terça-feira, 24 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 81 ao 90

Capítulo LXXXI

O quarto do padeiro reformado


            Na noite do mesmo dia em que o conde de Morcerf saíra de casa de Danglars com uma humilhação e um furor justificados pela frieza do banqueiro, o Sr. Andrea Cavalcanti, com o cabelo frisado e brilhante, o bigode aguçado e as luvas brancas a desenharem-lhe as unhas, entrou quase de pé no seu faeton no pátio do banqueiro da Chaussée-d'Antin.
            Ao cabo de dez minutos de conversação na sala, arranjara maneira de conduzir Danglars para o vão de uma janela e aí, depois de um hábil preâmbulo, expusera os tormentos da sua vida desde a partida do seu nobre pai. Desde essa partida encontrara, dizia, na família do banqueiro, onde se tinham dignado recebê-lo como filho, todas as garantias de felicidade que um homem deve sempre procurar antes dos caprichos da
paixão e, quanto à própria paixão, tivera a sorte de a encontrar nos belos olhos de Mademoiselle Danglars. 
            Danglars escutava com a mais profunda atenção. Havia dois ou três dias que esperava aquela declaração, e quando ela por fim chegou, os seus olhos dilataram-se tanto como se tinham empequenecido e nublado ao ouvir Morcerf.
            No entanto, não quis aceitar sem mais nem menos a proposta do rapaz sem lhe apresentar algumas observações de consciência.
            - Sr. Andrea, não será um pouco novo para pensar em casamento?
            - De modo nenhum, senhor - perguntou Cavalcanti. - Pelo menos, eu não acho. Na Itália, os grandes senhores casam-se novos, em geral; é um costume lógico. A vida é tão incerta que se deve agarrar a felicidade logo que ela passa ao nosso alcance.
            - Agora, senhor - disse Danglars –, admitindo que as suas propostas, que me honram, sejam do agrado da minha mulher e da minha filha, com quem debateríamos os interesses? Parece-me tratar-se de uma negociação importante que só os pais sabem tratar convenientemente a bem da felicidade dos filhos.
            - Senhor, o meu pai é um homem ponderado, cheio de bom senso e razão. Previu a circunstância provável de eu experimentar o desejo de me instalar na França e deixou-me, portanto, ao partir, todos os documentos que comprovam a minha identidade e uma carta em que me garante, no caso de eu fazer uma escolha que lhe seja agradável, cento e cinquenta mil libras de rendimento a partir do dia do meu casamento. Trata-se, tanto quanto suponho, de um quarto dos rendimentos do meu pai.
            - Mas eu sempre tive a intenção de dar à minha filha, quando se casasse, quinhentos mil francos - observou Danglars. - De resto, é a minha única herdeira.
            - Como vê – disse Andrea –, tudo se resolveria da melhor maneira na hipótese de o meu pedido não ser rejeitado pela Sra Baronesa Danglars e por Mademoiselle Eugênie. Teríamos cento e setenta e cinco mil libras de rendimento. Suponhamos uma coisa: que eu consegua que o marquês, em vez de me pagar a renda, me desse o capital (não seria fácil, bem sei, mas enfim, é possível). O senhor nos faria tornar produtivos
esses dois ou três milhões, e dois ou três milhões numas mãos hábeis podem sempre render dez por cento.
            - Nunca dou mais do que quatro, e até  do que três e meio - perguntou o banqueiro.- Mas ao meu genro daria cinco e dividiríamos os lucros.
            - Ótimo, sogro! - exclamou Cavalcanti, deixando-se levar pela sua natureza um tanto vulgar, que de vez em quando, apesar dos seus esforços, fazia estalar o verniz de aristocracia com que procurava cobrir-se.
            Mas corrigiu-se imediatamente:
            - Oh, perdão, senhor! Como vê, só a esperança já quase me faz perder a cabeça; que seria se fosse a realidade?...
            - Mas - observou Danglars, que pela sua parte não notava até que ponto a conversa, de início desinteressada, se tornara rapidamente uma agência de negócios - há sem dúvida uma parte da sua fortuna que o seu pai não pode lhe recusar?...
            - Qual? - perguntou o rapaz.
            - A que vem da sua mãe.
            - Ah, certamente, a que vem da minha mãe, Leonora Corsinari!
            - E a quanto pode ascender essa parte? 
            - Palavra de honra, senhor - disse Andrea –, garanto-lhe que nunca me detive pensando nisso, mas calculo que a uns dois milhões, pelo menos.
            Danglars experimentou a espécie de sufocação jubilosa que sentem ou o avaro que encontra um tesouro perdido ou o homem prestes a afogar-se que depara debaixo dos pés com a terra firme em vez do vácuo que o iria engolir.
            - Então, senhor - insistiu Andrea, cumprimentando o banqueiro com terno respeito –, poderei esperar?...
            - Sr. Andrea - respondeu Danglars –, espere e creia que se da sua parte nenhum obstáculo detiver o andamento deste negócio, ele está concluído. Mas - perguntou pensativo - como se explica que o Sr. Conde de Monte-Cristo, seu patrono na sociedade parisiense, não tenha vindo consigo fazer-nos esse pedido?
            Andrea corou imperceptivelmente.
            - Venho de casa do conde, senhor - respondeu. - Trata-se incontestavelmente de um homem encantador, mas de uma originalidade inconcebível. Aprovou com entusiasmo a minha decisão; disse-me até  que não acreditava que o meu pai hesitasse um instante em dar-me o capital em vez da renda e prometeu-me a sua influência para me ajudar a obter isso dele; mas declarou-me que pessoalmente nunca tomara nem tomaria a responsabilidade de fazer um pedido de casamento. Mas, devo prestar-lhe essa justiça, dignou-se acrescentar que se alguma vez deplorara essa repugnância, nunca a deplorara tanto como agora, a meu respeito, pois pensava que a união projetada seria feliz e adequada. De resto, embora nada queira fazer
oficialmente, disse-me que não terá dúvida em tocar no assunto quando o senhor lhe quiser falar dele.
            - Ah, muito bem!
            - Agora - disse Andrea, com o seu mais encantador sorriso -, uma vez que já acabei de falar ao sogro, dirijo-me ao banqueiro.
            - Que deseja? - perguntou Danglars, também rindo.
            - Depois de amanhã tenho a receber no seu banco uns quatro mil francos. Mas o conde compreendeu que o mês em que vamos entrar talvez me traga um aumento de despesas que a minha pequena mesada de rapaz não suportaria, e por isso aqui tem uma ordem de pagamento de vinte mil francos que ele, não direi me deu, mas sim me ofereceu. está assinada pelo seu punho, como vê. Aceita-a?
            - Traga-me ordens destas no valor de um milhão, que eu aceito-as todas - respondeu Danglars, metendo a ordem de pagamento na algibeira. - Diga-me a que horas quer o dinheiro amanhã e o meu pagador passará pela sua casa com um recibo de vinte e quatro mil francos.
            - Às dez da manhã, se não se importa. Quanto mais cedo, melhor. Tenciono ir até  ao campo, amanhã...
            - Seja, às dez horas. Continua no Hotel dos Príncipes?
            - Continuo.
            No dia seguinte, com uma exatidão que honrava a pontualidade do banqueiro, os vinte e quatro mil francos estavam em poder do rapaz, que saiu efetivamente, deixando duzentos francos para Caderousse.
            A saída tinha, da parte de Andrea, como objetivo principal evitar o seu perigoso amigo. Por isso, regressou à noite o mais tarde possível. Mas assim que pôs o pé no pavimento do pátio, encontrou diante
de si o porteiro do hotel, que o esperava de boné na mão. 
            - Excelência, veio o tal homem - informou.
            - Qual homem? - perguntou negligentemente Andrea, como se o tivesse esquecido, quando, pelo contrário, se lembrava dele muito bem.
            - Aquele a quem V. Exª  dá aquela pensãozinha.
            - Ah, sim, o antigo criado do meu pai! - disse Andrea. - E você deu-lhe os duzentos trancos que lhe deixei para ele.
            - Dei, Excelência.
            Andrea fazia-se tratar por Excelência.
            - Mas - continuou o porteiro - ele não quis recebe-los.
            Andrea empalideceu. Mas como era de noite, ninguém o viu empalidecer.
            - Como, não quis recebe-los! - admirou-se, com voz ligeiramente trêmula.
            - Não. Queria falar com V. Exª . Respondi-lhe que o senhor tinha saído. Insistiu. Mas por fim pareceu se convencer e deu-me esta carta, que já trazia fechada.
            - Vejamos... - murmurou Andrea.
            E leu à luz da lanterna do faeton: “Sabe onde moro. Te espero amanhã às nove horas da manhã."
            Andrea examinou o lacre para ver se a carta não fora violada e se olhares indiscretos não tinham tomado conhecimento do seu conteúdo. Mas ela estava dobrada de tal forma, com tal abundância de ângulos e losangos, que para a ler seria necessário quebrar o lacre. Ora o lacre estava perfeitamente intacto.
            - Muito bem - disse. - Pobre homem! É uma excelente criatura.
            E deixou o porteiro edificado com estas palavras e sem saber quem mais devia admirar, se o jovem amo ou o velho criado.
            - Desatrela depressa e sobe ao meu quarto - ordenou Andrea ao seu groom.
            Em dois saltos, o jovem chegou ao quarto e queimou a carta de Caderousse, de que fez desaparecer até  as cinzas. Terminava essa operação quando o criado entrou.
            - Você é da mesma estatura que eu, Pierre - disse-lhe.
            - Tenho essa honra, Excelência - respondeu o criado.
            - Deve ter uma libré nova que te trouxeram ontem, não tem?
            - Tenho, sim, Excelência.
            - Tenho um encontro com uma costureirinha, a quem não quero revelar nem o meu título nem a minha condição.  Empreste-me a tua libre e os teus documentos, para que possa, se for necessário, dormir numa estalagem.
            Pierre obedeceu. Cinco minutos mais tarde, Andrea, completamente disfarçado, saía do hotel sem ser reconhecido, tomava um cabriolé e fazia-se conduzir à Estalagem do Cavalo Vermelho, em Piepus.
            No dia seguinte, saiu da Estalagem do Cavalo Vermelho como saíra do Hotel dos Príncipes, isto é, sem ser notado, desceu o Arrabalde de Santo Antônio, meteu pelo bulevar até  à Rua de Ménilmontant, parou à porta da terceira casa à esquerda e, na ausência do porteiro, procurou quem lhe pudesse dar informações.
            - Quem procura, meu lindo menino? - perguntou-lhe a vendedora de fruta em frente.
            - O Sr. Pailletin, por favor, tiazinha - respondeu Andrea.
            - Um padeiro reformado? - perguntou a vendedeira. 
            - Exatamente.
            - No fundo do pátio, à esquerda, no terceiro andar. Andrea seguiu o caminho indicado, e no terceiro andar encontrou uma “pata de lebre", que agitou com um sentimento de mau humor, de cujo movimento precipitado a campainha se ressentiu. Passado um segundo, o rosto de Caderousse apareceu no ralo
praticado na porta.
            - Ah, você é pontual! - observou, e correu os ferrolhos.
            - Não me chateie! - perguntou Andrea, entrando.
            E atirou adiante de si o barrete da libré, que, falhando a cadeira, caiu no chão e deu a volta ao quarto rolando sobre a sua circunferência.
            - Vamos, vamos, não se zangue, pequeno! - aconselhou Caderousse. - Repare como pensei em você. Já viu o bom café da manã que nos espera? Só coisas que você gosta, meu finôrio!
            De fato, Andrea notou no ar um cheiro a cozinha cujos aromas grosseiros não deixavam de possuir certo encanto para o seu estômago faminto: primeiro, a mistura de gordura fresca e alho que marca a cozinha provençal de ordem inferior; depois, um cheiro a peixe gratinado e sobretudo o perfume intenso da noz-moscada e do cravinho. Todos estes cheiros provinham de duas travessas fundas e cobertas, colocadas em cima de dois fornilhos, e de uma caçarola que rechinava no forno de um fogão de ferro fundido.
            Na divisão contígua, Andrea viu, além de uma mesa bastante limpa e adornada com dois talheres, duas garrafas de vinho seladas, uma de verde e a outra de amarelo, uma boa quantidade de aguardente numa outra garrafa e uma macedônia de frutas numa grande folha de couve colocada com arte num prato de
faiança.
            - Que te parece, pequeno? - perguntou Caderousse. - Como isto cheira bem! Mas não admira, como sabes, era um bom cozinheiro ... naquele lugar! Lembras-se como lambiam os dedos com os meus cozidos? E você era sempre o primeiro a saborear os meus molhos, e olha que lhe não torcia o nariz!...
            E Caderousse pôs-se a descascar um suplemento de cebolas.
            - Está bem, está - perguntou Andrea, irritado. - Com a breca, se foi para almoçar contigo que me incomodou, que o Diabo te leve!
            - Meu filho, enquanto se come, se conversa - perguntou sentenciosamente Caderousse. - E depois, grande ingrato, não tem prazer em ver um bocadinho o seu amigo? Pois eu choro de alegria.
            Com efeito, Caderousse chorava realmente. Só que seria difícil dizer se era a alegria ou se eram as cebolas que agiam sobre a glândula lacrimal do antigo estalajadeiro da Pont-du-Gard.
            -  Cale-se, hipócrita. Meu amigo, você?...
            - Sim, sou teu amigo, diabos me levem! É uma fraqueza, bem sei, mas é mais forte do que eu... - confessou Caderousse.
            - O que não te impede de me ter feito aqui vir para qualquer perfídia...
            - Então, então!... - exclamou Caderousse, limpando uma grande faca ao avental. - Se não fosse teu amigo, suportaria a vida miserável que me proporciona? Olha bem: veste a libré do teu criado, prova de que tem um criado; pois eu não tenho e sou obrigado a descascar eu próprio os meus legumes. Desdenha a
minha cozinha porque janta à mesa redonda do Hotel dos  Príncipes ou no Café de Paris. Pois eu também poderia ter um criado; e também poderia ter um tílburi; e jantar onde me apetecesse... E privo-me de tudo isso porquê? Para não prejudicar o meu pequeno Benedetto... Vamos, confessa ao menos que poderia, hem?
            E um olhar perfeitamente elucidativo de Caderousse concluiu o sentido da frase.
            - Bom, admitamos que é meu amigo - concedeu Andrea. - Nesse caso, porque exige que venha almoçar contigo?
            - Mas para te ver, meu querido!...
            - Que adianta me ver, se estabelecemos antecipadamente todas as nossas condições?
            - Meu caro amigo, existem porventura testamentos sem codicilos? - observou Caderousse. - Mas veio para almoçar, não é verdade? Então sente-se e comecemos por estas sardinhas e esta manteiga fresca, que
coloquei em folhas de videira em tua intenção, minha peste...Ah, sim, examina o meu quarto, as minhas quatro cadeiras de palhinha e as minhas imagens a três francos o quadro!...Demônio, que queria, se isto não é o Hotel dos Príncipes?...
            - Pronto, agora está descontente! Já não está feliz, e no entanto só queria ter o ar de um padeiro reformado...
            Caderousse suspirou.
            - Então, que tem a me dizer? - perguntou Andrea. - Viu o teu sonho realizado.
            - Tenho a dizer que é um sonho. Um padeiro reformado, meu pobre Benedetto, é rico, tem rendimentos.
            - E você não tem os seus rendimentos?
            - Eu?
            - Sim, você, uma vez que te dou duzentos francos.
            Caderousse encolheu os ombros.
            - É humilhante - declarou - receber assim dinheiro dado contra vontade, dinheiro efêmero, que me pode faltar de um dia para o outro. Bem vê que sou obrigado a fazer economias para o caso de a tua prosperidade não durar ... Sim, meu amigo, a sorte é inconstante, como dizia o capelão do regimento. Sei perfeitamente que a tua prosperidade é enorme, celerado... Vai casar com a filha de Danglars.
            - Como? De Danglars?!
            – Sim, de Danglars! Ou devo dizer o barão Danglars? É como se dissesse o conde Benedetto... Danglars era um amigo, e se não tivesse tão má memória deveria convidar-me para a boda... atendendo a que foi à minha... Sim, sim, sim, à minha! Nesse tempo não era tão orgulhoso; não passava de um
escriturariozinho em casa desse bom Sr. Morrel. Jantei mais de uma vez com ele e com o conde de Morcerf... Como vê, tenho excelentes conhecimentos e gostaria de os cultivar um bocadinho. Poderíamos reencontrar-nos nos mesmos salões...
            - A tua inveja te faz ver arcos-íris, Caderousse.
            - Pois sim, Benedetto mio, mas eu sei o que digo. Talvez um dia vista também o meu fato dos domingos e vá dizer ao porteiro de um desses palácios: “Abra, por favor!" Entretanto, sentemo-nos e comamos.
            Caderousse deu o exemplo e pôs-se a comer com bom apetite e a elogiar todas as iguarias que servia ao seu convidado. 
            Este pareceu tomar o seu partido: abriu habilmente as garrafas e atacou a caldeirada e o bacalhau gratinado com alho e azeite.
            - Então, compadre, parece que te reconcilias com o teu antigo chefe de mesa, hem?... - observou Caderousse...
            - Palavra que sim - respondeu Andrea, a quem, jovem e vigoroso como era, o apetite levava de momento a palma a qualquer outra coisa.
            - E acha isso bom, tratante?
            - Tão bom que não compreendo como um homem que cozinha e come tão boas coisas pode estar descontente com a vida.
            - É que toda a minha felicidade é estragada por um único pensamento - confessou Caderousse.
            - Qual?
            - Vivo à custa de um amigo, eu que sempre ganhei honradamente a minha vida.
            - Oh, oh, isso não tem importância! - perguntou Andrea. 
            - O que tenho chega para dois, não se preocupe.
            - Não, sinceramente? Talvez não acredite, mas no fim dos meses tenho remorsos.
            - Excelente Caderousse!
            - A tal ponto que ontem não quis receber os duzentos francos.
            - Sim, queria falar comigo. Mas sente mesmo remorsos?
            - Autênticos remorsos. E depois tive uma idéia...
            Andrea estremeceu. Estremecia sempre que Caderousse tinha idéias.
            - É indigno, deve concordar, estar sempre à espera do fim do mês...
            - Pois é - admitiu filosoficamente Andrea, decidido a ver até  onde queria chegar o companheiro -, mas não passamos todos a vida esperando? Eu, por exemplo, acaso faço outra coisa? E tenho paciência, não é verdade?
            - Sim, porque em vez de esperares duzentos miseráveis francos, espera cinco ou seis mil, ou talvez dez, senão mesmo doze mil. Porque você não te confessa. Lá onde sabe, tinha sempre umas reservazinhas, umas economias, que procuravas subtrair ao pobre amigo Caderousse. Felizmente para ele, o amigo
Caderousse tinha bom faro...
            - Pronto, vai começar a divagar, a falar e tornar a falar sempre do passado! - protestou Andrea. - Que adianta repisar essas coisas, não me diga.
            - Ah, é que você tem vinte e um anos e pode esquecer o passado! Mas eu tenho cinquenta e sou obrigado a não esquece-lo. Mas não interessa, voltemos aos negócios.
            - Pois sim.
            - Queria dizer que no teu lugar...
            - Sim?
            - Pediria...
            - Pediria o quê?
            - Pediria um semestre de adiantamento, a pretexto de me querer tornar elegível e desejar comprar uma quinta. Depois, quando me apanhasse com o meu semestre, punha-me ao fresco.
            - Ah, ah! - exclamou Andrea. - Não está mal pensado, não, senhor!
            - Meu caro amigo, come da minha cozinha e segue os meus conselhos - sentenciou Caderousse. - Só terá a ganhar, física e moralmente. 
            - Mas olhe, porque não segue você mesmo o conselho que dá? - inquiriu Andrea. - Porque não pede um semestre adiantado, ou até  mesmo um ano, e não te retiras para Bruxelas? Em vez de ter o ar de um padeiro reformado, teria o ar de um falido no exercício das suas funções. Seria um bom golpe.
            - Mas como diabo quer você que me retire com mil e duzentos francos?
            - Ah, Caderousse, como se tornou exigente! Há dois meses morria de fome...
            - Quanto mais se come, mais apetece comer - perguntou Caderousse, mostrando os dentes como um macaco que ri ou como um tigre que brame. - Por isso - acrescentou, cortando com esses mesmos dentes, tão brancos e aguçados, apesar da idade, um enorme bocado de pão –, tracei um plano.
            Os planos de Caderousse assustavam ainda mais Andrea do que as suas idéias. As idéias não passavam do germe, o plano era a realização.
            - Vejamos esse plano. Deve ser bonito! - comentou Andrea.
            - Porque não? O plano graças ao qual nos piramos da choça de quem foi? Meu, segundo me consta. E não foi assim tão mau, parece-me, visto estarmos aqui!
            - Não digo que não - concordou Andrea. - às vezes tem boas idéias... Mas enfim, vejamos o teu plano.
            - Pode - prosseguiu Caderousse –, sem desembolsar um soldo, arranjar-me quinze mil francos?... Não, quinze mil francos é pouco: não quero tornar-me um homem honesto por menos de trinta mil francos!
            - Não - respondeu secamente Andrea -, não posso.
            - Parece-me que não me compreendeste - perguntou fria e calmamente Caderousse. - Disse-te sem desembolsar um soldo...
            - Com certeza não quer que roube para dar cabo de todo o meu negócio, e do teu com o meu, e voltarmos ambos para a choça?
            - Oh, a mim tanto me faz que me apanhem como não! -  exclamou Caderousse. - Sou um bocado complicado, como sabe, e às vezes sinto a falta dos camaradas. Não sou como você, sem coração, que
nunca mais queria tornar a vê-los!
            Desta vez, Andrea fez mais do que estremecer, empalideceu.
            - Vamos, Caderousse, deixemo-nos de tolices!
            - Então, meu querido Benedetto, não se assuste... Mas indica-me um meiozinho de ganhar os trinta mil francos sem te meter em nada. Deixe-me atuar, e pronto!
            - Está bem, verei... procurarei... - respondeu Andrea.
            - Mas entretanto aumentará a minha mesada para quinhentos francos. Estou com a mania de meter uma criada!
            - Pois sim, terá os seus quinhentos francos - concordou Andrea. - Mas é muito para mim, meu pobre Caderousse. Você abusa...
            - Ora, ora! - perguntou Caderousse. - Não se esqueça de que mete a mão em cofres sem fundo...
            Diria-ia que Andrea esperava que o companheiro proferisse estas palavras, pois nos seus olhos brilhou um rápido clarão, que no entanto se extinguiu imediatamente.
            - Isso é verdade - admitiu Andrea - e o meu protetor é excelente para mim. 
            - Querido protetor! - exclamou Caderousse. - Quanto te dá ele por mês?
            - Cinco mil francos - respondeu Andrea.
            - Tantas de mil quantas me dá de cem - observou Caderousse. - Na verdade, não há como ser bastardo para ter sorte. Cinco mil francos por mês... Que diabo se pode fazer com isso?
            - Meu Deus, gastam-se num instante! Por isso, tal como você, também gostaria muito de ter um capital...
            - Um capital sim compreendo. Todas as pessoas gostariam de ter um capital.
            - Eu hei de ter um.
            - E quem o dará? O teu príncipe?
            - Sim, o meu príncipe. Infelizmente, terei de esperar
            - Esperar o quê? - perguntou Caderousse.
            - A sua morte.
            - A morte do teu príncipe?
            - Sim.
            - Explique isso.
            - Sou contemplado no seu testamento.
            - Deveras?
            - Palavra de honra!
            - Com quanto?
            - Com quinhentos mil!
            - Só isso? Obrigado, mas é pouco...
            - É como te digo.
            - Vamos, não é possível!
            - Caderousse, você é meu amigo?
            - Claro! Para a vida e para a morte.
            - Pois bem, vou dizer-te um segredo.
            - Diz.
            - Mas escuta...
            - Oh, com a breca, serei mudo como um túmulo!
            - Suspeito...
            Andrea calou-se e olhou à sua volta.
            - Suspeita... Não tenha medo, com mil demônios! Estamos sós.
            - Suspeito que encontrei o meu pai.
            - O teu verdadeiro pai?
            - Sim.
            - Não o pai Cavalcanti?
            - Não, porque esse foi-se embora; o verdadeiro, como você diz.
            - E esse pai é?
            - Quem havia de ser, Caderousse? É o conde de Monte-Cristo.
            - Ora!
            - Sim. Não vê que assim tudo se explica? Não pode me reconhecer publicamente, ao que parece; mas me fez reconhecer pelo Sr. Cavalcanti, a quem deu cinquenta mil francos.
            - Cinquenta mil francos para ser teu pai?! Eu aceitaria desempenhar esse papel por metade do preço, por vinte mil, por quinze mil! Como não se lembrou de mim, ingrato? 
            - Como queria que lembrasse se tudo foi feito enquanto estavamos na choça?
            - É verdade. E diz que no seu testamento...
            - Deixa-me quinhentas mil libras.
            - Tem certeza?
            - Ele o mostrou. Mas não é tudo.
            - Há um codicilo, como eu dizia há bocado!
            - Provavelmente.
            - E nesse codicilo...
            - Reconhece-me.
            - Oh, que bom pai, que rico pai, que pai honestíssimo! - exclamou Caderousse, fazendo girar no ar um prato que apanhou com as mãos.
            - Vá, diga agora que ainda tenho segredos para ti!
            - Não, e a tua confiança honra-te a meus olhos. E o teu príncipe, o teu pai, é rico, riquíssimo, não é?
            - Julgo que sim. Nem sabe quanto tem.
            - Será possível?
            - Ora essa! Então eu não sei que sou recebido em sua casa a toda a hora? Outro dia, um pagador bancário levou-me cinquenta mil francos numa pasta do tamanho da tua; ontem, foi um banqueiro que lhe levou cem mil francos em ouro... Caderousse estava atordoado. Parecia-lhe que as palavras do jovem tinham o som do metal e que ouvia rolar cascatas de luíses.
            - E você frequenta essa casa? - perguntou ingenuamente.
            - Vou quando quero.
            Caderousse ficou pensativo um instante. Era fácil ver que remoía no espírito qualquer pensamento profundo. Depois, de súbito, gritou:
            -Como eu gostaria de ver tudo isso! Como tudo isso deve ser belo!
            - De fato, é - confirmou Andrea. - É magnífico!
            - Ele não mora na Avenida dos Campos Elísios?
            - Número trinta.
            - Ah! - exclamou Caderousse. - Número trinta?
            - Sim, uma bonita casa isolada entre pátio e jardim, - você não conhece outra coisa.
            - É possível. Mas não é o exterior que me interessa, é o interior. Belos móveis, hem? Que há lá dentro?
            - Nunca viu aTulherias?
            - Não.
            - Bom, é mais bonito.
            - Diga-me uma coisa, Andrea: deve ser agradável um tipo baixar-se quando esse excelente Monte-Cristo deixa cair a bolsa...
            - Oh, meu Deus, não vale a pena esperar que isso aconteça! - perguntou Andrea. - O dinheiro abunda naquela casa como a fruta num pomar.
            - Devia levar-me lá um dia contigo...
            - Acha isso possível? E a que título?
            - Tem razão. Mas fez  vir a água à boca. É absolutamente necessário que eu veja isso; descobrirei um
meio.
            - Nada de besteiras, Caderousse! 
            - Me apresentarei como encerador.
            - Há tapetes por todo o lado.
            - Que pena! Então, tenho de me contentar com ver isso em imaginação.
            - É o melhor, acredite.
            - Tente ao menos me descrever a casa.
            - Como?
            - Nada mais fácil. É grande?
            - Nem demasiado grande nem demasiado pequena.
            - Mas como está dividida?
            - Demônio, precisaria de tinta e papel para fazer uma planta!
            - Aqui os tem! - respondeu vivamente Caderousse.
            E foi buscar em uma velha mesa uma folha de papel branco, tinta e uma pena.
            - Toma, trace-me tudo isso no papel, meu filho - pediu Caderousse.
            Andrea pegou na pena sorrindo imperceptivelmente e começou.
            - A casa, como já te disse, é entre pátio e jardim. Assim...
            E Andrea traçou o jardim, o pátio e a casa.
            - Muros altos?
            - Não. Oito ou dez pés, no máximo.
            - Isso não é prudente - observou Caderousse.
            - No pátio, vasos de laranjeiras, relvados e canteiros de flores.
            - E armadilhas?
            - Não.
            - As cavalariças?
            - Dos dois lados do portão, aqui onde vê.
            E Andrea continuou a traçar a planta.
            - Vejamos o térreo - pediu Caderousse.
            - No térreo, sala de jantar, duas salas, sala de bilhar, escada no vestíbulo e uma escadinha oculta.
            - Janelas?
            - Janelas magníficas, tão belas, tão largas que, palavra, creio que um homem da sua estatura passaria por cada vidraça.
            - Porque têm escadas, se têm janelas dessas?
            - Que quer: o luxo!
            - Persianas?
            - Sim, têm persianas, mas nunca se servem delas. O conde de Monte-Cristo é um original que gosta de ver o céu mesmo durante a noite!
            - E os criados onde dormem?
            - Oh, têm a sua residência própria! Imagina um bonito alpendre à direita de quem entra, onde guardam as escadas de mão e outros utensílios. Bom, por cima desse alpendre fica uma série de quartos ocupados pelos criados, com campainhas correspondentes aos seus ocupantes.
            - Oh, diabo! Campainhas!
            - Que disse?
            - Nada. Digo que custa caríssimo colocar campainhas... E para que serve isso, me diga.
            - Antes, havia um cão que passava a noite no pátio, agora levaram-no para a casa de Auteuil. Sabe, aquela onde você foi... 
            - Sei.
            - Eu ainda ontem lhe dizia: “E imprudente da sua parte, Sr. Conde, porque quando vai para Auteuil e leva os criados, a casa fica só." “E depois?", perguntou-me ele. “E depois, um belo dia roubam-no!"
            - Que te respondeu?
            - Que me respondeu?
            - Sim.
            - Respondeu: “E depois, que diferença me faz que me roubem?"
            - Andrea, deve ter alguma mesa mecânica.
            - Que quer dizer?
            - Sim, daquelas que apanham o ladrão numa rede e tocam uma música. Disseram-me que havia coisas dessas na última exposição.
            - Ele tem apenas uma mesa de mogno, que tenho visto sempre com chave.
            - E não o roubam?
            - Não, o pessoal que o serve lhe é totalmente dedicado.
            - Nessa mesa deve haver... uma boa quantia!
            - Talvez... E impossível saber o que há lá .
            - E onde está ?
            - No primeiro andar.
            - Faça-me a planta do primeiro andar, pequeno, como me fez a do térreo?
            - É fácil.
            E Andrea voltou a pegar a pena.
            - No primeiro andar, como vê, há a antecâmara, a sala... à direita da sala a biblioteca e o gabinete de trabalho; à esquerda da sala, um quarto de dormir e outro de vestir. É no quarto de vestir que se encontra a famosa mesa.
            - E há alguma janela no quarto de vestir?
            - Duas: aqui e aqui.
            E Andrea desenhou duas janelas na divisão que, na planta, fazia esquina e figurava como um quadrado mais pequeno pegado ao quadrado grande do quarto de dormir. Caderousse ficou pensativo.
            - Ele vai muitas vezes a Auteuil? - perguntou.
            - Duas ou três vezes por semana. Amanhã, por exemplo, deve passar o dia e a noite lá.
            - Tem certeza?
            - Convidou-me para ir jantar.
            - Ainda bem. Isso é que é vida! - exclamou Caderousse. - Casa na cidade, casa no campo...
            - Quando se é rico...
            - E você irá jantar?
            - Provavelmente.
            - Quando janta, dorme lá?
            - Se me apetece... Estou em casa do conde como se estivesse na minha.
            Caderousse olhou o rapaz como se quisesse arrancar-lhe a verdade do fundo do coração. Mas Andrea tirou uma charuteira do bolso, escolheu um havano, acendeu-o tranquilamente e começou a fumar sem afetação.
            - Quando quer os quinhentos francos? - perguntou a Caderousse. 
            - Agora, se os tiver.
            Andrea tirou vinte e cinco luíses da algibeira.
            - Amarelinhos? - disse Caderousse. - Não, obrigado!
            - Não gosta deles?
            - Pelo contrário, aprecio-os muito; mas não os quero.
            - Ganhará o cambio, imbecil: o ouro vale mais cinco soldos.
            - Pois sim, mas depois o cambista mandará seguir o amigo Caderousse, lhe deitarão a mão e terá de dizer quem são os rendeiros que lhe pagaram a renda em ouro. Deixemos de tolices, pequeno: quero dinheiro corrente, moedas redondas com a efígie de um monarca qualquer. Todas as pessoas podem ter uma moeda de cinco trancos.
            - Como deve compreender, não trago comigo quinhentos francos em dinheiro miúdo. Teria de contratar um carregador.
            - Está bem, deixa-os no hotel, com o seu porteiro. É um excelente homem. Irei lá buscá-los.
            - Hoje?
            - Não, amanhã. Hoje não tenho tempo.
            - Pois sim, seja. Amanhã, quando partir para Auteuil, os deixarei.
            - Posso contar com isso?
            - Certamente.
            - É que vou já ajustar a minha criada...
            - Ajusta-a. Mas ponto final, hem ? Não me perseguirá mais?
            - Nunca mais.
            Caderousse tornara-se tão sombrio que Andrea teve de fingir que não notara essa mudança. Redobrou portanto de alegria e despreocupação.
            - Está muito bem disposto - observou Caderousse. - Diria-se que já recebeste a tua herança!
            - Ainda não, infelizmente!... Mas no dia em que a receber...
            - Que fará?
            - Que farei? Me lembrarei dos amigos, só te digo isto...
            - Sim, e como tem boa memória, não se esquecerá de ninguém...
            - O que você quer? Espero que não me esfole...
            - Eu? Que idéia! Eu que, pelo contrário, vou dar ainda um conselho de amigo.
            - Qual?
            - Que deixe aqui o diamante que traz no dedo.
            - Mas então você quer que nos prendam? E para nos perder aos dois que faz semelhante burrice?
            - Porque diz isso? - perguntou Andrea.
            - Como veste uma libré, disfarças-se de criado e conserva no dedo um diamante de quatro a cinco mil francos?!
            - Apre, tem olho para avaliações! Porque não te trabalha como leiloeiro?
            - Conheço diamantes. Já os tive.
            - Aconselho-te a não se gabar disso - recomendou-lhe Andrea, que, sem se zangar, como receava Caderousse, por causa da nova extorsão, lhe entregou complacentemente o anel. Caderousse examinou-o tão de perto que foi evidente para Andrea que examinava se as arestas do corte estavam bem vivas.
            - É um diamante falso - disse Caderousse. 
            - Que é isso agora? - saltou Andrea. - Está brincando?...
            - Oh, não se zangue! Podemos verificar...
            E Caderousse chegou-se à janela e fez deslizar o diamante na vidraça. Ouviu-se o vidro ranger.
            - Confiteor! - declarou, metendo o diamante no dedo mínimo.
            - Enganei-me. Mas esses gatunos dos joalheiros imitam tão bem as pedras que já ninguém se atreve a roubar nas joalharias, mais um ramo de indústria em crise.
            - E agora, acabou-se? Tem mais alguma coisa a me pedir? Quer o meu casaco? Quer o meu barrete? Não se acanhe, aproveita enquanto estou aqui...
            - Não quero mais nada. No fundo, você é um bom companheiro. Não te demoro mais e procurarei curar-me da minha ambição.
            - Mas toma cautela, não vá, ao vender o diamante, e te acontecerá o que receava que te acontecesse com o ouro.
            - Não o venderei, pode ficar descansado.
            “Pois não, pelo menos daqui até  depois de amanhã", pensou o rapaz.
            - Feliz tratante! - exclamou Caderousse. - Vai daqui reencontrar os seus lacaios, os seus cavalos, a sua carruagem e a sua noiva.
            - Claro - respondeu Andrea.
            - Olha lá, espero que me dê um lindo presente de noivado no dia em que casar com a filha do meu amigo Danglars.
            - Já te disse que isso foi uma idéia que se te meteu na cabeça.
            - Quanto de dote?
            - Mas se te repito...
            - Um milhão?
            Andrea encolheu os ombros.
            - Assentemos num milhão - disse Caderousse. - Nunca terá tanto quanto te desejo.
            - Obrigado - respondeu o rapaz.
            - Oh, é de boa vontade! - acrescentou Caderousse, com o seu riso grosseiro. - Espera que eu te acompanho.
            - Não vale a pena.
            - Claro que vale.
            - Porquê?
            - Oh, porque a porta tem um segredinho!... Foi uma medida de precaução que achei conveniente tomar. Fechadura Huret & Fichet, revista e corrigida por Gaspard Caderousse. Te farei uma idêntica quando for capitalista.
            - Obrigado - repetiu Andrea. - Te avisarei com oito dias de antecedência.
            Separaram-se. Caderousse ficou no patamar até  ver Andrea não só descer os três andares, mas também atravessar o pátio. Então, voltou a entrar precipitadamente em casa, fechou a porta com cuidado e pôs-se a estudar, como o faria um arquiteto, a planta que Andrea lhe deixara.
            - Querido Benedetto! - disse para consigo. - Creio que não se importaria nada de herdar mais cedo o seu quinhão e que aquele que antecipasse o dia em que deve receber os seus quinhentos mil francos não seria o seu pior amigo... 


