terça-feira, 3 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte I (2)

Em baixo, o Cão-Polícia tinha dobrado as suas incríveis patas de insecto e voltara a vibrar
docemente, com os seus olhares multifaces adormecidos.
Montag, de pé, esperava que o terror se lhe dissipasse.
Atrás dele, quatro homens, sentados num canto a uma mesa de jogo sob um candeeiro verde,
lançaram-lhe rápidos olhares, sem dizerem palavra.
Apenas o jogador que usava o boné de capitão com a fénix na pala, conservando as cartas nos
seus dedos esguios, disse enfim, num tom curioso: — Montag?...
— Ele não gosta de mim — disse Montag.
— Quem, o Cão-Polícia? — O capitão examinou as cartas.— Então, então. Ele não gosta nem
detesta ninguém. Funciona, e é tudo. É como uma lição de balística. Descreve a trajectória que lhe
preparamos. Segue a pista, atinge o alvo, volta e pára. Fios de cobre, pilhas e corrente eléctrica, nada
mais.
Montag engoliu em seco.
— Os seus calculadores podem ser regulados sobre qualquer combinação... Tanto de
ácidos aminados, tanto de enxofre, tanto de matérias gordas ou alcalinas. Não é assim?—Já sabemos
isso tudo.
— Todas essas doses químicas, essas percentagens registadas em nós todos aqui no quartel,
estão classificadas no arquivo principal, lá em baixo. Qualquer pessoa poderá facilmente ligar uma
combinação parcial na "memória" do Cão-Polícia, uma determinada dose de ácidos aminados, por
exemplo. Isso poderá explicar o comportamento do animal. Ele reagiu quando me aproximei.
— Isso é uma estupidez! — disse o capitão.
— Ele estava apenas enervado e não francamente colérico. Talvez apenas um elemento de
"memória" fixado por não sei quem, provocando esses grunhidos quando lhe toquei.
— Quem poderia ter semelhante idéia? — perguntou o capitão. — Não tens inimigos aqui,
Guy?
— Que eu saiba, não.
— Amanhã faremos verificar o Cão-Polícia pelos nossos técnicos.
— Já não é a primeira vez que ele me ameaça — disse Montag. — O mês passado, aconteceu
duas vezes.
— Vamos arranjar isso. Não te preocupes.
Mas Montag ficou onde estava, pensando na grade do ventilador no corredor da sua casa e no
que estava escondido atrás dela. Se algum dos seus camaradas soubesse alguma coisa a respeito do
ventilador, não teria ido di^e-lo ao Cão-Polícia?
O capitão veio até junto dele e deitou-lhe um olhar interrogador.
— Pergunto a mim mesmo — disse Montag — no que pode pensar o Cão-Polícia todas as
noites? Pode ele excitar-se verdadeiramente contra nós? Pensar nisso dá-me arrepios.
— Ele não pensa em nada, a não ser naquilo em que lhe mandamos pensar.
— É triste — disse Montag calmamente — porque o encarregam unicamente de caçar,
perseguir e matar. É triste ter de se dizer que ele nunca saberá fazer outra coisa.
Beatty deu uma risada.
— Ora, o que importa é que é uma boa realização técnica, uma espécie de espingarda capaz de
procurar o próprio alvo e que acerta sempre.
— É exactamente por isso — disse Montag — que não me interessa ser a sua próxima vítima.
— Porquê? Não tens a consciência tranqüila.
Montag lançou-lhe um rápido olhar. Beatty contemplou-o um momento, depois a boca
entreabriu-se-lhe e começou a rir suavemente.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete dias. E, cada vez que ele saía de casa, Clarisse aparecia.
Uma vez viu-a sacudindo uma nogueira; outra, sentada no jardim, fazendo uma camisola azul; três ou
quatro vezes encontrou um pequeno ramo de flores nos degraus da sua porta, ou um punhado de
avelãs num pequeno saco, ou folhas outonais pregadas numa folha de papel branco fixada à sua portaj
com umpunaise. Todos os dias Clarisse o encontrava à esquina da rua.
— Como pode ser — disse ele um dia, à entrada do "metro" — que tenha a impressão de a
conhecer há muito tempo?
— Porque eu gosto muito de si — respondeu-lhe ela — e nunca lhe peço nada. E porque nos
conhecemos bem.
— Consigo, sinto-me muito velho e um pouco como um pai.
— Agora diga-me: porque não tem filhas como eu, já que gosta tanto de crianças?
— Não sei.
— Está a brincar!
— Quero dizer... Enfim, a minha mulher não... nunca quis ter filhos.
A jovem deixou de sorrir.
— Desculpe-me. Pensei que estava a troçar de mim. Sou muito estúpida.
— Não, não — disse ele. — É uma pergunta aceitável. Há muito tempo que ninguém ma fazia.
De facto, é uma boa pergunta.
— Falemos de outra coisa. Já alguma vez cheirou as folhas velhas? Não acha que cheiram a
canela? Pegue, cheire.
— É verdade, parece um pouco o cheiro da canela. Ela olhou-o, com um olhar claro e
profundo.
— O senhor parece ter sempre um ar assustado.
— É que nunca tive tempo...
— Viu os cartazes que nunca mais acabam, de que lhe falei?
— Parece-me que sim. — Montag riu.
— O seu riso tornou-se mais agradável.
