - chamou baixinho uma voz.
            A jovem estremeceu até  ao fundo do coração, mas não respondeu.
            - Valentine! - repetiu a mesma vez.
            Igual silêncio: Valentine prometera não acordar. Depois tudo permaneceu imóvel.
            Valentine ouviu apenas o ruído quase imperceptível de um líquido caindo no copo que acabara de despejar. Então atreveu-se, a coberto do braço estendido, a entreabrir as pálpebras.
            Viu uma mulher de penteador branco que deitava no copo um licor preparado antecipadamente num frasco. Durante esse curto instante, Valentine conteve talvez a respiração ou fez sem dúvida algum movimento porque a mulher deteve-se e inclinou-se sobre a cama para ver melhor se ela dormia realmente: era a Sra de Villefort.
            Ao reconhecer a madrasta, Valentine foi atacada por calafrios intensos, que imprimiram movimento à cama. A Sra de Villefort afastou-se imediatamente ao longo da parede e aí, escondida atrás dos cortinados da cama, muda, atenta, espiou o mais pequeno movimento de Valentine.
            Esta recordou-se das terríveis palavras de Monte-Cristo; parecera-lhe ver brilhar na mão que segurava o frasco uma espécie de punhal comprido e aguçado. Então, apelando para toda a força da sua vontade em seu auxílio, esforçou-se por fechar os olhos. Mas tal função do mais sensível dos nossos sentidos, tal função, habitualmente tão simples, tornava-se naquele momento quase impossível de executar, de tal modo a  viva curiosidade se esforçava por repelir as pálpebras e atrair a verdade.
            Entretanto, tranquilizada pelo silêncio em que recomeçara a ouvir-se o ruído compassado da respiração de Valentine, sinal de que esta dormia, a Sra de Villefort estendeu de novo o braço e, permanecendo meio escondida pelos cortinados apanhados à cabeceira da cama, acabou de deitar no copo de Valentine o conteúdo do frasco.
            Depois retirou-se, sem que o mais pequeno ruído advertisse Valentine de que fora embora.
            Esta vira apenas desaparecer o braço, mais nada; o braço fresco e torneado de uma mulher de vinte e cinco anos, jovem e bela que derramava a morte.
            É impossível exprimir o que Valentine experimentou durante o minuto e meio que a Sra de Villefort permanecera no seu quarto.
            O ruído de unhas na estante arrancou a jovem ao estado de torpor em que mergulhara e que se assemelhava à perda dos sentidos. Levantou a cabeça com esforço.
            A porta, sempre silenciosa, girou segunda vez nos gonzos e o conde de Monte-Cristo reapareceu.
            - Então, ainda duvida? - perguntou o conde.
            - Oh, meu Deus! - murmurou a jovem.
            - Viu?
            - Infelizmente!
            - Reconheceu a pessoa?
            Valentine soltou um gemido.
            - Reconheci, mas não posso acreditar - respondeu.
            - Prefere então morrer e fazer morrer Maximilien!... 
            - Meu Deus, meu Deus! - repeliu a jovem, quase desvairada. - Mas não poderei deixar esta casa, salvar-me?...
            - Valentine, a mão que a persegue a alcançará em qualquer lugar. A poder de ouro comprar  os seus criados e a morte lhe surgirá disfarçada sob todos os aspectos: na água que beber na fonte, no fruto que colher na árvore.
            - Mas não me disse que a precaução do avozinho me imunizara contra o veneno?
            - Contra um veneno e mesmo assim não empregado em dose forte. Mudará de veneno ou aumentará a dose.
            Pegou no copo e molhou os lábios.
            - E isso já foi feito! já não é com brucina que a envenenam, é com um simples narcôtico. Reconheço o gosto do  álcool em que o dissolveram. Se tivesse bebido o que a Sra de Villefort acaba de deitar neste copo, Valentine, estaria perdida.
            - Mas, meu Deus, por que motivo me persegue assim? - gritou a jovem.
            - Como, é assim tão meiga, tão boa, tão pouco crente no mal que ainda não compreendeu, Valentine?
            - Não, e nunca lhe fiz mal - respondeu a jovem.
            - Mas a Valentine é rica! Tem duzentas mil libras de rendimento e impede que essas duzentas mil libras de rendimento sejam do filho dela!
            - Como assim? A minha fortuna não lhe pertence, herdei-a da minha família.
            - Claro, e foi por isso que o Sr. e a Sra de Saint-Méran morreram: para que a Valentine herdasse deles. E aí está por que motivo, no dia em que a fez sua herdeira, o Sr. Noirtier foi também condenado, e por que motivo a Valentine devia morrer por seu turno: para que o seu pai herdasse de si e o seu irmão, tornado filho único, herdasse do seu pai.
            - Edouard! Pobre criança, é por ele que se cometem todos esses crimes?
            - Compreende, finalmente!
            - Mas, meu Deus, contanto que tudo isso não caia sobre ele!
            - É um anjo, Valentine.
            - Mas o meu avô, renunciaram a matá-lo?
            - Refletiram que uma vez a Valentine morta a fortuna, a não ser que tivesse havido deserdação, reverteria naturalmente para o seu irmão e concluíam que o crime, além de inútil, era duplamente perigoso.
            - E foi no espirito de uma mulher que semelhante combinação se forjou? Oh, meu Deus, meu Deus!
            - Lembre-se de Perúsia, do caramanchão da estalagem da posta, do homem da capa escura que a sua madrasta interrogava acerca da aquatofana. Desde essa época que todo este projeto infernal amadurecia no seu cérebro.
            - Oh, senhor, se é assim, bem vejo que estou condenada a morrer! - exclamou a meiga moça, lavada em lágrimas.
            - Não, Valentine, não, porque previ todas as conspirações. Não, porque a nossa inimiga está vencida, uma vez que foi descoberta. Não, viverá, Valentine, viverá para amar e ser amada, viverá para ser feliz e tornar feliz um nobre coração. Mas para viver, Valentine, tem de ter confiança em mim.
            - Ordene, senhor. Que devo fazer?
            - Deve tomar cegamente o que lhe darei. 
            - Oh, Deus é testemunha de que se estivesse sozinha preferiria morrer! - exclamou Valentine.
            - Não dirá nada a ninguém, nem mesmo ao seu pai.
            - O meu pai não tem nada a ver com esta horrível conspiração, não é verdade, senhor? - perguntou Valentine, juntando as mãos.
            - Não, e no entanto o seu pai, homem habituado às acusações criminais, o seu pai deve desconfiar de que todas estas mortes que desabam sobre a sua casa não são de modo algum naturais. Era ao seu pai que competia velar por si, era ele que devia estar a esta hora no lugar que ocupo; era ele que devia já ter
despejado este copo; era ele que devia ter-se erguido contra o assassino. Fantasma contra fantasma... - murmurou à guisa de conclusão.
            - Senhor - disse Valentine -, farei tudo para viver porque existem dois seres no mundo que me amam a tal ponto que morreriam se eu morresse: o meu avô e Maximilien.
            - Velarei por eles como tenho velado por si.
            - Sendo assim, senhor, disponha de mim – disse Valentine, que acrescentou em voz baixa: - Oh, meu Deus, meu Deus, que irá me acontecer?!
            - Seja o que for que lhe aconteça, Valentine, não se assuste. Mesmo que sofra e que perca a vista, o ouvido e o tato, nada receie. Se acordar sem saber onde está, não tenha medo, ainda que ao acordar se encontre em qualquer jazigo ou encerrada num caixão. Recupere rapidamente a sua presença de espírito e diga para consigo: “Neste momento um amigo, um pai, um homem que quer a minha felicidade e a de Maximilien, esse homem vela por mim."
            - Valha-me Deus, que terrível extremidade!
            - Valentine, prefere denunciar a sua madrasta?
            - Preferiria morrer cem vezes! Oh, sim, morrer!
            - Não, não morrerá, e seja o que for que lhe aconteça, prometa-me não se queixar, não perder a esperança?
            - Pensarei em Maximilien.
            - Valentine é a minha filha bem-amada. Só eu posso salvá-la e a salvarei.
            No cúmulo do terror, Valentine juntou as mãos, porque sentia que chegara o momento de pedir coragem a Deus, e ergueu-se para rezar, murmurando palavras sem nexo e esquecendo que os seus ombros brancos não tinham mais nada a cobri-los além da sua comprida cabeleira e que se via pulsar o seu coração sob a renda fina da camisa de dormir.
            O conde pousou suavemente a mão no braço da jovem, puxou-lhe até ao pescoço a colcha de veludo e disse com um sorriso paternal:
            - Minha filha, confie na minha dedicação como confia na bondade de Deus e no amor de Maximilien.
            Valentine pousou nele um olhar cheio de reconhecimento e permaneceu dócil como uma criança debaixo da colcha que a cobria.
            Então o conde tirou da algibeira do colete a caixinha de esmeralda onde guardava as suas drageas, abriu a tampa de ouro e deitou a mão direita de Valentine uma pastilhazinha redonda, do tamanho de uma ervilha.
            Valentine pegou-lhe com a outra mão e olhou o conde atentamente. Havia nas feições daquele intrépido protetor um reflexo da majestade e do poder divinos. Era evidente que Valentine o interrogava com a vista.
            - Sim - respondeu ele. 
            Valentine levou a pastilha à boca e engoliu-a.
            - E agora, até  breve, minha filha - disse o conde. - Vou tentar dormir, porque está salva.
            - Vá - disse Valentine. - Sei a o que for que me aconteça, prometo-lhe não ter medo.
            Monte-Cristo conservou durante muito tempo os olhos fitos na jovem, que adormeceu pouco a pouco, vencida pela força do narcótico que o conde acabava de lhe dar. Então, este pegou no copo, despejou três quartas partes do seu conteúdo na chaminé, para que se pudesse crer que Valentine bebera o que faltava, e voltou a coloca-lo em cima da mesa-de-cabeceira. Em seguida dirigiu-se para a porta da estante e desapareceu, depois de lançar um derradeiro olhar a Valentine, que adormecia com a confiança e a candura de um anjo deitado aos pés do Senhor.


Capítulo CII

Valentine


            A lamparina continuava a arder na chaminé de Valentine, consumindo as últimas gotas de azeite que ainda boiavam na água. Já um círculo mais avermelhado coloria o alabastro do globo e já a chama mais viva deixava escapar as derradeiras crepitações, que nas coisas inanimadas parecem as últimas convulsões da agonia, que tantas vezes comparamos com as das pobres criaturas humanas. Uma claridade pálida e sinistra
acabava de tingir de um tom de opala os cortinados brancos e os lençóis da cama da jovem.
            Não se ouvia qualquer barulho na rua e o silêncio interior causava calafrios.
            A porta do quarto de Edouard abriu-se então, e uma cabeça que já vimos apareceu no espelho oposto à porta: era a Sra de Villefort, que voltava para ver o efeito da beberagem.
            Parou no limiar, escutou a crepitação da lamparina, único ruído perceptível naquele quarto, que se diria deserto, e em seguida dirigiu-se devagarinho para a mesa-de-cabeceira a fim de ver se o copo de Valentine estava vazio. Continha ainda um quarto do líquido, como dissemos.
            A Sra de Villefort pegou-lhe e foi despejá-lo nas cinzas, que revolveu para facilitar a absorção do licor. Depois, lavou cuidadosamente o cristal, enxugou-o com o seu próprio lenço e recolocou-o na mesa-de-cabeceira.
            Quem quer que pudesse olhar para dentro do quarto poderia verificar então que a Sra de Villefort hesitava em olhar para Valentine e em se aproximar da cama. Aquela claridade lúgubre, aquele silêncio, a terrível poesia da noite, conjugavam-se sem dúvida com a horrível poesia da sua consciência: a envenenadora tinha medo da sua obra.
            Por fim, encheu-se de coragem, afastou o cortinado, encostou-se à cabeceira da cama e olhou Valentine. A jovem já não respirava, os seus dentes semidescerrados não deixavam escapar nenhum  tomo de respiração denunciador de vida: os seus lábios esbranquiçados tinham deixado de tremer; os seus olhos, cobertos de um tom roxo que parecia ter-se infiltrado através da pele, formavam uma saliência mais clara
no lugar onde o globo esticava a pálpebra, e as suas longas pestanas pretas destacavam-se numa pele já baça como a cera.
            A Sra de Villefort contemplou aquele rosto de expressão tão eloquente na sua imobilidade. Afoitou-se então a levantar a colcha e a colocar a mão no coração da jovem. Estava parado e gelado. O que lhe pulsava debaixo da mão era a artéria dos dedos.  Retirou a mão com um arrepio.
            O braço de Valentine pendia fora da cama. Aquele braço, desde o ombro até  ao sangradouro, parecia modulado pelo braço de uma das Graças de Germain Pilon: mas o antebraço estava ligeiramente deformado por uma crispação, e o punho, de uma forma tão pura, apoiava-se no mogno, um pouco rígido e com os
dedos afastados. A raiz das unhas apresentava-se azulada.
            Para a Sra de Villefort não havia dúvida: tudo acabara, a obra terrível, a última de que se encarregara, estava enfim consumada.
            A envenenadora já não tinha nada a fazer naquele quarto. Recuou portanto com tais precauções que era visível recear o ruído dos seus pés no tapete, mas mesmo recuando conservava ainda o cortinado da cama levantado, presa ao espetáculo da morte, que contém em si uma atração irresistível enquanto a
morte não é decomposição, mas apenas imobilidade, enquanto permanece mistério e não inspira ainda repugnância.
            Os minutos passavam. A Sra de Villefort, não podia largar o cortinado, que mantinha suspenso como uma mortalha por cima da cabeça de Valentine. Pagou o seu tributo ao devaneio; o devaneio do crime deve ser o remorso. Naquele momento, as crepitações da lamparina aumentaram.
            Ao ouvir tal ruído, a Sra de Villefort estremeceu e deixou cair o cortinado. No mesmo instante a lamparina apagou-se e o quarto mergulhou numa obscuridade assustadora. No meio dessa obscuridade, o relógio deu quatro e meia.
            Apavorada com todas estas sucessivas comoções, a envenenadora alcançou a porta às apalpadelas e regressou ao seu quarto com o suor da angústia na testa. A obscuridade durou ainda mais duas horas.
            Depois, pouco a pouco, uma claridade triste invadiu o quarto através das persianas. Em seguida, também pouco a pouco, a claridade aumentou e deu cor e forma aos objetos e aos corpos.
            Foi neste momento que a tosse da enfermeira soou na escada e a mulher entrou no quarto de Valentine com uma xícara na mão.
            Para um pai, para um apaixonado, o primeiro olhar seria decisivo: Valentine estava morta; para aquela mercenária, Valentine estava apenas dormindo.
            - Bom - disse, aproximando-se da mesa-de-cabeceira –, bebeu uma parte da poção, pois o copo está dois terços vazio. 
            Em seguida dirigiu-se para a chaminé, acendeu o lume, instalou-se na sua poltrona e, embora tivesse acabado de se levantar, aproveitou o sono de Valentine para dormir mais uns instantes. O relógio acordou-a ao dar oito horas.
            Então, surpreendida com o sono obstinado em que permanecia a jovem, e assustada com aquele braço pendente  fora da cama que a dorminhoca ainda não metera debaixo da roupa, avançou para a
cama e só então reparou naqueles lábios frios e naquele peito gelado.
            Quis meter o braço na cama, junto do corpo; mas o braço só lhe respondeu com a rigidez medonha que não podia enganar uma enfermeira.
            A mulher soltou um grito horrível.
            Depois, correu para a porta a gritar:
            - Socorro! Socorro!
            - Quem é que pede socorro? - perguntou do fundo da escada a voz do Sr. de Avrigny.
            Era a hora em que o médico tinha o hábito de vir.
            - Quem está pedindo socorro? - gritou a voz de Villefort, o qual saiu precipitadamente do seu gabinete. - Não ouviu gritar por socorro, doutor?
            - Ouvi, ouvi. Subamos - respondeu Avrigny. - Subamos depressa ao quarto de Valentine.
            Mas antes de o médico e o pai entrarem, os criados, que se encontravam no mesmo andar, nos quartos e nos corredores, anteciparam-se e, vendo Valentine pálida e imóvel na cama, levantaram as mãos ao céu e cambalearam como se sentissem vertigens.
            - Chamem a Sra de Villefort! Acordem a Sra de Villefort! - gritou o procurador régio da porta do quarto, no qual parecia não se atrever a entrar.
            Mas os criados, em vez de obedecerem, olhavam para o Sr. de Avrigny, que entrara, correra para Valentine e a erguia nos braços.
            - Mais esta!...-murmurou, deixando-a cair. - Oh, meu Deus, meu Deus, quando vos cansareis?!
            Villefort entrou no quarto.
            - Que diz o senhor, meu Deus? - gritou, erguendo as mãos ao céu. - Doutor!... Doutor!...
            - Digo que Valentine morreu! - respondeu Avriany, numa voz solene e terrível na sua solenidade.
            O Sr. de Villefort caiu de joelhos como se as pernas se lhe tivessem partido e escondeu o rosto no leito de Valentine.
            Ao ouvirem as palavras do médico e os gritos do pai, os criados, aterrados, fugiram soltando imprecações abafadas. Ouviram-se nas escadas e nos corredores os seus passos precipitados, depois grande movimento nos pátios e em seguida mais nada; o ruído extinguiu-se. Do primeiro ao último, tinham
abandonado a casa maldita.
            Neste momento, a Sra de Villefort, com um braço meio metido na manga do roupão, levantou a tapeçaria. Por um instante permaneceu no limiar, com ar de quem interroga os presentes e procurando chamar em seu auxílio algumas lágrimas rebeldes. De súbito deu um passo, ou antes um salto em frente, com os braços estendidos para a mesa. 
            Acabava de ver Avrigny inclinar-se curiosamente sobre o móvel e pegar o copo que estava certa de ter despejado durante a noite.
            O copo encontrava-se um terço cheio, precisamente como estava quando ela despejara o seu conteúdo nas cinzas. O fantasma de Valentine erguido diante da envenenadora produziria menos efeito sobre ela.
            De tato, era sem dúvida aquela a cor da beberagem que deitara no copo de Valentine e que Valentine bebera, era sem dúvida aquele o veneno, que não podia enganar os olhos do Sr. de Avrigny e que o Sr. de Avrigny observava atentamente; fora sem dúvida um milagre, o que Deus fizera decerto para que ficasse,
apesar das precauções do assassino, um vestígio, uma prova, uma denúncia do crime.
            Entretanto, enquanto a Sra de Villefort ficava imóvel como a estátua do Terror e Villefort, com o rosto escondida nos lençóis do leito mortuário, não via nada do que se passava à sua volta, Avrigny aproximava-se da janela para melhor poder examinar o conteúdo do copo e provar uma gota tirada com a ponta do dedo.
            - Ah, agora já não se trata de brucina!... - murmurou. Vejamos o que é...
            Correu para umdos armários do quarto de Valentine - armário transformado em farmácia –, tirou da sua caixinha de prata um frasco de ácido nítrico e deixou cair algumas gotas na opala do licor, que se transformou imediatamente num meio copo de sangue vermelho
            - Ah!... - exclamou Avrigny, com o horror do juiz a quem se revela a verdade, de mistura com a alegria do sábio que descobre a solução de um problema.
            A Sra de Villefort girou um instante sobre si mesma; os seus olhos chamejaram e depois tornaram-se mortiços; procurou, cambaleante, a porta com a mão e desapareceu. Pouco depois, ouviu-se o ruído distante de um corpo que caia no parqué.
            Mas ninguém lhe prestou atenção. A enfermeira estava ocupada a olhar a análise química e Villefort continuava aniquilado. Apenas o Sr. de Avrigny seguira com a vista a Sra de Villefort e notara a sua saída precipitada.
            Levantou a tapeçaria do quarto de Valentine e, através do quarto de Edouard, pôde observar os aposentos da Sra de Villefort, que viu caída, imóvel, no parqué.
            - Vá socorrer a Sra de Villefort, - disse à enfermeira. - A Sra de Villefort sente-se mal.
            - E Mademoiselle Valentine? - balbuciou a mulher.
            - Mademoiselle Valentine já não necessita de socorro; Mademoiselle Valentine está morta.
            - Morta! Morta! - suspirou Villefort no paroxismo de uma dor tanto mais dilacerante quanto mais nova, desconhecida e inaudita para aquele coração de bronze.
            - Morta, diz o senhor?! - gritou terceira voz. - Quem disse que Valentine estava morta?
            Os dois homens viraram-se e viram à porta Morrel, de pé, pálido, transtornado, terrível.
            Eis o que acontecera: 
            À sua hora habitual, e pela portinha que levava aos aposentos de Noirtier Morrel apresentara-se em casa dos Villeforts. Contra o costume, encontrou a porta aberta, pelo que não teve de tocar, e entrou.
            Esperou um instante no vestíbulo, depois de chamar um criado qualquer que o introduzisse junto do velho Noirtier. Mas ninguém respondeu; como sabemos, os criados tinham abandonado a casa.
            Morrel não tinha naquele dia nenhum motivo especial para se sentir inquieto. Possuía a promessa de Monte-Cristo de que Valentine viveria e até  ali essa promessa tora fielmente cumprida. Todas as noites o conde lhe dera boas noticias, que o próprio Noirtier confirmava no dia seguinte.
            No entanto, aquele abandono pareceu-lhe singular. Chamou segunda vez, terceira, mas o silêncio persistiu. Então decidiu subir.
            A porta de Noirtier estava aberta, tal como as outras portas.
            A primeira coisa que viu foi o velho na sua poltrona, no sítio habitual. Os seus olhos dilatados pareciam exprimir um terror íntimo, confirmado ainda pela palidez estranha que lhe cobria o rosto.
            - Como está, senhor? - perguntou o rapaz, não sem um certo aperto no coração.
            - Bem! - respondeu o velho com o seu piscar de olhos. - Bem!
            Mas a inquietação pareceu aumentar na sua fisionomia.
            - Está preocupado - continuou Morrel. - Precisa de qualquer coisa. Quer que chame um criado?
            - Sim - respondeu Noirtier.
            Morrel puxou o cordão da campainha; mas mesmo que o puxasse até se partir, ninguém viria, nem veio. Virou-se para Noirtier, a palidez e a angústia iam crescendo no rosto do velho.
            - Meu Deus! Meu Deus! - exclamou Morrel. - Porque será que ninguém aparece? Haverá alguém doente na casa?
            Os olhos de Noirtier pareceram prestes a saltar-lhe das órbitas.
            - Mas que tem o senhor? - continuou Morrel. - Assusta-me... Valentine? Valentine?...
            - Sim! Sim! - acenou Noirtier.
            Maximilien abriu a boca para falar, mas a sua língua não conseguiu articular nenhum som. Cambaleou e agarrou-se à parede. Depois estendeu a mão para a porta.
            - Sim, sim, sim! - continuou o velho.
            Maximilien correu para a escadinha, que subiu em dois saltos, enquanto Noirtier parecia gritar-lhe com a vista: “Mais depressa! Mais depressa!"
            Um minuto bastou ao rapaz para atravessar várias salas, solitárias como o resto da casa, e chegar ao quarto de Valentine. Não necessitou de empurrar a porta, pois estava escancarada.
            Um soluço foi o primeiro ruído que ouviu. Viu como que através de uma nuvem uma figura negra ajoelhada e com o rosto mergulhada num monte contuso de lençóis brancos. O medo, um medo horrível, pregava-o ao chão. Foi então que ouviu uma voz dizer que Valentine estava morta e segunda voz responder como um eco.
            - Morta! Morta!


