sexta-feira, 6 de maio de 2011

Fahrenheit 451 - Parte I (3)

— Era uma pobre de espírito.
— Era tão razoável como tu ou eu, mais talvez, e nós queimámo-la.
— Isso não impede que os rios continuem a correr e as águas a passar sob as pontes.
— Não a água, o fogo. Já viste uma casa arder? Continua a fumegar durante dias e dias.
Lembrar-me-ei daquele fogo toda a minha vida! Toda a noite, na minha imaginação, tentei apagá-lo.
Estava meio doido.
— Devias ter pensado nisso antes de te teres feito bombeiro.
— Pensar! — disse ele. — Tive, por acaso, possibilidades de escolha? O meu pai e o meu avô
foram bombeiros. A noite, quando sonho, corro atrás deles.
No salão ouvia-se uma música de dança.
— Hoje estás de serviço mais cedo — disse Mildred.— Devias ter partido há duas horas. Dei
agora mesmo por isso.
— Não é apenas a morte dessa mulher — continuou Montag. — A noite passada, pensei em
toda a gasolina que tenho espalhado, há dez anos para cá. E pensei nos livros. E, pela primeira vez,
notei que, atrás de cada um desses livros, estava um homem. Um homem que os tinha concebido. Um
homem que tinha passado o seu tempo a escrevê-los. E, até agora, nunca essa idéia me tinha aparecido.
— Saiu da cama. — Algumas vezes, é necessária toda urna vida a um homem para pôr as suas idéias
por escrito, olhar o mundo e a vida à sua volta; e eu chego e bum! Em dois minutos tudo se acaba.
— Deixa-me sossegada — disse Mildred. — Não tenho culpa disso.
— Deixar-te sossegada! Muito bem; mas eu, eu como ficarei sossegado? Não temos necessidade
que nos deixem sossegados. Temos necessidade de sermos seriamente incomodados de vez em quando.
Há quanto tempo não és tu incomodada seriamente? Por uma razão importante, quero dizer, uma razão
válida?
Calou-se e voltou as costas a Mildred.
— Conseguiste o que querias — disse ela. — Ah, na rua. Olha quem lá está.
— Quero lá saber!
— Está um carro que acaba de parar, um Vénix, e um homem de camisa negra com uma
serpente vermelha bordada no braço está a sair dele.
— O capitão Beatty? — perguntou Montag.
— O capitão Beatty.
— Manda-o entrar e diz-lhe que estou doente.
— Diz-lhe tu.
Ela começou a andar de um lado para o outro e depois imobilizou-se, os olhos dilatados,
ouvindo o micro da porta chamar pelo seu nome, docemente, muito docemente: "Sra. Montag, Sra.
Montag, está aqui uma pessoa, está aqui uma pessoa, Sra. Montag, Sra. Montag, está aqui uma
pessoa." Montag tornou a meter-se na cama. Um instante depois Mildred saiu do quarto e o capitão
Beatty entrou tranqüilamente, de mãos nas algibeiras.
— Desligue a "família" — disse Beatty, olhando em volta.
Dessa vez, Mildred partiu a correr. As vozes estridentes pararam de uivar, no salão.
O capitão Beatty instalou-se no maple mais confortável, uma expressão de perfeita serenidade no
seu rosto rubicundo. Acendeu lentamente um cachimbo de bronze e soprou uma grande nuvem de
fuma — Passei por aqui, e vim ver como estava o doente.
— Como adivinhou?
Beatty sorriu, descobrindo as suas gengivas de açúcar rosado e os dentes de açúcar branco.
— Calculei tudo. Ias telefonar-me para me pedires dispensa da noite.
Montag tinha-se sentado na cama.
— Pois bem — continuou Beatty—, toma a tua noite livre!