Capítulo LXXXII

O assalto


            No dia seguinte àquele em que se verificou o diálogo que acabamos de reproduzir, o conde de Monte-Cristo partiu de fato para Auteuil, com Ali, vários criados e cavalos que queria experimentar. O que sobretudo determinara a partida, na qual nem sequer pensava na véspera e em que Andrea não pensava mais do que ele, fora a chegada de Bertuccio, que, regressado da Normandia, trazia notícias da casa e da corveta. A casa
estava pronta, e a corveta, chegada havia oito dias e ancorada numa enseadazinha onde se conservava com a sua tripulação de seis homens, depois de cumprir todas as formalidades exigidas, encontrava-se já prontos para voltar ao mar.
            O conde louvou o zelo de Bertuccio e convidou-o a preparar-se para uma rápida partida, pois a sua permanência na França não deveria ir além de um mês.
            - Agora - disse-lhe - posso necessitar de ir numa noite de Paris a Tréport. Quero oito mudas  escalonadas na estrada que me permitam percorrer cinquenta léguas em dez horas.
            - V. Exª  já manifestara esse desejo - respondeu Bertuccio -, e os cavalos estão todos prontos. Comprei-os e coloquei-os eu mesmo nos lugares mais convenientes, isto é, em aldeias onde ninguém para habitualmente.
            - Está bem - disse Monte Cristo. - Fico aqui um dia ou dois, proceda em conformidade.
            Quando Bertuccio ia a sair para tratar do necessário à instalação, Baptistin abriu a porta. Trazia uma carta numa bandeja de prata dourada.
            - Que quer daqui? - perguntou o conde ao vê-lo todo coberto de pó. - Parece-me que não o mandei chamar...
            Sem responder, Baptistin aproximou-se do conde e apresentou-lhe a carta.
            - Importante e urgente - disse.
            O conde abriu a carta e leu:
            “O Sr. de Monte-Cristo fica prevenido de que esta mesma noite se introduzirá um homem na sua casa dos Campos Elísios, para roubar documentos que julga fechados na mesa do quarto de vestir. Sabe-se que o Sr. Conde de Monte-Cristo é suficientemente corajoso para não recorrer à intervenção da Polícia, intervenção que poderia comprometer gravemente quem o avisa. O Sr. Conde, quer por uma abertura que dá do quarto de dormir para o de vestir, quer emboscando-se neste último, poderá fazer justiça pessoalmente. Muitas pessoas e precauções evidentes afastariam certamente o malfeitor e fariam perder ao Sr. de Monte-Cristo a oportunidade de conhecer um inimigo que o acaso permitiu descobrir à pessoa que dá este serviço ao conde, aviso que talvez não tivesse ensejo de renovar se, falhado este primeiro empreendimento, o malfeitor tentasse
outro."
            A primeira idéia do conde foi crer numa artimanha de ladrões, cilada grosseira que lhe indicava um perigo medíocre para expo-lo a um perigo mais grave. Ia portanto mandar levar a carta a um comissário de polícia, apesar da recomendação e talvez mesmo por causa da recomendação do amigo anônimo, quando de súbito lhe ocorreu que se poderia tratar, com efeito, de algum inimigo  especial seu, que só ele pudesse reconhecer e de quem, se assim fosse, só ele poderia tirar partido, como fizera Fieschi com o mouro a quem quisera assassinar. Já conhecemos o conde; não necessitamos portanto de dizer que era um espírito cheio de audácia e vigor que se obstinava contra o impossível com essa energia exclusiva dos homens superiores.
Pela vida que levava e pela decisão que tomara e que lhe impunha não recuar diante de nada, o conde saboreara prazeres desconhecidos nas lutas que por vezes travara com a natureza, que é Deus, e com o mundo, que pode muito bem passar pelo Diabo.
            - Não querem roubar os meus documentos - murmurou Monte-Cristo –, querem matar-me. Não são ladrões, são assassinos. Não quero que o Sr. Prefeito da Polícia meta o nariz na minha vida. Sou suficientemente rico para arcar com as despesas e não agravar com isto o orçamento da sua
administração.
            O conde chamou Baptistin, que saíra da sala depois de entregar a carta.
            - Vai voltar a Paris e trazer para cá todos os criados que ficaram lá- ordenou. - Necessito de todo o pessoal em Auteuil.
            - Mas não ficará ninguém na casa, Sr. Conde? - perguntou Baptistin.
            - Sim, ficará o porteiro.
            - O Sr. Conde não se esqueça de que do cubículo à casa ainda é longe...
            - E então?
            - Então, poderiam roubar toda a casa sem que ele ouvisse o mais pequeno ruído.
            - Quem?
            - Quem?... Os ladrões!
            - É muito simplório, Sr. Baptistin. Se os ladrões me roubassem toda a casa nunca me ocasionariam a contrariedade que me ocasionaria um serviço mal feito.
            Baptistin inclinou-se.
            - Como lhe disse - prosseguiu o conde –, traga todos os seus colegas, do primeiro ao último. Mas que tudo fique no estado habitual. Feche apenas as persianas do térreo; mais nada.
            - E as do primeiro andar?
            - Bem sabe que nunca se fecham. Vá.
            O conde informou que jantaria sozinho nos seus aposentos e que só queria ser servido por Ali.
            Jantou com a sua tranquilidade e sobriedade habituais e depois do jantar fez sinal a Ali para o acompanhar, saiu pela portinha, alcançou o Bosque de Bolonha como se passeasse, tomou sem afetação o caminho de Paris e ao cair da noite encontrou-se diante da sua casa nos Campos Elísios.
            Estava tudo às escuras; apenas ardia uma luz fraca no cubículo do porteiro, distante da casa uns quarenta passos, como dissera Baptistin.
            Monte-Cristo encostou-se a uma árvore e, com aquele seu olhar que se enganava tão raramente, sondou a dupla alameda examinou os transeuntes e percorreu com a vista as ruas vizinhas, a fim de ver se havia alguém emboscado. Ao cabo de dez minutos convenceu-se de que ninguém o espreitava.
            Correu imediatamente com Ali para a portinha, entrou num ápice e, pela escada de serviço, de que tinha a chave, entrou no seu quarto de dormir sem abrir ou mexer num só reposteiro e sem que o próprio porteiro pudesse suspeitar que na casa que julgava vazia se encontrava o seu principal habitante. 
            Chegado ao quarto de dormir, o conde fez sinal a Ali para se deter e em seguida entrou no gabinete de vestir, que examinou. Estava tudo como de costume: a preciosa mesa no seu lugar e com a chave na fechadura. Fechou-a com duas voltas, guardou a chave, voltou à porta do quarto de dormir, retirou a escápula dupla do fecho e entrou.
            Entretanto, Ali colocava em cima de uma mesa as armas que o conde lhe pedira, isto é, umo rostobina curta e um par de pistolas duplas, cujos canos sobrepostos permitiam visar tão certeiramente como com pistolas de carreira de tiro. Assim armado, o conde tinha a vida de cinco homens nas mãos. Eram cerca de nove e meia. O conde e Ali comeram depressa um bocado de pão e beberam um copo de vinho de Espanha. Depois, Monte-Cristo fez deslizar um dos painéis móveis que lhe permitiam ver de uma divisão para outra. Tinha ao seu alcance as pistolas e o rostobina, e Ali, de pé, junto dele, empunhava uma dessas machadinhas árabes que não mudaram de forma desde as cruzadas.
            Por uma das janelas do quarto de dormir, paralela à do gabinete, o conde podia ver a rua.
            Passaram-se assim duas horas. Reinava a escuridão mais profunda, mas no entanto, Ali, graças à sua natureza selvagem, e o conde, graças sem dúvida a uma qualidade adquirida, distinguiam na noite até  as mais fracas oscilações das árvores do pátio. Havia muito tempo que a luz do cubículo do porteiro se apagara.
            Era de presumir que o ataque - se realmente havia um ataque projetado - se efetuasse pela escada do térreo e não por uma janela. No entender de Monte-Cristo, os malfeitores queriam a sua vida e não o seu dinheiro. Seria portanto o seu quarto de dormir que atacariam, e conseguiriam lá chegar quer através da escada oculta, quer através da janela do gabinete. Colocou Ali diante da porta da escada e continuou a vigiar o quarto de vestir.
            Deram onze horas e três quartos no relógio dos Inválidos. O vento de oeste trazia nas suas lufadas úmidas a lúgubre vibração das três pancadas. Quando o som da última pancada se extinguiu, o conde julgou
ouvir um ruído ligeiro do lado do gabinete. Esse primeiro ruído, ou antes esse primeiro rangido, foi seguido de segundo e depois de terceiro. Ao quarto, o conde sabia com que contar. Uma mão firme e experiente ocupava-se de cortar os quatro lados de uma vidraça com um diamante.
            O conde sentiu bater mais rapidamente o coração. Por mais habituados que os homens estejam ao perigo e por melhor precavidos que se encontrem contra ele, compreendem sempre, pelo frêmito do seu coração e pelo arrepio da sua carne, a enorme diferença que existe entre o sonho e a realidade, entre
o projeto e a execução.
            No entanto, Monte-Cristo fez apenas um sinal para prevenir Ali. Este, compreendendo que o perigo vinha do lado do gabinete, deu um passo para se aproximar do amo. Monte-Cristo estava ansioso por saber com quais e com quantos inimigos teria de se haver.
            A janela que estavam arrombando ficava defronte da abertura por onde o conde via o gabinete. Os seus olhos fixaram-se portanto nessa janela. Viu uma sombra desenhar-se, mais densa, na escuridão; depois uma das vidraças tomou-se completamente opaca, como se lhe colassem da parte de fora uma folha de
papel; finalmente, a vidraça estalou e separou-se sem cair. Pela abertura praticada passou um braço, que procurou o fecho. Um segundo mais tarde a janela girou nos gonzos e entrou um homem. O indivíduo vinha só.
            - Ora aí está um patife audacioso... - murmurou o conde.
            Neste momento sentiu que Ali lhe tocava suavemente no ombro. Virou-se. Ali mostrava-lhe a janela do quarto onde estavam e que deitava para a rua. Monte-Cristo deu três passos para a janela; conhecia a
extraordinária delicadeza de sentidos do fiel servidor. Com efeito, viu outro homem afastar-se de uma porta, subir para um marco e parecer procurar ver o que se passava na casa do conde.
            - Bom, são dois - disse. - Um atua e o outro vigia.
            Fez sinal a Ali para não perder de vista o homem da rua e encarregou-se do do gabinete.
            O cortador de vidros entrara e orientava-se, com os braços estendidos na sua frente.
            Por fim, pareceu ter descoberto o que lhe interessava. Havia duas portas no gabinete; correu os ferrolhos de ambas. Quando se aproximou da porta do quarto de dormir, Monte-Cristo julgou que ele fosse entrar e preparou uma das pistolas; mas ouviu simplesmente o ruído do ferrolho a deslizar nos seus anéis de cobre. Tratava-se de uma mera precaução. O visitante noturno, ignorando que o conde tomara o cuidado de retirar as escápulas, podia dali em diante julgar-se em segurança e agir com toda a tranquilidade.
            Sozinho e com todos os movimentos livres, o homem tirou então de uma ampla algibeira qualquer coisa que o conde não conseguiu distinguir, pousou essa qualquer coisa em cima da mesinha de centro e depois foi direito à mesa, apalpou o lugar da fechadura e verificou que, contra a sua expectativa, a chave não estava lá.
            Mas o cortador de vidros era homem precavido e previra tudo. O conde não tardou a ouvir o toque de ferro contra ferro que produz, quando o agitam, um molho de chaves toscas, dessas que trazem os serralheiros quando os mandam chamar para abrir uma porta e às quais os ladrões chamam “rouxinóis", sem dúvida devido ao prazer que sentem ao ouvir o seu “canto" noturno quando rangem na fechadura.
            - Ah, ah! - murmurou Monte-Cristo, com um sorriso decepcionado. - É apenas um ladrão.
            Mas o homem, no escuro, não podia escolher o instrumento conveniente. Recorreu então ao objeto que deixara em cima da mesinha de centro. Fez funcionar um mecanismo e imediatamente uma luz pálida, mas suficientemente viva para que se pudesse ver, envolveu no seu reflexo dourado as mãos e o rosto do homem.
            - Olha, é... - disse de súbito Monte-Cristo, recuando com expressão de surpresa.
            Ali levantou o machado.
            - Não se mexa - disse-lhe Monte-Cristo em voz baixa - e deixe o machado; não precisamos de armas aqui. 
            Depois acrescentou algumas palavras baixando ainda mais a voz, porque a exclamação, por mais fraca que fosse, que a surpresa arrancara ao conde, bastara para fazer estremecer o homem, que ficara na atitude do amolador antigo. Era uma ordem que o conde acabava de dar, pois Ali afastou-se imediatamente em pontas de pés e tirou da parede da alcova uma vestimenta preta e um chapéu triangular. Entretanto, Monte-Cristo despia rapidamente a sobrecasaca, o colete e a camisa. Graças ao raio de luz que se infiltrava pela fresta do painel, se poderia reconhecer no peito do conde uma dessas flexíveis e finas cotas de malha de aço de outros tempos, a última das quais, numa França onde já se não temiam os punhais, fora talvez usada
pelo rei Luís XVI, que receava ser ferido no peito à navalha e acabara por ser decapitado pela guilhotina.
            Aquela túnica não tardou a desaparecer debaixo de uma comprida sotaina, tal como os cabelos do conde debaixo de uma peruca tonsurada. O chapéu triangular, colocado por cima da peruca, acabou de transformar o conde em abade.
            Entretanto, o homem, como não ouvisse mais nada, endireitara-se e, enquanto Monte-Cristo operava a sua metamorfose, fora direito à mesa, cuja fechadura começava a ranger sob a ação do seu “rouxinol".
            - Bom - murmurou o conde, que decerto confiava algum segredo de serralharia que devia ser desconhecido do arrombador de portas, por mais hábil que fosse -, bom, tem para uns minutos...
            E dirigiu-se para a janela.
            O homem que vira subir para um marco descera e continuava a passear na rua. Mas, coisa singular, em vez de se preocupar com quem pudesse vir quer pela Avenida dos Campos Elísios, quer pelo Arrabalde de Saint-Honoré, só parecia preocupar-se com o que se passava em casa do conde, e todos os seus
movimentos tinham por fim ver o que estaria acontecendo no gabinete. De súbito, Monte-Cristo bateu na testa e deixou errar pelos lábios entreabertos um sorriso silencioso.
            Depois, aproximou-se de Ali e disse-lhe:
            - Fica aqui escondido no escuro, e seja qual for o barulho que ouça, seja o que for que aconteça, só entre e só se mostre quando te chamar pelo teu nome.
            Ali fez sinal com a cabeça de que compreendera e obedeceria. Então, Monte-Cristo tirou de um armário uma vela, acendeu-a, e, no momento em que o ladrão estava mais ocupado com a fechadura, abriu suavemente a porta, tendo o cuidado de fazer com que a luz que segurava na mão lhe batesse em cheio na
cara. A porta girou tão suavemente que o ladrão não a ouviu. Mas, com grande surpresa sua, viu o quarto iluminar-se de súbito. Virou-se.
            - Boa noite, caro Sr. Caderousse - disse Monte-Cristo. - Que diabo veio fazer aqui a semelhante hora?
            - O abade Busoni! - gritou Caderousse.
            E ignorando como aquela estranha aparição chegara até  ele, uma vez que fechara as portas, deixou cair o molho de chaves falsas e ficou imóvel e como que fulminado de espanto. O conde foi-se colocar entre Caderousse e a janela, cortando assim ao ladrão aterrorizado o seu único meio de retirada. 
            - O abade Busoni! - repetiu Caderousse, cravando no conde os olhos esbugalhados.
            - Sim, não há dúvida que sou o abade Busoni, em pessoa - confirmou Monte-Cristo –, e folgo muito por me ter reconhecido, meu caro Sr. Caderousse. Isso prova que temos boa memória, pois, se me não engano, há pelo menos dez anos que nos não víamos.
            Esta calma, esta ironia, esta força, causaram no espírito de Caderousse um terror indescritível.
            - O abade! O abade! - murmurou crispando os punhos e batendo os dentes.
            - Com que então, queremos roubar o conde de Monte-Cristo... - continuou o pretenso abade.
            - Sr. Abade - murmurou Caderousse, procurando alcançar a janela que o conde lhe interceptava implacavelmente.
            - Sr. Abade, não sabia... peço-lhe que acredite... juro-lhe...
            - Um vidro cortado - continuou o conde –, uma lanterna de furta-fogo, um molho de “rouxinóis" e uma mesa meio arrombada são provas mais do que evidentes, no entanto...
            Caderousse sentia a gravata estrangulá-lo, procurava um canto onde se esconder, um buraco por onde sumir.
            - Verifico que continua a ser o mesmo Sr. Assassino - acrescentou o conde.
            - Sr. Abade, uma vez que sabe tudo, deve saber que não fui eu, foi a Carconte. Isso foi reconhecido no julgamento, e tanto assim que só me condenaram às galés.
            - E mal acabou de cumprir o seu tempo, encontro-o em vias de voltar para lá, não é?
            - Não, Sr. Abade, fui libertado por alguém.
            - Por alguém que prestou um lindo serviço à sociedade...
            - Mas eu prometi... - começou Caderousse.
            - Prometeu, mas está em Paris sem autorização, não é verdade? - interrompeu-o Monte-Cristo.
            - Infelizmente, estou - confessou Caderousse muito inquieto.
            - Má reincidência... Isso o levará, se me não engano, à Praça de Grêve. Tanto pior, tanto pior, diavolo!, como dizem os hereges no meu país.
            - Sr. Abade, cedi a uma tentação...
            - Todos os criminosos dizem isso.
            - A necessidade...
            - Não me venha com essa! - perguntou desdenhosamente Busoni. - A necessidade pode levar a pedir esmola, a roubar um pão à porta de um padeiro, mas não a vi arrombar uma mesa numa casa que se julga desabitada. E quando o joalheiro Joannês lhe deu quarenta e cinco mil francos pelo diamante que lhe ofereci
e o senhor o matou para ficar com o diamante e o dinheiro, também foi por necessidade?
            - Perdão, Sr. Abade - suplicou Caderousse. - já me salvou uma vez, salve-me segunda...
            - Isto não me encoraja...
            - Está sozinho, Sr. Abade? - perguntou Caderousse, juntando as mãos. - Não me diga que tem aí guardas prontos para me prender... 
            - Estou sozinho - respondeu o abade - e terei mais uma vez piedade do senhor e o deixarei ir, com risco de novas desgraças por culpa da minha fraqueza, se me contar toda a verdade.
            - Ah, Sr. Abade! - exclamou Caderousse, juntando as mãos e aproximando-se um passo de Monte-Cristo. - Posso bem dizer que o senhor é o meu salvador!
            - Diz que o libertaram das galés?
            - Sim, senhor, palavra de Caderousse, Sr. Abade!
            - Quem?
            - Um inglês.
            - Como se chamava?
            - Lorde Wilmore.
            - Conheço-o. Saberei portanto se mente.
            - Sr. Abade, digo a pura verdade.
            - Esse inglês protegia-o, portanto?
            - Não a mim, mas sim a um jovem corso que era meu companheiro de grilheta.
            - Como se chamava esse jovem corso?
            - Benedetto.
            - Isso é um nome de batismo.
            - Ele não tinha outro, era um enjeitado.
            - E esse rapaz fugiu com você?
            - Fugiu.
            - Como?
            - Nós trabalhavamos em Saint-Mandrier, perto de Toulon. Conhece Saint-Mandrier?
            - Conheço.
            - Bom, enquanto o pessoal dormia, do meio-dia à uma hora...
            - Forçados a dormirem a sesta! E ainda há quem tenha pena desses figurões! - exclamou o abade.
            - Demônio, não se pode estar sempre trabalhando - protestou Caderousse. - Um homem não é nenhum cão...
            - Felizmente para os cães - perguntou Monte-Cristo.
            - Portanto, enquanto os outros dormiam a sesta, nos afastamos um bocadinho, cortamos os ferros com uma lima fornecida pelo inglês e fugimos a nado.
            - Que foi feito desse Benedetto?
            - Não sei nada dele.
            - Mas devia saber...
            - Não sei, na verdade. Nos separamos em Hyeres.
            E para dar mais força à sua afirmação, Caderousse avançou mais um passo para o abade, que permaneceu imóvel no seu lugar, sempre calmo e interrogador.
            - Mente! - disse o abade Busoni, em tom de irresistível autoridade.
            - Sr. Abade!...
            - Mente! Esse homem é ainda seu amigo e o senhor serve-se dele talvez como cúmplice...
            - Oh, Sr. Abade!...
            - Desde que deixou Toulon, como tem vivido? Responda. 
            - Como tenho podido.
            - Mente! - repetiu pela terceira vez o abade, em tom ainda mais imperioso.
            Aterrado, Caderousse fitou o conde.
            - O senhor tem vivido - prosseguiu este último - do dinheiro que ele lhe tem dado.
            - Pronto, é verdade! - confessou Caderousse. - Benedetto tornou-se filho de um grande senhor.
            - Como pode ser filho de um grande senhor?
            - Filho natural.
            - E como se chama esse grande senhor?
            - Conde de Monte-Cristo, o mesmo em casa de quem estamos.
            - Benedetio, filho do conde? - murmurou Monte-Cristo, atônito.
            - Demônio, assim deve ser, uma vez que o conde lhe arranjou um falso pai, lhe dá quatro mil francos por mês e lhe deixa quinhentos mil francos em testamento!
            - Ah, ah! - exclamou o falso abade, que começava a compreender. - Que nome usa agora esse rapaz?
            - Chama-se Andrea Cavalcanti.
            - Então é o jovem que o meu amigo conde de Monte-Cristo recebe em sua casa e que vai casar com Mademoiselle Danglars?
            - Exatamente.
            - E o senhor permite isso, miserável? O senhor, que conhece a sua vida e a sua ignomínia?
            - Porque havia eu de impedir um camarada de vencer na vida? - perguntou Caderousse.
            - Tem razão. Não é ao senhor que compete prevenir o Sr. Danglars, é a mim.
            - Não faça isso, Sr. Abade!
            - Porquê?
            - Porque seria o nosso pão que nos faria perder.
            - E julga que para conservar o pão a miseráveis como vocês me tornarei um encobridor das suas velhacarias, um cúmplice dos seus crimes?
            - Sr. Abade! - exclamou Caderousse, aproximando-se mais.
            - Direi tudo.
            - A quem?
            - Ao Sr. Danglars.
            - Irra! - gritou Caderousse, tirando uma navalha aberta do colete e atingindo o conde no meio do peito. - Não dirá nada, abade!
            Mas, com grande espanto de Caderousse, a navalha, em vez de penetrar no peito do conde, ressaltou embotada.
            Ao mesmo tempo, o conde agarrou com a mão esquerda o pulso do assassino e torceu-o com tal força que a navalha caiu-lhe dos dedos hirtos e Caderousse soltou um grito de dor.
            Mas, sem que o grito o detivesse, o conde continuou a torcer o pulso do bandido até  ele, com o braço deslocado, cair primeiro de joelhos e depois de cara contra o chão.
            Então, o conde pôs-lhe o pé na cabeça e disse:
            - Não sei que me impede de te rachar o crânio, celerado!
            - Piedade! Piedade! - gritou Caderousse. 
            O conde retirou o pé.
            - Levante-se! - ordenou-lhe.
            Caderousse levantou-se.
            - Com a breca, sempre tem uma mão mais forte, Sr. Abade!... - exclamou Caderousse, esfregando o braço pisado pela tenaz de carne que lho apertara. - Sim, senhor, que mão!...
            - Silêncio! Deus deu-me força suficiente para domar uma fera como você. É em nome de Deus que procedo. Lembre-se disto, miserável: se te poupo neste momento é ainda para servir os desígnios de Deus.
            - Hui! - gemeu Caderousse, muito magoado.
            - Pega nessa pena e nesse papel e escreve o que te vou ditar.
            - Não sei escrever, Sr. Abade...
            - Mente. Pega nessa pena e escreve!
            Subjugado por aquele poder superior, Caderousse sentou-se e escreveu:
            “Senhor, o homem que recebe em sua casa e a quem destina a sua filha é um antigo forçado, evadido comigo das galés de Toulon. Ele tinha o nº  59 e eu o nº  58. Chamava-se Benedetto, mas ele próprio ignora o seu verdadeiro nome e nunca conheceu os pais.”
            - Assina! - continuou o conde.
            - Mas o senhor quer-me perder?
            - Se te quisesse perder, imbecil, te arrastaria até  à primeira esquadra de polícia. Aliás, à hora em que o teu bilhete chegar ao seu destino é provável que já não tenha nada a temer. Assine, pois.
            Caderousse assinou.
            - O endereço: “Ao Sr. Barão Danglars, banqueiro, Rua da Chaussée-d'Antin."
            Caderousse escreveu o endereço. O abade pegou no bilhete.
            - Agora que está tudo em ordem - disse -, vá embora.
            - Por onde?
            - Por onde vieste.
            - Quer que eu saia por essa janela?
            - Entraste bem por ela...
            - Desconfio que trama qualquer coisa contra mim, Sr Abade...
            - Imbecil! Que quer que trame?
            - Porque não me abre a porta?
            - Que necessidade há de acordar o porteiro?
            - Sr. Abade, diga-me que não quer a minha morte.
            - Quero o que Deus quiser.
            - Mas jure-me que não me atacará enquanto eu descer.
            - Sempre me saíste um estúpido e um covarde!
            - Que quer fazer de mim?
            - Isso pergunto-te eu. Tentei fazer de ti um homem feliz e só fiz um criminoso!
            - Sr. Abade, tente uma última experiência - pediu Caderousse.
            - Seja - concordou o conde.- Escute, sabe que sou um homem de palavra?
            - Sei - respondeu Caderousse.
            - Se regressar a casa são e salvo... 
            - Não sendo o senhor, que mais tenho a temer?
            - Se regressar a sua casa são e salvo, deixe Paris, deixe a França, e onde quer que esteja, desde que se comporte honestamente, te farei chegar uma pequena pensão. Porque se regressar a casa são e salvo, bom...
            - Bom?... - perguntou Caderousse, estremecendo.
            - Bom, acreditarei que Deus te perdoou e te perdoarei também.
            - Tão certo como eu ser cristão, o senhor faz-me morrer de medo! - balbuciou Caderousse, recuando.
            - Vamos, sai! - ordenou o conde, apontando com o dedo a janela a Caderousse.
            Apesar de pouco tranquilizado pela promessa, Caderousse passou a perna por cima do parapeito da janela e pôs o pé na escada de mão. Aí parou tremendo.
            - Agora desce - disse o abade, cruzando os braços.
            Caderousse convenceu-se de que não havia nada a temer daquele lado e desceu.
            Então o conde aproximou-se com a vela, de forma que se pudesse distinguir dos Campos Elísios aquele homem que descia de uma janela iluminado por outro homem.
            - Que está fazendo, Sr. Abade? - perguntou Caderousse. - Se passasse uma patrulha...
            Apagou a vela. Depois, continuou a descer; mas só quando sentiu o solo do jardim debaixo dos pés ficou suficientemente tranquilizado. Monte-Cristo reentrou no seu quarto de dormir, e, deitando
uma rápida olhadela do jardim à rua, viu primeiro Caderousse, que, depois de descer, dava uma volta no jardim e ia colocar a escada de mão na extremidade do muro, a fim de sair por um lugar diferente daquele por onde entrara.
            Depois, passando do jardim à rua, viu o homem que parecia esperar correr paralelamente pela rua e colocar-se mesmo atrás da esquina junto da qual Caderousse ia descer. Caderousse subiu lentamente a escada e, chegado aos últimos degraus, passou a cabeça por cima do espigão, a fim de se assegurar de que a rua estava deserta. Não se via ninguém nem se ouvia nenhum ruído. Deu uma hora nos Inválidos.
            Então, Caderousse pôs-se a cavalo no muro e, puxando a escada para si, passou-a por cima do muro e em seguida desceu, ou antes, deixou-se escorregar ao longo dos dois montantes, manobra que executou com uma destreza que provava que estava habituado àquele exercício.
            Mas uma vez lançado no declive não pôde parar. Em vão viu um homem sair da sombra no momento em que estava a meio caminho; em vão viu um braço erguer-se no momento em que chegava ao chão: antes de poder pôr-se em guarda, esse braço feriu-o tão furiosamente nas costas que largou a escada e gritou:
            - Socorro!
            Recebeu quase imediatamente segundo golpe no flanco e caiu gritando.
            - Assassino!
            Por fim, como rolasse pelo chão, o seu adversário agarrou-o pelos cabelos e deu-lhe terceiro golpe no peito.  Desta vez, Caderousse ainda quis gritar, mas não pôde soltar mais do que um gemido e deixou correr, arquejando, os três regatos de sangue que lhe saíam dos três ferimentos.
            Vendo que ele já não gritava, o assassino levantou-lhe a cabeça pelos cabelos. Caderousse tinha os olhos fechados e a boca torcida. O assassino julgou-o morto, deixou cair a cabeça e desapareceu.
            Então, Caderousse, sentindo-o afastar-se, ergueu-se num cotovelo e, numa voz moribunda, gritou num esforço supremo:
            - Assassino! Morro! A mim, Sr. Abade, a mim!
            Este lúgubre apelo trespassou a escuridão da noite. A porta da escada oculta abriu-se, em seguida a portinha do jardim, e Ali e o amo acorreram com luzes.