— Acha?
— Muito mais à vontade.
Ele sentia-se de facto à vontade, eufórico.
— Porque não está nas aulas? Vejo-a todos os dias a passear.
— Oh! Não faço lá falta. Sou anti-social, parece. Não me misturo com os outros. É estranho.
Porém, para mim, acho que sou muito social. Tudo depende do sentido que se dá à palavra, não acha?
Ser social, para mim, é falar—lhe como lhe estou a falar, por exemplo, ou falar do estranho mundo em
que vivemos. É agradável encontrar-mo-nos com outras pessoas. Não vejo o que há de social em pôr
uma quantidade de pessoas juntas para as impedir de falar. Não é da mesma opinião? Uma hora de aula
televisada, uma hora de basquetebol, de basebol ou de corridas a pé, uma outra hora de transcrição de
história ou de pintura e mais uma vez desportos, mas, sabe, nunca ninguém faz perguntas ou, pelo
menos, a maior parte de nós não as faz; contentam-se em meter as respostas na cabeça, bing, bing,
bing, bing, e ficam sentados quatro horas seguidas perante filmes educativos. Isso nada tem de social,
para mim. Faz-me lembrar um barril onde se deite por um lado água que torne a sair pelo outro e que
depois nos digam que é vinho. Eles embrutecem-nos de tal forma que, ao fim do dia, apenas nos
sentimos capazes de ir para a cama ou para um parque de atracções empurrar pessoas, partir vidros na
barraca do "Quebra Vidros", virar automóveis no "Demolicar" com a grande bala de aço ou ainda de
sair num carro e seguir em grande velocidade pelas ruas, rasando os candeeiros, tentando matar galinhas.
No fundo, devo ser aquilo que me acusam de ser. Não tenho um único amigo. Isso chega, parece,
para provar que sou anormal. Mas todos quantos conheço passam o seu tempo a gritar, a saltar como
selvagens ou a baterem-se. Notou como toda a gente se agride, hoje?
— Fala como uma velha.
— Algumas vezes sou muito velha. Tenho medo das crianças da minha idade. Matam-se umas
às outras. Foi sempre assim? O meu tio diz que não. No ano passado, seis dos meus camaradas foram
abatidos. Dez morreram em acidentes de automóvel. Tenho medo deles e eles não gostam de mim
porque eu tenho medo. O meu tio conta que o seu avô se lembrava de uma época em que as crianças
não se matavam umas às outras. Mas isso era há muito tempo, quando tudo era diferente. Elas
acreditavam na responsabilidade, segundo diz o meu tio. Olhe, eu sinto-me responsável. Levei açoites
quando os merecia, há alguns anos. E fiz todo o meu curso e todo o trabalho da casa pessoalmente...
Mas, sobretudo —continuou—, gosto de ver os outros. Algumas vezes, passo todo o dia no "metro",
observando e escutando. Tento imaginar quem são, o que querem, para onde vão. Acontece-me
também ir aos parques de atracções ou subir para os carros a jacto quando fazem a corrida da meianoite
à saída da cidade e, desde que todos estejam no seguro, a. Polícia fecha os olhos. Basta ter um
seguro de dez mil dólares, e toda a gente fica satisfeita. Oiço-os nos "metros" ou nos distribuidores de
sodas, e sabe o que acontece?
— O quê?
— As pessoas não dizem nada.
— Oh! É impossível.
— Não e não. Nada. Citam marcas de automóveis, de fatos, moradas de piscinas e, sobretudo,
dizem: "Oh! Que bom!" Mas dizem todos as mesmas coisas e ninguém tem nunca uma opinião
diferente. E, a maior parte do tempo, nos cafés, põem a funcionar as joke-boxes Q que contam sempre
as mesmas histórias, ou os écrans musicais com todos os desenhos a desfilarem pelas paredes, mas que
nunca são mais nada do que manchas de cores, e sempre abstractos. E nos museus, já lá esteve, por
acaso? Nada mais que abstracções, é tudo. O meu tio diz que dantes era diferente. Há muito tempo, os
quadros representavam coisas ou até mesmo homens.
— O seu tio diz, o seu tio diz. O seu tio deve ser um homem notável.
— Oh! Sim, sem dúvida alguma. Enfim, acho que tenho de me ir embora. Até à vista,
sr. Montag.
— Até à vista.
— Até à vista...
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete dias: o quartel dos bombeiros.
— Montag, sobes por esse mastro como um pássaro numa árvore.
Terceiro dia.
— Montag, vi-te entrar pela porta de trás. O Cão-Polícia assusta-te.
— Não, não. Quarto dia.
Qjoke: história divertida; jogo de palavras à semelhança de Juke box:pick-up automático. ÇSf.doT.)
— Montag, uma história divertida. Contaram-me esta manhã. Um bombeiro de Seattle regulou
voluntariamente um Cão-Polícia Mecânico sobre o seu próprio complexo químico e depois ficou à
espera. Como chamarias tu a esta espécie de suicídio?
Cinco, seis, sete dias.
E então, Clarisse desapareceu.