Examinou a sempre-eterna caixa de fósforos, cuja tampa anunciava: GARANTIA ABSOLUTA. UM
MILHÃO DE CHAMAS NESTE IGNIDOR. E, com um ar ausente, pôs-se a acender um fósforo químico, a
soprá-lo, a acendê-lo de novo, a soprá-lo, a torná-lo a acender. Disse algumas palavras e soprou
novamente. Olhou a chama, soprou, olhou a chama.
— Quando pensas estar melhor?
— Amanhã. Talvez depois de amanhã. No princípio da semana.
Beatty deu uma fumaça no cachimbo.
— Todo o bombeiro, mais tarde ou mais cedo, sofre essa experiência. Basta um pouco de
reflexão para compreender como a roda gira... Basta conhecer a história da nossa profissão. Agora já
não explicam aos novos, como dantes. É pena — uma fumaça — apenas os chefes se lembram— uma
fumaça — vou-te pôr ao corrente.
Mildred mexeu-se, pouco à vontade. Beatty deixou passar um bom minuto, reflectindo no que
ia dizer.
— Perguntaste-me quando começou o nosso trabalho, como e onde? Pois bem, na realidade o
ponto de partida remonta à época chamada Guerra Civil. Embora no texto do nosso regulamento a
data seja anterior. O facto é que não tínhamos nenhum papel a representar antes da aparição da
fotografia. Depois, veio o cinema... no princípio do século xx. Depois a rádio. A televisão. O elemento
massas entrou então em cena.
Montag continuava imóvel, sentado na cama.
— E esse elemento massas veio simplificar os problemas — continuou Beatty. — Primeiro, os
livros apenas interessavam minorias, aqui e ali. Podiam permitir-se ser diferentes. O mundo era vasto.
Depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos, de bocas. A população dobrou, triplicou,
quadruplicou. Os filmes e a rádio, os magazines, os livros, foram nivelados, normalizados sob a forma
de uma espécie de pasta de bolo. Estás a perceber?
— Parece-me que sim.
— Estás a ver o quadro. O homem do século xix, com os seus cavalos, os seus cães, os seus
trens; lentidão do movimento. Depois a aceleração, a câmara. Os livros resumidos. As condensações, os
digests, os gráficos; tudo subordinado ao mote, ao fim percutante.
— O fim percutante — disse Mildred, aprovando com a cabeça.
— Os clássicos reduzidos para compor emissões de um quarto de hora na rádio, cortados de
novo para darem extractos de dois minutos de leitura, enfim, arranjados para um resumo de dicionário
de dez a doze linhas. Estou a exagerar um pouco, claro. A minha alusão aos dicionários é apenas uma
referência. Mas para muita gente, Hamlet (tu conheces certamente os títulos, Montag; a senhora,
talvez os tivesse ouvido apenas citar), para muita gente, dizia, Hamlet era apenas um resumo de uma
página, num livro que declarava: "Finalmente, todos os clássicos ao seu alcance; o seu nível de
conhecimentos igual ao do seu vizinho." Estás a ver o que quero dizer? Da sala das crianças ao colégio
e do colégio à sala das crianças. Eis o traçado da curva intelectual para os últimos cinco séculos.
Mildred ergueu-se e começou a arrumar a sala. Beatty pareceu não notar a sua actividade e
continuou: — Acelera mais o filme, Montag. dique, pique, rápido, aqui, ali, em cima, em baixo, dentro,
fora, porquê, como, quem, o quê, onde, hem? Olá! Bang! Smac! Upa, Bing, Bong, Bum! Resumos de
resumos. Resumo de resumo de resumos. A política? Uma coluna, duas frases, um título! E tudo se
volatiliza no ar! O cérebro do homem gira num tal ritmo sob as mãos de ventosa dos editores, dos
produtores, dos apresentadores que a força centrífuga elimina toda a perda de tempo, toda a actividade
inútil do espírito.
Mildred endireitava os lençóis. Montag sentiu o coração aos saltos enquanto ela mexia no
travesseiro.