Capítulo LXXXIII

A mão de Deus

            Caderousse continuava a gritar em voz lamentosa:
            - Sr. Abade, socorro! Socorro!
            - Que aconteceu? - perguntou Monte-Cristo.
            - A mim, socorro! - repeliu Caderousse. - Assassinaram-me!
            - Estamos aqui! Coragem!
            - É o fim. Chegaram demasiado tarde; chegaram para me ver morrer. Que facadas! Tanto sangue!
            E desmaiou.
            Ali e o amo pegaram o ferido e transportaram-no para um quarto. Aí, Monte-Cristo fez sinal a Ali para o despir e examinou os três terrível; ferimentos com que fora atingido.
            - Meu Deus - murmurou –, por vezes a Tua vingança faz-se esperar, mas creio que então desce do céu mais completa.
            Ali olhou para o amo como se lhe perguntasse o que devia fazer.
            -Vai procurar o Sr. Procurador régio Villefort, que mora no Arrabalde de Saint-Honoré, e traga-o aqui. De passagem, acorda o porteiro e diz-lhe que vá buscar um médico. Ali obedeceu e deixou o falso abade sozinho com Caderousse, ainda desmaiado. Quando o desgraçado abriu os olhos, o conde, sentado a poucos passos dele, olhava-o com sombria expressão de piedade e os seus lábios, que se agitavam, pareciam murmurar uma prece.
            - Um cirurgião, Sr. Abade, um cirurgião - pediu Caderousse.
            - Já foram buscar um - respondeu o abade.
            - Sei que é inútil, quanto a salvar-me a vida, mas talvez me possa dar forças e quero ter tempo de fazer uma declaração.
            - A respeito de quê?
            - Do meu assassino.
            - Conhece-o?
            - Se o conheço. Sim, conheço-o, é Benedetto. 
            - O jovem corso?
            - Ele mesmo.
            - O seu companheiro?
            - Sim. Depois de me dar a planta da casa do conde, esperando sem dúvida que eu o matasse e ele se tornasse assim seu herdeiro, ou que me matasse o conde e ele se visse assim livre de mim, esperou-me na rua e assassinou-me.
            - Ao mesmo tempo que mandei buscar o médico, mandei buscar também o procurador régio.
            - Chegará demasiado tarde, chegará demasiado tarde - disse Caderousse. - Sinto que me estou  esvaindo em sangue.
            - Espere - pediu Monte-Cristo.
            Saiu e voltou cinco minutos depois com um frasco. Os olhos do moribundo, assustadores de fixidez, não tinham durante a sua ausência deixado a porta por onde adivinhava instintivamente que lhe viria um socorro.
            - Despache-se, Sr. Abade, despache-se! – insistiu. - Sinto que vou desmaiar outra vez.
            Monte-Cristo aproximou-se e deitou nos lábios roxos do ferido três ou quatro gotas do licor que continha o frasco. Caderousse soltou um suspiro.
            - Oh, foi a vida que me deu! Mais... mais...
            - Duas gotas mais o matariam - respondeu o abade.
            - Oh, então que venha alguém a quem possa denunciar o miserável!
            - Quer que escreva a sua declaração? A assinaria ?
            - Sim... sim... - disse Caderousse, cujos olhos brilhavam à idéia daquela vingança póstuma.
            Monte-Cristo escreveu:
            “Morro assassinado pelo corso Benedetto, meu companheiro de grilheta em Toulon com o nº  59."
            - Despache-se! Despache-se! - insistiu Caderousse. - Desconfio que já não conseguirei assinar.
            Monte-Cristo apresentou a pena a Caderousse, que, reunindo forças, assinou e voltou a cair na cama, dizendo:
            - O senhor contará o resto, Sr. Abade. Dirá que se faz passar por Andrea Cavalcanti, que está hospedado no Hotel dos Príncipes, que... Ah, ah, meu Deus, meu Deus! Agora é que morro!
            E Caderousse desmaiou pela segunda vez.
            O abade fê-lo respirar o conteúdo do frasco; o ferido reabriu os olhos.
            - O seu desejo de vingança não o abandonara durante o desmaio.
            - Dirá tudo isto, não é verdade, Sr. Abade?
            - Sim, tudo isso e muitas outras coisas mais.
            - Que dirá ?
            - Direi que sem dúvida lhe deu a planta desta casa na esperança de que o conde o matasse. Direi que prevenira o conde por meio de um bilhete. Direi que o conde estava ausente, que fui eu que recebi o bilhete e resolvi esperá-lo.
            - E ele será guilhotinado, não é verdade? - perguntou Caderousse. - Será guilhotinado, promete-me? Morro com essa esperança, isso me ajudará a morrer.
            - Direi continuou o conde - que ele chegou atrás de si e que o espreitou durante todo o tempo; que quando o viu sair correu à esquina do muro e escondeu-se.
            - Quer dizer que o senhor viu tudo isso?
            - Lembre-se das minhas palavras: “Se regressar a sua casa são e salvo, acreditarei que Deus te perdoou e te perdoarei também."
            - E não me avisou?! - gritou Caderousse, tentando levantar-se num cotovelo. - Sabia que ia ser morto quando saísse daqui e não me avisou!
            - Não, porque na mão de Benedetto via a justiça de Deus e julgaria cometer um sacrilégio opondo-me às intenções da Providência.
            - A justiça de Deus! Não me fale disso, Sr. Abade. Se houvesse uma justiça de Deus, sabe melhor do que ninguém que há pessoas que seriam castigadas e não o são.
            - Paciência! - disse o abade num tom que fez estremecer o moribundo. - Paciência!
            Caderousse olhou-o com espanto.
            - E depois - prosseguiu o abade - Deus está cheio de misericórdia para todos, e também para ti. É pai antes de ser juiz.
            - Ah! O senhor acredita portanto em Deus? - perguntou Caderousse.
            - Se tivesse a desgraça de não ter acreditado nele até  agora, acreditaria ao ve-lo - respondeu Monte-Cristo.
            Caderousse ergueu os punhos crispados ao céu.
            - Escute - disse o abade, estendendo a mão por cima do ferido como se quisesse incutir-lhe a fé -, aqui tens o que fez por ti esse Deus que recusa reconhecer no teu último momento: dera-te a saúde, a força, um trabalho garantido, até  amigos, a vida, enfim, tal como se deve apresentar ao homem para ser agradável, com a tranquilidade da consciência e a satisfação dos desejos naturais. Em vez de explorares essas dádivas do Senhor, tão raramente concedidas por Ele na sua plenitude, eis o que fizeste: te entregaste à malandrice, à embriaguez, e na embriaguez atraiçoaste um dos teus melhores amigos.
            - Socorro! - gritou Caderousse. - Não preciso de um padre, mas sim de um médico. Talvez não esteja ferido de morte, talvez não morra ainda, talvez possam salvar-me!
            - Está tão ferido de morte que sem as três gotas de licor que te dei há pouco já teria morrido. Escuta, pois!
            - Ah, que estranho padre me saiu, um padre que desespera os moribundos em vez de os confortar!... - murmurou Caderousse.
            - Escute - continuou o abade. - Quando atraiçoou o teu amigo, Deus começou, não por te ferir, mas sim por te avisar. Caíu na miséria e teve fome; passou a invejar a metade de uma vida que poderia ter passado a adquirir, e já pensava no crime dando a si mesmo a desculpa da necessidade quando Deus fez para ti um milagre, pelas minhas mãos, e te enviou ao seio da tua miséria uma fortuna notável, embora fosse um
desgraçado que nunca tivera nada. Mas essa fortuna inesperada, súbita, inaudita, já não te bastou assim que a possuíu; quiz duplicá-la. Por que meio? Por meio de um crime. Duplicou e então Deus a tirou e te levou perante a justiça humana.
            - Não fui eu que quis matar o judeu, foi Carconte - perguntou Caderousse.
            - Foi - respondeu Monte-Cristo. - Por isso Deus, sempre, não direi justo desta vez, porque a sua justiça teria lhe dado a morte, mas sempre misericordioso, permitiu que os teus juizes fossem tocados pelas tuas palavras e te poupassem a existência.
            - Ora, ora! Para me condenarem a trabalhos forçados por toda a vida! Que linda graça!
            - Essa graça, miserável, consideraste-a como tal quando a concederam! O teu covarde coração, que tremia diante da morte, saltou de alegria ao anúncio de uma desonra perpétua, pois disse para contigo, como todos os forçados: “Nas galés há uma porta que não existe na sepultura." E tinha razão, porque a porta das galés abriu-se para ti inesperadamente. Um inglês visita Toulon. Fizera voto de tirar dois homens da infâmia. A sua escolha recai em ti e no teu companheiro. Segunda fortuna desce para ti do céu, recuperas ao mesmo tempo o dinheiro e a tranquilidade, podes recomeçar a viver a vida de todos os homens, tu que foras condenado a viver a dos forçados. Então, miserável, então te atreves a tentar Deus pela terceira vez.
“Não tenho o suficiente", dizes tu, quando tinhas mais do que alguma vez tiveras, e cometes terceiro crime, sem razão, sem desculpa. Deus cansou-se, Deus te castigou.
            Caderousse enfraquecia a olhos vistos.
            - Quero beber... tenho sede... ardo! - balbuciou.
            Monte-Cristo deu-lhe um copo de água.
            - Esse celerado do Benedetto - disse Caderousse, restituindo o copo - escapará, apesar de tudo...
            - Ninguém escapará, sou eu que o digo, Caderousse... Benedetto será castigado!
            - Então também o senhor será castigado - perguntou Caderousse -, porque não cumpriu o seu dever de padre... Devia impedir Benedetto de me matar.
            - Eu - disse o conde com um sorriso que gelou de terror o moribundo –, eu impedir Benedetto de te matar quando acabavas de quebrar a tua navalha contra a cota de malha que me cobria o peito?... Sim, talvez se te tivesse encontrado humilde e arrependido tivesse impedido Benedetto de te matar; mas encontrei-te orgulhoso e sanguinário e deixei cumprir-se a vontade de Deus!
            - Não acredito em Deus! - bramiu Caderousse. - E tu também não. Tu mentes... mentes!
            - Cala-te, se não queres lançar fora do teu corpo as tuas últimas gotas de sangue... - aconselhou o abade. - Ah, não acreditas em Deus, mas morres ferido por Deus!... Ah, não acreditas em Deus e no entanto Deus só pede uma prece, uma palavra, uma lágrima para perdoar!... Deus, que poderia dirigir o punhal do assassino de maneira que expirasse imediatamente... Deus concedeu-te um quarto de hora para te
arrependeres... Recolhe-te, pois, em ti mesmo, desgraçado, e arrepende-te!
            - Não, não me arrependo - teimou Caderousse. - Não existe Deus, não existe Providência, só existe o acaso.             
            - Existe uma Providência e existe um Deus - replicou Monte-Cristo –, e a prova é que enquanto estás aí deitado, desesperado, renegando Deus, eu estou aqui de pé diante de ti, rico, feliz, são e salvo, de mãos postas diante desse Deus em que tentas não acreditar, mas em que mesmo assim acreditas no fundo do coração.
            - Mas então quem é o senhor? - perguntou Caderousse, fixando os seus olhos de moribundo no conde.
            - Olha-me bem - disse Monte-Cristo, pegando aproximando-a da cara.
            - Bom, é o abade... o abade Busoni...
            Monte-Cristo tirou a peruca que o desfigurava e deixou cair os seus belos cabelos negros que emolduravam tão harmoniosamente o seu rosto pálido.
            - Oh! - exclamou Caderousse, aterrado. - Se não fossem esses cabelos negros, diria que era o inglês, diria que era Lorde Wilmore.
            - Não sou nem o abade Busoni nem Lorde Wilmore - disse Monte-Cristo. - Olha melhor, olha para mais longe, olha para as tuas primeiras recordações.
            Havia nestas palavras do conde uma vibração magnética, que pela derradeira vez reavivou os sentidos exaustos do miserável.
            - Oh, de fato parece-me que já o vi, que o conheci em outros tempos!...
            - Sim, Caderousse, sim, viste-me; sim, conheceste-me.
            - Mas afinal quem é o senhor? E porquê, se já me vira e conhecera, porque me deixa morrer?
            - Porque nada pode te salvar, Caderousse; porque os teus ferimentos são mortais. Se pudesses ser salvo, eu veria nisso a última misericórdia do Senhor e teria mais uma vez, juro-te pela sepultura do meu pai, tentado restituir-te à vida e ao arrependimento.
            - Pela sepultura do teu pai!... - exclamou Caderousse, reanimado por uma suprema centelha e soerguendo-se para ver mais de perto o homem que acabava de lhe fazer aquele juramento sagrado para todos os homens. - Eh! Quem é você?
            O conde acompanhara até  ali os progressos da agonia.  Compreendeu que aquele ímpeto de vida era o último. Aproximou-se do moribundo e, envolvendo-o num olhar calmo e triste, disse-lhe ao ouvido.
            - Eu sou...
            E os seus lábios, apenas entreabertos, deram passagem a um nome pronunciado tão baixo que o próprio conde parecia recear ouvi-lo. Caderousse, que se erguera nos joelhos, estendeu os braços,
fez um esforço para recuar e depois, juntando as mãos e levantando-as num esforço supremo, disse:
            - Oh, meu Deus, perdão por Te ter renegado! Existes e és bem o pai dos homens no céu e o seu juiz na Terra. Meu Deus, Senhor, te ignorei durante tanto tempo! Meu Deus, Senhor, perdoa-me! Meu Deus, Senhor, recebe-me!
            E Caderousse fechou os olhos e caiu para trás, com um último grito e um último suspiro. O sangue parou imediatamente nos lábios das suas enormes feridas. Estava morto.
            - Um! - disse misteriosamente o conde, de olhos postos no cadáver já desfigurado por aquela morte horrível.
            Dez minutos depois chegaram o médico e o procurador régio, trazidos um pelo porteiro e o outro por Ali, e foram recebidos pelo abade Busoni, que rezava junto do morto.