Capítulo CIII

Maximilien


            Villefort levantou-se quase envergonhado de ter sido surpreendido no meio da sua dor.
            A terrível função que exercia havia vinte e cinco anos acabara por fazer dele mais e menos do que um homem.
            O seu olhar, por momentos alucinado, fixou-se em Morrel.
            - Quem é o senhor, que se esquece que se não entra assim numa casa habitada pela morte? - perguntou. - Saia, senhor! Saia!
            Mas Morrel continuou imóvel, sem poder desviar os olhos do espetáculo horrível daquela cama em desordem e da pálida figura nela deitada.
            - Saia, ouviu?! - gritou Villefort, enquanto Avrigny se adiantava por seu turno para fazer sair Morrel.
            Este olhou com ar enlouquecido o cad ver, os dois homens e todo o quarto, pareceu hesitar um instante e abriu a boca. Depois, não encontrando que dizer, apesar do imenso enxame de idéias fatais que lhe invadiam o cérebro, arrepiou caminho, metendo as mãos pelos cabelos, de tal forma que Villefort e
Avrigny, distraídos por momentos das suas preocupações, trocaram, depois de o seguir com a vista, um olhar que queria dizer; “é louco!"
            Mas ainda não tinham passado cinco minutos ouviram-se gemer os degraus da escada debaixo de um peso considerável e viu-se Morrel carregar com força sobre-humana nos braços a poltrona de Noirtier e chegar com o velho ao primeiro andar da casa. Chegado ao cimo da escada, Morrel pousou a poltrona no chão e empurrou-a rapidamente até  ao quarto de Valentine.
            Toda esta manobra foi executada com força decuplicada pela exaltação frenética do rapaz.
            Mas o que mais impressionava era a figura de Noirtier ao dirigir-se para a cama de Valentine empurrado por Morrel; sim, a figura de Noirtier, em que a inteligência desenvolvia todos os seus recursos e cujos olhos congregavam todo o seu poder para suprir as restantes faculdades. Por isso, aquele rosto pálido, de olhar incendiado, foi para Villefort uma temerosa aparição.
            Todas as vezes que se encontrara com o pai passara-se sempre algo terrível.
            - Veja o que fizeram! - gritou Morrel, com uma das mãos ainda apoiada nas costas da poltrona que acabava de empurrar até  à cama e com a outra estendida para Valentine. - Veja, meu pai, veja!
            Villefort recuou um passo e olhou com espanto aquele rapaz que lhe era quase desconhecido e que chamava pai a Noirtier. 
            Naquele momento toda a alma do velho pareceu refletir-se-lhe nos olhos, que se injetaram de sangue; depois, as veias do pescoço incharam-lhe e uma cor arroxeada como a que invade a pele dos epilépticos cobriu-lhe o pescoço, as faces e as têmporas. Àquela explosão interior de todo um ser só faltava um grito.
            Esse grito saiu por assim dizer de todos os poros, no seu mutismo, pungente no seu silêncio.
            Avrigny precipitou-se para o velho e fê-lo respirar um forte revulsivo.
            - Senhor - gritou então Morrel, pegando na mão inerte do paralítico –, não me pergunte quem sou e que direito tenho de estar aqui! Meu Deus, vós que o sabeis. dizei-lho, dizei-lho!
            E a voz do rapaz extinguiu-se em soluços. Quanto ao velho, a respiração arquejante sacudia-lhe o peito.  Diria-se dominá-lo uma dessas agitações que precedem a agonia.
            Por fim, as lágrimas brotaram dos olhos de Noirtier, mais feliz do que o jovem, que soluçava sem chorar. Como não podia inclinar a cabeça, fechou os olhos.
            - Diga-lhe - continuou Morrel em voz estrangulada -, diga-lhe que era seu noivo; diga-lhe que ela era a minha nobre amiga, o meu único amor na Terra; diga-lhe... diga-lhe que este cadáver me pertence!
            E o jovem, dando o terrível espetáculo de uma grande força que se quebra, caiu pesadamente de joelhos diante daquela cama, que os seus dedos crispados apertaram com violência.
            Aquela dor era tão pungente que Avrigny se virou para ocultar a sua emoção e Villefort, sem pedir mais explicações, atraído pelo magnetismo que nos impele para aqueles que amaram os que choramos, estendeu a mão ao jovem. Mas Morrel não via nada. Pegara na mão, gelada de Valentine, e como não conseguia chorar, mordia os lençóis rugindo.
            Durante algum tempo só se ouviu no quarto a luta dos  soluços, das imprecações e das preces. E no entanto um ruído dominava todos eles: a respiração rouca e dilacerante, que parecia, a cada tomada de ar, quebrar um dos órgãos vitais do peito de Noirtier.
            Por fim, Villefort, o mais senhor de si de todos, depois de ter por assim dizer cedido durante algum tempo o seu lugar a Maximilien, tomou a palavra.
            - Senhor, diz que amava Valentine, que era seu noivo.  Ignorava esse amor, assim como ignorava esse compromisso. E no entanto, eu, seu pai, perdoo-lhe, pois vejo que a sua dor é grande, real, verdadeira. Aliás, em minha casa a dor é demasiado grande para que sobre no meu coração lugar para a cólera. Mas, como vê, o anjo em que depositava as suas esperanças deixou a Terra; já só pode ser alvo da adoração dos homens, ela que a esta hora adora o Senhor. Faça pois as suas despedidas, senhor, ao pobre despojo que ela esqueceu entre nós, pegue-lhe pela última vez na mão que esperava e separe-se dela para sempre. Agora, Valentine só precisa do padre que deve abençoá-la.
            - Engana-se, senhor! - gritou Morrel, levantando-se num joelho, com o coração traspassado por uma dor mais aguda do que todas as que experimentara até  ali. - Engana-se: Valentine, morta como está, precisa não apenas de um padre, mas também de um vingador. Sr. de Villefort, mande buscar o padre; eu serei o vingador. 
            - Que quer dizer, senhor? - murmurou Villefort, tremendo perante esta nova inspiração do delírio de Morrel.
            - Quero dizer - continuou Morrel - que há dois homens em si, senhor. O pai já chorou o bastante; agora é a vez de o procurador régio assumir as suas funções.
            Os olhos de Noirtier cintilaram e Avrigny aproximou-se.
            - Senhor - continuou o rapaz, recolhendo com os olhos todos os sentimentos que se revelavam no rosto dos presentes -, sei o que digo e o senhor sabe tão bem como eu o que vou dizer: Valentine morreu assassinada!
            Villefort baixou a cabeça; Avrigny deu mais um passo; Noirtier disse “sim" com os olhos.
            - Ora, senhor - continuou Morrel –, no tempo em que vivemos, uma pessoa, mesmo que não fosse jovem, bela e adorável como era Valentine, não desaparece violentamente do mundo sem que se peçam contas do seu desaparecimento. Vamos, Sr. Procurador régio - acrescentou Morrel com crescente veemência –, nada de piedade! Denuncio-lhe o crime, procure o assassino!
            E o seu olhar implacável interrogava Villefort, que, por sua vez, apelava com o olhar ora para Noirtier, ora para Avrigny. Mas em vez de encontrar auxílio no pai ou no médico, Villefort só encontrou neles um olhar tão inflexível como o de Morrel.
            - Sim – pestanejou o velho.
            - Sem dúvida! - disse Avrigny.
            - Senhor - replicou Villefort, procurando lutar contra aquela tripla vontade e contra a sua própria emoção –, senhor, está enganado, não se cometem crimes em minha casa. A fatalidade persegue-me, Deus põe-me à prova. É horrível pensar semelhante coisa, mas não se assassina ninguém!
            Os olhos de Noirtier chamejaram e Avrigny abriu a boca para falar. Morrel estendeu o braço pedindo silêncio.
            - E eu digo-lhe que se mata aqui! - replicou Morrel em voz baixa, mas que nada perdeu da sua vibração terrível. - Digo-lhe que esta é a quarta vítima em quatro meses. Digo-lhe que já uma vez, há quatro dias, tentaram envenenar Valentine, e que só o não conseguiram devido às precauções tomadas pelo Sr. Noirtier! Digo-lhe que duplicaram a dose ou mudaram de veneno, e que desta vez triunfaram! Digo-lhe que o senhor sabe tudo isto tão bem como eu, pois aquele senhor preveniu-o como médico e como amigo.
            - O senhor delira! - protestou Villefort, debatendo-se em vão no círculo onde se sentia preso.
            - Deliro?! - gritou Morrel. - Pois bem, recorro ao testemunho do próprio Sr. de Avrigny. Pergunte-lhe, senhor, se ainda se lembra das palavras que pronunciou no seu jardim, no jardim deste palácio, na própria noite da morte da Sra de Saint-Méran, quando ambos, o senhor e ele, julgando-se sós, conversavam acerca dessa morte trágica, na qual essa fatalidade de que fala e Deus, que acusa injustamente, só podem ser acusados de uma coisa: terem criado o assassino de Valentine!
            Villefort e Avrigny entreolharam-se.
            - Sim, sim, recordem-se - prosseguiu Morrel. - Porque essas palavras, que julgaram confiadas ao silêncio e à solidão, caíram nos meus ouvidos. Claro que nessa noite, ao ver a culpada complacência do Sr. de Villefort para com os seus, eu devia ter contado tudo às autoridades. Se o tivesse feito, não seria cúmplice, como sou neste momento, da sua morte, Valentine, minha querida Valentine! Mas o cúmplice se transformará  em vingador. Esta quarta morte é flagrante e visível aos olhos de todos, e se o teu pai te abandonar, Valentine, serei eu, serei eu, Juro-te, que perseguirei o assassino.
            E desta vez, como se a natureza tivesse enfim piedade daquela vigorosa constituição prestes a ser destruída pela sua própria força, as últimas palavras de Morrel morreram-lhe na garganta, o peito desentranhou-se em soluços, as lágrimas, durante tanto tempo rebeldes, brotaram-lhe dos olhos, dobrou-se sobre si mesmo e caiu de joelhos, chorando, junto do leito de Valentine.
            Foi então a vez de Avrigny.
            - Também eu - disse com voz forte –, também eu me junto ao Sr. Morrel para pedir justiça contra o crime; porque o meu coração revolta-se à idéia de que a minha covarde complacência encorajou o assassino!
            - Oh, meu Deus, meu Deus! - murmurou Villefort, aniquilado.
            Morrel ergueu a cabeça e leu qualquer coisa nos olhos do velho, nos quais brilhava uma chama sobrenatural.
            - Esperem, esperem. O Sr. Noirtier quer falar.
            - Sim - confirmou Noirtier, com uma expressão tanto mais terrível quanto é certo todas as faculdades do pobre velho impotente se encontrarem concentradas no seu olhar.
            - Sabe quem é o assassino? - perguntou Morrel.
            - Sei - respondeu Noirtier.
            - E vai ajudar-nos a descobri-lo? - perguntou o jovem, alvoroçado. - Ouçamos! Sr. de Avrigny, ouçamos!
            Noirtier dirigiu ao pobre Morrel um sorriso melancólico, um daqueles ternos sorrisos dos olhos que tantas vezes tinham tornado Valentine feliz, e fitou-o intensamente. Depois, tendo cravado por assim dizer os olhos do seu interlocutor aos dele, virou os seus para a porta.
            - Quer que eu saia, senhor? - perguntou dolorosamente Morrel.
            - Quero - respondeu Noirtier.
            - Então, então, senhor, tenha compaixão de mim!
            Mas os olhos do velho permaneceram implacavelmente virados para a porta.
            - Poderei ao menos voltar? - perguntou Morrel.
            - Sim.
            - Devo sair sozinho?
            - Não.
            - Quem devo levar comigo? O Sr. Procurador régio?
            - Não.
            - O doutor?
            - Sim.
            - Quer ficar só com o Sr. de Villefort?
            - Sim.
            - E ele conseguirá compreendê-lo?
            - Sim.
            - Oh, esteja tranquilo, compreendo muitíssimo bem o meu pai! - exclamou Villefort, quase alegre pela conversa se realizar à porta fechada. 
            Mas ao mesmo tempo que proferia estas palavras com a expressão de alegria que assinalamos, os dentes do procurador régio entrechocavam-se com violência. Avrigny pegou no braço de Morrel e levou o jovem para a divisão contígua.
            Reinou então em toda a casa um silêncio mais profundo do que o da morte. Finalmente, passado um quarto de hora, ouviram-se passos incertos e Villefort apareceu no limiar da sala onde se encontravam Avrigny e Morrel, um absorto e o outro impaciente.
            - Venham - disse.
            E conduziu-os junto da poltrona de Noirtier. Morrel olhou então atentamente para Villefort.
            O procurador régio estava lívido; grandes manchas cor de ferrugem cobriam-lhe a testa; nos dedos, uma pena torcida de mil maneiras desfazia-se aos poucos.
            - Meus senhores - disse em voz estrangulada a Avrigny e Morrel -, peço-lhes a sua palavra de honra de que este horrível segredo ficará sepultado entre nós. Os dois homens fizeram um movimento.
            - Suplico-lhes!...-continuou Villefort.
            - Mas... o culpado?... O envenenador?... O assassino?... - perguntou Morrel.
            - Esteja tranquilo, senhor, que a justiça será feita - respondeu Villefort. - O meu pai revelou-me o nome do culpado; o meu pai tem sede de vingança como o senhor e no entanto o meu pai suplica-lhes, como eu, que guardem o segredo do crime. Não é verdade, meu pai?
            - É - respondeu resolutamente Noirtier.
            Morrel deixou escapar um gesto de horror e incredulidade.
            - Oh, se o meu pai, o homem inflexível que conhece, lhe faz este pedido, é porque sabe que Valentine será terrivelmente vingada! - exclamou Villefort, segurando Maximilien por um braço. - Não é verdade, meu pai?
            O velho fez sinal que sim.
            Villefort continuou:
            - Ele conhece-me e foi a ele que dei a minha palavra. Tranquilizem-se, portanto, meus senhores. Três dias, peço-lhes três dias, menos do que lhes pediria a justiça, e dentro de três dias a vingança que tirarei do assassino da minha filha fará tremer até ao fundo do coração os homens mais empedernidos. Não é verdade, meu pai?
            E, ao dizer estas palavras, rangia os dentes e abanava a mão insensível do velho.
            - Tudo o que foi prometido será cumprido, Sr. Noirtier? -  perguntou Morrel, enquanto Avrigny interrogava com o olhar.
            - Sim - respondeu Noirtier, com uma expressão de sinistra alegria.
            - Jurem portanto, meus senhores - disse Villefort, juntando as mãos de Avrigny e Morrel -, jurem que terão compaixão da honra da minha casa e que me deixarão o cuidado de a vingar...
            Avrigny virou-se e murmurou um “sim" muito fraco, mas Morrel arrancou a sua mão das do magistrado, precipitou-se para a cama, colou os lábios aos lábios gelados de Valentine e fugiu com o longo gemido de uma alma que se engolfa no desespero. Dissemos que todos os criados tinham desaparecido.
            O Sr. de Villefort viu-se portanto obrigado a pedir a Avrigny que se encarregasse das formalidades, tão numerosas e delicadas, que envolvem a morte nas nossas grandes cidades, e sobretudo a morte em circunstancias tão suspeitas.
            Quanto a Noirtier, era qualquer coisa terrível ver aquela dor horrível, aquele desespero sem gestos, aquelas lágrimas sem voz.
            Villefort regressou ao seu gabinete e Avrigny foi buscar o médico municipal, a quem competiam as funções de inspector dos óbitos, mas que o vulgo designava com menos respeito e mais propriedade por “médico dos mortos".
            Noirtier não se quis separar da neta.
            Ao cabo de meia hora, o Sr. de Avrigny regressou com o colega. Tinham-se fechado as portas da rua e como o  porteiro desaparecera com os outros criados, foi o próprio Villefort, que as abriu. Mas deteve-se no patamar; já não tinha coragem de entrar na câmara mortuária.
            Os dois médicos entraram portanto sozinhos no quarto de Valentine. Noirtier estava junto da cama, pálido como a morta, imóvel e mudo como ela.
            O médico dos mortos aproximou-se com a indiferença do homem que passa metade da vida com cadáveres, levantou o lençol que cobria a jovem e entreabriu-lhe apenas os lábios.
            - Oh, a pobre pequena está bem morta! – exclamou Avrigny, suspirando. - é verdade - respondeu laconicamente o médico, deixando cair o lençol que cobria o rosto de Valentine.
            Noirtier emitiu um arquejo abafado.
            Avrigny virou-se; os olhos do velho cintilavam. O bom doutor adivinhou que Noirtier exigia que lhe deixassem ver a neta. Aproximou-o da cama, e enquanto o médico dos mortos mergulhava em água cloretada os dedos que tinham tocado nos lábios da defunta, descobriu o rosto pálido e calmo que parecia de um
anjo adormecido.
            Uma lágrima que apareceu ao canto do olho de Noirtier foi o agradecimento que recebeu o bom doutor.
            O médico dos mortos passou a sua certidão na ponta de uma mesa, no próprio quarto de Valentine, e, cumprida essa formalidade suprema, saiu acompanhado pelo doutor. Villefort, ouviu-os descer e apareceu à porta do seu gabinete.
            Agradeceu em poucas palavras ao médico, e, virando-se para Avrigny, disse:
            - E agora o padre.
            - Tem algum eclesiástico que deseje encarregar mais especialmente de rezar por Valentine? - perguntou Avrigny.
            - Não, vá buscar o mais próximo - respondeu Villefort.
            - O mais próximo - disse o médico - é um bom abade italiano que reside há pouco tempo na casa contígua a esta. Quer que o previna quando passar?
            - Avrigny, peço-lhe o favor de acompanhar este senhor -  disse Villefort. - Aqui tem a chave para que possa entrar e sair à vontade. Traga o padre e encarregue-se de o instalar no quarto da minha pobre filha.
            - Deseja falar-lhe, meu amigo?
            - Desejo estar só. Desculpe-me, não é verdade? Um padre deve compreender todas as dores, mesmo a dor paterna. 
            E o Sr. de Villefort, depois de dar uma chave-mestra a Avrigny, cumprimentou pela última vez o outro médico e entrou no seu gabinete, onde se pôs a trabalhar. Para certas pessoas, o trabalho é remédio para todas as dores. No momento em que os médicos chegavam à rua, viram um homem de sotaina parado no limiar da porta vizinha.
            - Aqui está o padre de quem lhe falei - disse o médico dos mortos a Avrigny.
            Este dirigiu-se ao eclesiástico.
            - Senhor, estaria disposto a prestar um grande favor a um pobre pai que acaba de perder a filha, ao Sr. Procurador régio Villefort?
            - Ah, senhor, bem sei que a morte lhe entrou em casa! - respondeu o padre com acentuada pronúncia italiana.
            - Então não preciso de lhe dizer que espécie de favor ele ousa esperar do senhor.
            - Ia-me oferecer, senhor - disse o padre. - É nossa missão ir ao encontro dos nossos deveres.
            - Trata-se de uma jovem.
            - Sim, bem sei; soube-o pelos criados que vi fugirem de casa. Sei que se chamava Valentine e já rezei por ela.
            - Obrigado, obrigado, senhor - disse Avrigny. - E uma vez que já começou a exercer o seu santo ministério, digne-se continuá-lo. Venha sentar-se junto da morta e toda uma família mergulhada em luto lhe ficará muito reconhecida.
            - Vou já, senhor - respondeu o abade e ouso dizer que nunca quaisquer orações serão mais ardentes do que as minhas.
            Avrigny pegou na mão do abade e, sem ver Villefort, encerrado no seu gabinete, conduziu-o ao quarto de Valentine, de quem os cangalheiros se apoderariam apenas na noite seguinte. Quando entrou no quarto, o olhar de Noirtier cruzou-se com o do abade, e sem dúvida julgou ler nele algo especial, pois nunca mais o deixou.
            Avrigny recomendou ao padre não só a morta, mas também o vivo, e o padre prometeu a Avrigny dispensar as suas orações a Valentine e os seus cuidados a Noirtier.
            O abade comprometeu-se a isso solenemente, e, sem dúvida para não ser incomodado nas suas preces e Noirtier perturbado na sua dor, assim que o Sr. de Avrigny deixou o quarto foi não só correr os fechos da porta por onde o médico acabava de sair, mas também os da que levava aos aposentos da Sra de
Villefort.

