segunda-feira, 23 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 71 ao 78

capítulo LXXI

O pão e o sal


            A Sra de Morcerf entrou debaixo da abóbada de folhagem com o companheiro. A abóbada era formada pelas árvores de uma alameda de tílias que conduzia a uma estufa.
            - Fazia demasiado calor no salão, não é verdade, Sr. Conde?
            - É, sim, minha senhora, e a sua idéia de mandar abrir as portas e as persianas foi uma excelente idéia.
            Quando acabou de proferir estas palavras, o conde notou que a mão de Mercedes tremia.
            - Mas a senhora, com esse vestido leve e sem mais nada a agasalhar-lhe o pescoço do que essa echarpe de gaze, não irá talvez ter frio? - perguntou.
            - Sabe aonde o levo? - inquiriu a condessa, sem responder à pergunta de Monte-Cristo.
            - Não, minha senhora - respondeu ele. - Mas, como vê, não oponho resistência.
            - À estufa que vê ali, ao fundo desta alameda.
            O conde olhou Mercedes como se a quisesse interrogar, mas ela continuou o seu caminho sem nada dizer e pela sua parte Monte-Cristo também se manteve calado.
            Chegaram à estufa, cheia de frutos magníficos, que desde o principio de Julho ali amadureciam debaixo de uma temperatura sempre regulada de forma a substituir o calor do sol, tantas vezes ausente entre nós. A condessa largou o braço de Monte-Cristo e foi colher a uma cepa um cacho de uvas moscatéis.
            - Tome, Sr. Conde - ofereceu com um sorriso tão triste que se lhe viram as lágrimas surgir à beira dos olhos. - Tome. As nossas uvas da França não são comparáveis, bem sei, às uvas da Sicília e de Chipre, mas o senhor será  indulgente com o nosso pobre sol do Norte.
            O conde inclinou-se e deu um passo atrás.
            - Recusa o que lhe ofereço? - perguntou Mercedes, com voz trêmula.
            - Minha senhora - respondeu Monte-Cristo –, peço-lhe muito humildemente que me desculpe, mas nunca como uvas moscatéis.
            Mercedes deixou cair o cacho, suspirando. Um pêssego magnifico pendia de uma espaldeira vizinha, aquecido, como a vide, pelo calor artificial da estufa. Mercedes aproximou-se do fruto aveludado e colheu-o.
            - Tome então este pêssego - ofereceu.
            Mas o conde fez o mesmo gesto de recusa.
            - Oh, também?! - exclamou ela em tom tão magoado que se adivinhava conter um soluço. - Na verdade, estou com pouca sorte.
            A esta cena seguiu-se um longo silêncio. O pêssego, como o cacho de uvas, jazia no saibro.
            - Sr. Conde - prosseguiu finalmente Mercedes, pousando em Monte-Cristo um olhar suplicante –, há um comovente costume árabe que torna amigos eternos aqueles que partilham o pão e o sal debaixo do mesmo teto... 
            - Conheço-o, minha senhora - respondeu o conde. - Mas estamos na França e não na Arábia, e na França não existe nem amizade eterna nem partilha do sal e do pão.
            - Mas, enfim - disse a condessa, palpitante, sem tirar os olhos de Monte-Cristo, cujo braço apertava convulsivamente com ambas as mãos –, nós somos amigos, não é verdade?
            O sangue afluiu ao coração do conde, que se tornou pálido como um morto, e depois subiu-lhe do coração à garganta e invadiu-lhe as faces, e os seus olhos vogaram no nada durante alguns segundos, como os de um homem fascinado.
            - Claro que somos amigos, minha senhora - replicou. - Aliás, porque não seriamos?
            Este tom estava tão longe do que desejaria a Sra de Morcerf que ela se virou para deixar escapar um suspiro, que mais parecia um gemido.
            - Obrigada - disse, e recomeçou a andar.
            Deram assim a volta ao jardim sem pronunciarem uma só palavra.
            - Senhor - disse de súbito a condessa, depois de dez minutos de passeio silencioso –, é verdade que tem visto muito, viajado muito e sofrido muito?
            - Sim, minha senhora, é verdade que tenho sofrido muito - respondeu Monte-Cristo.
            - Mas agora é feliz?
            - Sem dúvida, pois ninguém me ouve queixar - respondeu o conde.
            - E a sua felicidade presente adoça-lhe a alma?
            - A minha felicidade presente iguala a minha miséria passada.
            - Não casou? - perguntou a condessa.
            - Eu, casar? - respondeu Monte-Cristo, estremecendo. - Quem lhe disse isso?
            - Ninguém me disse, mas têm-no visto acompanhar várias vezes à Ópera uma jovem muito bonita.
            - É uma escrava que comprei em Constantinopla, minha senhora, a filha de um príncipe de quem fiz minha filha e que não tem outra afeição no mundo.
            - Portanto vive só?
            - Sim, vivo só.
            - Não tem irmã... filho... pai?...
            - Não tenho ninguém
            - Como pode viver assim, sem nada que o prenda à vida?
            - A culpa não é minha, senhora. Em Malta amei uma moça e ia casar com ela quando veio a guerra e me levou para longe dela como um turbilhão. Julgava que me amasse o suficiente para me esperar, para permanecer até  fiel à minha sepultura, mas quando regressei estava casada. É a história de todo o homem que passou a idade dos vinte anos. Eu tinha talvez o coração mais fraco do que os outros e por isso sofri mais do que eles sofreriam no meu lugar, foi só isso.
            A condessa parou um momento, como se necessitasse desse alto para respirar.
            - Sim, e esse amor ficou-lhe no coração... - disse. - Só se ama uma vez... E alguma vez tornou a ver essa mulher?
            - Nunca.
            - Nunca?
            - Nunca mais voltei ao pais onde ela vivia. 
            - A Malta?
            - Sim, a Malta.
            - Ela era então de Malta?
            - Creio que sim.
            - E perdoou-lhe o que ela o fez sofrer?
            - A ela, sim.
            - Mas só a ela. Continua a odiar aqueles que o separaram dela?
            A condessa colocou-se diante de Monte-Cristo. Tinha ainda na mão um bocadinho do cacho de uvas perfumado.
            - Tome - pediu.
            - Nunca como uvas moscatéis, minha senhora - respondeu Monte-Cristo como se fosse a primeira vez que tocavam em tal assunto.
            A condessa atirou o cacho para o maciço mais próximo com um gesto de desespero.
            - Inflexível! - murmurou.
            Monte-Cristo ficou tão impassível como se a censura lhe não fosse dirigida. Albert apareceu neste momento.           
            - Oh, minha mãe, que grande desgraça! - exclamou.
            - Que foi? Que aconteceu? - perguntou a condessa, endireitando-se, como se depois do sonho acabasse de ser trazida à realidade. - Uma desgraça, você disse? Com efeito, devem aproximar-se desgraças...
            - O Sr. de Villefort está aqui .
            - E então?
            - Vem buscar a mulher e a filha.
            - Porquê?
            - Porque a Sra Marquesa de Saint-Méran, chegou a Paris com a notícia de que o Sr. de Saint-Méran morreu depois de sair de Marselha, na primeira muda de cavalos. A Sra de Villefort estava tão alegre que não era capaz de compreender nem de acreditar em semelhante desgraça. Mas Mademoiselle Valentine, mal ouviu as primeiras palavras, apesar das precauções que o pai tomou, adivinhou tudo. O golpe fulminou-a como um raio e caiu sem sentidos.
            - Que é o Sr. de Saint-Méran a Mademoiselle de Villefort? - perguntou o conde.
            - Avô materno. Vinha para apressar o casamento de Franz com a neta.
            - Ah, sim?!
            - Lá  tem o Franz de esperar mais um tempo! Porque não seria o Sr. de Saint-Méran também avô de Mademoiselle Danglars?...
            - Albert! Albert! - interveio a Sra de Morcerf em tom de meiga censura. - Que está para dizer? Olhe, Sr. Conde, diga-lhe o senhor, por quem ele tem tão grande consideração, que não deve falar assim.
            A condessa deu alguns passos em frente. Monte-Cristo olhou-a tão estranhamente e com uma expressão ao mesmo tempo tão pensativa e tão cheia de afetuosa admiração que ela voltou atrás. Então, pegou-lhe na mão, ao mesmo tempo que apertava a do filho e juntava ambas, e perguntou:
            - Somos amigos, não somos?
            - Ser seu amigo, minha senhora, é pretensão que não tenho; mas de qualquer forma sou um seu respeitoso servidor. 
            A condessa retirou-se com inexprimível aperto no coração, e antes de dar dez passos o conde viu-a levar o lenço aos olhos.
            - Acaso não estão de acordo, minha mãe e o senhor? - perguntou Albert, surpreendido.
            - Pelo contrário - respondeu o conde. - Acaba de me dizer diante do senhor que somos amigos.
            Regressaram, ao salão que acabavam de deixar Valentine e o Sr. e a Sra de Villefort.
           

Capítulo LXXII


A Sra de Saint-Méran


            Uma cena lúgubre acabava, com efeito, de se passar em casa do Sr. de Villefort. Depois da saída das duas senhoras para o baile, aonde todas as instancias da Sra de Villefort não tinham conseguido resolver o marido a acompanhá-las, o procurador régio metera-se, como era seu hábito, no seu gabinete com uma pilha de processos que assustaria qualquer outro, mas que nos seus bons tempos mal chegaria para satisfazer o seu insaciável apetite de trabalhador.
            Desta vez, porém, os processos não passavam de mero pró-forma. Villefort não se isolava para trabalhar, mas sim para pensar. Uma vez dada ordem para só o incomodarem em caso de importância e fechada a porta, sentou-se na sua poltrona e pôs-se a rever mentalmente mais uma vez o que havia sete a
oito dias fazia transbordar a taça dos seus desgostos e das suas amargas recordações.
            Então, em vez de “atacar" os processos empilhados diante de si, abriu uma gaveta da mesa, fez funcionar um mecanismo secreto e tirou o maço dos seus apontamentos pessoais, manuscritos preciosos, em que classificara e etiquetara. por meio de código só dele conhecido os nomes de todos aqueles que
na sua carreira política, nos seus negócios de dinheiro, na sua ação judicial ou nos seus amores misteriosos se tinham tornado seus inimigos.
            Atualmente o número destes era tão formidável que começara a tremer. E no entanto todos esses nomes, por mais poderosos que fossem, tinham-no feito muitas vezes sorrir, como sorri o viajante que do ponto mais alto da montanha olha a seus pés os picos agudos, os caminhos impraticáveis e os bordos dos
precipícios junto dos quais teve, para chegar, de rastejar durante tanto tempo e tão penosamente.
            Depois de repassar todos esses nomes na memória, de os reler, de os estudar e de os confrontar com as suas listas, abanou a cabeça.
            - Não - murmurou –, nenhum destes inimigos esperaria paciente e laboriosamente até  hoje para me vir esmagar agora com aquele segredo. às vezes, como diz Hamlet, a voz das coisas mais profundamente enterradas sai da terra e, como as chamas do fôsforo, corre loucamente pelo ar. Trata-se porem de chamas
que brilham um momento para enganar. A história terá sido contada pelo  corso a algum padre, que por sua vez a terá  recontado, o Sr. de Monte-Cristo soube-a, e para se esclarecer...
            "Mas esclarecer-se com que fim? - prosseguia Villefort passado um instante de reflexão. - Que interesse teria o Sr. de Monte-Cristo ou o Sr. Zaccone, filho de um armador de Malta, explorador de uma mina de prata na Tessália, vindo pela primeira vez a França, em esclarecer um caso sombrio, misterioso e inútil como aquele? No meio das informações incoerentes que me foram dadas pelo abade Busoni e por Lorde
Wilmore, por um amigo e por um inimigo, apenas uma coisa é clara, precisa e patente a meus olhos: em tempo algum, em qualquer caso, em nenhuma circunstância pode ter havido o mais pequeno contato entre mim e ele.
            Mas Villefort dizia a si próprio estas palavras sem ele mesmo acreditar no que dizia. Para si, o mais terrível não era ainda a revelação, porque podia negar ou até  desmentir. Pouco se incomodava com o "mane, thecel, phares" que aparecia de súbito na parede, em letras de sangue. O que lhe interessava era saber a que corpo pertencia a mão que as traçara.
            No momento em que procurava tranquilizar a si mesmo e, em vez do futuro político que nos seus sonhos ambiciosos entrevira algumas vezes, se preparava para aceitar, no receio de acordar aquele inimigo adormecido havia tanto tempo, um futuro confinado às alegrias do lar, ouviu-se no pátio o ruído de uma carruagem. Em seguida soaram na escada os passos de uma pessoa idosa, acompanhados de soluços e ais, como costumam fazer os criados quando querem mostrar que participam na dor dos amos.
            Apressou-se a correr o ferrolho do seu gabinete e pouco depois, sem ser anunciada, entrou uma senhora de idade, de xaile no braço e chapéu na mão. Os cabelos brancos coroavam uma testa mate como o marfim amarelecido e os seus olhos, nos cantos dos quais a idade cavara rugas profundas, quase desapareciam sob o inchaço das lágrimas.
            - Oh, senhor! Oh, senhor, que desgraça! Também vou morrer! Oh, sim, tenho a certeza, também vou morrer! - exclamava.
            E caindo na poltrona mais perto da porta, rompeu em soluços. Os criados, de pé no limiar e sem se atreverem a ir mais longe, olhavam o velho servidor de Noirtier, que, tendo ouvido aquele barulho no quarto do amo, acorrera também e se conservava atrás dos outros. Villefort levantou-se e correu para a sogra, pois era ela.
            - Meu Deus, senhora, que aconteceu? Que a perturba assim? E o Sr. de Saint-Méran não a acompanha? - perguntou.
            - O Sr. de Saint-Méran morreu - respondeu a velha marquesa, sem preâmbulo, sem expressão e com uma espécie de espanto. Villefort recuou um passo e bateu com as mãos uma na outra.
            - Morto!... - balbuciou. - Morto, assim.. subitamente?
            - Há oito dias - continuou a Sra de Saint-Méran -,  metemo-nos na carruagem depois do jantar. O Sr. de
Saint-Méran havia uns dias que não se sentia bem; no entanto, a idéia de tornar a ver a nossa querida Valentine encorajava-o e, apesar dos seus sofrimentos, insistira em partir. Aconteceu porém que a seis léguas de Marselha foi dominado, depois de tomar as suas pastilhas habituais por um sono tão profundo que
não me pareceu natural. Mesmo assim, hesitava em acordá-lo quando tive a impressão de que o rosto se 
purpureava e as veias das têmporas lhe latejavam mais violentamente do que de costume. No entanto, como anoitecera e não notei mais nada, deixei-o dormir. De repente, soltou um grito abafado e dilacerante como o de um homem que sofre a sonhar, e, num movimento brusco, inclinou a cabeça para trás. Chamei o criado de quarto, mandei parar o postilhão e chamei o Sr. de Saint-Méran, a quem dei a respirar o meu frasco de sais, mas tudo acabara: estava morto e foi ao lado de um cadáver que cheguei a Aix.       
            Villefort permanecia estupefato, de boca aberta.
            - Claro que chamou o médico?...
            - Imediatamente. Mas, como já lhe disse, era demasiado tarde.
            - Sem dúvida. Mas conseguiu ao menos descobrir de que doença morrera o pobre marquês?
            - Meu Deus, senhor, claro que conseguiu! Ele disse-mo: parece que foi uma apoplexia fulminante.
            - E que fez então a senhora?
            - O Sr. de Saint-Méran sempre dissera que se morresse longe de Paris queria que o seu corpo fosse sepultado no jazigo de família. Mandei-o meter num caixão de chumbo e precedo-o de alguns dias.
            - Oh, meu Deus, pobre mãe! - exclamou Villefort. - Tantas canseiras depois de semelhante golpe e na sua idade!
            - Deus deu-me forças até  ao fim. De resto, o querido marquês teria com certeza feito por mim o que fiz por ele. É certo que desde que me separei dele parece-me que enlouqueci. Não consigo chorar. Verdade seja que se diz que na minha idade já não há lágrimas; no entanto, parece-me que quando se sofre tanto se deveria poder chorar. Onde está Valentine, senhor? Foi por ela que viemos; quero ver Valentine.
            Villefort pensou que seria horrível responder que Valentine estava num baile. Por isso, limitou-se a dizer à marquesa que a neta saíra com a madrasta, mas que ia mandar preveni-la.
            - Imediatamente, senhor; imediatamente, suplico-lhe - pediu a velha senhora.
            Villefort tomou o braço da Sra de Saint-Méran e acompanhou-a ao seu quarto.
            - Descanse, minha mãe - recomendou.
            Ao ouvir esta última palavra, a marquesa levantou a cabeça, e ao ver aquele homem, que lhe recordava a filha tão chorada, mas que ressuscitava para ela em Valentine, sentiu-se comovida. Aquele nome de mãe fê-la romper em lágrimas e cair de joelhos junto de uma poltrona, onde escondeu a cabeça venerável.
            Villefort recomendou-a aos cuidados das mulheres, enquanto o velho Barrois subia muito transtornado ao quarto do amo.  Porque nada aterroriza tanto os velhos do que quando a morte se afasta por instantes do seu lado para ir atingir outro velho. Depois, enquanto a Sra de Saint-Méran, sempre ajoelhada, rezava fervorosamente, Villefort mandou chamar uma carruagem de praça e foi ele mesmo buscar a casa da Sra de
Morcerf a mulher e a filha. Estava tão pálido quando apareceu à porta do salão que Valentine correu para ele gritando:
            - Oh, meu pai, aconteceu alguma desgraça?!...
            - A tua avó acaba de chegar, Valentine - respondeu o Sr. de Villefort.
            - E o avô? - perguntou a jovem, muito trêmula. 
            O Sr. de Villefort não respondeu, limitou-se a oferecer o braço à filha.
            Era tempo: Valentine teve uma vertigem e cambaleou; a Sra de Villefort apressou-se a ampará-la e a ajudar o marido a levá-la para a carruagem, ao mesmo tempo que dizia:
            - Que coisa estranha! Quem podia esperar semelhante desgraça? Oh, não há dúvida que é muito estranho!
            E toda aquela família desolada se retirou assim, lançando a sua tristeza, como um véu negro, sobre o resto da festa. À chegada, Valentine encontrou Barrois à sua espera ao fundo da escada.
            - O Sr. Noirtier deseja vê-la esta noite - disse-lhe ele baixinho.
            - Diga-lhe que irei quando sair do quarto da minha avó - respondeu Valentine.
            Na delicadeza da sua alma, a jovem compreendera que quem mais necessitava dela naquele momento era a Sra de Saint-Méran.
            Valentine encontrou a avó na cama. Carícias mudas, dolorosas expansões do coração, suspiros entrecortados, lágrimas escaldantes, eis os únicos pormenores reproduzíveis daquele encontro a que assistiu, pelo braço do marido, a Sra de Villefort, cheia de respeito, pelo menos aparente, para com a pobre viúva.
Passado um instante, inclinou-se ao ouvido do marido e disse-lhe:
            - Com sua licença, acho melhor retirar-me, pois a minha presença parece afligir ainda mais a sua sogra.
            A Sra de Saint-Méran ouviu-a e disse ao ouvido de Valentine:
            - Sim, sim, que vá  embora. Mas você fica, você fica.
            A Sra de Villefort saiu e Valentine ficou sozinha junto do leito da avó, porque o procurador régio, consternado com aquela morte imprevista, seguira a mulher.
            Entretanto, Barrois subira pela primeira vez para junto do velho Noirtier, mas este, que ouvira todo o barulho que se fazia na casa, mandara, como dissemos o velho criado informar-se do que se passava.
No regresso, aqueles olhos tão vivos, e sobretudo tão inteligentes, interrogaram o mensageiro.
            - Valha-nos Deus, senhor! - disse Barrois. - Aconteceu uma grande desgraça: a Sra de Saint-Méran. está aqui e o marido morreu.
            O Sr. de Saint-Méran e Noirtier nunca tinham estado ligados por uma amizade muito profunda, no entanto, sabe-se o efeito que produz sempre num velho o anúncio da morte a outro velho. Noirtier deixou cair a cabeça para o peito, como um homem acabrunhado ou como um homem que pensa, e depois fechou um só
olho.
            - Mademoiselle Valentine? - perguntou Barrois.
            Noirtier fez sinal que sim.
            - Está no baile, como o senhor muito bem sabe, pois veio aqui despedir-se em traje de cerimônia.
            Noirtier voltou a fechar o olho esquerdo.
            - Sim, quer vê-la?
            O velho fez sinal de que era isso que desejava.
            - Decerto vão mandar buscá-la na casa da Sra de Morcerf.  A esperarei no seu regresso e lhe pedirei que suba ao quarto do senhor. É isto?
            - É - respondeu o paralítico. 
            Barrois esperou portanto o regresso de Valentine e, como vimos, expôs-lhe o desejo do avô.
            Em consequência desse desejo, Valentine subiu ao quarto de Noirtier quando saiu do da Sra de Saint-Méran, a qual, apesar de muito agitada, acabara por sucumbir à fadiga e dormia um sono febril.
            Tinham-lhe posto ao alcance da mão uma mesinha com uma garrafa de laranjada, sua bebida habitual, e um copo.
            Como dissemos, a jovem deixou a marquesa para subir ao quarto de Noirtier.
            Valentine beijou o velho, que a olhou tão ternamente que a jovem sentiu brotarem-lhe de novo dos olhos lágrimas cuja fonte julgava esgotada. O velho insistia com o olhar.
            - Sim, sim, quer dizer que continuo a ter um avô, não é? - traduziu Valentine.
            O velho fez sinal de que efetivamente era isso que o seu olhar queria dizer. - De contrário, que seria de mim, meu Deus?
            Era uma hora da madrugada. Barrois, que também tinha vontade de se deitar observou que depois de uma noite tão dolorosa todos precisavam de repouso. O velho não quis dizer que para si o repouso era ver a neta e mandou embora Valentine, a quem efetivamente a dor e a fadiga davam um ar abatido.
            No dia seguinte, quando entrou no quarto da avô, Valentine encontrou-a na cama. A febre não descera; pelo contrário, um fogo sombrio brilhava nos olhos da velha marquesa, que parecia dominada por violenta irritação nervosa.
            - Oh, meu Deus, está pior avozinha?! - exclamou Valentine ao ver todos aqueles sintomas de agitação.
            - Não, minha filha, não - respondeu a Sra de Saint-Méran. - Mas esperava com impaciência que chegasses para mandar chamar o teu pai.
            - O meu pai? - perguntou Valentine, inquieta.
            - Sim, quero falar com ele.
            Valentine não ousou opor-se ao desejo da avó, cuja finalidade ignorava, aliás, e pouco depois Villefort entrou.
            - Senhor - disse a Sra de Saint-Méran sem empregar qualquer circunlóquio, como se receasse que o tempo lhe faltasse -, vamos ao assunto: não me escreveu acerca do casamento desta criança?
            - Escrevi, sim, minha senhora - respondeu Villefort. -  Trata-se até  de mais do que de um projeto, trata-se de uma convenção.
            - O seu futuro genro chama-se Franz de Epinay?
            - Chama, sim, minha senhora.
            - E é filho do general de Epinay, que era dos nossos e foi assassinado poucos dias antes de o usurpador regressar da ilha de Elba?
            - Exatamente.
            - Essa aliança com a neta de um jacobino não lhe repugna?
            - As nossas dissensões sociais acabaram-se, felizmente, minha mãe - perguntou Villefort. O Sr. de Epinay era quase uma criança quando o pai morreu; conhecia muito mal o Sr. Noirtier e vê-lo-á, senão com prazer, pelo menos com indiferença.
            - É um partido vantajoso?
            - Sob todos os aspectos.
            - O rapaz...
            - Goza da consideração geral. 
            - E é decente?
            - É um dos homens mais distintos que conheço.
            Valentine permaneceu calada durante toda esta conversa.
            - Pois bem, senhor - disse a Sra de Saint-Méran. após alguns segundos de reflexão –, é melhor despachar-se porque me resta pouco tempo de vida.
            - A senhora?! A avozinha ?! - exclamaram o Sr. de Villefort e Valentine.
            - Sei o que digo - prosseguiu a marquesa. - Portanto, despachem-se, para que, já que não tem mãe, ela tenha ao menos a avó para lhe abençoar o casamento. Sou a única pessoa que lhe resta do lado da minha pobre Renée, que o senhor esqueceu tão depressa...
            - Minha senhora, esquece-se de que era preciso dar uma mãe a esta pobre criança, que já a não tinha! - protestou Villefort.
            - Uma madrasta nunca é uma mãe, senhor! Mas não é disso que se trata agora, trata-se de Valentine. Deixemos os mortos sossegados.
            Tudo isto era dito com tal volubilidade e tal tom que havia qualquer coisa neste diálogo que se assemelhava a um princípio de delírio.
            - Será feita a sua vontade, minha senhora - disse Villefort –, e com tanto mais prazer quanto é certo a sua vontade estará de acordo com a minha. Assim que o Sr. de Epinay chegar a Paris...
            - Minha boa avozinha - interveio Valentine –, as conveniências, o luto tão recente... Desejaria fazer um
casamento sob tão tristes auspícios?
            - Minha filha - interrompeu-a vivamente a avó -, deixemo-nos dessas razões vulgares que impedem os espíritos fracos de construir solidamente o futuro. Também casei no leito de morte da minha mãe e não fui decerto infeliz por isso.
            - Outra vez essa idéia de morte, senhora! - ralhou Villefort.
            - Outra vez! Sempre!... Repito-lhe que vou morrer, ouviu?  Pois antes de morrer quero ver o seu futuro genro; quero ordenar-lhe que faça a minha neta feliz; quero ler-lhe nos olhos se tenciona obedecer-me; quero conhecê-lo, enfim! - exclamou a avó com uma expressão aterradora. - E isto para o vir procurar do fundo da minha sepultura se não se portar como deve ser, se não for como tem de ser!
            - Minha senhora - perguntou Villefort –, deve afastar de si essas idéias exaltadas, que raiam quase a loucura. Os mortos, uma vez deitados no seu túmulo, aí dormem eternamente.
            - Sim, sim, minha boa avozinha, sossega! - secundou-o Valentine.
            - E eu, senhor, digo-lhe que as coisas não se passam nada assim, como julga. Esta noite dormi um sono terrível; de certo modo, via-me a mim própria a dormir, como se a minha alma já  pairasse sobre o meu corpo. Os meus olhos, que me esforçava por abrir, fechavam-se, mal-grado meu. E no entanto sei muito bem que isto lhes parece impossível, sobretudo ao senhor... Pois bem, de olhos fechados vi, exatamente no lugar onde o senhor está, vinda desse canto onde há uma porta que dá para o quarto de vestir da Sra de Villefort, vi entrar sem ruído uma forma branca...
            Valentine soltou um grito.
            - Era a febre que a agitava, minha senhora - disse Villefort.
            - Duvide se quiser, mas tenho a certeza do que digo: vi uma forma branca. E como se Deus receasse que recusasse o testemunho de um só dos meus  sentidos, ouvi mexer no meu copo... olhe, olhe, neste mesmo que está aqui, em cima da mesa!
            - Oh, avozinha, era um sonho!...
            - Era tão pouco um sonho que estendi a mão para a campainha e, quando fiz este gesto, a sombra desapareceu. A criada de quarto entrou então com uma luz. Os fantasmas só se mostram àqueles que os devem ver: era a alma do meu marido. Pois bem, se a alma do meu marido volta para me chamar, porque não há-de a minha alma voltar para defender a minha neta? O parentesco é ainda mais direto, parece-me.
            - Então, minha senhora, não dê largas a essas idéias lúgubres - aconselhou Villefort, agitado, a seu pesar, até  ao mais íntimo de si mesmo. - Viverá conosco, viverá durante muito tempo feliz, amada, respeitada, e a faremos esquecer...
            - Nunca, nunca, nunca! - ripostou a marquesa. - Quando regressa o Sr. de Epinay?
            - Esperamo-lo de um momento para o outro.
            - Está bem. Assim que ele chegar, avisem-me. Despachemo-nos, despachemo-nos! Depois, quero também falar com um tabelião, para me assegurar de que todos os nossos bens revertem a favor de Valentine.
            - Então, avó, quer que eu morra também? - murmurou Valentine, pousando os lábios na testa escaldante da marquesa. - Meu Deus, está com febre! Não é um tabelião que se deve mandar chamar, é um médico!
            - Um médico? - repetiu a doente, encolhendo os ombros. - Não me dói nada: só tenho sede.
            - Que quer beber, avozinha?
            - Como sempre, bem sabes, a minha laranjada. O copo está em cima da mesa. Valentine.
            Valentine deitou a laranjada da garrafa no copo e pegou-lhe com certo terror para o dar à avó, visto ser o mesmo copo que, segundo ela, fora tocado pela sombra.
            A marquesa despejou o copo de um só golo. Depois, virou-se na almofada e insistiu:
            - O tabelião, o tabelião!...
            O Sr. de Villefort saiu. Valentine sentou-se ao pé da cama da avó. A pobre criança parecia ela própria muito necessitada do médico que recomendara à avó. Um rubor idêntico a uma chama queimava-lhe as faces, tinha a respiração opressa e arquejante e o pulso batia-lhe como se tivesse febre.
            É que ela pensava, a pobre criança, no desespero de Maximilien quando soubesse que a Sra de Saint-Méran, em vez de ser uma aliada, procedia, sem o saber, como se fosse uma inimiga.
            Por mais de uma vez Valentine pensara em dizer tudo à avó, e não teria hesitado um só instante se Maximilien Morrel se chamasse Albert de Morcerf ou Raoul de Château-Renaud. Mas Morrel era de origem plebéia e Valentine sabia o desprezo que a orgulhosa marquesa de Saint-Méran nutria por todos aqueles
que não fossem da sua linhagem O seu segredo fora portanto, em todos os momentos em que estivera prestes a ser revelado, contido no seu coração pela triste certeza de que o confiaria inutilmente e de que, uma vez esse segredo conhecido do pai e da madrasta, tudo estaria perdido. 
            Passaram-se assim cerca de duas horas. A Sra de Saint-Méran dormia um sono febril e agitado. Anunciaram o tabelião. Embora o anúncio tivesse sido feito muito baixo, a Sra de Saint-Méran soergueu-se na almofada.
            - O tabelião?... Que venha, que venha! - ordenou.
            O tabelião estava à porta e entrou.
            - Sai, Valentine, deixa-me sozinha com este senhor - disse a Sra de Saint-Méran.
            - Mas, avó...
            - Vai, vai.
            A jovem inclinou a cabeça diante da avó e saiu com o lenço nos olhos. Encontrou à porta um criado que lhe disse que o médico esperava na sala.
            Valentine desceu rapidamente. o médico era um amigo da família e ao mesmo tempo um dos homens mais competentes da época. Gostava muito de Valentine, que vira nascer. Tinha uma filha pouco mais ou menos da idade de Mademoiselle de Villefort, mas nascida de mãe tuberculosa. O médico vivia pois num temor permanente em relação à filha.
            - Oh, meu caro Sr. de Avrigny, não imagina com que impaciência o esperávamos! - exclamou Valentine. - Mas antes de mais nada como estão Madeleine e Antoinette?
            Madeleine era a filha do Sr. de Avrigny e Antoinette, sua sobrinha. O Sr. de Avrigny sorriu tristemente.
            - Antoinette está ótima e Madeleine assim-assim -  respondeu. - Mandou-me chamar, querida filha? Mas nem o seu pai nem a Sra de Villefort estão doentes... Quanto a nós, embora seja visível que não conseguimos livrar-nos dos nossos nervos, não vejo que tenha necessidade de mim, a não ser para lhe
recomendar que não dê demasiadas largas à sua imaginação...
            Valentine corou. O Sr. de Avrigny possuía a ciência da adivinhação quase até  ao prodígio, pois era um desses médicos que tratam sempre o físico através do moral.
            - Não é para mim, é para a minha pobre avó - esclareceu a jovem. - já sabe a desgraça que nos aconteceu, não sabe?
            - Não sei nada - respondeu o Sr. de Avrigny.
            - O meu avô morreu - informou Valentine, contendo os soluços.
            - O Sr. de Saint-Méran?
            - Sim.
            - Subitamente?
            - De um ataque de apoplexia fulminante.
            - De uma apoplexia? - repetiu o médico.
            - Sim. De forma que a minha pobre avó se aferrou à idéia de que o marido, de quem nunca se separou, a chama e de que se lhe deve ir juntar... Oh, Sr. de Avrigny, recomendo-lhe muito a minha pobre avó!
            - Onde está ela?
            - No seu quarto com o tabelião.
            - E o Sr. Noirtier?
            - Sempre na mesma: uma lucidez de espírito perfeita, mas a mesma imobilidade, o mesmo mutismo.
            - E o mesmo amor por si, não é verdade, minha querida filha?
            - É - respondeu Valentine, suspirando. - Ama-me de fato muito.
            - Quem não a amaria?
            Valentine sorriu tristemente.
            - E que sente a sua avó?
            - Uma excitação nervosa singular, um sono agitado e estranho. Esta manhã pretendia que enquanto dormia a alma lhe pairava por cima do corpo, que via a dormir. Delírio, claro. Afirma ter visto um fantasma entrar-lhe no quarto e ter ouvido o barulho que fazia o pretenso fantasma a mexer-lhe no copo.
            - É singular, não sabia que a Sra de Saint-Méran, fosse sujeita a alucinações... - disse o médico.
            - Foi a primeira vez que a vi assim - respondeu Valentine e esta manhã até  me assustou muito; julguei que tivesse enlouquecido. No entanto, mesmo o meu pai, Sr. de Avrigny (o meu pai, que o senhor conhece bem como um espírito ponderado), até o meu próprio pai me pareceu impressionadíssimo.
            - Havemos de ver isso - declarou o Sr. Avrigny. - O que me diz parece-me estranho...
            O tabelião descia. Vieram prevenir Valentine de que a avó estava sozinha.
            - Suba - disse ela ao médico.
            - E a menina?
            - Oh, eu não me atrevo! Ela tinha-me proibido de mandar chamá-lo... Depois como o senhor diz, eu própria estou agitada, febril, mal disposta... Vou dar uma volta pelo jardim para me recompor.
            O médico apertou a mão a Valentine e enquanto ele subia ao quarto da marquesa, a jovem descia a escadaria da entrada.
            Desnecessário indicar que parte do jardim constituía o passeio favorito de Valentine. Depois de dar duas ou três voltas na parte que rodeava a casa e de colher uma rosa para pôr na cintura ou no cabelo, embrenhava-se na alameda sombria que levava ao banco e do banco ao portão.
            Desta vez, como de resto era seu hábito, Valentine deu duas ou três voltas no meio das suas flores, mas sem colher nenhuma. O luto do seu coração, que ainda não tivera tempo de se estender à sua pessoa, repudiava aquele simples ornamento. Depois dirigiu-se para a sua alameda. à medida que avançava
parecia-lhe ouvir uma voz pronunciar o seu nome. Parou surpreendida.
            Então, a voz chegou-lhe mais distinta aos ouvidos e reconheceu a voz de Maximilien.