— As aulas tornam-se mais curtas, a disciplina é relaxada, a Filosofia, a História, as línguas
abandonadas, o inglês e a sua pronúncia abastardados pouco a pouco e, finalmente, quase ignorados.
Vive-se no imediato. Apenas conta o trabalho e, após o trabalho, a dificuldade da escolha de uma
distracção. Para quê aprender qualquer coisa, além de carregar botões, ligar comutadores, enroscar para
fusos e porcas?
— Deixa-me arranjar o teu travesseiro — disse Mildred.
— Não — murmurou Montag.
— O fecho éclair substitui o botão, pois o homem não tem tempo para reflectir nem para se
vestir, de manhã Não há hora de filosofia, nem hora de melancolia.
— Vá lá —disse Mildred.
— Deixa-me! — gritou Montag.
— A vida torna-se uma imensa glissagem, Montag; Vlan! Pufi Vamos a isto!
— Vamos a isto! — disse Mildred, puxando o travesseiro aos safanões.
— Cos diabos, deixa-me em paz! — gritou Montag ferozmente.
Beatty abriu muito os olhos.
A mão de Mildred tinha estacado, atrás do travesseiro. Com a ponta dos dedos, apalpou o
contorno do livro e, tendo-lhe reconhecido a forma, ficou com um ar surpreendido, depois aturdido. A
boca abriu-se-lhe, para fazer uma pergunta...
— Esvaziar as salas de espectáculos, excepto as de clowns; guarnecer as salas com paredes de
vidro e fazer passar lindas cores nelas, como confetti, sangue, Sherry ou Sauternes. Gostas de basebol,
não gostas, Montag?
— É um belo desporto.
Beatty estava agora quase invisível. A sua voz emergia por entre o fumo.
— Que é isto? — perguntou Mildred, num tom quase contente.
Montag voltou-se, apoiado nos braços.
— Isto aqui, o que é? — repetiu ela.
— Vai-te sentar, mulher! — uivou Montag. Ela saltou para trás, as mãos vazias.
— Deixa-nos falar.
Beatty continuou, como se nada tivesse acontecido: — Gostas do bowling, Montag?
— O bowling. Claro.
— E do golfe?
— O golfe é um bom desporto.
— Do basquetebol?
— Um desporto excelente.
— O bilhar? O futebol?
— Todos esses jogos e desportos são perfeitos.
— Aumentem a dose de desportos para cada um, desenvolvam o espírito de equipa, de
competição, e o desejo de pensar é eliminado, não? Organizem, organizem, superorganizem
supersuperdesportos. Multipliquem as fitas desenhadas, os filmes; o espírito tem cada vez menos apetites.
A impaciência, as auto-estradas percorridas por multidões que estão aqui, ali, em todos os sítios,
em parte nenhuma. Os refugiados do volante. As cidades transformam-se em albergues de
automobilistas; os homens deslocam-se como nômadas seguindo as fases da Lua, dormindo esta noite
no quarto em que tu dormiste hoje e eu ontem.
Mildred saiu do quarto batendo com a porta. As "tias" da sala começaram a rir e a conversar
com os "tios".
— Agora, vejamos as minorias na nossa civilização; estás de acordo? Quanto maior é a
população, mais numerosas são as minorias. É preciso cuidado para não pisar os amigos dos cães,
os amigos dos gatos, os médicos, os advogados, os comerciantes, os patrões, os Mormons, os
Baptistas, os Unitários, os Chineses de segunda geração, os Suecos, os Italianos, os Alemães, a gente do
Texas ou de Brooklin, os Irlandeses, os habitantes do Oregon ou do México. As personagens
apresentadas neste livro, naquela peça ou naqueloutra emissão de televisão, não têm a mínima
semelhança com pintores, cartógrafos ou engenheiros reais. Quanto maior é o mercado, menos tu arris
cas discussões, Montag, lembra-te bem disto! Todas as minorias com o seu umbigo bem limpo. Autores
cheios de maus pensamentos, fechem as vossas máquinas de escrever. E eles íi^eram-no. As revistas
tornaram-se numa amável mistura de tapioca e baunilha e os livros, segundo esses danados snobes dos
críticos, eram água de lavar a loiça. Não é de admirar que os livros deixem de se vender, diziam os
críticos. Mas o público, sabendo o que queria, reagiu sem medo e deixou sobreviver os comic-books. E as
revistas eróticas em três dimensões, naturalmente. E, vê bem, Montag, o Governo nada teve que ver
com isto. Nem um decreto, uma declaração ou censura, ao princípio. Não! A tecnologia, a exploração
do factor massa, a pressão exercida sobre as minorias e, aí estamos, a coisa estava lançada. Hoje, graças
a eles, vives num optimismo permanente, tens o direito de ler os comias, as boas velhas confissões, ou os
jornais corporativos.