Capítulo CIV


A assinatura de Danglars

            O dia seguinte nasceu triste e nevoento.
            Os cangalheiros tinham desempenhado durante a noite do seu fúnebre ofício e amortalhado o corpo depositado em cima da cama na mortalha que  envolve lugubremente os defuntos, mas lhes empresta, seja o que for que se diga acerca da igualdade perante a morte, a última prova do luxo que apreciaram durante
a vida.
            A mortalha era nem mais nem menos do que uma peça de magnífica cambraia que a jovem comprara quinze dias antes
            À noite, homens chamados para o efeito tinham transportado Noirtier do quarto de Valentine para o seu, e, contra toda a expectativa, o velho não levantara nenhuma dificuldade em ser afastado do corpo da neta. O abade Busoni velara até  de manhã e ao amanhecer retirara-se para sua casa sem chamar ninguém
            Avrigny voltara cerca das oito da manhã. Encontrara Villefort, que se dirigia para os aposentos de Noirtier e acompanhara-o para saber como o velho passara a noite. Encontraram-no na grande poltrona que lhe servia de leito, dormindo um sono tranquilo e quase sorridente. Ambos se detiveram, atônitos, no limiar.
            - Veja - disse Avrigny a Villefort, que olhava o pai adormecido. - Veja, a natureza sabe acalmar as mais vivas dores. Sem dúvida, ninguém dirá que o Sr. Noirtier não amava a neta; no entanto, dorme.
            - Tem razão - respondeu Villefort, surpreendido. - Dorme, o que é muito estranho, pois a mais pequena contrariedade deixava-o acordado noites inteiras.
            - A dor abateu-o - replicou Avrigny.
            E ambos voltaram pensativos para o gabinete do procurador régio.
            - Veja, eu não dormi - disse Villefort, mostrando a Avrigny a cama intacta. -A dor não me abateu, embora não me deite há duas noites. Mas, em compensação, veja a minha mesa: o que escrevi, meu Deus! Durante essas duas noites e esses dois dias, estudei este processo e redigi a acusação contra o assassino Benedetto!... Oh, o trabalho, o trabalho, é a minha paixão, a minha alegria, a minha raiva, só ele é capaz de
vencer todas as minhas dores!
            E apertou convulsivamente a mão de Avrigny.
            - Precisa de mim? - perguntou o médico.
            - Não - respondeu Villefort. - Volte apenas às onze horas, peço-lhe; é ao meio-dia que se realiza... o funeral... Meu Deus! Minha pobre filha, minha pobre filha!
            E o procurador régio, voltando a ser homem, ergueu os olhos ao céu e suspirou.
            -Estará portanto no salão de recepção?
            - Não, tenho um primo que se encarregará dessa triste honra. Eu trabalharei, doutor, quando trabalho tudo desaparece.
            De fato, ainda o médico não chegara à porta e já o procurador régio se entregara ao trabalho.
            Avrigny encontrou na escadaria o tal parente de que lhe falara Villefort, personagem tão insignificante nesta história como na família, um desses seres destinados desde o nascimento a desempenharem papéis insignificantes na vida.
            Era pontual, vestia de preto, trazia um fumo no braço e comparecia em casa do primo com umo rosto estudada, que esperava conservar enquanto fosse preciso e deixar em seguida.
            Às onze horas as carruagens fúnebres rodaram no empedrado do pátio e a Rua do Arrabalde Saint-Honoré encheu-se dos murmúrios da multidão, igualmente  vida das alegrias e do luto dos ricos, e que corre para um funeral pomposo com a mesma pressa que para o casamento de uma duquesa.
            Pouco a pouco o salão mortuário encheu-se e viu-se chegar primeiro uma parte dos nossos antigos conhecidos - isto é, Debray, Château-Renaud e Beauchamp - e depois todas as notabilidades da magistratura, das letras e do Exército, pois o Sr. de Villefort ocupava, menos pela sua posição social do
que pelo seu mérito pessoal, um dos primeiros lugares da sociedade parisiense.
            O primo conservava-se à porta e mandava entrar todas as pessoas. Para os indiferentes era um grande alívio, deve-se dizê-lo, ver ali uma figura desconhecida, que não exigia aos presentes uma fisionomia mentirosa ou lágrimas fingidas, como fariam um pai, um irmão ou um noivo. Aqueles que se conheciam chamavam-se com o olhar e reuniam-se em grupos.
            Um desses grupos era constituído por Debray, Château-Renaud e Beauchamp.
            - Pobre pequena! - exclamou Debray, pagando, como todos afinal o pagavam a seu pesar, tributo ao doloroso acontecimento.- Pobre pequena. tão rica, tão bela!... Lhe passaria pela cabeça, Château-Renaud, quando nos vimos pela última vez, há quanto tempo?... Três semanas ou um mês, no máximo na assinatura daquele contrato que acabou por não ser assinado, que uma coisa assim pudesse acontecer?
            - Palavra que não - respondeu Château-Renaud.
            - Conhecia-a?
            - Falei uma ou duas vezes com ela no baile da Sra de Morcerf. Pareceu-me encantadora, embora dotada de um espírito um pouco melancólico. Onde está a madrasta? Sabe que é feito dela?
            - Foi passar o dia com a mulher do digno cavalheiro que nos recebe.
            - Quem é?
            - Quem é quem?
            - O cavalheiro que nos recebe. Um deputado?
            - Não - respondeu Beauchamp. - Estou condenado a ver os nossos respeitáveis representantes todos os dias e a seu rosto me é desconhecido.
            - Referiu esta morte no seu jornal?
            - O artigo não é meu, mas falaram-me dele. Duvido até  que seja agrável ao Sr. de Villefort. Creio que diz que se se tivessem verificado quatro mortes sucessivas em outro lugar em vez da casa do Sr. Procurador régio, o Sr. Procurador régio ficaria decerto mais impressionado.
            - No entanto, o Dr. de Avrigny, que é o médico da minha mãe, diz que está muito acabrunhado - declarou Château-Renaud.          
            - Que procura, Debray?
            - Procuro o Sr. Conde de Monte-Cristo - respondeu o jovem.
            - Encontrei-o no bulevar ao dirigir-me para aqui. Ia a casa do seu banqueiro; parece que está de abalada - informou Beauchamp.
            - A casa do seu banqueiro?... Mas o seu banqueiro não é o Danglars? - perguntou Château-Renaud a Debray.
            - Creio que sim - respondeu o secretário particular com uma leve perturbação. - Mas o Sr. de Monte-Cristo não é o único que falta. Também não veio o Morrel.  
            - O Morrel conhecia-os? - perguntou Château-Renaud.
            - Creio que fora apresentado apenas à Sra de Villefort.
            - Não interessa, devia ter vindo - disse Debray. - De que falará esta noite? Este funeral é a notícia do dia... Mas calem-se que vem aí o Sr. Ministro da Justiça e dos Cultos, que vai se julgar obrigado a fazer o seu pequeno discurso ao primo lacrimoso
            E os três rapazes aproximaram-se da porta para ouvir o pequeno discurso do Sr. Ministro da Justiça e dos Cultos. Beauchamp dissera a verdade: quando se dirigia para casa de Villefort encontrara Monte-Cristo, que, pela sua parte, se dirigia para o palácio de Danglars, na rua da Chaussée-d'Antin.
            O baqueiro vira da sua janela a carruagem do conde entrar no pátio e viera ao seu encontro com uma expressão triste, mas afável.
            - Então, conde - disse, estendendo a mão a Monte-Cristo -, vem apresentar-me as suas condolências? Na verdade, a infelicidade persegue a minha casa, e de tal modo que quando o vi chegar perguntava a mim mesmo se não desejara a desgraça dos pobres Morcerfs, o que justificaria o provérbio: “Quem, mal quer, mal lhe acontece." Pois dou-lhe a minha palavra de honra de que não desejei mal ao Morcerf. Era talvez um bocado orgulhoso para um homem que viera do nada como eu e que como eu devia tudo a si mesmo, mas cada um tem os seus defeitos. Acautele-se, conde! Olhe que as pessoas da nossa geração!... Mas, desculpe, o senhor não é da nossa geração, é ainda um rapaz... As pessoas da nossa geração não são felizes este ano. Prova-o o nosso puritano procurador régio, prova-o Villefort, que acaba de perder também a filha. Portanto, recapitulando: Villefort, como dizíamos, perde toda a família de uma forma estranha; Morcerf, desonrado, suicida-se; eu sou coberto de ridículo por esse celerado do Benedetto, e ainda por cima...
            - Ainda por cima, o quê? - perguntou Monte-Cristo.
            - Então ainda não sabe?
            - A que nova desgraça se refere?
            - A minha filha...
            - Mademoiselle Danglars?
            - Eugénie deixou-nos.
            - Oh, meu Deus, que diz o senhor?!
            - A verdade, meu caro conde. Meu Deus, como o senhor é feliz por não ter mulher nem filhos!
            - Acha?
            - Ah, meu Deus!
            - E diz que Mademoiselle Danglars...
            - Não pôde suportar a afronta que nos fez esse miserável e pediu-me licença para ir viajar.
            - E partiu?
            - A noite passada.
            - Com a Sra Danglars?
            - Não, com uma parenta... Mas nem por isso a perdemos menos, a querida Eugénie, pois duvido que, com o caracter que lhe conheço, consinta alguma vez em regressar a França! 
            - Enfim, meu caro barão - disse Monte-Cristo –, desgostos de família, desgostos que seriam pungentes para um pobre diabo cuja filha fosse toda a sua fortuna, mas suportáveis para um milionário. Por mais que os filósofos preguem o contrário, os homens práticos os desmentirão sempre a tal respeito: o dinheiro consola de muitas coisas. E o senhor se consolará mais depressa do que qualquer outro, se admitir a virtude desse bálsamo soberano, porque o senhor é o rei da finança, o ponto de intersecção de todos os poderes!
            Danglars olhou de soslaio para o conde, a fim de ver se zombava ou falava a sério.
            - Sim, se de fato a fortuna consola, eu devo estar consolado: sou rico...
            - Tão rico, meu caro barão, que a sua fortuna se assemelha às Pirâmides: quisse essem demoli-las, e não ousariam; ousassem, e não o conseguiriam...
            Danglars sorriu da confiante bonomia do conde.
            - Isso recorda-me - disse - que quando o senhor entrou estava passando cinco ordenzinhas. Já tinha assinado duas; me dá licença que passe as outras três?
            - Com certeza, meu caro barão, com certeza.
            Seguiu-se um instante de silêncio durante o qual se ouviu ranger a pena do banqueiro, enquanto Monte-Cristo observava as molduras douradas do teto.
            - Ordens sobre Espanha, sobre o Haiti ou sobre Nápoles? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não. - respondeu Danglars, rindo presunçosamente - Ordens ao portador, sobre o Banco de França. Veja, Sr. Conde - acrescentou. - o senhor, que é o imperador da finança, tal como eu sou o rei, já viu muitos pedaços de papel deste tamanho valerem cada um deles um milhão?
            Monte-Cristo tomou na mão, como que para os pesar, os cinco pedaços de papel que Danglars lhe estendia orgulhosamente e leu:
            Praza ao Sr. Governador do Banco mandar pagar à minha ordem e sobre os fundos depositados por mim a quantia de um milhão, valor em conta. - Barão Danglars
            - Um, dois, três, quatro, cinco - contou Monte-Cristo. - Cinco milhões! Apre, que desembaraço, Sr. Creso!
            - Aqui tem como trato dos negócios - declarou Danglars
            - É maravilhoso, sobretudo se, como, não duvido, essa importância for paga em numerário.
            - Será-  - perguntou Danglars.
            - É bom ter semelhante crédito. Na verdade, só na França se vêem coisas assim: cinco pedaços de papel valem cinco milhões. Apetece ver para crer.
            - Duvida?
            - Não.
            - Diz isso num tom... Olhe, tenha esse prazer: leve o meu tesoureiro ao banco e o verá sair com ordens sobre o Tesouro da mesma importância.
            - Não - disse Monte-Cristo, dobrando as cinco ordens. - Assim, não o caso é deveras curioso e farei eu próprio a  experiência. O meu crédito sobre o senhor era de seis milhões; levantei novecentos mil francos, deve-me cinco milhões e cem mil francos. Fico com os seus cinco pedaços de papel, que para considerar válidos me basta estarem assinados por si, e aqui tem um recibo total de seis milhões, que regulariza a
nossa conta. Passei-o antecipadamente porque devo confessar-lhe que tenho muita necessidade de dinheiro hoje.
            E com uma das mãos Monte-Cristo meteu as cinco ordens na algibeira, enquanto com a outra estendia o recibo ao banqueiro. Um raio que tivesse caído aos pés de Danglars não o teria aterrado mais.
            - O quê... o quê? - balbuciou. - O Sr. Conde leva esse dinheiro? Mas, perdão, perdão, é dinheiro que devo aos Hospícios, um depósito, e prometi pagá-lo esta manhã...
            - Bom, isso é diferente - disse Monte-Cristo. - Não considero obrigatório receber precisamente nestas cinco ordens; pague-me em outros valores. Peguei estes apenas por curiosidade, a fim de poder dizer a todas as pessoas que, sem qualquer aviso, sem me pedir cinco minutos de espera, a casa Danglars pagara-me cinco milhões em numerário! Seria notável! Mas aqui tem os seus valores: repito-lhe, dê-me outros.
            E estendia os cinco documentos a Danglars, que, lívido, estendeu primeiro a mão para os varões do cubículo do cofre, tal como um abutre estende as garras para defender a carne que lhe querem tirar.
            De súbito reconsiderou, fez um esforço violento e conteve-se. Depois sorriu, suavizaram-se-lhe pouco a pouco os traços do rosto transtornado.
            - De fato, o seu recibo é de dinheiro - observou.
            - Evidentemente, meu Deus! E se o senhor estivesse em Roma, a casa Thomson & French, perante um recibo meu, não poria mais dificuldade em pagar-lhe do que o senhor mesmo pôs.
            - Perdão, Sr. Conde, perdão.
            - Posso portanto guardar este dinheiro?
            - Pode - respondeu Danglars, limpando o suor que lhe perlava a raiz dos cabelos. - Guarde-o.
            Monte-Cristo meteu as cinco ordens de pagamento na algibeira com essa intraduzível expressão fisionômica que quer dizer “Demônio, veja lá, se se arrependeu, ainda está a tempo!..."
            - Não, não - disse Danglars. - Decididamente, guarde as minhas assinaturas. Mas, como sabe, ninguém é mais formalista do que um financeiro. Destinava esse dinheiro aos hospícios e julgaria roubá-los se lhes não desse precisamente esse, como se um escudo não valesse outro. Desculpe!
            E desatou a rir ruidosamente, mas de nervoso.
            - Desculpo e embolso - respondeu graciosamente Monte-Cristo.
            E guardou as ordens na carteira.
            - Mas não há mais uma verba de cem mil francos? - observou Danglars.
            - Uma bagatela! - perguntou Monte-Cristo. - O ágio deve ascender mais ou menos a essa importância. Guarde-a e ficaremos quites.
            - Conde, o senhor fala sério? - perguntou Danglars.
            - Nunca brinco com os banqueiros - replicou Monte-Cristo com uma seriedade que raiava a impertinência. E encaminhou-se para a porta precisamente no momento em que o criado anunciava:
            - O Sr. de Boville, recebedor-geral dos Hospícios. 
            - Demônio, parece que cheguei a tempo de beneficiar das suas assinaturas! - exclamou Monte-Cristo - Disputam-lhas.
            Danglars empalideceu segunda vez e apressou-se a despedir-se do conde.
            Monte-Cristo trocou um cumprimento cerimonioso com o Sr. de Boville, que se encontrava de pé na sala de espera e que, depois dele sair, foi imediatamente introduzido no gabinete do Sr. Danglars.
            No rosto grave do conde brilhou um sorriso efêmero perante o aspecto da pasta que o Sr. Recebedor dos Hospícios trazia na mão. Encontrou à porta a sua carruagem e fez-se conduzir imediatamente ao banco.
            Entretanto, Danglars dominava o seu nervosismo e vinha ao encontro do recebedor-geral. Desnecessário dizer que o sorriso e a cortesia lhe estavam estereotipados nos lábios.
            - Bom dia, meu caro credor, pois apostaria que é ao credor que devo esta visita.
            - Adivinhou, Sr. Barão - respondeu o Sr. de Boville. - Os Hospícios apresentam-lhe na minha pessoa. As viúvas e os órfãos vêm pelas minhas mãos pedir-lhe uma esmola de cinco milhões.
            - E ainda dizem que os órfãos são dignos de lástima! -  exclamou Danglars, prolongando o gracejo. - Pobres crianças!
            - Pois aqui estou em seu nome - insistiu o Sr. de Boville. - Decerto recebeu a minha carta de ontem?
            - Recebi.
            - Aqui está o meu recibo.
            - Meu caro Sr. de Boville - disse Danglars –, as suas viúvas e os seus órfãos terão, se o senhor concordar, a bondade de esperar vinte e quatro horas, pois o Sr. de Monte-Cristo, que viu sair daqui... Viu-o, não é verdade?
            - Vi, e depois?
            - Depois... o Sr. de Monte-Cristo levou-me os seus cinco milhões!
            - Como assim?...
            - O conde tinha um crédito ilimitado sobre mim, crédito aberto pela casa Thomson & French, de Roma, e veio pedir-me cinco milhões de uma assentada. Dei-lhe uma ordem de pagamento sobre o Banco de França, onde estão depositados os meus fundos, e como o senhor deve compreender, receio que, retirando das mãos do Sr. Governador dez milhões no mesmo dia, isso lhe pareça muito estranho. Em dois dias - acrescentou Danglars, sorrindo - o caso é diferente.
            - Homessa! - exclamou o Sr. de Boville no tom da mais completa incredulidade. - O senhor entregou cinco milhões a esse cavalheiro que saiu há bocadinho e que ao sair me cumprimentou como se o conhecesse?...
            - Talvez ele o conheça sem que o senhor o conheça. O Sr. de Monte-Cristo conhece todo mundo.
            - Cinco milhões!
            - Aqui está o seu recibo. Faca como S. Tom‚: veja e apalpe O Sr. de Boville pegou no papel que Danglars lhe apresentava e leu: 
            Recebi do Sr. Barão a quantia de cinco milhões e cem mil francos que lhe serão reembolsados quando quiser pela casa Thomson & French de Roma.
            - É verdade! - exclamou o recebedor-geral.
            - Conhece a casa Thomson & French?
            - Conheço - respondeu o Sr. de Boville. - Fiz uma vez um negócio de duzentos mil francos com ela, mas depois disso nunca mais ouvi falar a seu respeito.
            - É uma das melhores casas da Europa - declarou Danglars, atirando negligentemente para cima da mesa o recibo que  acabava de recuperar das mãos do Sr. de Boville.
            - E ele tinha assim, sem mais nem menos, um crédito de cinco milhões sobre o senhor? Caramba, deve ser algum nababo, esse conde de Monte-Cristo!
            - O que é, não sei; mas tinha três créditos ilimitados: um sobre mim, um sobre Rothschild e um sobre Laffitte. E como vê - acrescentou negligentemente Danglars - deu-me a preferência, deixando-me cem mil francos para o ágio.
            O Sr. de Boville deu todos os indícios da maior admiração.
            - Tenho de ir visitá-lo e de obter qualquer legado pio para nós - declarou. - Oh, é como se já o tivesse! Só as suas esmolas ascendem a mais de vinte mil francos por mês.
            - Excelente! Aliás, lhe citarei o exemplo da Sra de Morcerf e do filho.
            - Que exemplo?
            - Doaram toda a sua fortuna aos Hospícios.
            - Que fortuna?
            - A sua fortuna, a do general de Morcerf; do defunto
            - E a que propósito?
            - A propósito de não quererem bens tão miseravelmente adquiridos.
            - De que vivem então?
            - A mãe retirou-se para a província e o filho alistou-se.
            - Ora vejam que escrúpulos! - exclamou Danglars.
            - Mandei registrar ontem a escritura de doação.
            - Quanto possuíam?
            - Oh, pouca coisa! Entre um milhão e duzentos mil e um milhão e trezentos mil francos. Mas voltemos aos nossos milhões...
            - Pois sim - respondeu Danglars com a maior naturalidade deste mundo. - Tem portanto urgência desse dinheiro?
            - Claro que tenho; a verificação das nossas caixas é feita amanhã.
            - Amanhã? Porque não disse logo isso? Mas é um século, amanhã! A que horas é a verificação?
            - Às duas horas.
            - Mande buscar o dinheiro ao meio-dia - sugeriu Danglars, com um sorriso.
            O Sr. de Boville não dizia sim, nem não; acenava afirmativamente com a cabeça e agitava a pasta.
            - Oh, tenho uma idéia! - exclamou Danglars. - Faça melhor...
            - Que quer que eu faça?
            - O recibo do Sr. de Monte-Cristo vale dinheiro; apresente-o a Rothschild ou a Laffitte; e o aceitarão imediatamente. 
            - Apesar de ser reembolsável em Roma?
            - Claro. Isso lhe custará apenas um desconto de cinco a seis mil francos.
            O recebedor recuou de um salto
            - Oh, assim não! Prefiro esperar para amanhã O senhor tem cada sugestão!
            - Por um momento julguei... desculpe - disse Danglars com a maior impudência –, julguei que tivesse um deficezinho a cobrir...
            - Oh! - exclamou o recebedor.
            - Já tem acontecido, e nesse caso faz-se um sacrifício...
            - Valha-me Deus, não! - perguntou o Sr. de Boville.
            - Então, amanhã, não é verdade, meu caro recebedor?
            - Sim, amanhã. Mas sem falta.
            - Ora essa! Está brincando comigo? Mande buscar o dinheiro ao meio-dia e o banco estará prevenido.
            - Virei eu próprio.
            - Melhor ainda, pois isso me proporcionará o prazer de ve-lo.
            Apertaram a mão.
            - A propósito - disse o Sr de Boville –, não vai ao funeral da pobre Mademoiselle de Villefort, que encontrei no bulevar?
            - Não - respondeu o banqueiro. - Sinto-me ainda um pouco ridículo depois do caso de Benedetto e não quero dar nas vistas.
            - Ora, ora, deixe-se disso! Que culpa tem o senhor do que aconteceu?
            - Ouça, meu caro recebedor: quando se tem um nome sem mácula como o meu, se é susceptível.
            - Todas as pessoas o lamentam, garanto-lhe, e sobretudo todas as pessoas lamentam a menina sua filha.
            - Pobre Eugénie! - exclamou Danglars com um profundo suspiro. - Sabe que resolveu professar?
            - Não...
            - Pois infelizmente é verdade. No dia seguinte ao que aconteceu, decidiu partir com uma religiosa sua amiga. Foi procurar um convento bastante severo na  Itália ou na Espanha.
            - Oh, isso é terrível!
            E o Sr. de Boville retirou-se depois desta exclamação, apresentando ao pai mil cumprimentos de condolências. Mas ainda mal tinha transposto a porta quando Danglars exclamou, com um gesto enérgico que só compreenderão aqueles que viram representar Roberto Macário por Fréderick.
            E fechando o recibo de Monte-Cristo numa carteirinha, acrescentou:
            - Venha ao meio-dia, que ao meio-dia já estarei longe...
            Em seguida fechou-se à chave, despejou todas as gavetas do cofre, reuniu uns cinquenta mil francos em notas, queimou diversos papéis, pôs outros em evidência e escreveu uma carta, que lacrou e endereçou “à Sra Baronesa Danglars".
            - Esta noite a colocarei pessoalmente no seu toucador - murmurou.
            Depois tirou um passaporte de uma gaveta e disse:
            - Bom, ainda é válido por dois meses... 