Capítulo LXXIII


A promessa


            Era efetivamente Morrel, que desde a véspera não sossegava. Com o instinto peculiar aos apaixonados e às mães, adivinhara que depois do regresso da Sra de Saint-Méran e da morte do marquês se passaria qualquer coisa  em casa de Villefort que interessaria ao seu amor por Valentine. 
            Como vamos ver, os seus pressentimentos tinham-se concretizado e já não era uma simples inquietação que o trazia, sobressaltado e trêmulo, ao portão dos castanheiros. Mas Valentine não estava prevenida de que Morrel a esperava, pois habitualmente ele não vinha àquela hora, e foi por mero acaso ou, se se preferir, por feliz coincidência que a jovem desceu ao jardim. Quando apareceu, Morrel chamou-a e ela
correu para o portão.
            - O senhor a esta hora? - admirou-se.
            - Sim, pobre amiga - respondeu Morrel. - Venho buscar e trazer más notícias.
            - Nesse caso, estamos na casa da desgraça - observou Valentine. - Fale, Maximilien. Mas na verdade a soma de sofrimentos é já mais do que suficiente.
            - Querida Valentine - começou Morrel, procurando conter a sua própria emoção para falar convenientemente –, ouça-me com atenção, suplico-lhe, porque tudo o que lhe vou dizer é solene. Quando conta casar?
            - Escute - disse por sua vez Valentine. - Não quero esconder-lhe nada, Maximilien. Esta manhã falou-se do meu casamento, e a minha avó, com quem contava como um apoio que me não faltaria, não só se declarou a favor do casamento, como ainda o deseja a tal ponto que só o fato de o Sr. de Epinay estar ausente o atrasa. Mas no dia seguinte ao da sua chegada o contrato será assinado.
            Um doloroso suspiro saiu do peito do rapaz, que olhou longa e tristemente a jovem.
            - Meu Deus - perguntou em voz baixa –, é horrível ouvir dizer tranquilamente à mulher que se ama: “O momento do seu suplício está marcado; terá lugar dentro de poucas horas. Mas não importa, tem de ser assim e pela minha parte não lhe levantarei nenhuma oposição." Pois bem, uma vez que, segundo diz, só se espera a chegada do Sr. de Epinay para assinar o contrato e a Valentine será dele no dia seguinte ao da
chegada, será já amanhã que pertencerá ao Sr. de Epinay, pois ele chegou a Paris esta manhã.
            Valentine soltou um grito.
            - Encontrava-me em casa de Monte-Cristo há uma hora - disse Morrel. - Conversávamos, ele a respeito do luto desta casa e eu acerca do luto de Valentine, quando de súbito rodou uma carruagem no pátio. Ouça: até  ali não acreditava em pressentimentos, Valentine; mas agora sou forçado a acreditar. O ruído daquela carruagem arrepiou-me; pouco depois ouvi passos na escada. Os passos sonoros do comendador não
apavoraram mais D. João do que me apavoraram aqueles passos. Por fim, a porta abriu-se. Albert de Morcerf entrou à frente e eu ia a duvidar de mim mesmo, ia crer que me enganara, quando atrás dele apareceu outro rapaz e o conde gritou: “Ah, o Sr. Barão Franz de Epinay!" Para me conter, apelei para tudo o que possuo de energia e coragem no coração. Talvez tenha empalidecido, talvez tenha tremido; mas sem dúvida nenhuma fiquei de sorriso nos lábios. No entanto, passados cinco minutos sai sem ter ouvido uma palavra do que se disse durante esses cinco minutos. Estava aniquilado.
            - Pobre Maximilien! - murmurou Valentine.
            - Aqui tem, Valentine. Agora responda-me como a um homem a quem a sua resposta dará a morte ou a vida: que conta fazer?
            Valentine baixou a cabeça; estava acabrunhada. 
            - Ouça - disse Morrel –, não é a primeira vez que pensa na situação em que nos encontramos. É uma situação grave, penosa, suprema. Não creio que seja este o momento para nos entregarmos a uma dor estéril; isso é bom para aqueles que sentem prazer em sofrer e beber as suas lágrimas resignadamente. Há pessoas assim e Deus lhes terá sem dúvida em conta no Céu a sua resignação na terra. Mas todo aquele que
sinta vontade de lutar não perde um tempo precioso e retribui imediatamente ao destino o golpe que dele recebeu. Está disposta a lutar contra a adversidade, Valentine? Responda, pois é isso que lhe venho pedir.
            Valentine estremeceu e cravou em Morrel uns grandes olhos assustados. A idéia de resistir ao pai, à avó, a toda a família, enfim, nem sequer lhe ocorrera.
            - Que me diz, Maximilien? - perguntou Valentine. - A que chama luta? Oh, isso é um sacrilégio! O quê, eu lutar contra a ordem de meu pai, contra a vontade de minha avó moribunda?! É impossível!
            Morrel fez um movimento.
            - O senhor é um coração demasiado nobre para me não compreender, e compreende-me muito bem, querido Maximilien, pois vejo-o calado. Lutar, eu? Deus me livre! Não, não. Guardo toda a minha energia para lutar contra mim mesma e beber as minhas lágrimas, como o senhor diz. Quanto a afligir meu pai, quanto a perturbar os últimos momentos da minha avó, nunca!
            - Tem toda a razão - respondeu fleumaticamente Morrel.
            – Como o senhor me diz isso, meu Deus! - exclamou Valentine, magoada.
            - Digo-lhe isto como um homem que a admira, menina - acrescentou Maximilien.
            - Menina! - exclamou Valentine. - Menina! Oh, o egoísta, não vê o meu desespero e finge não me compreender!
            - Engana-se. Pelo contrário, compreendo-a perfeitamente. Não quer contrariar o Sr. de Villefort nem quer desobedecer à marquesa e amanhã assinará o contrato que a ligará ao seu marido.
            - Mas, meu Deus, posso porventura fazer outra coisa?
            - Não apele para mim, menina, pois sou um mau juiz nessa causa e o meu egoísmo me cegarà - respondeu Morrel, cuja voz abafada e os punhos cerrados denotavam exasperação crescente.
            - Que me proporia, Morrel, se me encontrasse disposta a aceitar a sua proposta? Vamos, responda. Não basta dizer que faço mal, é preciso dar um conselho.
            - Diz-me isso seriamente, Valentine? Quer de fato que a aconselhe? Responda.
            - Decerto, querido Maximilien, porque se o conselho for bom, o seguirei. Bem sabe que tenho em alta conta a sua opnião.
            - Valentine - disse Morrel, acabando de afastar uma tábua solta –, dê-me a sua mão como prova de que me perdoa a minha irritação. Como vê, estou com a cabeça num caos e há uma hora que as idéias mais disparatadas me atravessam o espírito. Oh, no caso de recusar o meu conselho!...
            - Venha esse conselho.
            - Aqui o tem, Valentine.
            A jovem ergueu os olhos ao céu e soltou um suspiro.
            - Sou livre - prosseguiu Maximilien - e suficientemente rico para nós dois. Juro-lhe que será minha mulher antes de os meus lábios lhe pousarem na testa.
            - O senhor me assusta - disse a jovem.
            - Venha comigo - continuou Morrel. - A levarei para casa da minha irmã, que é digna de ser sua irmã.
Embarcaremos para Argel, para Inglaterra ou para a América, se não preferir que nos retiremos para qualquer província e aí esperaremos, para regressar a Paris, que os nossos amigos vençam a resistência da sua família.
            Valentine abanou a cabeça.
            - Já o esperava, Maximilien - disse. - É um conselho de insensato e eu seria ainda mais insensata do que o senhor se o não detivesse imediatamente com esta simples palavra: impossível, Morrel, impossível.
            - Seguirá portanto o seu destino tal como o acaso o traçar  e sem sequer tentar combatê-lo? - perguntou Morrel, contristado.
            - Seguirei. Nem que tenha de morrer por isso!
            - Está bem, Valentine - admitiu Maximilien. - Repito-lhe mais uma vez que tem razão. De tato, eu é que sou um louco, enquanto a Valentine me prova que a paixão cega os espíritos mais justos. Obrigado, portanto, a si que raciocina sem paixão. Pronto, o caso está arrumado: amanhã será irrevogavelmente prometida ao Sr. Franz de Epinay, não por via dessa formalidade teatral inventada para desenlace das comédias, e que se chama a assinatura do contrato, mas sim por sua própria vontade.
            - Mais uma vez me desespera, Maximilien! - perguntou Valentine. - Mais uma vez revolve o punhal na chaga? Diga-me, que faria se a sua irmã escutasse um conselho como o que acaba de me dar?
            - Menina  - respondeu Morrel, com um sorriso amargo. - Sou um egoísta, como disse, e na minha qualidade de egoísta não penso no que fariam os outros na minha posição, mas sim no que conto fazer eu. Penso que a conheço há um ano e que, desde o dia em que a conheci, depositei todas as minhas oportunidades de felicidade no seu amor; que chegou um dia em que me disse que me amava; que nesse dia colocaria todas as minhas esperanças de futuro na sua posse. Era a minha vida. Agora não penso em mais nada; digo apenas para comigo que a sorte mudou, que esperava ganhar o Céu e o perdi. Isto acontece todos os dias, quando um jogador perde não só o que tem, mas também o que não tem.
            Morrel pronunciou estas palavras com uma calma perfeita. Valentine fitou-o um instante com os seus grandes olhos perscrutadores, procurando não deixar que os de Morrel penetrassem até  à agitação que lhe turbilhonava já no fundo do coração.
            - Mas enfim, que vai fazer? - perguntou Valentine.
            - Vou ter a honra de lhe dizer adeus, menina, tomando como testemunha Deus, que escuta as minhas palavras e lê no fundo do meu coração, de que lhe desejo uma vida bastante calma, bastante feliz e bastante cheia para que nela não haja lugar para a minha recordação.
            - Oh! - murmurou Valentine.
            - Adeus, Valentine, adeus! - disse Morrel, inclinando-se. 
            - Aonde vai? - gritou ela, estendendo a mão através das grades e agarrando Maximilien pela sobrecasaca, pois compreendia pela sua agitação interior que a calma do seu apaixonado não podia
ser verdadeira. - Aonde vai?
            - Vou providenciar para não trazer nova perturbação à sua família e dar um exemplo que poderão seguir todos os homens honestos e dedicados que se encontrarem na minha situação.
            - Antes de me deixar, diga-me o que vai fazer, Maximilien.
            O jovem sorriu tristemente.
            - Oh, fale, fale, suplico-lhe! - pediu Valentine.
            - A sua resolução mudou, Valentine?
            - Não pode mudar, infeliz! Sabe isso muito bem! - gritou a jovem.
            - Então, adeus, Valentine!
            Valentine abanou o portão com uma força de que ninguém a julgaria capaz. E como Morrel se afastasse, passou as mãos através das grades e juntou-as, torcendo os braços.
            - Que vai fazer? Quero saber! - gritou. - Aonde vai?
            - Oh, esteja tranquila! - respondeu Maximilien, parando a três passos do portão. - Não tenho intenção de tomar outro homem responsável pelos rigores que o destino me reserva. Outro a ameaçaria, de ir procurar o Sr. Franz, de o provocar e de se bater com ele, mas tudo isso seria insensato. Qual é o papel do Sr. Franz no meio de tudo isto? Viu-me esta manhã pela primeira vez e já esqueceu que me viu. Nem sequer sabia da minha existência aquando das convenções estabelecidas entre as suas duas famílias, em que ficou decidido que seriam um para o outro. Não tenho portanto nada a ver com o Sr. Franz e juro-lhe que o não irei desafiar nem acusar de nada.
            - Em quem se vingar  então? Em mim?
            - Em si, Valentine? Oh, não, Deus me defenda! A mulher é sagrada, e a mulher que se ama é santa.
            - Em si mesmo, então, desgraçado, em si mesmo?
            - Não sou eu o culpado? - observou Morrel.
            - Maximilien - disse Valentine –, Maximilien, venha cá, ordeno-lho!
            Maximilien aproximou-se com o seu sorriso meigo, e se não fosse a sua palidez, se poderia julgá-lo no seu estado normal.
            - Ouça, minha querida, minha adorada Valentine - disse na sua voz melodiosa e grave –, as pessoas como nós, que nunca tiveram um pensamento de que tivessem de corar diante de ninguém, perante os seus pais e perante Deus, as pessoas como nós podem ler no coração um do outro como num livro aberto. Nunca armei em romântico, não sou um herói melancólico, nem tomo atitudes de Manfredo nem de Antony. Mas sem palavras, sem protestos, sem juramentos, dei-lhe a minha vida. Falta-me e tem motivo para proceder assim, já lho disse e repito-lho. Mas enfim, perco-a e a minha vida está perdida. A partir do momento em que se afastar de mim, Valentine, ficarei sozinho no mundo. A minha irmã é feliz com o marido, um marido que para mim não passa de um cunhado, isto é, de um homem ligado a mim apenas pelas convenções sociais. Ninguém necessita portanto de mim neste mundo, a minha existência é inútil. Eis o que farei: esperarei até  ao último segundo que esteja casada, pois não quero perder a sombra de uma dessas probabilidades inesperadas que às vezes nos reserva o acaso, porque, enfim, daqui até lá o Sr. Franz de Epinay pode morrer, no momento em que se  aproximarem um raio pode cair sobre o altar... Tudo parece crível ao condenado à morte e para ele os milagres entram na classe do possível desde que se trate da salvação da sua vida. Esperarei pois, repito, até  ao derradeiro momento, e quando a minha infelicidade for certa, irremediável, sem esperança, escreverei uma carta confidencial ao meu cunhado e outra ao prefeito da Polícia para o pôr ao
corrente das minhas intenções, e num recanto de qualquer bosque, à beira de qualquer fosso, na margem de qualquer rio, farei saltar os miolos, tão certo como eu ser filho do homem mais honesto que alguma vez viveu na França.
            Um tremor convulso agitou os membros de Valentine. Largou o portão, que segurava com ambas as mãos, os braços caíram-lhe ao longo do corpo e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. O rapaz ficou diante dela, sombrio e resoluto.
            - Oh, por piedade, por piedade! - exclamou Valentine. -  Viverá, não é verdade?
            - Palavra de honra que não - respondeu Maximilien. -  Mas que lhe interessa isso? Cumprirá o seu dever e ficará com a consciência tranquila.
            Valentine caiu de joelhos e comprimiu o coração, que parecia querer rebentar-lhe.
            - Maximilien - disse –, Maximilien, meu amigo, meu irmão na Terra, meu verdadeiro esposo no Céu, suplico-te que faças, como eu, que vivas com o sofrimento. Talvez um dia nos juntemos...
            - Adeus, Valentine! - repetiu Morrel.
            - Meu Deus - disse Valentine, erguendo as mãos ao céu com uma expressão sublime -, bem vê que fiz tudo o que podia para me conservar filha submissa: pedi, supliquei, implorei, mas ele não ouviu nem os meus pedidos, nem as minhas súplicas, nem as minhas lágrimas. Pois bem -  continuou, enxugando as lágrimas
e recuperando a sua firmeza –, não quero morrer de remorsos, prefiro morrer de vergonha. Viverá, Maximilien, e não serei de ninguém a não ser de si. A que horas? Em que momento? Imediatamente? Fale, ordene, estou pronta.
            Morrel, que dera de novo alguns passos para se afastar, voltou para trás e, pálido de alegria, com o coração dilatado, estendeu através das grades as mãos a Valentine.
            - Valentine - disse –, querida amiga, não me fale assim ou então terei de me deixar morrer. Por que motivo a deveria à violência, se me ama como a amo? Quer obrigar-me a viver apenas por humanidade? Nesse caso, prefiro morrer.
            - Na verdade - murmurou Valentine –, quem é que me ama no mundo? Ele. Quem me tem confortado em todos os meus sofrimentos? Ele. Em quem deposito as minhas esperanças, em quem se fixa o meu olhar transviado, em que descansa o meu coração ensanguentado? Nele, nele, sempre nele. Pois bem, tem também razão, Maximilien: te seguirei, deixarei a casa paterna, tudo. Oh, como sou ingrata! -  exclamou Valentine, soluçando. - Tudo... até  do meu avô me esquecia!
            - Não - atalhou Maximilien –, não o deixarás. Disse-me que o Sr. Noirtier pareceu manifestar simpatia por mim. Pois antes de fugir conte-lhe tudo, fará do seu consentimento um escudo perante Deus. Depois, assim que casarmos, irá viver conosco. Em vez de um neto terá dois. Disseste-me como te falava e como lhe respondias, depressa aprenderei essa linguagem  comovente de sinais, Valentine. Oh, juro-te que em vez do desespero que nos espera é a felicidade que te prometo!
            - Repara, Maximilien, repara como é grande a tua influência sobre mim... Quase me faz acreditar no que me diz, e no entanto o que me diz é insensato, pois o meu pai me amaldiçoará. Conheço-lhe o coração inflexível e sei que nunca me perdoará. Por isso, escute-me, Maximilien: se por artifício, por súplica ou por acidente, sei lá... Se, enfim, por qualquer meio conseguir adiar o casamento, esperará por mim?
            - Esperarei, juro-o, desde que me jures também que esse horrível casamento não se realizará  e que, ainda que te arrastem perante o magistrado, perante o padre, dirá não.
            - Juro, Maximilien, pelo que tenho de mais sagrado no mundo, pela memória da minha mãe!
            - Esperemos então - disse Morrel.
            - Sim, esperemos - repetiu Valentine, que respirou ao ouvir esta palavra. - há tantas coisas que podem salvar infelizes como nós.
            - Confio em ti, Valentine - acrescentou Morrel. - Tudo o que fizer estará bem feito. No entanto, se não fizerem caso das suas súplicas, se o teu pai e a Sra de Saint-Méran exigirem que o Sr. Franz de Epinay seja chamado amanhã para assinar o contrato...
            - Nesse caso, tem a minha palavra, Morrel.
            - Em vez de assinar...
            - Virei ter contigo e fugiremos. Mas entretanto não tentemos Deus, Morrel; não nos vejamos. E um milagre que ainda não nos tenham surpreendido, uma graça da Providência. Se nos surpreendessem, se soubessem como nos encontramos, estaria tudo perdido.
            - Tem razão, Valentine. Mas como saber...
            - Pelo tabelião, o Sr. Deschamps.
            - Conheço-o.
            - E por mim mesma. Te escreverei, acredite. Meu Deus, este casamento Maximilien, me é tão odioso como a você!
            - Ainda bem, ainda bem! Obrigado, minha Valentine. Adorada - disse Morrel. - está tudo combinado, então: assim que souber a hora, correrei aqui, transporá este muro nos meus braços, o que não será  difícil, uma carruagem te esperará a porta da cerca, subirá para ela comigo e te levarei para casa da minha irmã. Lá, incógnitos, se quiser, ou abertamente, se o desejar, teremos a consciência da nossa força e da nossa vontade e não nos deixaremos degolar como o cordeiro que só se defende com os seus balidos.
            - Seja - concordou Valentine. - Por minha vez, digo-te: Maximilien, o que fizer estará bem feito.
            - Oh!...
            - Então, está contente com a tua mulher? - perguntou tristemente a jovem.
            - Minha Valentine adorada, é bem pouco dizer que sim.
            - Diz sempre.
            Valentine aproximara-se, ou antes, aproximara os lábios da grade, e as suas palavras deslizavam, com o seu hálito perfumado, até aos lábios de Morrel, que colava a boca do outro lado do frio e inexorável tapume. 
            - Adeus! - despediu-se Valentine, arrancando-se àquele enleio.
            - Adeus!
            - Me escreverá?
            - Sim.
            - Obrigado, querida mulher! Adeus.
            Ouviu-se o ruído de um beijo inocente e perdido e Valentine fugiu por baixo das tílias.
            Morrel escutou os últimos ruídos do seu vestido ao roçar na vegetação e dos seus pés a fazerem ranger o saibro, ergueu os olhos ao céu com um sorriso inefável para agradecer a Deus permitir-lhe ser amado assim, e desapareceu por seu turno.
            O rapaz regressou a casa e esperou durante todo o resto da noite e durante todo o dia seguinte sem receber nada. Por fim, dois dias depois, por volta das dez horas da manhã, quando se preparava para ir procurar o Sr. Deschamps, o tabelião, recebeu pelo correio um bilhetinho que reconheceu ser de Valentine,
embora nunca lhe tivesse visto a letra. Era concebido nestes termos:

            Lágrimas, suplicas, rogos, nada conseguiram. Ontem, estive durante duas horas na Igreja de S. Filipe do Roule, e durante essas duas horas pedi a Deus do fundo da alma. Mas Deus mostra-se insensível como os homens e a assinatura do contrato está marcada para esta noite às nove horas.
            Só tenho uma palavra, tal como só tenho um coração, Morrel; e essa palavra dei-ta. Quanto ao coração, é teu!
            Portanto esta noite, às nove horas menos um quarto, te espero no portão.
            Tua mulher,
            Valentine de Villefort.
            P.S. - A minha pobre avó vai de mal a pior. Ontem, a sua exaltação transformou-se em delírio; hoje, o seu delírio é quase loucura.
            Me amará muito, não é verdade, Morrel, para me esquecer de que a deixarei neste estado?
            Creio que escondem ao avô Noirtier que a assinatura do contrato está marcada para esta noite.