— E depois? — perguntou Montag. — Mas que fazem os bombeiros no meio de tudo isso?
— Ah! — Beatty inclinou-se para a frente, no meio do nevoeiro de fumo que o rodeava. —
Nada mais simples, nada mais fácil de explicar. Formando os estabelecimentos de ensino cada vez mais
corredores, saltadores, oportunistas, intrujões, pilotos, nadadores e assim sucessivamente, em vez de
professores, críticos, sábios, artistas, a palavra "intelectual" tornou-se, bem entendido, a injúria que
merecia ser. Tem-se sempre medo do insólito; lembras-te certamente do garoto que, na tua aula, sabia
sempre a lição, que se punha sempre à frente para responder enquanto os outros, sentados como ídolos
de chumbo, o odiavam. Não era esse brilhante indivíduo que vocês escolhiam sempre para espancar e
troçar, depois das horas de estudo? Claro que era. Devemos ser todos parecidos uns com os outros.
Ninguém nasce livre e igual aos outros, como diz a Constituição, mas cada um é modelado conforme os
outros; todo o homem é a imagem do seu semelhante e, assim, toda a gente fica satisfeita. Já não
existem montanhas para esmagar os vizinhos e provocar comparações. Ora pois! Um homem tem uma
espingarda carregada na casa ao lado. Queimemo-la. Descarreguemos a arma. Abatamos o espírito
humano. Quem poderá dizer qual será o alvo do homem que tem lido muito? Eu? Não suportarei sê-lo
nem um minuto. Assim, quando as casas se tornaram enfim totalmente ignífugas no mundo inteiro (a
tua suposição era justa, na noite passada), os bombeiros tornaram-se inúteis do ponto de vista
tradicional. Foi-lhes, portanto, atribuída uma nova tarefa, a protecção da paz de espírito, a supressão do
sentimento de inferioridade tão compreensível como temível entre os homens; censores oficiais, juizes
e executores. Eis a nossa tarefa, Montag, tanto a tua como a minha.
Beatty esvaziou com pequenas pancadas o fornilho do seu cachimbo na mão, e estudou as
cinzas como se procurasse um diagnóstico, a explicação de um símbolo.
— Deves compreender que a nossa civilização é tão vasta que não nos podemos permitir
inquietar ou incomodar as nossas minorias. Faz a pergunta a ti mesmo. Que procuramos nós, acima de
tudo, neste país? As pessoas querem ser felizes, não achas? Não lhes ouviste dizer isso toda a vida?
"Quero ser feliz", declara cada um. E, bem, são eles felizes? Não velamos nós para que estejam sempre
em movimento, sempre distraídos? Não vivemos senão para isso, não é a tua opinião? Para o prazer,
para a excitação? E deves concordar que a nossa civilização fornece um e outra à saciedade.
— Sim.
— Os negros não gostam de Uttk Black Sambo. Queimemo-lo. A. Cabana do Pai Tomás não
agrada aos brancos. Queimemo-la. Um tipo escreveu um livro sobre o tabaco e o cancro do pulmão?