Capítulo CV

O Cemitério do Pêre-lachaise


            O Sr. de Boville encontrara de fato o cortejo fúnebre que conduzia Valentine à sua última morada.
            O tempo estava sombrio e enevoado, um vento ainda morno, mas já mortal para as folhas amarelecidas, arrancava-as dos ramos, que ficavam pouco a pouco nus, e as fazia turbilhonar sobre a
multidão imensa que enchia os bulevares.
            O Sr. de Villefort, parisiense da gema, considerava o Cemitério do Pêre-Lachaise o único digno de receber os restos mortais de uma família parisiense. os outros pareciam-lhe cemitérios de aldeia, palácios arrebicados da morte. Só no Pêre-Lachaise um defunto de bons famílias podia ficar bem instalado.
            Como já vimos, comprara a concessão perpétua em que erguera o jazigo, tão rapidamente ocupado por todos os membros da sua primeira família.
            Lia-se na fronteira do mausoleu: famílias Saint-Méran e Villefort. E isto porque tal fora a última vontade da pobre Renée, mãe de Valentine.
            Era portanto para o Pêre-Lachaise que se dirigia o pomposo cortejo saído do Arrabalde Saint-Honoré. Atravessou Paris de ponta a ponta, meteu pelo Arrabalde do Templo e depois pelos bulevares exteriores até  ao cemitério. Mais de cinquenta carruagens particulares seguiam vinte carros fúnebres, e atrás dessas cinquenta carruagens ainda iam mais de quinhentas pessoas a pé.
            Eram quase todas jovens, que a morte de Valentine fulminara como um raio e que, apesar da atmosfera glacial do século e do prosaísmo da época, sofriam a influência poética daquela bela, casta e adorável moça morta na flor da vida.
            À saída de Paris todos viram chegar uma rápida equipagem de quatro cavalos, que se detiveram de súbito retesando os jarretes nervosos como molas de aço: era o Sr. de Monte-Cristo. O conde apeou-se da sua caleça e juntou-se à multidão que seguia a pé o carro funerário.
            Château-Renaud viu-o, desceu imediatamente do seu cupe e se juntou a ele. Beauchamp deixou também o cabriole de praça em que vinha.
            O conde olhava atentamente por todos os interstícios que deixava a multidão; era evidente que procurava alguém Por fim, não se conteve mais e perguntou:
            – Onde está Morrel? Algum dos senhores sabe onde ele está?
            - Já perguntamos isso mesmo a nós próprios na sala mortuária - respondeu Château-Renaud -, precisamente porque nenhum de nós o viu.
            O conde calou-se, mas continuou a olhar à sua volta. Chegaram por fim no cemitério.
            O olhar penetrante de Monte-Cristo examinou num relance todos os renques de teixos e pinheiros e em breve perdeu toda a inquietação: uma sombra deslizara pelas escuras alamedas arborizadas e Monte-Cristo acabava, sem dúvida, de reconhecer quem procurava.
            Todas as pessoas sabem como decorre um funeral naquela magnifica necrópole: grupos de preto espalhados pelas brancas alamedas, o silêncio do céu e da terra perturbado pelo estalar de algum ramo quebrado, de alguma sebe derrubada à volta de uma sepultura; depois, o canto melancólico dos padres, ao qual se junta,  aqui e ali, um soluço escapado de um maciço de flores sob o qual se vê alguma mulher, absorta e de mãos postas.
            A sombra que Monte-Cristo notara atravessou rapidamente o quincãncio disposto atrás do túmulo de Heloísa e Abelardo, veio colocar-se, com os moços de cangalheiro, à frente dos cavalos que puxavam a carreta e do mesmo passo chegou ao local escolhido para a sepultura.
            Todas as pessoas olhavam para qualquer coisa.
            Monte-Cristo só olhava para aquela sombra em que mal tinham reparado aqueles que a rodeavam.
            O conde saiu por duas vezes do seu lugar para ver se as mãos daquele homem não procurariam alguma arma oculta no vestuário.
            Quando o cortejo parou, verificou-se que a sombra era nem mais nem menos do que Morrel, que, com a sua sobrecasaca preta abotoada até  acima, a testa lívida, as faces encovadas e o chapéu amarrotado pelas mãos convulsas, se encostara a uma árvore situada num cabeço que dominava o jazigo, de forma a
não perder nenhum dos pormenores da cerimônia fúnebre que se ia realizar.
            Tudo se passou como de costume. Alguns homens, como sempre os menos impressionados, pronunciaram discursos.  Uns lamentavam aquela morte prematura; outros dissertavam sobre a dor do pai, e alguns, bastante engenhosos, descobriram que por mais de uma vez a jovem solicitara ao Sr de Villefort
compaixão para os culpados sobre a cabeça dos quais ele tinha suspenso o gládio da justiça. Enfim, esgotaram-se as metáforas floridas e os períodos dolorosos, interpretando de todas as maneiras as estrofes de Malherbe a Dupérier
            Monte-Cristo não escutava nem via nada, ou antes, só via Morrel, cuja calma e imobilidade constituíam um espetáculo assustador. A única pessoa que podia ler o que se passava no fundo do coração do jovem oficial.
            - Ali está Morrel - disse de súbito Beauchamp a Debray. - Onde diabo terá se metido?
            E fizeram-no notar a Château-Renaud.
            - Como está pálido - observou este, estremecendo.
            - Deve ter frio - replicou Debray.
            - Não - disse lentamente Château-Renaud. - Creio que está impressionado. Maximilien é um homem muito impressionável.
            - Mas se mal conhecia Mademoiselle de Villefort! - estranhou Debray. - Foi você mesmo quem o disse...
            - É verdade. No entanto, lembro-me de que nesse baile em casa da Sra de Morcerf dançou três vezes com ela. O senhor sabe, conde, aquele baile em que o senhor causou tanta impressão...
            - Não, não sei - respondeu Monte-Cristo, sem sequer saber a quê nem a quem respondia, ocupado como estava a vigiar Morrel, cujas faces se animavam como acontece àqueles que comprimem ou retêm a respiração.
            - Acabaram os discursos. Adeus, meus senhores - disse bruscamente o conde.
            E deu o sinal de partida, desaparecendo sem que se soubesse por onde se esgueirara.
            Terminada a cerimônia fúnebre, os presentes retomaram o caminho de Paris.
            Château-Renaud ainda procurou um instante Morrel com a vista; mas enquanto seguira com o olhar o conde, que se afastava, Morrel deixara o seu  lugar e Château-Renaud, depois de procurá-lo em vão, seguira Debray e Beauchamp.
            Monte-Cristo correu para um renque de árvores e, oculto atrás de um grande túmulo, seguia os mais pequenos movimentos de Morrel, que pouco a pouco se aproximara do jazigo abandonado pelos curiosos e depois pelos coveiros. Morrel olhou à sua volta lenta e vagamente. Mas no momento em que o seu olhar abarcava a porção de círculo oposta à sua, Monte-Cristo aproximou-se mais de uma dezena de passos sem
ser visto. O rapaz ajoelhou.
            De pescoço estendido, olhos fixos e dilatados e as pernas dobradas como para se lançar ao primeiro sinal, o conde continuava a aproximar-se de Morrel. Morrel inclinou a fronte até  à pedra, agarrou o gradeamento com ambas as mãos e murmurou:
            - Oh, Valentine!...
            Estas duas palavras repercutiam-se profundamente no coração do conde, que deu mais um passo, bateu no ombro de Morrel e disse:
            - Procurava-o, caro amigo...
            Se esperava uma explosão, censuras, recriminações, Monte-Cristo enganava-se.
            Morrei virou-se para o seu lado e disse com ar calmo:
            - Como vê, rezava.
            O olhar perscrutador do conde percorreu o rapaz dos pés à cabeça.
            Depois deste exame pareceu mais tranquilo.
            - Quer que o leve a Paris? - perguntou.
            - Não, obrigado.
            - Mas, enfim, deseja alguma coisa?
            - Deixe-me rezar.  
            O conde afastou-se sem fazer uma única objeção, mas para ocupar novo posto de observação donde não perdia um único gesto de Morrel, que por fim se levantou, limpou os joelhos deixados brancos pela pedra e tomou o caminho de Paris sem virar uma única vez a cabeça. Desceu lentamente a Rua da Roquette.
            O conde mandou embora a sua carruagem, estacionada no Pêre-Lachaise, e seguiu-o a cem passos. Maximilien atravessou o canal e entrou na Rua Meslay pelos bulevares. Cinco minutos depois de a porta ser fechada por Morrel, abriu-se para Monte-Cristo.
            Julie estava à entrada do jardim a observar com a mais profunda atenção mestre Penelon, que, levando a sua profissão de jardineiro a sério, enxertava de estaca roseiras-de-bengala.
            - Olha o Sr. Conde de Monte-Cristo! - exclamou com a alegria que habitualmente manifestavam todos os membros da família quando Monte-Cristo visitava a Rua Meslay.
            - Maximilien acaba de entrar, não é verdade, minha senhora? - perguntou o conde.
            - Sim, creio que o vi passar - confirmou a jovem senhora. - Mas, por favor, chame Emmanuel. 
            - Perdão, minha senhora, mas preciso subir imediatamente aos aposentos de Maximilien - respondeu Monte-Cristo -Tenho de lhe dizer uma coisa da mais alta importância.
            - Então vá - disse ela, acompanhando-o com o seu sorriso encantador até  o conde desaparecer na escada.
            Monte-Cristo depressa transpôs os dois andares que separavam o térreo dos aposentos de Maximilien. Chegado ao patamar, escutou: não se ouvia nenhum ruído
            Como na maioria das casas antigas habitadas por um único locatário, as divisões que deitavam para o patamar eram fechadas apenas por uma porta envidraçada.
            Simplesmente, naquela porta envidraçada não havia nenhuma chave. Maximilien fechara-se por dentro e era impossível ver além da porta, pois um cortinado de seda vermelha cobria os vidros. A ansiedade do conde manifestava-se por um vivo rubor, sintoma de emoção pouco habitual naquele homem impassível.
            - Que fazer?... - murmurou.
            Refletiu um instante.
            - Tocar? - prosseguiu. - Oh, não! Muitas vezes o toque de uma campainha, isto é, de uma visita, acelera a resolução daqueles que se encontram na situação em que Maximilien se deve encontrar neste momento, e então ao toque da campainha responde outro ruído...
            Monte-Cristo estremeceu dos pés à cabeça e, como em si a decisão tinha a rapidez do relâmpago, deu uma cotovelada num dos vidros da porta, que voou em estilhaços. Depois, levantou o cortinado e viu Morrel, que, diante da sua escrivaninha, com uma pena na mão, acabava de saltar na cadeira, surpreendido pelo barulho do vidro ao quebrar-se.
            - Não é nada - disse o conde. - Mil perdões, meu caro amigo! Escorreguei e bati com o cotovelo no vidro. Agora, uma vez que se partiu, aproveito para entrar. Não se incomode, não se incomode!
            E, metendo o braço pelo vidro quebrado, abriu a porta.
            Morrel levantou-se imediatamente, contrariado, e veio ao encontro de Monte-Cristo, menos para o receber do que para lhe barrar a passagem.
            - A culpa é dos seus criados - observou Monte-Cristo, esfregando o cotovelo. - Os seus soalhos brilham como espelhos...
            - Feriu-se, senhor? - perguntou friamente Morrel.
            - Não sei. Mas que fazia o senhor aqui? Escrevia?
            - Eu?
            - Tem os dedos sujos de tinta...
            - É verdade, escrevia - respondeu Morrel. - Acontece-me, às vezes, por mais militar que seja.
            Monte-Cristo deu alguns passos na sala. Maximilien viu-se abrigado a deixá-lo passar; mas seguiu-o.
            - Escrevia? - repetiu Monte-Cristo, com um olhar que se impunha pela sua fixidez.
            - Já tive a honra de lhe dizer que sim - respondeu Morrel.
            O conde deitou um olhar à sua volta. 
            - Com as suas pistolas ao pé do tinteiro! - exclamou, indicando a Morrel as armas pousadas em cima da escrivaninha.
            - Vou viajar - respondeu Maximilien.
            - Meu amigo!... - disse Monte-Cristo, numa voz de uma doçura infinita.
            - Senhor!
            - Meu amigo, meu caro Maximilien, nada de soluções extremas, suplico-lhe!
            - Eu, resoluções extremas? - perguntou Morrel, encolhendo os ombros. - E em quê, peço-lhe que me diga, uma viagem é uma resolução extrema?
            - Maximilien - disse Monte-Cristo -, tiremos cada um pela sua parte a máscara que usamos. Maximilien, com a sua calma forçada não me engana mais do que eu o engano com a minha frívola solicitude. Compreende perfeitamente, não é verdade, que para fazer o que fiz, para partir vidros e violar a intimidade do quarto de um amigo, compreende, repito, que para fazer tudo isto era necessário que tivesse uma preocupação real, ou antes uma convicção terrível. Morrel, o senhor quer se matar!
            - Onde arranjou essas idéias, Sr. Conde! - perguntou Morrel, estremecendo.
            - Repito-lhe que quer se matar! - continuou o conde no mesmo tom de voz. - E aqui está a prova.
            E aproximando-se da escrivaninha, levantou a folha de papel branco que o jovem colocara sobre uma carta começada e pegou na carta.
            Morrel correu para ele para a arrancar das mãos.
            Mas Monte-Cristo, que previra esse gesto, impediu-o agarrando Maximilien pelo pulso e detendo-o como uma corrente de aço detém uma mola no meio da sua evolução.
            - Bem vê que se queria matar, Morrel! está aqui escrito! - exclamou o conde.
            - E depois? - perguntou Morrel, passando sem transição de uma aparência calma a uma expressão violenta. - E depois? Se assim fosse, se decidisse virar contra mim o cano de uma dessas pistolas, quem me impediria? Quem teria coragem de me impedir? Quando disser. “Todas as minhas esperanças estão arruinadas, o meu coração desfeito, a minha vida morta, já só existe luto e nojo à minha volta, a terra transformou-se em cinza, toda a voz humana me dilacera"; quando disser: “‚ um ato de piedade deixar-me morrer, porque se não me deixar morrer perderei a razão, enlouquecerei"; vamos, senhor, quando disser isto,
quando vir que o digo com as angústias e as lágrimas do meu coração, ainda me responder : “Não tem razão"? Ainda me impedirá de não ser mais infeliz? Diga, senhor, diga: terá essa coragem?
            - Sim, Morrel - respondeu Monte-Cristo numa voz cuja calma contrastava estranhamente com a exaltação do rapaz. - Sim, terei.
            - O senhor?! - gritou Morrel com crescente expressão de cólera e censura. - O senhor, que me iludiu com uma esperança absurda; o senhor, que me deteve, embalou e adormeceu com vãs promessas, quando eu poderia, por meio de qualquer denúncia, de qualquer resolução extrema, salvá-la ou pelo menos vê-la
morrer nos meus braços; o senhor, que finge possuir todos os recursos da inteligência, todos os poderes da matéria; o senhor, que desempenha, ou antes simula desempenhar o papel da Providência e que não teve sequer o poder de dar um contraveneno a uma moça envenenada! Na verdade, senhor, me inspiraria compaixão se me não inspirasse horror!
            - Morrel...
            - Disse-me que tirasse a máscara; pois bem, faça-se a sua vontade, tiro-a Sim, quando me seguiu no cemitério ainda lhe respondi porque o meu coração é bom, e quando entrou deixei-o vir até  aqui. Mas, uma vez que o senhor abusa; uma vez que me vem desafiar até  neste quarto para onde me retirara como se
fosse a minha sepultura; uma vez que me traz uma nova tortura (a mim, que julgava tê-las experimentado todas) conde de Monte-Cristo, meu pretenso benfeitor; conde de Monte-Cristo, o salvador universal, fique satisfeito, veja morrer o seu amigo!
            E Morrel, rindo como um louco, correu pela segunda vez para as pistolas.
            Pálido como um espectro, mas com os olhos despedindo relâmpagos, Monte-Cristo estendeu a mão sobre as armas e gritou ao insensato:
            - E eu repito-lhe que não se matará!
            - Veja se me impede! - replicou Morrel, num novo impulso, que, como o primeiro, se quebrou contra o braço de aço do conde.
            - Sim, o impedirei!
            - Mas quem é afinal o senhor para se arrogar esse direito tirânico sobre criaturas livres e pensantes?! - gritou Maximilien.
            - Quem sou? - repetiu Monte-Cristo - Ouça, sou o único homem no mundo que tenho o direito de lhe dizer: “Morrel, não quero que o filho do teu pai morra hoje!"
            E Monte-Cristo, majestoso, transfigurado, sublime, avançou de braços cruzados para o jovem palpitante, que, dominado, mal-grado seu, pela quase divindade daquele homem, recuou um passo.
            - Porque fala do meu pai? - balbuciou. - Porque confundir a memória do meu pai com o que me acontece hoje?
            - Porque eu sou aquele que já salvou a vida ao teu pai num dia em que se queria matar como te queres matar hoje; porque sou o homem que mandei a bolsa à tua jovem irmã e o Pharaon ao velho Morrel; porque sou Edmond Dantés, o homem que te fez saltar, em criança, nos joelhos!
            Morrel deu mais um passo atrás, cambaleando, sufocado, arquejante, esmagado. Depois as forças abandonaram-no e, com um grande grito, caiu de joelhos aos pés de Monte-Cristo.
            De repente, naquela natureza admirável operou-se uma reviravolta regeneradora súbita e completa. Levantou-se, saltou para fora do quarto e precipitou-se para a escada, gritando a plenos pulmões:
            - Julie! Julie! Emmanuel! Emmanuel!
            Monte-Cristo quis segui-lo, mas Maximilien mais depressa se deixaria matar do que largaria o fecho da porta que fechara na cara do conde. Aos gritos de Maximilien, Julie, Emmanuel, Penelon e alguns criados acorreram assustados. Morrel pegou-lhes nas mãos, abriu a porta e gritou numa voz estrangulada pelos soluços:
            - De joelhos! De joelhos! É o benfeitor, é o salvador do nosso pai, é... 
            Ia a dizer: “É Edmond Dantés!", mas o conde deteve-o agarrando-lhe no braço.
            Julie lançou-se sobre a mão do conde; Emmanuel beijou-o como um deus tutelar; Morrel caiu pela segunda vez de joelhos e bateu com a testa no chão. Então o homem de bronze sentiu o coração dilatar-se no
peito, um jato de chama devoradora brotou-lhe da garganta e dos olhos, inclinou a cabeça e chorou!
            Durante alguns instantes ouviu-se no quarto um concerto de lágrimas e suspiros sublimes, que decerto pareceu harmonioso aos anjos mais queridos do Senhor.
            Mal se recompôs da profunda emoção que acabava de experimentar, Julie correu para fora do quarto, desceu um andar, correu à sala com alegria infantil e retirou o globo de cristal que protegia a bolsa dada pelo desconhecido das Alamedas de Meilhan. Entretanto, Emmanuel dizia ao conde, em voz entrecortada:
            - Oh, senhor conde, como é que, vendo-nos falar tantas vezes do nosso benfeitor desconhecido, como é que vendo-nos rodear uma recordação de tanto reconhecimento e adoração, como é que esperou até  hoje para se dar a conhecer?! Foi uma crueldade para conosco e quase me atrevo a dizer, Sr. Conde, também
para consigo.
            - Ouça, meu amigo - respondeu o conde - , posso tratá-lo assim porque, sem o saber, o senhor é meu amigo há onze anos: a descoberta deste segredo foi provocada por um grande acontecimento que deve ignorar. Deus é testemunha de que desejaria guardá-lo toda a vida no fundo da minha alma, mas o seu irmão Maximilien arrancou-lhe por meio de violências de que, estou certo, já se arrependeu.
            Depois, vendo que Maximilien se atirara de lado para cima de uma poltrona, embora permanecendo de joelhos, acrescentou baixinho, apertando significativamente a mão de Emmanuel:
            - Vele por ele...
            - Porquê? - perguntou o rapaz, atônito.
            - Não lhe posso dizer, mas vele por ele.
            Emmanuel percorreu o quarto com um olhar circular e viu as pistolas de Morrel.
            Os seus olhos cravaram-se assustados nas armas, que indicou a Monte-Cristo, levantando lentamente o dedo à sua altura. Monte-Cristo inclinou a cabeça. Emmanuel fez um movimento na direção das pistolas.
            - Deixe-as - disse Monte-Cristo.
            Depois aproximou-se de Morrel e estendeu-lhe a mão, os acontecimentos tumultuosos que pouco antes tinham agitado o coração do jovem haviam cedido o lugar a um entorpecimento profundo.
            Julie voltou a subir, segurava na mão a bolsa de seda e duas lágrimas brilhantes e felizes corriam-lhe pelas faces como duas gotas de orvalho matinal.
            - Aqui está a relíquia - disse. - Não julgue que me é menos querida desde que o salvador nos foi revelado. 
            - Minha filha - respondeu Monte-Cristo, corando -, permita-me que recupere essa bolsa. Desde que conhecem a minha cara, só quero ser recordado pela afeição que lhes peço me concedam.
            - Oh, não não, suplico-lhe! - perguntou Julie apertando a bolsa ao coração. - Porque um dia poderá  deixar-nos; porque infelizmente um dia nos deixará, não é verdade ?
            - Acertou em cheio, minha senhora - respondeu Monte-Cristo, sorrindo. - Dentro de oito dias deixarei este país onde tantas pessoas que mereciam a vingança do céu viviam felizes, enquanto o meu pai morria de fome e dor.
            Ao anunciar a sua próxima partida, Monte-Cristo tinha os olhos fixos em Morrel e notou que as palavras “deixarei este país" não tinham tirado Morrel da sua letargia. Compreendeu que devia travar uma derradeira luta com a dor do amigo e, pegando nas mãos de Julie e Emmanuel, que reuniu e apertou nas suas, disse-lhes com a suave autoridade de um pai:
            - Meus bons amigos, deixem-me só, peço-lhes, com Maximilien.
            Era um meio de Juile levar dali a relíquia preciosa de que Monte-Cristo se esquecia de voltar a falar.
            Puxou vivamente o marido, dizendo:
            - Deixemo-los.
            O conde ficou com Morrel, que continuava imóvel como uma estátua.
            - Então, volta a ser finalmente um homem, Maximilien? - perguntou o conde, tocando-lhe no ombro com um dedo.
            - Volto, porque recomeço a sofrer.
            O conde franziu a testa; parecia entregue a uma sombria hesitação.
            - Maximilien! Maximilien! As idéias que te absorvem são indignas de um cristão.
            - Oh, tranquilize-se, meu amigo - respondeu Morrel erguendo a cabeça e mostrando ao conde um sorriso cheio de inefável tristeza –, já não serei eu que procurarei a morte.
            - Portanto, nada de armas, nada de desespero - disse Monte-Cristo.
            - Não, porque tenho melhor para tratar da minha dor do que o cano de uma pistola ou a ponta de uma navalha.
            - Pobre louco!... Tem o quê?
            - Tenho a minha dor. Ela própria me matará.
            - Amigo - atalhou Monte-Cristo com uma melancolia igual à dele -, escute-me. Um dia, num momento de desespero igual ao seu, porque implicava uma resolução idêntica, quis-me matar como você; outro dia, teu pai, igualmente desesperado, quis-se matar também Se alguém dissesse ao teu pai, no momento em que
dirigia o cano da pistola para a testa; se me dissessem a mim, no momento em que afastava da minha cama o pão do prisioneiro, em que não tocava havia três dias; se nos dissessem a ambos, enfim, nesse momento supremo: “Viva! Um dia virá em que será feliz e abençoará a vida"; fosse de onde fosse que viesse essa
voz, a acolheríamos com o sorriso da dúvida ou com a angústia da incredulidade, e no entanto quantas vezes, ao beijar-te, o teu pai não terá abençoado a vida, quantas vezes até ....
            - Ah, mas o senhor só perdera a liberdade e o meu pai só perdera a fortuna! - exclamou Morrel, interrompendo o conde. - Eu perdi Valentine! 
            - Olha para mim, Morrel - pediu Monte-Cristo com a solenidade que em certas ocasiões o tomava tão grande e persuasivo. - Olha para mim: não tenho lágrimas nos olhos, nem febre nas veias, nem pulsações fúnebres no coração; contudo, te vejo sofrer, Maximilien, a ti que amo como amaria um filho! Pois bem, isto não te diz, Morrel, que a dor é como a vida e que há sempre qualquer coisa desconhecida para lá dela? Ora se te peço, se te ordeno que viva, Morrel, é na convicção de que um dia me agradecerá ter-te conservado vivo.
            - Meu Deus! - exclamou o rapaz. - Meu Deus, que quer dizer com isso, conde? Cautela! Talvez o senhor nunca tenha amado...
            - Criança! - respondeu o conde.
            - De amor percebo eu - prosseguiu Morrel. - Como sabe, sou soldado desde que sou homem; cheguei aos vinte e nove anos sem amar, pois nenhum dos sentimentos que experimentei até  então merecia o nome de amor. Aos vinte e nove anos conheci Valentine e durante cerca de dois anos amei-a, durante cerca de dois anos pude avaliar as virtudes da filha e da mulher inscritas pela própria mão do Senhor naquele coração aberto para mim como um livro.
            "Conde, havia para mim, com Valentine, uma felicidade infinita, imensa, desconhecida, uma felicidade demasiado grande, demasiado completa, demasiado divina para este mundo; uma vez que este mundo não me deu, conde, devo dizer-lhe que sem Valentine não existe para mim na Terra mais do que desespero e desolação.
            - Disse-te que tivesses esperança, Morrel - insistiu o conde.
            - Acautele-se então, insisto também - perguntou Morrel.  - Porque o senhor tenta persuadir-me, e se me persuadir me fará  perder a razão, porque me fará crer que posso tornar a ver Valentine.
            O conde sorriu.
            - Meu amigo, meu pai! - gritou Morrel, exaltado. - Acautele-se, repito-lhe pela terceira vez, porque o ascendente que tem sobre mim assusta-me; tome cautela com o sentido das suas palavras, pois, como vê, os meus olhos reanimam-se e o meu coração reacende-se e renasce; acautele-se, porque me faria acreditar em coisas sobrenaturais... Obedeceria se me mandasse levantar a lousa do sepulcro da filha de Jairo; caminharia sobre as águas como o apóstolo se o senhor me fizesse sinal com a mão para caminhar sobre as  águas...   Acautele-se, porque obedecerei.
            - Tenha esperança, meu amigo - repetiu o conde.
            - Ah! - exclamou Morrel, voltando a cair de toda a altura da sua exaltação no abismo da sua tristeza. - Ah, o senhor brinca comigo! Procede como essas boas mães, ou antes como essas mães egoístas que acalmam com palavras melífluas a dor dos filhos porque os seus gritos as incomodam. Não, meu amigo, não tinha razão em dizer-lhe que se acautelasse; não, não tema nada: sepultarei a minha dor com tanto cuidado no mais intimo do meu peito, a tornarei tão profunda, tão secreta, que o senhor nem sequer terá de se incomodar a lamentá-la. Adeus, meu amigo, adeus!
            - Pelo contrário - perguntou o conde –, a partir deste momento, Maximilien, viverá junto de mim e comigo, não me deixará mais, e dentro de oito dias a França ficará para trás de nós.
            - E continua a dizer-me que tenha esperança?
            - Digo-te que tenha esperança porque conheço um meio de te curar. 
            - Conde, o senhor entristece-me ainda mais, se é possível. O senhor não vê mais do que uma dor vulgar no desgosto que me feriu e julga confortar-me com um meio também vulgar, a viagem.
            E Morrel abanou a cabeça com desdenhosa incredulidade.
            - Que quer que te diga? - perguntou Monte-Cristo. - Tenho fé nas minhas promessas, deixa-me experimentar.
            - Conde, o senhor prolonga apenas a minha agonia, mais nada.
            - Quer dizer, é tão fraco coração que não tem coragem de dar ao teu amigo alguns dias para a experiência que ele tenta! Vejamos, sabe porventura de que é capaz o conde de Monte-Cristo? Sabe que governa muitas forças terrestres? Sabe que possui suficiente fé em Deus para obter milagres. Daquele que disse que com a fé o homem podia mover montanhas? Pois bem, esse milagre em que tenho esperança espera-o ou então...
            - Ou então... - repetiu Morrel.
            - Ou então acautele-se, Morrel, ou o chamarei de ingrato.
            - Tenha piedade de mim, conde.
            - Tenho tanta piedade de ti, Maximilien, ouça, tanta piedade que, se não te curar dentro de um mês, dia por dia, hora por hora... guarde bem as minhas palavras, Morrel, te colocarei eu próprio diante dessas pistolas carregadas e de uma taça do mais seguro veneno italiano, de um veneno mais seguro e mais rápido, acredita, do que aquele que matou Valentine.
            - Promete-me?
            - Prometo, porque sou um homem; porque também, como te disse, quis morrer, e até  muitas vezes, depois de a desventura ter deixado de me perseguir, sonhei com as delícias do sono eterno.
            - Oh, é verdade que me promete isso, conde?! - gritou Maximilien, inebriado.
            - Não te prometo, te juro - perguntou Monte-Cristo, estendendo a mão.
            - Dentro de um mês, pela sua honra, se não estiver confortado, me deixará a liberdade de dispor da minha vida, e seja o que for que faça não me chamará ingrato?
            - Dentro de um mês, dia por dia, Maximilien; dentro de um mês, hora por hora, e a data é sagrada, Maximilien. Não sei se pensou nisto, mas estamos hoje a 5 de Setembro. Faz hoje dez anos que salvei o teu pai, que queria morrer. Morrel pegou nas mãos do conde e beijou-as. O conde não se opôs, como se achasse que essa adoração lhe era devida.
            - Dentro de um mês - continuou Monte-Cristo - terá na mesa diante da qual estaremos sentados um e outro boas armas e uma morte suave; mas, em contrapartida, promete-me esperar até lá e viver?
            - Oh, também eu lhe juro! - exclamou Morrel.
            Monte-Cristo atraiu o jovem ao coração e abraçou-o durante muito tempo.
            - E agora - disse-lhe –, a partir de hoje vai viver comigo. Ocupará os aposentos de Haydée e assim ao menos a minha filha será substituída pelo meu filho.
            - Haydée! - exclamou Morrel. - Que aconteceu a Haydée?
            - Partiu esta noite.
            - Para deixá-lo? 
            - Para me esperar... Prepara-se, pois, para ir ter comigo à Rua dos Campos Elísios e faça-me sair daqui sem que me vejam.
            Maximilien, baixou a cabeça e obedeceu, como uma criança ou como um apóstolo.


