sábado, 28 de maio de 2011

A Tempestade - Ato I

A TEMPESTADE

Dramatis Personae
ALONSO, rei de Nápoles.
SEBASTIÃO, seu irmão.
PRÓSPERO, o legítimo duque de Milão
ANTÔNIO, seu irmão, duque usurpador de Milão.
FERDINANDO, filho do rei de Nápoles.
GONZALO, um velho e honesto conselheiro.
ADRIANO, nobre,
FRANCISCO, nobre.
CALIBÃ, escravo selvagem e disforme.
TRÍNCULO, palhaço.
ESTÉFANO, despenseiro bêbado.
Comandante de um navio, contramestre, marinheiros.
MIRANDA, filha de Próspero.
ARIEL, espírito do ar.
ÍRIS,
CERES, espírito.
JUNO, espírito.
Ninfas, espíritos.
Segadores, espíritos.
Outros espíritos, a serviço de Próspero.

ATO I
Cena I
(A bordo de um navio no mar. Tempestade, com relâmpagos e trovões. Entram, por lados diferentes, Um
comandante de navio e um contramestre)
COMANDANTE - Contramestre!
CONTRAMESTRE - Aqui, comandante! Tudo bem?
A tempestade
file:///C|/site/LivrosGrátis/tempest1.htm (2 of 46) [02/04/2001 15:43:47]
COMANDANTE - Bem. Falai com os marinheiros. Pegai firme, se não, iremos dar à costa. Mãos à obra!
Mãos à obra!
(Entram marinheiros)
CONTRAMESTRE - Vamos, corações! Coragem! Coragem, meus corações! Força! Coragem! Amainai
a mezena! Prestai atenção ao apito do comandante! - Sopra, vento, até arrebentar, se houver espaço
bastante!
(Entram Alonso, Sebastião, Antônio, Ferdinando, Gonzalo e outros).
ALONSO - Cuidado, cuidado, bondoso contramestre! Onde está o comandante? Sede homens!
CONTRAMESTRE - Por obséquio, ficai lá embaixo.
ANTÔNIO - Contramestre, onde está o comandante?
CONTRAMESTRE - Não o estais ouvindo? Mas, assim, atrapalhais nosso trabalho. Permanecei nos
camarotes; estais mas é ajudando a tempestade.
GONZALO - Tende paciência, amigo.
CONTRAMESTRE - Quando o mar tiver paciência. Vamos, fora daqui!
Que importa a estes berradores o nome de rei? Ide para os camarotes! Silêncio! Não nos prejudiqueis!
GONZALO - Bem; mas lembra-te de quem levas a bordo.
CONTRAMESTRE - Ninguém a quem eu ame mais do que a mim próprio.
Sois conselheiro, não? Se pudermos impor silêncio a estes elementos e estabelecer ordem imediata, não
tocaremos em uma só corda mais. Recorrei a vossa autoridade; mas se ela for inoperante, dai graças ao
céu por terdes vivido tanto e ficai nos camarotes preparados para o que vossa hora vos reservou. -
Coragem, meus corações! - Saí do caminho, já disse!
(Sai.)
GONZALO - Tenho muita confiança neste camarada. Não tem cara de quem há de morrer afogado. Tem
mais cara de enforcado. Persisti, bondoso Fado, no enforcamento dele. Fazei que a corda de seu destino
seja nosso cabo, que o nosso mesmo não oferece nenhuma resistência. Mas se ele não nasceu para a
forca, nossa situação é miserável.
(Saem. Volta o Comandante.)
CONTRAMESTRE - Amainai o joanete! Vamos! Depressa! Mais baixo!
Mais baixo! Experimentemos deixar só a vela grande! (Ouve-se um grito no interior.) A peste leve esses
gritadores! Fazem mais barulho do que a tempestade e todas as manobras.
(Voltam Sebastião, Antônio e Gonzalo.)
Outra vez? que fazeis aqui? Será preciso largar tudo e perecer afogado? Quereis ir para o fundo?
SEBASTIÃO - Que a bexiga vos ataque a goela, cão gritador, blasfemo e sem caridade!
CONTRAMESTRE - Nesse caso, trabalhai!
ANTÔNIO - Vai te enforcar, mastim! Vai te enforcar, gritador insolente e sem-vergonha! Temos menos
medo de perecer afogado do que tu.
GONZALO - Sirvo eu de fiador em como ele não morrerá afogado, ainda que o navio fosse tão resistente
quanto uma casca de noz, e vazasse tanto quanto uma rapariga incontinente.