Capítulo LXXXIV

Beauchamp


            Durante quinze dias não se falou de outra coisa em Paris do que da tentativa de roubo tão audaciosamente levada a cabo na casa do conde. O moribundo assinara uma declaração que indicava
Benedetto como seu assassino. A Polícia foi convidada a lançar todos os seus agentes na pista do homicida.
            A navalha de Caderousse, a lanterna de furta-fogo, o molho de chaves e as roupas, com exceção do colete, que se não conseguiu encontrar, foram depositados no cartório competente e o corpo transitou para a morgue.
            O conde respondia a todas as pessoas que a aventura se dera durante a sua ausência na sua casa de Auteuil, e que portanto só sabia a tal respeito o que lhe dissera o abade Busoni, que naquela noite, pelo maior dos acasos, lhe pedira para passar a noite em sua casa a fim de proceder a investigações nalguns livros preciosos existentes na biblioteca.
            Só Bertuccio empalidecia todas as vezes que o nome de Benedetto era pronunciado na sua presença. Mas não havia nenhum motivo para que quem quer que fosse notasse a palidez  de Bertuccio. Villefort, chamado a verificar o crime, reclamara o caso e conduzia a instrução com o ardor apaixonado que punha em todas as causas criminais em que era chamado a usar da palavra.
            Mas tinham-se já passado três semanas sem que as buscas mais ativas tivessem conduzido a qualquer resultado, e as pessoas da alta sociedade começavam a esquecer a tentativa de roubo na casa do conde e o assassínio do ladrão pelo seu cúmplice, para se ocuparem do próximo casamento de Mademoiselle Danglars com o conde Andrea Cavalcanti. O casamento estava quase declarado e o jovem era recebido em casa do banqueiro a título de noivo.
            Escrevera-se ao Sr. Cavalcanti pai, que aprovara calorosamente o casamento e que, manifestando o maior pesar por o seu serviço o impedir absolutamente de deixar Parma, onde se encontrava, declarava consentir em dar o capital correspondente ao rendimento de cento e cinquenta mil libras.
            Estava assente que os três milhões seriam colocados no banco de Danglars, que os faria render. Algumas pessoas ainda tinham tentado apresentar ao rapaz as suas dúvidas a respeito da solidez da posição do seu futuro sogro, que havia algum tempo experimentava na Bolsa perdas reiteradas, mas o jovem, com um desinteresse e uma confiança sublimes, repelira todos os conselhos, acerca dos quais tivera a delicadeza de não dizer uma única palavra ao barão. Por isso, o barão adorava o conde Andrea Cavalcanti.
            O mesmo não acontecia com Mademoiselle Eugênie Danglars, No seu ódio instintivo ao casamento, acolhera Andrea como um meio de afastar Morcerf, mas agora que Andrea se aproximava demasiado, começava a experimentar por ele visível repulsa. Talvez o barão a tivesse notado, mas como só podia atribuir
tal repulsa a um capricho, fingira nada perceber. 
            Entretanto, o prazo pedido por Beauchamp estava quase esgotado. Aliás, Morcerf pudera apreciar o valor do conselho de Monte-Cristo quando este lhe dissera que deixasse cair as coisas por si mesmas. De fato, ninguém chamara a atenção para a noticia sobre o general nem ninguém relacionara o oficial que entregara o castelo de Janina com o nobre conde que tinha assento na Câmara dos Pares.
            No entanto, Albert nem por isso se considerava menos insultado, pois a intenção da ofensa existia certamente nas poucas linhas que o tinham ferido. Além disso, a forma como Beauchamp terminara a conversa deixara uma recordação amarga no seu coração. Acarinhava portanto no espírito a idéia do duelo, cuja causa esperava, se Beauchamp se prestasse a isso, ocultar mesmo às suas testemunhas. Pelo menos a causa real.
            Quanto a Beauchamp, ninguém mais o vira desde o dia da visita que Albert lhe fizera; e a todos aqueles que o procuravam respondiam que se ausentara numa viagem de alguns dias. Aonde fora? Ninguém sabia nada a tal respeito.
            Uma manhã, Albert foi acordado pelo seu criado de quarto, que lhe anunciava Beauchamp.
            Albert esfregou os olhos, ordenou que mandassem esperar Beauchamp na salinha de fumo do térreo, vestiu-se rapidamente e desceu. Encontrou Beauchamp a passear de um lado para o outro. Ao vê-lo, Beauchamp parou.
            - O passo que dá, apresentando-se pessoalmente em minha casa e sem esperar a visita que tencionava fazer-lhe hoje mesmo, parece-me um bom augúrio, senhor - disse Albert. - Vamos, diga depressa, devo estender-lhe a mão e perguntar-lhe: “Beauchamp, quer dar a mão à palmatória e conservar um amigo?" Ou perguntar-lhe apenas: “Quais são as suas armas?"
            - Albert - respondeu Beauchamp com uma tristeza que deixou o jovem espantado –, sentemo-nos primeiro e conversemos.
            - Parece-me, pelo contrário, senhor, que antes de nos sentarmos me deve responder.
            - Albert - insistiu o jornalista –, há circunstâncias em que a dificuldade reside precisamente na resposta.
            - Vou torná-la fácil, senhor, repetindo-lhe a pergunta: quer retratar-se, sim ou não?
            - Morcerf, ninguém se limita a responder sim ou não às perguntas que dizem respeito à honra, à posição social e à vida de um homem como o Sr. Tenente-General Conde de Morcerf, par de França.
            - Que fazem então as pessoas que se não limitam a responder desse modo?
            - Fazem o que eu fiz, Albert. Dizem: “O dinheiro, o tempo e a fadiga não são nada quando se trata da reputação e dos interesses de toda uma família. São necessárias mais do que probabilidades, são necessárias certezas para aceitar um duelo de morte com um amigo. Se cruzo a espada ou primo o gatilho de uma pistola contra um homem a quem durante três anos apertei a mão, tenho de saber ao menos porque faço semelhante coisa, a fim de entrar em campo com o coração tranquilo e de bem com a minha consciência, como convém a um homem que tem de confiar ao seu braço a salvação da sua vida. 
            - Pois sim, pois sim - atalhou Morcerf com impaciência –, mas que quer isso dizer?
            - Quer dizer que venho de Janina.
            - De Janina? O senhor?!
            - Sim, eu.
            - Impossível.
            - Meu caro Albert, aqui tem o meu passaporte. Veja os vistos: Genebra, Milão, Veneza, Trieste, Delvino, Janina. Acredita na polícia de uma república, de um reino e de um império?
            Albert deitou os olhos ao passaporte e ergueu-os, atônito, para Beauchamp.
            - Esteve então em Janina?... - murmurou.
            - Albert, se você fosse um estranho, um desconhecido, um simples lorde como esse inglês que me veio pedir satisfações há três ou quatro meses, e que matei para me ver livre dele, decerto compreenderia que me não desse a semelhante trabalho. Mas achei que lhe devia essa prova de consideração. Gastei oito dias par ir e oito dias para voltar, mais quatro dias de quarentena e quarenta e oito horas de permanência. Isto dá
precisamente as minhas três semanas. Cheguei esta noite e aqui estou.
            - Meu Deus, meu Deus, quantos circunlóquios, Beauchamp, e como tarda a dizer-me o que espero de si!...
            - É que na verdade, Albert...
            - Diria que hesita.
            - Sim, hesito, tenho medo.
            - Tem medo de confessar que o seu correspondente o enganou? Oh, deixe-se de amor-próprio, Beauchamp! Confesse, Beauchamp, a sua coragem não pode ser posta em dúvida.
            - Oh, não se trata disso! - murmurou o jornalista. - Pelo contrário...
            Albert empalideceu horrivelmente. Tentou falar, mas as palavras morreram-lhe nos lábios.
            - Meu amigo - disse Beauchamp no tom mais afetuoso -, creia que me sentiria feliz em apresentar-lhe as minhas desculpas, e que as apresentaria de todo o coração; mas infelizmente...
            - Mas quê?
            - A notícia tinha razão, meu amigo.
            - Como, esse oficial francês...
            - Sim.
            - Esse Fernand?
            - Sim.
            - Esse traidor que entregou os castelos do homem ao serviço de quem estava...
            - Perdoe-me dizer-lhe o que lhe digo, meu amigo: esse homem é o seu pai!
            Albert fez um gesto furioso para se atirar a Beauchamp, mas este conteve-o muito mais com um olhar afetuoso do que com a mão estendida.
            - Veja, meu amigo - disse, tirando um papel da algibeira. - Aqui tem a prova.
            Albert abriu o papel. Era uma declaração de quatro habitantes notáveis de Janina, segundo a qual o coronel Fernand Mondego, coronel instrutor ao serviço do vizir Ali-Tebelin, entregara o castelo de Janina em troca de duas mil bolsas. 
            As assinaturas estavam reconhecidas pelo cônsul.
            Albert cambaleou e caiu esmagado numa poltrona. Desta vez não havia qualquer dúvida, o nome de família estava ali com todas as letras.
            Por isso, após um momento de doloroso silêncio, o coração dilatou-lhe, as veias do pescoço engrossaram-lhe e uma torrente de lágrimas brotou-lhe dos olhos. Beauchamp, que observara com profunda compaixão a forma como Albert cedia ao paroxismo da dor, aproximou-se dele.
            - Albert - disse-lhe –, compreende-me agora, não é verdade? Quis ver e julgar tudo por mim, esperando que a explicação fosse favorável ao seu pai e que lhe pudesse prestar toda a justiça. Mas, pelo contrário, as informações colhidas confirmam que esse oficial instrutor, que esse Fernand Mondego elevado por Ali-Pax  ao cargo de general-governador, não é outro senão o conde Fernand de Morcerf. Então voltei,
recordando a honra que você me concedera admitindo-me entre os seus amigos, e corri para sua casa.
            Albert, sempre estendido na sua poltrona, tapava os olhos com as mãos, como se quisesse impedir a luz de bater neles.
            - Corri a sua casa - continuou Beauchamp - para lhe dizer: "Albert, as culpas dos nossos pais, nestes tempos de ação e reação, não podem atingir os filhos. Albert, muito poucos atravessaram as revoluções no meio das quais nascemos sem que alguma nôdoa de lama ou de sangue não tenha conspurcado o seu
uniforme de soldado ou a sua toga de juiz. Albert, ninguém no mundo, agora que tenho todas as provas, agora que sou senhor do seu segredo, me pode forçar a um combate, que a sua consciência, estou certo disso, lhe censuraria como um crime. Mas o que você já não pode exigir de mim venho eu oferecer-lhe. Quer que estas provas, estas revelações, estas declarações que só eu possuo desapareçam? Quer que este segredo horrível fique entre nós?  Confiado à minha palavra de honra, nunca sairá da minha boca. Diga, quer, Albert? Diga, quer que façamos isto, meu amigo?"
            Albert lançou-se ao pescoço de Beauchamp.
            - Ah, nobre coração! - exclamou.
            - Tome - disse Beauchamp, apresentando os documentos a Albert.
            Albert agarrou-os com mão convulsa, apertou-os, amarrotou-os, chegou a pensar em rasgá-los. Mas, receando que o mais pequeno fragmento, levado pelo vento, pudesse um dia vir a bater-lhe na fronte, aproximou-se da vela sempre acesa para os charutos e queimou tudo até  ao último resto.
            - Querido amigo, excelente amigo! - murmurava Albert enquanto queimava os papéis.
            - Que tudo isto seja esquecido como um mau sonho - disse Beauchamp –, desapareça como essas últimas chamas que correm pelo papel enegrecido, que tudo isto se desvaneça como esse último fumo que se escapa dessas cinzas mudas.
            - Sim, sim - concordou Albert –, e que só reste a eterna amizade que voto ao meu salvador, amizade que os meus filhos transmitirão aos seus, amizade que me recordará sempre que o sangue das minhas veias, a vida do meu corpo e a honra do meu nome lhos devo integralmente, porque se semelhante coisa fosse
conhecida... Oh, Beauchamp, declaro-lhe que daria um tiro na cabeça! Mas não, pobre mãe, porque isso seria o mesmo que matá-la... Me exilaria. 
            - Querido Albert! - exclamou Beauchamp.
            Mas o jovem não tardou a sair desta alegria inopinada e por assim dizer fitícia, e recaiu mais profundamente na sua tristeza.
            - Então, que mais temos ainda, meu amigo? - perguntou Beauchamp.
            - Temos - respondeu Albert - que sinto algo partido no coração. Ouça, Beauchamp, ninguém se separa assim num segundo do respeito, da confiança e do orgulho que inspira a um filho o nome sem mácula do pai. Oh, Beauchamp! Como vou agora encarar o meu? Afastarei a testa quando ele aproximar os lábios e a mão quando me estender a sua?... Veja, Beauchamp, sou o mais infeliz dos homens. Ah, minha mãe, minha pobre mãe! - exclamou Albert, olhando com os olhos rasos de lágrimas o retrato da mãe. - Se soubesse isto, como sofreria!
            - Vamos, coragem, amigo! - procurou animá-lo Beauchamp, pegando-lhe nas mãos.
            - Mas de onde veio a primeira notícia inserida no seu jornal? - perguntou Albert. - há por detrás de tudo isto um ódio desconhecido, um inimigo invisível.
            - Nesse caso, mais uma razão para ter coragem, Albert. Nada de vestígios de emoção no seu rosto. Traga essa dor em si como a nuvem traz com ela a ruína e a morte, segredo fatal que só se desvenda no momento em que rebenta a tempestade. Vá, amigo, reserve as suas forças para o momento em que o temporal desabar...
            - Julga então que ainda não chegamos ao fim? - perguntou Albert, espantado.
            - Não julgo nada, meu amigo. Mas, enfim, tudo é possível. A propósito...
            - Que é? - perguntou Albert, vendo que Beauchamp hesitava.
            - Casará ainda com Mademoiselle Danglars?
            - A que propósito me pergunta isso neste momento, Beauchamp?
            - Porque, no meu espírito, o rompimento ou a realização desse casamento relaciona-se com o assunto que nos ocupa neste momento.
            - Como?... - disse Albert, cuja testa se ruborizou. - Parece-lhe que o Sr. Danglars...
            - Pergunto-lhe apenas em que pé está o seu casamento. Que diabo, não veja nas minhas palavras aquilo que não querem dizer nem lhes dê mais alcance do que têm!
            - Não, o casamento foi desfeito - respondeu Albert.
            - Muito bem - disse Beauchamp.
            Depois, vendo que o rapaz ia recair na sua melancolia, disse-lhe:
            - Se quer um conselho, Albert, acho melhor sairmos. Uma volta pelo bosque, de faeton ou a cavalo, o distrairá . Depois, iremos almoçar em qualquer parte e cada um irá cuidar da sua vida.
            - Pois sim - concordou Albert. - Mas saiamos a pé, parece-me que um pouco de fadiga me fará bem.
            - Seja - disse Beauchamp.
            E os dois amigos saíram a pé e seguiram pelo bulevar.  Chegados à Madalena, disse Beauchamp:
            - Já que estamos em caminho, vamos visitar o Sr. de Monte-Cristo. Ele o distrairá. É um homem admirável para desanuviar os espíritos e nunca faz  perguntas. Ora, na minha opnião, as pessoas que não fazem perguntas são os mais hábeis animadores.
            - Seja - disse Albert. - Vamos a sua casa. Gosto dele.
           

Capítulo LXXXV

A viagem


            Monte-Cristo soltou uma exclamação de alegria ao ver os dois rapazes juntos.
            - Ah, ah! - exclamou - Espero que esteja tudo terminado, esclarecido e arranjado.
            - É verdade - respondeu Beauchamp. - Boatos absurdos que caíram por si mesmos e que se agora se renovassem me teriam como primeiro antagonista. Portanto, não falemos mais disso.
            - Albert lhe dirá - observou o conde - que foi esse o conselho que lhe dei. Mas reparem - acrescentou - que estou acabando a manhã mais execrável que alguma vez passei, segundo creio.
            – Que está fazendo? - perguntou Albert. - Pondo em ordem os seus papéis, me parece.
            - Os meus papéis, graças a Deus, não! Os meus papéis estão sempre numa ordem maravilhosa, atendendo a que não tenho papéis. Trata-se dos papéis do Sr. Cavalcanti.
            - Do Sr. Cavalcanti? - perguntou Beauchamp.
            - É verdade, não sabe que se trata de um rapaz lançado pelo conde? - interveio Morcerf.
            - Isso não! - protestou Monte-Cristo. - Entendamo-nos bem: eu não lanço ninguém, e o Sr. Cavalcanti menos do que qualquer outro.
            - E que vai casar com Mademoiselle Danglars em meu lugar, o que - continuou Albert tentando sorrir e como se não tivesse ouvido o protesto do conde –, como pode imaginar, meu caro Beauchamp, me afeta cruelmente.
            - Como, Cavalcanti vai casar com Mademoiselle Danglars? - perguntou Beauchamp.
            - Ora essa! Mas de que canto perdido do mundo vem o senhor? - observou Monte-Cristo. - O senhor é um jornalista, o marido da Fama! Em Paris não se fala doutra coisa.
            - E foi o senhor, conde, que fez esse casamento? - perguntou Beauchamp.
            - Eu? Silêncio, senhor novelista, não diga semelhantes coisas! Eu, meu Deus, fazer um casamento! O senhor não me conhece. Pelo contrário, opus-me com todo o meu poder, recusei mesmo fazer o pedido.
            - Ah, compreendo! - exclamou Beauchamp. - Por causa do nosso amigo Albert?
            - Por minha causa? - interveio este. - Oh, não, palavra de honra! O conde me fará a justiça de confirmar que sempre desejei, pelo contrário, romper esse projeto, que felizmente se rompeu. O conde pretende que não é a ele que devo agradecer; seja, erguerei, como os Antigos, um altar ao Deo ignoto. 
            - Ouçam - pediu Monte-Cristo –, fui tão pouco metido e achado nisso que tanto o sogro como o rapaz estão frios comigo. Só Mademoiselle Eugênie, que não me parece ter profunda vocação para o casamento, é que, vendo até  que ponto estava pouco disposto a fazê-la renunciar à sua querida liberdade, me conservou a sua afeição.
            - E diz que esse casamento está prestes a realizar-se?
            - Meu Deus, sim, apesar de tudo o que tenho dito. Não conheço o rapaz; afirmam que é rico e de boa família, mas para mim essas coisas não passam de simples diz-se. Repeti tudo isto até à saciedade ao Sr. Danglars, mas ele está aterrado ao seu lucano. Fui ao ponto de informá-lo de uma circunstância que
para mim era muito grave: o rapaz foi trocado na ama, raptado por ciganos ou perdido pelo seu preceptor, não sei bem. Mas o que sei é que o pai o perdeu de vista há mais de dez anos. O que fez durante esses dez anos de vida errante só Deus sabe. Pois bem, nada disto foi tido em consideração. Encarregaram-me de escrever ao major, de lhe pedir documentos. Ei-los. Vou entregá-los, mas, como Pilatos, lavo daí as minhas mãos.
            - E Mademoiselle de Armilly, que cara lhe mostrou por lhe roubar a sua aluna? - perguntou Beauchamp.
            - Não faço idéia, mas parece que parte para Itália. A Sra Danglars falou-me dela e pediu-me cartas de apresentação para os empresários. Dei-lhe uma para o diretor do Teatro Valle, que me deve alguns favores. Mas que tem, Albert? Acho-o triste... Se dará o caso de, sem o suspeitar, estar apaixonado por Mademoiselle Danglars, por exemplo?
            - Que eu saiba, não - respondeu Albert, sorrindo tristemente.
            Beauchamp pôs-se a ver os quadros.
            - Mas enfim - insistiu Monte-Cristo –, não está com o seu ar habitual... Vejamos, que tem? Ande, diga.
            - Dói-me a cabeça - respondeu Albert.
            - Nesse caso, meu caro visconde - disse Monte-Cristo -, posso indicar-lhe um remédio infalível, remédio que me tem dado excelente resultado todas as vezes que tenho experimentado qualquer contrariedade.
            - Qual? - perguntou o rapaz.
            - Viajar.
            - Sim?
            - Sim. E olhe, como neste momento estou bastante contrariado, vou viajar. Quer vir comigo?
            - O senhor, contrariado, conde?... - duvidou Beauchamp. - Mas porquê?
            - Homessa! O senhor encara as coisas com muita despreocupação, pelo que vejo... Gostaria de ve-lo com uma instrução judicial em sua casa!
            - Uma instrução! Qual instrução?
            - A que o Sr. de Villefort está fazendo contra o meu amável assassino, uma espécie de bandido fugido das galés, ao que parece.
            - Ah, é verdade! - exclamou Beauchamp. - Li qualquer coisa nos jornais. Quem era o tal Caderousse?
            - Bom... parece que era um provençal. O Sr. de Villefort ouviu falar dele quando esteve em Marselha e o Sr. Danglars recorda-se de te-lo visto. Resultado: o Sr. Procurador régio tomou o caso tanto a peito que, ao que parece, despertou no mais alto grau o interesse do prefeito da Polícia, e graças a esse interesse, pelo  qual não posso estar mais reconhecido, há quinze dias que me mandam aqui  todos os bandidos que existem
em Paris e nos arredores, a pretexto de serem os assassinos do Sr. Caderousse. Assim, se isto continua, dentro de três meses não haverá um ladrão nem um assassino, neste belo reino de França, que não conheça a planta da minha casa na ponta da unha. Estou pois resolvido a abandonar-lhe por completo e ir para tão longe quanto a Terra me permita. Venha comigo, visconde, quer?
            - Com muito prazer.
            - Então, está combinado?
            - Está. Mas para onde vai?
            - Já lhe disse: para onde o ar é puro, o ruído entorpece e, por mais orgulhoso que se seja, um homem se sente humilde e insignificante. Aprecio essa humildade, eu, que dizem senhor do universo, como Augusto.
            - Mas para onde vai, finalmente?
            - Para o mar, visconde, para o mar. Sou um marinheiro, fique sabendo. Logo em criança fui embalado nos braços do velho Oceano e no colo da bela Anfitrite. Brinquei com o manto verde de um e a túnica cerúlea da outra. Gosto do mar como se gosta de uma amante, e quando estou muito tempo sem o ver sinto a sua falta.
            - Então vamos, conde, vamos!
            - Para o mar?
            - Sim.
            - Aceita?
            - Aceito.
            - Nesse caso, visconde, haverá esta tarde um brisca de viagem em que uma pessoa se pode deitar como na sua cama. Esse brisca estará atrelado a quatro cavalos de posta. Sr. Beauchamp, cabem lá quatro facilmente. Quer vir conosco? Eu levo-o!
            - Obrigado, mas venho do mar.
            - Como, o senhor vem do mar?!
            - Sim, ou pouco mais ou menos. Acabo de fazer uma viagenzinha às ilhas Borroméias.
            - Que tem isso? Venha  - insistiu também Albert.
            - Não, meu caro Morcerf. Deve compreender que desde o momento que recuso é porque é impossível. Aliás, é importante - acrescentou, baixando a voz - que eu fique em Paris, quanto mais não seja para vigiar a caixa do jornal.
            - Você é um bom e excelente amigo - disse Albert. - Sim, tem razão, observe, vigie, Beauchamp, e procure descobrir o inimigo a quem se deve essa revelação.
            Albert e Beauchamp separaram-se. O seu último aperto de mão encerrava todos os sentimentos que os seus lábios não podiam exprimir diante de um estranho.
            - Excelente rapaz, esse Beauchamp! - exclamou Monte-Cristo, depois de o jornalista sair. - Não é verdade, Albert?
            - Oh, sim, um homem de coração, garanto-lhe! Por isso o estimo com toda a minha alma. Mas agora que estamos sós, embora isso me seja quase indiferente aonde vamos?
            - À Normandia, se está de acordo. 
            - Inteiramente. Mas ficaremos apenas no campo, não é verdade? Nada de sociedade, nada de vizinhos?
            - O nosso único convívio será com cavalos para correr, cães para caçar e um barco para pescar, mais nada.
            - É o que desejo. Vou prevenir a minha mãe e depois estou às suas ordens.
            - Mas ele o permitirão?... - perguntou Monte-Cristo.
            - O quê?
            - Ir à Normandia.
            - A mim? Porventura não sou livre?
            - De ir aonde quiser sozinho, sei bem que é, uma vez que encontrei vagueando pela Itália...
            - E então?
            - Mas de vir com o homem que se chama conde de Monte-Cristo...
            - Tem fraca memória, conde.
            - Que quer dizer?
            - Não lhe disse já toda a simpatia que a minha mãe tinha pelo senhor?
            - A mulher varia com frequência, disse Francisco I; a mulher é como as ondas, disse Shakespeare: um era um grande rei e o outro um grande poeta, e ambos deviam conhecer a mulher.
            - Sim, a mulher. Mas a minha mãe não é a mulher, é uma mulher.
            - Permite a um pobre estrangeiro não compreender perfeitamente todas as sutilezas da sua língua?
            - Quero dizer que a minha mãe é avara dos seus sentimentos, mas quando os concede é para sempre.
            - Deveras? - perguntou, suspirando, Monte-Cristo. - E acha que ela me deu a honra de me conceder qualquer sentimento que não seja a mais completa indiferença?
            - Ouça, já lhe disse uma vez e repito-lhe: é necessário que o senhor seja realmente um homem muito estranho e muito superior para...
            - Sim?...
            - Sim. Porque a minha mãe deixou-se prender, não direi pela curiosidade, mas sim pelo interesse que o senhor inspira. Quando estamos sós, apenas conversamos a seu respeito.
            - E ela disse-lhe que desconfiasse deste Manfredo?
            - Pelo contrário, disse-me: “Albert, creio o conde um nobre caráter; procure se fazer estimar por ele."
            Monte-Cristo virou os olhos e suspirou.
            - Deveras?
            - Portanto, como deve compreender - continuou Albert –, em vez de se opor à minha viagem, a aprovará-  de todo o seu coração, visto estar de acordo com as recomendações que me faz diariamente.
            - Vá, então disse Monte-Cristo. Até  logo. Esteja aqui às cinco horas. Chegaremos ao nosso destino por volta da meia-noite ou da uma hora.
            - Como, a Tréport?!...
            - A Tréport ou aos arredores.
            - Só precisamos de oito horas para percorrer quarenta e oito léguas?
            - E ainda é muito - respondeu Monte-Cristo. 
            - Decididamente, o senhor é o homem dos prodígios, e consegue não só ultrapassar o comboio, o que não é muito difícil, sobretudo na França, mas também o próprio telégrafo.
            - Entretanto, visconde, como precisaremos sempre de sete ou oito horas para chegar ao nosso destino, seja pontual.
            - Fique tranquilo, daqui até    não tenho mais nada que fazer senão preparar-me.
            - Até as cinco horas, então.
            - Às cinco horas.
            Albert saiu. Depois de lhe fazer, sorrindo, um aceno com a cabeça, Monte-Cristo ficou um instante pensativo e como que absorto em profunda meditação. Por fim, passou a mão pela testa, como que para afastar o seu devaneio, aproximou-se da campainha e tocou duas vezes.
            Mal acabaram de soar os dois toques de campainha, entrou Bertuccio.
            - Mestre Bertuccio - disse-lhe Monte-Cristo –, não é amanhã, nem depois de amanhã, como pensei primeiro, mas sim esta tarde que parto para a Normandia. Daqui até  às cinco horas tem tempo mais do que suficiente para prevenir os cavalariços da primeira muda. O Sr. de Morcerf acompanha-me. Vá!
            Bertuccio obedeceu e um moço de cavalariça correu a Pontoise anunciando que a carruagem de posta passaria às seis horas exatas. O cavalariço de Pontoise mandou à muda seguinte um próprio, dessa muda mandaram outro próprio à seguinte e assim sucessivamente, de forma que, decorridas seis horas, todas as
mudas dispostas ao longo do caminho estavam prevenidas.
            Antes de partir, o conde subiu aos aposentos de Haydée, anunciou-lhe a sua partida, disse-lhe aonde ia e pôs toda a casa à sua disposição.
            Albert foi pontual. A viagem, triste no começo, em breve se desanuviou graças ao efeito físico da rapidez. Morcerf não fazia idéia de que fosse possível semelhante velocidade.
            - Com efeito - disse Monte-Cristo –, com a sua posta percorrendo duas léguas por hora e com essa lei estúpida que proíbe um viajante de ultrapassar outro sem lhe pedir licença e que permite que um viajante doente ou casmurro tenha o direito de levar atrás de si os viajantes desinibidos e de boa saúde, não existe locomoção possível. Eu evito esse inconveniente viajando com o meu próprio postilhão e com os meus próprios cavalos, não é verdade, Ali?
            E o conde, deitando a cabeça fora da portinhola, soltava um gritinho de incitamento, que dava asas aos cavalos. Estes já não corriam, voavam. A carruagem rodava como um trovão no pavimento da estrada real e todas as pessoas se viravam para ver passar aquele meteoro chamejante. Ali, repetindo o grito, sorria mostrando os dentes brancos, apertando nas mãos robustas as rédeas cobertas de espuma e incitando os cavalos, cujas belas crinas esvoaçavam ao vento. Ali, o filho do deserto, encontrava-se no seu elemento, e com o seu rosto negro, os seus olhos ardentes e o seu albornoz cor de neve, parecia, no meio da poeira que levantava, o gênio do simum e o deus do furacão.
            - Aí está uma volúpia que não conhecia, a volúpia da velocidade - declarou Morcerf.
            E as últimas nuvens da sua fronte dissipavam-se, como se o ar que fendia levasse essas nuvens consigo. 
            - Mas onde diabo arranja o senhor semelhantes cavalos? - perguntou Albert. - Manda-os fazer de encomenda?
            - Exatamente - respondeu o conde. - há seis anos, encontrei na Hungria um garanhão famoso pela sua velocidade. Comprei-o, já não me lembro por quanto; foi Bertuccio quem o pagou. No mesmo ano, ele teve trinta e dois filhos. É toda essa progenitura do mesmo pai que vamos passar em revista. São todos iguais: negros, sem uma única malha, exceto uma estrela na testa, porque por esse privilégio da coudelaria se
escolheram as éguas, tal como para os pax s se escolhem as favoritas.
            - É admirável! ... Mas diga-me, conde, que faz o senhor com todos esses cavalos?
            - O que vê: viajo com eles.
            - Mas decerto não viajará sempre...
            - Quando me não forem mais necessários, Bertuccio os venderá  e pretende ganhar  trinta ou quarenta mil francos no negócio.
            - Mas não haverá rei na Europa suficientemente rico para os comprar.
            - Então, os venderá a qualquer simples vizir do Oriente, que esvaziar o seu tesouro para pagá-los e o voltar a encher vergustando as plantas dos pés dos seus súbditos.
            - Conde, posso comunicar-lhe uma idéia que me ocorreu?
            - Diga.
            - É que, depois do senhor, Bertuccio deve ser o mais rico particular da Europa.
            - Engana-se, visconde. Tenho certeza de que se virar do avesso as algibeiras de Bertuccio não encontrar  nelas nem um centavo.
            - Porquê? - perguntou o jovem. - É algum fenômeno o Sr. Bertuccio? Ah. meu caro conde, não leve demasiado longe o maravilhoso ou deixarei de acreditar, previno-o!
            - O maravilhoso nunca me acompanha, Albert; trata-se apenas de uma questão de números e de bom senso. Ora atente neste dilema: um intendente rouba; mas rouba porquê?
            - Demônio, porque isso lhe está na massa do sangue, parece-me! - respondeu Albert. - Rouba por roubar.
            - Não, está enganado. Rouba porque tem uma mulher, filhos, desejos ambiciosos para ele e para a sua família; rouba sobretudo porque não tem certeza de nunca deixar o patrão e porque quer garantir o futuro. Pois bem, o Sr. Bertuccio está sozinho no mundo; serve-se da minha bolsa sem me dar satisfações e tem certeza de que nunca me deixará.
            - Porquê?
            - Porque eu não encontraria um melhor do que ele.
            - O senhor gira num circulo vicioso, o das probabilidades.
            - Oh, não! O meu círculo é o das certezas. Para mim, o bom servidor é aquele sobre o qual tenho direito de vida ou de morte.
            - E tem direito de vida ou de morte sobre Bertuccio? - perguntou Albert.
            - Tenho - respondeu friamente o conde.
            Há palavras que encerram um diálogo como uma porta de ferro. O tenho do conde era uma dessas palavras. O resto da viagem decorreu com a mesma rapidez; os trinta e dois cavalos, divididos por oito mudas, percorreram as suas quarenta e oito léguas em oito horas.
            Chegaram a meio da noite à porta de um belo parque. O porteiro estava de pé e tinha o portão aberto. Fora prevenido pelo cavalariço da última muda.
            Eram duas e meia da manhã. Conduziram Morcerf ao seu quarto. Encontrou um banho e uma ceia prontos. O criado que fizera a viagem no banco de trás da carruagem estava às suas ordens; Baptistin, que viajara no banco da frente, estava às do conde.
            Albert tomou o seu banho, ceou e deitou-se. Durante toda a noite foi embalado pelo barulho melancólico das vagas. Quando se levantou foi direito à janela, abriu-a e encontrou-se num terraçozinho onde tinha diante de si o mar, isto é, a imensidão, e atrás de si um bonito parque, que dava para uma pequena floresta.
            Numa enseada de certa grandeza balouçava uma corvetazinha de querena estreita e mastreação elegante, que arvorava na carangueja um pavilhão com as armas de Monte-Cristo, armas que representavam uma montanha de ouro num mar azul, com uma cruz de goles no chefe, o que tanto podia ser uma alusão ao
seu nome, que lembrava o Calvário, do qual a paixão de Nosso Senhor fez uma montanha mais preciosa do que o ouro, e à cruz infame que o seu sangue divino santificou, como a qualquer recordação pessoal de sofrimento e regeneração sepultada na noite do passado misterioso daquele homem. à volta da goleta
encontravam-se vários barquitos de pesca costeira pertencentes aos pescadores das aldeias vizinhas e que pareciam humildes súditos à espera das ordens do seu rei.
            Ali, como em todos os lugares onde Monte-Cristo se detinha, nem que fosse para passar apenas dois dias, a vida estava organizada pelo termômetro do mais alto conforto e por isso se tornava imediatamente fácil.
            Albert encontrou na sua antecâmara duas espingardas e lodos os utensílios necessários a um caçador; uma divisão mais alia, situada no térreo, estava reservada a todos os engenhosos apetrechos que os Ingleses, grandes pescadores, porque são pacientes e ociosos, ainda não conseguiram que fossem
adotados pelos rotineiros pescadores franceses.
            Passaram todo o dia entregues aos mais diversos exercícios, nos quais, aliás Monte-Cristo era excelente: mataram uma dúzia de faisões no parque, pescaram outras tantas trutas nos regatos, almoçaram num quiosque sobre o mar e serviram-lhes o chá na biblioteca.
            Quase à noitinha do terceiro dia, Albert, quebrado de fadiga por aquela vida intensa, que parecia ser uma brincadeira para Monte-Cristo, dormia junto da janela enquanto o conde fazia com o seu arquiteto a planta de uma estufa que queria instalar em casa, quando o ruído de um cavalo nas pedras da estrada fez o rapaz erguer a cabeça. Olhou pela janela e, com uma surpresa das mais desagradáveis, viu no pátio o seu criado de quarto, de que não quisera fazer-se acompanhar para incomodar menos Monte-Cristo.
            - Florentin aqui! - exclamou, saltando da poltrona. - Estará a minha mãe doente?
            E precipitou-se para a porta do quarto. Monte-Cristo seguiu-o com os olhos e viu-o chegar junto do
criado, que, ainda esbaforido, tirou da algibeira um pacotinho selado que continha um jornal e uma cana. 
            - De quem é esta carta? - perguntou vivamente Albert.
            - Do Sr. Beauchamp - respondeu Florentin.
            - Foi Beauchamp que te enviou, então?
            - Foi, sim, senhor. Chamou-me a sua casa, deu-me o dinheiro necessário para a viagem, arranjou-me um cavalo de posta e obrigou-me a prometer que não pararia enquanto não encontrasse o senhor. Fiz a viagem em quinze horas.
            Albert abriu a carta tremendo. Logo que leu as primeiras linhas, soltou um grito e pegou o jornal tremendo visivelmente. De súbito, os olhos nublaram-se-lhe, as pernas pareceram faltar-lhe, e, prestes a cair, apoiou-se em Florentin, que estendeu o braço para o amparar.
            - Pobre rapaz! - murmurou Monte-Cristo, tão baixo que ele próprio não conseguiu ouvir as palavras de compaixão que pronunciara. - Mas Ele disse que os pecados dos pais recairão sobre os filhos até  à terceira e quarta geração...
            Entretanto, Albert recuperara forças e continuara a ler. Por fim, sacudiu os cabelos da testa coberta de suor, amarrotou a carta e o jornal e perguntou:
            - Florentin, o teu cavalo está em condições de voltar a Paris?
            - Além de ser um mau garrano de posta, está coxo.
            - Oh, meu Deus! E como estava a casa quando a deixou ?
            - Bastante calma. Mas quando voltei de casa do Sr. Beauchamp encontrei a senhora chorando. Ela mandara-me chamar para saber quando o senhor voltaria. Então disse-lhe que ia procurá-lo da parte do Sr. Beauchamp. O seu primeiro movimento foi estender os braços, como que para me deter, mas, depois de um instante de reflexão, disse-me: “Está bem, Florentin, ele que volte."
            - Sim, minha mãe, sim - disse Albert –, volto, pode estar tranquila, e ai do infame!... Mas antes de mais nada tenho de partir.
            Regressou à sala onde deixara Monte-Cristo. Já não era o mesmo homem; cinco minutos tinham bastado para operar em Albert uma triste metamorfose. saíra no seu estado habitual e regressava com a voz alterada, o rosto sulcado por rugas febris, os olhos brilhantes sob as pálpebras arroxeadas e o passo cambaleante como o de um ébrio.
            - Conde, obrigado pela sua boa hospitalidade, que gostaria de desfrutar mais tempo, mas tenho de regressar a Paris.
            - Que aconteceu?
            - Uma grande desgraça. Mas permita-me que parta; trata-se de uma coisa muito mais preciosa do que a minha vida. Nada de perguntas, conde, suplico-lhe; arranje-me antes um cavalo!
            - As minhas cavalariças estão ao seu dispor, visconde - respondeu Monte-Cristo. - Mas vai matar-se de fadiga fazendo a viagem a cavalo. Tome uma caleça, um cupe, qualquer carruagem.
            - Não, isso demoraria muito tempo. Além disso, necessito dessa fadiga que receia por mim; me fará bem.
            Albert deu alguns passos girando sobre si mesmo, e, homem atingido por uma bala, e foi cair numa cadeira junto da porta. Monte-Cristo não viu esta segunda fraqueza. Estava à janela e gritava:
            - Ali, um cavalo para o Sr. de Morcerf! Depressa! Ele tem de partir com urgência.
            Estas palavras deram nova vida a Albert, que correu para fora da sala. O conde seguiu-o. 
            - Obrigado! - murmurou o rapaz depois de montar. - Regresse o mais depressa que puder, Florentin. há alguma senha combinada para que me dêem os cavalos?
            - Basta apenas entregar o que monta e selam-lhe imediatamente outro.
            Albert ia esporear a montada, mas deteve-se.
            - Talvez ache a minha partida estranha, insensata - disse. - Não imagina como umas linhas escritas num jornal podem causar o desespero de um homem... Pois bem - acrescentou, atirando-lhe o jornal –, leia isto, mas só depois de eu partir, para não me ver corar.
            E enquanto o conde apanhava o jornal, cravou as esporas que acabava de colocar nas botas no ventre do cavalo, o qual, surpreendido que existisse um cavaleiro que julgasse necessitar em relação a ele de semelhante estímulo, partiu como um dardo de arbaleta.
            O conde seguiu o jovem com os olhos, dominado por um sentimento de infinita compaixão, e só quando ele desapareceu por completo olhou para o jornal e leu o que se segue:
           