Ele não soube o que tinha acontecido nessa tarde, mas Clarisse continuou invisível. O jardim
estava vazio, vazias as árvores e a rua. Primeiro, não notou que ela lhe faltava ou que a procurava, mas,
ao chegar ao "metro", sentiu um mal-estar germinar em si. Havia qualquer coisa que não estava certa; a
sua rotina quotidiana estava desorganizada. Uma rotina bem simples, na verdade, estabelecida apenas
em poucos dias e, no entanto... Pensou voltar atrás e tornar a fazer o trajecto, para lhe dar tempo a
aparecer. Estava certo de que, se seguisse de novo o mesmo percurso, tudo se arranjaria. Mas era tarde,
e a chegada do comboio reduziu-lhe o plano a nada.
As cartas que voavam, o movimento das mãos, a agitação das pálpebras, o ruído do relógio
falante no tecto da caserna: "...uma hora e trinta e cinco, quinta-feira, 4 de Novembro... uma hora e
trinta e seis, uma hora e trinta e sete..." A pancada das cartas sobre a mesa gordurosa, todos os sons
chegavam até Montag, por detrás dos seus olhos fechados, por detrás dessa barreira que ele tinha
provisoriamente erguido... "Uma hora e quarenta e cinco." O fono-relógio moía, com voz morna, a
hora fria de uma madrugada fria, de um ano mais frio ainda.
— Que tens, Montag? Montag abriu os olhos.
Um rádio murmurava, em qualquer sítio: — A guerra pode ser declarada de um momento para
o outro. O nosso país está pronto a erguer-se para a defesa de...
A caserna tremeu. Um grupo de aviões de jacto tinha atravessado o céu negro da madrugada,
com um silvo estridente. Montag pestanejou. Beatty olhava-o como se estivesse a examinar uma estátua
num museu.
— É a tua vez de jogar, Montag.
Montag contemplou esses homens de rostos queimados por mil incêndios bem reais e mais dez
mil imaginários, a quem o trabalho inflamava as faces e enchia os olhos de febre. Esses homens cujo
olhar atravessava sem pestanejar a chama dos seus ignidores de platina, enquanto acendiam os
cachimbos de fornilhos eternamente calcinados. Eles e os seus cabelos de antracite, as suas
sobrancelhas cor de ferrugem, as suas faces azuladas, barbeadas de fresco e empoadas de cinza;
impossível enganar-se a respeito deles.
Montag deu um passo e os seus lábios entreabriram-se. Tinha visto alguma vez um bombeiro
que não tivesse os cabelos negros, as sobrancelhas negras, o rosto áspero e esse queixo de reflexos de
aço azulado, barbeado sem o estar? Esses homens eram todos feitos à sua própria imagem! Seriam os
bombeiros escolhidos tanto pelo seu aspecto como pelas suas tendências? Essa cor de cinza que os
rodeia e o perpétuo cheiro carbonizado dos seus cachimbos. O capitão Beatty, entre eles, erguendo-se
numa nuvem pesada de fumo. Beatty abrindo um novo pacote de tabaco e amachucando o invólucro
de celofane que crepita como um incêndio.
Montag olhou para as cartas que tinha nas mãos.
— Eu... perguntava a mim mesmo — disse. — A propósito do fogo da semana passada... Esse
tipo a quem foi liquidada a biblioteca. Que lhe aconteceu?
— Despacharam-no para o asilo. Gritava como um maluco.
— Ele não era doido.
Beatty arrumava calmamente as cartas.
— Todo o homem que pensa poder enganar-nos e ao Governo, é doido.
— Tento imaginar — continuou Montag — o efeito que isso nos faria... ver os bombeiros
queimarem as nossas casas e os nossos livros.
— Nós não temos livros.
— Mas suponhamos que tínhamos.
— Tu tens? Beatty olhava-o.
— Não. — Montag deixou errar o olhar pela parede do fundo, onde estavam afixadas as listas
de um milhão de livros proibidos. Os seus títulos saltavam nas chamas, todo um passado se consumia
sob o seu machado e a sua mangueira que não lançava água, mas gasolina. — Não. — Mas no seu
espírito ergueu-se uma suave brisa que começou a soprar pela grade do ventilador, na sua casa, doce
mente, muito docemente, acariciando-lhe o rosto. E de novo se viu num parque verdejante
conversando com um homem velho, muito velho, e o vento que soprava pelo parque era frio, muito
frio. Montag hesitou: — Teriam... teriam as coisas sido sempre assim? A caserna, a nossa profissão?
Quero dizer... Enfim, não houve uma altura...
— Não houve uma altura...! — disse Beatty. — Ora aí está uma estranha maneira de falar!
"Imbecil", pensou Montag, "acabarás por te trair." — Quero dizer, há muito tempo —
continuou — antes que as casas fossem completamente ignífugas... — Subitamente, pareceu-lhe que
uma voz, muito mais jovem que a sua, estava a falar. Abriu a boca e foi Clarisse McClellan quem
perguntou: — Não é verdade que os bombeiros apagavam os fogos, em vez de os provocar e activar?
— Sempre há cada um! — Stoneman e Black puxaram dos seus manuais que incluíam
igualmente uma história abreviada do corpo de bombeiros da América. Depois colocaram-nos,
abertos, em frente de Montag. Montag conhecia o texto de cor há muito tempo, mas leu;

FUNDADO EM 1790
PARA QUEIMAR OS UVROS
DE INFLUÊNCIA INGLESA
NAS COLÔNIAS
PRIMEIRO BOMBEIRO: BENJAMIM FRANKLIN
REGULAMENTO
1 — Responder rapidamente à chamada;
2 — Incendiar rapidamente;
3 —Queimar tudo;


Todos olharam para Montag, que não se mexia.