Capítulo CVI


A partilha

            No prédio da Rua Saint-Germain-des-Prés que Albert de Morcerf escolhera para a mãe e para si, o primeiro andar, constituído por um apartamentozinho completo, estava alugado a uma personagem muito misteriosa.
            Essa personagem era um homem a quem nem mesmo o porteiro jamais vira o rosto, quer quando entrava, quer quando saía. Porque no Inverno metia o queixo numa dessas gravatas encarnadas como as dos cocheiros das casas ricas que esperam os patrões à saída dos espetáculos e no Verão assoava-se
sempre precisamente no momento em que poderia ser visto ao passar diante do cubículo. Desnecessário  dizer que, contrariamente a todos os usos e costumes, esse habitante do prédio não era espiado por ninguém e que o boato que corria de que o seu incógnito ocultava um indivíduo muito altamente colocado e de braço comprido bastava para que respeitassem as suas misteriosas aparições.
            As suas visitas eram habitualmente fixas, embora por vezes fossem antecipadas ou adiadas; mas quase sempre, de Inverno ou de Verão, era por volta das quatro horas que tomava posse do seu apartamento, no qual nunca passava a noite.
            Às três e meia, no Inverno, o fogo era aceso pela criada discreta que cuidava do apartamentozinho; às três e meia, no Verão, as janelas eram abertas pela mesma criada. Às quatro horas, como dissemos, chegava a misteriosa personagem.
            Vinte minutos depois dele, parava uma carruagem diante do prédio; uma mulher vestida de preto ou de azul-escuro, mas sempre envolta num grande vé, apeava-se, passava como uma sombra diante do cubículo e subia a escada sem que se ouvisse estalar um só degrau debaixo dos seus pés ligeiros. Nunca acontecera perguntarem-lhe aonde ia.
            A seu rosto, tal como a do desconhecido, era portanto absolutamente estranha aos dois guardas da porta, porteiros modelo, talvez os únicos, na imensa confraria dos porteiros da capital, capazes de semelhante discrição. A mulher não ia além do primeiro andar. Aí, arranhava numa porta de forma especial, a porta abria-se, voltava a fechar-se hermeticamente e pronto. Para saírem do prédio, a mesma manobra que para entrarem.
            A desconhecida saía primeiro, sempre velada, e metia-se na sua carruagem, que ora desaparecia por uma extremidade da rua, ora por outra. Depois, passados vinte minutos, saía por sua vez o desconhecido, enterrado na sua gravata ou oculto pelo seu lenço, e desaparecia igualmente. 
            No dia seguinte àquele em que o conde de Monte-Cristo visitara Danglars, dia do funeral de Valentine, o locatário misterioso entrou por volta das dez horas da manhã, em vez de entrar, como de costume, cerca das quatro horas da tarde. Quase imediatamente, e sem guardar o intervalo habitual, chegou uma carruagem de praça e a dama velada subiu rapidamente a escada.
            A porta abriu-se e fechou-se. Mas ainda antes de a porta se fechar, a dama exclamou:
            - Lucien, meu amigo!...
            De modo que o porteiro, que ouviu sem querer tal exclamação, soube então pela primeira vez que o seu locatário se chamava Lucien. Mas como era um porteiro modelo, prometeu a si mesmo nada dizer nem sequer à mulher.
            - Afinal, que aconteceu, querida amiga? - perguntou aquele de quem, na sua perturbação ou precipitação, a dama velada revelara o nome. - Vamos, diga!
            - Meu amigo, posso contar consigo?
            - Certamente, sabe-o muito bem. Mas que aconteceu? O seu bilhete desta manhã deixou-me numa perplexidade terrível. Nunca vi tanta precipitação e desordem nos seus escritos. Vamos, tranquilize-me ou assuste-me por completo!
            - Lucien, uma grande novidade! - disse a dama, pousando em Lucien um olhar interrogador. - O Sr. Danglars partiu esta noite.
            - Partiu?... O Sr. Danglars partiu? Para onde?
            - Ignoro.
            - Ignora? ... Quer dizer que partiu para não mais voltar?
            - Sem dúvida! Às dez horas da noite os seus cavalos conduziram-no à Barreira de Charenton. Aí, encontrou uma berlinda de posta completamente atrelada, meteu-se nela com o seu criado de quarto e disse ao seu cocheiro que ia a Fontainebleau.
            - E a senhora, que diz a isso?
            - Espere, meu amigo. Ele deixou-me uma carta...
            - Uma carta?...
            - Sim. Leia.
            E a baronesa tirou da bolsa uma carta aberta, que apresentou a Debray.
            Antes de a ler, Debray hesitou um instante, como se procurasse adivinhar o que ela continha, ou antes como, fosse o que fosse que ela contivesse, estivesse decidido a tomar antecipadamente um partido.
            Passados alguns segundos, decerto já com as suas idéias bem definidas, leu.
            Eis o que continha a carta que lançara tão grande perturbação no espirito da Sra Danglars:

            - “Minha senhora e fidelíssima esposa."
            Sem querer, Debray deteve-se e olhou a baronesa, que corou quase até à raiz dos cabelos.
            - Leia - insistiu ela.
            Debray continuou:
            Quando receber esta carta já não terá marido! Oh, não perca a cabeça!... já não terá marido, como já não terá filha, isto é, estarei numa das trinta ou quarenta estradas que levam para fora da França.  Devo-lhe explicações, e como a senhora é mulher para as compreender perfeitamente, as darei.
            Escute, pois:
            Esta manhã tive de fazer um pagamento de cinco milhões; o fiz. Seguiu-se quase imediatamente outro da mesma importância; adiei-o para amanhã. hoje parto para evitar esse amanhã, que me seria muito desagrável suportar.
            Compreende o que quero dizer, não é verdade, minha senhora e preciosíssima, esposa?
            Repito:
            Compreende, porque conhece tão bem como eu os meus negócios; conhece-os até  melhor do que eu, atendendo a que se fosse preciso dizer o que foi feito de uma metade da minha fortuna, ainda há pouco bastante considerável, eu seria incapaz disso minha senhora, pelo contrário, estou certo de que o diria
perfeitamente.
            Porque as mulheres possuem instintos de uma certeza infalível e são capazes de explicar por meio de uma  álgebra que inventaram o próprio maravilhoso. eu, que só conhecia as minhas contas, fiquei sem saber nada no dia que as minhas contas me enganaram.
            Alguma vez estranhou a rapidez da minha queda, minha senhora? Ficou um pouco encandeada com a incandescente fusão dos meus lingotes?
            Eu, confesso-o, só vi fogo; esperemos que a senhora tenha encontrado um pouco de ouro nas cinzas.
            É com esta consoladora esperança que me afasto, minha senhora e prudentíssima esposa, sem que a minha consciência me censure nem um bocadinho por a abandonar. Restam-lhe amigos, as cinzas a que me referi e, para cúmulo da felicidade, a liberdade que me apresso a conceder-lhe.
            No entanto,  minha senhora, é o momento de colocar nesta carta uma palavra de explicação íntima.
            Enquanto tive a esperança de que a senhora trabalhasse para o bem-estar da nossa casa, para a fortuna da nossa filha, fechei filosoficamente os olhos; mas como a senhora transformou a casa numa vasta ruína, não quero servir de alicerce à fortuna de outrem.
            Recebi-a rica, mas pouco honrada.
            Desculpe-me falar-lhe com esta franqueza, mas como provavelmente só para nós dois, não vejo por que motivo disfarçaria as minhas palavras.
            Aumentei a nossa fortuna, que durante mais de quinze anos foi crescente, até  ao momento em que catástrofes desconhecidas e ainda incompreensíveis para mim  a atacaram e derrubaram sem que, posso dizê-lo, a culpa fosse de algum modo minha.
            Pela minha parte a senhora trabalhou para aumentar a sua, o que conseguiu, estou moralmente convencido disso. Deixo-a portanto como a recebi: rica, mas pouco honrada.
            Adeus.
            Também eu vou a partir de hoje trabalhar por minha conta.
            Creia em todo o meu reconhecimento pelo exemplo que me deu e que vou seguir.
            Seu marido muito dedicado.
            Barão Danglars.

            A baronesa não tirara os olhos de Debray durante esta longa e penosa leitura. E, apesar do domínio bem conhecido que ele possuía sobre si mesmo, viu o rapaz mudar de cor uma ou duas vezes.
            Quando acabou, Debray dobrou lentamente o papel e recaiu na sua atitude pensativa.
            - Então? - perguntou a Sra Danglars, com uma ansiedade fácil de compreender.
            - Então o quê, minha senhora? - perguntou maquinalmente Debray.
            - Que idéia lhe inspira essa carta?
            - Uma muito simples, minha senhora: inspira-me a idéia de que o Sr. Danglars partiu com suspeitas.
            - Sem dúvida. Mas é tudo o que tem para me dizer?
            - Não compreendo - disse Debray, com uma frieza glacial.
            - Partiu! Partiu definitivamente! Partiu para não mais voltar!
            - Não acredite nisso, baronesa - perguntou Debray.
            - Não, digo-lhe eu, não voltará. Conheço-o, é um homem inquebrantável em todas as resoluções que são de seu interesse. Se me julgasse útil para alguma coisa, teria me levado. Se me deixa em Paris é porque a nossa separação pode ser útil aos seus projetos. É portanto irrevogável e estou livre para sempre - acrescentou a Sra Danglars com a mesma expressão de súplica.
            Mas Debray, em vez de responder, deixou-a na ansiosa interrogação do olhar e do pensamento.
            - Então o senhor não me responde? - perguntou ela por fim.
            - Só tenho uma pergunta a fazer-lhe: quais são os seus planos?
            - Ia perguntar-lhe o mesmo –, respondeu a baronesa, com o coração palpitante. - Que devo fazer?
            - Ah!... - exclamou Debray. - É portanto um conselho que me pede?
            - Sim, é um conselho que lhe peço - respondeu a baronesa, com o coração apertado.
            - Então se é um conselho que me pede - respondeu friamente o rapaz –, aconselho-a a ir viajar.
            - Viajar!... - murmurou a Sra Danglars.
            - Certamente. Como disse o Sr. Danglars, é rica e absolutamente livre. Uma ausência de Paris será  indispensável, pelo menos segundo creio, depois do duplo escândalo da anulação do casamento de Mademoiselle Eugénie e do desaparecimento do Sr. Danglars. A única coisa que interessa agora é que todas as pessoas a saiba abandonada e a julguem pobre;  porque ninguém perdoaria à mulher do falido a sua opulência e o estado da sua casa. Para o primeiro caso, basta que fique apenas quinze dias em Paris e que repita a todas as pessoas que foi abandonada. Diga-o às suas melhores amigas, que elas se
encarregarão de espalhar na sociedade como tal abandono se deu. Depois, deixará o seu palácio, e nele as suas jóias, renunciará a qualquer indenização, e todos elogiarão  o seu desinteresse e lhe cantarão  louvores. Então, a considerarão pobre. porque só eu conheço a sua situação financeira e estou pronto a prestar-lhe contas como leal associado.
            A baronesa empalideceu, aterrada, à medida que escutava este discurso com tanto, mais espanto e desespero quanto maior era a calma e a indiferença com que Debray o pronunciava.
            - Abandonada! - repetiu ela. - oh, e bem abandonada!... Sim, tem razão, senhor, e ninguém duvidará do meu abandono.
            Foram estas as únicas palavras que aquela mulher, tão orgulhosa e violentamente apaixonada, conseguiu responder a Debray.
            - Mas rica, muito rica mesmo - prosseguiu Debray, tirando da carteira e espalhando-os em cima da mesa alguns papéis que continha.
            A Sra Danglars esperou que ele acabasse, muito ocupada a conter as pulsações do coração e a reter as lágrimas que sentia perlarem-lhe as extremidades das pálpebras. Mas por fim o sentimento da dignidade levou a melhor na baronesa, e se não conseguiu conter o coração, conseguiu pelo menos não chorar.
            - Minha senhora - disse Debray –, há cerca de seis meses que nos associamos. A senhora entrou com uma quota de cem mil francos. A nossa sociedade foi constituída em Abril deste ano. Em Maio iniciamos as nossas operações. E ainda em Maio ganhamos quatrocentos e cinquenta mil francos. Em Junho, o
lucro ascendeu a novecentos mil. Em Julho, adicionamos-lhe um milhão e setecentos mil francos; foi, como sabe, o mês dos títulos da Espanha. Em Agosto, perdemos no começo do mês trezentos mil francos; mas em 15 desse mesmo mês tínhamos recuperado e no fim do mês tínhamos desforrado, pois as nossas contas, apuradas desde o dia da nossa associação até  ontem, em que as fechei, nos dão um ativo de dois milhões e
quatrocentos mil francos, isto é, um milhão e duzentos mil francos para cada um. Agora - continuou Debray, compulsando a sua agenda com o método e a tranquilidade de um cambista - temos oitenta mil francos de juros compostos daquela importância que se encontra em meu poder...
            - Mas - interrompeu-o a baronesa - que significam esses juros, se o senhor nunca aplicou esse dinheiro?
            - Peço-lhe perdão, minha senhora - respondeu friamente Debray -, mas tinha procuração sua para o aplicar e utilizei a sua procuração. Tem portanto a haver quarenta mil francos de juros, mais os cem mil francos da quota inicial, isto é, um milhão trezentos e quarenta mil francos à sua parte. Ora, minha senhora - continuou Debray –, tomei a precaução de mobilizar anteontem o seu dinheiro; não há muito tempo, como
vê, e diria-se que já esperava ser chamado urgentemente a prestar-lhe contas. O dinheiro está aqui, metade em notas e metade em títulos ao portador. Digo aqui e é verdade, porque como não considerava a minha casa suficientemente segura, não achava os tabeliões bastante discretos e as propriedades falam ainda mais alto do que os tabeliões, e como, finalmente, a senhora não tem o direito de comprar nada nem de possuir seja o que for fora da comunhão de bens conjugal, guardei todo esse dinheiro, hoje a sua única fortuna, num cofre cravado no fundo deste armário, em que, para maior segurança, me encarreguei pessoalmente do trabalho de pedreiro.
            "Agora - continuou Debray, abrindo primeiro o armário e depois o cofre –, agora, minha senhora, aqui tem oitocentas notas de mil francos cada uma, que  como vê, parecem um grosso álbum encadernado em ferro... Juntei-lhes um cupão de juro de vinte e cinco mil francos e para saldo de contas, que, segundo creio, ascende a qualquer coisa como cento e dez mil francos, aqui tem uma ordem de pagamento à vista sobre o meu banqueiro, e como o meu banqueiro não é o Sr. Danglars, pode estar tranquila que a ordem será paga.
            A Sra Danglars pegou maquinalmente na ordem à vista, no cupom e nas notas. Aquela enorme fortuna parecia muito insignificante espalhada ali em cima de uma mesa.
            Com os olhos secos, mas o peito cheio de soluços, a Sra Danglars reuniu-a, guardou o estojo de aço na bolsa, meteu o cupom e a ordem de pagamento à vista na carteira, e de pé, pálida e muda, esperou uma palavra meiga que a consolasse de ser tão rica.
            Mas esperou em vão.
            - Agora, minha senhora - disse Debray -, tem uma existência magnífica, qualquer coisa como sessenta mil libras de rendimento, o que é enorme para uma mulher que não poderá ter casa senão daqui a um ano, pelo menos. É um privilégio para todos os caprichos que lhe passarem pela cabeça, sem contar que se achar a sua parte insuficiente, em atenção ao passado que lhe escapa poderá recorrer à minha. Estou disposto a
oferecer-lhe, a título de empréstimo, bem entendido, tudo o que possuo, isto é, um milhão e sessenta mil francos.
            - Obrigada, senhor, obrigada - respondeu a baronesa. - Como sabe, acaba de me entregar muito mais do que precisa uma pobre mulher que não conta, senão daqui a muito tempo, pelo menos, reaparecer na sociedade.
            Debray mostrou-se momentaneamente surpreendido , mas recompôs-se e fez um gesto que se poderia traduzir como a forma mais delicada de exprimir esta idéia: “Como queira!"
            Até ali, a Sra Danglars talvez esperasse ainda alguma coisa; mas quando viu o gesto indiferente que acabava de escapar a Debray e o olhar oblíquo com que esse gesto fora acompanhado, assim como a reverência profunda e o silêncio significativo que se seguiram, ergueu a cabeça, abriu a porta e, sem cólera,
sem nervosismo, mas também sem hesitação, dirigiu-se para a escada, desdenhando até  honrar com um derradeiro cumprimento àquele que a deixava partir daquele modo.
            - Ora, ora! - exclamou Debray depois dela sair. - Apesar de poder fazer belos projetos, ficará no seu palácio, lerá romances e jogará o seu lansquen, visto não poder jogar na bolsa.
            Em seguida pegou na agenda e riscou cuidadosamente as importâncias que acabava de pagar.
            - Resta-me um milhão e sessenta mil francos... Que pouca sorte Mademoiselle de Villefort ter morrido! Era a mulher que me convinha sob todos os aspectos para casar com ela.
            E, fleumaticamente, conforme era seu hábito, esperou que a Sra Danglars tivesse saído há vinte minutos para se decidir a sair por sua vez.
            Durante esses vinte minutos, Debray fez contas, com o relógio pousado a seu lado.
            Essa personagem diabólica que qualquer imaginação aventurosa criaria com mais ou menos felicidade se Le Sage lhe não tivesse adquirido a prioridade na sua obra-prima; esse Asmodeu que levantava os telhados das casas para ve-las por dentro, teria gozado um singular espetáculo se erguesse, no momento em que Debray fazia as suas contas. O telhado do predio da Rua Saint-Germain-des-Prés.
            Por cima do quarto em que Debray acabava de dividir com a Sra Danglars dois milhões e meio ficava outro também habitado por pessoas nossas conhecidas, as quais desempenharam papel muito importante nos acontecimentos que contamos até  aqui e que por isso reencontramos com algum interesse.
            Nesse quarto residiam Mercedes e Albert.
            Mercedes mudara muito havia alguns dias. Não porque, mesmo no tempo da sua maior riqueza, alguma vez tivesse exibido o fausto orgulhoso que corta visivelmente com todas as condições
e faz com que se deixe de reconhecer imediatamente a mulher quando nos surge mais simplesmente vestida; nem porque tivesse caído nesse estado de depressão em que somos obrigados a envergar a libre da miséria. Não, Mercedes estava mudada porque os seus olhos já não brilhavam, porque a sua boca já não sorria, porque finalmente um perpétuo enleio lhe detinha nos lábios a palavra pronta que denotava outrora um espírito sempre atento.
            Não fora a pobreza que secara o espírito de Mercedes, nem era a falta de coragem que lhe tornava pesada a pobreza.
            Mercedes, apeada do ambiente em que vivia, isolada na nova esfera que escolhera, como essas pessoas que saem de uma sala esplendidamente iluminada para entrarem de súbito nas trevas; Mercedes parecia uma rainha que passara do seu palácio para uma cabana e que, reduzida ao estritamente indispensável, não se reconhecia nem na louça de barro que era obrigada a pôr pessoalmente na mesa, nem no catre por que trocara o seu leito.
            Efetivamente, a bela catalã, como a nobre condessa, já não tinha nem o seu olhar orgulhoso, nem o seu sorriso encantador, porque quando pousava os olhos no que a rodeava só via objetos pobres. Era um quarto forrado com um desses papeis em que predominam os tons cinzentos, que os senhorios econômicos escolhem de preferência por serem os que menos se sujam; não havia tapetes no chão e os móveis davam nas vistas e forçavam os olhos a deterem-se na pobreza de um falso luxo. Enfim, tudo coisas que quebravam com os seus tons garridos a harmonia tão necessária a olhos habituados a um conjunto elegante.
            A Sra de Morcerf vivia ali desde que deixara o seu palácio. A cabeça andava-lhe à roda perante aquele silêncio eterno, como anda à roda ao viajante chegado à beira de um abismo. Notando que Albert a observava constantemente às escondidas, para descobrir o seu estado de espírito, obrigara-se a um monótono sorriso nos lábios, que, na ausência desse fogo tão suave do sorriso dos olhos, produz o efeito de uma simples reverberação de luz, isto é, de uma claridade sem calor.
            Pela sua parte, Albert andava preocupado e sentia-se pouco à vontade, constrangido, com um resto de luxo que o impedia de assumir a sua condição atual. Queria sair sem luvas e achava as mãos demasiado brancas, queria percorrer a cidade a pé e achava as botas demasiado brilhantes.
            No entanto, estas duas criaturas tão nobres e inteligentes, ligadas indissoluvelmente pelos laços do amor maternal e filial, tinham conseguido compreender-se sem falar de nada e economizar todos os rodeios usados entre amigos para estabelecer a verdade material de que depende a vida.  
            Albert pudera finalmente dizer à mãe sem a fazer empalidecer:
            - Minha mãe, já não temos dinheiro.
            Mercedes nunca conhecera verdadeiramente a miséria; muitas vezes, na sua juventude, ela própria falara de pobreza, mas isso não era a mesma coisa: pobreza e necessidade são sinônimos entre os quais há Um mundo de intervalo.
            Entre os Catalães, Mercedes tinha necessidade de muitas coisas, mas nunca lhe faltavam outras. Enquanto as redes estavam boas, pescava-se o peixe; vendido o peixe, tinha-se fio para consertar as redes.
            E depois, privada de afetos, tendo apenas um amor que em nada interferia nos pormenores materiais da situação, cada um pensava em si, só em si e em mais ninguém. Do pouco que tinha, Mercedes fazia o seu quinhão tão generosamente quanto possível; agora, tinha de fazer dois quinhões... a partir do nada.
            O Inverno aproximava-se. Naquele quarto nu e frio, Mercedes não tinha aquecimento, ela a quem outrora um calorífero com inúmeras ramificações aquecia a casa desde as antecâmaras até ao boudoir. Não tinha nem uma pobre florinha, ela cujos aposentos eram uma estufa quente mantida a peso de ouro!
            Mas tinha o seu filho...
            A exaltação de um dever talvez exagerado sustentara-os até  ali nas esferas superiores.
            A exaltação é quase entusiasmo, e o entusiasmo torna as pessoas insensíveis às coisas terrenas.
            Mas o entusiasmo esfriara e fora necessário descer pouco a pouco do país dos sonhos ao mundo das realidades. Era necessário falar do positivo, depois de ter esgotado todo o ideal.
            - Minha mãe - dizia Albert, no preciso momento em que a Sra Danglars descia a escada –, deitemos contas a todas as nossas riquezas, por favor. Preciso de um total para traçar os meus planos.
            - Total, nada - respondeu Mercedes com um sorriso doloroso.
            - Na realidade, minha mãe, total, três mil francos, à primeira vista, e tenho a pretensão de, com esses três mil francos, proporcionar a ambos uma rica vida.
            - Criança! - suspirou Mercedes.
            - Por Deus, minha pobre mãe, infelizmente gastei-lhe dinheiro suficiente para lhe conhecer o valor! É enorme, acredite. Três mil francos... Com esta importância conseguirei um futuro miraculoso de eterna segurança.
            - Fala assim, meu amigo - continuou a pobre mãe –, mas primeiro é preciso saber se aceitamos esses três mil francos.
            - Parece-me que isso está assente - perguntou Albert em tom firme. - Aceitaremos, tanto mais que não os temos, pois estão, como sabe, enterrados no jardim dessa casa das Alamedas de Meilhan, em Marselha. Com duzentos francos, iremos ambos a Marselha.
            - Com duzentos francos! - exclamou Mercedes. - E onde estão eles, Albert?
            - Oh, quanto a isso não se preocupe! Informei-me nas diligencias e nos vapores e fiz os meus cálculos.
Reservamos lugar para Chalon na diligência; como vê, minha mãe, trato-a como um a rainha... São trinta e cinco francos.
            Albert pegou numa pena e escreveu: 
            Diligência – 35 francos
            De Chalon a Lion, de vapor – 6 francos
            De Lion a Avinhão, também de vapor – 16 francos De Avinhon a Marselha - 7 francos
            Despesas de viagem – 50 francos
            Total – 114 francos
            - Ponhamos cento e vinte - acrescentou Albert, sorrindo. - Como vê, sou generoso, não é verdade, minha mãe?
            - Mas e você, meu pobre filho?
            - Eu? Não viu que me reservo oitenta francos? Um rapaz, minha mãe, não necessita de muitas comodidades. De resto, sei o que é viajar.
            - Com a tua sege de posta e o teu criado de quarto.
            - De todas as maneiras, minha mãe.
            - Pois bem, seja - concordou Mercedes. - Mas onde estão esses duzentos francos?
            - Esses duzentos francos estão aqui, e ainda mais duzentos... Olhe vendi o meu relógio por cem francos e os berloques por trezentos. Que sorte! Berloques que valiam três vezes o relógio. Sempre a eterna história do supérfluo! Estamos portanto ricos, pois em vez de cento e catorze francos para a sua viagem terá duzentos e cinquenta.
            - Mas não devemos qualquer coisa aqui?
            - Trinta francos, mas pago-os dos meus cento e cinquenta francos. Isso está resolvido. Aliás, bem vistas as coisas, não preciso de mais do que oitenta francos para a viagem. Como vê, estou nadando em dinheiro. Mas isto não é tudo. Que me diz a isto, minha mãe?
            E Albert tirou de uma agendazinha de fecho de ouro, resto das suas antigas fantasias ou talvez mesmo terna recordação de alguma das mulheres misteriosas e veladas que batiam à portinha, uma nota de mil francos.
            - Que é isso? - perguntou Mercedes.
            - Mil francos, minha mãe. Oh, esteja descansada que são perfeitamente honestos!
            - Mas onde os arranjou?
            - Escute, mãe, e não se impressione demasiado.
            E Albert levantou-se, beijou a mãe em ambas as faces e ficou parado a olhá-la.
            - Não imagina, mãe, como a acho bonita! - declarou o rapaz com profundo sentimento de amor filial. - Na verdade, é não só a mais bonita, mas também a mais nobre mulher que jamais vi!
            - Querido filho - murmurou Mercedes, procurando em vão reter uma lágrima que lhe brilhava ao canto da pálpebra.
            - Realmente, só lhe faltava ser infeliz para transformar o meu amor em adoração.
            - Não serei infeliz enquanto tiver o meu filho - declarou Mercedes.
            - Muito bem! - disse Albert. - Mas aí é que começa a questão. Sabe o que está combinado?
            - Combinamos alguma coisa? - perguntou Mercedes. 
            - Combinamos. Combinamos que a senhora ficaria morando em Marselha e que eu partiria para a Àfrica, onde, em vez do nome a que renunciei, honraria o nome que adotei.
            Mercedes suspirou.
            - Pois bem, minha mãe: desde ontem que estou alistado nos sipaios - acrescentou o rapaz, baixando os olhos com certa vergonha, pois nem ele próprio sabia tudo o que o seu rebaixamento tinha de sublime. - Ou antes, julguei que o meu corpo me pertencia inteiramente e que o podia vender.  Desde ontem que substituo alguém. Vendi-me, como dizem, e - acrescentou tentando sorrir - mais caro do que estava
convencido que valia, ou seja por dois mil francos.
            - Portanto, estes mil francos?... - disse, tremendo, Mercedes.
            - São metade da importância, minha mãe. A outra virá daqui a um ano.
            Mercedes ergueu os olhos ao céu com uma expressão que ninguém saberia exprimir e as duas lágrimas que lhe brilhavam ao canto dos olhos transbordaram sob a sua emoção íntima e correram-lhe
silenciosamente ao longo das faces.
            - O preço do teu sangue! - murmurou.
            - Sim, se for morto - perguntou, rindo, Morcerf. - Mas garanto-lhe, boa mãe, que, pelo contrário, tenho a intenção de defender ferozmente a pele. Nunca senti tanta vontade de viver como agora.
            - Meu Deus! Meu Deus! - exclamou Mercedes.
            - Aliás, por que motivo havia de ser morto, minha mãe?  Porventura Lamoriciére, esse outro Ney do Meio-Dia, foi morto? E Changarnier, foi morto? E Bedeau, foi morto? E Morrel, que nós conhecemos, foi morto? Pense pois na sua alegria, minha mãe, quando me vir regressar com o meu uniforme bordado! Declaro-lhe que nesse aspecto conto ser imponente e que escolhi aquele regimento por vaidade.
            Mercedes suspirou e tentou sorrir. Aquela santa mãe compreendia que não lhe ficava bem deixar que o filho suportasse todo o peso do sacrifício.
            - Portanto - prosseguiu Albert –, a mãe já tem mais de quatro mil francos garantidos. Ora, com quatro mil francos viverá bem dois anos...
            - Acha? - disse Mercedes.
            Estas palavras escaparam à condessa, e com uma dor tão verdadeira que o seu autêntico sentido não passou despercebido a Albert. Este sentiu o coração confranger-se e disse, pegando na mão da mãe, que apertou ternamente nas suas:
            - Sim, viverá!
            - Viverei! - exclamou Mercedes. - Mas você não partirá, não é verdade, meu filho?
            - Minha mãe, partirei - respondeu Albert em voz calma e firme. - Ama-me demasiado para me querer junto de si ocioso e inútil. De resto, já assinei.
            - Procederá como for da tua vontade; eu procederei conforme for da vontade de Deus.
            - Não de acordo com a minha vontade, minha mãe, mas sim de acordo com a razão e a necessidade. Somos duas pessoas desesperadas, não é verdade? Que é a vida para si, hoje? Nada. Que é a vida para mim? Oh, muito pouco sem a senhora, minha mãe, acredite! Porque sem a senhora juro-lhe que esta vida
teria cessado no dia em que duvidei do meu pai e reneguei o seu nome! Enfim, viverei se me prometer ter ainda esperança; se me deixar o cuidado da sua felicidade futura, duplicará a minha energia. Procurarei o governador da Argélia, que é um coração leal e sobretudo essencialmente soldado, e lhe contarei a minha lúgubre história. Lhe pedirei que olhe de vez em quando para mim, e se me der a sua palavra de que o fará  e apreciar o meu comportamento, dentro de seis meses serei oficial ou estarei morto. Se for oficial, o seu futuro estará assegurado, minha mãe, porque terei dinheiro para si e para mim, e além disso um novo nome de que ambos nos orgulharemos, pois esse será o seu verdadeiro nome. Se morrer... Bom, se morrer, então, minha mãe, morra também, se quiser, e as nossas desventuras acabarão devido ao seu próprio excesso.
            - Está bem - respondeu Mercedes, fitando-o com o seu nobre e eloquente olhar. - Tem razão, meu filho: provemos a certas pessoas que nos observam e esperam os nossos atos para nos julgar, provemo-lhes que somos pelo menos dignos de lástima.
            - Mas nada de idéias fúnebres, querida mãe! - exclamou o jovem.- Juro-lhe que somos, ou pelo menos que podemos ser felizes. A senhora é ao mesmo tempo uma mulher cheia de inteligência e resignação; eu adquiri gostos simples e modestos, creio. Uma vez ao serviço, estarei rico; uma vez na casa do Sr. Dantés, a senhora estará tranquila. Tentemos! Peço-lhe, minha mãe, tentemos.
            - Pois sim, tentemos, meu filho, porque você deve viver, porque deve ser feliz - respondeu Mercedes.
            - Nesse caso, minha mãe, uma vez que as nossas divisões estão feitas, podemos partir hoje mesmo - acrescentou o rapaz, simulando uma grande descontração. - Vamos, como já lhe disse, marquei-lhe lugar.
            - E o teu, meu filho?
            - Eu devo ficar ainda dois ou três dias, minha mãe. É um princípio de separação e temos de nos ir habituando a isso...Preciso de algumas recomendações, de algumas informações acerca da Àfrica, e irei ter consigo a Marselha.
            - Pois sim, partamos! - exclamou Mercedes, envolvendo-se no único xale que trouxera e que por acaso era de caxemira preta de alto preço. - Partamos!
            Albert guardou à pressa os seus papéis, tocou para pagar os trinta francos que devia, ofereceu o braço à mãe e desceram a escada. Alguém descia adiante deles; esse alguém, ao ouvir o ruge-ruge de um vestido de seda virou-se.
            - Debray! - murmurou Albert.
            - Morcerf! - exclamou o secretário do ministro, parando no degrau em que se encontrava.
            A curiosidade levou a melhor em Debray sobre o seu desejo de se conservar o incógnito. De resto, já fora reconhecido. Além disso, tinha a sua piada encontrar naquele prédio ignorado o rapaz cuja triste aventura acabava de causar tão grande escândalo em Paris.
            - Morcerf? - repetiu Debray.
            Depois, notando na semi-obscuridade o aspecto ainda jovem e o véu negro da Sra de Morcerf, acrescentou com um sorriso:
            - Oh, perdão! Deixo-o, Albert...
            Albert compreendeu o pensamento de Debray.
            - Minha mãe - disse, virando-se para Mercedes –, é o Sr. Debray, secretário do ministro do Interior, um antigo amigo meu. 
            - Como antigo?... - balbuciou Debray. - Que quer dizer?
            - Digo isto, Sr. Debray - respondeu Albert –, porque hoje já não tenho amigos nem devo voltar a tê-los. Agradeço-lhe muito ter-se dignado reconhecer-me, senhor.
            Debray subiu dois degraus e veio dar um enérgico aperto de mão ao seu interlocutor.
            - Creia, meu caro Albert - disse com a emoção de que era susceptível –, creia que senti profundamente a desventura que o atingiu e que estou ao seu dispor para tudo.
            - Obrigado, senhor - respondeu Albert, sorrindo -, mas, apesar da nossa desventura, ficamos suficientemente ricos para não necessitarmos de recorrer a ninguém. Deixamos Paris e, depois de paga a nossa viagem, restam-nos cinco mil francos.
            O rubor subiu à testa de Debray, que tinha um milhão na carteira; e por pouco poético que fosse o seu espírito exato, não pôde deixar de refletir que no mesmo prédio tinham estado pouco antes duas mulheres, das quais uma, justamente desonrada, se considerava pobre com um milhão e quinhentos mil francos debaixo das pregas da sua capa, e outra, injustamente atingida, mas sublime na sua desgraça, se considerava rica com alguns francos.
            Este paralelo deitou por terra os seus propósitos de cortesia; a filosofia do exemplo esmagou-o. Balbuciou algumas palavras de mera delicadeza e desceu rapidamente. Naquele dia, os amanuenses do ministério seus subordinados tiveram de lhe aturar resignadamente o mau humor.
            Mas à tardinha tornava-se comprador de um belíssimo prédio situado no Bulevar da Madalena, que rendia cinquenta mil libras.
            No dia seguinte, à hora em que Debray assinava a escritura, ou seja, por volta das cinco da tarde, a Sra de Morcerf, depois de beijar ternamente o filho e de ser ternamente beijada por ele, subia para a diligência, cuja porta se fechava atrás de si.
            No pátio da empresa de transportes Laffitte encontrava-se um homem escondido atrás de uma das janelas arqueadas das sobrelojas. Esse homem viu Mercedes subir para a carruagem; viu partir a diligência; viu Albert afastar-se. Então passou a mão pela testa, cheio de dúvidas, e murmurou:
            - Ai de mim, como hei de restituir àqueles dois inocentes a felicidade que lhes roubei? Deus me ajudará.