CONTRAMESTRE - Orça! Orça! Largai duas veias! Virai de bordo outra vez! Ao largo! Ao largo!
(Entram marinheiros com roupas molhadas.)
MARINHEIROS - Está tudo perdido! Vamos rezar! Vamos rezar! Está tudo perdido!
(Saem)
CONTRAMESTRE - Como! Teremos de ficar com a boca fria?
GONZALO - O rei e o filho rezam; imitemo-los, que o nosso caso é o mesmo.
SEBASTIÃO - É intolerável!
ANTÔNIO - A vida temos à mercê de uns bêbedos, ratoneiros no jogo. Aquele biltre de boca
escancarada... Só quisera ver-te a afogar, e que levado fosses por dez marés!
GONZALO - Espera-o mas é a forca, muito embora a isso se opusessem todas as gotas de água e se
alargassem, para tragá-lo de uma vez.
(Rumores confusos no interior.)
"Misericórdia!"
"0 navio está abrindo! Naufragamos!" "Adeus, irmão !" "Estamos naufragando!"
ANTÔNIO - Pereçamos com o rei.
(Sai.)
SEBASTIÃO - Despeçamo-nos dele.
(Sai.)
GONZALO - Daria agora mil estádios de mar por uma jeira de terra estéril com urzes longas, tojo
escuro... fosse o que fosse. Seja feita a vontade lá de cima; mas preferia ter morte seca.
(Sai.)

Cena II
(A ilha. Diante da cela de Próspero.
Entram Próspero e Miranda.)
MIRANDA - Se com vossa arte, pai querido, as águas selvagens levantastes, acalmai-as. Derramaria o
céu pez escaldante, se até sua face o mar não se elevasse, para apagar o fogo. Como a vista dos que
sofriam me era dolorosa! Um navio tão bravo, que, sem dúvida, conduzia pessoas excelentes, reduzido a
pedaços! Transpassaram-me o coração seus gritos. Pobres almas! Pereceram. Se eu fosse um deus
potente, pela terra absorvido o mar seria, antes de naufragar tão bom navio com sua carga de almas.
PRÓSPERO - Tranqüiliza-te.
Acalma o susto e conta ao teu piedoso coração que não houve nenhum dano.
MIRANDA - Oh! Que dia!
PRÓSPERO - Nehum. Tudo o que fiz, foi por ti, simplesmente, minha filha, por tua causa, filha
idolatrada, que não sabes quem és, nem tens notícia de onde eu teria vindo, nem que eu possa ser mais
que Próspero, talvez, o dono desta gruta e teu pai não muito grande.
MIRANDA - Desejos nunca tive de obter outras informações.
PRÓSPERO - É tempo de saberes alguma coisa mais. A mão me empresta e dos ombros me tira o manto
mágico. - Perfeitamente.
(Tira o manto.)
Fica aí, minha arte. - As lágrimas enxuga; fica alegre. O espetáculo terrível do naufrágio que em ti fez
despertar a própria força da compaixão, por mim foi de tal modo dirigido, com tanta segurança, que, de
toda essa gente, cujos gritos ouviste e que à tua vista naufragou, nenhuma alma, nenhuma, nem um fio de
cabelo sofreu nenhum prejuízo. Senta-te aqui; precisas saber tudo.
MIRANDA - Mais de uma vez quisestes revelar-me quem eu sou; mas paráveis, entregando-me a vãs
cogitações, e me dizíeis: "Espera mais; é cedo".
PRÓSPERO - Chegou a hora, não, o minuto justo em que é preciso teres o ouvido aberto. Ora
obedece-me e atenção presta a tudo. Tens alguma lembrança da época em que nós ainda não vivíamos
nesta cela pobre? Nao acredito, pois naquele tempo não contavas três anos.
MIRANDA - Oh! decerto, senhor, posso lembrar-me.
PRÓSPERO - Por que indícios?
Outra casa? Pessoas diferentes? A imagem me revela do que possas ainda ter conservado na memória.
MIRANDA - Tudo muito distante. É mais um sonho do que certeza o que a reminiscência me leva a
asseverar. Não houve uma época, há muito tempo, em que de mim cuidavam quatro ou cinco mulheres?
PRÓSPERO - Sim, Miranda; e mais, até. Porém, como te lembras de semelhante coisa? Que distingues,
além disso, no escuro do passado e no seio do tempo? Se consegues lembrar-te de algo acontecido em
época anterior à tua vinda, também podes lembrar-te como para cá vieste.
MIRANDA - Disso, porém, não tenho idéia alguma.