O sinal de alarme soou.
A campainha do tecto começou a tocar sem interrupção.
Subitamente, nada mais houve do que quatro cadeiras vazias. As cartas espalharam-se como
uma avalancha de neve. O mastro de bronze vibrou. Os homens tinham partido.
Montag ficara sentado. Em baixo, o dragão vermelho animava-se, rugindo. Montag deixou-se
escorregar pela haste de metal, como num sonho.
O Cão-Polícia Mecânico agitava-se no seu canil, uma chama verde nos olhos.
— Montag, esqueceste-te do capacete.
Ele tirou-o da parede que lhe ficava atrás, correu, saltou e partiram em tromba; o vento
nocturno levava consigo os uivos da sereia e fustigava a poderosa máquina metálica com um rugido de
tempestade.
Era uma casa de dois andares, na parte mais antiga da cidade; tinha mais de um século mas,
como todas as outras casas, tinha sido revestida, alguns anos antes, com uma fina camada plástica
ignífuga e esse envelope protector parecia a única coisa capaz de a manter de pé.
— Cá estamos!
O carro estacou. Beatty, Stoneman e Black atravessaram o passeio, subitamente odiosos,
envoltos nos seus espessos trajos ignífugos. Montag seguiu-o.
Arrombaram a porta de entrada e agarraram uma velha senhora que, no entanto, não corria
nem sequer tentava fugir. Estava simplesmente de pé, oscilando, os olhos fixos no vácuo, em frente da
parede, como se os homens lhe tivessem dado uma terrível pancada na cabeça. A língua agitava-se-lhe
na boca e os olhos pareciam tentar lembrar-se de qualquer coisa. Depois lembrou-se e os seus lábios de
novo se agitaram:
— Seja um homem, sr. Ridley. Vamos hoje, pela graça de Deus, acender na Inglaterra um facho
que, tenho a certeza, nunca mais se extinguira.
— Basta! — disse Beatty. — Onde estão eles? Esbofeteou-a com uma calma surpreendente e
repetiu a pergunta. A velha senhora olhava-o atentamente.
— Sabe perfeitamente onde eles estão — respondeu.— Senão, não estaria aqui.
Stoneman brandia o aviso telefônico de alarme, com a queixa assinada nas costas.
— "Temos razões para suspeitar do sótão: n.° n, Elm, City. E. B." — Deve ser a minha vizinha,
a Sra.Blake — disse a mulher, examinando as iniciais.
— Bem, atenção, rapazes, vamos a isto!
Momentos depois encontravam-se no sótão, no meio de uma escuridão cheirando a mofo,
arrebentando à machadada as portas que nem sequer estavam fechadas à chave, tropeçando em tudo
como garotos travessos e barulhentos.
— Olha!
Uma chuva de livros abateu-se sobre Montag, enquanto ele subia os degraus que conduziam ao
sótão. Que estranha situação! Até àquela altura, nunca tinha sentido a mínima repugnância. A polícia
chegava sempre primeiro ao local, amarrando e amordaçando a vítima, e levando-a no seu carro negro.
Assim, quando chegavam, encontravam apenas uma casa vazia. Não se feria ninguém, apenas se
destruíam as coisas. E as coisas, de facto, não podiam ser feridas, não sentindo nada, não gritando nem
gemendo, ao passo que aquela mulher podia começar a gritar ou a chorar de um momento para o
outro. Assim, quando eram só as coisas, nada restava mais tarde para incomodar a consciência. Tratavase
simplesmente de uma limpeza, de um trabalho de desinfecção. Cada coisa no seu lugar. E,
evidentemente, a gasolina. Quem tem um fósforo? Mas, naquela noite, uma negligência tinha sido
cometida. Aquela mulher perturbava o rito. Os homens faziam muito barulho, riam e troçavam, para
cobrir o seu silêncio terrível e acusador, lá em baixo. A sua presença suscitava nas salas vazias ecos de
um protesto impiedoso e a chuva de uma fina poeira de culpa infiltrava-se-lhes pelas narinas, enquanto
corriam de um lado para o outro.
Não era justo nem delicado. Montag sentia-se invadido por um imenso furor.
Ela não devia estar ali! Livros bombardeavam-lhe as costas, os braços, o rosto virado para cima.
Um livro tombou suavemente, como um pombo branco, nas suas mãos, as asas palpitantes.
Na penumbra, uma página se abriu, como uma pluma de neve, as palavras delicadamente
traçadas na superfície branca. Na confusão, Montag apenas teve um segundo para ler uma linha, mas
essa linha brilhou no seu espírito durante todo o minuto seguinte, como marcada a ferro em brasa: O
tempo adormeceu sob o sol da tarde. Largou o livro. Imediatamente um outro lhe caiu nos braços.
— Montag, chega aqui!
Os dedos de Montag fecharam-se como lábios; apertou o livro com um fervor selvagem, com
uma súbita demência, contra o peito. Os homens, lá em cima, lançavam braçadas de revistas no ar
poeirento. Elas tombavam como aves massacradas e a mulher, em baixo, conservava-se imóvel, como
uma criança, no meio dos cadáveres.