Os fumadores de cigarros ficam consternados. Queimemos o livro. A serenidade, Montag, a paz,
Montag. Liquidemos os problemas, ou melhor ainda, lancemo-los no incinerador; os enterros são tristes
e pagãos? Eliminemo-los igualmente. Cinco minutos após a morte, todo o indivíduo vai a caminho do
Grande Crematório, por meio dos Incineradores servidos por helicóptero em todo o país. Dez
minutos após a morte, o homem nada mais é do que um grão de poeira negra. Não vaticinemos acerca
dos indivíduos a golpes de inconsoláveis memórias. Esqueçamo-los. Queimemo-los, queimemos tudo.
O fogo é brilhante, o fogo é limpo.
— Havia uma rapariga aqui ao lado — disse Montag, lentamente. — Já cá não está. Morreu,
creio. Já nem sequer me lembro do seu rosto. Mas ela era diferente. Como explica isto?
Beatty sorriu: — São casos inevitáveis, aqui ou em qualquer parte. Clarisse McClellan? Temos
um dossier sobre a família. Temo-los estreitamente vigiados. A hereditariedade e o meio são elementos
curiosos. Não podemos desembaraçar-nos de todas as ovelhas ronhosas em poucos anos. O ambiente
familiar pode minar o ensino escolar. Foi por essa razão que baixámos progressivamente a idade do
jardim de infância e vamos agora buscar as crianças praticamente ao berço. Tivemos alguns falsos
alarmes para os McClellan quando eles moravam em Chicago. Mas nunca encontrámos um livro. O tio
tinha uma ficha bem carregada: anti—social. A rapariga? Uma bomba de explosão retardada. A família
tinha-lhe deformado o subconsciente, sem dúvida alguma. Dei por isso ao consultar os seus boletins
de escola. Não queria saber o como, mas o porquê das coisas. O que pode ser muito incômodo. A gente
interroga-se sobre o porquê das coisas e, se se insiste, podemo-nos tornar muito infelizes. A
pobrezinha está morta, e foi o melhor que lhe podia ter acontecido.
— Sim, morta.
— Felizmente, os anormais da sua espécie são muito raros. Sabemos como abafá-los no ovo,
agora. Não se pode construir uma casa sem tábuas nem pregos. Se não se quer que a casa seja
construída, escondamos as tábuas e os pregos. Se não se deseja que um homem ponha problemas de
ordem política, não se lhe dê duas soluções à escolha; dê-se-lhe só uma ou, melhor, não se lhe dê ne
nhuma. Que ele esqueça até a existência da guerra. Se o Governo é ineficaz, tirânico, se vos esmaga
com impostos, pouco importa, desde que as pessoas não saibam nada. A paz, Montag. Instituam-se
concursos cujos prêmios obriguem a decorar, a encher a memória com letras de canções em voga, com
nomes de capitais de Estado ou com o número de quintais de milho colhidos em Iowa no último ano.
Encham os homens de informações inofensivas, incombustíveis, que eles se sintam a rebentar de
"factos", informados acerca de tudo. Em seguida, eles imaginarão que pensam e terão o sentimento do
movimento, enquanto realmente apenas se arrastam. Serão felizes, porque os conhecimentos deste gênero
são imutáveis. Não os levem para terrenos escorregadios como a filosofia ou a sociologia, em que
tenham de confrontar a sua experiência. É a fonte de todos os tormentos. Todo o homem capaz de
desmontar um écran mural de televisão e de o tornar a montar —e, hoje, quase todos eles são capazes—
é bem mais feliz que aquele que tenta medir, experimentar, pôr em equação o Universo, o que não pode
ser feito sem que o homem tome consciência da sua inferioridade e da sua solidão. Eu sei-o.