PRÓSPERO - Há doze anos, Miranda, sim, doze anos, era teu pai um poderoso príncipe, e Duque de
Milão.
MIRANDA - Então, senhor, não sois meu pai?
PRÓSPERO - Tua mãe foi um modelo de virtude, e me disse que, em verdade, minha filha tu eras. Teu
pai era, pois, Duque de Milão. Como herdeira única tinha ele uma princesa, nada menos.
MIRANDA - Oh céus! Por que traição perdemos isso? Ou foi melhor assim?
PRÓSPERO - Ambas as coisas. Sim, por traição, como disseste, viemos parar aqui; mas redundou em
nossa felicidade.
MIRANDA - Oh céus! O coração me sangra só de pensar em quanto vos fui causa de sofrimento, do que
não me resta nada mais na memória. Prossegui, por obséquio.
PRÓSPERO - Meu mano, e, pois, teu tio, de nome Antônio... Peço-te prestar-me toda atenção. -
Concebe-se que possa ser um irmão tão pérfido a esse ponto? - Depois de ti, era a ele que eu amava mais
do que tudo neste mundo, tendo-lhe confiado a direção de meu Estado, que, na época, primava sobre
todos, tal como Próspero entre os outros príncipes. Gozando de tão alta dignidade, não achava rival no
que respeita às artes liberais. A estas dedicando todo o meu tempo, o peso do governo transferi a meu
mano, assim tornando-me cada vez mais estranho à minha terra, porque às ciências secretas dedicado.
Teu falso tio, entanto... Estás me ouvindo?
MIRANDA - Sou toda ouvidos, meu senhor.
PRÓSPERO - Havendo ficado inteiramente a par de como satisfazer pedidos ou negá-los, a quem
favorecer, a quem de todo burlar nas pretensões, criou de novo minhas criaturas, ou melhor, mudou-lhes
a natureza, outra feição lhes dando. A um só tempo dispondo dos ofícios e da chave do cargo, afinou
todos os corações de acordo com a toada que aos ouvidos mais grata lhe soasse, e na hera se mudou,
pois, que meu trono principesco escondia e que lhe a seiva vital sugava toda. Mas não prestas atenção ao
que eu digo.
MIRANDA - Presto, sim, meu bondoso senhor.
PRÓSPERO - Não percas nada peço-te. Descurando dos assuntos temporais e vivendo inteiramente
retirado, a cuidar, tão-só, dos meios de aperfeiçoar o espírito com as artes que, a não serem secretas, no
conceito dos homens subiriam, fiz instintos perversos despertar no mano pérfido. Minha confiança, como
pai bondoso, fez nascer nele uma traição tão grande quanto minha boa-fé, que era, em verdade, sem
limites, imensa. Assim, tornado senhor não só de quanto minhas rendas lhe facultavam, mas também de
tudo que meu poder, então, lhe permitia - como alguém que o pecado da memória cometesse, por dar
inteiro crédito às suas próprias mentiras, enunciadas como verdades puras - chegou ele a acreditar que
era, de fato, o duque, por ser o substituto e estar afeito às mostras exteriores da realeza e aos privilégios
inerentes a ela. Tendo sua ambição tomado vulto... Estás me ouvindo?
MIRANDA - Estou, senhor, que a vossa narração curaria os próprios surdos.
PRÓSPERO - Porque anteparo algum se interpusesse entre o papel que então lhe competia e o ator desse
papel, julgou preciso tornar-se de Milão o único dono. Eu, coitado, ducado muito grande já me era a
biblioteca. Ele julgou-me incapaz da realeza temporária; confederou-se com o Rei de Nápoles - tal era a
sua sede de domínio! - prometendo pagar-lhe anual tributo e prestar-lhe homenagem, sujeitando sua
coroa à dele, e, assim, deixando-a - pobre Milão, que nunca se dobrara! - na mais vil sujeição.
MIRANDA - Oh céus!
PRÓSPERO - Reflete sobre essas condições e as conseqüências de semelhante aliança, e ora me dize se
era um irmão esse homem.
MIRANDA - Fora grande pecado ajuizar mal de minha avó Já se têm visto muito nobres ventres dar à
luz ruins filhos.
PRÓSPERO - Mas cheguemos às condições. Sendo esse Rei de Nápoles meu inimigo acérrimo, a
proposta de meu irmão aceita, isto é, em troca da vassalagem e do estipulado tributo - não sei quanto -
compromete-se a me expulsar e aos meus do meu ducado, entregando Milão, a incomparável, com suas
honras todas, a meu mano. Assim, reunido um traiçoeiro exército, em certa noite apropriada ao feito
abriu Antônio as portas da cidade e em plena escuridão os seus asseclas me tiraram dali rapidamente,
contigo, pobrezinha, esfeita em lágrimas.