Montag nada tinha feito. Fora a sua mão, a sua mão dotada de um cérebro próprio, de uma
consciência e de uma curiosidade viva em cada um dos seus dedos trementes, que tinha cometido o
roubo.
E agora mergulhava ela por baixo do braço, colocava o livro sob a axila suada e voltava, vazia,
com um gesto de prestidigitador! Olhem! Nada nesta mão! Olhem bem! Contemplou, admirado, aquela
mão branca. Afastou-a de si, como se fosse hipermetrope; aproximou-a, como se fosse cego.
— Montag! Sobressaltou-se.
— Não fiques aí parado, idiota!
Os livros jaziam como se fossem peixes a secar. Os homens dançavam, escorregavam e caíamlhes
em cima. Os olhos de ouro dos seus títulos brilhavam, deslizavam, desapareciam.
— Gasolina!
Começaram a aspirar o líquido frio dos reservatórios numerados 451, ajustados às suas costas.
Aspergiram cada livro, inundaram todas as salas.
Depois desceram a escada a correr; Montag, atrás deles, cambaleava por entre os vapores da
gasolina.
— Vamos embora, mulher!
Ajoelhada entre os livros, ela acariciava o couro e o cartão inundados, seguia os títulos com as
pontas dos dedos, enquanto os seus olhos acusavam Montag.
— Nunca levarão os meus livros — disse.
— Já conhece a lei — respondeu Beatty. — Não terá uma ponta de bom senso? Não há dois
desses livros que estejam de acordo entre si. Você tem passado aqui anos, nesta danada torre de Babel.
Acorde! As personagens desses livros nunca existiram. Vamos, depressa. Ela negou com a cabeça.
— A casa vai explodir — continuou Beatty.
Os homens aproximavam-se da porta, com passos martelados. Deram uma olhadela para trás, a
Montag, que tinha ficado em pé junto da mulher.
— Não vão deixá-la ficar aqui? — protestou.
— Ela não quer vir.
— Então obriguem-na.
Beatty ergueu a mão em que tinha o seu ignitor.
— Devemos voltar para o quartel. Além disso, estes fanáticos tentam sempre suicidar-se. Já
conheço a história.
Montag pousou a mão no braço da velha senhora.
— Deve vir comigo.
— Não — respondeu ela. — Obrigada, apesar de tudo.
— Vou contar até dez — disse Beatty. — Um, dois...
— Faça-me esse favor — insistiu Montag.
— Vá-se embora — disse a mulher.
— Três, quatro...
— Venha! — Montag puxou-a pelo braço.
— Quero ficar aqui — replicou ela, calmamente.
— Cinco, seis...
— Pode parar de contar — disse a mulher.
Afastou ligeiramente os dedos e na sua mão apareceu um pequeno objecto. Um simples
fósforo.
Os homens, ao vê-lo, correram para fora de casa. O capitão Beatty, conservando a sua
dignidade, atravessou lentamente o umbral, recuando, o rosto rosado, queimado e brilhante de mil
incêndios, de mil noites tumultuosas.
"Meu Deus", pensou Montag, "é verdade! Os alarmes são sempre dados de noite. Nunca de
dia! O fogo será mais belo de contemplar à noite? Será o espectáculo mais grandioso, mais
eficiente?" O rosto rosado de Beatty, no enquadramento da porta, traía um princípio de pânico. A
mulher triturava o fósforo entre os dedos. Os vapores de gasolina subiam em volutas à sua volta.
Montag sentia o livro apertado contra o peito, batendo como um coração.
— Vão-se embora! — disse a mulher, e Montag sentiu-se recuar, afastar-se, atravessar a porta
atrás de Beatty, descer os degraus, atravessar o jardim onde o rasto da gasolina serpenteava como uma
serpente maléfica. A mulher apareceu no umbral, imóvel, avaliando-os com o olhar, e a sua calma era
uma condenação sem apelo.
Beatty moveu o ignidor para incendiar a gasolina. Muito tarde. Montag abafou um grito.
A mulher, à porta, estendeu o braço com um gesto de desprezo que os envolveu a todos, e
esfregou o fósforo na balaustrada.
Por toda a rua as pessoas começaram a sair, correndo, das casas...
Voltaram para o quartel em silêncio, sem trocar um olhar. Montag ia sentado à frente, com
Beatty e Black. Nem sequer fumavam cachimbo. Estavam sentados, os olhos fixos na grande
salamandra e não pronunciavam uma palavra.
— "Sr. Ridley" — disse enfim Montag.
— O quê? — perguntou Beatty.
— Ela disse "sr. Ridley". Disse qualquer coisa insensata quando entrámos: "Seja um homem, sr.
Ridley", e não sei que mais.
— "Vamos hoje, pela graça de Deus, acender em Inglaterra um facho que, tenho a certeza,
nunca mais se apagará" — disse Beatty.
Stoneman lançou uma olhadela ao capitão e Montag imitou-o, estupefacto.
Beatty afagou o queixo.
— Um homem chamado Latimer disse estas palavras a um outro que se chamava Nicholas
Ridley, no momento em que iam ser queimados vivos por heresia, em Oxford, a 16 de Outubro de
1555.
Montag e Stoneman voltaram a olhar a rua que deslizava sob rodas do carro.