            O oficial francês ao serviço de Ali, pax  de Janina, de que falava há três semanas o jornal Impartial, e que não só entregou os castelos de Janina, mas ainda vendeu o seu benfeitor aos Turcos, chamava-se com efeito nessa época Fernand, como disse o nosso respeitável colega; mas depois acrescentou ao seu nome de batismo um título de nobreza e o nome de uma terra. Chama-se hoje conde de Morcerf e faz parte
da Câmara dos Pares.
           
            Assim, o terrível segredo que Beauchamp ocultara com tanta generosidade reaparecia como um fantasma armado, e outro jornal, cruelmente informado, publicara dois dias depois da partida de Albert para a Normandia as poucas linhas que quase tinham enlouquecido o pobre rapaz.


Capítulo LXXXVI

O julgamento


            Às oito horas da manhã, Albert caiu como um raio em casa de Beauchamp. Como o criado de quarto estava avisado, introduziu Morcerf no quarto do amo, que acabava de se meter no banho.
            - Então? - perguntou-lhe Albert.
            - Então, meu pobre amigo, esperava-o - respondeu Beauchamp.
            - Pois aqui me tem não lhe direi, Beauchamp, que o considero tão leal e correto que nem me passa pela cabeça que tenha falado do caso a quem quer que seja. Não, meu amigo. Aliás, a mensagem que me mandou é para mim uma garantia da sua amizade. Assim, não percamos tempo com preâmbulos: tem alguma idéia de onde vem o golpe?
            - Lhe direi em duas palavras daqui a pouco.
            - Está bem, mas primeiro, meu amigo, quero que me conte com todos os pormenores a história dessa abominável traição.
            E Beauchamp contou ao jovem, esmagado de vergonha e dor, os fatos que vamos repetir em toda a sua simplicidade.
            Na manhã da antevéspera, outro jornal que não o Impartial publicara o artigo que já conhecemos, e o que dava ainda mais gravidade ao caso era o fato de se tratar de um jornal bem conhecido por pertencer ao Governo. Beauchamp estava almoçando quando a notícia lhe saltara aos olhos. Mandara buscar imediatamente um cabriole e, sem acabar de comer, correra ao jornal.  Embora professasse idéias políticas completamente opostas às do diretor do jornal acusador, Beauchamp, como acontece algumas vezes e diremos até que com frequência, era seu amigo íntimo.
            Quando chegou, o diretor lia o seu próprio jornal e parecia encantado com um artigo acerca do açúcar de beterraba, que provavelmente era da sua lavra.
            - Ainda bem que tem aí o seu jornal, meu caro! - exclamou Beauchamp mal entrou. - Assim não tenho necessidade de lhe dizer o que me traz por aqui .
            - Você será por acaso partidário da cana-de-açúcar? - perguntou o diretor do jornal ministerial.
            - Não - respondeu Beauchamp –, sou até  absolutamente estranho ao assunto. Venho por outra coisa.
            - Qual?
            - O artigo acerca do Morcerf.
            - Deveras? É curioso!...
            - Tão curioso que me parece que se arrisca a um processo por difamação de resultado muito duvidoso.
            - De modo nenhum. Recebemos com a notícia uma série de provas e estamos perfeitamente convencidos de que o Sr. de Morcerf ficará quietinho. Aliás, é um serviço que se presta ao país denunciar os miseráveis indignos das honras que lhes concederam.
            Beauchalnp ficou interdito.
            - Mas quem os informou tão bem? - perguntou. - Porque o meu jornal, que levantou a lebre, viu-se obrigado a abster-se por falta de provas, e no entanto temos mais interesse do que vocês em denunciar o Sr. de Morcerf, que é par de França, enquanto nós estamos na oposição.
            - Oh, meu Deus, é muito simples! Não corremos atrás do escândalo; ele é que veio ao nosso encontro. Ontem chegou-nos um homem de Janina, trazendo consigo o formidável processo e, como hesitássemos em nos lançar no caminho da acusação, anunciou-nos que, se recusássemos, o artigo seria publicado em outro jornal. Você sabe, Beauchamp, o que é uma notícia importante; não quisemos perder essa. Agora os dados estão jogados; o caso é terrível e repercutirá até  aos confins da Europa.
            Beauchamp compreendeu que a única coisa a fazer era se dar por vencido e saiu precipitadamente para enviar um mensageiro a Morcerf.
            Mas o que não pudera mandar dizer a Albert, pois o que vamos contar aconteceu depois da partida do seu mensageiro, fora que no mesmo dia se manifestara grande agitação na Câmara dos Pares, agitação que se apoderara por completo dos grupos, habitualmente tão calmos, da alta assembléia. Todos tinham chegado quase antes da hora e falavam do sinistro acontecimento que iria ocupar a atenção pública e fixá-la num dos membros mais conhecidos da ilustre corporação.
            Lia-se em voz baixa o artigo e trocavam-se comentários e recordações, que precisavam ainda mais os fatos. O conde de Morcerf não era estimado pelos seus colegas. Como todos os arrivistas, vira-se obrigado, para se manter na sua posição, a observar um excesso de altivez. Os grandes aristocratas riam-se dele; os talentos da república, as glórias puras, desprezavam-no instintivamente. O conde encontrava-se na situação desagrável de bode expiatório. Uma vez designado pelo dedo do Senhor para o sacrifício, todos se preparavam para lhe cair em cima.
            O único que não sabia de nada era o conde de Morcerf. Não recebia o jornal onde vinha a notícia difamatória e passara a manhã a escrever cartas e a experimentar um cavalo. Chegou portanto à hora habitual, de cabeça erguida, olhar altivo e atitude insolente, desceu da carruagem, percorreu os corredores e entrou na sala sem notar as hesitações dos contínuos e os meios cumprimentos dos colegas.
            Quando Morcerf entrou, a sessão estava já aberta havia mais de meia hora.
            Embora o conde, ignorando, como dissemos, tudo o que se passara, em nada tivesse modificado o seu ar e a sua atitude, tanto um como a outra pareceram a todos mais orgulhosos do que de costume, e a sua presença naquela ocasião de tal modo agressiva à assembleia, ciosa da sua honra, que lodos viram nisso uma inconveniência, vários uma bravata e alguns um insulto. Era evidente que toda a Câmara ansiava por iniciar os debates.
            Via-se o jornal acusador nas mãos de todos; mas como sempre, todos hesitavam em chamar a si a responsabilidade do ataque. Por fim, um dos respeitáveis pares, inimigo declarado do conde de Morcerf, subiu à tribuna com uma solenidade anunciadora de que o momento esperado chegara.
            Fez-se um silêncio espantoso. Só Morcerf ignorava a causa da profunda atenção que se prestava daquela vez a um orador que ninguém costumava escutar tão complacentemente.
            O conde deixou passar tranquilamente o preâmbulo pelo qual o orador declarava ir falar de uma coisa de tal modo grave, de tal modo sagrada e de tal modo vital para a Câmara, que reclamava toda a atenção dos seus colegas.
            Às primeiras citações de Janina e do coronel Fernand, o conde de Morcerf empalideceu tão horrivelmente que um único frêmito percorreu a assembleia, da qual todos os olhares convergiam para o conde. As feridas morais têm isso de especial: ocultam-se, mas não fecham. Sempre dolorosas, sempre prontas a sangrar quando lhes tocam, permanecem vivas e abertas no coração.
            Terminada a leitura do artigo no meio do mesmo silêncio, perturbado então por um frêmito, que cessou imediatamente quando o orador pareceu disposto a tomar de novo a palavra, o acusador expôs os seus escrúpulos e procurou demonstrar quanto a sua tarefa era difícil. Tratava-se da honra do Sr. de Morcerf, era a honra de toda a Câmara que pretendia defender provocando um debate que teria de se ocupar de questões
pessoais, sempre tão melindrosas. Finalmente, concluiu pedindo que fosse ordenado um inquérito bastante rápido para confundir, antes que tivesse tempo de crescer, a calúnia e para recolocar o Sr. de  Morcerf, vingando-o, na posição que a opinião pública lhe concedera havia muito tempo.
            Morcerf estava acabrunhado. Tão acabrunhado, tão trêmulo perante aquela enorme e inesperada calamidade, que mal pôde balbuciar algumas palavras, e fitava os colegas com os olhos esbugalhados. Aquela timidez, que aliás tanto se podia dever à surpresa do inocente como à vergonha do culpado valeu-lhe
algumas simpatias. Os homens verdadeiramente generosos estão sempre prontos a ser compassivos quando a infelicidade do inimigo excede os limites do seu ódio.
            O presidente pôs o inquérito em votação. Votou-se por sentados e levantados e decidiu-se levar o inquérito diante. Perguntaram ao conde quanto tempo precisava para preparar a sua defesa.
            A coragem voltara a Morcerf desde que se sentira ainda vivo depois daquele horrível golpe.
            - Srs. Pares - respondeu –, não é com o tempo que se repele um ataque como o que dirigem neste momento contra mim inimigos desconhecidos e que permanecem na sombra da sua obscuridade, sem dúvida; é imediatamente, é por meio de um contra-ataque súbito que devo responder ao relâmpago que por instantes me cegou, já que me não é dado, em vez de semelhante justificação, derramar o meu sangue para provar aos meus colegas que sou digno de me sentar a seu lado!
            Estas palavras causaram uma impressão favorável ao acusado.
            - Peço portanto que o inquérito se efetue o mais depressa possível, e fornecerei à Câmara todas as provas necessárias à eficácia dessa diligencia.
            - Que dia fixa? - perguntou o presidente.
            - Coloco-me a partir de hoje à disposição da Câmara - respondeu o conde.
            O presidente agitou a campainha.
            - A Câmara concorda que o inquérito se realize hoje mesmo? - perguntou.
            - Sim! - foi a resposta unanime da assembléia.
            Nomeou-se uma comissão de doze membros para examinar as provas fornecidas por Morcerf. A primeira sessão da comissão foi marcada para as oito da noite no edifício da Câmara. Se fossem
necessárias diversas sessões, se realizariam à mesma hora e no mesmo local.
            Tomada esta decisão, Morcerf pediu licença para se retirar. Tinha de reunir as provas acumuladas havia muito tempo para enfrentar aquela tempestade, prevista pelo seu cauteloso e indomá vel carater.
            Beauchamp contou ao jovem tudo o que acabamos de dizer pela nossa parte. O seu relato apenas teve sobre o nosso a vantagem da animação das coisas vivas sobre a frieza das coisas mortas.
            Albert escutou-o, tremendo, ora de esperança, ora de cólera, e por vezes de vergonha. Porque, pela confidência de Beauchamp, sabia que o pai era culpado e perguntava a si próprio como, uma vez que era culpado, conseguiria provar a sua inocência. Chegado a este ponto, Beauchamp calou-se.
            - E depois? - perguntou Albert.
            - E depois? - repetiu Beauchamp.
            - Sim.
            - Meu amigo, essa palavra coloca-me perante um horrível dilema. Quer, de fato, saber o que se passou depois? 
            - É absolutamente necessário que o saiba, meu amigo, e prefiro sabê-lo pela sua boca do que pela de qualquer outro.
            - Nesse caso - declarou Beauchamp -, apele para a sua coragem, Albert; nunca terá tanta necessidade dela.
            Albert passou a mão pela testa para se assegurar da sua própria energia, como um homem que, preparando-se para defender a vida, experimenta a couraça e verga a lâmina da espada. Sentiu-se forte, porque tomava a febre por energia.
            - Continue! - pediu.
            - Chegou a noite - prosseguiu Beauchamp. - Todos em Paris estava na expectativa do acontecimento.
Muitos pretendiam que o seu pai não teria mais do que aparecer para deitar por terra a acusação; muitos também diziam que o conde não se apresentaria, e havia quem afirmasse tê-lo visto partir para Bruxelas (alguns foram mesmo à Polícia perguntar se era verdade, como se dizia, que o conde pedira o seu
passaporte).
            "Confesso-lhe que fiz quanto pude - continuou Beauchamp - para conseguir que um dos membros da comissão, um jovem par meu amigo, me introduzisse numa espécie de tribuna. Veio buscar-me às sete horas e, antes da chegada de quem quer que fosse, recomendou-me a um contínuo que me fechou numa espécie
de camarote. Estava oculto por uma coluna e mergulhado na escuridão mais completa, mas esperançado em ver e ouvir de ponta a ponta a terrível cena que se ia desenrolar.
            "Às oito horas precisas não faltava ninguém.
            "O Sr. de Morcerf entrou ao soar a última badalada das oito. Trazia na mão alguns papéis e parecia calmo. Contrariamente ao seu hábito, a sua atitude era simples e o seu traje esmerado e severo. E, conforme o hábito dos antigos militares, trazia a sobrecasaca abotoada de alto a baixo.
            "A sua presença produziu o melhor efeito. A comissão estava longe de ser malevolente e muitos dos seus membros vieram ao encontro do conde e estenderam-lhe a mão. Albert sentiu que o coração se partia ao ouvir todos estes pormenores, e no entanto no meio da sua dor insinuava-se um sentimento de reconhecimento. Desejaria poder abraçar os homens que tinham dado ao pai aquela prova de estima num
momento tão difícil para a sua honra.
            - Nessa altura entrou um contínuo, que entregou uma carta ao presidente.
            " - Tem a palavra, Sr. de Morcerf - disse o presidente, ao mesmo tempo que abria a carta.
            "O conde começou a sua apologia, e afirmo-lhe, Albert - continuou Beauchamp –, que foi de uma eloquência e de uma habilidade extraordinárias. Apresentou documentos que provavam que o vizir de Janina o honrara até  à sua última hora com toda a sua confiança, pois encarregara-o de uma negociação de vida
ou de morte com o próprio imperador. Mostrou o anel, símbolo de comando, com que Ali-Pax  lacrava habitualmente as suas cartas e que ele lhe dera para que pudesse, no seu regresso, a qualquer hora do dia ou da noite, ainda que o vizir se encontrasse no seu harém, chegar até  junto dele. Infelizmente, disse, a sua negociação malograra-se, e quando regressara para defender o seu benfeitor este já estava morto. Mas, disse o conde, ao morrer, Ali-Pax , tão grande era a sua confiança nele, confiara-lhe a sua concubina favorita e a sua filha. 
            Albert estremeceu ao ouvir estas palavras, porque à medida que Beauchamp falava, toda a narrativa de Haydée acudia ao espírito do jovem, e recordava-se do que a bela grega dissera acerca daquela mensagem e daquele anel e da forma como fora vendida e submetida à escravatura.
            - E qual foi o efeito do discurso do conde? - perguntou Albert com ansiedade.
            - Confesso que me comoveu e que, ao mesmo tempo que a mim, comoveu toda a comissão - respondeu Beauchamp.
            "Entretanto, o presidente deitou negligentemente os olhos à carta que lhe tinham entregado. Mas às primeiras linhas a sua atenção despertou. Leu-a, releu-a e, cravando os olhos no Sr. de Morcerf, perguntou:
            ".. Sr. Conde, acaba de nos dizer que o vizir de Janina lhe confiara a mulher e a filha, não é verdade?
            "- É, sim, senhor - respondeu Morcerf. - Mas nisso como em tudo o mais, a pouca sorte perseguia-me. No meu regresso, Vasiliki e sua filha Haydée tinham desaparecido.
            "- As conhecia-a!
            "- A minha intimidade com o pax  e a suprema confiança que ele depositava na minha fidelidade tinham-me permitido vê-las mais de vinte vezes.
            "- Tem alguma idéia do que lhes aconteceu?
            "- Tenho, senhor. Ouvi dizer que tinham sucumbido ao seu desgosto e talvez à sua miséria. Eu não era rico, a minha vida corria grandes perigos e não pude procurá-las, com grande pesar meu.
            "O presidente franziu imperceptivelmente o sobrolho.
            "- Senhores - disse –, ouviram e acompanharam o Sr. Conde de Morcerf e as suas explicações. Sr. Conde, pode fornecer-nos algum testemunho em apoio do que acaba de nos relatar?
            "- Infelizmente, não, senhor - respondeu o conde. - Todos os que rodeavam o vizir e que me conheceram na sua corte morreram ou desapareceram. Apenas, pelo menos segundo creio, apenas
compatriotas meus sobreviveram àquela horrível guerra. Só tenho cartas de Ali-Tebelin, e essas já as exibi aqui. Quanto ao anel, penhor da sua vontade, ei-lo. Finalmente, tenho a prova mais convincente que posso fornecer, isto é, depois de um ataque anônimo, a ausência de qualquer testemunha contra a minha palavra de homem honesto e a pureza de toda a minha vida militar.
            "Um murmúrio de aprovação percorreu a assembleia. Naquele momento, Albert, se não tivesse acontecido nenhum incidente, a causa do seu pai estaria ganha.
            "Faltava apenas a votação quando o presidente tomou a palavra.
            "- Senhores - disse –, e o senhor, conde de Morcerf, presumo que não se importarão de ouvir uma testemunha importantíssima, ao que ela afirma, e que acaba de se apresentar espontaneamente. Essa testemunha, não duvidamos disso depois de tudo o que nos disse o conde, provará a perfeita inocência
do nosso colega. Eis a carta que acabo de receber a tal respeito. Desejam que lhes seja lida ou decidem prosseguir sem que nos detenhamos neste incidente?
            "O Sr. de Morcerf empalideceu e crispou as mãos nos papéis que segurava e que lhe rangeram nos dedos. 
            "A resposta da comissão foi pela leitura. Quanto ao conde, estava pensativo e não tinha qualquer opinião a emitir.
            "O presidente leu portanto a seguinte carta: "Sr. Presidente: Posso fornecer à comissão de inquérito encarregada de examinar a conduta no Epiro e na Macedônia do Sr. Tenente-general Conde de Morcerf as informações mais positivas."
            "O presidente fez uma curta pausa.
            "O conde de Morcerf empalideceu. O presidente interrogou os ouvintes com a vista.
            "- Continue! - gritaram de todos os lados.
            "O presidente prosseguiu: "Encontrava-me presente quando ocorreu a morte de Ali-Pax ; assisti aos seus últimos momentos; sei o que foi feito de Vasiliki e Haydée; estou ao dispor da comissão e reclamo mesmo a honra de me fazer ouvir. Encontro-me no vestíbulo da Câmara no momento em que lhe envio
esta carta."
            “- E quem é essa testemunha, ou antes esse inimigo? - perguntou o conde numa voz em que era fácil notar profunda alteração.
            "- Vamos sabê-lo, senhor - respondeu o presidente. - A comissão concorda em ouvir a testemunha?
            "- Sim, sim! - responderam ao mesmo tempo todas as vozes.
            "Chamou-se um contínuo.
            "- Continuo - perguntou o presidente –, está alguém à espera no vestíbulo?
            "- Está, sim, Sr. Presidente.
            “- Quem?
            "- Uma mulher acompanhada de um criado.
            "Todos se entreolharam.
            "- Mande entrar essa mulher - ordenou o presidente.
            "Passados cinco minutos, o contínuo reapareceu. Todos os olhos estavam fixos na porta, e eu próprio - disse Beauchamp - compartilhava a expectativa e a ansiedade gerais.
            "Atrás do contínuo vinha uma mulher envolta num grande véu, que a cobria por completo. No entanto, adivinhava-se, pelas formas que o véu deixava transparecer e pelo perfume que ela exalava, a presença de uma mulher nova e elegante, mas mais nada.
            "O presidente pediu à desconhecida que tirasse o véu e então todos viram que a mulher estava vestida à grega. Além disso, era de extraordinária beleza."
            - Ah, era ela! - exclamou Morcerf.
            - Ela, quem?
            - Sim, Haydée.
            - Quem lhe disse?
            - Adivinho-o. Mas continue, Beauchamp, peço-lhe. Como vê, estou calmo e forte. E no entanto devemos estar a aproximar-nos do fim.
            - O Sr. de Morcerf - continuou Beauchamp - olhava a mulher com uma surpresa laivada de terror. Para ele, era a vida ou a morte que ia sair daquela boca encantadora; para todos os outros, era uma aventura tão estranha e cheia de curiosidade que a salvação ou a perda do Sr. de Morcerf só entrava no acontecimento como elemento secundário.
            "O presidente ofereceu com um gesto de mão uma cadeira à jovem, mas ela fez sinal com a cabeça que ficaria de pé. Quanto ao conde, deixara-se cair na sua poltrona e era evidente que as pernas se recusavam a sustentá-lo. 
            "- Minha senhora - disse o presidente -, escreveu à comissão para lhe dar informações acerca do caso de Janina, e adiantou que fora testemunha ocular dos acontecimentos.
            "- Fui, com efeito - respondeu a desconhecida numa voz cheia de encantadora tristeza e dessa sonoridade característica das vozes orientais.
            "- No entanto - prosseguiu o presidente -, permita-me que lhe diga que devia ser muito nova então.
            "- Tinha quatro anos. Mas como os acontecimentos se revestiam para mim de suprema importância, nem um pormenor saiu do meu espírito, nem uma particularidade escapou da minha memória.
            "- Mas que importância tinham para si esses acontecimentos e quem é a senhora, para que essa grande catástrofe lhe tenha causado tão profunda impressão?
            "- Tratava-se da vida ou da morte do meu pai - respondeu a jovem - e chamo-me Haydée, filha de Ali-Tebelin, pax  de Janina e de Vasiliki; sua esposa bem-amada.
            "O rubor, ao mesmo tempo modesto e orgulhoso, que cobriu as faces da jovem, o fogo do seu olhar e a majestade da sua revelação produziram na assembleia um efeito inexprimível.
            "Quanto ao conde, não ficaria mais aniquilado se um raio lhe tivesse aberto um abismo aos pés.
            "- Minha senhora - prosseguiu o presidente, depois de se inclinar com respeito –, permita-me uma simples pergunta, que não é uma dúvida, e que será a última: pode confirmar a autenticidade do que disse?
            "- Posso, senhor - respondeu Haydée, tirando debaixo do véu uma bolsinha de cetim perfumado. - Aqui está a minha certidão de nascimento, redigida por meu pai e assinada pelos seus principais oficiais, bem como a minha certidão de batismo, pois meu pai consentiu que fosse educada na religião da minha mãe, certidão que o grande primaz da Macedônia e do Epiro autenticou com o seu selo, e finalmente (e isto é o mais importante, sem dúvida) o registo da venda da minha pessoa e da pessoa da minha mãe ao negociante armênio El-Kobbir pelo oficial francês que, no seu infame negócio com a Porta, reservara para si, como parte na pilhagem, a filha e a mulher do seu benfeitor, que vendeu por mil bolsas, isto é, por cerca de quatrocentos mil francos.
            "Uma palidez esverdeada invadiu as faces do conde de Morcerf e os seus olhos injetaram-se de sangue ao ouvir aquelas acusações terríveis, que a assembléia acolheu com lúgubre silêncio.
            "Haydée, sempre calma, mas muito mais ameaçadora na sua calma do que outra o seria na sua cólera, estendeu ao presidente o registro da venda, redigido em língua árabe.
            "Como, se pensara que algumas das provas produzidas fossem redigidas em árabe, romaico ou turco, o intérprete da Câmara fora convocado. Chamaram-no. Um dos nobres pares a quem a língua árabe, que aprendera durante a sublime campanha do Egito, era familiar seguiu no velino a leitura que o tradutor fez em voz alta: "
            "Eu, El-Kobbir, negociante de escravos e fornecedor do harém, de S. M., reconheço ter recebido para remete-la ao sublime imperador, do senhor francês conde de Monte-Cristo, uma esmeralda avaliada em duas mil bolsas, para pagamento de uma jovem escrava cristã de onze anos de idade, chamada Haydée  e filha reconhecida do defunto Sr. Ali-Tebelin, pax  de Janina, e de Vasiliki, sua favorita; a qual me fora vendida há sete anos, com sua mãe, que morreu ao chegar a Constantinopla, por um coronel francês ao serviço do vizir Ali-Tebelin, chamado Fernand Mondego. A supracitada venda fora-me feita por conta de S. M., de quem tinha mandato, mediante a quantia de mil bolsas. Feito em Constantinopla, com autorização de S.M., no ano de 1247 da hégira. Assinado, EL-KOBBIR. Para lhe dar toda a fé, todo o crédito e toda a autenticidade, o presente documento será autenticado com o selo imperial, que o vendedor se obriga a que lhe seja aposto."