MIRANDA - Oh, que tristeza! Tendo-me esquecido como eu chorava então, desejos sinto de chorar
novamente; os olhos força-me esta oportunidade.
PRÓSPERO - Alguns momentos mais de atenção, para chegarmos logo ao ponto principal, sem o que
fora toda esta história assaz impertinente.
MIRANDA - Por que não nos tiraram logo a vida?
PRÓSPERO - Bela pergunta, jovem, suscitada por minha narrativa. Não ousaram, querida - tanto o povo
me estimava - pôr um selo tão rubro nesse assunto; mas emprestaram cores mais risonhas a seus
nefandos fins. Em suma, à pressa, puseram-nos num barco e a algumas léguas da costa nos levaram, onde
tinham prestes uma carcaça apodrecida de navio, sem mastros, sem cordoalha, sem vela, nada, enfim. Os
próprios ratos o haviam, por instinto, abandonado. Guindaram-nos para aí, porque chorássemos às ondas
mugidoras e suspiros enviássemos aos ventos, que, piedosos, devolvendo os suspiros, nos faziam sofrer
por amizade.
MIRANDA - Oh! Quanto incômodo não vos causei!
PRÓSPERO - Um querubim tu foste, que a vida me salvou. Então sorrias, enquanto eu borrifava o mar
com lágrimas salgadas, a gemer sob o meu fardo. Isso me deu a irresistível força para agüentar quanto o
futuro incerto me reservasse ainda.
MIRANDA - E de que modo fomos bater à praia?
PRÓSPERO - A Providência divina nos guiou. Conosco tínhamos alimentos alguns e um pouco de água
potável que Gonzalo, da nobreza napolitana, e que incumbido fora da execução de todo esse projeto, por
piedade, tão-só, nos concedera, além de ricas vestes, linho, panos e muitas outras coisas, que têm sido de
grande utilidade. Assim, por pura gentileza, sabendo quanto apego eu tinha aos livros, trouxe-me de
minha biblioteca volumes que eu prezava mais do que meu ducado.
MIRANDA - Oh! Se algum dia pudesse eu ver esse homem!
PRÓSPERO - Ora fico de pé outra vez.
(Torna a vestir o manto.)
Sentada continua, para ouvires o fim de nossos longos dissabores marítimos. Chegamos a esta ilha, e
aqui me foi possível, como teu preceptor, fazer que progredisses mais do que outras princesas que
dispõem de muitas horas fúteis e não contam com um mestre tão assíduo e dedicado.
MIRANDA - O céu vos recompense. E ora dizei-me, por favor, que ainda tenho inquieto o espírito: por
que essa tempestade levantastes?
PRÓSPERO - Aprenderás mais isso. Por acaso muito estranho a Fortuna generosa, minha senhora mui
prezada agora, trouxe os meus inimigos a esta praia. A ciência do futuro me revela que o meu zênite se
acha dominado por um astro auspicioso, cuja influência me cumpre aproveitar, caso não queira que se
apague de vez a minha sorte. E agora basta de perguntas. Mostras-te inclinada a dormir, sendo preciso
ceder a esse torpor em tudo grato. Não podes escolher, tenho certeza.
(Miranda adormece.)
Servidor, estou pronto novamente!
Vem, meu Ariel! Aqui!
(Entra Ariel.)
ARIEL - Meu grande mestre, salve! Salve, grave senhor! Vim para em tudo obedecer-te, ou seja para
voar, nadar, no fogo mergulhar, ou montar nas nuvens densas. Tua vontade forte é que domina Ariel e
seu poder.
PRÓSPERO - Executaste, espírito, direito a tempestade, conforme te ordenei?
ARIEL - Ponto por ponto. Assaltei o real barco; ora na proa, ora nos flancos, na coberta, em todos os
camarotes acendi o susto. Dividido, por vezes, inflamava-me em diversos lugares: sobre o mastro, no
gurupés, nas vergas, em distintas chamas aparecia, para numa, depois, me concentrar. Não são mais
rápidos nem mais ofuscadores os relâmpagos de Jove, precursores das trovoadas assustadoras. Tanto
fogo e o embate do sulfúrico estrondo pareciam tomar de assalto o muito poderoso Netuno e amedrontar
suas bravas ondas. Sim, até o tridente formidável lhe tremia nas mãos.