Capítulo CVII

O covil dos leões


            Uma das seções da Force, aquela que encerra os presos mais comprometidos e perigosos, chama-se o pátio de S. Bernardo.
            Na sua linguagem pitoresca, os presos deram-lhe o nome de Covil dos Leões, provavelmente porque os reclusos têm dentes que mordem muitas vezes as grades e não raro os guardas. É uma prisão dentro da prisão; as paredes têm o dobro da espessura das outras. Todos os dias um carcereiro verifica cuidadosamente as grades maciças, e reconhece-se pela estatura hercúlea e pelo olhar frio e penetrante dos guardas que foram escolhidos para reinar sobre o seu povo pelo terror e pela rapidez dos reflexos.
            O pátio da seção está rodeado de muros altíssimos sobre os quais desliza obliquamente o sol quando se decide a penetrar naquele abismo de fealdades morais e físicas. E ali, no pavimento empedrado, que desde a alvorada vagueiam, pensativos, assustados, pálidos, como sombras, os homens que a justiça mantém curvados sob o cutelo que afia.
            Vêem-nos encostar-se e agachar-se ao longo do muro que absorve e retém mais calor, e ficarem para ali, conversando dois a dois, ou, na maioria dos casos, isolados, com o olhar constantemente atraído para a porta, que se abre a fim de chamarem algum dos habitantes do lúgubre recinto ou lançarem no abismo mais escória expelida pelo cadinho da sociedade.
            O pátio de S. Bernardo tem o seu parlatório particular. Trata-se de um quadrilátero grande, dividido em duas partes por outros tantos gradeamentos colocados paralelamente a três pés um do outro, de forma que o viajante não possa apertar a mão ao preso ou passar-lhe qualquer coisa. O parlatório é sombrio, úmido e sob todos os aspectos horrível, sobretudo se pensarmos nas espantosas confidências que têm passado por
aquelas grades e enferrujado o ferro dos varões.
            Mesmo assim, por mais horrível que seja, o local é o paraíso onde vêm retemperar-se numa companhia desejada, apreciada, os homens que têm os dias contados. E tão raro sair-se do Covil dos Leões para qualquer outro lado que não seja a Barreira de Saint-Jacques, as galés ou a prisão celular!
            No pátio que acabamos de descrever, e onde imperava uma umidade fria, passeava de mãos nas algibeiras um rapaz observado com muita curiosidade pelos habitantes do Covil. Passaria por um homem elegante, graças ao corte da sua indumentária, se essa indumentária não estivesse em farrapos, embora tal estado se não devesse ao uso. Na verdade, o tecido, fino e sedoso nos lugares intatos, recuperava facilmente o lustro debaixo da mão acariciadora do preso, que procurava transformá-lo num traje novo.
            Aplicava o mesmo cuidado a fechar uma camisa de cambraia que mudara consideravelmente de cor desde a sua entrada na prisão, e passava pelas botas de verniz a ponta de um lenço com iniciais bordadas e encimadas por uma coroa heráldica.
            Certos hóspedes do Covil dos Leões observavam com notório interesse os requintes de toilette do preso.
            - Olha, lá está o príncipe a pôr-se bonito - comentou um dos ladrões.
            - Já é muito bonito naturalmente - disse outro –, e se tivesse só que fosse um pente e brilhantina eclipsaria todos os cavalheiros de luvas brancas.
            - A casaca devia ser novinha em folha e as botas ainda reluzem lindamente. Para nós é lisonjeiro ter camaradas tão tirados das canelas. Os bandidos dos guardas são bem reles... Invejosos! Rasgarem uma roupa daquelas!
            - Parece que é um dos águias - disse outro. - já fez de tudo, e em grande... Apesar de tão novo, até  já esteve nas galés! Que tipo! 
            E o alvo desta admiração horrível parecia saborear os elogios, ou o murmúrio dos elogios, pois não ouvia as palavras. Terminada a toilette, aproximou-se do guiche da cantina, ao qual se encontrava encostado um guarda, a quem disse:
            - Por favor, senhor, empreste-me vinte francos. Os pagarei em breve. Comigo ninguém corre riscos...
Lembre-se de que tenho parentes que possuem mais milhões do que o senhor soldos... Então, vinte francos, por favor. Para alugar um quarto particular e comprar um roupão. Custa-me horrivelmente andar sempre de casaca e botas. E que casaca, senhor, para um príncipe Cavalcanti!...
            O guarda virou-lhe as costas e encolheu os ombros. Nem sequer riu do palavreado, que teria desenrugado todas as testas; porque já ouvira muitos outros, ou antes, sempre ouvira a mesma coisa.
            - Está bem, o senhor é um homem sem entranhas e lhe farei perder o seu lugar - ameaçou Andrea.
            Esta saída fez virar o guarda, que desta vez soltou uma ruidosa gargalhada. Então os outros presos aproximaram-se e formaram círculo.
            - Garanto-lhe - continuou Andrea - que com essa miserável importância poderei comprar uma casaca e alugar um quarto, a fim de receber decentemente a visita ilustre que espero, mais dia, menos dia.
            - Tem razão! Tem razão! - gritaram os presos. - Demônio, vê-se bem que é um homem de classe.
            - Então emprestem-lhe os vinte francos - perguntou o guarda. Apoiando-se no seu outro ombro colossal. - Não acham que devem isso a um camarada?
            - Eu não sou camarada desta gente - replicou orgulhosamente o jovem. -  Não me insulte, não tem esse direito.
            Os ladrões entreolharam-se no meio de murmúrios abafados, e uma tempestade, levantada pela provocação do guarda, mais ainda do que pelas palavras de Andrea, começou a bramir sobre o preso aristocrata.
            O guarda, certo de fazer o quos ego quando as vagas se tornassem demasiado alterosas, deixou-as crescer pouco a pouco para dar uma lição ao importuno solicitador e divertir-se um bocado durante o longo dia de guarda. Os ladrões começaram a aproximar-se de Andrea; uns gritavam:
            - O chinelo! O chinelo!
            Cruel operação que consiste em moer de pancada, não com um chinelo, mas sim com um sapato ferrado, um companheiro caído em desgraça. Outros propunham a “enguia", gênero de divertimento que
consiste em encher de areia, seixos ou soldos, quando os há, um lenço torcido, que os carrascos descarregam como um chicote nas costas e na cabeça do paciente.
            - Chicoteemos o lindo cavalheiro! - gritaram alguns. - O senhor honesto!...
            Mas Andrea virou-se para eles, piscou o olho, inflou a face com a língua e fez ouvir esse estalido de lábios que equivale a mil sinais de inteligência entre os bandidos impedidos de falar.
            Era um sinal maçônico que lhe ensinara Caderousse. Os outros reconheceram um dos seus.
            Os lenços desceram imediatamente; o sapato ferrado regressou ao pé do principal carrasco. Ouviram-se algumas vozes proclamar que aquele senhor  tinha razão, que aquele senhor podia ser honesto à sua maneira, e que os presos queriam dar o exemplo da liberdade de consciência.
            O temporal amainou. O guarda ficou de tal modo estupefato que agarrou imediatamente Andrea pelas mãos e pôs-se a revistá-lo, atribuindo a alguma manifestação mais significativa do que a fascinação a mudança súbita dos habitantes do Covil dos Leões.
            Andrea deixou-se revistar, embora protestando.
            De súbito, soou uma voz ao guiche.
            - Benedetto! - gritou um inspector.
            O guarda largou a presa.
            - Quem me chama? - perguntou Andrea.
            - Ao parlatório! - respondeu a voz.
            - Vê como vêm visitar-me? Ah, meu caro senhor, vai ver se se pode tratar um Cavalcanti como um homem vulgar!
            E Andrea, deslizando pelo pátio como uma sombra negra, correu para a porta do guiche, que se encontrava entreaberta, deixando embasbacados os companheiros e o próprio guarda.
            Chamavam-no efetivamente ao parlatório, o que não deveria causar menos admiração do que ao próprio Andrea; porque o astucioso rapaz, desde a sua entrada na Force, em vez de utilizar, como a maioria dos companheiros, a faculdade de escrever para pedir auxílio, guardara o mais estóico silêncio.
            - Sou - dizia ele - evidentemente protegido por alguém poderoso; tudo mo prova. Aquela fortuna súbita, a facilidade com que aplanei todos os obstáculos, uma família improvisada, um nome ilustre tornado meu, o ouro chovendo sobre mim, as alianças mais magníficas prometidas à minha ambição... Um infeliz esquecimento da minha sorte, uma ausência do meu protetor perdeu-me, sim, mas não por completo nem para sempre! A mão retirou-se por um momento, mas deve estender-se para mim e agarrar-me de novo quando me julgar prestes a cair no abismo.
            "Porque arriscaria um passo imprudente? Talvez me alienasse o protetor! Tem duas maneiras de me tirar de apuros: a evasão misteriosa, paga a peso de ouro, e forçar a mão aos juízes para obter uma absolvição. Esperemos para falar, para agir, que me seja provado que me abandonaram por completo, e
então...
            Andrea traçara um plano que se podia considerar hábil; o miserável era intrépido no ataque e duro na defesa. Suportara a miséria, da prisão comum, as privações de todo o gênero, no entanto, pouco a pouco, o natural, ou antes o hábito, voltara à superfície. Andrea sofria por andar nu, sujo e faminto, a espera prolongava-se. Foi nesse momento de desanimo que a voz do inspetor o chamou ao parlatório.
            Andrea sentiu o coração pular-lhe de alegria. Era demasiado cedo para se tratar da visita do juiz de instrução e demasiado tarde para ser uma chamada do diretor da prisão ou do médico. Era portanto a visita esperada.
            Através do gradeamento do parlatório, onde foi introduzido, viu, com os olhos dilatados por uma curiosidade  vida, o rosto sombrio e inteligente do Sr. Bertuccio, que olhava também, mas com uma espécie de surpresa dolorosa, as grades, as portas aferrolhadas e a sombra que se agitava atrás dos varões
entrecruzados. 
            - Ah! - exclamou Andrea, impressionado.
            - Bom dia, Benedetto - disse Bertuccio na sua voz cava e sonora.
            - O senhor! O senhor! - exclamou o rapaz, olhando com terror à sua volta.
            - Não me reconhece, pobre criança? - perguntou Bertuccio.
            - Silêncio! Mas silêncio mesmo! - ordenou Andrea, que conhecia a finura de ouvido das paredes. - Meu Deus, meu Deus, não fale tão alto!
            - Gostaria de conversar comigo a sós, não é verdade?  -  perguntou Bertuccio.
            - Oh, sim! - respondeu Andrea.
            - Está bem.
            E Bertuccio procurou qualquer coisa na algibeira e fez sinal a um guarda que se encontrava atrás do vidro do guiche.
            - Leia - disse.
            - Que é isso? - perguntou Andrea.
            - Ordem para te conduzirem a um quarto, te instalarem e deixarem-me comunicar contigo.
            - Oh! - exclamou Andrea, pulando de alegria.
            E, concentrando-se imediatamente em si mesmo, disse para consigo: “novamente o protetor desconhecido! Não me esqueceram! Procuram o segredo, uma vez que querem conversar comigo num quarto isolado. Tenho-os na mão... Bertuccio foi enviado pelo protetor."
            O guarda conferenciou um momento com um superior, depois abriu as duas portas gradeadas e conduziu Andrea a um quarto do primeiro andar, com vista para o pátio. O rapaz não cabia em si de contente.
            Tratava-se de um quarto caiado, como é habitual nas prisões. Tinha um ar alegre, que pareceu radioso ao preso: um fogão de aquecimento, uma cama, uma cadeira e uma mesa constituíam o mobiliário sumtuoso.
            Bertuccio sentou-se na cadeira. Andrea atirou-se para cima da cama. o guarda retirou-se.
            - Vejamos, que tem para me dizer? - perguntou o intendente.
            - E o senhor? - perguntou por seu turno Andrea.
            - Fale primeiro...
            - Oh, não! O senhor é que deve ter muito para me dizer, uma vez que veio me procurar.
            - Está bem, seja! Continuou a carreira dos seus crimes: roubou, assassinou...
            - Bom, se foi para me dizer isso que me fez passar para um quarto particular, não era necessário se incomodar. Sei tudo isso. Mas há outras coisas que não sei. Falemos dessas, se não se importa. Quem o mandou aqui?
            - Oh, oh, vai muito depressa, Sr. Benedetto!...
            - E ao fim, não é verdade? Sobretudo, poupemos as palavras inúteis. Quem o mandou aqui?
            - Ninguém.
            - Como soube que estava preso?
            - Há muito tempo que te reconheci no elegante insolente que frequentava tão graciosamente a cavalo os Campos Elísios.
            - Os Campos Elísios!... Ah, ah, começamos a pôr os trunfos na mesa, como se diz ao jogo!... Os Campos Elísios... Muito bem, falemos um pouco do meu pai, quer? 
            - E que sou eu?
            - O senhor, meu caro, é o meu pai adotivo... Mas calculo que não foi o senhor que dispôs a meu favor de uma centena de milhar de francos que devorei em quatro ou cinco meses; nem o senhor que me arranjou um pai italiano e fidalgo; nem o senhor que me fez entrar na sociedade e me convidou para certo jantar que julgo saborear ainda. Em Auteuil, com a melhor companhia de Paris e certo procurador régio de que fiz muito mal não cultivar a amizade, que me seria agora tão útil neste momento; nem o senhor, enfim, quem me caucionou por um ou dois milhões quando me aconteceu o acidente fatal que levou à descoberta da
marosca... Vamos, fale, respeitável corso, fale...
            - Que quer que te diga?
            - Eu o ajudo. Há pouco referiu-se aos Campos Elísios, meu digno pai adotivo.
            - E depois?
            - E depois ... nos Campos Elísios reside um cavalheiro muito, muito rico...
            - Em casa de quem roubou e assassinou, não é verdade?
            - Creio que sim.
            - O Sr. Conde de Monte-Cristo?
            - Foi o senhor que lhe citou o nome, como diz o Sr. Racine... Bom, devo lançar-me nos seus braços, aperta-lo muito ao peito e gritar: “meu pai! Meu pai!", como diz o Sr. Pixerecourt?
            - Deixemos de gracejos - replicou gravemente Bertuccio - e que semelhante nome não seja pronunciado aqui como te atreveste a pronunciá-lo.
            - Ora, ora! - exclamou Andrea, um pouco aturdido com a solenidade de Bertuccio. - Por que não?
            - Porque a pessoa que usa esse nome está demasiado nas boas graças do céu para ser o pai de um miserável como você.
            - Oh, lá vêm as grandes palavras!...
            - E de grandes efeitos, se não se acautelar!
            - Ameaças!... Não as temo. Direi...
            - Julga que está lidando com pigmeus da tua espécie? -  perguntou Bertuccio num tom tão calmo e com um olhar tão firme que Andrea ficou perturbado até ao fundo das entranhas. - Julga que está lidando com os teus habituais companheiros das galés ou com os papalvos da sociedade?... Benedetto, está em poder de uma mão terrível, mão que quer se abrir em seu proveito; aproveita a oportunidade. Não brinque com o raio
que ela largou por um instante, mas em que pode voltar a pegar se tentar prejudicar-lhe a liberdade de movimentos.
            - O meu pai... quero saber quem é o meu pai - insistiu o teimoso. - Morrerei por isso, se for preciso, mas o saberei. Que me interessa a mim o escândalo, o bem... a reputação... a fama... como diz Beauchamp, o jornalista? Mas vocês, gente da alta, têm sempre alguma coisa a perder com o escândalo, apesar dos seus milhões e dos seus títulos nobiliárquicos... Portanto, quem é o meu pai?
            - Vim aqui para lhe dizer.
            - Sim?! - exclamou Benedetto com os olhos cintilantes de alegria.
            Neste momento a porta abriu-se e o carcereiro dirigiu-se a Bertuccio:
            - Perdão, senhor, mas o juiz de instrução espera o preso. 
            - É o encerramento do meu interrogatório - disse Andrea ao digno intendente. - Ao diabo o importuno!
            - Voltarei amanhã - disse Bertuccio.
            - Pois sim - respondeu Andrea. - Sr. guarda, estou à sua disposição... Ah, querido senhor, deixe uma dezena de escudos na mesa para que me forneçam aqui o que precisar!
            - Assim farei - respondeu Bertuccio.
            Andrea estendeu-lhe a mão. Bertuccio conservou a sua na algibeira e limitou-se a fazer soar algumas moedas de prata.
            - Era o que queria dizer - declarou Andrea, esboçando um sorriso, que mais parecia uma careta, mas completamente subjugado pela estranha tranquilidade de Bertuccio.
            “Ter-me-ei enganado?", pensou ao subir para a carruagem oblonga e gradeada a que os presos chamavam a Ramona. “Veremos... "
            - Então, até  amanhã! - gritou, virando-se para Bertuccio.
            - Até  amanhã! - respondeu o intendente.
           