Experimentei. Tretas! Conclusão: agarremo-nos aos clubes, às reuniões, aos acrobatas, aos prestidigitadores,
quebra-cabeças, carros a reacção, motogiro-planos, ao sexo e à heroína, tudo o que não
obrigue senão a reflexos automáticos. Se a peça é má, se o filme não tem sentido, tomemos uma dose
maciça de teremina. Con-idero-me sensível ao espectáculo desde que se trate apenas de uma reacção
táctil às vibrações. Mas estou-me nas tintas, e tudo o que desejo é um sólido passatempo. — Beatty
levantou-se. — Tenho de me ir embora. A conferência está terminada. Espero ter esclarecido as coisas.
O importante para ti, Montag, é lembrares-te que somos alegres foliões, tu, eu e os outros. Fazemos
frente à maré daqueles que querem mergulhar o mundo na desolação, suscitando o conflito entre a
teoria e o pensamento. Agüentemos. Não deixemos a torrente de melancolia e da triste filosofia afogar
o nosso mundo. Contamos contigo. Não creio que dês conta da tua importância, da nossa importância
para proteger o optimismo do nosso mundo actual.
Beatty apertou a mão mole de Montag. Montag continuava sentado na cama, paralisado, como
se a casa estivesse quase a cair-lhe em cima.
— Uma última palavra — disse Beatty. — Pelo menos uma vez na sua carreira, todo o
bombeiro é atraído pela idéia de saber o que contam os livros. Oh! Este desejo de nos cocarmos, liem!
Pois bem, Montag, acredita-me: li alguns, ao princípio, para saber de que se tratava... os livros não
contam nada. Nada em que tu possas crer ou ensinar aos outros. Se são romances, falam de seres que
não existem, de produtos da imaginação. No caso contrário, é ainda pior. Cada professor trata o outro
de idiota, cada filósofo tenta gritar mais alto que o seu adversário. Correm em todos os sentidos,
obscurecendo as estrelas, extinguindo o Sol. Sai-se daí completamente perdido. Agora suponhamos que
um bombeiro, por acidente, sem idéia preconcebida, leva um livro para casa. — Montag reprimiu um
ligeiro sobressalto. A porta aberta olhava-o com o seu grande olho vazio. — Erro bem natural. A curio
sidade, simplesmente — continuou Beatty. — Não nos inquietamos com isso. Deixamos o livro àquele
que o arranjou, durante vinte e quatro horas. Em seguida, se ele mesmo não o queimou, vimos nós
queimá-lo por ele.
— Perfeitamente — disse Montag, com a boca seca.
— Então, Montag, voltas para o serviço esta noite, com a última equipa? Ver-te-emos esta
noite?
— Não sei — respondeu Montag.
— Como? — Beatty parecia um pouco surpreendido. Montag fechou os olhos.
— Irei... tarde... Talvez.
— Se não vieres, vais fazer-nos falta, com certeza — disse Beatty, metendo o cachimbo na
algibeira, pensativamente.
"Não tornarei a ir", pensou Montag.
— Trata de te curares — recomendou Beatty. Virou as costas a Montag e saiu pela porta aberta.
Montag, pela janela, seguiu com os olhos Beatty, que arrancava no seu carro rutilante de pneus
negros, cor de carvão.
Do outro lado da rua, as casas erguiam as suas fachadas inexpressivas.
Montag voltou-se e olhou a sua mulher, sentada no meio da sala, falando a um locutor que, por
sua vez, lhe respondia. "Sr.* Montag, dizia ele... mais isto e mais aquilo... etc. Sra. Montag... blá, blá,
blá." O transformador especial, que lhe tinha custado cem dólares, emitia automaticamente o nome de
"Sra. Montag" cada vez que o locutor se dirigia ao seu público anônimo, deixando um espaço para as
sílabas necessárias, a inserir no texto. Um audiomisturador especial permitia à sua imagem televisada, na
zona em volta dos lábios, articular maravilhosamente as vogais e as consoantes. Era um amigo, sem
dúvida nenhuma, um amigo verdadeiro.
— Sra. Montag... agora escute-me bem.
Ela virou a cabeça mas, visivelmente, não estava a ouvir.