PRÓSPERO - Meu bravo espírito! Quem terá sido tão constante e firme que a razão não pendesse em tal
revolta?
ARIEL - Não houve alma que a febre da loucura não revelasse e não mostrasse certos sinais de
desespero. Com exceção dos marinheiros, todos mergulharam na espumosa voragem, desertando o navio,
que em chamas eu deixara. O herdeiro da coroa, Ferdinando, com os cabelos em pé - mais parecia junco
do que cabelo - deu o exemplo, e, ao altar, exclamou: "Ficou vazio todo o inferno; os demônios estão
soltos!"
PRÓSPERO - Muito bem, meu espírito! Foi isso perto da praia, não?
ARIEL - Bem perto, mestre.
PRÓSPERO - Mas Ariel, estão salvos mesmo todos?
ARIEL - Não se perdeu um fio de cabelo, nem há nas vestes com que se salvaram uma mancha sequer;
mais frescas todas estão do que antes. E, de acordo sempre com o que recomendaste, dispersei-os em
bandos por toda a ilha. O herdeiro príncipe, fi-lo chegar a terra por si próprio. Deixei-o a refrescar o ar
com suspiros, sentado a um canto estranho da ilha, os braços tristemente cruzados, deste modo.
PRÓSPERO - O real navio, com seus marinheiros, dize onde foi parar, e os mais da frota?
ARIEL - O navio do rei está no porto, no golfo em que uma vez me convocaste para buscar orvalho das
Bermudas tempestuosas. Ali se acha escondido. Todos os marinheiros estão dentro da escotilha; com
meus encantamentos secundando a fadiga dos trabalhos, deixei-os a dormir. Os Outros barcos que eu
dispersara estão de novo juntos. Pelo Mediterrâneo agora singram, tristemente rumando para Nápoles,
certos de terem visto a capitania, que o rei levava, soçobrar e Sua Grandeza perecer.
PRÓSPERO - Ariel, cumpriste tua missão a ponto; mas ainda terás o que fazer. Que tempo é agora?
ARIEL - Meio-dia passado.
PRÓSPERO - Pelo menos de duas ampulhetas. preciso que aproveitar saibamos o intervalo de agora até
seis horas.
ARIEL - Mais fadigas? Já que novos trabalhos me destinas, permite que te lembre uma promessa que
ainda não cumpriste.
PRÓSPERO - Quê! Zangado? Que podes desejar?
ARIEL - A liberdade.
PRÓSPERO - Antes do tempo certo? Nunca!
ARIEL - Lembra-te que te prestei serviços importantes nunca menti, não descuidei de nada nem me
mostrei queixoso ou rabugento. Prometeste abater-me um ano inteiro.
PRÓSPERO - Pareces esquecido do tormento de que te libertei.
ARIEL - Eu, esquecido?
PRÓSPERO - Sim, esqueceste, e julgas de mais peso pisar no limo do salgado pélago, ir empós do
cortante vento norte, nas veias, para mim, descer da terra, quando o gelo a recoze.
ARIEL - Senhor, não!
PRÓSPERO - Mentes, coisa maligna! Não te lembras da repelente bruxa Sicorax, que a idade e a inveja
em arco recurvaram? Já te esqueceste dela?
ARIEL - Não, senhor.
PRÓSPERO - Só parece que sim. Se não, me dize: de onde era ela? Onde nasceu? Responde.
ARIEL - Na Argélia, meu senhor.
PRÓSPERO - Ah! sim? Preciso todos os meses repetir quem foste, coisa de que te esqueces a toda hora.
Essa bruxa maldita, Sicorax, por crimes horrorosos e terríveis feitiçarias que os mortais ouvidos não
podem suportar, se viu banida, como sabes, da Argélia. Uma só coisa - ia ser mãe - pôde salvar-lhe a
vida. Não é verdade tudo?
ARIEL - Sim, senhor.
PRÓSPERO - Por grávida encontrar-se, essa megera de olhos azuis foi para cá trazida e abandonada
pelos marinheiros. Tu, meu escravo, como te nomeias, eras, então, seu criado. Mas por seres um espfrito
muito delicado para suas ordens por demais terrenas e repugnantes, não te submetias a quanto ela
ordenava, razão clara de te haver ela, ouvindo o imperativo de seu furor imenso e com o auxílio de seus
ministros de poder mais forte, fechado numa fenda de pinheiro. Nessa racha de tronco, atormentado, uns
doze anos ficaste, no qual tempo veio a morrer a amaldiçoada bruxa, na prisão te deixando, onde soltavas
gemidos tão freqüentes como as rodas do moinho em seu girar. Então, esta ilha - se excetuarmos o filho
que ela teve, um mostrengo manchado - forma humana nenhuma a enobrecia.