            "Depois da assinatura do negociante, via-se efetivamente o selo do sublime imperador.
            "Seguiu-se a tudo isto um silêncio terrível. O conde só tinha olhos, e esses olhos, presos, mal-grado seu, a Haydée, pareciam de lume e de sangue.
            "- Minha senhora, poderemos interrogar o conde de Monte-Cristo, que se encontra em Paris consigo, segundo creio? - perguntou o presidente.
            "- Senhor - respondeu Haydée -, o conde de Monte-Cristo, meu outro pai, está na Normandia há três dias.
            "- Mas então, minha senhora, quem lhe aconselhou esta diligência, que a comissão lhe agradece e que, aliás, é perfeitamente natural em face do seu nascimento e dos seus infortúnios? - perguntou o presidente.
            "- Senhor - respondeu Haydée –, esta diligência foi-me aconselhada pelo meu respeito e pela minha dor. Apesar de cristã, sempre pensei (Deus me perdoe!) vingar o meu ilustre pai. Ora, quando pus os pés na França, quando soube que o traidor morava em Paris, os meus olhos e os meus ouvidos ficaram constantemente abertos. Vivo retirada na casa do meu nobre protetor, mas vivo assim porque gosto da sombra e do silêncio, que me permitem entregar-me aos meus pensamentos e ao meu recolhimento. Mas o Sr. Conde de Monte-Cristo rodeia-me de cuidados paternais e nada do que constitui a vida social me é estranho; apenas lhe aceito o ruído distante. Assim, leio todos os jornais, tal como me enviam todos os
álbuns e recebo todas as melodias. E foi acompanhando, sem nela interferir, a vida dos outros, que soube o que se passou esta manhã na Câmara dos Pares e o que se deveria passar esta tarde... Então, escrevi.
            “- Portanto - perguntou o presidente -, o Sr. Conde de Monte-Cristo não tem nada a ver com a sua diligência?
            "- Ignora-a completamente, senhor, e o meu único receio é que a desaprove quando o souber. No entanto, este foi um belo dia para mim - continuou a jovem, erguendo ao céu um olhar ardente como uma chama -, por ser aquele em que tive finalmente ensejo de vingar o meu pai.
            "Durante todo este tempo o conde não pronunciara uma só palavra. Os seus colegas olhavam-no e sem dúvida lamentavam aquele êxito destruído pelo sopro perfumado de uma mulher. A sua desventura inscrevia-se pouco a pouco em caracteres sinistros no rosto.
            "- Sr. de Morcerf - perguntou o presidente –, reconhece esta senhora como filha de Ali-Tebelin, paxa de Janina?
            "- Não - respondeu Morcerf, fazendo um esforço para se levantar. - Trata-se de uma trama urdida pelos meus inimigos.
            "Haydée, que tinha os olhos fixos na porta, como se esperasse alguém, virou-se bruscamente e, encontrando o conde de pé, soltou um grito terrível. 
            "- Não me reconhece - disse. - Pois eu te reconheço, felizmente! É Fernand Mondego, o oficial francês que entregou as tropas do meu nobre pai. Foi o senhor que entregou os castelos de Janina! Foi o senhor que, enviado por ele a Constantinopla para negociar diretamente com o imperador a vida ou a morte do seu benfeitor, trouxe um falso acordo que lhe concedia perdão completo! Foi o senhor que, com esse acordo, obteve o anel do pax  que lhe devia proporcionar a obediência de Selim, o guarda do fogo! Foi o senhor que
apunhalou Selim! Foi o senhor que nos vendeu, a minha mãe e a mim, ao negociante El-Kobbir! Assassino! Assassino! Assassino! Ainda tem na testa o sangue do teu senhor! Vejam todos!
            "Estas palavras foram proferidas com tal acento de verdade que todos os olhos se viraram para a testa do conde, e ele próprio levou lá a mão, como se sentisse, ainda tépido, o sangue de Ali.
            "- Reconhece portanto concretamente o Sr. de Morcerf como sendo o próprio oficial Fernand Mondego?
            "- Se reconheço! - gritou Haydée. - Ó minha mãe, você me disse: "Eras livre, tinhas um pai que amavas, estavas destinada a ser quase uma rainha! Olha bem aquele homem, foi ele que te fez escrava, foi ele que levou na ponta de um pique a cabeça do teu pai, foi ele que nos vendeu, foi ele que nos entregou. Se esqueceres o seu rosto, reconhecê-lo-ás por aquela mão, na qual caíram uma a uma as moedas de ouro do
negociante El-Kobbir!" Sim, reconheço-o! Ele próprio que diga agora se me não reconhece.
            "Cada palavra caía como um cutelo sobre Morcerf e cortava uma parcela da sua energia. Quando ouviu as últimas, escondeu vivamente no peito, mal-grado seu, a mão mutilada por um ferimento e voltou a cair na sua poltrona, mergulhado num sombrio desespero.
            "Esta cena fizera turbilhonar os espíritos da assembleia, tal como vemos correr as folhas soltas do tronco das árvores arrastadas pelo vento poderoso do norte.
            "- Sr. Conde de Morcerf - disse o presidente –, não se deixe abater, responda. A justiça do tribunal é suprema e igual para todos, como a de Deus. Ela não o deixará esmagar pelos seus inimigos sem lhe dar os meios de os combater. Quer que se proceda a novos inquéritos? Quer que mande dois membros da Câmara a Janina? Fale!
            "Morcerf não respondeu.
            "Então, todos os membros da comissão se entreolharam com uma espécie de terror. Conheciam o temperamento enérgico e violento do conde; só uma terrível prostração poderia anular a defesa daquele homem; enfim, era mister pensar que àquele silêncio, que se assemelhava ao sono, sucederia um despertar
que se assemelharia ao raio.
            " - Então, que decide? – insistiu o presidente.
            " - Nada! - respondeu o conde em voz abafada, levantando-se.
            " - Portanto, o que a filha de Ali-Tebelin declarou é realmente a verdade? Ela é realmente a testemunha terrível a quem, como sempre acontece, o culpado não ousa responder? O senhor praticou realmente todos os atos de que o acusam? - perguntou o presidente.
            "O conde lançou à sua volta um olhar cuja expressão desesperada comoveria tigres, mas que não podia desarmar juízes. Depois, levantou os olhos para a abóbada e desviou-os imediatamente, como se receasse que ela se abrisse e fizesse resplandecer esse segundo tribunal chamado Céu, esse outro juiz chamado Deus.
            "Então, num movimento brusco, arrancou os botões da sobrecasaca fechada que o sufocava e saiu da sala como um pobre louco. Por instantes os seus passos ecoaram lugubremente debaixo da abóbada sonora e pouco depois o rodar da carruagem que o transportava a galope fez estremecer o pórtico do edifício florentino.
            "- Senhores - perguntou o presidente quando o silêncio se restabeleceu -, o Sr. Conde de Morcerf é reconhecido culpado de felonia traição e indignidade?
            "- É! - responderam em uníssono os membros da comissão de inquérito.
            "Haydée assistiu até  ao fim à sessão e ouviu pronunciar a sentença do conde sem que um só músculo do seu rosto exprimisse alegria ou compaixão.
            "Então, puxou o véu para o rosto, cumprimentou majestosamente os conselheiros e saiu com o passo com que Virgílio via caminhar as deusas."


Capítulo LXXXVII

A provocação


            - Então - continuou Beauchamp - aproveitei o silêncio e a obscuridade da sala para sair sem ser visto. O contínuo que me introduzira esperava-me à porta. Conduziu-me através dos corredores até  uma portinha que dava para a Rua de Vaugirard e saí com a ahlia simultaneamente amargurada e deslumbrada perdoe-me a expressão, Albert. Amargurada por sua causa, meu amigo, deslumbrada pela nobreza daquela moça, que colocara acima de tudo a vingança paterna. Sim, juro-lhe, Albert, seja qual for a origem daquela revelação, estou convencido de que, embora possa ser obra de um inimigo, esse inimigo foi apenas um agente da Providência.
            Albert segurava a cabeça entre as mãos. Levantou o rosto rubro de vergonha e banhado em lágrimas, agarrou num braço de Beauchamp e disse-lhe:
            - Amigo, a minha vida terminou. Resta-me, não dizer como você, que a Providência me vibrou o golpe, mas sim descobrir qual o homem que me persegue com a sua inimizade. Depois, quando o encontrar, matarei esse homem, ou esse homem me matará. Conto com a sua amizade para me ajudar. Beauchamp, se o desprezo ainda a não matou no seu coração.
            - O desprezo, meu amigo? Porque havia de ser atingido por essa infelicidade? Não! Graças a Deus já não estamos no tempo em que um preconceito injusto tornava os filhos responsáveis pelos atos dos pais. Reveja toda a sua vida, Albert; data de ontem, é certo, mas alguma vez a aurora de um belo dia foi mais pura do que o seu oriente'' Não, Albert, acredite. Você é jovem, é rico, deixe a França. Tudo se esquece depressa nesta grande Babilônia, na existência agitada e nos gostos inconstantes. Voltará dentro de três ou quatro anos, depois de casar com alguma princesa russa, e ninguém já se lembrará do que se passou ontem, e com mais forte razão do que se passou há dezesseis anos.
            - Obrigado, meu caro Beauchamp, obrigado pela excelente intenção que lhe dita essas palavras, mas não pode ser assim. Disse-lhe qual era o meu desejo, e agora, se for preciso, trocarei a palavra desejo pela palavra vontade. Como deve comprcender, interessado como sou no caso, não posso ver as coisas do mesmo modo que você. O que a si parece provir de uma fonte celeste, parece-me a mim brotar de uma tonte menos pura. A Providência parece-me, confesso-lhe, muito estranha a tudo isto, e ainda bem, porque assim, em vez do invisível e do impalpável mensageiro das recompensas e dos castigos celestes, encontrarei um ser palpável e visível no qual me vingarei. Oh, sim, juro-lho, por tudo o que sofro há um mês! Agora repito-lhe, Beauchamp, tenho de reentrar na vida humana e material, e se é ainda meu amigo como diz, ajude-me a
encontrar a mão que desferiu o golpe.
            - Seja!-respondeu Beauchamp.- Se quer absolutamente que desça à terra, descerei; se quer ir em busca de um inimigo, irei consigo. E o encontrarei, porque a minha honra tem quase tanto interesse como a sua em que o encontremos.
            - Nesse caso, Beauchamp, comecemos agora mesmo, sem demora, as nossas investigações. Cada minuto de espera é uma eternidade para mim. O denunciante ainda não foi punido e pode portanto esperar não o ser. Mas, pela minha honra, se o espera, engana-se!
            - Escute o que vou lhe dizer, Morcert:
            - Ah, Beauchamp, vejo que sabe alguma coisa!... Isso é o mesmo que restituir-me a vida.
            - Não garanto que seja verdade, Albert, mas é pelo menos uma luz na noite. Seguindo essa luz, talvez ela nos conduza ao objetivo.
            - Diga! Bem vê que ardo de impaciência.
            - Pois bem, vou-lhe contar o que lhe não quis dizer no regresso de Janina.
            - Fale.
            - Eis o que se passou, Albert: muito naturalmente, procurei o primeiro banqueiro da cidade para obter informações. Mal me referi ao caso, ainda antes do nome do seu pai ser pronunciado, disse-me ele:
            "- Ah, muito bem, adivinho o que o traz aqui!...
            "- Como assim? Porquê?
            "- Porque apenas há quinze dias fui interrogado sobre o mesmo assunto.
            "- Por quem?
            "- Por um banqueiro de Paris, meu correspondente.
            "- Chamado?
            "- Sr. Danglars."
            - Ele!-exclamou Albert.-Com efeito, é ele que há muito tempo persegue o meu pobre pai com o seu ódio invejoso; ele, o homem pretensamente popular, que não pode perdoar ao conde de Morcerf ser par de França. E, veja, aquele rompimento de casamento sem motivo declarado... Sim, é isso!
            - Informe-se, Albert, mas não perca a cabeça antecipadamente. Informe-se, repito-lhe, e se for verdade...
            - Oh, sim, se for verdade... me pagará tudo o que tenho sofrido! - exclamou o jovem.
            - Cautela, Morcerf, lembre-se de que é um homem velho.
            -  Olharei à sua idade tanto como ele olhou à honra da minha família. Se queria mal ao meu pai, porque não o atacou cara a cara? Oh, não, ele tem medo de se encontrar diante de um homem!
            - Albert, não o condeno, estou apenas a aconselhá-lo: ande com prudência.
            - Oh, não tenha medo! De resto, me acompanhará , Beauchamp. As coisas solenes devem ser tratadas diante de testemunhas. Antes do fim deste dia, se o Sr. Danglars for culpado, o Sr. Danglars deixará de viver ou eu estarei morto. Por Deus, Beauchamp, quero fazer um lindo funeral à minha honra!
            - Sendo assim, quando se tomam semelhantes resoluções, Albert, é necessário po-las imediatamente em prática. Quer ir a casa do Sr. Danglars? A caminho.
            Mandaram chamar um cabriole de praça. Quando entraram no palácio do banqueiro, viram o faeton e o criado do Sr. Andrea Cavalcanti à porta.
            - Calha bem - declarou Albert com voz sombria. - Se o Sr. Danglars não quiser se bater comigo, matarei o genro. Decerto um Cavalcanti não recusará bater-se...
            Anunciaram o jovem ao banqueiro, o qual, ao ouvir o nome de Albert e sabendo o que se passara na véspera, recusou recebê-lo. Mas era demasiado tarde, pois o jovem seguira o lacaio e, ao ouvir a ordem dada, forçou a entrada, seguido de Beauchamp, até  ao gabinete do banqueiro.
            - Que é isto?! - protestou este. - já não sou senhor de receber em minha casa quem quero e de não receber quem não quero? Parece-me que o esquece, estranhamente...
            - Não, senhor - redargui u Albert com frieza. - Mas há circunstancias, e o senhor encontra-se numa delas, em que devemos, a não ser que sejamos covardes, e não tenho dúvida em oferecer-lhe esse refúgio, estar em casa pelo menos para certas pessoas.
            - Mas que me quer o senhor?
            - Quero - respondeu Morcerf, aproximando-se sem parecer reparar em Cavalcanti, que estava encostado à chaminé -, quero propor-lhe um encontro num canto discreto, onde ninguém nos incomodará  durante dez minutos... Não lhe peço mais. Onde, enfim, depois do encontro, desses dois homens um deles ficar  caído no chão...
            Danglars empalideceu e Cavalcanti fez um movimento.  Então, Albert virou-se para o rapaz e disse:
            - Oh, meu Deus, também pode ir, se quiser, Sr. Conde! Tem o direito de estar lá, visto ser quase da família, e eu concedo encontros destes a tantas pessoas quantas os quiserem aceitar.
            Cavalcanti olhou com ar estupefato para Danglars, o qual, fazendo um esforço, se levantou e foi colocar entre os dois jovens. O ataque de Albert a Andrea acabava de o colocar em outro terreno e por isso esperava que a visita de Albert tivesse causa diferente da que supusera de início.
            - Então, senhor - disse a Albert –, se vem aqui provocar este senhor porque o preferi a si, previno-o de que apresentarei queixa ao procurador régio.
            - Engana-se, senhor - perguntou Morcerf com um sorriso sombrio -, não me refiro de modo nenhum a esse casamento e só me dirijo ao Sr. Cavalcanti porque me pareceu que teve por momentos a intenção de intervir na nossa discussão. Mas no fundo, o senhor tem razão: de fato, hoje procuro questionar todas as pessoas. Esteja porém tranquilo, Sr. Danglars, porque a prioridade lhe pertence.
            - Senhor - respondeu Danglars, pálido de cólera e medo –, previno-o de que quando tenho a pouca sorte de encontrar no meu caminho um cão raivoso, mato-o, e de que, longe de me considerar culpado, penso ter prestado um serviço à sociedade. Ora, se o senhor está raivoso e disposto a morder-me, previno-o de que o matarei sem piedade. Irra, tenho porventura culpa de o seu pai estar desonrado?!
            - Tem, miserável! - gritou Morcerf. - A culpa é sua!
            Danglars deu um passo atrás.
            - A culpa é minha?... - murmurou. – O senhor esta louco! Que sei eu dessa história grega? Alguma vez viajei por esses países? Fui eu que aconselhei o seu pai a vender os castelos de Janina, a trair...
            - Silêncio! - disse Albert em voz abalada. - Não, não foi o senhor quem diretamente promoveu o escândalo e ocasionou a desgraça, mas foi o senhor quem hipocritamente o provocou.
            - Eu?!
            - Sim, o senhor! De onde veio a revelação?
            - Parece-me que o jornal já o disse: de Janina, com a breca!
            - E quem escreveu para Janina?
            - Para Janina?...
            - Sim. Quem escreveu pedindo informações acerca do meu pai?
            - Parece-me que qualquer pessoa pode escrever para Janina...
            - Mas só uma escreveu.
            - Só uma?
            - Sim! E essa pessoa foi o senhor.
            - Escrevi, de fato. Parece-me que quando casamos uma filha com um rapaz temos o direito de nos informar acerca da família desse rapaz. É não só um direito, mas também um dever.
            - O senhor escreveu sabendo perfeitamente a resposta que receberia - replicou Albert.
            - Eu? Juro-lhe - protestou Danglars, com uma convicção e uma segurança que provinham talvez menos do seu medo do que do interesse que no fundo sentia pelo pobre rapaz –, juro-lhe que nunca me teria passado pela cabeça escrever para Janina. Porventura conhecia a catástrofe de Ali-Pax ?
            - Então alguém o incitou a escrever?
            - Claro.
            - Incitaram-no?
            - Sim.
            - Quem?... Acabe... diga...
            - Meu Deus, nada mais simples! Falava do passado do seu pai e dizia que a origem da sua fortuna sempre fora obscura. Perguntaram-me então onde enriquecera o seu pai. Respondi: “Na Grécia." Então o meu interlocutor disse-me: “Pois bem, escreva para Janina."
            - E quem lhe deu esse conselho?
            - Ora, ora, o conde de Monte-Cristo, seu amigo!
            - O conde de Monte-Cristo disse-lhe que escrevesse para Janina?
            - Disse e eu escrevi. Quer ver a minha correspondência? Posso mostrar-lhe. 
            Albert e Beauchamp entreolharam-se.
            - Senhor - disse então Beauchamp, que até  ali estivera calado –, parece-me que acusa o conde, que está ausente de Paris e que se não pode justificar neste momento...
            - Eu não acuso ninguém, senhor - perguntou Danglars conto como as coisas se passaram e repetirei diante do Sr. Conde de Monte-Cristo o que acabo de dizer diante dos senhores.
            - E o conde sabe que resposta recebeu?
            - Mostrei-lhe.
            - Sabia que o nome de batismo do meu pai era Fernand e que o seu nome de família era Mondego?
            - Sabia, eu tinha lhe dito havia muito tempo. Quanto ao mais, não fiz nesse caso senão o que qualquer outro faria, e até talvez muito menos. Quando, no dia seguinte ao receber a resposta, impelido pelo Sr. Conde de Monte-Cristo, o seu pai veio pedir a minha filha oficialmente, recusei, como se faz quando se quer acabar com as coisas de vez., recusei redondamente, é verdade, mas sem explicações, sem escândalo. Com efeito, para que faria eu um escândalo? Em que medida a honra ou a desonra do Sr. de Morcerf me interessava? Não seria por isso que a taxa de juro subiria ou desceria...
            Albert sentiu o rubor subir-lhe à testa. Não havia dúvida: Danglars defendia-se com baixeza, mas também com a segurança de um homem que diz, se não toda a verdade, pelo menos parte da verdade, não por consciência, é certo, mas sim por terror. Aliás, que procurava Morcerf? Não era a mais ou menos
culpabilidade de Danglars ou de Monte-Cristo, era um homem que respondesse por uma ofensa ligeira ou grave, era um homem que se batesse, e era evidente que Danglars não se bateria.
            E depois, todas as coisas esquecidas ou despercebidas se tornavam agora visíveis a seus olhos ou presentes na sua memória. Monte-Cristo sabia tudo pois fora ele que comprara a filha de Ali-Pax .
            Ora, sabendo tudo, aconselhara Danglars a escrever para Janina. Conhecida a resposta, acedera ao desejo manifestado por Albert para ser apresentado a Haydée. Uma vez diante dela, deixara a conversa derivar para a morte de Ali, sem se opor à narrativa de Haydée, mas tendo sem dúvida dado à jovem, em algumas palavras romaicas que pronunciara, instruções que não tinham permitido a Morcerf reconhecer o pai. De resto, não pedira ele a Morcerf que não proferisse o nome do pai diante de Haydée? Por fim, levara Albert para a Normandia no momento em que sabia que o grande escândalo ia rebentar. Não havia dúvida a tal respeito: tudo aquilo fora calculado e sem dúvida nenhuma Monte-Cristo era conivente dos inimigos do
conde de Morcerf.
            Albert levou Beauchamp para um canto e comunicou-lhe todas estas deduções.
            - Tem razão - concordou o jornalista. - O Sr. Danglars só tem a ver com o sucedido no tocante à parte brutal e material; é a Monte-Cristo que deve pedir uma explicação.
            Albert virou-se.
            - Senhor - disse a Danglars –, espero que compreenda por que motivo me não despeço definitivamente; resta-me saber se as suas acusações são justas coisa de que vou me assegurar sem
demora junto do Sr. Conde de Monte-Cristo. 
            E, depois de cumprimentar o banqueiro, saiu com Beauchamp, sem parecer dar pela presença de Cavalcanti.
            Danglars acompanhou-os à porta e aí renovou a Albert a afirmação de que nenhum motivo de ódio pessoal o animava contra o Sr. Conde de Morcerf.