— Daqui a que eu não vá trabalhar esta noite, nem amanhã, a que eu não torne a pôr os pés no
quartel — disse Montag — vai um passo.
— Então não vais lá esta noite? — perguntou Mildred.
— Isso pergunto eu. Por agora, o que me apetece é partir tudo, é dar cabo de tudo.
— Vai dar uma volta no carro.
— Não, obrigado.
— As chaves estão na mesa-de-cabeceira. Eu, quando me sinto assim, é o que gosto de fazer.
Vais até aos cento e quarenta e ficas em forma. Algumas vezes, guio toda a noite, e volto sem que dês
por isso. No campo, é divertido. Esborracham-se coelhos e, algumas vezes, cães. Leva o carro.
— Não, não quero. Pelo menos desta vez. Gostava de esclarecer esta estranha sensação. Isto
começa a contender comigo. Não sei o que é. Sinto-me infeliz como as pedras... e com uma tal má
disposição... sem saber porquê. Dir-se-ia que estou a aumentar de peso, a adquirir gordura balofa.
Tenho a impressão de ter posto de parte uma quantidade de coisas, mas o quê, exactamente, não sei...
Por um pouco que me punha a ler livros...
— E metiam-te na prisão!
Ela olhou-o como se ele estivesse já atrás da parede de vidro.
Montag começou a vestir-se, andando nervosamente de um lado para o outro.
— Sim, seria de facto uma boa solução. Antes que dê cabo de alguém. Ouviste o que Beatty
disse? Ouviste-o? Tem resposta para tudo. Ele tem razão, o importante é a felicidade. Divertir-se, antes
de mais nada. E, no entanto, eu insisto em dizer que não sou feliz, que não sou feliz.
— Pois eu sou — disse Mildred. — E sinto-me orgulhosa disso.
— Vou fazer qualquer coisa — disse Montag. — Não sei ainda o quê, mas fará barulho. • —Já
estou farta de te ouvir dizer sandices — respondeu Mildred, voltando-se para o seu locutor.
Montag deu a volta ao interruptor do amplificador, na parede, e o locutor ficou mudo.
— Millie? — fez uma pausa. — Esta casa é tanto tua como minha. É o menos que te posso
dizer, agora. Devia tê-lo feito há mais tempo, mas não queria admiti-lo. Quero mostrar-te uma coisa,
uma coisa que aqui tenho escondida há mais de um ano. Isto aconteceu-me mais de uma vez, não sei
porquê, e fi-lo sem nunca te ter dito nada.
Pegou numa cadeira alta, arrastou-a lentamente pelo corredor até junto da porta da entrada,
subiu-lhe para cima e ficou um instante imóvel, como uma estátua no seu pedestal. A mulher, de pé,
junto dele, esperava. Enfim, estendeu a mão, abriu a grade do climatizador, meteu o braço no interior,
fez correr uma lâmina metálica e tirou um livro. Sem a olhar, deixou-o cair no chão. Depois tornou a
meter a mão no orifício, tirou dois outros livros e largou-os, como o primeiro. Repetiu o gesto e
continuou a tirar volumes, pequenos ou grandes, amarelos, vermelhos ou verdes. Quando acabou,
baixou os olhos. Uns vinte livros jaziam no chão, aos pés da sua mulher.
— Lamento — disse. — Não pensei bem. Mas tenho a impressão de que estamos ambos
metidos no mesmo sarilho.
Mildred recuou como se um exército de ratos tivesse subitamente saído do soalho. Ele ouviulhe
a respiração precipitada, viu-lhe o rosto empalidecer e os olhos dilatarem-se. Pronunciou-lhe o
nome duas ou três vezes. Depois, com um gemido, inclinou-se vivamente, pegou num livro e correu
para o incinerador, na cozinha.
Montag agarrou-a, uivando. Dominou-a, enquanto ela tentava libertar-se, arranhando-o.