            Morrel não se contentou com as informações que lhe dava Valentine. Foi a casa do tabelião, que lhe confirmou a notícia de que a assinatura do contrato estava marcada para as nove horas da noite.
            Em seguida passou por casa de Monte-Cristo e foi lá que soube o resto: Franz viera anunciar a cerimônia; pela sua parte, a Sra de Villefort escrevera ao conde pedindo-lhe desculpa por o não convidá-lo, mas a morte do Sr. de Saint-Méran e o estado em que se encontrava a viúva lançavam sobre a reunião um véu de tristeza, que não queria nublasse a fronte do conde, a quem desejava as maiores felicidades.
            Na véspera, Franz fora apresentado à Sra de Saint-Méran, que deixara o leito para essa apresentação e para ele voltara imediatamente. 
            Como é fácil de compreender, Morrel encontrava-se num estado de agitação que não podia escapar a um olhar tão penetrante como era o do conde. Por isso, Monte-Cristo foi para com ele mais afetuoso do que nunca; tão afetuoso que por duas ou três vezes Maximilien esteve prestes a contar-lhe tudo. Recordou-se, porém, da promessa formal feita a Valentine e o seu segredo permaneceu-lhe no fundo do coração.
            O jovem releu vinte vezes durante o dia a carta de Valentine. Era a primeira vez que ela lhe escrevia e logo naquelas circunstâncias. Todas as vezes que relia a carta, Maximilien renovava a si mesmo o juramento de tornar Valentine feliz. Com efeito, que autoridade não tem a moça que toma uma resolução tão corajosa! Que dedicação não merece da parte daquele a quem tudo sacrifica! Como deve ser realmente para o seu apaixonado o primeiro e mais digno objeto do seu culto! É simultaneamente rainha e mulher e um coração não basta para lhe agradecer e para a amar.
            Morrel pensava com inexprimível agitação no momento em que Valentine chegaria e diria: “Aqui estou, Maximilien, sou tua!"
            Organizara pormenorizadamente a fuga: escondera duas escadas na luzerna do cercado; esperava-os um cabriolé, que o próprio Maximilien conduziria; nada de criados, nada de luzes; só virada a esquina da primeira rua acenderiam as lanternas, a fim de evitarem, por um excesso de precauções, cair nas mãos da Polícia.
            De vez em quando todo o corpo de Morrel era percorrido por arrepios. Pensava no momento em que, do alto do muro, protegeria a descida de Valentine e em que sentiria trêmula e abandonada nos seus braços aquela a quem nunca apertara mais do que a mão e beijara a ponta dos dedos. Mas quando chegou a tarde, quando Morrel sentiu aproximar-se a hora, experimentou a necessidade de estar só. O sangue fervia-lhe, as simples perguntas ou até  apenas a voz de um amigo o teriam irritado. Fechou-se no seu quarto e tentou
ler; mas o seu olhar deslizou pelas páginas sem nada compreender do que nelas estava escrito, e acabou por largar o livro para voltar a desenhar pela segunda vez o seu plano, as suas escadas e o seu terreno.
            Por fim a hora aproximou-se.
            Nunca um homem deveras apaixonado deixou os relógios marcarem tranquilamente o tempo. Morrel atormentou de tal forma os seus que eles acabaram por marcar oito e meia às seis horas. Disse então para consigo que era tempo de ir, que nove horas era efetivamente a hora da assinatura do contrato, mas que
segundo todas as probabilidades, Valentine não esperaria por essa assinatura inútil, e depois de tudo isto Morrel cometeu a proeza de partir da Rua Meslay às oito e meia no seu relógio de sala e entrar no cercado quando davam oito horas em S. Filipe do Rouie!
            Cavalo e cabriolé foram escondidos atrás de um casebre em ruínas, em que Morrel costumava abrigar-se. Pouco a pouco anoiteceu e as folhagens do jardim transformaram-se em frondosos tufos de um negro opaco.
            Morrel saiu então do casebre e foi espreitar, com o coração palpitante, pelo buraco do portão. Não havia ainda ninguém. Soaram oito e meia. 
            Passou mais meia hora. Morrel passeava de um lado para o outro, e a intervalos cada vez mais curtos espreitava pelas tábuas. O jardim escurecia de momento a momento, mas nas trevas em vão se procuraria o vestido branco de Valentine e no silêncio inutilmente se tentaria distinguir o ruído dos seus passos.
            A casa, que se divisava através da folhagem, permanecia às escuras e não apresentava nenhuma das características de uma casa que se abre para um acontecimento tão importante como é a assinatura de um contrato de casamento.
            Morrel consultou o seu relógio, que marcava nove horas e três quartos; mas quase imediatamente a mesma voz do relógio já ouvida duas ou três vezes rectificou o erro do relógio de bolso batendo nove e meia.
            Passava já meia hora da que a própria Valentine marcara: ela dissera nove horas, para menos, que não para mais. Aquele foi o momento mais terrível para o coração do rapaz, no qual cada segundo caía como um martelo de chumbo.
            O mais tênue ruído da folhagem, o mais pequeno sopro do  vento faziam-no apurar o ouvido e cobriam-lhe a testa de suor.  Então, muito trêmulo, prendia a escada e, para não perder tempo, punha o pé no primeiro degrau.
            No meio destas alternâncias de dúvida e esperança, destas dilatações e destes apertos de coração, soaram dez horas na igreja.
            - Oh! - murmurou Maximilien, com terror. - É impossível que a assinatura de um contrato dure tanto tempo, a menos que se verifiquem acontecimentos imprevistos. Já avaliei todas as hipóteses e calculei o tempo que duram todas as formalidades, e não há dúvida que aconteceu qualquer coisa.
            E então, ora passeava agitado diante do portão, ora ia apoiar a testa escaldante no ferro gelado. Teria Valentine desmaiado depois do contrato ou fora detida na fuga? Estas eram as duas únicas hipóteses em que o jovem se podia deter, ambas desesperantes.
            A idéia a que se agarrou foi a de que, em plena fuga, as forças tinham faltado a Valentine e esta caíra sem sentidos no meio de alguma alameda.
            - Oh, sendo assim - gritou, correndo para o cimo da escada -, a perderei e por minha culpa!
            O demônio que lhe segredara este pensamento já não o deixou e passou a sussurrar-lho ao ouvido com aquela persistência que faz com que certas dúvidas, ao cabo de um instante, pela força do raciocínio, se transformem em convições. Os seus olhos, que procuravam devassar a escuridão crescente, julgavam
distinguir na alameda sombria um corpo caído.  Morrel arriscou-se a chamar e pareceu-lhe que o vento lhe
trazia um gemido inarticulado.
            Por fim, deram dez e meia. Era-lhe impossível conter-se mais tempo; todas as hipóteses eram admissíveis. As têmporas de Maximilien latejavam com força e passavam-lhe nuvens diante dos olhos. Encavalitou-se no muro e saltou para o outro lado. Estava na casa de Villefort, onde acabava de entrar por
escalamento. Lembrou-se das consequências que lhe poderia acarretar semelhante procedimento, mas não viera até ali para recuar. Num instante encontrou-se na extremidade do maciço. Do ponto onde estava via-se a casa.
            Então, Morrel assegurou-se de uma coisa de que já suspeitara ao tentar ver através das árvores: em lugar das luzes que pensava ver brilhar em cada janela,  como é natural nos dias de cerimônia, só viu a massa cinzenta do edifício, velada ainda por uma grande cortina de sombra projetada por uma nuvem imensa que tapava a Lua.
            De vez em quando, como que transviada, passava a correr uma luz diante de três janelas do primeiro andar. Essas três janelas eram as dos aposentos da Sra de Saint-Méran. Outra luz permanecia imóvel atrás dos cortinados vermelhos do quarto da Sra de Villefort.
            Morrel adivinhou tudo isto. Tantas vezes, para acompanhar Valentine em pensamento a qualquer hora do dia, esboçara a planta da casa, que a conhecia sem a ter visto. O rapaz ficou ainda mais assustado com aquela escuridão e aquele silêncio do que ficara com a ausência de Valentine.
            Desorientado, louco de dor, decidido a arriscar tudo para tornar a ver Valentine e assegurar-se da desgraça que pressentia, fosse qual fosse, Morrel alcançou a orla do maciço e preparava-se para atravessar o mais rapidamente possível o jardim, em campo aberto, quando um som de vozes ainda bastante afastado, mas que o vento lhe trazia, chegou até si.
            Ao ouvir tal barulho, recuou um passo; já meio saído da folhagem, embrenhou-se nela completamente e ficou imóvel e calado, mergulhado na obscuridade.
            A sua resolução estava tomada: se fosse Valentine, sozinha, a avisaria com uma palavra à sua passagem; se Valentine estivesse acompanhada, pelo menos a veria e se asseguraria de que não lhe acontecera nenhum mal; se fossem estranhos, apanharia algumas palavras do seu diálogo, que talvez lhe
permitissem compreender aquele mistério, até  ali incompreensível.
            A Lua saiu então da nuvem que a ocultava e Morrel viu aparecer Villefort à porta da entrada principal, acompanhado de um homem vestido de preto. Desceram os degraus e dirigiram-se para o maciço. Ainda não tinham dado quatro passos quando Morrel reconheceu o Dr. de Avrigny no homem vestido de preto.
            Ao ver que vinham na sua direção, o jovem recuou maquinalmente diante deles, até  encontrar o tronco de um sicômoro que formava o centro do maciço; ai foi obrigado a parar. Em breve o saibro deixou de ranger sob os passos dos dois passeantes.
            - Ah, caro doutor, decididamente, o Céu declara-se contra a minha casa! - disse o procurador régio. - Que morte horrível! Que golpe inesperado! Não tente confortar-me; infelizmente, a chaga é demasiado viva e profunda! Morte, morte!
            Um suor frio gelou a fronte do rapaz e o fez bater os dentes. Quem teria morrido naquela casa que o próprio Villefort dizia amaldiçoada?
            - Meu caro Sr. de Villefort - respondeu o médico, num tom que redobrou o terror do rapaz –, não o trouxe aqui para o confortar, muito pelo contrário.
            - Que quer dizer? - perguntou o procurador régio, assustado.
            - Quero dizer que atrás da desgraça que acaba de lhe acontecer existe outra talvez ainda maior.
            - Oh, meu Deus! - murmurou Villefort, juntando as mãos. - Que mais me vai dizer? 
            - Estamos bem sós, meu amigo?
            - Sim, estamos absolutamente sós... Mas que significam todas essas precauções?
            - Significam que tenho uma confidência terrível a fazer-lhe - respondeu o médico. - Sentemo-nos.
            Villefort mais se deixou cair do que se sentou no banco. O médico ficou de pé diante dele, com uma das mãos pousada no ombro do magistrado. Morrel, gelado de terror, tinha uma das mãos na testa e com a outra comprimia o coração, cujas pulsações receava se ouvissem.
            “Morte, morte!", repetia em pensamento com a voz do coração.
            E ele próprio se sentia morrer.
            - Fale, doutor, escuto-o - disse Villefort. - Fira, estou preparado para tudo.
            - A Sra de Saint-Méran era de fato muito idosa, sem dúvida, mas gozava de excelente saúde.
            Morrel respirou pela primeira vez nos últimos dez minutos.
            - O desgosto matou-a - disse Villefort. - Sim, o desgosto, doutor! há quarenta anos que estava habituada a viver com o marquês...
            - Não foi o desgosto, meu caro Villefort - perguntou o médico. - O desgosto pode matar, embora os casos sejam raros, mas não mata num dia, mas não mata numa hora, mas não mata em dez minutos.
            Villefort não respondeu nada; apenas levantou a cabeça, que até ali conservara baixa, e fitou o médico com olhos esgazeados.
            - Assistiu à agonia? - perguntou o Sr. de Avrigny.
            - Assisti - respondeu o procurador régio. - O senhor disse-me em voz baixa para não me afastar.
            - Notou os sintomas do mal a que a Sra de Saint-Méran sucumbiu?
            - Certamente. A Sra de Saint-Méran teve três ataques sucessivos com poucos minutos de intervalo uns dos outros e de cada vez mais próximos e mais graves. Quando o senhor chegou, havia já alguns minutos que a Sra de Saint-Méran estava arquejante; teve então uma crise, que tomei por um simples ataque de nervos; mas só me comecei a assustar realmente quando a vi soerguer-se na cama, com os membros e o pescoço
estendidos. Então, pela suo rosto, doutor, compreendi que o caso era mais grave do que supunha. Passada a crise, procurei os seus olhos, mas já os não encontrei, doutor. O senhor segurava-lhe no pulso e contava as pulsações, e a segunda crise surgiu antes de o meu amigo se virar para mim. Essa segunda crise foi mais terrível do que a primeira. Verificaram-se os mesmos movimentos nervosos e a boca contraiu-se e tornou-se roxa. À terceira, expirou. Já depois do fim da primeira eu tinha reconhecido o tétano, e o senhor confirmou-me tal opnião.
            - Sim, diante de toda as pessoas - salientou o médico. - Mas agora estamos sós.
            - Que me vai dizer, meu Deus?
            - Que os sintomas do tétano e do envenenamento por produtos vegetais são absolutamente os mesmos.
            O Sr. de Villefort levantou-se. Em seguida, depois de um instante de imobilidade e silêncio, voltou a deixar-se cair no banco.
            - Meu Deus, doutor, pensou bem no que acaba de me dizer? 
            Morrel não sabia se sonhava ou se estava acordado.
            - Ouça - disse o médico - conheço a importância da minha declaração e o cargo do homem a quem a faço.
            - É ao magistrado ou ao amigo que fala? - perguntou Villefort.
            - Ao amigo, apenas ao amigo, neste momento. As semelhanças entre os sintomas do tétano e os sintomas do envenenamento por substancias vegetais são de tal modo grandes que se tivesse de assinar o que lhe digo declaro-lhe que hesitaria. Por isso, repito-lhe, não é ao magistrado que me dirijo, é ao amigo.
Pois bem, ao amigo digo: durante os três quartos de hora que durou, estudei a agonia, as convulsões e a morte da Sra de Saint-Méran, e é minha convicção que não só a Sra de Saint-Méran morreu envenenada, como ainda direi... sim, direi que conheço o veneno que a matou.
            - Senhor, senhor!
            - Tudo se conjuga, repare: sonolência interrompida por crises nervosas, sobreexcitação do cérebro, torpor dos centros... A Sra de Saint-Méran. sucumbiu a uma dose violenta de brucina ou estricnina, que por acaso, sem dúvida, que por erro, talvez, lhe administraram.
            Villefort pegou na mão do médico.
            - Oh, é impossível! - exclamou. - Sonho, meu Deus! Sonho! É horrível ouvir dizer semelhantes coisas por um homem como o senhor! Em nome do Céu, suplico-lhe, caro doutor, que me diga que pode estar enganado!      
            - Sem dúvida que posso, mas...
            - Mas?...
            - Mas não creio.
            - Doutor, tenha compaixão de mim. Há alguns dias acontecem-me tantas coisas inauditas que creio na possibilidade de enlouquecer.
            - Mais alguém além de mim viu a Sra de Saint-Méran?
            - Ninguém.
            - Mandaram aviar à farmácia alguma receita que me não tenham mostrado?
            - Nenhuma.
            - A Sra de Saint-Méran tinha inimigos?
            - Nunca os conheci.
            - Alguém tinha interesse na sua morte?
            - Não, meu Deus, não! A minha filha é a sua única herdeira. Valentine sozinha... Oh, se semelhante pensamento me assaltasse me apunhalaria para castigar o meu coração por ter sido capaz de abrigar um só instante tal pensamento!
            - Deus não permita, caro amigo - perguntou o Sr. de Avrigny –, que não tenha de acusar alguém! Refiro-me apenas a um acidente, compreende? A um erro. Mas acidente ou erro, o fato aí está a falar em voz baixa à minha consciência e a exigir que a minha consciência lhe fale em voz alta. Informe-se.
            - Com quem? Como? De quê?
            - Vejamos: Barrois, o criado velho, não teria se enganado e dado à Sra de Saint-Méran alguma poção preparada para o seu amo?
            - Para o meu pai?
            - Sim.
            - Mas como poderia uma poção preparada para o Sr. Noirtier envenenar a Sra de Saint-Méran? : ,
            - Nada mais simples: como sabe, em certas doenças os venenos atuam como um remédio. A paralisia é uma dessas doenças. Há cerca de três meses, depois de ter empregado tudo para restituir o movimento e a palavra ao Sr. Noirtier, decidi tentar um último meio; há três meses, repito, que o trato com brucina. Assim, na última poção que lhe receitei entravam seis centigramas de brucina; seis centigramas sem ação sobre os
órgãos paralisados do Sr. Noirtier, e aos quais aliás ele se acostumou por meio de doses sucessivas, seis centigramas bastam para matar qualquer outra pessoa que não seja ele.
            - Meu caro doutor, não há nenhuma comunicação entre os aposentos do Sr. Noirtier e os da Sra de Saint-Méran, e nunca Barrois entraria no quarto da minha sogra. Enfim, doutor, permita-me que lhe diga que, embora o considere o homem mais competente e sobretudo mais consciencioso do mundo, embora em todas as circunstâncias a sua palavra seja para mim, uma luz que me guia, à semelhança da luz do Sol, pois bem, doutor, pois bem... apesar dessa convicção, necessito de me apoiar neste axioma: errare humanum est.
            - Escute, Villefort - replicou o médico –, existe algum colega meu em quem tenha tanta confiança como em mim?
            -Porque pergunta isso? Aonde quer chegar?
            - Chame-o, e lhe direi o que vi, o que notei, e faremos a autópsia.
            - E encontrarão vestígios do veneno?
            - Não, do veneno, não; não disse isso. Mas verificaremos a irritação do sistema nervoso, reconheceremos a asfixia patente, incontestável, e lhe diremos: “Caro Villefort, se foi por negligência que o caso aconteceu, vigie os seus criados; se foi por ódio, vigie os seus inimigos."
            - Oh, meu Deus, que está propondo, Avrigny?! - respondeu Villefort, abatido. - A partir do momento em que haja outro, além do senhor, metido no segredo, me imporá  proceder a um inquérito, e um inquérito em minha casa é impossível! No entanto - prosseguiu o procurador régio, contendo-se e olhando o médico com inquietação –, no entanto, se quer, se o exige absolutamente, eu o farei. Com efeito, talvez deva dar seguimento ao caso... O meu cargo impõe-me. Mas, doutor, semelhante idéia aflige-me e entristece-me antecipadamente, como vê: introduzir na minha casa tanto escândalo depois de tanta dor... Oh, a minha mulher e a minha filha morreriam! E eu, eu, doutor, o senhor bem sabe que um homem não chega aonde
eu cheguei, um homem não é procurador régio durante vinte e cinco anos sem ter arranjado bom número de inimigos. Os meus são numerosos. Este caso, uma vez divulgado, será para eles um triunfo que os fará pular de alegria e a mim me cobrir  de vergonha. Doutor, desculpe-me estas idéias mundanas. Se o senhor fosse um padre, não ousaria dizer-lhe isto; mas o senhor é um homem e conhece os outros homens. Doutor, doutor,
o senhor não me disse nada, não é verdade?
            - Meu caro Sr. de Villefort - respondeu o médico, abalado  –, o meu primeiro dever é a humanidade. Teria salvado a Sra de Saint-Méran se a ciência a pudesse salvar, mas ela está morta e eu devo-me aos vivos. Sepultemos no mais profundo dos nossos corações esse terrível segredo. Se os olhos de alguém
se abrirem a tal respeito, permitirei que se impute à minha ignorância o silêncio que guardarei. Entretanto, senhor, continue a procurar, procure ativamente, pois talvez as coisas não fiquem por ai... E quando descobrir o culpado, se o descobrir, serei eu que lhe direi: “O senhor é um magistrado, faça o que quiser." 
            - Oh, obrigado, obrigado, doutor! - exclamou Villefort, com indizível alegria. - Nunca tive melhor amigo do que o senhor.
            E como se temesse que o Sr. de Avrigny voltasse com a palavra atrás, levantou-se e arrastou o médico para os lados da casa.
            Afastaram-se.
            Morrel, como se tivesse necessidade de respirar, deitou a cabeça tora do arvoredo e a Lua iluminou-lhe o rosto tão pálido que o poderiam tomar por um fantasma.
            - Deus protege-me de uma evidente mas terrível forma - murmurou. - Mas Valentine, Valentine, pobre amiga, resistirá ela a tanto sofrimento?
            A medida que proferia estas palavras, olhava alternadamente as janelas dos cortinados vermelhos e as três janelas de cortinados brancos.
            A luz desaparecera quase completamente da janela dos cortinados vermelhos. Sem dúvida a Sra de Villefort acabava de apagar o candeeiro e a lamparina mal se refletia nos vidros.
            Na extremidade do edifício, pelo contrário, viu abrir uma das três janelas de cortinados brancos. Uma vela colocada na chaminé projectou no exterior alguns raios da sua luz pálida e uma sombra veio por instantes à varanda. Morrel estremeceu; parecia-lhe ter ouvido um soluço.
            Não era de admirar que aquela alma, habitualmente tão corajosa e tão forte, mas agora perturbada e exaltada pelas duas mais fortes paixões humanas, o amor e o medo, tivesse enfraquecido ao ponto de sofrer alucinações supersticiosas.
            Embora fosse impossível, oculto como estava, que o olhar de Valentine o distinguisse, julgou ser chamado pela sombra da janela; o seu espírito perturbado dizia-lho e o seu coração ardente repetia-lho. Este duplo erro transformou-se numa realidade irresistível e, por um desses incompreensíveis impulsos da juventude, Morrel saltou para fora do seu esconderijo e em duas passadas, com risco de ser visto, de
assustar Valentine e de esta dar o alarme por meio de algum grito involuntário, transpôs o jardim, que o luar tornava amplo e branco como um lago, e, depois de alcançar o renque de laranjeiras que se estendia diante da casa, atingiu os degraus da escadaria, que subiu rapidamente, e empurrou a porta, que se abriu sem resistência diante dele.
            Valentine não o vira. Os seus olhos erguidos para o céu seguiam uma nuvem prateada que deslizava no azul e cuja forma era a de um fantasma a subir ao céu. O seu espírito exaltado segredava-lhe que era a alma da avó.
            Entretanto, Morrel atravessara a antecâmara e encontrara o corrimão da escada. A passadeira que cobria os degraus abafava-lhe os passos. Aliás, Morrel chegara a tal ponto de exaltação que nem a presença do próprio Villefort o teria assustado. Se Villefort lhe aparecesse, a sua resolução estava tomada: se aproximaria dele, lhe confessaria tudo e lhe pediria desculpa e que aprovasse aquele amor que o ligava
à filha e a filha a ele. Morrel estava louco.
            Por sorte, não encontrou ninguém.
            E foi então que o conhecimento que adquirira através de Valentine da planta interior da casa lhe serviu. Chegou sem novidade ao cimo da escada, e como, uma vez lá, procurasse orientar-se, um soluço que reconheceu indicou-lhe o caminho que devia seguir. Virou-se. Uma porta entreaberta deixava chegar até  ele o reflexo de uma luz e o som da voz que gemia. Empurrou essa porta e entrou. 
            Ao fundo de uma alcova, debaixo do lençol branco que lhe cobria a cabeça e lhe desenhava a forma, jazia a morta, mais assustadora ainda aos olhos de Morrel depois da revelação do segredo de que o acaso o tornara possuidor.
            Ao lado da cama, de joelhos, com a cabeça escondida nas almofadas de uma grande poltrona, Valentine, trêmula e agitada pelos soluços, estendia por cima da cabeça, que se não via, as mãos juntas e hirtas.
            Deixara a janela, que ficara aberta, e rezava em voz alta num tom que comoveria o coração mais insensível. As palavras safam-lhe dos lábios, rápidas, incoerentes, ininteligíveis, de tal forma a dor lhe apertava a garganta com os seus tentáculos ardentes.
            O luar, insinuando-se através da abertura das persianas, tornava mais pálida a luz da vela e cobria de tons fúnebres aquele quadro desolador.
            Morrel não pode resistir àquele espetáculo. Não era de uma devoção exemplar nem era fácil de impressionar, mas Valentine a sofrer, a chorar, a torcer os braços na sua presença, era mais do que podia suportar em silêncio. Soltou um suspiro, murmurou um nome e a cabeça imersa em lágrimas e contrastante
com o veludo da poltrona, uma cabeça de Madalena, de Correggio, ergueu-se e ficou virada para ele.
            Valentine viu-o e não demonstrou qualquer surpresa. Não existem emoções intermédias num coração ocupado por um desespero supremo. Morrel estendeu a mão à amiga. Como única desculpa de não ter
ido ao seu encontro, Valentine indicou-lhe o cadáver jacente sob o lençol fúnebre e recomeçou a soluçar.
            Nem um nem outro ousava falar naquele quarto. Ambos hesitavam em quebrar aquele silêncio que parecia imposto pela Morte, de pé em qualquer canto e com o dedo nos lábios. Por fim, Valentine foi a primeira a aventurar-se.
            - Amigo, como está aqui? - perguntou. - Diria “seja bem-vindo", se não fosse a Morte quem lhe abriu a porta desta casa.
            - Valentine - disse Morrel com voz trêmula e de mãos juntas –, esperei-a desde as oito e meia. Como a não visse vir, inquietei-me, saltei o muro e penetrei no jardim. Então, vozes que falavam do fatal acidente...
            - Que vozes? - perguntou Valentine.
            Morrel estremeceu, pois toda a conversa do médico e do Sr. de Villefort lhe acudiu ao espírito, e através do lençol julgava ver os braços contorcidos, o pescoço rígido e os lábios roxos da morta.
            - Vozes dos seus criados revelaram-me tudo.
            - Mas vir aqui equivale a perder-nos, meu amigo - observou Valentine, sem terror e sem cólera.
            - Perdoe-me - respondeu Morrel, no mesmo tom. - Vou-me retirar.
            - Não - perguntou Valentine. - O encontrariam. Fique.
            - Mas se vem alguém?
            A jovem abanou a cabeça.
            - Não virá ninguém, esteja descansado - disse. - está ali a nossa proteção.
            E indicou o cadáver moldado pelo lençol.
            - Mas que foi leito do Sr. de Epinay? Diga-me,  suplico-lhe - pediu Morrel. 
            - O Sr. Franz chegou para assinar o contrato no momento em que a minha boa avó exalava o último suspiro.
            - Graças a Deus! - exclamou Morrel, com uma sensação de alegria egoísta, pois pensava para consigo mesmo que aquela morte retardaria indefinidamente o casamento de Valentine.
            - Mas o que redobra a minha dor - continuou a jovem, como se tal sensação devesse receber imediatamente castigo - é que a pobre e querida avó ordenou, ao morrer, que se efetuasse o casamento o mais cedo possível. Também ela, meu Deus! Julgando proteger-me, também ela agia contra mim.
            - Escute! – sussurrou Morrel.
            Os dois jovens ficaram silenciosos. Ouviu-se abrir uma porta e passos fazerem estalar o parqué do
corredor e os degraus da escada.
            - É o meu pai que sai do seu gabinete - disse Valentine.
            - E acompanha o médico - acrescentou Morrel.
            - Como sabe que é o médico? - perguntou Valentine, surpreendida.
            - Presumo - respondeu Morrel.
            Valentine olhou o rapaz. Entretanto, ouviu-se fechar a porta da rua. O Sr. de Villefort foi ainda dar outra volta à chave da do jardim e em seguida voltou a subir a escada.
            Chegado à antecâmara, parou um instante, como se hesitasse se devia entrar no seu quarto ou no quarto da Sra de Saint-Méran. Morrel correu para trás de um reposteiro. Valentine não fez um gesto; diria que uma dor suprema a colocava acima dos temores vulgares.
            O Sr. de Villefort entrou no seu quarto.
            - Agora - disse Valentine - o senhor não pode sair nem pela porta do jardim, nem pela da rua.
            Morrel olhou a jovem atônito.
            - Agora - continuou ela - só há uma saída possível e segura: a dos aposentos do meu avô.
            Levantou-se.
            - Venha - disse.
            - Aonde? - perguntou Maximilien.
            - Aos aposentos do meu avô.
            - Eu, aos aposentos do Sr. Noirtier?!
            - Sim.
            - Já pensou no que vai fazer, Valentine?
            - Já e há muito tempo. Só tenho esse amigo no mundo e ambos precisamos dele... Venha.
            - Cautela, Valentine - aconselhou Morrel, hesitando em fazer o que a jovem lhe ordenava. - Cautela! A venda caiu-me dos olhos e vindo aqui pratiquei um ato de demência. Está bem certa do que vai fazer, querida amiga?
            - Estou - respondeu Valentine - e só tenho um escrúpulo no mundo: deixar sós os restos mortais da minha pobre avó, que me encarreguei de velar.
            - Valentine, a morte é sagrada por si mesma - observou Morrel.
            - Pois é - concordou a jovem. -  De resto, a ausência será curta. Venha. 
            Valentine atravessou o corredor e desceu uma escadinha que levava aos aposentos de Noirtier. Morrel seguiu-a em bicos de pés. Chegados ao patamar dos aposentos, encontraram o velho criado.
            - Barrois, feche a porta e não deixe entrar ninguém - ordenou-lhe Valentine.
            Foi a primeira a entrar
            Noirtier, ainda na sua poltrona, atento ao mais pequeno ruído, informado pelo seu velho criado de tudo o que se passava, olhava ansiosamente para a entrada do quarto. Viu Valentine e os seus olhos brilharam.
            Havia no andar e na atitude da jovem algo de grave e solene que impressionou o velho. Por isso, de brilhantes que estavam os seus olhos, tornaram-se interrogadores.
            - Querido avô - disse ela em tom breve – escuta-me bem. Sabes que a avozinha Saint-Méran morreu há uma hora e que, excetuando você, agora não tenho mais ninguém que me ame no mundo?
            Uma expressão de infinita ternura passou pelos olhos do velho.
            - Portanto, só a você, não é verdade, posso confiar os meus desgostos e as minhas esperanças?
            O paralítico fez sinal que sim
            Valentine tomou Maximilien pela mão.
            - Então, olha bem para este senhor.
            O velho pousou os olhos perscrutadores e levemente atônitos em Morrel.
            - É o senhor Maximilien Morrel - continuou Valentine –, o filho daquele honesto comerciante de Marselha de quem sem dúvida ouviste falar...
            - Sim - indicou o velho.
            - É um nome irrepreensível, que Maximilien está em vias de tornar glorioso, porque aos trinta anos é capitão de sipaios e oficial da Legião de Honra.
            O velho fez sinal de que se lembrava dele.
            - Pois bem, avozinho - disse Valentine, ajoelhando diante do velho e indicando Maximilien com a mão –, amo-o e só serei dele! Se me obrigarem a casar com outro, me deixarei morrer ou me matarei.
            Os olhos do paralítico exprimiam um mundo de pensamentos tumultuosos.
            - Você gosta do Sr. Maximilien Morrel,. não é verdade, avozinho? - perguntou a jovem.
            - Gosto - indicou o velho, imóvel.
            - E pode proteger-nos, visto sermos também seus filhos, da vontade do meu pai?
            Noirtier pousou o seu olhar inteligente em Morrel, como que para lhe dizer: “é conforme..."
            Maximilien compreendeu.
            - Valentine - disse –, tem um dever sagrado a cumprir no quarto da sua avó; quer dar-me a honra de permitir que converse um instante com o Sr. Noirtier?
            - Sim, sim, é isso - indicou o olhar do velho.
            Depois fitou Valentine com inquietação.
            - Como conseguirá compreender-te, não é o que queres dizer, querido avô?
            - É. 
            - Oh, esteja descansado! Temos falado tantas vezes de ti que ele sabe bem como te falo.
            Depois, virando-se para Maximilien com um sorriso adorável, apesar de velado por profunda tristeza, disse:
            - Ele sabe tudo o que eu sei.
            Valentine levantou-se, aproximou uma cadeira para Morrel recomendou a Barrois que não deixasse entrar ninguém e, depois de beijar ternamente o avô e de se despedir tristemente de Morrel, saiu.
            Então Morrel, para provar a Noirtier que tinha a confiança de Valentine e conhecia todos os seus segredos, pegou no dicionário, na pena e no papel e colocou tudo em cima de uma mesa onde havia um candeeiro.
            - Mas primeiro - disse - permita-me, senhor, que lhe diga quem sou, como amo Mademoiselle Valentine e quais são as minhas intenções a seu respeito.
            - Escuto-o - deu a entender Noirtier.
            Constituía um espetáculo deveras impressionante ver como aquele velho, aparentemente um fardo inútil, se tornara o único protetor, o único apoio, o único juiz de dois apaixonados jovens, belos, fortes e no começo da vida. O seu rosto, de uma nobreza e de uma austeridade notáveis, impunha-se a Morrel, que começou a falar com voz incerta.
            Contou então como conhecera e amara Valentine, e como Valentine, no seu isolamento e na sua infelicidade, acolhera a oferta da sua dedicação. Revelou-lhe quais eram o seu nascimento, a sua posição e a sua fortuna, e por mais de uma vez, quando interrogou com a vista o paralítico, ele lhe respondeu também com a vista:
            - Está bem, continue.
            - Agora - disse Morrel quando concluiu a primeira parte da sua narrativa –, agora que já lhe revelei, senhor, o meu amor e as minhas esperanças, devo revelar-lhe também os nossos projetos?
            - Deve - respondeu o velho.
            - Muito bem. Eis o que tínhamos resolvido.
            E contou tudo a Noirtier: como um cabriolé os esperava no cercado, como contava raptar Valentine, levá-la para casa da irmã e casar com ela e como, depois, estavam dispostos a esperar, numa respeitosa expectativa, o perdão do Sr. de Villefort.
            - Não - disse o Sr. Noirtier.
            - Não? - repetiu Morrel. - Não é assim que devemos proceder?
            - Não.
            - Quer dizer que este projeto não tem o seu assentimento?
            - Não.
            - Nesse caso, há outro meio - respondeu Morrel.
            O olhar interrogador do velho perguntou:
            - Qual?
            - Irei - continuou Maximilien –, irei procurar o Sr. Franz de Epinay (ainda bem que lhe posso dizer isto na ausência de Mademoiselle de Villefort) e me comportarei com ele de maneira a obrigá-lo a ser um homem galante...
            O olhar de Noirtier continuou a interrogar.
            - Que farei? 
            - Sim.
            - Isto: irei procurá-lo, como lhe dizia, lhe revelarei os laços que me ligam a Mademoiselle de Villefort, e se ele for um homem delicado provará a sua delicadeza renunciando espontaneamente à mão da sua noiva. A partir desse momento, lhe serei dedicado até  à morte. Mas se recusar, quer por interesse, quer por um orgulho ridículo o levar a persistir, depois de lhe provar que com a sua atitude coagiria uma mulher que me pertence, que Valentine me ama e não pode amar outro além de mim, me baterei com ele dando-lhe todas as vantagens, e o matarei ou ele me matará. Se o matar, não casará com Valentine; se me matar, estou certo de que Valentine não casará com ele.
            Noirtier observava com indizível prazer aquela nobre e sincera fisionomia em que se espelhavam todos os sentimentos que a boca exprimia, acrescentando-lhos, através da expressão de um belo rosto, tudo o que a cor acrescenta a um desenho vigoroso e real.
            No entanto, quando Morrel acabou de falar, Noirtier fechou os olhos diversas vezes, o que era, como se sabe, a sua maneira de dizer não.
            - Não? - repetiu Morrel. - Portanto, o senhor desaprova o segundo projeto, como já desaprovou o primeiro?
            - Sim, desaprovo-o - respondeu o velho.
            - Que fazer então, senhor? - perguntou Morrel. - As últimas palavras da Sra de Saint-Méran foram que o casamento da neta se não fizesse esperar. Deverei deixar que os acontecimentos se consumam?
            Noirtier ficou imóvel.
            - Sim, compreendo - disse Morrel. - Devo esperar.
            - Sim.
            - Mas qualquer atraso nos perderá senhor - observou o rapaz. - Sozinha, Valentine não tem força e a coagirão como a uma criança. Entrado aqui milagrosamente para saber o que se passava e não menos milagrosamente na sua presença, não posso razoavelmente esperar que a sorte me continue a bafejar.
Acredite, só é possível optar por um ou por outro dos dois partidos que lhe indiquei, desculpe esta vaidade à minha juventude, para chegarmos a uma solução. Diga-me qual dos dois prefere. Autoriza Mademoiselle Valentine a confiar-se à minha honra?
            - Não.
            - Prefere que vá procurar o Sr. de Epinay?
            - Não.
            - Mas, meu Deus, de quem nos virá o socorro que esperamos, do Céu?
            O velho sorriu com os olhos, como tinha o hábito de sorrir quando lhe falavam do Céu. Ficara sempre um bocadinho de ateísmo nas idéias do velho jacobino.
            - Do acaso? - insistiu Morrel.
            - Não.
            - Do senhor?
            - Sim.
            - Do senhor?...
            - Sim - repetiu o velho.
            - Compreende bem o que lhe peço, senhor? Desculpe a minha insistência, porque a minha vida está na sua resposta: a nossa salvação virá do senhor? 
            - Sim. 
            - Tem certeza?
            - Tenho.
            - Assume essa responsabilidade?
            - Assumo.
            E havia no olhar que fazia esta afirmação tal firmeza que não era possível duvidar quer da sua vontade, quer da sua força.
            - Oh, obrigado, senhor, obrigado cem vezes! Mas como, a  não ser que um milagre do Senhor lhe restitua a palavra, o gesto, o movimento, como poderá, preso a essa poltrona, mudo e imóvel, como poderá  opor-se ao casamento?
            Um sorriso iluminou o rosto do velho, sorriso estranho como o daqueles olhos numa fisionomia imóvel.
            - Portanto, devo esperar? - perguntou o rapaz.
            - Deve.
            - Mas o contrato?
            Reapareceu o mesmo sorriso.
            - Quer dizer que não ser  assinado?
            - Quero - respondeu Noirtier.
            - Assim, o contrato não será  mesmo assinado! - exclamou Morrel. - Oh, desculpe, senhor! Quando nos anunciam uma grande felicidade, é legítimo duvidar. O contrato não será  assinado?...
            - Não - respondeu o paralítico.
            Apesar desta segurança, Morrel hesitava em acreditar.  Aquela promessa de um velho impotente era tão estranha que em vez de provir de uma força de vontade podia emanar de um enfraquecimento de órgãos. Não é natural que o insensato que ignora a sua loucura pretenda realizar coisas superiores às suas forças?
            O fraco fala dos pesos que levanta, o tímido, dos gigantes que enfrenta, o pobre dos tesouros que maneja, o mais humilde camponês, no cúmulo do seu orgulho, julga-se Júpiter.
            Quer porque Noirtier tivesse adivinhado a indecisão do rapaz, quer porque não confiasse completamente na docilidade que mostrara, olhou-o fixamente.
            - Que deseja, senhor? - perguntou Morrel. - Que lhe renove a minha promessa de nada fazer?
            O olhar de Noirtier permaneceu fixo e firme, como se quisesse dizer que lhe não bastava uma promessa. Depois passou do rosto para a mão.
            - Quer que jure, senhor? - perguntou Maximilien.
            - Quero - respondeu o paralítico com a mesma solenidade. - Quero.
            Morrel compreendeu que o velho atribuía grande importância ao juramento. Estendeu a mão.
            - Juro-lhe pela minha honra - disse - esperar o que decidir para agir contra o Sr. de Epinay.
            - Bem - disseram os olhos do velho.
            - Agora, senhor, quer que me retire? - perguntou Morrel.
            - Quero.
            - Sem tornar a ver Mademoiselle Valentine?
            - Sim.
            Morrel fez sinal de que estava pronto a obedecer. 
            - Agora - prosseguiu - permite-me, senhor, que o seu neto o beije como beijou há pouco a sua neta?
            Não havia motivo para se enganar com a expressão dos olhos de Noirtier.
            O rapaz pousou os lábios na testa do velho, no mesmo lugar onde Valentine pousara os dela.
            Depois, cumprimentou segunda vez o velho e saiu.
            Encontrou no patamar o velho criado. Prevenido por Valentine, este esperava Morrel e guiou-o através dos meandros de um corredor escuro que levava a uma portinha que dava para o jardim.
            Chegado aí, Morrel alcançou o portão através da alameda de bordos e chegou num instante ao alto do muro. Depois, pela escada, apenas num segundo, alcançou o campo de luzerna onde o cabriolé o esperava.
            Subiu para a carruagem e, cansado de tantas emoções, mas com o coração mais liberto, chegou por volta da meia-noite à Rua Meslay, atirou-se para cima da cama e dormiu como se estivesse mergulhado em profunda embriaguez.