capítulo CVIII

O juiz


            Lembramos que o abade Busoni ficara sozinho com Noirtier no quarto mortuário e que o velho e o padre se tinham constituído guardas do corpo da jovem.
            Talvez as exortações cristãs do abade, talvez a sua suave caridade ou talvez a sua palavra persuasiva tivessem restituído a coragem ao velho; porque a partir do momento em que pudera conferenciar com o padre, em vez do desespero que se apoderara dele inicialmente, tudo em Noirtier denotara uma grande resignação e uma calma deveras surpreendente para todos aqueles que se recordavam da profunda afeição que dedicava a Valentine.
            O Sr. de Villefort não tornara a ver o velho desde a manhã do falecimento. Toda a casa fora renovada: Villefort contratara novo criado de quarto para si e outro criado para Noirtier; ao serviço da Sra de Villefort tinham entrado duas novas criadas; todos, incluindo o porteiro e o cocheiro, ofereciam de novo caras que se tinham interposto por assim dizer entre os diversos patrões da casa maldita e interceptado as relações já  bastante frias que existiam entre eles. De resto, os tribunais abriam dentro de três dias e Villefort, encerrado no seu gabinete, prosseguia com febril atividade a elaboração do processo contra o assassino de Caderousse. Este caso, como todos aqueles com que o conde de Monte-Cristo se encontrava relacionado, dera muito que falar na alta sociedade parisiense. As provas não eram convincentes, pois baseavam-se
em algumas palavras escritas por um forçado moribundo, antigo companheiro de galés do acusado, ao qual poderia querer incriminar por ódio ou por vingança. Somente a convicção do magistrado se encontrava formada: o procurador régio acabara por adquirir essa temível convicção e para ele Benedetto era culpado e, custasse o  que custasse, havia de tirar dessa vitória difícil uma dessas satisfações de amor-próprio que só
por si revelavam um pouco de que fibra era feito o seu coração insensível
            O processo ia pois sendo instruído graças ao trabalho incessante de Villefort, que queria abrir com ele o próximo período judicial. Isso obrigara-o a isolar-se mais do que nunca, para não ter de responder à quantidade prodigiosa de pedidos que lhe dirigiam para obter bilhetes de audiência.
            E depois passara tão pouco tempo desde que a pobre Valentine fora sepultada. a dor da família era ainda tão recente que ninguém se admirava de ver o pai tão severamente absorto no seu dever, isto é, na única distração que podia encontrar para o seu desgosto.
            Apenas uma vez, no dia seguinte àquele em que Benedetto recebera a visita de Bertuccio, na qual este lhe deveria indicar o nome do pai, apenas uma vez, no dia seguinte a esse, que era um domingo, uma única vez, insistimos, Villefort vira o pai.
            Fora num momento em que o magistrado, cansadíssimo, descera ao jardim do palácio, e sombrio, curvado a um pensamento implacável, qual Tarquínio abatendo com a sua chibata as papoulas mais altas, abatia com a bengala as longas hastes das malvas-rosas que se erguiam ao longo das alamedas como os
espectros dessas flores tão brilhantes na estação que acabava de terminar.
            Já por mais de uma vez chegara ao fundo do jardim, ou seja, ao famoso portão que dava para o recinto abandonado, voltando sempre pela mesma alameda e retomando o passeio com o mesmo passo e a mesma atitude, quando olhara maquinalmente para casa, na qual ouvia brincar ruidosamente o filho vindo do colégio para passar o domingo e a segunda-feira junto da mãe.
            Nesse momento viu a uma das janelas abertas o Sr. Noirtier, que fizera rodar até  ali a sua poltrona a fim de fruir os últimos raios de um Sol ainda quente que vinham saudar as flores moribundas dos volúveis e as folhas avermelhadas das vinhas-virgens que atapetavam a varanda.
            O olhar do velho cravara-se, por assim dizer, num ponto que Villefort só distinguia imperfeitamente. Mas esse olhar de Noirtier era tão rancoroso, tão feroz, tão ardente de impaciência, que o procurador régio, habituado a captar todas as impressões daquele rosto, que conhecia tão bem, se afastou da linha que percorria para ver quem era a pessoa que o velho observava assim.
            Viu então, debaixo de um maciço de tílias com os ramos já quase desguarnecidos, a Sra de Villefort, que, sentada com um livro na mão, interrompia de vez em quando a leitura para sorrir ao filho ou devolver-lhe a bola de borracha que ele atirava obstinadamente da sala para o jardim.
            Villefort empalideceu, pois sabia o que queria o velho. Noirtier não tirava os olhos do mesmo alvo, mas, de súbito, o seu olhar desviou-se da mulher para o marido, e o próprio Villefort teve de suportar o ataque daqueles olhos fulminantes que, ao mudarem de alvo, mudaram também de linguagem, sem no entanto perderem nada da sua expressão ameaçadora.
            A Sra de Villefort, alheia a todas aquelas paixões, cujos fogos cruzados lhe passavam por cima da cabeça, segurava naquele momento a bola do filho, ao qual fazia sinal para a vir buscar com um beijo. Mas Edouard fez-se rogar longamente. O mais provável era que a carícia maternal lhe não parecesse recompensa suficiente para o incômodo que ia ter. Por fim decidiu-se, saltou da janela para o meio de um canteiro de
heliotrôpios e rainhas-margaridas e correu para a Sra de Villefort com a testa coberta de suor. A Sra de Villefort limpou-a, pousou os lábios naquele marfim úmido e mandou o garoto embora com a bola numa das mão e um punhado de bombons na outra.
            Levado por invencível atração, tal como o passarinho ‚ atraído pela serpente, Villefort aproximou-se de casa. À medida que se aproximava, o olhar de Noirtier baixava-se para segui-lo, e o fogo das suas pupilas parecia adquirir tal grau de incandescência que Villefort se sentia devorado por ele até ao fundo do coração. Com efeito, lia-se naquele olhar uma cruel censura, ao mesmo tempo que uma terrível ameaça. Então, as pálpebras e os olhos de Noirtier ergueram-se ao céu, como se recordasse ao filho um juramento esquecido.
            - Está bem, senhor - replicou Villefort de baixo, do pátio -, está bem! Tenha paciência durante mais um dia. O que disse está dito.
            Noirtier pareceu acalmar-se com estas palavras e os seus olhos viraram-se com indiferença para outro lado. Villefort desabotoou violentamente a sobrecasaca que o sufocava, passou a mão lívida pela testa e regressou ao seu gabinete.
            A noite passou-se fria e tranquila; todas as pessoas se deitaram e dormiram como de costume naquela casa. Apenas, também como de costume, Villefort não se deitou ao mesmo tempo que os outros e trabalhou até  às cinco da manhã, a rever os últimos interrogatórios feitos na véspera pelos magistrados
instrutores, a compulsar os depoimentos das testemunhas e a burilar o seu libelo acusatório, um dos mais enérgicos e habilmente concebidos que até  então redigira.
            Era no dia seguinte, segunda-feira, que se devia realizar a primeira audiência. Villefort viu despontar esse dia baço e sinistro e a sua claridade acinzentada fez brilhar no papel as linhas traçadas a tinta vermelha. O magistrado adormecera um instante, enquanto o candeeiro dava os últimos suspiros. As crepitações da torcida acordaram-no, com os dedos úmidos e avermelhados como se os tivesse mergulhado em sangue.
            Abriu a janela. Uma grande faixa alaranjada atravessava ao longe o céu e cortava em dois os álamos esguios que se perfilavam a negro no horizonte. No campo de luzerna, do outro lado do portão dos castanheiros, uma cotovia subia no céu, emitindo o seu canto claro e matinal.
            O ar úmido do amanhecer inundou a cabeça de Villefort e refrescou-lhe a memória.
            - Será hoje - disse com esforço. - Hoje, o homem que vai empunhar o gládio da justiça deve ferir onde quer que se encontrem os culpados.
            O seu olhar dirigiu-se então, mal-grado seu, para a janela de Noirtier, que se projetava em ângulo reto, para a janela onde vira o velho na véspera.
            O cortinado estava corrido.
            E no entanto a imagem do pai estava-lhe de tal modo presente que se dirigiu à janela fechada como se estivesse aberta e visse ainda o velho ameaçador.
            - Sim - murmurou –, sim, pode estar tranquilo!
            A cabeça descaiu-lhe para o peito e com ela assim inclinada deu alguns passos no gabinete. Por fim; atirou-se vestido para cima de um canapé, menos para dormir do que para descontrair os membros insensibilizados pela fadiga e pelo frio, que lhe penetrara até  à medula dos ossos.
            Pouco a pouco todos se levantaram. Do seu gabinete, Villefort ouviu o sucessivos ruídos que constituíam por assim dizer a vida da casa: as portas  maciças em movimento, o toque da campainha da Sra de Villefort a chamar a sua criada de quarto, os primeiros grilos do garoto, que se levantava alegre como nos levantamos habitualmente na sua idade. Villefort tocou por seu turno. o seu novo criado de quarto entrou e entregou-lhe os jornais.
            Juntamente com os jornais trouxe uma xícara de chocolate.
            - Que me traz aí? - perguntou Villefort.
            - Uma xícara de chocolate.
            - Não a pedi. Quem tomou essa decisão por mim?
            - A senhora. Disse-me que o senhor falaria decerto muito hoje, nesse caso de assassínio, e que necessitava recuperar forças.
            E o criado pôs em cima da mesa colocada junto do canape - mesa, como todas as outras, carregada de papéis - a xícara de prata dourada
            Depois, saiu.
            Villefort olhou um instante a xícara, com ar sombrio, e depois, de súbito, pegou-lhe com um gesto nervoso e bebeu de um só trago a beberagem que continha. Diria esperar que a beberagem fosse mortal e que procurava a morte para o libertar de um dever que lhe ordenava coisa muito mais difícil do que morrer. Depois levantou-se e passeou no gabinete com uma espécie de sorriso, que seria terrível de ver se alguém o
visse. O chocolate era inofensivo e o Sr. de Villefort não experimentou nada.
            Chegada a hora do almoço, o Sr. de Villefort não apareceu à mesa. O criado de quarto voltou a entrar-lhe no gabinete.
            - A senhora manda prevenir o senhor de que acabam de dar onze horas e a audiência está marcada para o meio-dia.
            - E depois? - perguntou Villefort.
            - A senhora arranjou-se, está pronta, e pergunta se pode acompanhar o senhor.
            - Onde?
            - Ao palácio da Justiça.
            - Para quê?
            - A senhora diz que gostaria muito de assistir à audiência.
            - Ah, ela disse isso?! - exclamou Villefort num tom quase assustador.
            O criado recuou um passo e sugeriu:
            - Se o senhor deseja ir só, eu vou dizer à senhora.
            Villefort ficou um instante calado, cravava as unhas no rosto, em que sobressaía a barba, de um negro de ébano.
            - Diga à senhora - respondeu por fim - que desejo falar-lhe e que lhe peço que me espere nos seus aposentos.
            - Sim, senhor.
            - Depois volte para me barbear e vestir.
            - Imediatamente.
            O criado de quarto saiu e, de fato, voltou pouco depois para barbear Villefort e vesti-lo solenemente de preto.
            Quando terminou informou:
            - A senhora disse que esperaria o senhor assim que o senhor acabasse de se vestir.
            - Vou já. 
            E Villefort, com os processos debaixo do braço e o chapéu na mão, dirigiu-se para os aposentos da mulher. A porta parou um instante e enxugou com o lenço o suor que lhe brotava da fronte lívida.
            Depois empurrou a porta.
            A Sra de Villefort estava sentada numa otomana a folhear com impaciência jornais e brochuras que o jovem Edouard se entretinha a rasgar ainda antes de a mãe ter tempo de acabar de os ler. Encontrava-se completamente vestida para sair. O chapéu esperava-a pousado numa poltrona. Já calçara as luvas.
            - Até  que enfim, senhor! - exclamou, na sua voz natural e calma. - Meu Deus, como está pálido, senhor! Trabalhou toda a noite? Porque não foi almoçar conosco? Então, leva-me consigo ou vou sozinha com Edouard?
            A Sra de Villefort multiplicou, como se vê, as perguntas para obter uma resposta; mas a todas as suas perguntas o Sr. de Villefort ficou frio e mudo como uma estátua.
            - Edouard - disse Villefort, cravando no garoto um olhar imperioso -, vá brincar na sala, meu amigo, pois preciso falar com a sua mãe.
            Ao ver esta atitude fria, este tom resoluto, estes preparativos preliminares estranhos, a Sra de Villefort
estremeceu. Edouard levantara a cabeça e olhara para a mãe. Depois, vendo que ela não confirmava a ordem do Sr. de Villefort, dedicara-se a cortar a cabeça dos seus soldados de chumbo.
            - Edouard! - gritou o Sr. de Villefort tão asperamente que o garoto deu um salto no tapete. - Não me ouviu? Saia!
            O pequeno, muito pouco habituado a ser tratado assim, levantou-se e empalideceu. Seria no entanto difícil de dizer se de cólera ou de medo. O pai foi ao seu encontro, agarrou-o por um braço e beijou-o na testa.
            - Vá, meu filho, vá!...
            Edouard saiu.
            O Sr. de Villefort, dirigiu-se para a porta e fechou-a atrás do filho. Em seguida correu o fecho.
            - Meu Deus! - exclamou a jovem senhora, olhando o marido até  ao fundo da alma e esboçando um sorriso que a impassibilidade de Villefort lhe gelou nos lábios. - Que se passa?
            - Minha senhora, onde guarda o veneno de que se serve habitualmente? - perguntou sem rodeios o magistrado, colocado entre a mulher e a porta.
            A Sra de Villefort experimentou o que deve experimentar a cotovia quando vê o milhafre apertar por cima da sua cabeça os seus círculos mortais. Um som rouco, quebrado, que não era nem um grito nem um
suspiro, escapou-se do peito da Sra de Villefort, que empalideceu até  à lividez.
            - Senhor, não... não compreendo...
            E como se tinha levantado num paroxismo de terror, num segundo paroxismo, mais forte sem dúvida do que o primeiro, deixou-se cair novamente no sofá.
            - Perguntei-lhe - continuou Villefort em voz perfeitamente calma - em que lugar escondia o veneno com que matou o meu sogro, Sr. de Saint-Méran, a minha sogra, Barrois e a minha filha, Valentine. 
            - Meu Deus, que diz o senhor?! – gritou a Sra de Villefort, juntando as mãos.
            - Não lhe cabe interrogar-me, mas sim responder.
            - Ao marido ou ao juiz? - balbuciou a Sra de Villefort.
            - Ao juiz, minha senhora! Ao juiz!
            Era um espetáculo medonho ver a palidez da mulher, a angústia do seu olhar, a tremura de todo o seu corpo.
            - Senhor!... - murmurou. - Ah, senhor!... - foi tudo quanto disse.
            - Não me respondeu, senhora! -  gritou o terrível inquiridor.
            Depois, acrescentou, com um sorriso ainda mais assustador do que a sua cólera:
            - É verdade, pois nem se atreve a negá-lo!
            A mulher esboçou um gesto. Villefort prosseguiu, estendendo a mão para ela como se a fosse prender em nome da justiça:
            - Nem poderia negá-lo! A senhora cometeu esses vários crimes com impudente habilidade, mas que só poderia enganar as pessoas dispostas, devido à sua afeição, a deixarem-se cegar a seu respeito. Desde a morte da Sra de Saint-Méran que sabia existir um envenenador em minha casa; o Sr. de Avrigny avisara-me. Depois da morte de Barrois - Deus me perdoe! - as minhas suspeitas incidiram sobre alguém, sobre
um anjo! As minhas suspeitas, que, mesmo quando não existe crime, estão constantemente despertas no fundo do meu coração. Mas depois da morte de Valentine deixei de ter dúvidas, minha senhora, e não fui só eu que deixei de as ter, o mesmo aconteceu com outras pessoas. Assim o seu crime,é agora conhecido por duas pessoas e suspeitado por diversas, vai tornar-se público; e como lhe dizia há pouco, minha senhora,
já não é um marido que lhe fala, é um juiz!
            A jovem senhora escondeu o rosto nas mãos.
            - Oh, senhor, suplico-lhe que não acredite nas aparências!... - balbuciou.
            - Será covarde? - perguntou Villefort em tom de desprezo. - Com efeito, sempre notei que os envenenadores eram covardes. Será covarde, a senhora que teve a horrível coragem de ver expirar diante de si dois velhos e uma jovem, assassinados por si?
            - Senhor! Senhor!
            - Será covarde - continuou Villefort, com crescente exaltação -, a senhora que contou um a um os minutos de quatro agonias, que imaginou os seus planos infernais e preparou as suas beberagens infames com uma habilidade e uma precisão tão miraculosas? A senhora, que tão bem calculou tudo, terá se
esquecido de calcular uma única coisa, isto é, aonde podia levá-la a revelação dos seus crimes? Oh, é impossível, e decerto guardou algum veneno mais suave, mais sutil e mais mortífero do que os outros para escapar ao castigo que lhe era devido!... Espero que ao menos tenha feito isso.
            A Sra de Villefort torceu as mãos e caiu de joelhos.
            - Bem sei... bem sei que confessa - prosseguiu o marido. -  Mas a confissão feita a juízes, a confissão feita no último momento, a confissão feita quando já não se pode negar, essa confissão não diminui em nada o castigo que eles infligem ao culpado.
            - O castigo! – gritou a Sra de Villefort. - O castigo! É a segunda vez que o senhor pronuncia essa palavra... 
            - Sem dúvida. Seria por ser quatro vezes culpada que julgara escapar-lhe? Seria por ser a mulher daquele que reclama o castigo que se convenceu de que o castigo não a atingiria? Não, minha senhora, não! Seja ela quem for, o cadafalso espera a envenenadora, sobretudo se, como lhe dizia há pouco, a envenenadora não teve o cuidado de conservar para si algumas gotas do seu veneno mais seguro.
            A Sra de Villefort soltou um grito selvagem e um terror medonho e incontível invadiu-lhe as feições descompostas.
            - Oh, não receie o cadafalso, minha senhora! - disse o magistrado. - Não quero desonrá-la, porque isso seria desonrar a mim mesmo. Não, pelo contrário, se me ouviu bem, deve ter compreendido que não pode morrer no cadafalso.
            - Não, não compreendi. Que queria dizer? - balbuciou a pobre mulher, completamente aterrada.
            - Queria e quero dizer que a mulher do primeiro magistrado da capital não conspurcará  com a sua infâmia um nome sem mácula, nem desonrar  ao mesmo tempo o marido e o filho.
            - Não! Oh, não!
            - Pois bem, minha senhora, será uma boa ação da sua parte, uma boa ação que lhe agradeço.
            - Agradece-me?... E o quê?
            - O que acaba de dizer.
            - Que disse eu? Estou de cabeça perdida; já não compreendo nada. Meu Deus! Meu Deus!
            E levantou-se, com o cabelo em desalinho e os lábios espumantes.
            - Respondeu à pergunta que lhe fiz quando entrei aqui. Lembra-se que lhe perguntei onde estava o veneno de que se servia habitualmente, minha senhora?
            A Sra de Villefort ergueu os braços ao céu e apertou convulsivamente as mãos uma na outra.
            - Não! Não! - vociferou. - Não, o senhor não pode querer isso!
            - O que não quero, senhora, é que morra num cadafalso, entende? - perguntou Villefort.
            - Oh, senhor, perdão!
            - O que quero é que seja feita justiça. Estou no mundo para castigar, senhora - acrescentou ele com um olhar chamejante. - A qualquer outra mulher, ainda que fosse uma rainha, a mandaria ao carrasco; mas consigo serei misericordioso. A si digo-lhe: “não é verdade, minha senhora, que guardou algumas gotas do seu veneno mais suave, mais rápido e mais seguro?"
            - Oh, perdoe, senhor, deixe-me viver!
            - Covarde! - gritou Villefort.
            - Lembre-se de que sou sua mulher!
            - O que é, é uma envenenadora!
            - Em nome do céu!...
            - Não!
            - Em nome do amor que teve por mim!...
            - Não, não!
            - Em nome do nosso filho! Ah, pelo nosso filho, deixe-me viver!  
            - Não, não e não, já disse! Um dia, se a deixasse viver, talvez o matasse também, como aos outros.
            - Eu matar o meu filho?! - gritou aquela mãe selvagem correndo para Villefort. - Eu, matar o meu Edouard?!... Ah, ah!
            E um riso horrível, um riso de demônio, um riso de louca concluiu a frase e terminou num estertor cruel.
A Sra de Villefort caíra aos pés do marido. Villefort aproximou-se dela.
            - Tome bem nota disto, senhora: se no meu regresso não estiver feita justiça, a denunciarei por minha própria boca e a prenderei por minhas próprias mãos.
            Ela escutava palpitante, abatida, esmagada; só o olhar vivia nela e alimentava um fogo terrível.
            - Ouviu o que disse - prosseguiu Villefort. - Vou ao tribunal pedir a pena de morte para um assassino... Se no regresso a encontrar viva, dormirá esta noite na Conciergerie.
            A Sra de Villefort soltou um suspiro; os nervos distenderam-lhe e caiu desamparada no tapete.
            O procurador régio pareceu esforçar um gesto de piedade, olhou-a com menos severidade e inclinou-se ligeiramente diante dela.
            - Adeus, minha senhora, adeus! - disse devagar.
            Este adeus caiu como o cutelo mortal sobre a Sra de Villefort, que perdeu os sentidos.
            O procurador régio saiu e fechou a porta à chave.