ARIEL - Sim, seu filho Calibã.
PRÓSPERO - Coisa obtusa, é o que te digo. É o mesmo Calibã que ora me serve. Ninguém melhor que
tu sabe os tormentos em que te achei. Faziam teus gemidos ulular lobos e calavam fundo no coração dos
ursos indomáveis. Era martírio para os condenados aos suplícios eternos, que desfeito já não podia ser
por Sicorax.
ARIEL - Agradeço-te, mestre.
PRÓSPERO - Caso venhas de novo a murmurar, fendo um carvalho e como cunha te comprimo dentro
de seu nodoso corpo, até que venhas ululado durante doze invernos.
ARIEL - Perdão, mestre; mas hei de conformar-me a quanto me ordenares, perfazendo de grado minha
obrigação de espírito.
PRÓSPERO - Faze assim, porque dentro de dois dias dar-te-ei a liberdade.
ARIEL - Eis o meu nobre mestre, novamente! Que é preciso fazer? Dize. Que mandas?
PRÓSPERO - A forma adquire logo de uma ninfa, a mim e a ti visível, tão-somente, a ninguém mais.
Assume essa postura e volta para cá. Vamos! Depressa! (Sai Ariel.)
Acorda, coração, acorda logo; já dormiste bastante.
MIRANDA (despertando): O extraordinário de vossa história me deixou com sono.
PRÓSPERO - Sacode-o. Vamos ver o meu escravo Calibã, que só tem palavras duras para minhas
perguntas.
MIRANDA - É um velhaco, meu senhor, cuja vista me repugna. PRÓSPERO - Contudo, não podemos
dispensá-lo. Acende-nos o fogo, traz-nos lenha e nos presta serviços variados de muita utilidade. Olá!
Escravo! Bloco de terra! Calibã! Responde!
CALIBÃ (dentro): Há muita lenha em casa.
PRÓSPERO - Vem! Já disse. Vou dar-te outro serviço. Tartaruga, vem logo! Vens?
(entra Ariel, metamorfoseado em ninfa do mar.)
Que linda aparição! Meu precioso Ariel, ouve-me à parte.
ARIEL - Será feito, senhor.
(Sai.)
PRÓSPERO -
Vem para fora, escravo venenoso, pelo próprio diabo gerado em tua mãe maldita. (Entra Calibã.)
CALIBÃ - Que em vós dois caia orvalho tão nocivo como o que minha mãe tinha por hábito colher nos
charcos pútridos com uma asa negra de corvo. Em vós sopre o suloeste e vos deixe cobertos de feridas.
PRÓSPERO - Por isso, fica certo, hás de esta noite sofrer cãibras contínuas e pontadas sentir que te hão
de perturbar o fôlego. A noite, todo o tempo em que puderem mexer-se os duendes, hão de exercitar-se
sem pausa sobre ti. Tão densamente como um favo de mel serás picado, sendo mais dolorosa cada uma
dessas ferretoadas do que quantas dêem as próprias abelhas.
CALIBÃ - Está na hora do meu jantar. Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, a minha mãe.
Roubaste-ma; adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias me carícias e me davas água com bagas, como
me ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e de noite sempre queimam. Naquele tempo,
tinha-te amizade, mostrei-te as fontes frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril... Seja eu
maldito por havê-lo feito! Que em cima de vós caia quanto tinha de encantos Sicorax: besouros, sapos e
morcegos. Eu, todos os vassalos de que dispondes, era nesse tempo meu próprio soberano. Mas agora me
enchiqueirastes nesta dura rocha e me proibes de andar pela ilha toda.
PRÓSPERO - Escravo mentiroso, só pancada te pode comover, nunca o bom trato. Sujo como és,
tratei-te como gente, alojando-te em minha própria cela, até ao momento em que tiveste o ousio de
querer desonrar a minha filha.
CALIBÃ - Oh oh! Oh oh! Quisera tê-lo feito; mas mo impediste. Se não fora isso, com Calibãs houvera a
ilha povoado.
PRÓSPERO - Escravo abominável, carecente da menor chispa de bondade, e apenas capaz de fazer mal!