capítulo LXXIV

O jazigo da família Villefort


            Dois dias mais tarde, por volta das dez horas da manhã, encontrava-se reunida uma multidão considerável à porta do Sr. de Villefort, para ver passar uma longa fila de carros fúnebres e carruagens particulares ao longo do Arrabalde de Saint-Honoré e da Rua da Pépiniere.
            Entre essas carruagens havia uma de forma singular e que parecia ter feito longa viagem. Era uma espécie de furgão pintado de preto e fora dos primeiros a comparecer ao fúnebre encontro. Os curiosos tinham-se informado e haviam sabido que, devido a uma coincidência estranha, aquele carro encerrava o corpo do Sr. Marquês de Saint-Méran e que, portanto, aqueles que tinham vindo para acompanhar um só cadáver acompanhariam dois.
            Preveniram-se imediatamente as autoridades e conseguiu-se que os dois funerais se realizassem ao mesmo tempo. Uma segunda viatura adornada com a mesma pompa funerária da primeira foi trazida para diante da porta do Sr. de Villefort e a urna transportada no furgão de posta transferida para a carruagem
fúnebre.
            Os dois corpos deviam ser inumados no Cemitério do Pére-Lachaise, onde havia muito tempo o Sr. de Villefort mandara erguer o jazigo destinado a sepultar toda a sua família. No jazigo fora já depositado o corpo da pobre Renée, a quem o pai e mãe se vinham juntar depois de dez anos de separação.
            Paris, sempre curioso, sempre comovido com as pompas fúnebres, viu passar em religioso silêncio o cortejo esplêndido que acompanhava à sua última morada dois dos mais célebres nomes da velha aristocracia, pelo seu espírito tradicional, pela firmeza das suas convicções e pela dedicação obstinada aos
príncipes.
            Beauchamp, Albert e Château-Renaud, que seguiam na mesma carruagem, trocavam impressões acerca daquela morte quase súbita.
            - Vi a Sra de Saint-Méran ainda o ano passado, em Marselha, no meu regresso da Argélia - dizia Château-Renaud. - Parecia uma mulher destinada a viver cem anos, graças à sua perteita saúde, ao seu espírito sempre atento e à sua atividade sempre prodigiosa. Que idade tinha ela?
            - Sessenta e seis - respondeu Albert. - Pelo menos foi o que Franz me disse. Mas não foi a idade que a matou, foi o desgosto que lhe causou a morte do marquês. Parece que depois dessa morte, que a abalou violentamente, ela nunca mais recuperou por completo a razão.
            - Mas enfim, de que morreu? - perguntou Beauchamp.
            - De uma congestão cerebral, parece, ou de uma apoplexia fulminante. Não é a mesma coisa?
            - Mais ou menos.
            - De apoplexia? - repetiu Beauchamp. - É difícil de acreditar. A Sra de Saint-Méran, que também vi uma vez ou duas na minha vida, era baixinha, frágil e de constituição muito mais nervosa do que sanguínea. São raras as apoplexias produzidas pelo desgosto em corpos de constituição idêntica ao da Sra de Saint-Méran.
            - Em todo o caso - observou Albert –, qualquer que tenha sido a doença ou o médico que a matou, aí estão o Sr. de Villefort, ou Mademoiselle Valentine, ou ainda o nosso amigo Franz, de posse de uma magnífica herança: oitenta mil libras de rendimento, parece-me.
            - Herança que quase duplicar  por morte do velho jacobino Noirtier.
            - Aí está um avô resistente - observou Beauchamp. - Tenacem propositi virum. Apostou com a morte, creio, que enterraria todos os seus herdeiros. E o conseguirá , estou certo. É bem o velho convencional de 93 que dizia a Napoleão em 1814: “Declinais porque o vosso império é um jovem caule cansado pelo seu crescimento. Tomais a República como tutor, regressemos com uma boa constituição aos campos de batalha e prometo-vos quinhentos mil soldados, outro Marengo e segundo Austerlitz. As idéias não morrem, sire, dormitam às vezes, mas acordam mais fortes do que antes de adormecer."
            - Parece que para ele os homens são como as idéias - disse Albert. - Apenas uma coisa me preocupa: saber como Franz de Epinay se entenderá com o avô da sua futura mulher, visto o velho não poder passar sem ela. Mas onde está Franz?
            - Na primeira carruagem, com o Sr. de Villefort, que o considera já como se fosse da família.
            Em todas as carruagens que acompanhavam o funeral a conversa era pouco mais ou menos a mesma. As pessoas admiravam-se com aquelas duas mortes tão próximas e tão rápidas, mas nenhuma suspeitava do terrível segredo que no seu passeio noturno o Sr. de Avrigny revelara ao Sr. de Villefort.
            Ao fim de cerca de uma hora de marcha, o préstito chegou à porta do cemitério. O tempo estava calmo, mas sombrio, portanto muito de harmonia com a fúnebre cerimônia que estava se realizando. Entre os grupos que se dirigiram para o jazigo de família, Château-Renaud reconheceu Morrel, que viera sozinho e de cabriolé. Caminhava isolado, muito pálido e silencioso, pelo carreiro orlado de teixos. 
            – Você aqui? - perguntou Château-Renaud, passando o braço pelo do jovem capitão. - Quer dizer que conhece o Sr. de Villefort? Como isso é possível se nunca o vi na casa dele?
            - Não conheço, o Sr. de Villefort - respondeu Morrel. - Quem eu conhecia era a Sra de Saint-Méran.
            Neste momento, Albert juntou-se-lhes com Franz.
            - O lugar é mal escolhido para uma apresentação - disse Albert. - Mas não importa, não somos supersticiosos. Sr. Morrel, permita que lhe apresente o Sr. Franz de Epinay, um excelente companheiro de viagem, com o qual percorri a Itália. Meu caro Franz, o Sr. Maximilien Morrel, um excelente amigo que adquiri na sua ausência e cujo nome me ouvirá citar todas as vezes que falar de coração, de espírito e de amabilidade.
            Morrel teve um momento de indecisão e perguntou a si mesmo se não seria uma condenável hipocrisia saudar quase amigavelmente o homem que combatia em segredo. Mas o seu juramento e a gravidade das circunstâncias vieram-lhe à memória. Esforçou-se por não deixar transparecer nada no rosto, conteve-se e
cumprimentou Franz.
            - Mademoiselle de Villefort está muito triste, não é verdade? - perguntou Debray a Franz.
            - Oh, de uma tristeza inexplicável, senhor! - respondeu Franz.
            - Esta manhã estava tão desfigurada que mal a reconheci.
            Estas palavras aparentemente tão simples feriram o coração de Morrel. Aquele homem vira Valentine e falara-lhe...
            Foi então que o jovem e impetuoso oficial necessitou de toda a sua energia para resistir ao desejo de violar o seu juramento. Pegou no braço de Château-Renaud e arrastou-o rapidamente para o jazigo, diante do qual os empregados da agência funer ria acabavam de depositar as duas urnas.
            - Magnífica habitação - comentou Beauchamp, admirando o mausoléu. - palácio de Verão e palácio de Inverno. Nele residirá um dia, meu caro Epinay, porque em breve também será da família. Eu, na minha qualidade de filósofo prefiro uma casinha de campo, um chalé à sombra das árvores, e menos pedras trabalhadas sobre o meu pobre corpo. Quando morrer, direi aos que me rodearem o que Voltaire escrevia a Piron: E o rus e tudo estará  acabado... Vamos, caramba! Franz, coragem, a sua mulher herda.
            - Na verdade, Beauchamp, você é insuportável - perguntou Franz. - A política habituou-o a rir de tudo e os homens que a dirigem têm o hábito de não acreditar em nada. Mas enfim, Beauchamp, quando tenha a honra de se encontrar entre homens vulgares e a sorte de se afastar por instantes da política, procure trazer consigo o coração em vez de o deixar no bengaleiro da Câmara dos Deputados ou da Câmara dos Pares.
            - Mas, meu Deus, que é a vida? - perguntou Beauchamp. - Uma paragem na antecâmara da morte.
            - Não estou gostando nada da conversa de Beauchamp - disse Albert.
            E recuou quatro passos com Franz, deixando Beauchamp continuar as suas dissertações filosóficas com Debray.
            O jazigo da família Villefort formava um quadrado de pedra branca de cerca de vinte pés de altura. Uma separação interior dividia em dois compartimentos a  família Saint-Méran e a família Villefort, e cada compartimento tinha a sua porta de entrada.
            Não se via, como nos outros jazigos, essas ignóbeis  prateleiras sobrepostas, em que uma distribuição econômica encerra os mortos com uma inscrição que mais parece uma etiqueta. Tudo o que de início se via através da porta de bronze era uma antecâmara severa e escura, separada por uma parede do túmulo propriamente dito.
            Era no meio dessa parede que se abriam as duas portas de que falamos há pouco e que comunicavam com as sepulturas Villefort e Saint-Méran.
            Ali podia-se dar livre curso à dor sem que os passeantes despreocupados, que fazem de uma visita ao Pere-Lachaise um passeio ao campo ou um encontro amoroso, perturbassem com os seus cantos, os seus gritos ou as suas correrias a muda contemplação ou a prece banhada de lágrimas do visitante do jazigo.
            As duas urnas entraram no jazigo da direita, o da família Saint-Méran, e foram colocadas em cima de cavaletes já preparados antecipadamente e que só esperavam o seu depósito mortal. Villefort, Franz e mais alguns parentes próximos penetraram sozinhos no santuário.
            Como as cerimônias religiosas tinham sido efetuadas à porta e não havia discursos a pronunciar, os acompanhantes retiraram-se imediatamente. Château-Renaud, Albert e Morrel foram por um lado e Debray e Beauchamp por outro.
            Franz ficou sozinho com o Sr. de Villefort à porta do cemitério. Morrel deteve-se sob qualquer pretexto. Viu sair Franz e o Sr. de Villefort numa carruagem e teve um mau presságio daquela conversa íntima. Por fim, regressou a Paris na mesma carruagem em que vinham Château-Renaud e Albert, mas não ouviu nem uma palavra do que disseram os dois rapazes. Com efeito, no momento em que Franz se ia separar do Sr. de
Villefort, este perguntara-lhe:
            - Sr. Barão, quando o tornarei a ver?
            - Quando quiser, senhor - respondera Franz.
            - O mais cedo possível.
            - Estou às suas ordens, senhor. Quer que regressemos juntos?
            - Se isso lhe não causa nenhum transtorno...
            - Nenhum.
            Foi assim que o futuro sogro e o futuro genro subiram para a mesma carruagem e que Morrel, ao vê-los passar, concebeu com razão graves preocupações. Villefort, e Franz regressaram ao Arrabalde de Saint-Honoré.
            Sem ver ninguém, nem falar à mulher e à filha, o procurador régio levou o jovem para o seu gabinete, indicou-lhe uma cadeira e disse-lhe:
            - Senhor de Epinay, devo recordar-lhe, e o momento não é talvez tão mal escolhido como se poderá  crer à primeira vista, porque a obediência aos mortos é a primeira oferenda que se deve depositar sobre o caixão, devo portanto lembrar-lhe o desejo manifestado anteontem pela Sra de Saint-Méran no seu leito de morte, isto é, que o casamento de Valentine não fosse adiado. Como sabe, os assuntos da defunta estão perfeitamente em ordem e o seu testamento assegura a Valentine toda a fortuna dos Saint-Mérans. O tabelião mostrou-me ontem as minutas que permitem redigir definitivamente o contrato de casamento. Pode procurar o tabelião e pedir-lhe da minha parte que lhe mostre as minutas. O tabelião é o Sr. Deschamps, Praça Beauvau é Arrabalde de  Saint-Honoré.
            - Senhor - respondeu Epinay –, este talvez não seja o momento indicado para Mademoiselle Valentine, mergulhada como está na sua dor, pensar num marido. Na verdade, recearia...
            - Valentine - interrompeu-o o Sr. de Villefort - não terá mais vivo desejo do que cumprir as últimas vontades da avó. Portanto, os obstáculos não virão desse lado, garanto-lhe.
            - Nesse caso, senhor - respondeu Franz –, como também não virão do meu, pode fazer o que entender. Dei a minha palavra e a cumprirei não só com prazer, mas também com felicidade.
            - Nesse caso, nada nos detém - disse Villefort. - O contrato deveria ter sido assinado há três dias e portanto encontraremos tudo preparado. Podemos assiná-lo hoje mesmo.
            - E o luto? - lembrou Franz, hesitante.
            - Sossegue, senhor - prosseguiu Villefort. - Não é hábito em minha casa descuidar das conveniências. Mademoiselle de Villefort poderá retirar-se durante os três meses da praxe para a sua propriedade de Saint-Méran. Digo a sua propriedade, porque lhe pertence. Aí, dentro de oito dias, se achar bem, sem barulho, sem dar nas vistas, sem fausto, se celebrará o casamento naquela propriedade. Concluído o casamento, o senhor poder  regressar a Paris, enquanto a sua mulher passará o tempo de luto com a madrasta.
            - Como lhe aprouver, senhor - disse Franz.
            - Então, queira ter o incômodo de esperar cerca de meia hora - prosseguiu Villefort. - Valentine vai descer à sala. Mandarei buscar o Sr. Deschamps, leremos e assinaremos o contrato imediatamente e ainda esta tarde a Sra de Villefort, acompanhará Valentine à sua propriedade, onde daqui a oito dias iremos ter com elas.
            - Tenho apenas um pedido a fazer-lhe, senhor - disse Franz.
            - Qual?
            - Desejo que Albert de Morcerf e Raoul de Château-Renaud estejam presentes a essa assinatura. Como sabe, são minhas testemunhas.
            - Meia hora basta para os avisar. Quer ir buscá-los pessoalmente ou deseja mandar chamá-los?
            - Prefiro ir, senhor.
            - Esperarei portanto dentro de meia hora, barão, e dentro de meia hora também Valentine estará  pronta.
            Franz cumprimentou o Sr. de Villefort a saiu.
            Assim que a porta da rua se fechou atrás do jovem, Villefort mandou prevenir Valentine de que deveria descer à sala dentro de meia hora, altura em que se esperava a chegada do tabelião e das testemunhas do Sr. de Epinay.
            Esta notícia inesperada produziu grande sensação na casa. A Sra de Villefort, nem queria acreditar e Valentine ficou como que fulminada. Olhou à sua volta, como se procurasse a quem pedir socorro. Quis descer aos aposentos do avô, mas encontrou na escada o Sr. de Villefort, que a agarrou por um braço e a levou para a sala. Na antecâmara, Valentine encontrou Barrois e deitou ao velho criado um olhar desesperado.
            Pouco depois de Valentine entrou na sala a Sra de Villefort com o pequeno Edouard. Era visível que a jovem senhora tivera o seu quinhão nos desgostos da família; estava pálida e parecia horrivelmente fatigada.
            Sentou-se, pegou Edouard no colo e de vez em quando apertava-o ao peito, com gestos quase convulsos, aquela criança em que toda a sua vida parecia concentrada.
            Não tardou a ouvir-se o ruído de duas carruagens que entravam no pátio. Uma era a do tabelião e a outra a de Franz e dos seus amigos. Num instante, todos se reuniram na sala.
            Valentine estava tão pálida que se viam as veias azuladas das têmporas desenharem-se à roda dos olhos e correrem-lhe ao longo das faces.
            Franz não conseguia disfarçar uma emoção bastante viva. Château-Renaud e Albert entreolharam-se surpreendidos: a cerimônia que pouco antes terminara não lhes parecera menos triste do que a que ia começar.
            A. Sra de Villefort colocara-se na sombra, atrás do reposteiro de veludo, e como estava constantemente inclinada para o filho, era difícil ler no seu rosto o que lhe ia na alma.
            O Sr. de Villefort estava, como sempre, impassível.
            Depois de ter, com o método peculiar dos funcionários da justiça, alinhado os papéis em cima da mesa, tomado lugar na sua poltrona e tirado os óculos, o tabelião virou-se para Franz.
            - É o Sr. Franz de Quesnel, barão de Epinay? - perguntou, embora o soubesse perfeitamente.
            - Sim, senhor - respondeu Franz.
            O tabelião inclinou-se.
            - Devo portanto preveni-lo, senhor, da parte do Sr. de Villefort, que o seu casamento com Mademoiselle de Villefort modificou as disposições do Sr. de Noirtier para com a neta e que ele alienou inteiramente a fortuna que lhe devia transmitir. Apressamo-nos a acrescentar - continuou o tabelião - que, como o testador não tinha o direito de alienar senão uma parte da sua fortuna e a alienou toda, o testamento não resistirá  à sua contestação e será declarado nulo e sem nenhum efeito.
            - É verdade - declarou Villefort. - No entanto, desde já o previno o Sr. de Epinay que enquanto eu for vivo nunca o testamento do meu pai será contestado, pois a minha posição proíbe-me até  a sombra de um escândalo.
            - Senhor - disse Franz –, penaliza-me que se tenha suscitado semelhante questão na presença de Mademoiselle Valentine. Nunca me informei do montante da sua fortuna, que, por mais reduzida que seja, será sempre mais considerável do que a minha. O que a minha família procurou na aliança com o Sr. de
Villefort foi a consideração; o que eu procuro é a felicidade.
            Valentine fez um imperceptível sinal de agradecimento, enquanto duas lágrimas silenciosas lhe corriam ao longo das faces.
            - De resto, senhor - acrescentou Villefort, dirigindo-se ao seu futuro genro –, excetuando a perda de parte das suas esperanças, esse testamento inesperado não tem nada que pessoalmente o possa melindrar; ele explica-se pela fraqueza de espírito do Sr. Noirtier. O que desagrada a meu pai, não é que  Mademoiselle de Villefort se torne baronesa de Epinay, é que Valentine se case. Uma união com qualquer outro lhe causaria o mesmo desgosto. A velhice é egoísta, senhor, e Mademoiselle de Villefort fazia ao Sr. de Noirtier uma assídua companhia que lhe não poderá fazer a Sra Baronesa de Epinay. O triste estado em que se encontra meu pai contribui para que raramente lhe falemos de assuntos sérios, que a fraqueza do seu espírito lhe não permitiria acompanhar, e estou absolutamente convencido de que neste momento, embora conservando a lembrança de que a neta se casa, o Sr. Noirtier até já esqueceu o nome daquele que vai ser seu neto.
            Mal o Sr. de Villefort acabara de proferir estas palavras, às quais Franz respondia com uma inclinação, a porta da sala abriu-se e apareceu Barrois.
            - Senhores - disse uma voz estranhamente firme, para um criado que se dirige a seus amos numa circunstância tão solene -, senhores, o Sr. Noirtier de Villefort deseja falar imediatamente com o Sr. Franz de Quesnel, barão de Epinay. Também ele, como o tabelião, e a fim de não poder haver erro de pessoa, dava todos os títulos ao noivo.
            Villefort estremeceu, a Sra de Villefort deixou escorregar o filho do colo e Valentine ergueu-se, pálida e muda como uma estátua. Albert e Château-Renaud trocaram segundo olhar, mais atônito ainda do que o primeiro. O tabelião olhou para Villefort.
            - É impossível - disse o procurador régio. - De resto, o Sr. de Epinay não pode sair da sala neste momento.
            - É precisamente neste momento - perguntou Barrois com a mesma firmeza - que o Sr. Noirtier, meu amo, deseja falar de assuntos importantes com o Sr. Franz de Epinay.
            -  Então o avô Noirtier já fala? - perguntou Edouard, com a sua impertinência habitual.
            Mas esta gracinha nem sequer fez sorrir a Sra de Villefort, de tal modo os espíritos se encontravam preocupados, de tal modo a situação parecia solene.
            - Diga ao Sr. Noirtier - respondeu Villefort - que o seu pedido não pode ser satisfeito.
            - Então, o Sr. Noirtier previne V. Ex ,as de que se vai fazer transportar ele próprio para a sala - replicou Barrois.
            O espanto atingiu o cúmulo. Uma espécie de sorriso desenhou-se no rosto da Sra de Villefort, e Valentine, como que a seu pesar, levantou os olhos para o teto a fim de agradecer ao Céu.
            - Valentine - disse o Sr. de Villefort –, vá num instante saber, peço-lhe, que novo capricho é esse do seu avô.
            Valentine deu vivamente alguns passos para sair, mas o Sr. de Villefort mudou de idéia.
            - Espere, acompanho-a.
            - Perdão, senhor - interveio Franz –, mas parece-me, uma vez que foi a mim que o Sr. Noirtier mandou chamar, que é sobretudo a mim que compete satisfazer os seus desejos.  Aliás, terei muito prazer em lhe apresentar os meus respeitos, visto não ter tido ainda ensejo de solicitar essa honra. 
            - Meu Deus, não vale a pena incomodar-se! - insistiu Villefort, visivelmente inquieto.
            - Desculpe, senhor - perguntou Franz, no tom de um homem que tomou a sua resolução -, mas não desejo perder a oportunidade de provar ao Sr. Noirtier como faria mal em conceber contra mim repugnâncias que estou decidido a vencer, sejam quais forem, com a minha profunda dedicação.
            E sem se deixar reter mais tempo por Villefort, Franz levantou-se por seu turno e seguiu Valentine, que já descia a escada com a alegria de um náufrago que se agarra a uma rocha. O Sr. de Villefort seguiu-os.
            Château-Renaud e Morcerf trocaram terceiro olhar, ainda mais atônito do que os dois primeiros.