Capítulo CIX

No tribunal


            O caso Benedetto, como se dizia então no palácio da Justiça e na sociedade, produzira enorme sensação. Frequentador assíduo do Caf‚ de Paris, do Bulevar de ganda e do Bosque de Bolonha, o falso Cavalcanti fizera inúmeros conhecimentos enquanto estivera em Paris e durante os dois ou três meses que durara o seu esplendor. Os jornais tinham contado as diversas fases da existência do réu, tanto na sua vida elegante como na sua vida de forçado, e dai resultara a mais viva curiosidade, sobretudo por parte daqueles que tinham conhecido pessoalmente o príncipe Andrea Cavalcanti. Por isso, estavam decididos a arriscar tudo para irem ver no banco dos réus o Sr. Benedetto, o assassino do seu camarada de grilheta.
            Para muita gente, Benedetto era, senão uma vitima, pelo menos alvo de um erro da justiça. Houvera quem visse o Sr. Cavalcanti pai em Paris e esperasse vê-lo aparecer de novo para defender o seu ilustre rebento. Muitas pessoas que nunca tinham ouvido falar da famosa polaca com a qual se apresentara
em casa do conde de Monte-Cristo tinham ficado impressionadas com o ar digno, com a fidalguia e com a experiência da sociedade que mostrara o velho patrício, o qual,  deve-se dizê-lo, parecia um perfeito cavalheiro quando não abria a boca nem se entregava a exercícios de aritmética.
            Quanto ao próprio réu, muita gente se lembrava de o ter visto tão amável, tão belo e tão pródigo que preferia acreditar em qualquer maquinação da parte de um inimigo, espécie que abunda neste mundo, onde as grandes fortunas elevam os meios de fazer o mal e o bem à altura do maravilhoso e o poder à altura do
inaudito.
            Todos acorreram portanto à audiência, uns para saborear o espetáculo, outros para o comentar. Desde as sete da manhã que havia fila no portão, e uma hora antes da abertura da audiência a sala já estava cheia de privilegiados.
            Antes da entrada dos juízes, e mesmo muitas vezes depois, uma sala de audiência assemelha-se muito, nos dias de julgamento de causas importantes, a um salão onde numerosas pessoas se reconhecem e cumprimentam quando estão suficientemente perto umas das outras para não perderem os seus lugares, e se fazem sinais quando estão separadas por excessivo número de populares, advogados e guardas.
            Estava um magnífico dia de Outono, daqueles que nos compensam por vezes de um Verão ausente ou curto. As nuvens que o Sr. de Villefort vira de manhã encobrir o Sol nascente tinham-se dissipado como que por magia e deixavam brilhar em toda a sua pureza um dos últimos e mais suaves dias de Setembro.
            Beauchamp, um dos reis da imprensa, e que, por consequência, tinha o seu trono em toda a parte, olhava para a direita e para a esquerda. Viu Château-Renaud e Debray, que acabavam de conquistar as boas graças de um polícial e o tinham convencido a pôr-se atrás deles em vez de à frente, como era seu direito.
O digno agente farejara o secretário do ministro e o milionário; mostrou-se portanto cheio de atenções para com os seus nobres vizinhos e até  lhes permitiu irem cumprimentar Beauchamp, prometendo guardar-lhes os lugares.
            - Então, vamos ver o nosso amigo? - perguntou Beauchamp.
            - Sim, é verdade, meu Deus! - respondeu Debray. - O digno príncipe!... Que o diabo leve os príncipes italianos!
            - Um homem que tivera Dante como genealogista e remontava a A Divina Comédia!
            - Na nobreza de corda - observou fleumaticamente Château-Renaud.
            - Será condenado, claro? - perguntou Debray a Beauchamp.
            - Oh, meu caro, é a si, parece-me, que se deve perguntar isso! - respondeu o jornalista. - Conhece melhor do que nós o ambiente do ministério... Viu o juiz-presidente na última festa do seu ministro?
            - Vi.
            - Que lhe disse ele?
            - Uma coisa que o vai admirar.
            - Nesse caso, diga depressa, meu caro amigo, pois há muito tempo que me não dizem nada desse gênero.
            - Bom, disse-me que Benedetto, considerado um fênix de subtileza, um gigante de astúcia, não passa de um vigarista muito subalterno e simplório, e absolutamente indigno das experiências que se farão depois da sua morte com os seus órgãos frenológicos.
            - Ora, ora! - exclamou Beauchamp. - No entanto, desempenhava muito aceitavelmente o papel de príncipe. 
            - Para si, Beauchamp, que detesta os pobres príncipes e que fica encantado quando os apanha em falta; mas para mim, que farejo instintivamente um gentil-homem e “levanto" uma família aristocrática, seja ela qual for, como um perdigueiro levanta a caça.
            - Portanto, nunca acreditou no seu principado?
            - No seu principado, sim; que ele fosse príncipe, não.
            - Bem achado! Garanto-lhe no entanto que para qualquer outra pessoa podia passar perfeitamente por príncipe... Vi-o na casa dos ministros.
            - Sim, claro - interveio Château-Renaud. - Mas atendendo ao que os ministros percebem de príncipes...
            - Há muita verdade no que acaba de dizer, Château-Renaud - declarou Beauchamp, desatando a rir. - A frase é curta, mas agradável. Peço-lhe licença para a utilizar nos meus artigos.
            - Utilize-a, meu caro Sr. Beauchamp, utilize-a - respondeu Château-Renaud. - Dou-lhe a minha frase pelo que ela vale.
            - Mas se eu falei com o juiz - Presidente, você deve ter  falado com o procurador régio, não? - perguntou Debray a Beauchamp.
            - Impossível. Há oito dias que o Sr. de Villefort se fecha em casa, o que é muito natural, atendendo à série estranha de desgostos familiares, coroada com a morte misteriosa da filha...
            - A morte misteriosa da filha?... Que quer dizer com isso, Beauchamp?
            - Pois sim, arme em ignorante a pretexto de que o caso se passou com a nobreza de toga - perguntou Beauchamp, aplicando o monóculo no olho e obrigando-o a segurar-se sozinho.
            - Meu caro senhor - disse Château-Renaud –, permita-me que lhe diga que para usar monóculo não possui a prática de Debray. Debray, dê umas lições ao Sr. Beauchamp.
            - Vejam, creio que não me engano... - disse este último.
            - Em quê?
            - É ela.
            - Ela, quem?
            - Diziam que partira...
            - Mademoiselle Eugénie? - perguntou Château-Renaud. - já terá regressado?
            - Não, mas sim a mãe.
            - A Sra Danglars?
            - Impossível! - exclamou Château-Renaud. - Dez dias depois da fuga da filha e três dias depois da falência do marido!
            Debray corou ligeiramente e seguiu a direção do olhar de Beauchamp.
            - Então, então!... - protestou. - É uma mulher velada, uma dama desconhecida, alguma princesa estrangeira, talvez a mãe do príncipe Cavalcanti... Mas você dizia, ou antes ia dizer coisas muito interessantes, parece-me, Beauchamp.
            - Eu?
            - Sim. Falava da morte misteriosa de Valentine.
            - Ah, sim, é verdade! Mas por que motivo não veio a Sra de Villefort?
            - Pobre mulher! - disse Debray. - está sem dúvida ocupada a destilar água de melissa para os hospitais e a compor cosméticos para ela e para as  amigas. Como sabem, gasta nessa brincadeira dois ou três mil escudos por ano, segundo dizem. Mas de fato você tem razão: por que não terá vindo a Sra de
Villefort? A veria com muito prazer. É uma mulher de quem gosto muito.
            - Pois eu a detesto - disse Château-Renaud.
            - Porquê?
            - Não sei. Por que se ama? Por que se detesta? Detesto-a por antipatia.
            - Ou por instinto, como sempre.
            - Talvez... Mas voltemos ao que dizia, Beauchamp.
            - Bom - prosseguiu o interpelado –, não têm curiosidade de saber, meus senhores, por que motivo se morre tão abundantemente em casa de Villefort?
            - Abundantemente é bonito - comentou Château-Renaud.
            - Meu caro, a palavra encontra-se em Saint-Simon.
            - Mas a coisa passa-se na casa do Sr. de Villefort. Voltemos portanto a ela.
            - Confesso - disse Debray - que há três meses não perco de vista essa casa, desde que o luto entrou nela, e ainda anteontem, a propósito de Valentine, a senhora me dizia...
            - Qual senhora? - perguntou Château-Renaud.
            - A mulher do ministro, apre!
            - Ah, perdão! - desculpou-se Château-Renaud. - Não frequento a casa dos ministros, deixo isso aos príncipes.
            - O senhor não e apenas belo, barão, é também resplandecente. Tenha piedade de nós ou ainda acaba por nos queimar, qual outro Júpiter.
            - Não direi mais nada - declarou Château-Renaud. - Mas que diabo tenham compaixão de mim, não me dêem a deixa.
            - Então, procuremos chegar ao fim do nosso diálogo, Beauchamp. Dizia-lhe que a senhora me pedia anteontem informações a tal respeito. Informe-me e eu a informarei...
            - Bom, meus senhores, se se morre tão abundantemente (mantenho a palavra) em casa de Villefort é porque há um assassino na casa!
            Os dois jovens estremeceram, pois já por mais de uma vez lhes ocorrera a mesma idéia.
            - E quem é o assassino? - perguntaram
            - O pequeno Edouard.
            Uma gargalhada dos dois rapazes não perturbou absolutamente nada o orador, que continuou:
            - Sim, meus senhores, o pequeno Edouard, criança fenomenal, que mata já como gente grande.
            - Está brincando...
            - De modo nenhum. Admiti ontem um criado saído de casa do Sr. de Villefort. Ouçam isto...
            - Estamos ouvindo.
            - E que vou despedir amanhã, porque o indivíduo come como uma frieira para se recompor do jejum de terror que se impunha em casa do anterior patrão. Mas dizia eu... Ah, sim! Parece que o querido menino deitou a mão a um frasco de qualquer droga, que utiliza de vez em quando contra aqueles que lhe desagradam. Primeiro foi o avozinho e a avozinha de Saint-Méran. que lhe desagradaram, e ele deitou-lhes três gotas do seu elixir: três gotas bastam; depois foi o simpático Barrois, velho criado do avozinho Noirtier, que de vez em quando tratava com rispidez o amável garoto. Vai dai, o amável garoto deitou-lhe três gotas do seu elixir. O mesmo aconteceu à pobre Valentine, que não o tratava com maus modos, mas de quem ele tinha ciúmes: deitou-lhe também três gotas do seu elixir, e tanto para ela como para os outros tudo acabou.
            - Mas que diabo de história é essa? - insurgiu-se Château-Renaud.
            - Sim, uma história do outro mundo, não é verdade? - observou Beauchamp.
            - Isso é absurdo - declarou Debray.
            - Pronto, lá estão vocês procurando meios dilatórios! Que diabo, perguntem ao meu criado, ou antes àquele que amanhã já não será meu criado: era o que se dizia lá  em casa.
            - Mas esse elixir, onde está? Qual é?
            - Com a breca, o garoto esconde-o!
            - E onde o arranjou?
            - No laboratório da senhora sua mãe.
            - A mãe tem portanto venenos no seu laboratório?
            - Sei l ! Vocês fazem-me perguntas de procurador régio. Eu repito o que me disseram e mais nada. Cito-lhes o meu autor: é tudo quanto posso fazer. O pobre-diabo já não comia de susto!
            - É incrível!
            - Mas não, meu caro, não tem nada de incrível! Não viram, o ano passado, aquele garoto da Rua de Richelieu que se entretinha matando os irmãos e as irmãs espetando-lhes um alfinete no ouvido enquanto dormiam? A geração que nos segue é muito precoce, meu caro.
            - Meu amigo, aposto que não acredita numa única palavra do que acaba de nos contar... - disse Château-Renaud. - Mas não vejo o conde de Monte-Cristo... Como é que não está aqui?
            - Está muito chocado - informou Debray. - Aliás, não querer aparecer diante de toda a sociedade depois de ser enganado pelos Cavalcanti, que, ao que parece, se lhe apresentaram com falsas cartas de recomendação. Resultado: ficou com uma hipoteca de uma centena de milhar de francos sobre o principado...
            - A propósito, Sr. de Château-Renaud, como está Morrel? - perguntou Beauchamp.
            - Procurei-o por três vezes em sua casa e não o encontrei - respondeu o gentil-homem. - Mas a irmã não me pareceu nada preocupada e até  me disse com um ar muito descontraído que também não o via há dois ou três dias, mas que estava certa de que se encontrava bem.
            - Ah, já descobri! O conde de Monte-Cristo não pode estar na sala - disse Beauchamp.
            - Porquê?
            - Porque é Ator no drama.
            - Também assassinou alguém? - perguntou Debray.
            - Claro que não. Pelo contrário, foi a ele que quiseram assassinar. Bem sabe que foi ao sair de casa dele que o bom Sr. Caderousse foi assassinado pelo seu amiguinho Benedetto.  Também sabe que foi na casa dele que encontraram o famoso colete em que estava a carta que estragou a assinatura do contrato. Está vendo o colete? Está ali, todo ensanguentado, em cima da mesa, como prova de acusação. 
            - Muito bem!
            - Silêncio, meus senhores! Vem aí o tribunal. Vamos para os nossos lugares!
            De fato, ouviu-se um grande barulho no pretório; o polícia chamou os seus dois protegidos com um “pst!" enérgico e o oficial de diligências apareceu à entrada da sala de deliberações e gritou com a voz esganiçada que os oficiais de diligências já tinham no tempo de Beaumarchais:
            - O tribunal, meus senhores!


Capítulo CX

O libelo acusatório


            Os juízes sentaram-se no meio do mais profundo silêncio; os jurados ocuparam os seus lugares: o Sr. de Villefort, alvo da atenção, e diremos quase da admiração geral, sentou-se de cabeça coberta na sua poltrona e passeou um olhar tranquilo à sua volta.
            Todos olhavam com admiração aquela figura grave e severa, sobre cuja impassibilidade os sofrimentos paternais pareciam não ter qualquer influência, e também observavam com uma espécie de terror aquele homem estranho às emoções da humanidade.
            - Guardas, tragam o réu! - ordenou o presidente.
            Após estas palavras, a atenção do público redobrou e todos os olhares se fixaram na porta por onde Benedetto devia entrar. Em breve essa porta se abriu e o réu apareceu.
            A impressão que causou foi a mesma em toda a gente e ninguém se enganou com a expressão da sua fisionomia.
            O seu rosto não apresentava sinais dessa emoção profunda que faz refluir o sangue ao coração e descora a testa e as faces. As suas mãos, graciosamente pousadas, uma em cima do chapéu e a outra na abertura do colete de pique branco, não eram agitadas por nenhuma tremura; os seus olhos estavam calmos e até brilhantes. Assim que entrou na sala, o olhar do rapaz começou a percorrer todas as filas dos juízes e da
assistência, e demorou-se mais longamente no presidente e sobretudo no procurador régio.
            Ao pé de Andrea sentou-se o seu advogado, advogado oficioso porque Andrea não quisera ocupar-se de tais pormenores, aos quais parecera não ligar nenhuma importância, um homem novo, de cabelo louro-deslavado e cara avermelhada por uma emoção cem vezes mais notória do que a do réu.
            O presidente pediu a leitura do libelo acusatório, redigido, como sabemos, pela pena tão hábil como implacável de Villefort. Durante a leitura, que foi longa e que para qualquer outro seria acabrunhante, a atenção pública não cessou de incidir sobre Andrea, que lhe suportou o peso com a grandeza de alma de um espartano.
            Talvez Villefort nunca tivesse sido tão conciso nem tão eloquente. O crime era apresentado sob as cores mais vivas; os antecedentes do réu, a sua transfiguração, a filiação dos seus atos desde uma idade bastante tenra, eram  deduzidos com o talento que a prática da vida e o conhecimento do coração humano podiam fornecer a um espírito tão elevado como o do procurador régio.
            Só com aquele preâmbulo, Benedetto estava para sempre perdido no conceito da opinião pública, que esperava vê-lo punido mais materialmente pela lei.
            Andrea não prestou a mais pequena atenção às acusações que sucessivamente se erguiam e desabavam sobre ele. O Sr. de Villefort, que o observava com frequência e que sem dúvida continuava nele os estudos psicológicos que tantas vezes tivera ensejo de fazer nos acusados, o Sr. de Villefort não conseguiu uma só vez obrigá-lo a baixar os olhos, fosse qual fosse a fixidez e a profundidade do seu olhar.
            Por fim a leitura terminou.
            - Levante-se o réu! Como se chama? - perguntou o presidente.
            Andrea levantou-se.
            - Perdoe-me, Sr. Presidente - disse numa voz cujo timbre vibrava perfeitamente puro –, mas vejo que vai adotar uma ordem de perguntas em que o não posso seguir. Pretendo justificar mais tarde ser uma exceção aos réus vulgares. Peço-lhe portanto se digne permitir-me responder seguindo uma ordem diferente ou não responderei a nenhuma pergunta.
            O presidente, surpreendido, olhou para os jurados, que olharam para o procurador régio. Uma grande surpresa manifestou-se em toda a assembléia, mas Andrea não pareceu nada impressionado com isso.
            - A sua idade?-continuou o presidente.- Responde a esta pergunta?
            - A essa pergunta, como às outras, responderei, Sr. Presidente, mas na sua vez.
            - A sua idade? - repetiu o magistrado.
            - Tenho vinte e um anos, ou antes os terei apenas daqui a uns dias, pois nasci na noite de 27 para 28 de Setembro de 1817.
            O Sr. de Villefort, que estava tomando um apontamento, levantou a cabeça ao ouvir esta data.
            - Onde nasceu? - continuou o presidente.
            - Em Auteuil, perto de Paris - respondeu Benedetto.
            O Sr. de Villefort levantou segunda vez a cabeça, olhou para Benedetto como se olhasse para a cabeça de Medusa e empalideceu. Quanto a Benedetto, passou graciosamente pelos lábios a ponta
bordada de um lenço de cambraia fina.
            - A sua profissão? - perguntou o presidente.
            - Primeiro fui falsário - respondeu Andrea com a maior tranquilidade do mundo –, em seguida fui ladrão e muito recentemente tornei-me assassino.
            Um murmúrio, ou antes uma tempestade de indignação e surpresa ergueu-se em todos os pontos da sala. Os próprios juízes se entreolharam estupefatos e os jurados manifestaram a maior repugnância por aquele cinismo, tão pouco esperado num homem elegante.
            O Sr. de Villefort pôs a mão na testa, que de pálida se tornara vermelha e fervilhante. De súbito levantou-se e olhou à sua volta como um homem alucinado. Faltava-lhe o ar. 
            - Procura alguma coisa, Sr. Procurador régio? – perguntou Benedetto com o seu mais obsequioso sorriso.
            O Sr. de Villefort não respondeu e recompôs-se, ou antes voltou a deixar-se cair na sua poltrona.
            - Será agora que estará disposto a dizer o seu nome? -  perguntou o presidente ao réu. - A afetação brutal com que enumerou os seus vários crimes, que qualificou de confissão, e a espécie de ponto de honra que lhe atribui, coisa por que, em nome da moral e do respeito devido à humanidade, o tribunal o deve repreender severamente, são talvez o motivo que o levaram a não dizer imediatamente o seu nome; quis salientar esse nome com os títulos que o precedem.
            - É incrível, Sr. Presidente - perguntou Benedetto, no tom de vez mais gracioso e com as maneiras mais delicadas –, como leu no fundo do meu pensamento. Foi com efeito com esse fim que lhe pedi que invertesse a ordem das perguntas.
            O espanto atingira o cúmulo, já não havia nas palavras do réu nem bravata, nem cinismo. Impressionado, o auditório pressentia qualquer raio fulminante no fundo daquela nuvem sombria.
            - Pois bem, o seu nome? - perguntou o presidente.
            - Não posso lhe dizer o meu nome porque não sei; mas sei o do meu pai e esse posso dizer-lhe.
            Um deslumbramento doloroso cegou Villefort; viram-se cair das faces gotas de suor ácidas e rápidas em cima dos papéis que revolvia com mão convulsa e desorientada.
            - Diga então o nome do seu pai - prosseguiu o presidente.
            Nem uma aragem. Nem um sopro, perturbavam o silêncio da imensa assembléia; todos esperavam.
            - O meu pai é procurador régio - respondeu tranquilamente Andrea.
            - Procurador régio?! - exclamou com estupefação o presidente, sem notar a transformação que se operava no rosto de Villefort. - Procurador régio?!
            - Sim, e uma vez que deseja saber o seu nome, vou dizer-lhe: chama-se Villefort!
            A explosão tão longamente contida pelo respeito que em audiência se dispensa à justiça brotou como um trovão do fundo de todos os peitos; o próprio tribunal não pensou em reprimir aquele movimento da multidão. As interjeições e as injúrias dirigidas a Benedetto, que permanecia impassível, os gestos enérgicos, a agitação dos guardas e o riso escarninho da parte lodosa que em todas as assembleias sobe à superfície nos momentos de perturbação e escândalo, tudo isso durou cinco minutos antes que os magistrados e os oficiais de diligências conseguissem restabelecer o silêncio. No meio de todo aquele barulho ouvia-se a voz do presidente, que gritava:
            - O réu zomba da justiça e ousa dar aos seus concidadãos o espetáculo de uma corrupção que, numa época que no entanto não deixa nada a desejar a tal respeito, ainda não teve igual!
            Dez pessoas afadigavam-se junto do Sr. Procurador régio, semi-esmagado na sua poltrona, e enchiam-no de palavras de conforto e encorajamento e de protestos de zelo e simpatia. A calma restabelecera-se na sala, excetuando num ponto onde um grupo bastante numeroso se agitava e cochichava.
            Dizia-se que uma mulher acabava de desmaiar; tinham-na feito respirar sais e voltara a si.
            Durante o tumulto, Andrea virara-se sorridente para o público. Por fim, colocara uma das mãos na balaustrada de carvalho do seu lugar, numa atitude deveras graciosa, e dissera:
            - Meus senhores, Deus não permitiria que me atrevesse a insultar o tribunal e a armar na presença do respeitável público um escândalo inútil. Perguntaram me que idade tinha e eu o disse; perguntaram-me onde nasci e eu respondi; perguntaram-me o meu nome e eu não posso dize-lo, porque os meus pais abandonaram-me. Mas posso, sem dizer o meu nome, porque o não sei, dizer o do meu pai. Ora, repito, o meu pai é o Sr. de Villefort e estou pronto a prová-lo.
            Havia no tom do jovem uma certeza, uma convicção, uma energia, que reduziram o tumulto ao silêncio. Os olhares dirigiram-se por um momento para o procurador régio, que conservava no seu lugar a imobilidade de um homem que o raio acabasse de transformar em cadáver.
            - Meus senhores - continuou Andrea, impondo silêncio com o gesto e com a voz –, devo-lhes a prova e a explicação das minhas palavras.
            - Mas - gritou o presidente, irritado - o réu declarou na instrução chamar-se Benedetto, disse ser órfão e deu a Côrsega como sua pátria!
            - Disse na instrução o que me conveio dizer na instrução, pois não queria que diminuíssem ou impedissem, o que não deixaria de acontecer, a repercussão solene que pretendia dar às minhas palavras. Agora repito-lhes que nasci em Auteuil na noite de 27 para 28 de Setembro de 1817 e que sou filho do Sr.
Procurador régio Villefort. Querem pormenores? Vou dar-lhes.
            "Nasci no primeiro andar da casa número 28 da Rua da Fontaine, num quarto forrado de damasco vermelho. O meu pai tomou-me nos braços dizendo à minha mãe que eu estava morto, enrolou-me
numa toalha marcada com um H e um N e levou-me para o jardim, onde me enterrou vivo.
            Um arrepio percorreu todos os presentes quando viram que a segurança do réu crescia para do pânico do Sr. de Villefort.
            - Mas como sabe o réu todos esses pormenores? - perguntou o presidente.
            - Vou dizer-lhe, Sr. Presidente. No jardim onde o meu pai acabava de me enterrar introduzira-se naquela mesma noite um homem que o odiava mortalmente e que o perseguia havia muito tempo para se vingar nele à maneira corsa. O homem eslava escondido num maciço, viu o meu pai enterrar qualquer coisa e
apunhalou-o no meio dessa operação.  Depois, julgando que o que fora enterrado fosse algum tesouro,
abriu a cova e encontrou-me ainda vivo. Esse homem levou-me para o Albergue das Crianças Abandonadas, onde me inscreveram sob o número 57. Três meses depois a irmã do meu salvador veio de Rogliano a Paris procurar-me, reclamou-me como seu filho e levou-me. Aqui está como, apesar de nascido em Auteuil, fui
criado na Córsega.
            Houve um instante de silêncio, mas de um silêncio tão profundo que, sem a ansiedade que pareciam respirar mil peitos, se julgaria a sala vazia.
            - Continue - disse a voz do presidente.
            - Claro - prosseguiu Benedetto - que poderia ter sido feliz em casa dessa boa gente, que me adorava. Mas a minha natural perversidade levou a melhor sobre todas as virtudes que a minha mãe adotiva tentou incutir-me. Cresci no mal e cheguei ao crime. Por fim, num dia em que amaldiçoava Deus por me ter feito tão mau e ter-me dado destino tão horrível, o meu pai adotivo disse-me: “Não blasfeme, desgraçado, pois Deus
deu-te a vida sem cólera! O crime vem do teu pai e não de ti; do teu pai que te votou ao Inferno, se morresse, e à miséria, se um milagre te restituísse à vida!" Desde então deixei de blasfemar contra Deus a amaldiçoei o meu pai. Por isso proferi aqui as palavras que me censurou, Sr. Presidente; por isso causei o escândalo que ainda faz tremer esta assembléia. Se se trata de mais um crime, punam-me por ele; mas se estão
convencidos, se consegui convencê-los de que desde o dia do meu nascimento o meu destino era fatal, doloroso, amargo, lamentável, se compadeçam de mim!
            - Mas a sua mãe? - perguntou o presidente.
            - A minha mãe julgava-me morto; a minha mãe não é de modo algum culpada. Não procurei saber o nome da minha mãe; não a conheço.
            Neste momento soou um grito agudo, que terminou num soluço, no meio do grupo que rodeava, como já dissemos, uma mulher. Essa mulher teve um violento ataque de nervos e foi levada do pretório. Enquanto a levavam, o véu espesso que lhe cobria o rosto afastou-se e reconheceu-se a Sra Danglars.
            Apesar do acabrunhamento, dos seus sentidos embotados e do zumbido que lhe vibrava aos ouvidos; apesar da espécie de loucura que lhe perturbava o cérebro, Villefort reconheceu-a e levantou-se.
            - As provas! As provas! - exigiu o presidente. - Lembre-se o réu de que essa teia de horrores precisa de ser comprovada por provas esmagadoras.
            - As provas? - perguntou Benedetto, rindo. - Quer provas?...
            - Quero.
            - Então olhe para o Sr. de Villefort e depois diga-me se ainda quer que lhe dê provas.
            Todos se voltaram para o procurador régio, que, sob o peso de mil olhares cravados em si, avançou para o recinto do tribunal, cambaleante, com o cabelo em desordem e o rosto congestionado devido à pressão das unhas. A assistência em peso soltou um longo murmúrio de espanto.
            - Pedem-me provas, meu pai - disse Benedetto. - Quer que as dê?
            - Não, não - balbuciou o Sr. de Villefort em voz estrangulada. - Não, é inútil.
            - Como, inútil?! - exclamou o presidente. - Que quer dizer?
            - Quero dizer - perguntou o procurador régio - que me debato em vão sob a pressão mortal que me esmaga, senhores; estou, reconheço-o, na mão do Deus vingador. Nada de provas; não são necessárias. Tudo o que este rapaz acaba de dizer é verdade!
            Um silêncio sombrio e pesado como o que precede as catástrofes da natureza envolveu no seu manto de chumbo todos os presentes, cujos cabelos se lhes punham em pé na cabeça.
            - O quê, Sr. de Villefort - gritou o presidente –, não estará a ser vítima de uma alucinação?! Tem  certeza de que se encontra na plenitude das suas faculdades? Concebe-se que uma acusação tão estranha, tão imprevista, tão terrível, lhe tenha perturbado o espírito... Vamos, domine-se! 
            O procurador régio abanou a cabeça. Os seus dentes entrechocavam-se com violência, como os de um homem devorado pela febre, e no entanto estava de uma palidez mortal.
            - Estou no gozo de todas as minhas faculdades, senhor - respondeu. - Só o corpo sofre, o que se compreende. Reconheço-me culpado de tudo o que este rapaz acaba de dizer contra mim e coloco-me desde já ao dispor, em minha casa, do Sr. Procurador régio meu sucessor.
            E depois de pronunciar estas palavras em voz surda e quase abafada, o Sr. de Villefort dirigiu-se vacilante para a porta, que o oficial de diligência de serviço lhe abriu num gesto maquinal.
            Toda a assistência ficou muda e consternada com revelação e a confissão que davam um desenlace tão terrível às várias peripécias que havia quinze dias agitavam a alta sociedade parisiense.
            - Que me venham dizer agora que o drama não existe na vida real! - exclamou Beauchamp.
            - Palavra de honra que preferiria acabar como o Sr. de Morcerf - disse Château-Renaud. - Um tiro de pistola parece uma ninharia comparado com semelhante catástrofe.
            - Mas mata - observou Beauchamp.
            - E eu que me passou pela cabeça casar com a filha! - declarou Debray. - Fez muito bem em morrer, meu Deus. Pobre criança!
            - A audiência está levantada, meus senhores - disse o presidente -, e o julgamento adiado para a próxima sessão. O processo deve ser instruído de novo e confiado a outro magistrado.
            Quanto a Andrea, sempre muito tranquilo e ainda mais interessante, saiu da sala escoltado pelos guardas, que involuntariamente o tratavam com deferência.
            - Então, que me diz a isto, meu bom homem? - perguntou Debray ao polícial, metendo-lhe um luís na mão.
            - Deve haver circunstâncias atenuantes - respondeu o guarda.

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