Tive piedade de ti; não me poupei canseiras, para ensinar-te a falar, não se passando uma hora em que
não te dissesse o nome disto ou daquilo. Então, como selvagem, não sabias nem mesmo o que querias;
emitias apenas gorgorejos, tal como os brutos; de palavras várias dotei-te as intenções, porque pudesses
tomá-las conhecidas. Mas embora tivesse aprendido muitas coisas, tua vil raça era dotada de algo que as
naturezas nobres não comportam. Por isso, merecidamente, foste restringido a esta rocha, sendo certo que
mais do que prisão tu merecias.
CALIBÃ - A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso, é ter ficado sabendo como
amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por me terdes ensinado a falar vossa linguagem.
PRÓSPERO - Fora daqui, filho de feiticeira! Vai buscar lenha e não demores nada, e o que te digo, que
ainda tens serviço. Ah! Pouco se te dá, demônio? Caso negligencies ou faças de mau grado quanto estou
a mandar, com velhas cãibras a tratos ficarás, cheios teus ossos de dores lancinantes, que te obriguem a
rugir de tal modo, que até as feras hão de tremer à tua gritaria.
CALIBÃ - Não, por favor... (à parte.) Forçoso é obedecer. Sua arte é tão potente, que lhe for a possível
dominar até Setebos, o deus de minha mãe e transformá-lo em seu vassalo, até.
PRÓSPERO - Vai logo, escravo!
(Sai Calibã. Volta Ariel, invisível, tocando e cantando; Ferdinando o segue.)
CANTIGA DE ARIEL
Sobre esta areia amarela saudai a bela. E após a terdes beijado e o mar caiado, cantai, espíritos ledos, em
coro, vossos brinquedos. Ouvi! Ouvi!
(Coro disperso.) Au! Au! Os cães ladram em sarau (Coro disperso.) Au! Au! Ouvi sequer o canto do
chantecler: Co-co-ri-có!
FERDINANDO - De onde vem esta música? Da terra? Do céu, talvez? Parou. É dirigida, certamente, a
algum deus desta bela ilha. Na praia eu me encontrava, a lastimar-me pelo naufrágio de meu pai, o rei,
quando por sobre as águas esta música chegou até a mim, deixando serenada com o seu doce encanto, a
um tempo, a fúria delas e a minha mágoa. Acompanhei-a até aqui, ou melhor: fui arrastado. Mas já
parou. Não! Ei-ia novamente.
ARIEL canta:
Teu pai está a cinco braças. Dos ossos nasceu coral, dos olhos, pérolas baças.
Tudo nele é perenal; mas em algo peregrino transforma-o o mar de contínuo
O sino das ninfas soa: (Coro.) Dim, dim, dão! Escutai como reboa: (Coro.) Dim, dim, dão!
FERDINANDO - Faz-me lembrar a toada o pai defunto. Não é mortal cantiga, nem terrenos são esses
sons. Agora os ouço em cima.
PRÓSPERO - Afasta as franjas que te os olhos cobre e dize o que ali vês.
MIRANDA - Será espírito? Oh céus! que olhar o dele! Acreditai-me, senhor, a forma é bela. Mas é
espírito.
PRÓSPERO - Não, menina; ele dorme, come e bebe como nós dois, e tem iguais sentidos. Perfeitamente
iguais. Esse mancebo que ali vês é um dos náufragos. Não fosse ora achar-se algum tanto maculado pela
tristeza - o verme da beleza - poderias chamar-lhe um homem belo. Perdeu os companheiros e ora vaga
pela ilha a procurá-los.
MIRANDA - Chamar-lhe-ia, de grado, algo divino. Jamais coisa natural vi tão nobre.
PRÓSPERO (à parte) - Tudo marcha como na alma desejo. - a belo espírito, só por isto dar-te-ei a
liberdade nestes dois dias.
FERDINANDO - Certamente é a deusa a quem era dedicada aquela música. - Dai-me saber se tendes na
ilha a sede e se podeis instruir-me sobre o modo de comportar-me aqui. Minha primeira pergunta, que
por último enuncio, será: O maravilha! Sois humana ou divina? Que sois?
MIRANDA - Não maravilha, não divina, senhor; mulher, decerto.
FERDINANDO - Minha linguagem! Céus! Sou o mais alto dos que esta língua falam! Se de novo me
achasse no país em que é falada!
PRÓSPERO - Como assim? O mais alto? Que diria, se te ouvisse falar, o Rei de Nápoles?
FERDINANDO - Algo modesto, tal como ora sou, que se mostra admirado por ouvir-te falar do Rei de
Nápoles. Ele ouve-me; por isso mesmo, choro. Eu, só, sou Nápoles, que com estes olhos, desde então em
pranto, vi o rei naufragar, o rei meu pai.