Capítulo LXXV

A ata da sessão


            Noirtier esperava, vestido de preto e instalado na sua poltrona.
            Quando as três pessoas cuja chegada esperava entraram, olhou para a porta, que o seu criado de quarto fechou imediatamente.
            - Preste atenção - disse Villefort em voz baixa a Valentine, que não conseguia conter a sua alegria. - Se o Sr. Noirtier nos quiser comunicar coisas que impeçam o seu casamento, proíbo-a de o compreender.
            Valentine corou, mas não respondeu. Villefort aproximou-se de Noirtier.
            - Aqui tem o Sr. Franz de Epinay - disse-lhe. - Mandou-o chamar e ele satisfaz os seus desejos. Claro que desejamos este encontro há muito tempo o ficaria encantado se ele lhe provasse até  que ponto a sua oposição ao casamento de Valentine era infundada.
            Noirtier respondeu apenas com um olhar que fez correr um arrepio nas veias de Villefort. O velho fez com os olhos sinal a Valentine para se aproximar. Num momento, graças aos meios de que a jovem costumava servir-se nas suas conversas com o avô, ela encontrou a palavra chave.
            Então, consultou o olhar do paralítico, que se fixou na gaveta de um movelzinho colocado entre duas janelas. Valentine abriu a gaveta e encontrou efetivamente uma chave.
            De posse dessa chave e depois de o velho lhe fazer sinal de que era de fato aquilo que pretendia, os olhos do paralítico dirigiram-se para uma velha mesa esquecida havia muitos anos e que só continha, ao que se julgava, papéis inúteis.
            - Quer que eu abra as gavetas?
            - Quero.
            - As dos lados?
            - Não. 
            - A do meio?
            - Sim
            Valentine abriu-a e tirou um maço de papéis.
            - É isto que deseja, avô?
            - Não.
            Ela tirou sucessivamente todos os outros papéis, até  não ficar absolutamente mais nada na gaveta.
            - Mas a gaveta está vazia, agora - disse Valentine.
            Os olhos de Noirtier estavam fixos no dicionário.
            - Sim, avô, compreendo-o - declarou a jovem.
            E repetiu, uma após outra, cada letra do alfabeto. No S, Noirtier deteve-a.
            Ela abriu o dicionário e folheou-o até  à palavra segredo.
            - Ah, existe um segredo! - exclamou Valentine.
            - Existe - respondeu Noirtier.
            - E quem conhece esse segredo?
            Noirtier olhou a porta por onde saía o criado.
            - Barrois? - perguntou ela.
            - Sim - respondeu Noirtier.
            - Quer que o chame?
            - Quero.
            Valentine foi à porta e chamou Barrois. Entretanto o suor da impaciência perlava a testa de Villefort
e Franz estava estupefato de surpresa. O velho criado entrou.
            - Barrois - disse Valentine –, o meu avô mandou-me tirar uma chave daquele console, abrir esta mesa e puxar esta gaveta. Mas agora há um segredo na gaveta e parece que você o conhece. Abra-a.
            Barrois olhou para o velho.
            - Obedece - disse o olhar inteligente de Noirtier.
            Barrois obedeceu. Abriu-se um fundo duplo e apareceu um maço de papéis atados com uma fita preta.
            - É isto que deseja, senhor? - perguntou Barrois.
            - É - respondeu Noirtier.
            - A quem devo entregar estes papéis? Ao Sr. de Villefort?
            - Não.
            - A Mademoiselle Valentine?
            - Não.
            - Ao Sr. Franz de Epinay?
            - Sim
            Franz, atônito, deu um passo em frente.
            - A mim, senhor? - perguntou.
            - Sim.
            Franz recebeu os papéis das mãos de Barrois, olhou para a capa e leu: “Para ser depositado, depois da minha morte, à guarda do meu amigo general Durand, que, por sua vez, ao morrer, legará este maço de papéis a seu filho, com a recomendação de o conservar como um documento da mais alta importância."
            - Bom, senhor, que deseja que faça destes papéis? -  perguntou Franz. 
            - Que os conserve, selados como estão, sem dúvida - sugeriu o procurador régio.
            - Não, não! - respondeu vivamente Noirtier.
            - Deseja talvez que este senhor os leia? - perguntou Valentine.
            - Sim - respondeu o velho.
            - Como viu, Sr. Barão, o meu avô pede-lhe que leia esses papéis - disse Valentine.
            - Então, sentemo-nos - disse Villefort, com impaciência –, porque isso demorará algum tempo.
            - Sentem-se - disse o olhar do velho.
            Villefort sentou-se, mas Valentine ficou de pé ao lado do avô, encostada à sua poltrona, e Franz, de pé diante dele.
            Segurava o misterioso documento na mão.
            - Leia - disseram os olhos do velho.
            Franz abriu o maço e fez-se um grande silêncio no quarto. No meio desse silêncio, leu: “Extrato da ata de uma sessão do clube bonapartista da Rua Saint-Jacques, efetuada em 5 de Fevereiro de 1815."
            Franz deteve-se.
            - 5 de Fevereiro de 1815! Foi o dia em que assassinaram o meu pai!
            Valentine e Villefort permaneceram calados. Apenas o olhar do velho disse claramente:
            - Continue.
            - Mas foi ao sair desse clube que o meu pai desapareceu! - insistiu Franz.
            O olhar de Noirtier continuou a dizer:
            - Leia.
            Franz prosseguiu:
            - "Os abaixo assinados, Louis-Jacques Beaurepaire, tenente-coronel de artilharia; Etienne Duchampy, general de brigada, e Claude Lecharpal, diretor das Águas e Florestas,
            "Declaram que em 4 de Fevereiro de 1815 chegou da ilha de Elba uma carta que recomendava à benevolência e à confiança dos membros do clube bonapartista o general Flavien de Quesnel que, tendo servido o imperador desde 1804 até 1815, deveria ser dedicadíssimo à dinastia napoleônica, apesar do título de barão que Luís XVIII acabava de atribuir à sua propriedade de Epinay.
            "Nesta conformidade, dirigiu-se ao general de Quesnel um bilhete pedindo-lhe que assistisse à sessão do dia seguinte, 5. O bilhete não indicava nem a rua nem o número da casa onde se devia efetuar a reunião. Também não tinha nenhuma assinatura, mas anunciava ao general que se estivesse pronto o iriam buscar às nove horas da noite.
            "As sessões realizavam-se das nove à meia-noite.
            "Às nove horas o presidente do clube apresentou-se em casa do general. O general estava pronto. O presidente disse-lhe que uma das condições da sua admissão era que ignorasse eternamente o local da reunião e que deixasse vendarem-lhe os olhos, depois de jurar não levantar de modo algum a venda.
            "O general de Quesnel aceitou a condição e prometeu pela sua honra não procurar ver aonde o conduziriam.
            "O general mandara preparar a sua carruagem; mas o presidente disse-lhe que era impossível utilizarem-na, pois assim não valeria a pena vendar os olhos do amo se o cocheiro ficasse com os seus abertos e identificasse por onde passariam.
            " - Como proceder então? - perguntou o general.
            "- Tenho a minha carruagem - respondeu o presidente.
            "- Está assim tão seguro do seu cocheiro que lhe confia um segredo que considera imprudente revelar ao meu?
            "- O nosso cocheiro é um membro do clube - respondeu o presidente. - Seremos conduzidos por um conselheiro de Estado.
            "- Então, corremos outro risco: o de nos virarmos - observou o general, rindo.
            "Registramos este gracejo como prova de que o general não foi de forma alguma obrigado a assistir à sessão, à qual compareceu de sua livre vontade.
            "Uma vez instalados na carruagem, o presidente recordou ao general a promessa que fizera de deixar vendar os olhos. O general não levantou qualquer oposição a tal formalidade. Um lenço de pescoço preparado para o efeito na carruagem fez as vezes de venda.
            "Durante o caminho, o presidente julgou notar que o general procurava ver por baixo da venda e recordou-lhe o seu juramento.
            "- Tem razão - disse o general.
            "A viatura parou diante de uma passagem da Rua Saint-Jacques. O general apeou-se apoiado no braço do presidente, cuja dignidade ignorava e que tomava por um simples membro do clube. Atravessaram a passagem, subiram um andar e entraram na sala das deliberações.
            "A sessão já começara. Os membros do clube, prevenidos da espécie de apresentação que se deveria efetuar naquela noite, tinham comparecido na sua totalidade. Chegado ao meio da sala, o general foi convidado a tirar a venda. Acedeu imediatamente ao convite e pareceu ficar muito impressionado por encontrar tão grande número de caras conhecidas numa sociedade de que até ali nem sequer suspeitara a existência.
            "Interrogaram-no acerca dos seus sentimentos, mas limitou-se a responder que as cartas da ilha de Elba lhe deviam ser dadas a conhecer..."
            Franz interrompeu-se.
            - O meu pai era monárquico. Não havia necessidade de o interrogarem acerca dos seus pensamentos; eram conhecidos.
            - E daí vinha a minha ligação com o seu pai, meu caro Sr. Franz - declarou Villefort. - As pessoas ligam-se facilmente quando partilham as mesmas opiniões.
            - Leia - continuou a dizer o olhar do velho.
            Franz prosseguiu:
             - “O presidente tomou então a palavra para convidar o general a exprimir-se mais explicitamente, mas o Sr. de Quesnel respondeu que desejava antes de mais nada saber o que pretendiam dele.
            "Foi então dado conhecimento ao general da carta da ilha de Elba que o recomendava ao clube como um homem com cujo concurso se podia contar. Um parágrafo inteiro expunha o provável regresso da ilha de Elba e prometia nova carta e mais amplos pormenores à chegada do Pharaon, navio pertencente ao armador Morrel, de Marselha, e cujo comandante era inteiramente dedicado ao imperador. 
            "Durante toda esta leitura, o general, com o qual se julgara poder contar como um irmão, deu pelo contrário visíveis sinais de descontentamento e repugnância.
            "Terminada a leitura, permaneceu silencioso e de sobrolho franzido.
            "- Então, que diz a esta carta, Sr. General? - perguntou o presidente.
            "- Digo que ainda há tão pouco tempo se prestou juramento ao rei Luís XVIII, que não justifica violá-lo já em benefício do ex-imperador.
            "Desta vez a resposta era tão clara que ninguém se podia enganar a respeito dos seus sentimentos.
            "- General - disse o presidente -, para nós não existe o rei Luís XVIII, tal como não existe ex-imperador. Para nós só existe Sua Majestade o imperador e rei, afastado há dez meses da França, seu Estado, pela violência e pela traição.
            "- Perdão, senhores - perguntou o general. - É possível que para vós não exista o rei Luís XVIII, mas existe para mim. Foi ele quem me fez barão e marechal-de-campo e nunca esquecerei que é ao seu auspicioso regresso a França que devo ambos os títulos.
            "- Senhor, tome cautela com o que diz - recomendou-lhe o presidente, em tom muito sério e levantando-se. - As suas palavras demonstram-nos claramente que se enganaram a seu respeito na ilha de Elba e que nos enganaram. A comunicação que lhe fizemos baseou-se na confiança depositada no senhor e, por consequência, num sentimento que o honrava. Verificamos agora que estavamos enganados. Um título e um posto ligaram-no ao novo governo que queremos derrubar. Não o obrigaremos a prestar-nos o seu concurso; não recrutaremos ninguém contra a sua consciência e a sua vontade; mas o obrigaremos a proceder
como um homem digno, mesmo no caso de não estar disposto a isso.
            "- Acham que é ser um homem digno conhecer esta conspiração e não a revelar? Chamo a isso ser cúmplice dos senhores. Como vêem, sou ainda mais franco do que os presentes..."
            - Ah, meu pai, compreendo agora porque te assassinaram! - exclamou Franz.
            Valentine não se pode impedir de lançar uma olhadela a Franz. O rapaz estava realmente belo no seu entusiasmo filial. Villefort passeava de um lado para o outro atrás dele. Noirtier acompanhava com a vista a expressão de cada um e conservava a sua atitude digna e severa.
            Franz voltou ao manuscrito e continuou:
            - “Senhor - disse o presidente –, pediram-lhe que comparecesse nesta assembleia, onde ninguém o trouxe à força. Propuseram-lhe vendar-lhe os olhos e o senhor aceitou. Quando acedeu a ambas as coisas, sabia perfeitamente que não nos dedicavamos a consolidar o trono de Luís XVIII, pois de contrário não poríamos tanto cuidado em nos escondermos da Polícia. Agora, como deve compreender, seria demasiado cômodo colocar uma máscara para surpreender segredos alheios e em seguida não ter mais do que tirar essa máscara para perder aqueles que confiaram no senhor. Não, não! Antes de mais nada, vai dizer-nos francamente se é pelo rei de acaso que reina neste momento ou por S. M. o imperador.
            " - Sou mon rquico - perguntou o general. - Prestei juramento a Luís XVIII e mantenho esse juramento. 
            "Estas palavras foram seguidas de um murmúrio geral e pode ver-se, pelos olhares de numerosos membros do clube, que estavam dispostos a fazer o Sr. de Epinay arrepender-se das suas palavras imprudentes.
            "O presidente levantou-se de novo e impôs silêncio.
            "- Senhor - disse-lhe –, é um homem suficientemente responsável e sensato para compreender as consequências da situação em que nos encontramos uns perante os outros, e a sua própria franqueza nos dita as condições que nos resta apresentar-lhe. O senhor vai portanto jurar pela sua honra nada revelar do que ouviu.
            "O general levou a mão à espada e gritou:
            "- Se quer falar de honra, comece por não menosprezar as suas leis nem impor nada pela violência!
            "- E o senhor - continuou o presidente, com uma calma talvez mais terrível do que a cólera do general - não toque na sua espada; é um conselho que lhe dou.
            "O general viu à sua volta olhares que denotavam um princípio de inquietação. No entanto, nem mesmo assim cedeu. Pelo contrário, apelando para toda a sua energia, exclamou:
            "- Não jurarei!
            "- Então, senhor, morrerá  - respondeu tranquilamente o presidente.
            "O Sr. de Epinay empalideceu profundamente. Olhou segunda vez à sua volta. Vários membros do clube cochichavam e procuravam armas debaixo das capas.
            "- General - disse o presidente -, esteja tranquilo. Encontra-se entre pessoas honradas, que procurarão por todos os meios convencê-lo antes de recorrerem contra o senhor a medidas extremas. Mas também, como o senhor mesmo disse, está entre conspiradores, conhece o nosso segredo e tem de guardá-lo.
            "A estas palavras seguiu-se um silêncio cheio de significado. E como o general não respondesse nada, o presidente ordenou aos porteiros:
            "- Fechem as portas!
            "O mesmo silêncio mortal sucedeu a estas palavras.
            "Então o general adiantou-se e disse, fazendo um violento esforço sobre si mesmo:
            "- Tenho um filho e devo pensar nele quando me encontro no meio de assassinos.
            "- General - disse com nobreza o presidente da assembleia -, um só homem tem sempre o direito de insultar cinquenta: é o privilégio da fraqueza. Simplesmente, faz mal em usar esse direito. Creia no que lhe digo, general: jure e não nos insulte.
            "O general, mais uma vez dominado pela superioridade do presidente da assembléia, hesitou um instante; mas por fim aproximou-se da mesa do presidente e perguntou:
            "- Qual é a fórmula?
            "- Esta: "Juro pela minha honra jamais revelar a quem quer que seja no mundo o que vi e ouvi em 5 de Fevereiro de 1815, entre as nove e as dez horas da noite, e declaro merecer a morte se violar o meu juramento." 
            "O general pareceu experimentar um frêmito nervoso, que o impediu de responder durante alguns segundos. Por fim, contendo uma repugnância evidente, proferiu o juramento exigido, mas em voz tão baixa que mal se ouviu. Por isso, vários membros exigiram que o repetisse em voz mais alta e distinta, o que foi feito.
            "- Agora desejo retirar-me - disse o general. - Estou finalmente livre?
            "O presidente levantou-se, designou três membros da assembléia para o acompanharem e subiu para a carruagem com o general, depois de lhe vendar os olhos. O cocheiro que os trouxera fazia parte do número desses três membros.
            "Os outros membros do clube separaram-se em silêncio.
            "- Aonde quer que o reconduzamos? - perguntou o presidente.
            "- A qualquer parte onde possa ficar livre da presença dos senhores - respondeu o Sr. de Epinay
            "- Senhor - disse então o presidente –, tome cautela: já não está na assembléia, tem apenas consigo homens isolados. Não os insulte, se não quer ter de assumir a responsabilidade do insulto.
            "Mas em vez de compreender esta linguagem, o Sr. de Epinay respondeu:
            "- O senhor é sempre tão valente na sua carruagem como no seu clube, pela simples razão de que quatro homens são sempre mais fortes do que um só.
            "O presidente mandou parar a carruagem.
            "Estavam precisamente à entrada do Cais dos Olmos, onde fica a escada que desce para o rio.
            "- Porque mandou parar aqui? - perguntou o Sr. de Epinay.
            "- Porque - respondeu o presidente - o senhor insultou um homem e esse homem não quer dar nem mais um passo sem lhe pedir lealmente uma reparação.
            "- Mais uma maneira de assassinar - perguntou o general, encolhendo os ombros.
            "- Deixemo-nos de palavreado, senhor - respondeu o presidente –, se não quer que o considere como um dos homens a que se referia há pouco, isto é, como um covarde que toma a sua fraqueza como escudo. está só e um só lhe responderá; tem uma espada ao lado e eu tenho outra nesta bengala; não tem testemunha, um destes senhores será a sua. Agora, se quiser, pode tirar a venda.
            "O general arrancou imediatamente o lenço que lhe cobria os olhos.
            "- até  que enfim vou saber com quem estou metido! - exclamou.
            "Abriu-se a carruagem; os quatro homens apearam-se..."
            Franz interrompeu-se mais uma vez e enxugou o suor que lhe escorria da testa. Havia algo assustador em ver o filho, trêmulo e pálido, ler em voz alta os pormenores, até  ali ignorados, da morte do pai.
            Valentine juntara as mãos como se rezasse. Noirtier olhava para Villefort com uma expressão quase sublime de desprezo e orgulho.
            Franz continuou:
            “ Estava-se, como dissemos, em 5 de Fevereiro. Havia três dias que nevava e a temperatura rondava os cinco ou seis graus. A escada encontrava-se coberta de gelo. O general era corpulento e alto e o presidente ofereceu-lhe o lado do corrimão para descer.
            " As duas testemunhas seguiam atrás. 
            " A noite estava escura e o terreno, da escada ao rio, encontrava-se úmido de neve e geada. Via-se a  água correr,  negra e profunda, arrastando alguns pedaços de gelo.
            " Uma das testemunhas foi buscar uma lanterna a um barco de carvão, à luz da qual examinaram as armas.
            " A espada do presidente, que era apenas, como ele dissera, uma espada que trazia na bengala, era mais curta do que a do seu adversário e não tinha guarda.
            " O general propôs que se tirasse à sorte as duas espadas, mas o presidente respondeu que fora ele quem o desafiara e que ao desafiá-lo pretendera que cada um se servisse das suas armas.
            " As testemunhas tentaram insistir; o presidente impôs-lhes silêncio.
            " Pousaram a lanterna no chão; os dois adversários observaram-se de ambos os lados; o combate começou.
            " A luz transformava as duas espadas em relâmpagos. Quanto aos homens, mal se viam, de tal forma a escuridão era densa.
            " O general passava por ser uma das melhores lâminas do Exército. Mas atacou tão vivamente logo aos primeiros botes que escorregou, e escorregando caiu.
            " As testemunhas julgaram-no morto; mas o seu adversário, que sabia não lhe ter tocado, estendeu-lhe a mão para o ajudar a levantar-se. Esta circunstância, em vez de o acalmar, irritou o general, que se precipitou sobre o adversário.
            " Mas este não recuou um passo e recebeu-o na ponta da espada. Três vezes o general recuou, depois de se empenhar demasiado a fundo, e três vezes voltou à carga.
            " À terceira vez voltou a cair.
            " Julgaram que tivesse escorregado, como da primeira vez. No entanto, ao verem que se não levantava, as testemunhas aproximaram-se e tentaram po-lo de pé. Mas aquela que o segurava pela cintura sentiu na mão um calor úmido. Era sangue.
            " O general, que se encontrava quase desmaiado, recuperou os sentidos.
            "- Ah, mandaram-me algum espadachim, algum mestre-de-armas de regimento! - exclamou.
            " Sem responder, o presidente aproximou-se da testemunha que segurava na lanterna, arregaçou a manga e mostrou o braço perfurado em dois pontos pela espada do seu adversário. Em seguida, abriu a sobrecasaca, desabotoou o colete e mostrou o quadril dilacerado por terceiro ferimento.
            " Contudo, nem sequer soltara um suspiro.
            " O general de Epinay entrou em agonia e expirou passados cinco minutos..."
            Franz leu as últimas palavras com voz tão estrangulada que mal se puderam ouvir. Depois de as ler, deteve-se e passou a mão pelos olhos, como que para afastar uma nuvem.
            Mas, após um instante de silêncio, continuou:
            - “ O presidente voltou a subir a escada depois de meter a espada na bengala. Um rego de sangue assinalava a sua passagem na neve.
            "Ainda não chegara ao alto da escada quando ouviu um barulho abafado na água; era o corpo do general, que as testemunhas acabavam de lançar ao rio depois de verificarem a morte. 
            “ O general sucumbiu portanto num duelo leal e não numa emboscada, como se poderia dizer.
            " E como prova assinamos a presente, para estabelecer a verdade dos fatos, com receio de que algum dia qualquer dos intervenientes nesta cena terrível possa ser acusado de assassínio com premeditação ou de infração às leis da honra.
            assinado: BEAUREGARD, DUCHAMPY e LECHARPAL."
            Quando Franz terminou a leitura, tão terrível para um filho, Valentine, pálida de emoção, enxugou uma lágrima e Villefort, trêmulo e encolhido a um canto, procurou conjurar a tempestade por meio de olhares suplicantes dirigidos ao velho implacável. Entretanto, Epinay dirigiu-se nestes termos a Noirtier.
            - Senhor, uma vez que conhece esta terrível história em todos os seus pormenores, visto a ter feito atestar por testemunhas fidedignas, e porque, finalmente, parece interessar-se por mim, embora o seu interesse só se tenha até  agora revelado através da dor, não me recuse uma última satisfação, diga-me o
nome do presidente do clube, para que eu conheça enfim aquele que matou o meu pobre pai.
            Villefort procurou, como que alucinado, o puxador da porta.  Valentine, que adivinhara antes de qualquer outra pessoa a resposta do velho e que muitas vezes notara no antebraço do avô as cicatrizes de duas espadeiradas, recuou um passo.
            - Em nome do Céu, menina - pediu Franz, dirigindo-se à noiva -, junte-se a mim, para que eu saiba o nome do homem que me fez ôrfão aos dois anos!
            Valentine ficou imóvel e muda.
            - Ouça, senhor - interveio Villefort –, acredite no que lhe digo e não prolongue mais esta cena horrível. Aliás, os nomes foram ocultados de propósito. Nem mesmo o meu pai sabe quem era esse presidente, e ainda que o soubesse não o poderia revelar: os nomes próprios não se encontram no dicionário.
            - Que pouca sorte a minha! - exclamou Franz. - A única esperança que me amparou durante toda a leitura e me deu forças para ir até  ao fim era saber ao menos o nome daquele que matou o meu pai! Senhor, senhor - suplicou, virando-se para Noirtier –, em nome do Céu, faça o que lhe seja possível... veja se consegue, suplico-lhe, indicar-me, dar-me a entender...
            - Sim - respondeu Noirtier.
            - Menina, menina! - exclamou Franz. - O seu avô fez sinal de que podia indicar... esse homem... Ajude-me... compreende-o...dê-me a sua ajuda!