— Não, Millie, não! Espera! Pára, ouviste? Não sabes... mas pára! — Esbofeteou-a, segurou-a
de novo e sacudiu-a.
Ela pronunciou-lhe o nome e começou a chorar.
— Millie! — disse Montag. — Ouve-me um instante. Não podemos fazer nada. Não se pode
queimar estes livros. Quero olhá-los, olhá-los pelo menos uma vez. Em seguida, se o que diz o capitão
é verdade, queimá-los-emos juntos, acredita-me, queimá-los-emos juntos. É preciso que me ajudes. Que
nos agrade ou não, estamos metidos num sarilho. Nada te tenho pedido durante estes últimos anos,
mas agora peço-te, suplico-te que me oiças. Precisamos de um ponto de partida para saber quem nos
meteu neste sarilho: tu e as tuas drogas e o carro, ou eu e o meu trabalho. Vamos direitos ao precipício,
Millie. E eu não quero cair nele. Não vai ser fácil. Não temos nada para nos guiar, mas podemos talvez
pôr as coisas a claro e ajudarmo-nos mutuamente. Não posso dizer-te até que ponto tenho necessidade
de ti. Se me amas um pouco que seja, suportarás esta prova vinte e quatro, quarenta e oito horas, não te
peço mais. Depois, tudo estará acabado, prometo-te, juro-te! E se há qualquer coisa a tirar de lá, uma
pequena coisa no meio desta confusão, os outros poderão talvez aproveitar. Aquela mulher da noite
passada, Millie. Tu não estavas lá. Não viste o seu rosto. E Clarisse. Nunca lhe falaste. E homens como
Beatty tinham medo dela. Não chego a perceber. Porque teriam eles medo de uma pessoa como ela?
Mas passei a noite a compará-la com todos os tipos do quartel e, bruscamente, notei que não podia
nem cheirá-los e que também não podia suportar-me a mim mesmo. Disse para comigo que talvez tudo
se arranjasse queimando os próprios bombeiros.
— Guy!
A voz da porta anunciou docemente: "Sra. Montag, Sra. Montag, está aqui uma pessoa, está
aqui uma pessoa. Sra. Montag, Sra. Montag, está aqui uma pessoa." Muito docemente.
Viraram-se ambos e olharam fixamente a porta e, depois, os livros espalhados.
— Beatty! — murmurou Mildred.
— Não é, com certeza.
— Voltou.
A voz continuou a avisar: "Está aqui uma pessoa..." — Não se abre.
Montag encostou-se à parede e, lentamente, inclinou-se, começando a mexer nos livros,
pegando-lhes com o polegar e o indicador. Tremia e não sabia o que havia de fazer; tornar a meter os
livros no fundo do ventilador; mas sabia que não poderia tornar a apresentar-se na presença de Beatty.
Sentou-se no chão e a voz da porta de entrada elevou-se de novo, com insistência. Montag pegou num
pequeno volume, à sua frente.
— Por onde se começará? — Abriu o livro e deitou-lhe uma olhadela. — Começa-se pelo
princípio, suponho.
— Ele vai entrar — disse Mildred. — Vai queimar-nos, com os livros.
A voz da porta calou-se, finalmente. Houve um silêncio. Montag sentia uma presença atrás dela.
Alguém esperava, escutava.
Depois, uns passos desceram os degraus e afastaram-se pelo jardim.
— Vejamos um pouco do que se trata — disse Montag, com voz entrecortada e como que
envergonhado de se ouvir falar. Percorreu uma dúzia de páginas e, finalmente, parou por acaso na
seguinte passagem: Ê sabido que onze mil pessoas preferiram morrer a encetar os seus ovos pelo lado mais estreito.
£j 1. £J J. Vi J. J. -J J.
Mildred tinha-se sentado no corredor, em frente de Montag.
— Que é que isso quer dizer? Isso não quer dizer nadai O capitão tinha razão!
— Espera — disse Montag—, vamos recomeçar, partindo do princípio.

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