— Há uma quantidade de frases e passagens que me vêm constantemente à memória. É
inevitável, para a maior parte dos capitães. As vezes surpreendo-me com isto. Atenção, Stoneman!
Stoneman travou subitamente.
— Cos diabos! — disse Beatty. — Acaba de ultrapassar a rua em que devíamos virar para voltar
ao quartel.
— Quem é?
— Quem queres tu que seja? — disse Montag, encostando-se à porta que acabava de fechar, na
escuridão.
— Está bem, acende a luz — disse-lhe a mulher.
— Não quero acender as luzes.
— Vem-te deitar.
Ele ouvia-a agitar-se com impaciência. As molas do colchão gemeram.
— Estás bêbedo? — perguntou-lhe Mildred.
Assim, fora a sua mão quem tinha começado. Sentia as mãos, uma após a outra, despir-lhe o
fato e deixá-lo cair no chão. As suas mãos tinham sido contaminadas e, dentro em breve, seriam os
braços. Sentia já o veneno subindo ao longo dos pulsos, em direcção aos ombros, saltando depois de
uma omoplata à outra, como faíscas entre dois pólos. As suas mãos estavam ávidas. E os olhos
começavam a sentir um irresistível desejo de ver, ver qualquer coisa, ver fosse o que fosse.
— Mas que estás tu a fazer?
Montag hesitou, segurando o livro nos dedos frios e húmidos. Um minuto passou.
— Bem — disse ela —, vê lá se não ficas aí especado no meio do quarto Montag resmungou
vagamente.
— O quê? — perguntou Mildred.
Ele deixou escapar de novo alguns sons indistintos. Depois aproximou-se da sua cama e,
desajeitadamente, colocou o livro sob o travesseiro frio.
Deixou-se cair sobre o leito e a mulher, surpreendida, deu um grito. Estendido, no outro
extremo do quarto, muito longe dela, sentia-se numa ilha hibernai rodeada por um mar vazio. Mildred
falava disto e daquilo, mas apenas embriões de palavras chegavam até ele, vindas da distância. Nada
respondia e, ao fim de um longo momento, sentiu que ela atravessava o quarto, se dirigia para a sua
cama e lhe tacteava o rosto. E quando Mildred retirou a mão, Montag soube que ela estava húmida.
Mais tarde, durante a noite, virou a cabeça para Mildred. Ela não dormia. As linhas de uma
tênue melodia deslizavam pelo ar. Os seus micro-rádios estavam de novo metidos nas orelhas e ela
ouvia longínquas personagens em lugares distantes, os olhos abertos e fixos no vácuo escurecido do
tecto.
Não existia já uma velha anedota a propósito daquela mulher que falava tanto ao telefone que o
marido, desesperado, correra à cabina mais próxima para lhe telefonar e perguntar a ementa do jantar?
De facto, porque não comprava ele um emissor micro-rádio para falar à sua mulher, para murmurar,
gritar, berrar, uivar? Mas que murmuraria ele, que gritaria ele? Que poderia dizer?
E, subitamente, ela pareceu-lhe tão estranha, que teve a convicção de não a conhecer de todo.
Encontrava-se na casa de uma outra como a personagem dessa história, também conhecida, que, ao
voltar para casa completamente bêbedo, se engana na porta, entra num quarto que não é o seu, deita-se
em companhia de um desconhecido, levanta-se cedo e volta para o trabalho sem que, nem um nem
outro, dêem pelo engano.
— Millie?...—disse, em voz baixa.
— Que é?
— Não te quero assustar... queria apenas saber...
— O quê?

— Quando nos encontrámos? E onde?
— Quando nos encontrámos para quê? — perguntou ela.
— Quero dizer... a primeira vez — precisou a pergunta. -----A primeira vez que nos vimos, onde
foi, e quando?
— Mas... foi em... — ela calou-se. — Não sei. Montag sentiu subitamente muito frio.
— Não te lembras?
— Foi já há tanto tempo.
— Dez anos apenas... Sim, só dez anos!
— Não te enerves. Deixa-me reflectir. — Teve um riso seco. — É engraçado, não nos
lembrarmos onde encontrámos o nosso marido ou a nossa mulher.
Montag sentiu subitamente que o mais importante da sua existência era saber onde tinha
encontrado Mildred.
— Deixa lá, não tem importância.
Levantou-se e foi até ao quarto de banho. Ouviu o ruído da água a correr e a deglutição na sua
garganta.
— Não, é provável — disse.
Esforçou-se por contar quantas vezes tomava ela comprimidos e pensou na visita dos dois
homens com rosto de oxido de zinco e os cigarros fixos nas suas bocas rectilíneas, ou no olho
electrónico da serpente que pesquisava e se estorcia sobre si mesma, por entre camadas de estranha
pedra e água estagnada.
E então lembrou-se que, se ela tivesse morrido, não teria certamente chorado uma única
lágrima. Pois nada mais seria do que a morte de uma desconhecida, de um rosto visto na rua, de uma
fotografia de jornal. E, subitamente, essa idéia tornou-se tão intolerável que começou a chorar, não à
idéia da morte, mas à idéia de não chorar perante essa morte, ele, esse homem derisório e vazio junto
dessa mulher derisória e vazia, enquanto a serpente voraz a tornava ainda mais vazia.
"Que pena! O senhor não gosta de ninguém", lembrou-se. E
porque não?