            Noirtier olhou o dicionário.
            Franz pegou-lhe a tremer nervosamente e pronunciou sucessivamente as letras do alfabeto até  ao E.
            Ao ouvir esta letra, o velho fez sinal que sim.
            - E! - repetiu Franz.
            O dedo do jovem percorreu as palavras; mas a todas Noirtier respondia com um sinal negativo.
            Valentine ocultava o rosto entre as mãos. Por fim, Franz chegou à palavra EU.
            - Sim - indicou o velho.
            - O senhor?! - exclamou Franz, cujos cabelos se puseram em pé.
            - O Sr. Noirtier?... Foi o senhor que matou o meu pai? 
            - Sim - respondeu Noirtier, cravando no rapaz um olhar majestoso. Franz caiu sem forças numa poltrona. Villefort abriu a porta e fugiu, pois ocorrera-lhe a idéia de sufocar a pouca existência que ainda restava no coração do terrível velho.


Capítulo LXXVI

Os progressos de Cavalcanti filho


            Entretanto, o Sr. Cavalcanti pai partira para retomar o serviço, não no exército de S. M. o imperador da Àustria, mas sim na roleta das termas de Luca, de que era um dos mais assíduos cortesãos.
            Desnecessário  dizer que embolsara com a mais escrupulosa exatidão, ate ao último soldo, a importância que lhe fora concedida para a viagem e como recompensa pela forma majestosa e solene como desempenhara o seu papel de pai.
            O Sr. Andrea herdara, à sua partida, todos os documentos que provavam ter a honra de ser filho do marquês Bartolomeo e da marquesa Leanora Corsinari.
            Encontrava-se pois quase admitido na sociedade parisiense, tão pronta a receber os estrangeiros e a tratá-los não de acordo com o que são, mas sim de acordo com o que pretendem ser. De resto, que se pede a um rapaz em Paris? Que fale assim-assim a sua língua, que se vista convenientemente, que seja bom jogador e que pague em ouro.
            É claro que se é menos exigente com um estrangeiro do que com um parisiense.
            Andrea adquirira portanto em quinze dias uma excelente posição. Tratavam-no por “Sr. Conde", dizia-se que tinha cinquenta mil libras de rendimento e falava-se dos tesouros imensos do senhor seu pai, enterrados, dizia-se, nas pedreiras de Saravezza.
            Um perito diante do qual se mencionava esta última circunstância como um fato, declarou ter visto tais
pedreiras, o que deu um grande peso a asserções que até  então tinham pairado em estado de dúvida e que a partir dai adquiriram a consistência da realidade.
            As coisas encontravam-se neste pé no circulo da sociedade parisiense onde introduzimos os nossos leitores quando Monte-Cristo veio uma tarde visitar o Sr. Danglars. Este safra, mas propuseram ao conde ser recebido pela baronesa, que estava visível, o que ele aceitou.
            Não era nunca sem uma espécie de estremecimento nervoso que depois do jantar de Auteuil e dos acontecimentos subsequentes a Sra Danglars ouvia pronunciar o nome de Monte-Cristo. Se a presença do conde se não seguia ao anúncio do seu nome, a sensação dolorosa tornava-se mais intensa; mas se, pelo
contrário, o conde aparecia, a sua fisionomia franca, os seus olhos brilhantes, a sua amabilidade e até  a sua galanteria bastavam, no tocante à Sra Danglars, para expulsar rapidamente até  à última impressão de receio. Parecia impossível à baronesa que um homem tão encantador à superfície pudesse alimentar maus  desígnios contra ela. Aliás, os corações mais corrompidos só podem acreditar no mal desde que baseado em qualquer interesse; o mal inútil. e sem causa repugna como uma anomalia.
            Quando Monte-Cristo entrou no boudoir onde já uma vez introduzimos os nossos leitores e a baronesa seguia com olhar bastante inquieto os desenhos que a filha lhe passava depois de os ver com o Sr. Cavalcanti filho, a sua presença produziu o efeito habitual e foi sorrindo que, depois de se sentir um bocadinho perturbada ao ouvir o nome do visitante, a baronesa recebeu o conde. Este, pela sua parte, abarcou toda a cena num olhar.
            Junto da baronesa, e quase deitada num canapé, encontrava-se Eugênie. Cavalcanti estava de pé.
Vestido de preto como um herói de Goethe, de sapatos de verniz e meias de seda branca bordadas, passava uma das mãos, suficientemente branca e razoavelmente tratada, pelos cabelos louros, no meio dos quais cintilava um diamante que, apesar dos conselhos de Monte-Cristo, o vaidoso jovem não resistira ao desejo de usar no dedo mendinho.
            O gesto era acompanhado de olhares assassinos lançados a Mademoiselle Danglars e de suspiros enviados na mesma direção dos olhares. Mademoiselle Danglars continuava a ser a mesma, isto é, bela,
fria e trocista. Nenhum daqueles olhares nem nenhum daqueles suspiros de Andrea lhe escapavam. Mas diria-se que deslizavam pela couraça de Minerva, couraça que alguns filósofos pretendem cobrir por vezes o peito de Safo.
            Eugênie cumprimentou friamente o conde e aproveitou as dificuldades iniciais da conversa para se retirar para a sua sala de estudos, onde não tardaram a ouvir-se duas vozes risonhas e barulhentas de mistura com os primeiros acordes de um piano. Monte-Cristo ficou assim sabendo que Mademoiselle Danglars acabava de preferir à sua e à de Cavalcanti a companhia de Mademoiselle Louise de Armilly, sua professora de canto.
            Foi sobretudo então que, enquanto conversava com a Sr. Danglars e embora parecesse absorvido pelo encanto da conversa, o conde notou a solicitude do Sr. Andrea Cavalcanti   e a sua maneira de ir escutar a música à porta, que não ousava transpor, e de manifestar a sua admiração. O banqueiro não tardou a regressar. O seu primeiro olhar foi para Monte-Cristo, é certo, mas o segundo foi para Andrea.
            Quanto à mulher, cumprimentou-a como certos maridos cumprimentam a esposa, isto é, de uma maneira de que os solteiros só poderão fazer idéia quando for publicado o código minucioso da conjugalidade.
            - Então aquelas meninas não o convidaram para tocar com elas? - perguntou Danglars a Andrea.
            - Infelizmente, não, senhor - respondeu Andrea, com um suspiro ainda mais profundo do que os outros.
            Danglars dirigiu-se imediatamente para a porta de comunicação e abriu-a.
            Viram-se então as duas moças sentadas no mesmo banco e diante do mesmo piano. Acompanhavam-se cada uma com uma das mãos, exercício a que se tinham habituado por brincadeira e se haviam tornado de uma perícia notável. Mademoiselle de Armilly, que formava com Eugênie, graças à moldura da porta, um desses quadros vivos muito em uso na Alemanha, era de uma beleza deveras notável, ou antes, de uma
gentileza requintada. Era uma mulherzinha  franzina e loura como uma fada, de comprido cabelo encaracolado que lhe caía sobre o pescoço um bocadinho alto, como Perugino retratava às vezes as suas virgens, e olhos velados pela fadiga. Dizia-se que tinha o peito fraco e que, como a Antônia do Violino de Cremona, morreria um dia a cantar.
            Monte-Cristo deitou àquele gineceu um olhar rápido e curioso. Era a primeira vez que via Mademoiselle de Armilly, de quem tantas vezes ouvira falar naquela casa.
            - Então estamos excluídos da função? - perguntou o banqueiro à filha.
            Em seguida levou o rapaz para a salinha e, quer por acaso, quer de propósito, a porta foi empurrada atrás de Andrea de maneira que do lugar onde se encontravam sentados Monte-Cristo e a baronesa não pudessem ver nada. Mas como o banqueiro acompanhara Andrea, a Sra Danglars nem sequer pareceu notar semelhante pormenor. Pouco depois o conde ouviu a voz de Andrea soar aos acordes do piano acompanhando uma canção corsa.
            Enquanto o conde escutava sorrindo a canção, que lhe fazia esquecer Andrea e recordar Benedetto, a Sra Danglars gabava a Monte-Cristo a força de alma do marido, que ainda naquela manhã perdera numa falência milanesa, trezentos ou quatrocentos mil francos.
            E, com eleito, o elogio era merecido. Porque se o conde não tivesse sabido do caso pela baronesa ou talvez por um dos meios que tinha de saber tudo, o rosto do barão nada lhe teria revelado a tal respeito.
            “Bom, começa a esconder o que perde. Há um mês, gabava-se ... ", pensou Monte-Cristo.
            Depois, em voz alta:
            - Mas, minha senhor, o Sr. Danglars conhece tão bem a Bolsa que recuperar  sempre lá o que perder em outro lugar.
            - Vejo que labora no erro comum - perguntou a Sra Danglars.
            - E qual é esse erro? - perguntou Monte-Cristo.
            - O de que o Sr. Danglars joga, quando, pelo contrário, nunca joga.
            - Tem razão, minha senhora. Recordo-me de o Sr. Debray me haver dito... A propósito, que é feito do Sr. Debray? Há três ou quatro dias que o não vejo.
            - Nem eu - respondeu a Sra Danglars, com uma presença de espírito admirável. - Mas o senhor começou uma frase que ficou inacabada.
            - Qual?
            - Afirmava que o Sr. Debray lhe dissera...
            - Ah, é verdade? O Sr. Debray disse-me que era a senhora que sacrificava ao demônio do jogo.
            - Tive esse gosto durante algum tempo, confesso, mas não o tenho mais - declarou a Sra Danglars.
            - Pois faz mal, minha senhora. Meu Deus, as oportunidades da fortuna são tão precárias que se eu fosse mulher - e o acaso me tivesse tornado esposa de um banqueiro, por mais confiança que depositasse na sorte do meu marido (porque em especulação, como sabe, é tudo sorte e azar), repito; por mais confiança
que depositasse na sorte do meu marido, começaria sempre por me garantir uma fortuna independente, ainda que para adquirir essa fortuna tivesse de confiar os meus interesses a mãos que lhe fossem desconhecidas.
            A Sra Danglars corou, a seu pesar. 
            - Olhe - prosseguiu Monte-Cristo, como se não tivesse visto nada -, fala-se de um bom golpe dado ontem com títulos de Nápoles.
            - Não tenho - respondeu vivamente a baronesa –, nem nunca os tive. Mas parece-me que já falamos o suficiente de Bolsa, Sr. Conde. Parecemos dois corretores... Falemos um pouco dos pobres Villeforts, tão perseguido neste momento pela fatalidade.
            - Que lhes aconteceu? - perguntou Monte-Cristo com perfeita ingenuidade.
            - Então não sabe? Depois de perderem o Sr. de Saint-Méran, três ou quatro dias depois da sua partida, acabam de perder a marquesa, três ou quatro dias depois da sua chegada.
            - Ah, é verdade, soube disso! - declarou Monte-Cristo. - Mas como diz Clódio a Hamlet, trata-se de uma lei da natureza: os seus pais morreram antes deles e eles choraram-nos; eles morrerão antes dos seus filhos e os seus filhos os chorarão.
            - Mas isso não é tudo.
            - Como não é tudo?
            - Não. Como sabe, iam casar a filha...
            - Com o Sr. Franz de Epinay... Desfizeram o casamento?
            - Ontem de manhã, ao que parece, Franz restituiu-lhes a sua palavra.
            - Deveras?... E conhecem-se as causas desse rompimento?
            - Não.
            - Que notícias me dá, meu Deus! A Sra e o Sr. de Villefort como aceitaram todas essas desgraças?
            - Como sempre, com filosofia.
            Neste momento, Danglars voltou a entrar, sozinho.
            - Então deixou o Sr. Cavalcanti com a sua filha? - observou a baronesa.
            - E Mademoiselle de Armilly não é ninguém? - replicou o banqueiro.
            Depois, virando-se para Monte-Cristo:
            - Encantador rapaz, não é verdade? Refiro-me ao príncipe Cavalcanti... Mas ele é mesmo príncipe?
            - Não garanto - respondeu Monte-Cristo. - Apresentaram-me o pai como marquês; logo, ele seria conde. Mas creio que ele mesmo não tem grandes pretensões a esse título.
            - Porquê? - perguntou o banqueiro. - Se é príncipe, faz mal em não o dizer. A cada um o que lhe pertence. Não gosto que as pessoas reneguem a sua origem.
            - Mas o senhor é um democrata! - exclamou Monte-Cristo, sorrindo.
            - Veja ao que se expõe - observou a baronesa ao marido.
            Se o Sr. de Morcerf entrasse por acaso e encontrasse o Sr. Cavalcanti numa sala onde ele, noivo de Eugénie, nunca teve permissão de entrar...
            - Faz bem em dizer por acaso - replicou o banqueiro –, porque na verdade diria-se, tão raramente o vemos, que é de fato por acaso que ele aqui  vem.
            - Enfim, se viesse e encontrasse esse rapaz com a nossa filha poderia não gostar.
            - Ele? Meu Deus, como está enganada! O Sr. Albert não nos dá a honra de ter ciúmes da sua noiva; não a ama o bastante para isso. De resto, que me importa que goste ou não goste? 
            - No entanto, no ponto em que estamos ...
            - Sim, no ponto em que estamos. Quer saber no ponto em que estamos? No baile da mãe, ele dançou uma única vez com a minha filha, o Sr. Cavalcanti dançou três vezes com ela e ele nem sequer deu por isso.
            - O Sr. Visconde Albert de Morcerf! - anunciou um criado A baronesa levantou-se vivamente. Ia a dirigir-se para a sala de estudos, a fim de prevenir a filha, quando Danglars a deteve por um braço.
            - Deixe - disse-lhe.
            Ela olhou-o atônita.
            Monte-Cristo fingiu não ter visto nada.
            Albert entrou. Vinha elegante e alegre. Cumprimentou a baronesa à vontade, Danglars com familiaridade e Monte-Cristo com amizade. Depois, virando-se para a baronesa, perguntou:
            - Permite-me minha senhora, que lhe peça o favor de me dizer como está Mademoiselle Danglars?
            - Está ótima, senhor - respondeu vivamente Danglars. - Neste momento toca um pouco de música na sua salinha com o Sr. Cavalcanti.
            Albert conservou o seu ar calmo e indiferente. Talvez experimentasse algum despeito íntimo, mas sentia o olhar de Monte-Cristo fixo nele.
            - O Sr. Cavalcanti tem uma belíssima voz de tenor - disse - e Mademoiselle Eugênie é um magnífico soprano, sem contar que toca piano como Thalberg. Deve ser um agrável concerto.
            - De fato, harmonizam-se admiravelmente - acrescentou Danglars. Albert pareceu não notar a grosseira ambiguidade da frase, tão grosseira que a Sra Danglars corou.
            - Eu também sou músico - continuou o rapaz. - Pelo menos é o que dizem os meus professores... Pois, coisa estranha, até  agora nunca consegui harmonizar a minha voz com qualquer outra, e com a voz dos sopranos ainda menos do que com as outras.
            Danglars esboçou um sorriso que significava: “Pois sim, mas acusaste o toque!"
            - Por isso - replicou, esperando sem dúvida chegar ao fim que pretendia –, o príncipe e a minha filha causaram ontem a admiração geral. Não esteve ontem no baile, Sr. de Morcerf?
            - Qual príncipe? - perguntou Albert.
            - O príncipe Cavalcanti - respondeu Danglars, que continuava a obstinar-se a dar este titulo ao rapaz.
            - Perdão, ignorava que fosse príncipe! - perguntou Albert. - Com que então o príncipe Cavalcanti cantou ontem com Mademoiselle Eugênie?... Na verdade, deve ter sido maravilhoso e lamento muito profundamente não ter ouvido. Mas não pude corresponder ao seu convite, tive de acompanhar a Sra de Morcerf a casa da baronesa de Château-Renaud, onde cantavam os alemães.
            E após um silêncio, como se nada se tivesse passado, insistiu:
            - Me será permitido apresentar os meus cumprimentos a Mademoiselle Danglars?
            - Oh, espere, espere, suplico-lhe! - interveio o banqueiro, detendo o jovem. - Ouça esta maravilhosa cavatina... Tá, tá, tá, ti,ti, ti!... Maravilhoso! está quase a terminar... é só um segundo. Perfeito! Bravo! Bravo! Brava! 
            E o banqueiro desatou a aplaudir com frenesi.
            - Efetivamente - disse Albert –, é delicioso, e deve ser impossível alguém compreender melhor a música do seu país do que o príncipe Cavalcanti. Disse príncipe, não é verdade? Aliás, se não for príncipe, o farão príncipe; na Itália é fácil. Mas para voltarmos aos nossos adoráveis cantores, deveria proporcionar-nos um prazer, Sr. Danglars: sem os prevenir de que está aqui um estranho, deveria pedir a Mademoiselle Danglars e ao Sr. Cavalcanti que cantassem outro trecho. É tão delicioso ouvir música um pouco afastado, na
penumbra, sem ser visto, sem ver e, portanto, sem incomodar os músicos... e podermos nos entregar assim a todo o instinto do seu gênio ou a lodo o ímpeto do seu coração.
            Desta vez a fleuma do rapaz desarmou Danglars.
            Chamou Monte-Cristo à parte e perguntou-lhe:
            - Que me diz do nosso apaixonado?
            - Demônio, parece-me frio isso é incontestável... Mas que lhe quer fazer? O senhor está comprometido...           
            - Claro que estou comprometido, mas prefiro dar a minha filha a um homem que a ame do que a um homem que a não ame. Veja-o: frio como mármore e orgulhoso como o pai. Se fosse rico, ainda vá; se tivesse a fortuna dos Cavalcanti, passaríamos por cima disso, mas assim... Ainda não consultei a minha filha, mas se ela tivesse bom gosto...
            - Não sei se será a minha amizade por ele que me cega - disse Monte-Cristo –, mas garanto-lhe que o Sr. de Morcerf é um jovem encantador, que fará a sua filha feliz e que mais tarde ou mais cedo será alguém. Porque, enfim, a posição do pai é excelente...
            - Hum! – resmungou Danglars.
            - Porquê essa dúvida?
            - Há sempre o passado... aquele passado obscuro.
            - Mas o filho não tem nada a ver com o passado do pai.
            - Pois não, pois não!
            - Vamos, não perca a cabeça. Há um mês, achava este casamento excelente... Compreende, a minha situação é desagrável: foi em minha casa que o senhor viu o jovem Cavalcanti, que eu nem sequer conhecia, repito-lhe.
            - Conheço-o e isso me basta - perguntou Danglars.
            - Conhece-o? Quer dizer que tirou informações dele? - perguntou Monte-Cristo.
            - Acha necessário? Não se vê jogo à primeira vista com quem estamos tratando? Em primeiro lugar, é rico...
            - Não garanto. - Então porque responde por ele?
            - Cinquenta mil libras, uma miséria!...
            - Tem uma excelente educação.
            - Hum!... - resmungou por sua vez Monte-Cristo.
            - É músico.
            - Todos os italianos o são.
            - Olhe, conde, o senhor não é justo com esse rapaz.
            - Bom... confesso que veio com desgosto, sabendo dos seus compromissos com os Morcerfs, o rapaz vir assim meter-se de permeio e abusar da sua sorte.
            Danglars desatou a rir. 
            - Oh, o senhor é puritano! - exclamou. - Mas estas coisas fazem-se todos os dias no mundo.
            - No entanto, não pode romper assim, meu caro Sr. Danglars. Os Morcerfs contam com esse casamento.
            - Contam?...
            - Positivamente.
            - Então, que se expliquem. O senhor deveria dizer umas palavrinhas a esse respeito ao pai, meu caro conde, visto ser tão bem recebido lá em casa.
            - Eu? Onde diabo viu o senhor isso?
            - No baile que eles deram, se me não engano... Então a condessa, a orgulhosa Mercedes, a desdenhosa catalã, que quase desdenha abrir a boca para dirigir a palavra aos seus mais velhos conhecimentos, não lhe deu o braço e saiu consigo para o jardim, não meteu pelas alamedas mais isoladas e não reapareceu passada apenas cerca de meia hora?...
            - Ah, barão, barão!... - interveio Albert. - O senhor impede-nos de ouvir. Num melômano como o senhor, que barbaridade!
            - Está bem, está bem, senhor trocista - perguntou Danglars.
            Depois, voltando-se para Monte-Cristo:
            - Encarrega-se de falar ao pai?
            - De boa vontade, se assim o deseja.
            -Mas que desta vez as coisas sejam feitas de maneira explícita e definitiva. Sobretudo que me peça a minha filha, que marque uma data, que declare as suas condições monetárias, enfim, que nos entendamos ou desentendamos. Mas, compreende, nada de mais adiamentos.
            - Pronto, falarei com ele.
            - Não lhe digo que espero com prazer que seja bem sucedido; mas enfim, espero-o. Um banqueiro, como sabe, deve ser escravo da sua palavra.
            E Danglars soltou um daqueles suspiros que soltava meia hora antes o jovem Cavalcanti.
            - Bravi! Bravo! Brava.! – gritou Morcerf, parodiando o banqueiro aplaudindo o fim do trecho.
            Danglars começava a olhar Albert de esguelha quando lhe vieram dizer umas palavras em voz baixa.
            - Volto já - disse o banqueiro a Monte-Cristo: - Espere por mim. Talvez tenha alguma coisa a dizer-lhe daqui a pouco.
            E saiu.
            A baronesa aproveitou a ausência do marido para empurrar a porta da sala de estudos da filha, e todos viram endireitar-se, como que impelido por uma mola, o Sr. Andrea Cavalcanti, que estava sentado ao piano com Mademoiselle Eugênie. Albert cumprimentou sorrindo Mademoiselle Danglars, que, sem parecer de modo algum perturbada, lhe correspondeu com um cumprimento tão frio como de costume.
            Cavalcanti pareceu evidentemente embaraçado; cumprimentou Morcerf, que lhe retribuiu, o cumprimento com o ar mais impertinente do mundo.
            Depois, Albert começou a desfazer-se em elogios à voz de Mademoiselle Danglars e a lamentar que, atendendo ao que acabava de ouvir, lhe não tivesse sido possível assistir à festa da véspera...
            Cavalcanti, deixado entregue a si mesmo, afastou-se com Monte-Cristo. 
            - Bom - disse a Sra Danglars basta de música e de cumprimentos; venham tomar chá.
            - Vem, Louise - disse Mademoiselle Danglars à amiga. Passaram à sala contígua, onde efetivamente o chá estava preparado.
            No momento em que começavam a deixar, à moda inglesa, as colheres nas xícaras, a porta abriu-se e Danglars reapareceu visivelmente muito agitado. Monte-Cristo, sobretudo, notou essa agitação e interrogou o
banqueiro com a vista.
            - Acabo de receber o meu correio da Grécia... - disse Danglars.
            - Ah, ah! - exclamou o conde. - Foi por isso que vieram chamá-lo?
            - Foi.
            - Como está o rei Otão? - perguntou Albert no tom mais jovial que se possa imaginar.
            Danglars olhou-o de esguelha, sem lhe responder, e Monte-Cristo virou-se para esconder a expressão de piedade que acabava de lhe surgir no rosto e que se desvaneceu quase imediatamente.
            - Saímos juntos, não é verdade? - perguntou Albert ao conde.
            - Sim, se quiser - respondeu este.
            Albert não compreendeu o olhar que o banqueiro lhe deitou.  Por isso, virando-se para Monte-Cristo, que compreendera perfeitamente, observou:
            - Viu como ele me olhou?
            - Vi - respondeu o conde. - Mas nota alguma coisa de especial no seu olhar?
            - Creio bem que sim. Que quer ele dizer com as suas notícias da Grécia?
            - Como quer que saiba?
            - Porque, segundo presumo, o senhor tem entendimentos no país.
            Monte-Cristo sorriu como sorriem sempre as pessoas quando querem dispensar-se de responder.
            - Olhe - disse Albert –, aí vem ele ter consigo. Enquanto felicito Mademoiselle Danglars pelo seu camafeu, o pai terá tempo de falar com o senhor...
            - Se vai felicitá-la, felicite-a ao menos pela sua voz - aconselhou Monte-Cristo.
            - Não, isso seria o que faria qualquer pessoa.
            - Meu caro visconde - disse Monte-Cristo –, o senhor tem a fatuidade da impertinência.
            Albert aproximou-se de Eugênie com o sorriso nos lábios. Entretanto, Danglars inclinou-se ao ouvido do conde.
            - O senhor deu-me um excelente conselho - cochichou. Existe uma história horrível relacionada com estes dois nomes: Fernand e Janina.
            - Ah, sim?!...
            - Sim. Depois lhe conto. Agora leve daqui o rapaz. Ficaria muito embaraçado se tivesse de falar neste momento com ele.
            - É o que vou fazer: levá-lo comigo. Ainda é preciso mandar-lhe o pai?
            - Agora, mais do que nunca.
            - Está bem.
            O conde fez um sinal a Albert. 
            Ambos cumprimentaram as senhoras e saíram. Albert, com um ar perfeitamente indiferente para com o desdem de Mademoiselle Danglars; Monte-Cristo, reiterando à Sra Danglars os seus conselhos a respeito da prudência que deve ter a mulher de um banqueiro quanto a assegurar o seu futuro.
            O Sr. Cavalcanti ficou senhor do campo de batalha.