Capítulo L XXXVIII

O insulto


            À porta do banqueiro, Beauchamp deteve Morcerf.
            - Escute - disse-lhe –, há pouco sugeri-lhe em casa do Sr. Danglars que era ao conde de Monte-Cristo que devia pedir uma explicação.
            - É verdade e vamos para sua casa.
            - Um momento, Morcerf. Antes de irmos a casa do conde, reflita.
            - Em que quer que reflita?
            - Na gravidade da diligência.
            - É mais grave do que vir a casa do Sr. Danglars?
            - É. O Sr. Danglars é um argentário, e como não ignora, os argentários sabem muito bem o capital que arriscam e não se batem facilmente. O outro, pelo contrário, é um gentil-homem, na aparência, pelo menos; mas não receia encontrar um valente debaixo da capa do gentil-homem?
            - Só receio uma coisa: encontrar um homem que se não bata.
            - Oh, a esse respeito esteja tranquilo! - declarou Beauchamp. - Esse se baterá. Temo até  uma coisa: que se bata demasiado bem. Acautele-se!
            - Amigo, isso é tudo o que peço - perguntou Morcerf com um belo sorriso. - Nada me pode tornar mais feliz do que ser morto por meu pai; isso nos salvará a todos.
            - Mas isso será a morte de sua mãe!
            - Pobre mãe, bem o sei! - suspirou Albert, passando a mão pelos olhos. - Mas mais vale que morra por isso do que de vergonha.
            - Está realmente decidido, Albert?
            - Estou.
            -  Vamos então! Mas acha que o encontraremos?
            - Ele devia regressar algumas horas depois de mim e certamente regressou.
            Meteram-se na carruagem e mandaram seguir para a Avenida dos Campos Elísios, nº  30. Beauchamp queria descer sozinho, mas Albert observou-lhe que como o caso saia das regras habituais lhe permitia afastar-se da etiqueta do duelo.
            O jovem agia em tudo aquilo por uma causa tão sagrada que Beauchamp nada mais tinha a fazer do que submeter-se a todos os seus desejos. Cedeu portanto a Morcerf e limitou-se a acompanhá-lo.
            Albert transpôs apenas de um salto a distancia que ia do cubículo do porteiro à escadaria. Foi Baptistin quem o recebeu.
            Efetivamente, o conde acabava de chegar, mas estava tomando banho e proibira que se recebesse quem quer que fosse. 
            - Mas depois do banho? - perguntou Morcerf.
            - O senhor jantará.
            - E depois do jantar?
            - O senhor dormirá uma hora.
            - E em seguida?
            - Em seguida irá à Ópera.
            - Tem certeza? - perguntou Albert.
            - Absoluta. O senhor pediu os seus cavalos para as oito horas precisas.
            - Muito bem, era tudo o que queria saber - declarou Albert.
            Depois, virando-se para Beauchamp, disse-lhe:
            - Se tem alguma coisa a fazer, Beauchamp, faça-a imediatamente, e se tem algum encontro marcado para esta noite, adie-o para amanhã. Decerto compreende que conto consigo para ir à Ópera. Se puder, traga-me o Château-Renaud.
            Beauchamp aproveitou a dispensa e deixou Albert, depois de prometer ir buscá-lo às oito horas menos um quarto.
            Regressado a casa, Albert preveniu Franz, Debray e Morrel de que gostaria de os ver naquela noite na Ópera. Depois foi visitar a mãe, que desde os acontecimentos da véspera não recebia ninguém e se conservava no seu quarto. Encontrou a de cama, esmagada pela dor daquela humilhação pública.
            A visita de Albert produziu em Mercedes o efeito que era de esperar: apertou a mão do filho e rompeu em soluços. Contudo, as lágrimas aliviaram-na.
            Albert permaneceu um instante de pé e mudo junto da mãe. Via-se pelo seu rosto pálido e pelo sobrolho franzido que a sua resolução de vingança se arreigava cada vez mais no seu coração.
            - Minha mãe, conhece algum inimigo do Sr. de Morcerf? - perguntou Albert.
            Mercedes estremeceu. Notara que o jovem não dissera “ao meu pai".
            - Meu amigo - respondeu –, as pessoas na posição do conde têm muitos inimigos que não conhecem. Aliás, os inimigos que se conhecem não são, como sabe, os mais perigosos.
            - Sim, bem sei; por isso apelo para toda a sua perspicácia. Minha mãe é uma mulher tão superior que nada lhe escapa!
            - Porque me diz isso?
            - Porque a senhora notou, por exemplo, que na noite do baile que demos o Sr. de Monte-Cristo não quis tomar nada em nossa casa.
            Mercedes soergueu-se toda trêmula num braço, a arder em febre.
            - O Sr. de Monte-Cristo! - exclamou. - E que relação tem isso com a pergunta que me faz?
            - Como sabe, minha mãe, o Sr. de Monte-Cristo é quase um homem do Oriente, e os Orientais, para conservarem toda a liberdade de vingança, nunca comem nem bebem em casa dos seus inimigos...
            - Diz que o conde de Monte-Cristo é nosso inimigo, Albert? - perguntou Mercedes, tornando-se mais pálida do que o lençol que a cobria. - Quem lhe disse isso? Porquê?  Está  louco, Albert. O Sr. de Monte-Cristo só tem tido atenções para conosco. O Sr. de Monte-Cristo salvou-lhe a vida, foi o senhor mesmo que o apresentou. Oh, peço-lhe, meu filho, se teve semelhante idéia,  afaste-a! E já agora quero fazer-lhe uma recomendação, direi mais, quero fazer-lhe um pedido: dê-se bem com ele.
            - Minha mãe - replicou o jovem, com um olhar sombrio -, tem decerto as suas razões para me dizer que poupe esse homem.
            - Eu?! - exclamou Mercedes, corando com a mesma rapidez com que empalidecera e tornando-se quase imediatamente ainda mais pálida do que anteriormente.
            - Sim, sem dúvida, e essa razão - insistiu Albert - é que esse homem nos pode fazer mal, não é verdade?
            Mercedes estremeceu e pousou no filho um olhar perscrutador.
            - Diz-me coisas muito estranhas, Albert, e tem singulares prevenções, parece-me... Que lhe fez o conde? Ainda há três dias estava com ele na Normandia, e também ainda há três dias eu o considerava, assim como o senhor, o seu melhor amigo.
            Um sorriso irônico aflorou aos lábios de Albert. Mercedes viu esse sorriso, e com o seu duplo instinto de mulher e de mãe adivinhou tudo. Mas prudente e forte, ocultou a sua perturbação e os seus receios. Albert deixou morrer a conversa; passado um instante, a condessa reatou-a.
            - Vinha perguntar-me como ia; respondo-lhe francamente, meu amigo, que me não sinto bem. Devia instalar-se aqui, Albert, e fazer-me companhia. Preciso de não estar só.
            - Minha mãe, estaria às suas ordens, e bem sabe com que prazer, se um assunto urgente e importante me não obrigasse a deixá-la durante toda a noite.
            - Ah, muito bem! - respondeu Mercedes com um suspiro. -  Vá, Albert, não quero torná-lo de modo algum escravo da sua piedade filial.
            Albert simulou não compreender, cumprimentou a mãe e saiu. Assim que o jovem fechou a porta, Mercedes mandou chamar um criado de confiança e ordenou-lhe que seguisse Albert para toda a parte onde fosse naquela noite e que viesse informá-la imediatamente do que visse.
            Depois, tocou chamando a criada de quarto e, por muito fraca que estivesse, vestiu-se para estar pronta para qualquer eventualidade.
            A missão dada ao lacaio não era difícil de cumprir. Albert regressou aos seus aposentos e vestiu-se com uma espécie de esmero severo. Beauchamp chegou às oito horas menos dez minutos; falara com Château-Renaud, o qual prometera encontrar-se no seu lugar de orquestra antes de o pano subir. Meteram-se ambos no cupe de Albert, o qual, não tendo qualquer motivo para ocultar aonde ia, disse em voz alta:
            - À Ópera!
            Na sua impaciência, chegou antes de o pano subir.  Château-Renaud encontrava-se no seu lugar. Prevenido de tudo por Beauchamp, Albert não tinha nenhuma explicação a dar-lhe. O comportamento dos filhos que procuram vingar o pai era tão simples que Château-Renaud nem sequer tentou dissuadi-lo e
limitou-se a renovar-lhe a certeza de que estava ao seu dispor.
            Debray ainda não chegara mas Albert sabia que raramente  faltava a um espetáculo da Ópera. Albert vagueou pelo teatro até ao subir do pano. Esperava encontrar Monte-Cristo, quer no corredor, quer na escada. A campainha chamou-o ao seu lugar e ele foi sentar-se nas cadeiras de orquestra, entre
Château-Renaud e Beauchamp. Mas os seus olhos não largavam o camarote entre colunas, que durante o primeiro ato pareceu obstinar-se em permanecer fechado.
            - Por fim, quando Albert consultava pela centésima vez o relógio, no inicio do segundo ato, a porta do camarote abriu-se e Monte-Cristo, vestido de preto, entrou e encostou-se à balaustrada para olhar a sala. Morrel, que o acompanhava, pôs-se também a procurar com os olhos a irmã e o cunhado. Descobriu-os num camarote de segunda ordem e fez-lhes sinal.
            Ao dar uma vista de olhos circular pela sala, o conde descobriu um rosto pálido e olhos cintilantes que pareciam querer atrair avidamente os seus. Reconheceu Albert, mas a expressão que notou naquele rosto transtornado aconselhou-o sem dúvida a fazer de conta que o não vira. Sem esboçar portanto nenhum gesto que revelasse o seu pensamento, sentou-se, tirou o binóculo do estojo e apontou-o para outro lado.
            Mas, sem parecer ver Albert, o conde não o perdia de vista, e quando o pano desceu, no fim do segundo ato, o seu golpe de vista infalível e seguro seguiu o jovem, que saia da platéia acompanhado dos seus dois amigos.
            Depois, a mesmo rosto reapareceu num camarote de primeira ordem, defronte do seu. O conde sentia aproximar-se a tempestade, e quando ouviu a chave girar na fechadura do seu camarote, embora falasse nesse momento com Morrel com o seu rosto mais risonho, o conde sabia a que se ater e estava preparado para tudo. A porta abriu-se.
            Só então Monte-Cristo se virou e viu Albert, lívido e trêmulo, e atrás dele Beauchamp e Château-Renaud.
            - Ora vejam, o meu cavaleiro sempre conseguiu aqui chegar! - exclamou com a benevolente delicadeza que distinguia habitualmente a sua saudação das vulgares cortesias da sociedade. - Boa noite, Sr. de Morcerf.
            E o rosto daquele homem, tão singularmente senhor de si mesmo, exprimia a mais perfeita cordialidade.
            Morrel lembrou-se da carta que recebera do visconde e na qual, sem outra explicação, este lhe pedia que fosse à Ópera, e adivinhou que ia acontecer algo terrível.
            - Não vimos aqui para trocar cumprimentos hipócritas ou manter aparências enganosas de amizade - perguntou o jovem. - Vimos pedir-lhe uma explicação, Sr. Conde.
            A voz trêmula do jovem passava-lhe a custo por entre os dentes cerrados.
            - Uma explicação na Ópera? - observou o conde, no tom tão calmo e num relance de olhos tão penetrante, só característicos do homem eternamente senhor de si mesmo. - Apesar de pouco familiarizado com os hábitos parisienses, nunca imaginei, senhor, que fosse aqui que as explicações se pedissem.
            - No entanto, quando as pessoas se recusam a receber, quando se não pode chegar até  elas a pretexto de que estão no banho, à mesa ou na cama, tem-se de as procurar onde é possível encontrá-las - replicou Albert.
            - Não sou difícil de encontrar - declarou Monte-Cristo. - Ainda ontem senhor, se me não falha a memória, o vi em minha casa.
            - Ontem, senhor - disse o jovem, cuja cabeça parecia um vulcão -, estava em sua casa porque ignorava quem o senhor era!
            Ao pronunciar estas palavras, Albert elevara a voz de maneira que as pessoas sentadas nos camarotes contíguos o ouvissem, assim como as que passavam no  corredor. Por isso, as pessoas dos camarotes viraram-se e as do corredor pararam atrás de Beauchamp e Château-Renaud ao ouvirem a altercação.
            - De onde diabo vem o senhor?-perguntou Monte-Cristo, sem a menor emoção aparente. - Não me parece estar em seu juízo perfeito...
            - Desde que compreenda as suas perfídias, senhor, e que consiga levá-lo a compreender que quero vingar-me delas, é quanto me basta para não considerar-me de todo louco - perguntou Albert, furioso.
            - Senhor, não o compreendo - replicou Monte-Cristo –, e mesmo que o compreendesse, ainda assim o senhor estaria a falar demasiado alto. Estou no meu camarote, senhor, e aqui só eu tenho o direito de elevar a voz acima da dos outros. Saia, senhor!
            E Monte-Cristo indicou a porta a Albert, com um admirável gesto de autoridade.
            - Ah, eu o obrigarei a sair da toca! - gritou Albert amarrotando nas mãos convulsas a luva, que o conde não perdia de vista.
            - Bem, bem! - exclamou fleumaticamente o conde. - já vejo que o senhor me quer provocar. Mas um conselho, visconde, e retenha-o bem é mau costume fazer barulho quando se provoca alguém. O barulho não é favorável a todas as pessoas, Sr. de Morcerf...
            Este nome provocou um murmúrio de surpresa, que passou como um arrepio por entre aqueles que assistiam à cena. Desde a véspera que o nome de Morcerf andava em todas as bocas.
            Melhor e primeiro que todos Albert compreendeu a alusão, e fez um gesto para lançar a luva à cara do conde; mas Morrel agarrou-lhe o pulso, enquanto Beauchamp e Château-Renaud, receando que a cena excedesse os limites de uma provocação, o seguravam por detrás.
            Mas Monte-Cristo, sem se levantar, inclinando a cadeira, limitou-se a estender a mão e a tirar dos dedos crispados do jovem a luva úmida e amarrotada.
            - Senhor - disse-lhe com um acento terrível –, considero a sua luva lançada e a devolverei enrolada numa bala. Agora saia ou chamo os meus criados e mando colocá-lo para fora.
            Aturdido, espantado, com os olhos injetados de sangue, Albert deu dois passos atrás. Morrel aproveitou para fechar a porta. Monte-Cristo voltou a pegar o binóculo e pôs-se a observar a sala como se nada de extraordinário se tivesse passado. Aquele homem tinha um coração de bronze e um rosto de mármore. Morrel inclinou-se-lhe ao ouvido.
            - Que lhe fez? - inquiriu.
            - Eu? Nada, pelo menos pessoalmente - respondeu Monte-Cristo.
            - Contudo, esta cena estranha deve ter uma causa...
            - A aventura do conde de Morcerf exasperou o pobre rapaz.
            - E o senhor teve alguma coisa a ver com isso?
            - Foi por intermédio de Haydée que a Câmara teve conhecimento da traição do pai.
            - De fato, disseram-me, mas não quis acreditar, que a escrava grega que tenho visto consigo neste mesmo camarote era filha de Ali-Pax .
            - No entanto, é verdade. 
            - Oh, meu Deus, compreendo tudo agora! - exclamou Morrel. - Esta cena foi premeditada.
            - Como?
            - Sim. Albert escreveu-me a pediu-me que estivesse esta noite na Ópera. Era para me tornar testemunha do insulto que lhe queria fazer.
            - Provavelmente - admitiu Monte-Cristo, com a sua imperturbável tranquilidade.
            - Mas que fará dele?
            - De quem?
            - De Albert!
            - De Albert? - repetiu Monte-Cristo no mesmo tom. - Que farei de Albert, Maximilien? Tão certo como o senhor estar aqui e eu apertar-lhe a mão, o matarei amanhã antes das dez horas da manhã. Aqui tem o que farei dele.
            Morrel pegou por sua vez na mão de Monte-Cristo com as suas e estremeceu ao sentir aquela mão fria e calma.
            - Ah, conde, o pai ama-o tanto!... - murmurou.
            - Não me diga isso! - gritou Monte-Cristo, no primeiro movimento de cólera que deixava transparecer. - Eu o farei!
            Morrel, estupefato, deixou cair a mão de Monte-Cristo.
            - Conde! Conde!
            - Meu caro Maximilien - interrompeu-o o conde –, escute de que forma adorável Duprez canta esta frase: “ô Matilde, ídolo da minha alma!" Fui o primeiro a descobrir Duprez em Nápoles e o primeiro a aplaudi-lo. Bravo! Bravo!
            Morrel compreendeu que não havia mais nada a dizer e calou-se.
            O pano, que subira no fim da cena de Albert, desceu quase imediatamente. Bateram à porta.
            - Entre - disse Monte-Cristo, sem que a sua voz denota-se a menor emoção.
            Apareceu Beauchamp.
            - Senhor - disse a Monte-Cristo –, há pouco acompanhava, como deve ter visto, o Sr. de Morcerf.
            - O que significa - perguntou Monte-Cristo, rindo - que vinham provavelmente de jantar juntos. Ainda bem, Sr. Beauchamp, que está mais sóbrio do que ele.
            - Senhor - disse Beauchamp –, Albert cometeu a inconveniência, reconheço, de se encolerizar; venho por minha própria conta apresentar-lhe desculpas. E agora que as desculpas estão apresentadas (as minhas, como compreende, Sr. Conde), quero dizer-lhe que o considero demasiado cortês para me recusar algumas explicações acerca das suas relações com a gente de Janina. Depois, acrescentarei algumas palavras a
respeito dessa jovem grega.
            Monte-Cristo fez com os lábios e com os olhos um sinalzinho a recomendar silêncio.
            - Pronto, lá estão todas as minhas esperanças destruídas! -  acrescentou rindo.
            - Como assim? - perguntou Beauchamp.
            - Sem dúvida está mortinho por me arranjar fama de excêntrico. Em seu entender, sou um Lara, um Manfredo, um Lorde Ruthwen. Depois, passado o  momento de me ver como um excêntrico, destrói o seu tipo e tenta transformar-me num homem vulgar. Quer-me comum, banal. Por fim, pede-me explicações. Então, Sr.
Beauchamp, só por piada!
            - No entanto - perguntou Beauchamp com altivez –, há ocasiões em que a probidade ordena...
            - Sr. Beauchamp - interrompeu-o aquele homem estranho  –, quem dá ordens ao Sr. de Monte-Cristo é o Sr. de Monte-Cristo. Portanto, nem mais uma palavra a tal respeito, por favor. Faço o que entendo, Sr. Beauchamp, e acredite que o faço sempre muito bem feito.
            - Senhor - respondeu o rapaz –, não se paga a pessoas honestas nessa moeda; a honra exige garantias.
            - Mas eu sou uma garantia viva - replicou Monte-Cristo, impassível, embora nos seus olhos brilhassem clarões ameaçadores. - Temos ambos nas veias sangue que desejamos verter; é essa a nossa garantia mútua. Leve esta resposta ao visconde e diga-lhe que amanhã, antes das dez horas, verei a cor do dele.
            - Só me resta portanto - declarou Beauchamp - fixar as condições do combate.
            - Isso ‚é-me absolutamente indiferente, senhor - perguntou o conde. - Por tão pouca coisa escusava de vir incomodar-me no espetáculo. Na França, as pessoas batem-se à espada ou à pistola; nas colônias usa-se o rostobina, e na Arábia, o punhal. Diga ao seu cliente que, apesar de insultado, para ser excêntrico até  ao fim, lhe deixo a escolha das armas e que aceitarei tudo sem discussão, sem contestação. Tudo, ouviu bem? Tudo, incluindo o combate à sorte, que é sempre estúpido. Mas comigo é diferente; tenho certeza de ganhar.
            - Tem certeza de ganhar?... - repetiu Beauchamp, olhando o conde com os olhos esbugalhados.
            - Claro - respondeu Monte-Cristo, encolhendo ligeiramente os ombros. - Sem isso não me bateria com o Sr. de Morcerf. O matarei; tem de ser e assim será. Mande-me apenas um bilhete a minha casa, esta noite, indicando a arma e a hora. Não gosto de me fazer esperar.
            - À pistola, às oito horas da manhã, no Bosque de Vincennes - disse Beauchamp, desconcertado, sem saber se lidava com um fanfarrão insolente ou com um ser sobrenatural.
            - Pronto, senhor - disse Monte-Cristo. - Agora que está tudo tratado, deixe-me ouvir o espetáculo, peço-lhe, e diga ao seu amigo Albert que não volte aqui esta noite: se prejudicaria com todas as suas brutalidades de mau gosto. Que vá para casa e durma.
            Beauchamp saiu de boca aberta.
            - Agora, conto consigo, não é verdade? - perguntou Monte-Cristo, virando-se para Morrel.
            - Certamente - respondeu Morrel. - Pode dispor de mim, conde. No entanto...
            - O quê?
            - Seria importante, conde, que eu conhecesse a verdadeira causa...
            - Quer dizer que recusa?
            - Não.
            - A verdadeira causa, Morrel? - repetiu o conde. - Mesmo esse rapaz caminha às cegas e não a conhece. A verdadeira causa só eu e Deus a conhecemos. Mas dou-lhe a minha palavra de honra, Morrel, que Deus, que a conhece, será por nós.
            - Basta-me isso, conde - disse Morrel. - Quem é a sua segunda testemunha?
            - Não conheço ninguém em Paris a quem queira conceder essa honra a não ser você e o seu cunhado Emmanuel. Acha que Emmanuel quererá  fazer-me esse favor?
            - Respondo-lhe por ele como por mim, conde.
            - Bom, é tudo o que preciso. Amanhã às sete em minha casa, está bem?
            - Lá estaremos.
            - E agora, silêncio. O pano sobe; escutemos. Tenho o hábito de não perder uma nota desta Ópera. Não há música mais adorável do que a do Guilherme Tell!

Capítulo LXXXIX

A Noite

            O Sr. de Monte-Cristo esperou, conforme era seu hábito, que Duprez cantasse o seu famoso Segui-me! e só então se levantou e saiu.
            À porta, Morrel deixou-o, renovando a promessa de estar em  casa dele, com Emmanuel, no dia seguinte de manhã às sete horas precisas. Em seguida o conde subiu para o seu cupe, sempre calmo e sorridente, e cinco minutos depois estava em casa. Simplesmente, só quem não conhecesse o conde se deixaria enganar pela expressão com que disse, ao entrar, a Ali:
            - Ali, as minhas pistolas de coronha de marfim!
            Ali trouxe a caixa ao amo e este pôs-se a examinar as armas com um cuidado naturalíssimo num homem que ia confiar a vida a um bocado de ferro e chumbo. Eram pistolas especiais que Monte-Cristo mandara fazer para atirar ao alvo nos seus aposentos. Uma cápsula bastava para expelir a bala e na
divisão ao lado ninguém suspeitaria que o conde, como se diz em termos de tiro, estava ocupado a conservar a mão.
            Estava procurando a melhor maneira de empunhar a arma e apontar a uma chapinha metálica que lhe servia de alvo quando a porta do gabinete se abriu e entrou Baptistin. Mas antes mesmo do criado abrir a boca, o conde viu à porta, que ficara aberta, uma mulher velada, de pé na penumbra da divisão contígua, e que seguira Baptistin.
            A mulher vira o conde de pistola na mão, via duas espadas em cima de uma mesa, e não se conteve, entrou. Baptistin consultou o amo com a vista. O conde fez-lhe um sinal e Baptistin saiu e fechou a porta atrás de si.
            - Quem é a senhora? - perguntou o conde à mulher velada.
            A desconhecida olhou à sua volta, para se assegurar de  que estava efetivamente só, e depois inclinou-se, como se fosse ajoelhar-se, juntou as mãos e disse com acento de desespero: 
            - Edmond, não mate o meu filho!
            O conde recuou um passo, soltou um gritinho e deixou cair a arma que empunhava.
            - Que nome pronunciou, Sra de Morcerf? - perguntou.
            - O seu! - gritou ela, deitando o véu para trás. - O seu, que só eu talvez não tenha esquecido. Edmond, não é a Sra de Morcerf que está aqui, é Mercedes.
            - Mercedes morreu, minha senhora - replicou Monte-Cristo - e não conheço mais ninguém com esse nome.           
            - Mercedes vive, senhor, e Mercedes recorda-se, pois só ela o reconheceu assim que o viu, e o reconheceria sem o ver, pela sua voz, Edmond, apenas pela sua voz. E desde então ela segue-o passo a passo, vigia-o, teme-o e não precisou procurar a mão de onde partiu o golpe que feriu o Sr. de Morcerf.
            - Fernand, quererá dizer, minha senhora - corrigiu Monte-Cristo com uma amarga ironia. - Uma vez que estamos nos recordando dos nomes, recordemos todos. Monte-Cristo pronunciou o nome de Fernand com tal expressão de ódio que Mercedes sentiu um arrepio de terror percorrer-lhe o corpo.
            - Bem vê, Edmond, que não me enganei e que tenho razão em pedir-lhe: poupe o meu filho!
            - E quem lhe disse, minha senhora, que quero mal ao seu filho?
            - Ninguém, meu Deus! Mas uma mãe é dotada de um sexto sentido e adivinhei tudo. Segui-o esta noite à Ópera e, oculta numa frisa, vi tudo o que se passou.
            - Então, se viu tudo, minha senhora, viu que o filho de Fernand me insultou publicamente - disse Monte-Cristo com uma cama terrível.
            - Oh, por piedade!
            - Viu - continuou o conde - que me atiraria com a sua luva ao rosto se um dos meus amigos, o Sr. Morrel, lhe não tivesse agarrado o braço.
            - Ouça-me. O meu filho também o descobriu e atribui-lhe as desventuras que atingem o pai.
            - Minha senhora, está confundida - perguntou Monte-Cristo. - Não se trata de desventuras, mas sim de um castigo. Não sou eu que firo o Sr. de Morcerf, é a Providência que o pune.
            - E por que motivo toma o senhor o lugar da Providência? - inquiriu Mercedes. - Porque se lembra, quando Ela esquece? Que lhe interessa, Edmond, Janina e o seu vizir? Que mal lhe tez Fernand Mondego atraiçoando Ali-Tebelin?
            - Minha senhora - respondeu Monte-Cristo –, tudo isso é, de fato, assunto entre o oficial francês e a filha de Vasiliki. Isso não me diz respeito, tem razão, e se jurei vingar-me não foi nem do oficial francês nem do conde de Morcerf: foi do pescador Fernand, marido da catalã Mercedes.
            - Ah, senhor, que terrível vingança por uma falta que a fatalidade me fez cometer! - gritou a condessa. - Porque a culpada sou eu, Edmond, e se tem de se vingar de alguém, é de mim, que não tive coragem para suportar a sua ausência e o meu isolamento.
            - Mas a que se devia a minha ausência? A que se devia o seu isolamento? - perguntou Monte-Cristo.
            - A terem-no prendido, Edmond, a terem-no  encarcerado... 
            - E porque fui preso, porque fui encarcerado?
            - Ignoro-o - respondeu Mercedes.
            - Sim, ignora-o, minha senhora, tenho pelo menos essa esperança... Pois bem, vou elucidá-la! Fui preso e encarcerado porque debaixo do caramanchão da Réserve, na véspera do dia em que devia casar consigo, um homem chamado Danglars escreveu esta carta, que o pescador Fernand se encarregou de pôr
pessoalmente no correio.
            E Monte-Cristo dirigiu-se para a sua mesa, abriu uma gaveta e tirou um papel que perdera a cor primitiva e cuja tinta se tornara cor de ferrugem, papel que pôs diante dos olhos de Mercedes.
            Era a carta de Danglars ao procurador régio que no dia em que pagara os duzentos mil francos ao Sr. de Boville o conde de Monte-Cristo, disfarçado de mandatário da casa de Thomson & French, subtraíra do processo de Edmond Dantés. Mercedes leu aterrada as seguintes linhas:

            O Sr. Procurador régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon, chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris.
            Ter-se-á  a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon.

            - Oh, meu Deus! - exclamou Mercedes, passando a mão pela testa coberta de suor. - E esta carta...
            - Comprei-a por duzentos mil francos, minha senhora - respondeu Monte-Cristo. - Mas foi bom negócio, pois permite-me hoje justificar-me aos olhos da senhora.
            - E o resultado desta carta?
            - Sabe-o muito bem, minha senhora: foi a minha prisão. Mas o que não sabe, minha senhora, foi o tempo que a minha prisão durou. O que a senhora não sabe é que fiquei catorze anos a um quarto de légua de si, numa cela do Castelo de If. O que a senhora não sabe é que em cada dia desses catorze anos renovei
o voto de vingança que fizera no primeiro dia, embora então ignorasse que a senhora casara com Fernand, meu denunciante, e que o meu pai morrera e morrera de fome!
            - Santo Deus! - exclamou Mercedes, cambaleando.
            - Mas foi tudo isto que soube quando saí da prisão, catorze anos depois de lá ter entrado, e foi isto que me levou a jurar, por Mercedes viva e pelo meu pai morto, vingar-me de Fernand... e vingo-me!
            - E tem a certeza de que o desventurado Fernand fez isso?
            - Juro-lhe pela minha alma, senhora, que fez como acabo de lhe dizer. De resto, isso não é muito mais odioso do que, sendo francês de adoção, ter-se passado para os Ingleses; espanhol de nascimento, ter combatido contra os espanhóis; estipendiário de Ali, tê-lo traído e assassinado. Perante isto, que vale a carta que acaba de ler? Não passa de uma mistificação galante que deve perdoar, reconheço-o e compreendo-o, a mulher que casou com esse homem, mas que não perdoa o apaixonado que havia de casar com ela. Pois bem, os Franceses não se vingaram do traidor, nem os espanhóis o fuzilaram, e Ali, na sua sepultura, deixou a traição impune. Mas eu, traído, assassinado, lançado também numa sepultura, eu saí dessa sepultura pela graça de Deus e devo a Deus poder-me vingar. Deus enviou-me para isso e aqui estou.
            A pobre mulher deixou cair a cabeça entre as mãos; as pernas dobraram-se-lhe e caiu de joelhos.
            - Perdoe, Edmond - suplicou. - Perdoe por mim, que ainda o amo!
            A dignidade da esposa conteve o impulso da amante e da mãe. A sua fronte inclinou-se quase a tocar o tapete. O conde correu para ela e levantou-a.
            Então, sentada numa poltrona, pôde, através das lágrimas, olhar o rosto másculo de Monte-Cristo, no qual a dor e o ódio imprimiam ainda um carater ameaçador.
            - Que não esmague essa raça maldita! - murmurou ele. - Que desobedeça a Deus, que me escolheu para os punir!  Impossível, minha senhora, impossível!
            - Edmond - suplicou a pobre mãe, tentando tudo. - Meu Deus, se o trato por Edmond, porque me não trata por Mercedes?
            - Mercedes - repetiu Monte-Cristo –, Mercedes... Sim, tem razão, ainda gosto de pronunciar esse nome e é a primeira vez há muito tempo que ele soa tão claramente ao sair-me dos lábios. Oh, Mercedes, pronunciei o seu nome com suspiros de melancolia, com gemidos de dor, com o estertor do desespero!
Pronunciei-o gelado pelo frio, encolhido na palha da minha cela. Pronunciei-o devorado pelo calor, robolando-me nas lajes da minha prisão. Mercedes, tenho de me vingar, porque sofri durante catorze anos e catorze anos chorei e amaldiçoei. Agora, repito-lhe, Mercedes, tenho de me vingar!
            E o conde, receando ceder às súplicas daquela que tanto amara, chamava as suas recordações em auxílio do seu ódio.
            - Vingue-se, Edmond, mas vingue-se nos culpados! - gritou a pobre mãe. - Vingue-se nele, vingue-se em mim, mas não se vingue no meu filho!
            - Está escrito no Livro Sagrado - respondeu Monte-Cristo - que “os pecados dos pais recairão sobre os filhos até  à terceira e quarta geração". Se Deus ditou estas palavras ao seu profeta, porque seria eu melhor do que Deus?
            - Porque Deus possui o tempo e a eternidade, duas coisas que escapam aos homens.
            Monte-Cristo soltou um suspiro que parecia um rugido e puxou os cabelos com ambas as mãos.
            - Edmond - continuou Mercedes, com os braços estendidos para o conde - Edmond, desde que o conheci que adorei o seu nome e respeitei a sua memória. Edmond, meu amigo, não me obrigue a embaciar essa imagem nobre e pura refletida constantemente no espelho do meu coração. Edmond, se soubesse todas as preces que tenho dirigido a Deus por si enquanto o esperei vivo e desde que o julguei morto... sim, morto, infelizmente! Julguei o seu cadáver sepultado no fundo de alguma torre sombria; julguei o seu corpo precipitado no fundo de algum desses abismos para onde os carcereiros deixam rolar os prisioneiros
mortos e chorei! Que podia fazer por si, Edmond, senão rezar e chorar? Ouça-me: durante dez anos tive todas as noites o mesmo sonho. Disseram que tinha  fugido, que tomara o lugar de um prisioneiro, que se metera na mortalha de um morto e que tinham lançado o cadaver vivo do alto do Castelo de If. E que o grito que soltara ao esmagar-se nos rochedos fora a única coisa que revelara a substituição aos seus coveiros, transformados em carrascos. Pois bem, Edmond, juro-lhe pela cabeça do filho por quem imploro que durante dez anos vi todas as noites homens balançarem qualquer coisa informe e desconhecida no alto de um rochedo, durante dez anos ouvi todas as noites um grito terrível que me acordou tiritante e gelada. E também eu, Edmond, acredite-me, por mais criminosa que fosse... oh, sim, também eu sofri muito!
            - Sentiu morrer o seu pai na sua ausência? - perguntou Monte-Cristo metendo as mãos nos cabelos. - Viu a mulher que amava estender a mão ao rival, enquanto arquejava no fundo do abismo?...
            - Não! - interrompeu-o Mercedes. - Mas vi aquele que amava prestes a tornar-se o assassino do meu filho!
            Mercedes proferiu estas palavras com uma dor tão pungente, num tom tão desesperado, que um soluço dilacerou a garganta do conde ao ouvi-la. O leão estava domado, o vingador estava vencido.
            - Que deseja? - perguntou. - Que o seu filho viva? Pois bem, viverá!
            Mercedes soltou um grito que fez brotar duas lágrimas dos olhos de Monte-Cristo, mas essas duas lágrimas desapareceram quase imediatamente, pois sem dúvida Deus enviou algum anjo para as recolher, visto serem muito mais preciosas aos olhos do Senhor do que as mais ricas pérolas de Guzarate e Ofir.
            - Obrigada, obrigada, Edmond! - exclamou ela, pegando na mão do conde e levando-a aos lábios. - Agora, sim, és bem como sempre te sonhei, como sempre te amei! Oh, agora posso dizê-lo!
            - Tanto melhor - perguntou Monte-Cristo –, pois o pobre Edmond não terá muito tempo para ser amado pela senhora. A morte vai regressar ao túmulo, o fantasma vai desaparecer na noite.
            - Que diz, Edmond?
            - Digo que, já que assim o ordena, Mercedes, tenho de morrer.
            - Morrer?... E quem é que disse isso? Quem fala em morrer? De onde lhe vêm essas idéias de morte?
            - Decerto não supõe que, ultrajado publicamente diante de toda uma sala, na presença dos seus amigos e dos amigos do seu filho, provocado por uma criança que se vangloriará do meu perdão como de uma vitória... não supõe, decerto, repito, que eu tenha um instante o desejo de viver? O que mais amo depois
de si, Mercedes, é a minha própria pessoa, isto é, a minha dignidade, essa força que me tornava superior aos outros homens. Essa força era a minha vida. Com uma palavra, a senhora destruiu-a. Morro.
            - Mas esse duelo não se realizará, Edmond, uma vez que perdoa...
            - Se realizará, minha senhora - replicou solenemente Monte-Cristo. - Apenas, em vez de a terra beber o sangue do seu filho, será o meu que correrá.
            Mercedes soltou um grande grito e correu para Monte-Cristo. Mas deteve-se de súbito.
            - Edmond - disse –, há um Deus acima de nós, uma vez que o senhor vive, uma vez que o tornei a ver, e confio-me a Ele do mais íntimo do meu coração. Enquanto aguardo o Seu auxílio, confio na palavra que me deu. Disse que o meu filho viveria; viverá, não é verdade? 
            - Viverá, sim, minha senhora - respondeu Monte-Cristo, surpreendido que, sem outra exclamação, sem outra surpresa, Mercedes tivesse aceitado o sacrifício heróico que lhe fazia. Mercedes estendeu a mão ao conde.
            - Edmond - disse, enquanto os olhos se lhe cobriam de lágrimas e fitava aquele a quem dirigia a palavra –, como é belo da sua parte, como é grande o que acaba de fazer, como é sublime ter tido piedade de uma pobre mulher que se lhe apresentava com todas as probabilidades contrárias às suas esperanças!
Infelizmente, os desgostos envelheceram-me mais do que a idade e nem sequer posso recordar ao meu Edmond, por um sorriso, por um olhar, a Mercedes que em outros tempos ele passou tantas horas a contemplar. Acredite, Edmond, que, como lhe disse, também sofri muito. Repito-lhe que é deveras lúgubre ver
passar a vida sem recordar uma única alegria, sem conservar uma única esperança. Mas isso prova que nem tudo acaba na Terra. Não! Nem tudo acaba, sinto-o pelo que me resta ainda no coração. oh, repito-lhe, Edmond, é belo, é grande, é sublime perdoar como acaba de perdoar.
            - Diz isso, Mercedes, mas que diria se soubesse a extensão do sacrifício que lhe faço? Suponha que o Senhor Supremo, depois de ter criado o mundo, depois de ter fertilizado o caos, se tivesse detido num terço da criação para poupar a um anjo as lágrimas que os nossos crimes deveriam fazer correr um dia dos seus olhos imortais; suponha que depois de ter tudo preparado, tudo moldado e tudo fecundado, no momento de admirar a sua obra, Deus extinguisse o Sol e repelisse com o pé o mundo, mergulhando-o na noite eterna... então faria uma idéia, ou antes, não, não poderia fazer ainda uma idéia do que perco perdendo a vida neste momento.
            Mercedes; fitou o conde com um ar em que transparecia ao mesmo tempo a sua surpresa, a sua admiração e o seu reconhecimento. Monte-Cristo apoiou a fronte nas mãos escaldantes, como se a sua fronte já não pudesse suportar sozinha o peso dos seus pensamentos.
            - Edmond - disse Mercedes –, tenho apenas mais uma palavra a dizer-lhe.
            O conde sorriu amargamente.
            - Edmond - continuou ela –, terá oportunidade de ver que se a minha fronte está pálida, os meus olhos sem brilho e a minha beleza murcha; que se esta Mercedes já só se parece com a outra pelos traços do rosto... ainda assim, verá, continua a ter o mesmo coração! Adeus, Edmond. Já não tenho nada a pedir ao céu... Tornei a vê-lo tão nobre e tão grande como antes. Adeus, Edmond... adeus e obrigada!
            Mas o conde não respondeu. Mercedes abriu a porta do gabinete e desapareceu antes de ele
sair do seu alheamento doloroso e profundo, onde a sua vingança perdida o mergulhara.
            Dava uma hora no relógio dos Inválidos quando a carruagem que transportava a Sra de Morcerf, rodando no pavimento dos Campos Elísios, fez levantar a cabeça ao conde de Monte-Cristo.
            - Insensato! - exclamou para consigo. - No dia em que resolvera vingar-me deixei que me arrancassem o coração! 