De facto, uma parede se erguia entre ele e Mildred, se se fosse ao fundo das coisas! Não
literalmente uma parede mas, até agora, três! E a que preço exorbitante! E os tios, e as tias, e os primos
e primas, as sobrinhas, os sobrinhos, que viviam nessas paredes, essa multidão gesticulando de
chimpanzés que não dizia nada, nada, nada, e o diziam alto, alto, alto. 'Ele tinha-se acostumado, desde o
princípio, a chamar-lhes seus parentes. Como tem passado hoje o tio Louis? Então? E a tia Maude? A
recordação mais nítida que, na verdade, tinha de Mildred, era a de uma rapariguinha numa floresta sem
árvores (estranho, oh, muito estranho!), ou antes, de uma menina perdida num planalto onde tinham
existido árvores (sentia-se ainda a recordação das suas formas), sentada no centro de uma sala de estar.
A sala de estar: boa piada, terem posto tal etiqueta a essa sala.
A qualquer hora que voltasse para casa, as paredes estavam sempre a falar a Mildred.
— É necessário fazer qualquer coisa!
— Sim, é absolutamente necessário fazer qualquer coisa!
— Pois bem, não fiquemos silenciosos; conversemos.
— Isso mesmo, conversemos!
— Estou com uma destas neuras!
Para que serviam essas elucubrações? Mildred era incapaz de o dizer. Quem estava
contra quem? Mildred não o sabia. Que iriam fazer?
Mas, dizia Mildred, espera a continuação. Ele
tinha esperado a continuação.
Uma tempestade de sons desencadeou-se nas paredes. A música bombardeava-o com tal
violência que tinha os ouvidos quase destruídos; sentia o queixo vibrar, os olhos saltarem-lhe. Era
vítima de uma verdadeira comoção. Quando tudo acabou, experimentou a sensação de ter sido atirado
do alto de uma falésia, envolvido num turbilhão e levado por uma catarata que caía no vácuo, no vácuo
sem nunca... tocar... completamente... o fundo... nunca... nunca... completamente... não, não
completamente... o fundo... e mergulhava-se aí tão depressa que não era possível tocar nos lados...
nunca se conseguiria tocá-los... verdadeiramente... fosse o que fosse.
A tempestade parou. A música desapareceu.
— Pronto! — disse Mildred.
E era notável, na verdade. Qualquer coisa se tinha passado. Se bem que as personagens nas
paredes mal se tivessem mexido, que nada, de facto, tivesse sido resolvido, tinha-se a impressão de que
alguém tinha posto a funcionar uma máquina de lavar com que os absorvia, num gigantesco aspirador.
Era o afogamento na música, numa cacofonia absoluta.
Saiu da sala tremendo e quase a desmaiar.
Atrás dele, Mildred estava sentada no seu maple e as vozes elevavam-se de novo.
— Vejamos, tudo correrá bem agora — disse uma tia.
— Oh! Não estou absolutamente certo — disse um primo.
— Então, não te arrelies!
— Quem é que se arrelia?
— Tu.
— Eu?
— Estás furiosa!
— Por que ra^ão estaria furiosa?
— Porque sim.
— Está tudo muito bem — gritou Montag. — Mas a propósito de que estarão eles furiosos?
Quem são esses tipos? São casados, divorciados, noivos,,ou quê? Diabos me levem se percebo alguma
coisa.
— Eles... — disse Mildred. — Pois. Eles... eles estão zangados, compreendes. De facto,
zangam-se muito uns com os outros. Deves prestar atenção. Creio que são casados; sim, é isso, são
casados. Porquê?
E se não eram as três paredes, que em breve seriam quatro, era o carro aberto e Mildred
conduzindo a cento e cinqüenta por hora através da cidade; ele uivando qualquer coisa a Mildred e ela
uivando-lhe uma resposta; cada um tentando ouvir o que o outro dizia, mas ouvindo apenas o rugido
do motor.
— Abranda até ao mínimo autorizado! — gritava ele.
— O quê? — clamava ela.
— Abranda para oitenta, o mínimo! — vociferava Montag.
— O quê? — gritava ela.
— Mínimo de velocidade!—berrava ele.
Ela aumentava para cento e sessenta por hora e a respiração de Montag estalava-lhe na boca. Ao
descerem do carro, ela tinha os micro-rádios metidos nas orelhas. Silêncio! Apenas o vento
murmurava docemente.
— Mildred — Montag agitou-se na cama.
Estendeu o braço e arrancou-lhe o minúsculo insecto musical das orelhas.
— Mildred, Mildred!
— Que é? — respondeu ela, com voz distante.
— Mildred, conheces aquela rapariga de que te falei?
— Qual rapariga? — Estava quase adormecida.
— A nossa vizinha.
— Qual vizinha?
— Bem sabes, a estudante. Chama-se Clarisse.
— Ah, sim! — respondeu Mildred.
— Já não a vejo há alguns dias. Quatro, para ser preciso. Viste-a?
— Não.
— Tinha intenção de te falar dela. É curiosa.
— Oh, estou a ver o que queres dizer.
— Não achas?
— Ela...—disse Mildred, na escuridão do quarto.
— Sim...
— Estava justamente para te dizer. Mas esqueci-me... esqueci-me.
— Diz-me agora. De que se trata?
— Creio que ela partiu.