Capítulo  LXXVII

Haydée


            Ainda mal os cavalos do conde tinham virado a esquina do bulevar e Albert se virava para Monte-Cristo e desatava a rir, mas de forma tão ruidosa que não podia deixar de ser um pouco forçada.
            - Bom, pergunto-lhe como o rei Carlos IX perguntava a Catarina de Médicis depois da S. Bartolomeu  como acha que desempenhei o meu pequeno papel?
            - A que propósito? - perguntou Monte-Cristo.
            - Mas a propósito da instalação do meu rival em casa do Sr. Danglars.
            - Qual rival?
            - Homessa, qual rival?! O seu protegido, o Sr. Andrea Cavalcanti!
            - Oh, deixemo-nos de gracejos, visconde! Não protejo de modo algum o Sr. Andrea, pelo menos junto do Sr. Danglars.
            - O censuraria por isso se o rapaz necessitasse de proteção. Mas, felizmente para mim, pode passar sem ela.
            - Como, parece-lhe que ele faz a sua corte?...
            - Respondo-lhe: pelo menos deita olhos e modula sons de apaixonado; aspira à mão da orgulhosa Eugênie. Olhe, fiz um verso! Palavra de honra que não foi de propósito. Mas não interessa, repito-o: aspira à mão da orgulhosa Eugênie.
            - Que importa, se só pensam no senhor?
            - Não me diga isso, meu caro conde; atacam-me dos dois lados.
            - Como, dos dois lados?
            - Sem dúvida: Mademoiselle Eugênie mal me respondeu e Mademoiselle de Armilly, sua confidente, não me disse absolutamente nada.
            - Pois sim, mas o pai adora-o - observou Monte-Cristo.
            - Ele? Mas pelo contrário, cravou-me mil punhais no coração. Punhais que recolhem no punho, é certo, punhais de tragédia, mas que ele julgava realmente a sério.
            - O ciúme indica afeição.
            - Pois sim, mas não estou com ciúmes. 
            - Ele está.
            - De quem? De Debray?
            - Não, do senhor.
            - De mim? Aposto que dentro de oito dias me fecha a porta na cara.
            - Engana-se, meu caro visconde.
            - Uma prova.
            - A quer?
            - Quero.
            - Estou encarregado de pedir ao Sr. Conde de Morcerf que faça uma diligência definitiva junto do barão.
            - Por quem?
            - Pelo próprio barão.
            - Oh! - exclamou Albert com toda a indolência de que era capaz. - Mas o senhor não fará isso, não é verdade, meu caro conde?
            - Engana-se, Albert, o farei porque o prometi.
            - Pronto - perguntou Albert com um suspiro -, parece que o senhor está absolutamente decidido a casar-me.
            - Estou decidido a estar de bem com todas as pessoas. Mas a propósito de Debray: nunca mais o vi na casa da baronesa.
            - Estão de relações cortadas.
            - Com a senhora?
            - Não, com o senhor.
            - Descobriu-se então alguma coisa?
            - Ah, que boa piada!
            - Acha que ele desconfiava? - inquiriu Monte-Cristo, com encantadora ingenuidade.
            - Ora essa!... De onde veio o senhor, meu caro conde?
            - Do Congo, se quiser.
            - Ainda não é suficientemente longe.
            - Quer dizer que não conheço os maridos parisienses?
            - Meu caro conde, os maridos são os mesmos em toda a parte. A partir do momento em que tenha estudado o indivíduo em qualquer país, conhece a espécie.
            - Mas então por que motivo se zangaram Danglars e Debray? Pareciam entender-se tão bem... - observou Monte-Cristo, com novo assomo de ingenuidade.
            - Ora aí está! Nesse caso entramos nos mistérios de Ìsis, e eu não sou iniciado. Quando o Sr. Cavalcanti filho for da família, pergunte-lhe isso.
            A carruagem parou.
            - Pronto, chegamos - disse Monte-Cristo. - São apenas dez e meia, suba.
            - De boa vontade.
            - A minha carruagem o levará.
            - Não, obrigado. O meu cupe deve ter-nos seguido.
            - De fato, vem aí - confirmou Monte-Cristo, apeando-se.
            Entraram ambos na casa. A sala estava iluminada e para lá se dirigiram.
            - Faça-nos chá, Baptistin - ordenou Monte-Cristo. Baptistin saiu sem abrir a boca. Passados dois segundos reapareceu com uma bandeja completamente servida e que, como as colações das mágicas, parecia saída do chão. 
            - Na verdade - disse Morcerf –, o que admiro no senhor, meu caro conde, não é a sua riqueza; talvez haja pessoas mais ricas do que o senhor. Nem o seu espírito; Beaumarchais não tinha mais, mas tinha tanto. É a sua maneira de ser servido, sem que lhe respondam uma palavra, num minuto, num segundo, como se o adivinhassem, a forma como pede o que deseja e como o que deseja está sempre pronto.
            - O que diz é um pouco verdade. Conhecem os meus hábitos. Por exemplo, vai ver: não deseja fazer qualquer coisa enquanto bebe o seu chá?
            - Bom, apetece-me fumar...
            Monte-Cristo aproximou-se da campainha e tocou uma vez.
            Passado um segundo, abriu-se uma porta particular e apareceu Ali com dois chíbuques cheios de excelente tabaco turco.
            - É maravilhoso - confessou Morcerf.
            - Mas não, é tudo simples - perguntou Monte-Cristo. -  Ali sabe que habitualmente, quando tomo chá ou café e fumo. Sabe que pedi chá, sabe que vim consigo, ouve-me chamá-lo, supõe por que motivo, e como é de um país onde a hospitalidade se exerce com o cachimbo, principalmente, em vez de um chíbuque trouxe dois.
            - Claro que se trata de uma explicação como qualquer outra; mas nem por isso é menos verdade que como o senhor não existe outro... Oh, mas que estou ouvindo?!
            E Morcerf inclinou-se para a porta, pela qual entravam efetivamente sons correspondentes aos de uma guitarra.
            - Palavra, meu caro visconde, que está votado à música esta noite; só escapou ao piano de Mademoiselle Danglars para cair na gusla de Haydée.
            - Haydée! Que nome adorável! Há portanto mulheres que se chamam realmente Haydée sem ser nos poemas de Lorde Byron?
            - Com certeza. Haydée é um nome muito raro na França, mas bastante comum na Albânia e no Epiro. É como se dissesse, por exemplo, castidade, pudor, inocência. Trata-se de uma espécie de nome de batismo, como dizem os seus Parisienses.
            - Oh, como é encantador! - exclamou Albert, como se esperasse ver as nossas francesas chamarem-se Mademoiselle Bondade, Mademoiselle Silêncio, Mademoiselle Caridade Cristã! - Imagine se Mademoiselle Danglars, em vez de se chamar Claire-Marie-Eugênie, como se chama, se chamasse
Mademoiselle Castidade Pudor Inocência Danglars - apre! -, o efeito que isso não faria numa publicação de banhos!
            - Louco! - perguntou o conde. - Não graceje tão alto que Haydée poderá ouvi-lo.
            - E se zangaria?
            - Não - respondeu o conde, com o seu ar altivo.
            - É boa pessoa? - perguntou Albert.
            - Não se trata de bondade, mas sim de dever: uma escrava não se zanga com o seu senhor.
            - Vamos, não graceje o senhor agora! Porventura ainda há escravos?
            - Sem dúvida, uma vez que Haydée é a minha.
            - Com efeito, o senhor não faz nada nem é em nada como os outros. Escrava do Sr. Conde de Monte-Cristo! É uma posição na França. Da forma  como o senhor espalha o dinheiro, é um lugar que deve valer cem mil escudos por ano.
            - Cem mil escudos! A pobre criança já possuiu mais do que isso. Veio de um mundo em que os tesouros são tantos que ao pé deles os das Mil e Uma Noites são bem pouca coisa.
            - É portanto realmente uma princesa?
            - Sem dúvida nenhuma, e até  uma das maiores do seu país.
            - Já tinha imaginado. Mas como se tornou uma grande princesa escrava?
            - Como se tornou Dinis, o Tirano, professor primário?  Acasos da guerra, meu caro visconde, caprichos da sorte.
            - E o seu nome é segredo?
            - É, para todas as outras pessoas. Mas para o senhor, caro visconde, que é um dos meus amigos e que se calará... Não é verdade que me promete calar-se?
            - Oh, palavra de honra!
            - Conhece a história do pax  de Janina?
            - De Ali-Tebelin? Sem dúvida, pois foi ao seu serviço que o meu pai fez fortuna.
            - É verdade, tinha-me esquecido.
            - Bom, que era Haydée a Ali-tebelin?
            - Sua filha, muito simplesmente.
            - Como, filha de Ali-Pax ?!
            - E da bela Vasiliki.
            - E é sua escrava?
            - Oh, meu Deus, é!
            - Como é possível?
            - Ora essa, comprei-a ao passar um dia pelo Mercado de Constantinopla.
            - Esplêndido! Consigo, meu caro conde, não se vive, sonha-se. Agora ouça: é muito indiscreto o que vou lhe pedir...
            - Peça.
            - Mas uma vez que sai com ela, que a leva à Ópera...
            - E depois?
            - Posso arriscar-me a pedir-lhe isto?
            - O senhor pode arriscar-se a pedir-me tudo.
            - Nesse caso, meu caro conde, apresente-me à sua princesa. 
            - Com muito prazer. Mas com duas condições.
            - Aceito-as antecipadamente.
            - A primeira é que não revelará a ninguém essa apresentação.
            - Muito bem! - Morcerf estendeu a mão. - Juro-o!
            - A segunda é que não lhe dirá que o seu pai serviu o dela.
            - Juro-o também.
            - Ótimo, visconde. Não se esquecerá desses dois juramentos?
            - Oh! - exclamou Albert.
            - Muito bem. Sei que é um homem de honra.
            O conde tocou de novo a campainha. Ali apareceu.
            - Previna Haydée - disse-lhe Monte-Cristo - de que vou tomar o café com ela e de-lhe a entender que peço licença para lhe apresentar um dos meus amigos.
            Ali inclinou-se e saiu. 
            - Portanto, está combinado, nada de perguntas diretas caro visconde. Se desejar saber alguma coisa, pergunte-a a mim e eu perguntarei a ela.
            - Está combinado.
            Ali reapareceu pela terceira vez e manteve o reposteiro levantado para indicar ao amo e a Albert que podiam passar.
            - Entremos - disse Monte-Cristo.
            Albert passou a mão pelo cabelo e cofiou o bigode. O conde pegou o chapéu, calçou as luvas e precedeu Albert nos aposentos que Ali guardava como uma sentinela avançada e que defendiam como um posto as três criadas de quarto francesas, comandadas por Myrtho.
            Haydée esperava na primeira divisão, que era a sala, com os olhos muito abertos de surpresa. Porque era a primeira vez que outro homem além de Monte-Cristo penetrava nos seus aposentos. A jovem estava sentada num sofá, a um canto, com as pernas cruzadas debaixo do corpo, e fizera por assim dizer um ninho nos estofos de seda listrados e bordados, os mais ricos do Oriente. Junto dela encontrava-se o instrumento cujos sons a tinham denunciado. Eslava encantadora assim.
            Ao ver Monte-Cristo, levantou-se com o duplo sorriso de filha e amante que só ela possuía. Monte-Cristo aproximou-se e estendeu-lhe a mão, que ela, como de costume, beijou.
            Albert ficara ao pé da porta, dominado por aquela beleza estranha que via pela primeira vez e de que se não podia fazer qualquer idéia na França.
            - Quem me traz? - perguntou em romaico a jovem a Monte-Cristo. - Um irmão, um amigo, um simples conhecido ou um inimigo?
            - Um amigo - respondeu Monte-Cristo na mesma língua.
            - O seu nome?
            - O visconde Albert, o mesmo que tirei das mãos dos bandidos em Roma.
            - Em que língua quer que lhe fale?
            Monte-Cristo virou-se para Albert e perguntou-lhe:
            - Conhece o grego moderno?
            - Ai de mim, nem mesmo o grego antigo, meu caro conde! - respondeu Albert. - Nunca Homero e Platão tiveram mais fraco e, ouso até  dizer, mais desdenhoso estudante.
            - Então - disse Haydée, provando com as suas próprias palavras que entendera a pergunta de Monte-Cristo e a resposta de Albert -, falarei em francês ou em italiano, se o meu senhor desejar que fale.
            Monte-Cristo refletiu um instante.
            - Falará em italiano - disse.
            Depois, virando-se para Albert:
            - É pena que não entenda o grego moderno ou o grego antigo, pois Haydée fala ambos admiravelmente. A pobre pequena vai ser obrigada a falar-lhe em italiano, o que talvez lhe dê uma
falsa idéia a seu respeito.
            Em seguida fez um sinal de Haydée.
            - Seja bem-vindo, amigo, que vem com o meu senhor e amo - disse a jovem em excelente toscano, com a suave pronúncia romana que torna a língua de Dante tão sonora como a língua de Homero. - Ali, café e cachimbos!
            E Haydée fez com a mão sinal a Albert para se aproximar, enquanto Alia se retirava para cumprir as ordens da sua jovem ama.
            Monte-Cristo indicou a Albert dois bancos articulados e cada um foi buscar o seu, que trouxe para junto de uma espécie de mesinha cujo centro era ocupado por um narguilé e na qual se viam com profusão flores naturais, desenhos e álbuns de música.
            Ali regressou com o café e os chíbuques. Quanto ao Sr. Baptistin, aquela parte da casa estava-lhe vedada. Albert recusou o cachimbo que lhe apresentava o núbio.
            - Oh, aceite, aceite! - disse Monte-Cristo. - Haydée é quase tão civilizada como uma parisiense. O havano lhe é desagrável porque não aprecia os maus cheiros. Mas o tabaco do Oriente é um perfume, como sabe.
            Ali saiu.
            As xícaras de café estavam preparadas. Apenas se juntara, para Albert, um açucareiro. Monte-Cristo e Haydée tomavam a bebida árabe à moda dos árabes, isto é, sem açúcar.
            Haydée estendeu a mão e pegou com a ponta dos deditos rosados e afilados a xícara de porcelana do Japão, que levou aos lábios com o prazer ingênuo de uma criança que bebe ou come uma coisa de que gosta.
            Ao mesmo tempo, entraram duas mulheres com mais duas bandejas carregadas de gelados e sorvetes, que depositaram em cima de duas mesinhas destinadas a esse fim.
            - Meu caro anfitrião, e vós, signora - disse Albert em italiano –, desculpem a minha estupefação. Estou
completamente aturdido, como é natural. Eis-me no Oriente, no verdadeiro Oriente, infelizmente não tal como o vi, mas sim tal como o sonhei em Paris. Ainda há pouco tinha a sensação de ouvir passar o ônibus e tocar as campainhas dos vendedores de limonadas... Oh, signora, que pena eu não falar grego! A sua conversação, juntamente com este ambiente feérico, me proporcionaria uma noite de que nunca mais me esqueceria.
            - Falo bastante bem o italiano para falar consigo, senhor - respondeu tranquilamente Haydée. - E farei o possível, se gosta do Oriente, para que o reencontre aqui.
            - De que posso falar? - perguntou baixinho Albert a Monte-Cristo.
            - De tudo o que quiser. Do seu país, da sua juventude, das suas recordações. Depois, se preferir, de Roma, de Nápoles ou de Florença.
            - Oh, não valeria a pena estar diante de uma grega para lhe falar de tudo o que falaria a uma parisiense! - protestou Albert. - Deixe-me falar-lhe do Oriente.
            - De fato, meu caro Albert, é a conversação que mais lhe agrada.
            Albert virou-se para Haydée.
            - Com que idade, signora, deixou a Grécia? - perguntou.
            - Aos cinco anos - respondeu Haydée.
            - E ainda se lembra da sua pátria?
            - Quando fecho os olhos, revejo tudo o que vi. Há dois olhares: o olhar do corpo e o olhar da alma. O olhar do corpo pode às vezes esquecer, mas o da alma lembra-se sempre.
            - E qual é o tempo mais distante de que se recorda?
            - Mal andava. A minha mãe, que se chamava Vasiliki (Vasiliki quer dizer real) - acrescentou a jovem, erguendo a cabeça. - A minha mãe pegava-me na mão e, ambas cobertas com um véu, depois de metermos na bolsa todo o ouro  que possuíamos, íamos pedir esmola para os prisioneiros dizendo: “Quem dá aos
pobres, empresta a Deus."  Depois, quando tínhamos a bolsa cheia, regressavamos ao palácio e, sem dizer nada ao meu pai, mandavamos todo o dinheiro que nos tinham dado, tomando-nos por pobres mulheres, ao superior do convento, que o distribuía entre os prisioneiros.
            - E nessa época que idade tinha?
            - Três anos - respondeu Haydée.
            - Então, lembra-se de tudo o que se passou à sua volta a partir dos três anos?
            - De tudo.
            - Conde - disse baixinho Morcerf a Monte-Cristo –, devia permitir à signora que nos contasse um pouco da sua história. Proibiu-me de lhe falar do meu pai, mas talvez ela me fale dele, e não imagina quão feliz seria ouvindo sair o seu nome de tão bonita boca.
            Monte-Cristo virou-se para Haydée, e com um franzir de sobrolho indicativo de que devia conceder a maior atenção à recomendação que lhe ia fazer, disse-lhe em grego:
            - Conte-nos o destino do teu pai, mas não digas o nome do traidor nem fales da traição.
            Haydée soltou um longo suspiro e uma nuvem escura passou-lhe pela fronte tão pura.
            - Que lhe disse? - perguntou Morcerf em voz baixa.
            - Repeti-lhe que o senhor é um amigo e que não tem de se coibir na sua presença.
            - Portanto - disse Albert –, esse remoto peditório para os prisioneiros é a sua primeira recordação. Qual é a outra?
            - A outra? Vejo-me à sombra dos sicômoros, junto de um lago de que distingo ainda, através da folhagem, o espelho trêmulo. O meu pai estava sentado em coxins ao pé do mais velho e frondoso, e eu, fraca criança, enquanto a minha mãe estava deitada aos pés do marido, brincava com a barba branca do meu
progenitor, que lhe descia até  ao peito. E com o canjar de punho de diamantes que trazia à cintura. Depois, de vez em quando, aproximava-se dele um albanês que lhe dizia algumas palavras a que eu não prestava atenção e às quais ele respondia no mesmo tom de voz: “matem!", ou: “perdoem!"
            - É estranho - observou Albert - ouvir sair tais coisas da boca de uma jovem, sem ser num teatro.
            Ao mesmo tempo, dizia para consigo: “Isto não é ficção." E em seguida perguntou:
            - Comparados com esse ambiente tão poético e com esse passado maravilhoso, como acha a França?    
            - Creio que é um belo país - respondeu Haydée. - Mas eu vejo a França tal como é, porque a vejo com olhos de mulher, ao passo que me parece, pelo contrário, que o meu país, que só vi com olhos de criança, está sempre envolto numa neblina luminosa ou sombria, conforme os meus olhos a vêem como uma doce pátria ou como um lugar de amargos sofrimentos. 
            - Tão jovem já signora - disse Albert, cedendo, mal-grado seu, ao poder da banalidade -, como pode ter sofrido?
            Haydée olhou para Monte-Cristo, que, fazendo um sinal imperceptível, murmurou:
            - Conta.
            - Nada compõe o fundo da alma como as primeiras recordações, e, excetuando as duas que acabo de lhe referir, todas as recordações da minha juventude são tristes.
            - Fale, fale, signora - pediu Albert –, pois juro-lhe que a escuto com inexprimível prazer.
            Haydée sorriu tristemente.
            - Quer então que passe às minhas outras recordações?... - perguntou.
            - Suplico-lhe - respondeu Albert.
            - Pois bem, tinha quatro anos quando, uma noite, fui acordada por minha mãe. Estavamos no palácio de Janina. Ela pegou-me dos coxins onde eu dormia e quando abri os olhos vi os seus cheios de grossas lágrimas.
            "Levou-me sem dizer nada.
            "Ao vê-la chorar, eu ia chorar também.
            "- Silêncio, filha! - disse-me ela.
            "Muitas vezes, apesar das consolações ou das ameaças maternas, eu, caprichosa como todas as crianças, continuava a chorar. Mas desta vez havia na voz da minha pobre mãe tal intonação de terror que me calei imediatamente.
            "Ela levava-me rapidamente.
            "Vi então que descíamos uma escada larga. Diante de nós, todas as criadas da minha mãe, com cofres, saquinhos, objetos de adorno, jóias e bolsas de ouro desciam a mesma escada, ou antes, precipitavam-se por ela.
            "Atrás das mulheres vinha uma guarda de vinte homens armados de compridas espingardas e pistolas e envergando aquele traje que os senhores conhecem na França desde que a Grécia voltou a ser uma nação.
            "Havia algo de sinistro, acredite - acrescentou Haydée, abanando a cabeça e empalidecendo só de rememorar tais acontecimentos –, naquela longa fila de escravas e mulheres meio entorpecidas pelo sono, ou pelo menos assim me parecia, pois talvez julgasse os outros adormecidos por estar mal acordada.
            "Na escada corriam sombras gigantescas, que os archotes de abeto faziam tremer nas abôbadas.
            "- Despachem-se! - gritou uma voz ao fundo da galeria.
            "Aquela voz fez curvar todas as pessoas, tal como o vento ao passar pela planície faz curvar um campo de espigas.
            “A mim fez-me estremecer.
            "Aquela voz era a do meu pai.
            "Vinha atrás, envergando os seus esplêndidos trajes e empunhando uma carabina que o vosso imperador lhe  oferecera; e, ajudado pelo seu favorito Selim, levava-nos adiante de si como um pastor leva um rebanho tresmalhado.
            "O meu pai - disse Haydée, erguendo a cabeça - era um homem ilustre que a Europa conheceu sob o nome de Ali-Tebelin, pax de Janina, e diante do qual a Turquia tremeu.
            Sem saber porquê, Albert estremeceu ao ouvir estas palavras, proferidas com indefinível acento de altivez e dignidade. Pareceu-lhe que algo sombrio e  assustador brilhava nos olhos da jovem quando, qual pitonisa que evoca um fantasma, recordou a figura sangrenta, cuja morte terrível tornou gigantesca aos olhos da Europa contemporânea.
            - Em breve - continuou Haydée - a corrida se deteve.  Estavamos ao fundo da escada e à beira de um lago. A minha mãe apertava-me ao peito ofegante, e vi, dois passos atrás, meu pai, que deitava para todos os lados olhares inquietos.
            "Diante de nós estendiam-se quatro degraus de mármore, e ao fundo do último degrau balançava uma barca.
            "De onde estavamos via-se no meio do lago uma massa escura; era o quiosque para onde íamos.
            "O quiosque parecia-me encontrar-se a uma distância considerável, talvez devido à obscuridade.
            "Nos metemo-nos na barca. Lembro-me de que os remos não faziam nenhum ruído ao tocar na água. Inclinei-me para os ver: estavam envoltos nas faixas dos nossos palicários.
            "Na barca, além dos remadores, só seguiam mulheres, meu pai, minha mãe, Selim e eu.
            "Os palicários tinham ficado à beira do lago, ajoelhados no último degrau e utilizando os outros três como parapeito para o caso de serem atacados.
            "A nossa barca voava como o vento.
            "- Porque vai a barca tão depressa? - perguntei à minha mãe.
            "- Quieta, minha filha - respondeu-me ela. - É porque fugimos.
            "Não compreendi. Porque fugia o meu pai, o homem todo-poderoso diante do qual habitualmente fugiam os outros e que tomara como divisa: Odeiam-me, portanto temem-me?
            "Com efeito, era uma fuga o que o meu pai empreendia através do lago. Disse-me depois que a guarnição do castelo de Janina, cansada de um longo período de serviço...
            Aqui, Haydée pousou o seu olhar expressivo em Monte-Cristo, que não tirava os olhos dela. Em seguida continuou lentamente, como quem inventa ou suprime.
            - Dizia, signora - interveio Albert, que prestava a maior atenção à narrativa –, que a guarnição de Janina, cansada de um longo período de serviço...
            - Se entendera com o serasqueiro Kurchid, enviado pelo sultão para se apoderar do meu pai. Fora então que o meu pai resolvera retirar-se, depois de enviar ao sultão um oficial francês em quem depositava toda a confiança, para o retiro que ele próprio preparara havia muito tempo e a que chamava kataplrygion, ou seja, o seu refúgio."
            - E lembra-se do nome desse oficial, signora? - perguntou Albert.
            Monte-Cristo trocou com a jovem um olhar rápido como um relâmpago, mas que passou despercebido a Morcerf.
            -  Não, não me recordo - respondeu ela. - Mas talvez tarde me recorde e então lhe direi.
            Albert ia pronunciar o nome do pai, quando Monte-Cristo levantou devagar o dedo em sinal de silêncio. O jovem lembrou-se do seu juramento e calou-se.
            - Era para o quiosque que vogavamos. 
            "Um térreo ornado de arabescos e com os terraços ao nível da água, e um primeiro andar que dava para o lago, era tudo o que o palácio oferecia de visível à vista.
            "Mas por baixo do térreo e prolongando-se pela ilha ficava um subterrâneo, uma grande caverna para onde nos levavam, minha mãe, eu e as nossas criadas, e se amontoavam sessenta mil bolsas e duzentos barris. Nas bolsas havia vinte e cinco milhões em ouro e nos barris trinta mil libras de pólvora.
            "Selim, o favorito do meu pai de quem já lhe falei, velava dia e noite junto dos barris, tendo na mão uma lança na ponta da qual ardia uma mecha. Tinha ordem de fazer ir tudo pelo ar, quiosque, guardas, pax , mulheres e ouro, ao primeiro sinal do meu pai.
            "Recordo-me de que as nossas escravas, conhecedoras daquela temível vizinhança, passavam os dias e as noites rezando, chorando e gemendo.
            "Quanto a mim, não me sai da retina o jovem soldado pálido e de olhos negros, e quando o anjo da morte descer até  mim, estou certa de que reconhecerei Selim.
            "É-me impossível dizer quanto tempo ficamos assim. Nessa época, ainda ignorava o que era o tempo. às vezes, mas raramente, meu pai mandava-nos chamar, a minha mãe e a mim, ao terraço do palácio. Eram as minhas horas de recreio, à margem daquelas em que só via no subterrâneo sombras gemebundas e a
lança acesa de Selim. Sentado diante de uma grande abertura, meu pai observava com olhar sombrio as profundezas do horizonte, e especialmente cada ponto negro que aparecia no lago, enquanto a minha mãe, semideitada junto dele, apoiava a cabeça no seu ombro e eu brincava a seus pés, admirando com os
exageros da infância, que aumentam ainda mais os objetos, as escarpas do Pindo, que se erguiam no horizonte, os palácios de Janina, que safam brancos e angulosos das águas do lago, e os imensos tufos de verdura escura, presos como líquenes às rochas da montanha, que de longe pareciam musgos, mas de perto
eram abetos gigantescos e mirtos infindáveis.
            "Uma manhã, meu pai mandou-nos chamar. O encontramos bastante calmo, mas mais pálido do que de costume.
            "- Tem paciência, Vasiliki, hoje tudo ficará resolvido. Hoje chega o irmão do sultão e a minha sorte será  decidida. Se o perdão for completo, regressaremos triunfantes a Janina; se as notícias forem más, fugiremos esta noite.
            "- E se não nos deixam fugir? - perguntou a minha mãe.
            "- Oh, fique tranquila - respondeu Ali, sorrindo. - Selim e a sua lança acesa se encarregarão deles, gostariam de me ver morto, mas com a condição de não morrerem comigo.
            "A minha mãe respondeu apenas com suspiros às suas palavras de conforto, que não partiam do coração do meu pai.
            "Ela preparou-lhe a água gelada que ele bebia a cada instante, pois desde que se retirara para o quiosque era devorado por uma febre ardente; perfumou-lhe a barba branca e acendeu-lhe o chíbuque, cujo fumo volatilizando-se no ar ele seguia às vezes durante horas inteiras, distraidamente, com os olhos.
            "De súbito, fez um gesto tão brusco que me assustou.
            "Depois, sem desviar os olhos do ponto de que fixava com atenção, pediu o óculo. 
            "A minha mãe passou-lhe, mais branca do que o estuque a que se encostava.
            "Vi a mão do meu pai tremer.
            "- Uma barca!... Duas!... Três!... - murmurou o meu pai. - Quatro!...
            "E levantou-se, pegou nas suas armas e deitou, lembro-me perfeitamente, pólvora na caçoleta das pistolas.
            "- Vasiliki - disse a minha mãe, tremendo visivelmente -, chegou o instante que vai decidir de nós. Dentro de meia hora saberemos a resposta do Sublime Imperador. Retire-se para o subterrâneo com Haydée.
            "- Não te quero deixar - perguntou Vasiliki. - Se morrer, meu senhor, quero morrer contigo.
            "- Vai para junto de Selim! - gritou o meu pai.
            "- Adeus, senhor - murmurou minha mãe, obedecendo, dobrada em duas, como se esperasse a aproximação da morte.       
            "- Levem Vasiliki - ordenou meu pai aos seus palicários.
            "Mas eu, de quem se esqueciam, corri para ele e estendi-lhe as mãos. Ele viu-me, inclinou-se para mim e beijou-me na testa.
            "Oh, esse beijo foi o último e ainda o sinto na testa!
            "Quando descemos distinguimos através das latadas do terraço as barcas que iam aumentando de tamanho no lago e que, semelhantes pouco antes a pontos negros, pareciam agora aves rasando a superfície das ondas.
            "Entretanto, no quiosque, vinte palicários, sentados aos pés de meu pai e escondidos pelos  madeiramentos, espiavam com olhos raiados de sangue a chegada dos barcos e tinham junto de si grandes espingardas incrustadas de madrepérola e prata; no parque encontravam-se espalhados numerosos cartuchos. Meu pai consultava o relógio e passeava angustiado.
            "Foi isso que mais me impressionou quando deixei meu pai depois de me dar o último beijo que recebi dele.
            "Atravessamos, minha mãe e eu, o subterrâneo. Selim continuava no seu posto. Sorriu-nos tristemente. Fomos buscar almofadas ao outro lado da caverna e viemos sentar-nos junto de Selim. Nos grandes perigos, procuram-se os corações dedicados e, apesar de muito criança, sentia instintivamente que uma grande desgraça pairava sobre a nossa cabeça.
            Albert ouvira muitas vezes contar, não pelo pai, que nunca falava disso, mas sim por estranhos, os últimos momentos do vizir de Janina. Também lera diversas narrativas da sua morte. Mas aquela história, tornada viva na pessoa e pela voz da jovem, aquele tom expressivo e aquela lamentável elegia, penetravam-no simultaneamente de um encanto e de um horror inexprimíveis.
            Quanto a Haydée, toda entregue a tão terríveis recordações, calara-se por instantes. A sua cabeça, como uma flor que se verga em dia de tempestade, estava inclinada sobre uma das mãos, e os seus olhos, vagamente perdidos, pareciam ver ainda no horizonte o Pindo verdejante e as águas azuis do lago de Janina, espelho m gico que reflectia o quadro sombrio que ela esboçava.
            Monte-Cristo olhava-a com indefinível expressão de interesse e piedade.
            - Continua, minha filha - disse o conde em língua romaica. Haydée ergueu a cabeça como se as palavras sonoras que Monte-Cristo acabara de pronunciar a tivessem arrancado a um sonho e prosseguiu: 
            - Eram quatro da tarde. Mas embora o dia estivesse  límpido e brilhante lá fora, nós estavamos mergulhados na sombra do subterrâneo.
            "Uma única claridade brilhava na caverna, semelhante a uma estrela tremeluzente no fundo de um céu negro: a mecha de Selim. A minha mãe, que era cristã, rezava.
            "Selim repetia de vez em quando estas palavras consagradas: "Deus é grande!"
            "No entanto, a minha mãe ainda tinha alguma esperança. Ao descer julgara reconhecer o francês que fora enviado a Constantinopla e no qual o meu pai depositava toda a confiança, pois sabia que os soldados do sultão francês eram geralmente nobres e generosos. Minha mãe deu alguns passos para a escada e escutou.
            "- Aproximam-se - disse ela. - Oxalá  tragam a paz e a vida.
            "- Que receias, Vasiliki? - perguntou-lhe Selim, na sua voz tão suave e ao mesmo tempo tão orgulhosa. - Se não trouxerem a paz, lhes daremos a morte.
            "E espevitou a chama da lança com um gesto que o assemelhava ao Dionisos da antiga Creta.
            "Mas eu, que era tão criança e tão ingênua, tinha medo daquela coragem que me parecia feroz e insensata, e horrorizava-me a morte terrível que pairava no ar e na chama.
            "A minha mãe experimentava as mesmas impressões, porque sentia-a tremer.
            "- Meu Deus! Meu Deus, mãezinha! - gritava. - Vamos morrer?
            "E perante os meus gritos, os choros e as preces das escravas redobravam.
            "- Criança - respondeu-me Vasiliki –, Deus te defenda de vir a desejar a morte que hoje teme!
            "Depois, baixinho:
            "- Selim, qual é a ordem do senhor? - perguntou.
            "- Se me enviar o seu punhal, será sinal de que o sultão recusa perdoar-lhe e pego o fogo; se me mandar o seu anel, é porque o sultão lhe perdoa e deixo a pólvora.
            "- Amigo - prosseguiu a minha mãe–, quando a ordem do senhor chegar, se for o punhal que enviar, em vez de nos matares a ambas dessa maneira que nos horroriza, te estenderemos o pescoço e nos matará com o punhal.
            "- Sim, Vasiliki - respondeu tranquilamente Selim.
            "De súbito, ouvimos como que grandes gritos. Escutamos: eram gritos de alegria. Ouvia-se o nome do francês que fora enviado a Constantinopla repetido pelos nossos palicários. Era evidente que trazia a resposta do Sublime Imperador e que essa resposta era favorável.
            - E não se lembra do nome desse francês? - perguntou Morcerf, pronto a ajudar a memória da narradora.
            Monte-Cristo fez-lhe um sinal.
            - Não, não me lembro - respondeu Haydée, que prosseguiu: - O barulho aumentava. ouviam-se passos cada vez mais próximos. Desciam os degraus do subterrâneo.
            "Selim preparou a lança.
            "Não tardou a aparecer uma sombra no crepúsculo azulado formado pelos raios do Sol que penetravam até  à entrada do subterrâneo. 
            "- Quem é você? - gritou Selim. - Mas seja quem for, não dê mais um passo.
            "- Glória ao Sultão! - gritou o homem. - Foi concedido perdão completo ao vizir Ali. E não só tem a vida salva, como ainda lhe restituem a sua fortuna e os seus bens.
            " A minha mãe soltou um grito de alegria e apertou-me ao coração.
            "- Pare! - gritou-lhe Selim, vendo que ela corria já para a saída. - Bem sabe que me falta o anel.
            "- Tem razão - concordou minha mãe, e ao mesmo tempo que cala de joelhos erguia-me para o céu, como se não lhe bastasse pedir a Deus por mim e quisesse ainda aproximar-me dele.
            E Haydée deteve-se pela segunda vez, dominada por tal emoção que o suor lhe escorria da testa pálida e a voz estrangulada parecia não conseguir sair-lhe da garganta ressequida.
            Monte-Cristo deitou um pouco de água gelada num copo e ofereceu-lho, ao mesmo tempo que dizia com uma doçura em que se notavam laivos de ordem:
            - Coragem, minha filha!
            Haydée limpou os olhos e a testa e continuou:
            - Entretanto, os nossos olhos, habituados ao escuro, tinham reconhecido o enviado do pax : era um amigo.
            "Selim reconhecera-o, mas o corajoso rapaz só sabia uma coisa: obedecer!
            "- Em nome de quem vem? - perguntou.
            "- Venho em nome do nosso amo, Ali-Tebelin.
            "- Se vens em nome de Ali, sabe o que me deve entregar?
            "- Sei e te trago o seu anel - respondeu o enviado.
            "Ao mesmo tempo, ergueu a mão acima da cabeça. Mas estava demasiado longe e não havia luz suficiente para que Selim pudesse, de onde estavamos, distinguir e reconhecer o objeto que lhe apresentavam.
            "- Não vejo o que tem na mão - disse Selim.
            "- Aproxime-se ou me aproximarei eu - sugeriu o mensageiro.
            "- Nem um nem outro - respondeu o jovem soldado. - Põe aí onde está e debaixo desse raio de luz o objeto que me mostra e retire-se até  eu o ver.
            "- Seja - disse o mensageiro.
            "E retirou-se, depois de colocar o sinal de reconhecimento no lugar indicado.
            "O nosso coração palpitava. Porque o objeto nos parecia ser efetivamente um anel. Mas seria o anel do meu pai?
            "Selim, empunhando sempre a mecha acesa, aproximou-se da abertura, inclinou-se radiante sob os raios de luz e apanhou o sinal.
            "- O anel do senhor - disse, beijando-o. - Muito bem.
            "E deitando a mecha ao chão, calcou-a e apagou-a.
            "O mensageiro soltou um grito de alegria e bateu as mãos. A este sinal, quatro soldados do serasqueiro Kurchid acorreram e Selim caiu atingido por cinco punhaladas. Cada um dera a sua.
            "E depois, ébrios do crime que tinham cometido, embora pálidos de medo, percorreram o subterrâneo, procurando por toda a parte se havia fogo e rebolando-se sobre os sacos de ouro. 
            "Entretanto, a minha mãe tomou-me nos braços e, ágil, metendo por sinuosidades só nossas conhecidas, chegou a uma escada oculta do quiosque, no qual reinava um tumulto medonho.
            "As salas de baixo estavam inteiramente ocupadas pelos tchodoares de Kurchid, isto é, pelos nossos inimigos.
            "No momento em que a minha mãe ia empurrar a portinha, ouvimos soar, terrível e ameaçadora, a voz do pax .
            "A minha mãe colou um olho às fendas das tábuas; uma abertura ficou, por acaso diante de mim e olhei.
            "- Que quer? - perguntava o meu pai a uns homens que tinham um papel com caracteres dourados na mão.
            "- O que queremos - respondeu um deles – é comunicare a vontade de Sua Alteza. Vê este firmão?
            "- Vejo - respondeu o meu pai.
            "- Então, leia-o. Pede a tua cabeça.
            "Meu pai soltou uma gargalhada, mais assustadora do que se fosse uma ameaça. Ainda se não calara quando dois tiros partiram das suas mãos e mataram dois homens.
            "Os palicários, que estavam deitados à volta do meu pai, de cara para o chão, levantaram-se então e fizeram fogo. A sala encheu-se de barulho, chamas e fumo.
            "No mesmo instante o fogo começou do outro lado e as balas vieram perfurar as tábuas à nossa volta.
            "Oh, como era belo, como era grande, o vizir Ali-Tebelin, meu pai, no meio das balas, de cimitarra em punho e o rosto negro de pólvora! Como os seus inimigos fugiam!
            "- Selim! Selim! Guarda do fogo, cumpre o teu dever! - gritava.
            "- Selim morreu! - respondeu uma voz que parecia sair das profundezas do quiosque. - E você, meu senhor Ali, está perdido!
            "Ao mesmo tempo, ouviu-se uma detonação abafada e o pavimento voou em pedaços a toda a volta do meu pai.
            " Os tchodoares disparavam através do parque. Três ou quatro palicários caíram, atingidos de baixo para cima, com ferimentos por todo o corpo.
            "O meu pai rugiu, meteu os dedos nos buracos das balas e arrancou uma tábua inteira.
            "Mas ao mesmo tempo, por essa abertura soaram vinte tiros e as chamas, como se saíssem da cratera de um vulcão, alcançaram as tapeçarias, que devoraram.
            "No meio de todo aquele tumulto horrível, no meio daqueles gritos terríveis, dois tiros mais distintos do que os outros e dois gritos mais dilacerantes do que quaisquer outros gelaram-me de terror. As duas explosões tinham atingido mortalmente o meu pai e fora ele que soltara os dois gritos.
            "No entanto, tinha ficado de pé, agarrado a uma janela. Minha mãe sacudia a porta para ir morrer com ele, mas a porta estava fechada por dentro.
            "À volta dele, os palicários contorciam-se nas convulsões da agonia; dois ou três, que não estavam feridos ou o estavam apenas ligeiramente, atiraram-se das janelas. Ao mesmo tempo, todo o pavimento estalou, quebrado por baixo. Meu pai caiu sobre um joelho. Imediatamente se estenderam vinte braços
armados de  sabres, pistolas e punhais, e vinte golpes atingiram simultaneamente um só homem. Meu pai desapareceu num turbilhão de fogo ateado por aqueles demônios rugidores, como se o Inferno se lhe tivesse aberto debaixo dos pés.
            “Senti-me cair no chão; era a minha mãe que perdia os sentidos.
            Haydée deixou cair os braços, soltou um gemido e olhou o conde, como se lhe perguntasse se estava satisfeito com a sua obediência.
            O conde levantou-se, aproximou-se dela, pegou-lhe na mão e disse-lhe em romaico:
            - Descansa, querida filha, e ganha coragem pensando que há um Deus que castiga os traidores.
            - Uma história espantosa, conde - disse Albert, muito preocupado com a palidez de Haydée. - já estou arrependido de ter sido tão cruelmente indiscreto.
            - Isto não é nada - respondeu Monte-Cristo.
            Depois, pôs a mão na cabeça da jovem e acrescentou:
            - Haydée é uma mulher corajosa e encontra por vezes alívio falando dos seus sofrimentos.
            - Porque, meu senhor - disse vivamente a jovem -, porque os meus sofrimentos me recordam os teus benefícios. Albert olhou-a com curiosidade, porque ela ainda não contara o que mais desejava saber, isto é, como se tornara escrava do conde.
            Haydée viu expresso o mesmo desejo, tanto nos olhos do conde como nos de Albert. E continuou:
            - Quando a minha mãe recuperou os sentidos, estavamos diante do serasqueiro.
            “- Mata-me - disse ela –, mas poupa a honra da viúva de Ali.
            "- Não é a mim que te deve dirigir - perguntou Kurchid.
            "- Então a quem?
            "- Ao teu novo senhor.
            "- Quem é?
            "- Ei-lo.
            “E Kurchid indicou-nos um daqueles que mais tinham contribuído para a morte do meu pai - acrescentou a jovem, com uma cólera sombria.
            - Tornaram-se então propriedade desse homem? - perguntou Albert.
            - Não - respondeu Haydée. - Não ousou conservar-nos e vendeu-nos a negociantes de escravos que iam para Constantinopla. Atravessamos a Grécia e chegamos quase moribundas à porta imperial, cheia de curiosos, que se afastavam para nos deixar passar. De súbito, a minha mãe seguiu com a vista a direção dos seus olhares, soltou um grito e caiu, ao mesmo tempo que me mostrava uma cabeça por cima da porta. Por baixo da cabeça encontravam-se escritas estas palavras: “Esta é a cabeça de Ali-Tebelin, pax  de Janina."
            "Tentei, chorando, levantar minha mãe; estava morta!
            "Levaram-me para o bazar. Um rico armênio comprou-me, mandou-me educar, deu-me professores, e quando fiz treze anos vendeu-me ao sultão Mahmud.
            - A quem - interveio Monte-Cristo a resgatei; como já lhe disse, Albert, em troca da esmeralda idêntica àquela onde guardo as minhas pastilhas de haxixe.
            - Oh, você é bom, você é grande, meu senhor! - exclamou Haydée, beijando a mão de Monte-Cristo. - E sou muito feliz por lhe pertencer! 
            Albert ficara aturdido com o  que acabava de ouvir.
            - Acabe a sua xícara de café - disse-lhe o conde. - A história terminou.