Capítulo XC

O duelo


            Depois da partida de Mercedes, tudo voltou a cair na sombra em casa de Monte-Cristo. À volta dele e dentro dele, o seu pensamento deteve-se: o seu espirito enérgico adormeceu, como acontece com o corpo depois de uma grande fadiga.
            - Pronto - dizia para consigo enquanto o candeeiro e as velas se consumiam tristemente e os criados esperavam com impaciência na antecâmara. - Pronto, aí está o edifício tão lentamente preparado e erguido com tantas dificuldades e preocupações deitado abaixo de um só golpe, com uma só palavra, com um só sopro! E esse eu que julgava valer alguma coisa, esse eu de que estava tão orgulhoso, esse eu que vira tão pequeno nas celas do Castelo de If e soubera tornar tão grande, será amanhã um pouco de pó! Não é a morte do corpo que lamento: essa distraição do princípio vital não é o repouso para que tudo tende, a que todo o desventurado aspira, essa calma da matéria pela qual ansiei tanto tempo e ao encontro da qual ia pelo caminho doloroso da fome quando Faria apareceu na minha cela? Que é a morte? Um degrau mais na calma e talvez dois no silêncio. Não, não é a existência que lamento, é a ruína dos meus projetos tão lentamente elaborados e tão laboriosamente edificados. A Providência, que julgara ser por eles, era portanto contra eles. Deus não queria que se realizassem!
            "O fardo que carreguei, quase tão pesado como um mundo e que julgara poder transportar até  ao fim, estava de acordo com o um desejo e não com a minha força; estava de acordo com a minha vontade e não com o meu poder, e tive de o pousar a meio da corrida. Oh, voltei a ser fatalista, eu, a quem catorze anos de desespero e dez de esperança tinham tornado providencial!
            "E tudo isso, meu Deus, porque o meu coração, que julgava morto, só estava adormecido; porque ele acordou, porque ele bateu, porque cedi à dor desse pulsar arrancado do fundo do meu peito pela voz de uma mulher.
            "E no entanto - continuou o conde, abismando-se cada vez mais nas previsões do amanhã terrível que Mercedes aceitara -, e no entanto é impossível que aquela mulher, que é um coração tão nobre, tenha consentido assim por egoísmo, em me deixar matar, eu, cheio de energia e de vida! É impossível que leve a
tal ponto o amor ou, antes, o delírio maternal! Há virtudes cujo exagero seria um crime. Não, ter  imaginado alguma cena patética e ir  lançar-se entre as espadas, o que será ridículo no terreno, embora fosse sublime aqui.
            E o rubor do orgulho subia à fronte do conde.
            - Ridículo - repetiu –, e o ridículo recairá sobre mim... Eu, ridículo! Vamos, prefiro morrer!
            E à força de exagerar assim antecipadamente as desventuras do dia seguinte às quais se condenara prometendo a Mercedes deixar-lhe viver o filho, o conde acabou por dizer:
            - Tolice, tolice, tolice! Que raio de generosidade, colocar-me como um alvo inerte na mira da pistola desse rapaz! Ele nunca acreditará que a minha morte é um suicídio, e no entanto isso interessa à honra da minha memória... (Não se trata de vaidade, pois não, meu Deus? Trata-se, sim, de um justo orgulho e mais  nada.) Interessa à honra da minha memória que o mundo saiba que eu próprio consenti, por minha vontade,
de meu livre arbítrio, em deter o meu braço já erguido para ferir, e que com esse braço, tão poderosamente armado contra os outros, me feri a mim mesmo. Isso é necessário e o farei.
            E pegando numa pena tirou um papel da estante secreta da sua escrivaninha e escreveu no fundo desse papel, que não era outra coisa senão o seu testamento, feito depois da sua chegada a Paris, uma espécie de codicilo em que explicava a sua morte às pessoas menos perspicazes.
            - Faço isto, meu Deus - disse com os olhos erguidos ao céu -, tanto para vossa honra como para minha. Há dez anos que me considero, ô meu Deus, o enviado da vossa vingança, e não quero que outros miseráveis como o Morcerf, não quero que um Danglars, um Villefort, e enfim que o próprio Morcerf imaginem
que o acaso os desembaraçou do seu inimigo. Quero que saibam, pelo contrário, que a Providência, que já decretara a sua punição, foi corrigida unicamente pelo poder da minha vontade; que o castigo evitado neste mundo os espera no outro e que só trocaram o tempo pela eternidade.
            Enquanto se debatia entre estas sombrias incertezas, sonhos maus do homem despertado pela dor, o dia veio clarear os vidros e iluminar sob as suas mãos o desbotado papel azul em que acabava de escrever a suprema justificação da Providência.
            Eram cinco horas da manhã.
            De súbito, um ligeiro ruído chegou-lhe aos ouvidos. Monte-Cristo julgou ter ouvido qualquer coisa como um suspiro abafado. Virou a cabeça, olhou à sua volta e não viu ninguém. Apenas o ruído se repetiu com suficiente nitidez para que à dúvida sucedesse a certeza.
            Então o conde levantou-se, abriu suavemente a porta da sala e viu numa poltrona, com os braços pendentes e o belo rosto pálido inclinado para trás, a jovem Haydée, que se colocara atravessada na porta para que ele não pudesse sair sem a ver, mas a quem o sono, tão poderoso contra a juventude, surpreendera depois da fadiga de tão longa vigília.
            O ruído que a porta fez ao abrir-se não despertou Haydée. Monte-Cristo olhou-a com um olhar cheio de ternura e remorso.
            - Ela lembrou-se que tinha um filho - disse - e eu esqueci-me que tinha uma filha!
            Depois, abanando tristemente a cabeça:
            - Pobre Haydée! Quis-me ver, quis-me falar, teve medo ou adivinhou qualquer coisa... Oh, não posso partir sem lhe dizer adeus, não posso morrer sem a confiar a alguém!
            E voltou devagarinho para o seu lugar e escreveu por baixo das primeiras linhas:
            Lego a Maximilien Morrel capitão de sipaios e filho do meu antigo patrão Pierre Morrel armador em Marselha a quantia de vinte milhões parte da qual deverá oferecera sua irmã Julie e a seu cunhado Emmanuel se não achar este acréscimo de fortuna prejudicial à sua felicidade. Estes vinte milhões estão escondidos numa gruta de Monte-Cristo de que Bertuccio conhece o segredo. 
            Se o seu coração estiver livre e ele quiser casar com Haydée filha de Ali pax  de Janina que criei com o amor de um pai e que tem por mim a ternura de uma filha, cumprirá não direi a minha última vontade mas o meu último desejo.
            O presente testamento institui já Haydée herdeira do remanescente da minha fortuna que consiste em terras arrendadas na Inglaterra na Àustria e na Holanda e em mobiliário nas minhas diversas casas e palácios e que estes vinte milhões, bem como os diversos legados feitos aos meus servidores, poderão elevar ainda a sessenta milhões.
            Acabava de escrever estas últimas linhas quando um grito soltado atrás dele lhe fez cair a pena da mão.
            - Haydée! - exclamou. - Leu?...
            Com efeito, a jovem acordada pela luz do dia que lhe ferira as pálpebras, levantara-se e aproximara-se do conde sem que os seus passos leves, abafados pelo tapete, fossem ouvidos.
            - Oh, meu senhor, porque escreve assim a estas horas? - perguntou, juntando as mãos. - Porque me lega toda a sua fortuna, meu senhor? Vai-me deixar?
            - Vou fazer uma viagem, querido anjo - respondeu Monte-Cristo com uma expressão de melancolia e ternura infinitas –, e se me acontecer alguma coisa...
            O conde deteve-se.
            - E então?... - perguntou a jovem num tom autoritário que o conde lhe não conhecia e que o fez estremecer.
            - E então... se me acontecer alguma coisa – repetiu o conde –, quero que a minha filha seja feliz.
            Haydée sorriu tristemente e abanou a cabeça.
            - Pensa em morrer, meu senhor? - inquiriu.
            - É um pensamento salutar, minha filha, ditado pela prudência.
            - Pois bem, se morrer, legue a sua fortuna a outros, porque se morrer... não precisarei de mais nada.
            E pegando no papel, rasgou-o em quatro partes, que atirou para o meio da sala. Depois, como se esta energia tão pouco habitual numa escrava lhe tivesse esgotado as forças, caiu, não já adormecida desta vez, mas sim desmaiada no parque.
            Monte-Cristo inclinou-se para ela e levantou-a nos braços; e ao ver aquele belo rosto pálido, aqueles belos olhos fechados e aquele belo corpo inanimado e como que abandonado, ocorreu-lhe pela primeira vez a idéia de que ela talvez o amasse de forma diferente daquela como uma filha ama o pai.
            - Infelizmente - murmurou com profundo desanimo –, tudo me é negado... E ainda poderia ser feliz!
            Depois, levou Haydée para os seus aposentos e entregou-a, sempre desmaiada, aos cuidados das suas criadas. E regressando ao seu gabinete, que desta vez fechou cuidadosamente, recopiou o testamento destruído.
            Quando acabava, ouviu-se o ruído de um cabriole que entrava no pátio. Monte-Cristo aproximou-se da janela e viu descer Maximilien e Emmanuel.
            - Bom - disse para consigo –, era tempo!
            E lacrou o testamento em três sítios. 
            Um instante depois ouviu ruído de passos na sala e foi ele próprio abrir a porta. Morrel apareceu no limiar. Chegara mais cedo cerca de vinte minutos.
            - Talvez tenha vindo demasiado cedo, Sr. Conde, mas confesso-lhe francamente que não consegui dormir um minuto e que o mesmo aconteceu a todos em casa.  Necessitava de o ver firme na sua corajosa decisão para eu próprio ganhar coragem.
            Monte-Cristo não pôde ficar indiferente a esta prova de afeição, e não foi a mão que estendeu ao jovem, mas sim os dois braços que lhe abriu.
            - Morrel - disse-lhe com voz emocionada –, é um belo dia para mim este em que me sinto estimado por um homem como o senhor. Bom dia, Sr. Emmanuel. Acompanham-me, portanto?...
            - Meu Deus, duvidou disso?! - protestou o jovem capitão.
            - Mas   se eu não tivesse razão...
            - Escute: observei-o ontem durante a cena da provocação, pensei na sua firmeza toda esta noite e disse para comigo que a justiça devia estar do seu lado ou então já não havia que fiar na expressão dos homens.
            - Contudo, Morrel, Albert é seu amigo...
            - Um simples conhecimento, conde.
            - Não o viu pela primeira vez no mesmo dia em que me viu a mim?
            - Vi, sim, é verdade. Mas que quer, e necessário que me lembre para que eu o recorde.
            - Obrigado, Morrel.
            Em seguida tocou uma vez a campainha e disse a Ali, que apareceu imediatamente:
            - Toma, manda entregar isto ao meu tabelião. É o meu testamento, Morrel. Se eu morrer, tomará  conhecimento dele.
            - Como? Se eu morrer?... - estranhou Morrel.
            - Devemos prever tudo, caro amigo. Mas que fez ontem depois de me deixar?
            - Fui ao Tortoni, onde, como esperava, encontrei Beauchamp e Château-Renaud. Confesso-lhe que os procurava.
            - Para quê, se estava tudo combinado?
            - Escute, conde, o caso é grave, inevitável...
            - Duvida disso?
            - Não. A ofensa foi pública e já todos falavam dela.
            - E depois?...
            - Depois... esperava conseguir a troca das armas, substituir a pistola pela espada. A pistola é cega...
            - E conseguiu-o? - perguntou vivamente Monte-Cristo, com um imperceptível clarão de esperança.
            - Não, porque conhecem a sua força à espada.
            - Oh! Quem me atraiçoou?
            - Os mestres-de-armas que venceu.
            - Portanto, falhou?
            - Recusaram terminantemente.
            - Morrel, já alguma vez me viu atirar à pistola?
            - Nunca. 
            - Bom, ainda temos tempo. Veja...
            Monte-Cristo pegou nas pistolas que empunhava quando Mercedes entrara, colou um ás de paus na placa metálica, e em quatro tiros acertou sucessivamente nas quatro extremidades da figura. A cada tiro, Morrel empalidecia. Examinou as balas com que Monte-Cristo executava semelhante proeza e verificou que não eram maiores do que chumbo grosso.
            - E de arrepiar! - exclamou. - Veja, Emmanuel.
            Depois, virando-se para Monte-Cristo:
            - Conde, em nome do céu não mate Albert! O pobre rapaz tem uma mãe!
            - É justo, e eu não a tenho - perguntou Monte-Cristo.
            Estas palavras foram proferidas num tom que fez estremecer Morrel.
            - O senhor é o ofendido, conde.
            - Sem dúvida. Que significa isso?
            - Significa que será o primeiro a atirar.
            - Sou o primeiro a atirar?
            - Oh, pelo menos obtive isso, ou antes, exigi-o! Fizemos-lhe bastantes concessões para que não nos fizessem essa.
            - E a quantos passos?
            - A vinte.
            Um sorriso assustador passou pelos lábios do conde.
            - Morrel, não se esqueça do que acaba de ver.
            - Por isso - confessou o rapaz - conto apenas com a sua emoção para salvar Albert.
            - Eu, emocionado? - perguntou Monte-Cristo.
            - Ou com a sua generosidade, meu amigo. Certo da sua pontaria como está, posso dizer-lhe uma coisa que seria ridícula se a dissesse a outro.
            - O quê?
            - Parta-lhe um braço, fira-o, mas não o mate.
            - Morrel, escute também isto: não necessito de ser encorajado a poupar o Sr. de Morcerf. O Sr. de Morcerf, anuncio-lho antecipadamente, será tão bem poupado que regressará tranquilamente com os seus dois amigos, ao passo que eu...
            - Ao passo que o senhor?...
            - Oh, comigo acontecerá o contrário! Terão de me trazer...
            - Porquê, diga! - gritou Morrel, fora de si.
            - É como lhe digo, meu caro Morrel: - o Sr. de Morcerf me matará.
            Morrel olhou o conde como quem já não percebe nada.
            - Que lhe aconteceu desde ontem à noite, conde?
            - O que aconteceu a Bruto na véspera da batalha de Filipos: vi um fantasma.
            - E esse fantasma?...
            - Esse fantasma, Morrel, disse-me que já vivera o suficiente. Maximilien e Emmanuel entreolharam-se. Monte-Cristo puxou do relógio. - Vamos. São sete e cinco e o encontro está marcada para as oito horas exatas. Esperava-os uma carruagem atrelada. Monte-Cristo subiu para ela com as suas duas testemunhas.
            Ao atravessarem o corredor, Monte-Cristo detivera-se a escutar diante de uma porta, e Maximilien e Emmanuel, que por discrição, tinham dado alguns passos em frente, julgaram ouvir responder a um soluço com um suspiro. Ao bater das oito chegaram ao local do duelo.
            - Aqui estamos - disse Morrel, deitando a cabeça fora da portinhola –, e somos os primeiros.
            - Desculpe, senhor - interveio Baptistin, que acompanhara o amo com um terror indizível –, mas creio ver lá adiante uma carruagem debaixo das árvores.
            - De fato - disse Emmanuel –, vejo dois rapazes que passeiam e parecem esperar.
            Monte-Cristo saltou agilmente da caleça e deu a mão a Emmanuel e Maximilien para os ajudar a descer. Maximilien reteve a mão do conde nas suas.
            - Aqui está uma mão como gosto de ver num homem cuja vida assenta na bondade da sua causa...
            Monte-Cristo puxou Morrel, não à parte, mas um passo ou dois atrás do cunhado.
            - Maximilien, tem o coração livre? - perguntou-lhe.
            Morrel olhou Monte-Cristo com surpresa.
            - Não lhe peço uma confidência, caro amigo, faço-lhe uma simples pergunta. Responda sim ou não, é tudo o que desejo.
            - Amo uma jovem, conde.
            - E ama-a muito?
            - Mais do que a vida.
            - Bom, mais uma esperança que me foge... - declarou Monte-Cristo.
            Depois, com um suspiro:
            - Pobre Haydée! - murmurou.
            - Na verdade, conde, se o conhecesse pior, o julgária menos corajoso do que é! - observou Morrel.
            - Porque penso em alguém que vou deixar e suspiro? Então, Morrel, acha próprio de um soldado conhecer tão mal a coragem? Julga que tenho medo de perder a vida? Que importância tem isso para mim, que passei vinte anos entre a vida e a morte? Aliás, esteja tranquilo, Morrel: esta fraqueza, se porventura o é, é apenas manifestada diante de si. Sei que o mundo é um salão onde é preciso sair delicada e  respeitavelmente, isto é, depois de nos despedirmos e pagarmos as nossas dívidas de jogo.
            - Sempre tem cada uma! – comentou Morrel. - A propósito, trouxe as suas armas?
            - Eu? Para quê? Espero que esses senhores tenham trazido as deles.
            - Vou me informar - disse Morrel.
            - Está bem, mas nada de negociações, ouviu?
            - Oh, esteja tranquilo!
            Morrel dirigiu-se para Beauchamp e Château-Renaud.  Estes, ao verem aproximar-se Maximilien, deram alguns passos ao seu encontro. Os três jovens cumprimentaram-se, se não com afabilidade, pelo
menos com cortesia.
            - Perdão, meus senhores, mas não vejo o Sr. de Morcerf - observou Morrel.
            - Mandou-nos avisar esta manhã de que se nos juntaria apenas aqui - respondeu Château-Renaud.
            - Ah!-exclamou Morrel.
            Beauchamp puxou do relógio. 
            - Oito e cinco; o atraso não é grande, Sr. Morrel - disse.
            - Oh, não foi com essa intenção que falei! - respondeu Maxmilien.
            - De resto - interveio Château-Renaud –, vem aí uma carruagem.
            Com efeito, uma carruagem avançava a galope por uma das avenidas que desembocavam no cruzamento onde se encontravam.
            - Suponho, meus senhores - disse Morrel –, que vieram munidos de pistolas. O Sr. Conde de Monte-Cristo declara renunciar ao direito de se servir das suas.
            - Previmos essa delicadeza da parte do conde, Sr. Morrel - respondeu Beauchamp –, e trouxe armas que comprei há oito ou dez dias julgando que me seriam necessárias num caso idêntico. Estão absolutamente novas e ninguém se serviu ainda delas. Quer vê-las?
            - Sr. Beauchamp - perguntou Morrel, inclinando-se –, uma vez que me garante que o Sr. de Morcerf não conhece essas armas, não acha que a sua palavra me basta?
            - Meus senhores - disse Château-Renaud –, não é Morcerf que vem naquela carruagem, são, se não me engano,... Franz e Debray.
            Com efeito, os dois jovens anunciados aproximavam-se.
            - Por aqui, meus senhores? - estranhou Château-Renaud, trocando com cada um o seu aperto de mão. - Por que acaso...
            - Estamos aqui - atalhou Debray - porque Albert nos mandou pedir esta manhã que viéssemos.
            Beauchamp e Château-Renaud entreolharam-se atônitos.
            - Meus senhores, creio compreender - interveio Morrel.
            - Sim?...
            - Ontem à tarde recebi uma carta do Sr. de Morcerf pedindo-me que fosse à Ópera.
            - E eu também - disse Debray.
            - E eu - secundou-o Franz.
            - E nós também - disseram Château-Renaud e Beauchamp.
            - Queria que estivessem presentes quando da provocação - disse Morrel - e quer que assistam ao duelo.
            - Sim, deve ser isso, Sr. Maximilien - admitiram os jovens. - É muito provável que tenha acertado.
            - Mas o caso é que Albert não aparece - murmurou Château-Renaud. - já está atrasado dez minutos.
            - Ele aí está! - anunciou Beauchamp. - E a cavalo... Vejam, vem a galope seguido do criado.
            - Que imprudência vir a cavalo para se bater à pistola! - exclamou Chateau-Renaud - E eu que lhe ensinei tão bem a lição!...
            - Além disso, veja - acrescentou Beauchamp - colarinho e gravata, sobrecasaca aberta, colete branco... Porque não desenhou também um alvo no estômago? Seria mais simples e acabaria tudo mais depressa!
            Entretanto, Albert chegara a dez passos do grupo formado pelos cinco jovens. Deteve o cavalo, desmontou e atirou a rédea para o braço do criado. Aproximou-se.
            Estava pálido e tinha os olhos vermelhos e inchados. Via-se que não dormira um segundo toda a noite. 
Cobria-lhe a fisionomia um matiz de gravidade triste, que lhe não era habitual.
            - Obrigado, meus senhores, por se terem dignado aceitar o meu convite - disse. - Creiam que lhos não posso estar mais reconhecido por essa prova de amizade.
            Quando Morcerf se aproximara, Morrel dera uma dezena de passos atrás e encontrava-se afastado.
            - Os meus agradecimentos são também extensivos a si, Sr. Morrel - declarou Albert. - Aproxime-se, pois, que não está a mais.
            - Senhor - respondeu Maximilien –, talvez ignore que sou testemunha do Sr. de Monte-Cristo...
            - Não tinha a certeza, mas já calculava. Tanto melhor, quantos mais homens de honra houver aqui mais satisfeito me sentirei.
            - Sr. Morrel - disse Château-Renaud –, pode anunciar ao Sr. Conde de Monte-Cristo que o Sr. de Morcerf já chegou e que estamos à sua disposição.
            Morrel fez um gesto para ir desempenhar da sua missão. Ao mesmo tempo, Beauchamp tirava a caixa das pistolas da carruagem.
            - Esperem, meus senhores - atalhou Albert. - Tenho duas palavras a dizer ao Sr Conde de Monte-Cristo.
            - Em particular? - perguntou Morrel.
            - Não, senhor, diante de todos.
            As testemunhas de Albert entreolharam-se deveras surpreendidas. Franz e Debray trocaram algumas palavras em baixa e Morrel, satisfeito com aquele incidente inesperado, foi ter com o conde, que passeava numa alameda lateral com Emmanuel.
            - Que me quer ele? - perguntou Monte-Cristo.
            - Ignoro, mas pede para falar consigo.
            - Oh, que não tente Deus com qualquer novo ultraje! - exclamou Monte-Cristo.
            - Não creio que seja essa a sua intenção - tranquilizou-o Morrel.
            O conde aproximou-se acompanhado de Maximilien e Emmanuel. O seu rosto calmo e cheio de serenidade contrastava estranhamente com o rosto transtornado de Albert, que também se aproximava seguido dos quatro jovens. A três passos um do outro, Albert e o conde pararam.
            - Meus senhores, aproximem-se - disse Albert. - Desejo que nem uma palavra do que vou ter a honra de dizer ao Sr. Conde de Monte-Cristo se perca. Porque o que vou ter a honra de lhe dizer deverá ser repetido pelos senhores a quem entenderem, por mais estranho que o meu discurso lhes pareça.
            - Estou à espera, senhor - atalhou o conde.
            - Senhor - disse Albert, primeiro numa voz trêmula, mas depois cada vez mais firme. - Senhor, censurava-o por ter divulgado a conduta do Sr. de Morcerf no Epiro; porque por mais culpado que fosse o Sr. Conde de Morcerf; não me parecia que o senhor tivesse o direito de o punir. Mas hoje, senhor, sei que esse
direito lhe pertence. Não é de forma alguma a traição de Fernand Mondego para com Ali-Pax  que me leva a desculpá-lo  tão prontamente, Sr. de Monte-Cristo, é a traição do pescador Fernand para consigo, são as desventuras inauditas que se seguiram a essa traição. Por isso lhe digo, por isso o proclamo em voz alta: sim,  senhor, tinha razão em vingar-se do meu pai, e eu, seu filho, agradeço-lhe não ter feito pior!
            Se tivesse caído um raio no meio dos espetadores desta cena inesperada não os teria surpreendido mais do que a declaração de Albert.
            Quanto a Monte-Cristo, os seus olhos tinham-se lentamente erguido para o céu com uma expressão de infinito  reconhecimento, e não conseguia manifestar suficientemente a sua admiração pela forma como a natureza fogosa de Albert,  cuja coragem conhecera no meio dos bandidos romanos, se submetera tão de. pressa àquela humilhação. Reconheceu nisso a influência de Mercedes e compreendeu por que motivo aquele nobre coração se não opusera ao sacrifício que sabia antecipadamente não se realizar.
            - Agora, senhor - disse Albert –, se considera suficientes as desculpas que acabo de lhe apresentar, dê-me a sua mão, por favor. Depois do mérito tão raro da infalibilidade, que parece ser o seu, o primeiro de todos os méritos, na minha opnião, é saber reconhecer a nossa sem-razão. Mas este reconhecimento só
a mim diz respeito. Eu procedia bem segundo os homens, mas o senhor procedia bem segundo Deus. Só um anjo podia salvar um de nós da morte, e esse anjo desceu do céu, se não para nos tornar amigos, pois a fatalidade não o permite, pelo menos para nos tornar dois homens que se estimam.
            Com os olhos úmidos, o peito arquejante e a boca entreaberta, Monte-Cristo estendeu a Albert uma mão, que este agarrou e apertou com um sentimento que se assemelhava a misterioso terror.
            - Meus senhores - prosseguiu Albert –, o Sr. de Monte-Cristo digna-se aceitar as minhas desculpas. Procedi precipitadamente para com ele e a precipitação é má conselheira: procedi mal. Agora, a minha falta está reparada. Espero que a sociedade me não considere covarde por ter feito o que a minha consciência
me mandou fazer. Mas, em todo o caso, se alguém se enganasse a meu respeito - acrescentou o jovem, erguendo orgulhosamente a cabeça e como se dirigisse um desafio aos seus amigos e aos seus inimigos - procuraria corrigir as opiniões.
            - Que se passou esta noite? - perguntou Beauchamp a Château-Renaud. - Parece-me que estamos a fazer aqui uma triste figura.
            - Com efeito, o que Albert acaba de fazer ou é muito miserável ou é muito belo - respondeu o barão.
            - Mas que quer dizer isto? - perguntou Debray a Franz. - Como, o conde de Monte-Cristo desonra o Sr. de Morcerf e teve razão aos olhos do filho deste?! Pois se tivessem havido dez Janinas na minha família, só me consideraria obrigado a uma coisa: bater-me dez vezes.
            Quanto a Monte-Cristo, com a cabeça inclinada e os braços pendentes, esmagado pelo peso de vinte e quatro anos de recordações, não pensava nem em Albert, nem em Beauchamp, nem em Château-Renaud, nem em nenhuma das pessoas que se encontravam ali. Pensava na corajosa mulher que lhe viera pedir a vida do filho, a quem oferecera a sua e que acabava de lhe salvar por meio da confissão de um terrível segredo de
família, capaz de matar para sempre em Albert o sentimento da piedade filial.
            - Sempre a Providência! - murmurou. - Ah, só hoje tenho realmente a certeza de ser um enviado de Deus!

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