— Partiu?
— Toda a família se mudou. Mas ela partiu para sempre. Creio que morreu.
— Tens a certeza?
— Não. Mas quase.
— Porque não me disseste mais cedo?
— Esqueci-me.
— Apenas quatro dias.
— Esqueci-me de toda essa história.
— Quatro dias — disse ele, numa voz calma. Estavam ambos estendidos na escuridão, imóveis.
— Boa noite — disse ela.
Ele ouviu um ligeiro zumbido. De novo o micro-rádio vibrava, junto do tímpano de Mildred.
Pôs-se à escuta. A sua mulher cantarolava, baixinho. Fora, uma sombra vacilou. Uma vaga de vento de
Outono elevou-se e perdeu-se. Mas havia outra coisa no silêncio. Uma espécie de resfolgar, junto da
janela. Como uma vaga faixa de fumo esverdeado e luminoso, uma grande folha de Outubro
estremeceu através do jardim.
"O Cão-Polícia", pensou Montag. "Está lá fora, esta noite. Está lá, agora. Se abrisse a janela..."
Não abriu a janela.
De manhã tinha febre e arrepios.
— Vejamos, não estás doente — disse Mildred. Ele fechou os olhos, que lhe ardiam.
— Estou.
— Mas ontem à noite estavas óptimo.
— Não, não estava.
Ouvia os "parentes" gritando na sala. Mildred, de pé junto da cama, observava-o com
curiosidade.
— Queres trazer-me aspirina e água?
— Tens que te levantar — disse ela. — É meio-dia. Dormiste mais cinco horas que o costume.
— Poderias fechar a emissão no salão? — pediu Montag.
— Mas é a minha família!
— Poderás fazer isso por um tipo que se sente verdadeiramente mal?
— Vou baixar a potência.
Saiu da sala, não tocou no aparelho e voltou. —'Está melhor assim?
— Obrigado.
— É o meu programa preferido.
— E a minha aspirina?
— Até agora, nunca tinhas estado doente. Tornou a sair.
— Pois é, mas começo hoje. Esta noite não vou trabalhar. Previne Beatty, da minha parte.
— Estavas muito esquisito a noite passada. — Ela voltava, cantarolando.
— Onde está a aspirina? — Montag deu uma olhadela ao copo de água que ela lhe estendia.
— Oh! — Mildred voltou à casa de1 banho. — Mas, afinal, o que é que houve?
— Apenas um fogo.
— Passei uma noite esplêndida.
— A fazer o quê?
— No salão.
— Que é que transmitiram?
— Programas.
— Que programas?
— Os melhores.
— Quais?
— Oh! Bem sabes... todo o grupo.
— Claro, o grupo, o grupo, o grupo.
Esfregou os olhos dolorosos com os punhos e, subitamente, o cheiro da gasolina fê-lo vomitar.
Mildred voltava ao quarto, cantarolando.
— Porque fizeste isto?—perguntou, surpreendida. Olhou o chão, com desgosto.
— Queimaram uma mulher com os seus livros.
— Felizmente o tapete é lavável. — Ela foi buscar um esfregão e começou a limpar.
— Estive em casa de Helen, a noite passada.
— Não podias ver a emissão aqui em casa?
— Claro que podia. Mas é divertido fazer visitas. Tornou a desaparecer no salão. Ele ouviu-a
cantar.
— Mildred! — gritou.
Ela voltou cantando, e fazendo estalar os dedos.
— Não te interessa o que se passou ontem à noite?
— Diz, diz.
— Queimámos cerca de mil livros... queimámos uma mulher.
— E então?
No salão, houve uma explosão de sons.
— Queimámos livros de Dante, de Swift, de Marco—Aurélio.
— Esse não era um Europeu?
— Parece que sim.
— E não era extremista?
— Nunca o li.
— Com certeza que era um extremista. — Mildred mexia no telefone. — Pensas que devo
telefonar a Beatty?
— Evidentemente!
— Não grites!
— Não estou a gritar! — Montag tinha-se subitamente sentado na cama, a tremer,
congestionado. O salão rugia, no ar ardente. — Não posso dizer-lhe que estou doente.
— Porquê?
"Porque tenho medo", pensou. "Porque sou como uma criança que finge estar doente. Receio
telefonar porque, após uns momentos de discussão, a conversa acabará assim: "Claro, capitão, já me
sinto melhor. Estarei aí às dez horas."
— Tu não estás doente — disse Mildred.
Montag tornou a deitar-se. Meteu a mão debaixo do travesseiro. O livro lá estava.
— Mildred, que dirias tu se... se eu deixasse o trabalho por algum tempo?
— Queres abandonar tudo? Depois de tantos anos de trabalho, apenas porque, certa noite, uma
mulher qualquer e os seus livros...
— Se a tivesses visto, Millie!
— Para mim, ela nada significa. Não devia ter esses livros. A culpa foi dela. Devia ter pensado
nisso. Detesto-a. Pôs-te a cabeça às voltas e, se isso continua, encontrar-nos-emos na rua, sem casa,
sem trabalho, sem nada.
— Não estavas lá, não a viste — disse ele. — Deve haver alguma coisa nesses livros, coisas que
não podemos imaginar, para decidir uma mulher a ficar numa casa que arde; há com certeza uma razão.
Não se age dessa maneira, por nada.

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