MIRANDA - Oh, dor!
FERDINANDO - É certo; com seus nobres todos. O Duque de Milão, também com eles, e seu valente
filho, pereceram.
PRÓSPERO (à parte) - O Duque de Milão e sua filha não menos valorosa poderiam contradizer-te, se
mais oportuna fosse a ocasião. - Logo à primeira vista trocou com ela olhares. Só por isto, meu delicado
Ariel, vou libertar-te. - Uma palavra, meu senhor. Receio que dizendo isso, vos prejudiqueis.
MIRANDA(à parte) - Por que meu pai se expressa por maneira tão pouco delicada? Este é o terceiro
homem que jamais vi, sendo o primeiro que me fez suspirar. Que a piedade possa inclinar meu pai para o
meu lado.
FERDINANDO (à parte) - Se fordes virgem e se não tiverdes comprometido o coração, de Nápoles
rainha vos farei.
PRÓSPERO - Mais devagar, caro senhor. Uma palavra, ainda. (À parte.) Ambos estão rendidos. É
preciso, porém, deixar um pouco mais difícil essa conquista, para que a vitória fácil demais não
desmereça o preço. (A Ferdinando.) Uma palavra. Intimo-te a escutar-me. Um nome usurpas que não te
pertence e como espião chegaste a esta ilha, para ma tomares, a mim, o senhor dela.
FERDINANDO - Não; por minha honra de homem, vo-lo afirmo.
MIRANDA - Nada de mau pode abrigar tal templo. Se de casa tão nobre dispusesse o espírito ruim, tudo
o que é belo se esforçaria para morar nela.
PRÓSPERO (a Ferdinando): Acompanha-me!
(A Miranda.) Dele não me fales. É um traidor.
(A Ferdinando.) Vamos logo. Hei de prender-te com fortes elos o pescoço e as pernas. Água do mar terás
como bebida; como alimento encontrarás somente mexilhões dos regatos, ressequidas raízes e folhelhos,
onde as glandes tenham feito seus leitos. Vamos logo!
FERDINANDO - Não; vou opor-me a esse tratamento até que meu inimigo me domine. (Saca da
espada, mas, por encantamento, fica sem poder mover-se.)
MIRANDA - Oh! Não o provoqueis, pai extremoso, com tanta rispidez. Ele é educado, não temeroso em
nada.
PRÓSPERO - Como! Tenho de obedecer aos pés? - Guarda essa espada, traidor! Fazes menção, tão-só,
de usá-la, mas coragem não tens, que, assaz pesada, te reprime a consciência. Deixa logo de tomar
posição, que eu poderia com meu bastão fazer cair-te essa arma.
MIRANDA - Pai, compaixão!
PRÓSPERO - Solta-me a roupa, digo!
MIRANDA - Piedade, pai. Serei tua fiadora.
PRÓSPERO - Nem mais uma palavra! Do contrário, repreender-te-ei, se não chegar a odiar-te. Como!
Advogando de um traidor a causa? Silêncio, disse! Pensas que no mundo não há ninguém assim, porque
só viste a Calibã e a este. Rapariga sem juízo! Comparado a muitos homens, este é outro Calibã, como
são anjos os homens perto dele
MIRANDA - Nesse caso, muito modestos são meus sentimentos; não ambiciono ver ninguém mais belo.
PRÓSPERO - Vem comigo; obedece-me. Teus músculos ainda estão na infância não têm força.
FERDINANDO - Realmente; como em sonho tenho o espírito: acorrentado. A morte de meu pai, a
fraqueza que sinto, num naufrágio perdidos os amigos, as ameaças deste senhor, de quem sou prisioneiro,
tudo eu suportaria, se pudesse, uma só vez ao dia, de meu cárcere contemplar esta jovem. Que me
importa que em todo o vasto mundo a liberdade possa encontrar guarida? Assaz espaço terei nesta prisão.
PRÓSPERO (à parte) - Vai bem.
(A Ferdinando.) Sigamos.
(A Ariel.) Trabalhaste a primor, querido Ariel.
(A Ferdinando.) Acompanha-me.
(A Ariel.) Aguarda as minhas ordens.
MIRANDA - Senhor, ficai tranqüilo; melhor gênio tem meu pai do que o inculcam tais palavras. O que
ele fez agora é inteiramente fora do natural.
PRÓSPERO - Serás tão livre como o vento, mas faze exatamente tudo o que eu te mandar.
ARIEL - Ponto por ponto.
PRÓSPERO - Acompanhai-me. - Não me digas nada.
(Saem.)

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