capítulo LXXVIII

Escrevem-nos de Janina


            Franz saíra do quarto de Noirtier tão cambaleante e desorientado que a própria Valentine tivera compaixão dele. Villefort, que apenas articulara algumas palavras sem sentido e se metera no seu gabinete, recebeu duas horas mais tarde a seguinte carta:
            “Depois do revelado esta manhã, o Sr. Noirtier de Villefort não acha possível uma aliança entre a sua família e a do Sr. Franz de Epinay. O Sr. Franz de Epinay, pela sua parte, considera horrível que o Sr. Villefort, que parecia conhecer os acontecimentos revelados esta manhã, o não tenha prevenido a tal respeito."
            Quem visse naquele momento o magistrado vergado ao golpe que o atingira não acreditaria que o previsse. Com efeito, nunca lhe passaria pela cabeça que o pai levasse a franqueza, ou antes a rudeza, ao ponto de contar semelhante história. Verdade seja que o Sr. Noirtier, que não ligava grande importância à
opinião do filho, nunca se preocupara em esclarecer o caso aos olhos de Villefort, e que este sempre acreditara que o general de Quesnel ou o barão de Epinay, como se lhe quisesse chama, tratando-o pelo nome com que nascera ou por aquele que lhe tinham dado, fora assassinado e não morto lealmente em duelo.
            Esta carta, tão dura da parte de um rapaz até ali tão respeitoso, era mortal para o orgulho de um homem como Villefort.
            Mal acabara de entrar no gabinete, apareceu a mulher,
            A saída de Franz, chamado pelo Sr. Noirtier, surpreendera de tal modo todas as pessoas que a posição da Sra de Villefort, que ficara sozinha com o tabelião e as testemunhas, se tornara de momento a momento mais embaraçosa. Então, a Sra de Villefort tomara a decisão de sair, anunciando que ia saber o que se passava.
            O Sr. de Villefort limitou-se a dizer-lhe que depois de uma explicação entre ele, o Sr. Noirtier e o Sr. de Epinay o casamento de Valentine com Franz fora desfeito. Era difícil dar semelhante notícia àqueles que esperavam. Por isso, a Sra de Villefort, limitou-se a dizer, quando regressou, que o Sr. Noirtier tivera, no inicio da conferência, uma espécie de ataque de apoplexia, pelo que naturalmente o contrato era adiado por alguns dias.
            Esta notícia, apesar de falsa, vinha tão singularmente na sequência de duas desgraças do mesmo gênero que os presentes se entreolharam atônitos e se retiraram sem dizer palavra. Entretanto, Valentine, feliz e assustada ao mesmo tempo, depois de beijar e agradecer ao pobre velho, que acabava de quebrar assim, de um só golpe, uma união que ela via já como indissolúvel, pedira licença para se retirar para o seu   quarto, a fim de se recompor, e Noirtier dera-lhe, de olhar brilhante, a licença solicitada.
            Mas em vez de subir ao seu quarto, Valentine, logo que saiu, meteu pelo corredor, transpôs a portinha e correu para o jardim. No meio de todos os acontecimentos que acabavam de se amontoar uns sobre os outros, um terror surdo oprimira-lhe constantemente o coração. Esperava de um momento para o outro ver aparecer Morrel, pálido e ameaçador como o laird de Ravenswood no contrato de Lucie de Lammermoor.
            Com efeito, era tempo de se dirigir ao portão. Maximilien, que desconfiara do que se iria passar ao ver Franz deixar o cemitério com o Sr. de Villefort, seguira-o. Em seguida, depois de o ver entrar, vira-o sair novamente e regressar com Albert e Chateau-Rcnaud. Para ele, não havia portanto mais dúvidas. Correra então para o seu cercado, pronto para o que desse e viesse, e certo de que no primeiro momento de
liberdade que conseguisse, Valentine correria ao seu encontro.
            Não se enganara; com efeito, de olho colado às tábuas, viu aparecer a jovem, que, sem tomar nenhuma das precauções habituais, corria para o portão. Ao primeiro olhar que lhe deitou, Maximilien ficou tranquilo, e à primeira palavra que ela pronunciou. saltou de alegria.
            - Salvos! - disse Valentine.
            - Salvos! - repetiu Morrel, sem poder acreditar em semelhante felicidade. -  Mas salvos por quem?
            - Pelo meu avô. Oh, ame-o muito, Morrel!
            Morrel jurou amar o velho com toda a sua alma, juramento que lhe não custava nada fazer, pois naquele momento não se limitava a amá-lo como um amigo ou como um pai, adorava-o como um deus.
            - Mas como foi isso? - perguntou Morrel. - Que meio estranho empregou ele?
            Valentine abria já a boca para contar tudo, mas pensou que havia no fundo de tudo aquilo um segredo terrível que não pertencia exclusivamente ao avô.
            - Mais tarde lhe contarei tudo - respondeu.
            - Mas quando?
            - Quando for sua mulher.
            Era colocar a conversa num pé em que Morrel era capaz de entender tudo. Por isso, entendeu mesmo que se devia contentar com o que sabia, e que era bastante para um dia.  No entanto, só consentiu em se retirar depois de ter a promessa de que veria Valentine no dia seguinte à noite.
            Valentine prometeu o que Morrel quis. A seus olhos tudo mudara, e claro que lhe era agora menos difícil acreditar que casaria com Maximilien do que convencer-se uma hora antes que não casaria com Franz.
            Entretanto, a Sra de Villefort subira aos aposentos de Noirtier. Noirtier olhou-a com o ar sombrio e severo com que costumava recebê-la.
            - Senhor - começou ela -, escuso de lhe dizer que o casamento de Valentine foi desfeito, pois foi aqui que o rompimento se verificou.
            Noirtier permaneceu impassível.
            - Mas - continuou a Sra de Villefort - o que o senhor não sabe é que sempre me opus a esse casamento, que se efetuava mal-grado meu.
            Noirtier fitou a nora como homem que espera uma explicação.
            - Ora, agora que o casamento, acerca do qual eu conhecia a sua repugnância, está desfeito, venho fazer junto do senhor uma diligência que nem o Sr. de Villefort nem Valentine podem fazer.
            Os olhos de Noirtier perguntaram qual era essa diligência.
            - Venho pedir-lhe, senhor - continuou a Sra de Villefort  -, como a única pessoa que tem esse direito, pois sou a única que não ganharei nada com isso venho pedir-lhe, repito, que restitua, não direi as suas boas graça, porque ela sempre as teve, mas sim a sua fortuna à sua neta.
            Os olhos de Noirtier ficaram um instante indecisos; procurava evidentemente os motivos de tal diligência e não os conseguia encontrar.
            - Posso esperar, senhor, que as suas intenções estejam de harmonia com o pedido que acabo de lhe fazer? - perguntou a Sra de Villefort.
            - Pode - respondeu Noirtier.
            - Nesse caso, senhor, retiro-me ao mesmo tempo reconhecida e feliz - declarou a Sr a de Villefort
            E retirou-se depois de cumprimentar Noirtier.
            Com efeito, no dia seguinte Noirtier mandou chamar o tabelião. O primeiro testamento foi rasgado e fez-se outro novo em que ele deixava toda a sua fortuna a Valentine, com a condição de a não separarem dele.
            Algumas pessoas calcularam então que Mademoiselle de Villefort, herdeira do marquês e da marquesa de Saint-Méran e reentrada nas boas graças do avô, teria um dia muito perto de trezentas mil libras de rendimento
            Enquanto o casamento se rompia em casa dos Villeforts, o Sr. Conde de Morcerf recebia a visita de Monte-Cristo, e, para mostrar a Danglars a sua prontidão, envergava o seu grande uniforme de tenente-general, que adornara com todas as suas condecorações, e pedia os seus melhores cavalos. Assim vestido, dirigiu-se para a Rua da Chaussée-d'Antin e mandou-se anunciar a Danglars, que elaborava o seu balancete
de fim de mês.
            Havia algum tempo que aquele não era o momento mais indicado para apanhar o banqueiro de bom humor. Por isso, ao ver o aspecto do seu velho amigo, Danglars tomou o seu ar majestoso e instalou-se sem cerimônia na sua poltrona.
            Morcerf, habitualmente tão empertigado, tomara, pelo contrário, um ar risonho e afável; e como estava quase certo de que a sua proposta ia receber um bom acolhimento, pôs de lado a diplomacia e foi direito ao assunto:
            - Barão, aqui estou - disse. - há muito tempo que giramos à volta das nossas palavras de outrora.
            Morcerf esperava, após estas palavras, ver abrir-se o rosto do banqueiro, cujo ar carrancudo atribuía ao silêncio que mantivera até  ali; mas, pelo contrário, o rosto do banqueiro tornou-se, o que era quase incrível, ainda mais impassível e frio. Por isso, Morcerf parara no meio da frase.
            - Quais palavras, Sr. Conde? - perguntou o banqueiro, como se procurasse em vão no seu espírito a explicação do que o general queria dizer.
            - Oh, é formalista, meu caro senhor, e lembra-me que o cerimonial deve obedecer a todos os ritos! - perguntou o conde. - Muito bem! Perdoe-me, mas como só tenho um filho e é a primeira vez que penso em casá-lo, estou ainda aprendendo. Vamos, desculpe-me. 
            E Morcerf, com um sorriso forçado, levantou-se, fez uma profunda reverência a Danglars e disse-lhe:
            - Sr. Barão, tenho a honra de lhe pedir a mão de Mademoiselle Eugênie Danglars, sua filha, para o meu filho, o visconde Albert de Morcerf.
            Mas Danglars, em vez de acolher estas palavras com a satisfação que Morcerf devia esperar dele, franziu o sobrolho e, sem convidar o conde, que estava de pé, a sentar-se, perguntou:
            - Sr. Conde, preciso refletir antes de lhe responder.
            - De refletir! - exclamou Morcerf, cada vez mais atônito. - Não teve tempo de refletir desde que há perto de oito anos falamos deste casamento pela primeira vez?
            - Sr. conde - disse Danglars –, todos os dias acontecem coisas que levam a que as reflexões que se julgavam feitas tenham de ser revistas.
            - Como? - perguntou Morcerf. - Cada vez o compreendo menos, barão!
            - Quero dizer, senhor, que há quinze dias, novas circunstâncias...
            - Um momento - atalhou Morcerf. - Estamos ou não estamos a desempenhar uma comédia?
            - Ora essa, uma comédia?...
            - Sim, expliquemo-nos categoricamente.
            - Não quero outra coisa.
            - Falou com o Sr. de Monte-Cristo!
            - Falo com ele muitas vezes - respondeu Danglars, sacudindo as pregas do peitilho. - É um dos meus amigos.
            - Pois numa das últimas vezes que falou com ele disse-lhe que eu parecia esquecido, irresoluto, a respeito do casamento.
            - É verdade.
            - Por isso aqui estou. Não sou nem esquecido nem irresoluto, como vê, pois venho convidá-lo a cumprir a sua promessa.
            Danglars não respondeu.
            - Mudou assim tão depressa de opinião ou provocou o meu pedido apenas para ter o prazer de me humilhar? - quis saber Morcerf.
            Danglars compreendeu que, se continuasse a conversa naquele tom, o caso poderia tomar mau aspecto para si.
            - Sr. Conde - disse –, tem razão em estar surpreendido com a minha reserva. Compreendo isso e creia que sou o primeiro a lamentá-lo. Mas a minha atitude ‚me é imposta por circunstâncias imperiosas.
            - Isso são desculpas de mau pagador, meu caro senhor, com que talvez se contentasse qualquer pobre-diabo. Mas o conde de Morcerf não é um pobre-diabo. E quando um homem como ele vem procurar outro homem e lembrar-lhe a palavra dada, e esse homem falta à sua palavra, tem o direito de exigir que lhe
dêem ao menos uma boa razão.
            Danglars era covarde, mas não o queria parecer, e sentiu-se picado pelo tom que Morcerf acabava de tomar.
            - Também não é a boa razão que me falta - replicou.
            - Que pretende dizer?
            - Que tenho essa boa razão, mas que é difícil de dá-la. 
            - Vê no entanto - perguntou Morcerf - que não posso contentar-me com as suas reticências. Em todo o caso, uma coisa me parece clara: que recusa a minha aliança.
            - Não, senhor - contrapós Danglars. – suspendo apenas a minha resolução.
            - Suponho, porém, que não tem a pretensão de crer que me submeto aos seus caprichos a ponto de esperar tranquila e humildemente que me volte a conceder as suas boas graças?...
            - Nesse caso, Sr. Conde, se não pode esperar, consideremos os nossos projetos anulados.
            O conde mordeu os lábios até sangrarem para não explodir como o seu temperamento orgulhoso e irritável lhe aconselhava. No entanto, compreendendo que em semelhantes circunstâncias o ridículo estaria do seu lado, começara já a dirigir-se para a polia da sala, quando, reconsiderando, voltou atrás.
            Acabava de lhe passar uma nuvem pela testa, onde ficara, em vez do orgulho ferido, vestígios de uma vaga inquietação.
            - Vejamos, meu caro Danglars: conhecemo-nos há muitos anos e portanto devemos ter alguma consideração um pelo outro. O senhor deve-me uma explicação, e o mínimo que posso desejar é saber a que infeliz acontecimento deve o meu filho a perda das suas boas intenções a seu respeito.
            - Não e nada que se relacione pessoalmente com o visconde, é tudo o que lhe posso dizer, senhor - respondeu Danglars, que reassumia o seu ar impertinente à medida que via Morcerf amansar.
            - Então relaciona-se pessoalmente com quem? - perguntou Morcerf com voz alterada, ao mesmo tempo que a testa se lhe cobria de palidez.
            Danglars, a quem nenhum destes sintomas escapava, pousou nele um olhar mais firme do que de costume.           
            - Agradeça-me não me explicar mais - disse.
            Uma tremura nervosa, proveniente sem dúvida de uma cólera contida agitava Morcerf:
            - Tenho o direito... - começou, fazendo um violento esforço sobre si mesmo. - Tenciono exigir-lhe que se explique. Tem alguma coisa contra a Sra de Morcerf? É a minha fortuna que é insuficiente? São as minhas opiniões, que, por serem contrárias às suas...
            - De modo nenhum, senhor - respondeu Danglars. - E se se tratasse disso, seria imperdoável da minha parte, uma vez que me comprometi sabendo todas essas coisas. Não, não procure mais. Sinto-me sinceramente envergonhado de levá-lo a fazer esse exame de consciência. Fiquemos por aqui, que é o melhor, acredite. Aceitemos o meio termo do adiamento, que não é nem um rompimento nem um compromisso. Nada nos apressa, meu Deus! A minha filha tem dezessete anos e o seu filho vinte e um.
Enquanto esperamos, o tempo passará e comporá os acontecimentos. As coisas que parecem escuras na véspera são por vezes claríssimas no dia seguinte e num dia desfazem-se as mais cruéis calúnias:
            - Calúnias, disse o senhor?! - gritou Morcerf, tornando-se lívido. - Caluniam-me? A mim?!
            - Sr. Conde, deixemo-nos de explicações, peço-lhe.
            - Quer dizer, senhor, que deverei suportar tranquilamente essa recusa? 
            - Penosa sobretudo para mim, senhor. Sim, mais penosa para mim do que para si. porque considerava uma honra a nossa aliança, e um casamento desfeito prejudica sempre mais a noiva do que o noivo.
            - Está bem, senhor, não falemos mais a tal respeito - concordou Morcerf.
            E, amarrotando as luvas com raiva, saiu do aposento.
            Danglars notou que nem uma só vez Morcerf ousara perguntar se era por causa dele, Morcerf; que Danglars retirava a sua palavra. À noite, teve uma longa conferência com vários amigos, e o Sr. Cavalcanti, que se mantivera constantemente na sala das senhoras, foi o último a sair de casa do banqueiro.
            No dia seguinte, ao acordar, Danglars pediu os jornais, que lhe trouxeram imediatamente. Pôs de lado três ou quatro e pegou no Impartial. Era aquele em que Beauchamp ocupava o cargo de redator principal.
            Quebrou rapidamente a cinta, abriu-o com uma precipitação nervosa, passou desdenhosamente pelo premier Paris e, chegado aos faits divers, deteve-se com o seu sorriso maldoso numa notícia breve que começava assim:  “Escrevem-nos de Janina... "
            - Pronto - disse depois de ler –, aqui está um artigozinho sobre o coronel Fernand, que, segundo todas as probabilidades, me dispensará de dar explicações ao Sr. Conde de Morcerf.
            Na mesma altura, isto é, cerca das nove horas da manhã, Albert de Morcerf; vestido de preto, metodicamente abotoado e com o passo agitado e a palavra breve, apresentava-se na casa dos Campos Elísios.
            - O Sr. Conde saiu há pouco mais ou menos meia hora - informou-o o porteiro.
            - Levou Baptistin? - perguntou Morcerf.
            - Não, Sr. Visconde.
            - Chame Baptistin, quero falar com ele.
            O próprio porteiro foi chamar o criado de quarto, com o qual regressou pouco depois.
            - Meu amigo - disse Albert –, peço-lhe desculpa da minha indiscrição, mas queria perguntar-lhe pessoalmente: o seu amo saiu de fato?
            - Saiu, sim, senhor - respondeu Baptistin.
            - Mesmo para mim?
            - Sei quanto o meu amo sente prazer em receber V. Exª , e de modo algum o incluiria numa medida geral.
            - Ainda bem, porque preciso lhe falar de um caso grave. Acha que se demorará?
            - Não, porque pediu o almoço para as dez horas.
            - Bom, vou dar uma volta pelos Campos Elísios e às dez estarei aqui. Se o Sr. Conde regressar antes de mim, diga-lhe que lhe peço para me esperar.
            - Não me esquecerei, senhor, pode estar certo.
            Albert deixou à porta do conde o cabriolé de praça em que viera e foi passear a pé.
            Ao passar diante da Alameda das Viúvas julgou reconhecer os cavalos do conde estacionados à porta da carreira de tiro de Gosset. Aproximou-se e, depois de reconhecer os cavalos, reconheceu o cocheiro.
            - O Sr. Conde está na carreira de tiro? - perguntou Morcerf.
            - Está sim, senhor - respondeu o cocheiro.
            Com efeito, vários tiros regulares tinham soado desde que Morcerf se encontrava nas imediações.
            Entrou.
            O servente encontrava-se no jardim.
            - Desculpe, mas o Sr. Visconde poderia esperar um instante?
            - Porquê, Philippe? - perguntou Albert, que, como frequentador habitual, estranhava aquele obstáculo, que não compreendia. Porque a pessoa que treina neste momento pratica sozinha e nunca atira diante de ninguém.
            - Nem mesmo diante de você, Philippe?
            - Como vê, senhor, estou à porta do meu cubículo.
            - E quem lhe carrega as pistolas?
            - O criado.
            - Um núbio?
            - Um grego.
            - É isso.
            - Conhece esse senhor?
            - Venho procurá-lo, é meu amigo.
            - Oh, então é outra coisa! Vou preveni-lo.
            E Philippe, impelido pela sua própria curiosidade, entrou na barraca de madeira. Um segundo depois, Monte-Cristo apareceu no limiar.
            - Desculpe persegui-lo até aqui, meu caro conde - disse Albert –, mas começo por lhe dizer que a culpa não é do seu pessoal e que sou o único indiscreto. Apresentei-me em sua casa; disseram-me que tinha saído, mas que regressaria às dez horas para almoçar. Resolvi vir passear, à espera das dez, e ao passar por aqui vi os seus cavalos e a sua carruagem.
            - O que acaba de me dizer me da a esperança de que venha pedir-me para almoçar...
            - Não, obrigado. Não se trata do almoço, neste momento. Talvez tomemos o almoço mais tarde, mas em má companhia, com a breca!
            - Que diabo está dizendo?
            - Meu caro, me bato hoje.
            - O senhor? E porquê?
            - Porque sim!
            - Está bem, mas por que motivo? As pessoas batem-se por mil e uma coisas, como sabe.
            - Por uma questão de honra.
            - Ah, então o caso é sério!
            - Tão sério que lhe venho pedir que me faça um favor.
            - Qual?
            - O de ser minha testemunha.
            - Então o caso é mais do que sério, é grave. Mas não falemos disso aqui e regressemos a minha casa. Ali, de-me água.
            O conde arregaçou as mangas e passou ao vestibulozinho que precede as linhas de tiro e onde os atiradores têm o hábito de lavar as mãos.
            - Entre, Sr. Visconde, se quer ver uma coisa engraçada - disse Philippe em voz baixa. 
            Morcerf entrou. Em vez de alvos, encontravam-se coladas na placa cartas de jogar.
            De longe, Morcerf julgou tratar-se de um naipe completo; havia desde o Ás até  ao dez.
            - Ah, ah!... - exclamou Albert. - Estava jogando ao piquet?
            - Não - respondeu o conde –, estava fazendo um baralho de cartas.
            - Como?...
            - Sim. As que vê são ases e duques; as minhas balas é que fizeram os ternos, as quinas, os setes, os oitos, os noves e os dez.
            Albert aproximou-se.
            Com efeito, as balas tinham, em linhas perfeitamente exatas e a distâncias perfeitamente iguais, substituído os sinais ausentes e perfurado o cartão nos lugares onde deveriam ser pintados. Ao dirigir-se para a placa, Morcerf apanhou ainda duas ou três andorinhas que tinham cometido a imprudência de passar ao alcance da pistola do conde e que este abatera.
            - Diabo!... - exclamou Morcerf.
            - Que quer, meu caro visconde - disse Monte-Cristo, limpando as mãos na toalha trazida por Ali -, tenho de ocupar os meus momentos de ociosidade... Mas venha, estou à sua espera.
            Subiram ambos para o cupe de Monte-Cristo, que, poucos instantes depois, os depositou à porta do nº  30. Monte-Cristo levou Morcerf para o seu gabinete e indicou-lhe uma cadeira. Sentaram-se ambos.
            - Agora, conversemos tranquilamente - disse o conde.
            - Como vê, estou perfeitamente calmo.
            - Com quem se quer bater?
            - Com Beauchamp.
            - Um dos seus amigos!
            - É sempre com amigos que nos batemos.
            - Pelo menos deve haver uma razão.
            - Tenho uma.
            - Que lhe fez ele?
            - Um jornal de ontem à tarde... Mas tome, leia - e Albert estendeu a Monte-Cristo um jornal em que o conde leu o seguinte:
           
            “Escrevem-nos de Janina:
            "Um fato até  agora ignorado, ou pelo menos inédito, chegou ao nosso conhecimento: os castelos que defendiam a cidade foram entregues aos Turcos por um oficial francês no qual o vizir Ali-Tebelin depositava toda a sua confiança e que se chamava Fernand."
           
            - Que vê nisto que o ofenda? - perguntou Monte-Cristo.
            - Como, que vejo?!
            - Sim. Que lhe interessa a você que os castelos de Janina tenham sido entregues por um oficial chamado Fernand?
            - Interessa-me porque o meu pai, o conde de Morcerf, se chama Fernand de seu nome de batismo.
            - E o seu pai esteve ao serviço de Ali-Pax ?
            - Bom, ele combatia pela independência dos Gregos. É aí que reside a calúnia. 
            - Ah, sim! Sejamos razoáveis, meu caro visconde...
            - Não pretendo outra coisa.
            - Diga-me: quem diabo sabe na França que o oficial Fernand é o mesmo homem que o conde de Morcerf? E quem se ocupa agora de Janina, que, segundo creio, foi tomada em 1822 ou 1823?
            - É precisamente ai que reside a perfídia: deixa-se o tempo passar, e um belo dia recordam-se acontecimentos esquecidos para armar um escândalo que pode manchar uma alta posição. Pois bem, eu, herdeiro do nome do meu pai, não quero sequer que sobre esse nome paire a sombra de uma dúvida. Vou enviar a Beauchamp, em cujo jornal foi publicada esta notícia, duas testemunhas, para que a corrija.
            - Beauchamp não corrigirá nada.
            - Então, nos bateremos.
            - Não, não se baterão porque ele lhe responderá que havia no Exército grego talvez cinquenta oficiais chamados Fernand.
            - Nos bateremos apesar dessa resposta. Oh, quero que corrija a notícia!... Meu pai, um soldado tão nobre, com tão ilustre carreira...
            - Ou então escrever : “Somos levados a crer que tal Fernand nada tem de comum com o Sr. Conde de Morcerf, cujo nome de batismo é também Fernand."
            - Exijo uma retratação plena e completa; não me contentarei de modo algum com isso!
            - E vai mandar-lhe as suas testemunhas?
            - Vou.
            - Faz mal.
            - Isso quer dizer que me recusa o favor que lhe vinha pedir?
            - Conhece a minha teoria a respeito do duelo; fiz-lhe a minha profissão de fé em Roma, lembra-se?
            - Contudo, meu caro conde, encontrei-o esta manhã, ainda há pouco, entregue a uma ocupação pouco de harmonia com essa teoria.
            - Porque, meu caro amigo, nunca devemos, como deve compreender nos alhear do meio em que vivemos. Quando vivemos com loucos, devemos aprender a ser também insensatos. De um momento para o
outro, qualquer temperamento irascível poderá, sem mais motivo do que querer implicar comigo como o senhor quer implicar com Beauchamp, aproveitar a primeira ninharia para me mandar as suas testemunhas ou insultar-me em público. Nesse caso, não terei outro remédio senão matar o indivíduo dotado desse
temperamento irascível...
            - Admite, portanto, que o senhor mesmo se bateria?
            - Ora essa!
             -Sendo assim, porque quer que eu não me bata?
            - Não disse, de modo algum, que se não devia bater; digo apenas que um duelo é coisa grave e em que é preciso pensar.
            - E ele pensou antes de insultar o meu pai?
            - Se não pensou e lhe confessar, não deverá  querer-lhe mal por isso.
            - Meu caro conde, o senhor é demasiado indulgente!
            - E o senhor demasiado rigoroso. Vejamos, supondo... Escute bem isto: supondo... Não se zangará  com o que vou dizer? 
            - Escuto-o.
            - Supondo que o caso noticiado era verdadeiro.
            - Um filho não deve admitir semelhante suposição sobre a honra do seu pai.
            - Meu Deus, estamos numa época em que se admitem tantas coisas!
            - Esse é precisamente o vício da época.
            - Tem porventura a pretensão de corrigi-la?
            - Tenho, naquilo que me diz respeito.
            - Meu Deus, que rigorista me saiu, meu caro amigo!
            - Sou assim.
            - É inacessível aos bons conselhos?
            - Não, quando vêm de um amigo.
            - Considera-me um deles?
            - Considero.
            - Então, antes de enviar as suas testemunhas a Beauchamp informe-se.
            - Junto de quem?
            - Ora essa! Junto de Haydée, por exemplo.
            - Meter uma mulher em tudo isto... Que pode ela dizer?
            - Lhe declarará que o seu pai nada teve a ver com a derrota ou a morte do dela, por exemplo, ou o esclarecerá a tal respeito, se por acaso o seu pai tivesse tido a infelicidade...
            - Já lhe disse, meu caro conde, que não podia admitir semelhante suposição.
            - Recusa portanto este meio?
            - Recuso.
            - Absolutamente?
            - Absolutamente.
            - Então, um último conselho.
            - Seja, mas o último.
            - Não o quer?
            - Pelo contrário, peço-lho.
            - Não mande testemunhas a Beauchamp.
            - Como?
            - Vá procurá-lo pessoalmente.
            - É contra todos os hábitos.
            - O seu caso está fora do que é corrente.
            - E porque hei-de ir procurá-lo pessoalmente, não me diz?
            - Porque assim o assunto ficará entre o senhor e Beauchamp.
            - Explique-se.
            - Sem dúvida. Se Beauchamp estiver disposto a retratar-se, deve-se-lhe deixar o mérito da boa vontade: a retratação nem por isso será menos completa. Se, pelo contrário, ele recusar, será então momento de meter dois estranhos no vosso segredo.
            - Não serão dois estranhos, serão dois amigos!
            - Os amigos de hoje serão os inimigos de amanhã.
            - Essa agora!
            - Prova: Beauchamp.
            - Assim.
            - Assim, recomendo-lhe a prudência.
            - Assim, acha que devo ir procurar Beauchamp pessoalmente? 
            - Acho.
            - Sozinho?
            - Sozinho. Quando se quer obter qualquer coisa do amor-próprio de um homem, deve-se salvaguardar o amor-próprio desse homem até da aparência do sofrimento.
            - Creio que tem razão.
            - Ora ainda bem!
            - Irei sozinho.
            - Vá. Mas faria ainda melhor se não fosse de todo.
            - Impossível.
            - Faça portanto assim; sempre será melhor do que o que ia fazer.
            - Mas nesse caso, vejamos... se, apesar de todas as minhas precauções, de todos os seus conselhos, tiver um duelo, me servirá de testemunha?
            - Meu caro visconde - respondeu Monte-Cristo com suprema gravidade –, já teve oportunidade de ver que em outras circunstâncias estive inteiramente à sua disposição; mas o favor que me pede agora sai fora do circulo daqueles que lhe posso prestar.
            - Porquê?
            - Talvez o saiba um dia...
            - Mas entretanto?
            - Peço a sua indulgência para o meu segredo.
            - Está bem. Recorrerei a Franz e Château-Renaud.
            - Sim, peça a Franz e a Château-Renaud. É uma excelente idéia.
            - Mas enfim, se me bater, me dará uma liçãozinha de espada ou de pistola?
            - Não, é também uma coisa impossível.
            - Sempre me saiu um homem deveras singular! Portanto, não quer se meter em nada?
            - Absolutamente em nada.
            - Nesse caso, nada mais temos a dizer. Adeus, conde.
            - Adeus, visconde.
            Morcerf pegou no chapéu e saiu.
            Encontrou à porta o seu cabriolé e, contendo o melhor possível a sua cólera, fez-se conduzir a casa de Beauchamp. Este estava no jornal. Albert fez-se conduzir ao jornal.
            Beauchamp encontrava-se num gabinete escuro e poeirento, como são habitualmente os gabinetes dos jornais.
            Anunciaram-lhe Albert de Morcerf. Fez repetir duas vezes o anúncio. Depois, ainda mal convencido, gritou:
            - Entre!
            Albert apareceu. Beauchamp soltou uma exclamação ao ver o amigo transpor os montes de papéis e pisar com pé mal exercitado os jornais de todos os formatos que juncavam. Não o parque, mas sim o lajedo avermelhado do gabinete.
            - Por aqui, por aqui, meu caro Albert - disse, estendendo a mão ao jovem. - Que diabo o traz aqui? Perdeu-se, como o Polegarzinho, ou vem muito simplesmente pedir-me almoço? Veja se descobre uma cadeira. Olhe, ali, ao pé daquele gerânio, que, sozinho aqui, me lembra que há no mundo folhas que não
são folhas de papel. 
            - Beauchamp, é do seu jornal que lhe venho falar - disse Albert.
            - Você, Morcerf? Que deseja?
            - Desejo uma retificação.
            - Você, uma retificação?... A propósito de quê. Albert?  Mas sente-se!
            - Obrigado - respondeu Albert pela segunda vez e com um ligeiro aceno de cabeça.
            - Explique-se.
            - Uma retificação a respeito de um fato que atinge a honra de um membro da minha família.
            - Que me diz.? - perguntou Beauchamp, surpreendido.
            - Qual fato? É impossível.
            - O fato de que lhes deram notícia de Janina.
            - De Janina?
            - Sim, de Janina. Realmente, você tem o ar de ignorar o que aqui me trouxe...
            - Pela minha honra. Baptiste! Um jornal de ontem! - gritou Beauchamp.
            - É inútil, trago-lhe o meu.
            Beauchamp leu entre dentes:
            - “Escrevem-nos de Janina ", etc.
            - Como deve compreender, o caso é grave – disse Morcerf; quando Beauchamp terminou.
            - Este oficial é seu parente? - perguntou o jornalista.
            - É - respondeu Albert, corando.
            - Que quer que faça para lhe ser agradável? – inquiriu Beauchamp delicadamente.
            - Gostaria, meu caro Beauchamp, que corrigissem essa notícia.
            Beauchamp olhou Albert com uma atenção que denotava, sem dúvida nenhuma, indulgência.
            - Vejamos - disse por fim –, isto é caso para nos embrenharmos numa longa conversa. Porque uma retratação é sempre uma coisa grave. Sente-se. Vou reler estas três ou quatro linhas.
            Albert sentou-se e Beauchamp releu as linhas incriminadas pelo amigo com mais atenção do que da primeira vez
            - Como vê - disse Albert com firmeza, com rudeza mesmo -, insultaram no seu jornal alguém da minha família e eu quero uma retratação.
            - O senhor... quer...
            - Sim, quero!
            - Permita-me que lhe diga que não está com meias medidas, meu caro visconde...
            - Nem quero estar - replicou o jovem, levantando-se. - Pretendo a retratação de um fato que o seu jornal publicou ontem e a obterei. O senhor é suficientemente meu amigo - continuou Albert, com os lábios apertados, vendo que, pelo seu lado, Beauchamp começava a levantar a cabeça desdenhosa –, o senhor é suficientemente meu amigo e, como tal, conhece-me o suficiente, suponho, para compreender a minha tenacidade em tais circunstâncias.
            - Se sou seu amigo, Morcerf, acabará  por me fazer esquecer com palavras idênticas às de há pouco... Mas vejamos, não nos zanguemos, ou pelo menos não nos zanguemos ainda... Você está inquieto, irritado, furioso... Vejamos, qual é esse parente que se chama Fernand? 
            - É o meu pai, muito simplesmente - respondeu Albert. - O Sr. Fernand Mondego, conde de Morcerf; um velho militar que viu vinte campos de batalha e a quem querem cobrir as nobres cicatrizes com a lama nojenta apanhada da valeta.
            - É o seu pai? - repetiu Beauchamp. - Então, é outra coisa. Compreendo a sua indignação, meu caro Albert... Mas tornemos a ler...
            E releu a notícia, desta vez vincando bem cada palavra.
            - Mas onde vê você que o Fernand do jornal é o seu pai? - perguntou Beauchamp.
            - Em parte alguma, bem sei. Mas outros o verão. É por isso que quero que a notícia seja desmentida.
            Ao ouvir a palavra quero. Beauchamp ergueu os olhos para Morcerf; baixou-os quase imediatamente e ficou um instante pensativo.
            - Desmentirá essa notícia. não é verdade, Beauchamp? - repetiu Morcerf; com uma cólera crescente, embora sempre concentrada.
            - Desmentirei - respondeu Beauchamp.
            - Até  que enfim! - exclamou Albert.
            - Mas quando me tiver assegurado de que é falsa.
            - Como?!
            - Sim, o caso vale a pena ser esclarecido e o esclarecerei.
            - Mas que vê o senhor a esclarecer em tudo isto? - perguntou Albert, fora de si. - Se não acredita que seja o meu pai, diga-o imediatamente; se acredita que seja ele, diga-me em que baseia essa opnião.
            Beauchamp olhou Albert com o sorriso que lhe era peculiar e que sabia tomar o cambiante de todas as paixões.
            - Senhor - perguntou –, já que prefere nos tratemos assim, se foi para me pedir justificações que veio, é melhor começar por aí e não me vir falar de amizade e de outras coisas ociosas como as que tenho a paciência de ouvir há meia hora. É este, a partir de agora, o terreno que vamos pisar, garanto-lhe! Ora não querem lá ver!...
            - Juro-lhe que se arrependerá se não desmentir a infame calúnia!
            - Um momento! Nada de ameaças, por favor, Sr. Albert Mondego, visconde de Morcerf. Não as tolero aos meus inimigos e com mais forte razão aos meus amigos. Portanto, quer que desminta a notícia sobre o coronel Fernand, notícia em que não tive, pela minha honra, qualquer interferência?
            - Sim, senhor, é o que quero! - replicou Albert, que já não sabia onde tinha a cabeça.
            - Sem o que nos bateremos? - continuou Beauchamp com a mesma calma.
            - Exato - respondeu Albert, erguendo a voz.
            - Pois então, meu caro senhor, aqui tem a minha resposta - disse Beauchamp. - Essa notícia não foi publicada por mim, nem sequer a conhecia. Mas o senhor, com a sua diligência junto de mim, chamou-me a atenção para ela e não a largarei. E a notícia subsistirá até  que seja desmentida ou confirmada por quem de direito.
            - Senhor - disse Albert, levantando-se –, vou portanto ter a honra de lhe enviar as minhas testemunhas. Discutirá com elas o local e as armas.
            - Perfeitamente, meu caro senhor.
            - E esta tarde, se fizer favor, ou amanhã, o mais tardar, nos bateremos. 
            - Não, isso não! Estarei no terreno no momento próprio, e na minha opinião(tenho o direito de a ter, pois sou o provocado), e na minha opinião, repito, esse momento ainda não chegou. Sei que maneja muito bem a espada e que eu a manejo sofrivelmente; sei que acerta três vezes no alvo em seis tiros, o mesmo que consigo, pouco mais ou menos, e sei que um duelo entre nós será um duelo sério, porque o senhor é valente
e eu... também o sou. Não quero portanto me arriscar a matá-lo ou a ser eu próprio morto pelo senhor sem um motivo. Agora sou eu que vou lhe fazer uma pergunta e ca-te-go-ri-ca-men-te: exige essa retratação a ponto de me matar se a não fizer, embora lhe tenha dito, e repita, embora lhe afirme sob a minha palavra de honra que não conhecia a notícia, e embora lhe declare finalmente que é impossível a qualquer outro que não
possua, como o senhor, o dom de adivinhar de Jafeth descobrir o Sr. Conde de Morcerf sob esse nome de Fernand?
            - Exijo-a absolutamente.
            - Muito bem, meu caro senhor, consinto em cortar o pescoço consigo, mas quero três semanas; daqui a três semanas irei procurá-lo para lhe dizer: “Sim, a notícia é falsa e a desmintirei": ou: “Sim, a notícia é verdadeira", e tiro as espadas da bainha ou as pistolas da caixa, à sua escolha.
            - Três semanas! - exclamou Albert. - Mas três semanas são três séculos durante os quais estarei desonrado!
            - Se o senhor continuasse a ser meu amigo, dir-lhe-ia: “Paciência, amigo." Mas como prefere ser meu inimigo, digo-lhe: “Que me interessa isso a mim senhor?!"
            - Está bem, seja daqui a três semanas - concordou Morcerf. - Mas não se esqueça: daqui a três semanas não haverá mais adiamentos, nem subterfúgio que o possa dispensar...
            - Sr. Albert de Morcerf - atalhou Beauchamp, levantando-se por sua vez -, só o posso atirar pela janela daqui a três semanas, isto é, dentro de vinte e quatro dias, portanto em 21 do mês de Setembro. Até  lá, acredite, e é um conselho de gentil-homem que lhe dou, poupemo-nos os ladridos de dois cães presos à distância.
            E Beauchamp cumprimentou gravemente o jovem, virou-lhe as costas e dirigiu-se para a tipografia.
            Albert vingou-se numa pilha de jornais, que espalhou, fustigando-os raivosamente com a badine. Em seguida retirou-se, não sem se virar duas ou três vezes para a porta da tipografia.
            Enquanto Albert fustigava a dianteira do seu cabriolé, depois de fustigar os inocentes papéis enegrecidos que não tinham culpa do seu desaire, viu, atravessando o bulevar, o capitão Morrel, que, de cabeça erguida, olhos brilhantes e braços a dar, passava diante dos banhos chineses vindo das bandas
da Porta Saint-Martin e indo para os lados da Madalena.
            - Ah, ali vai um homem feliz! - disse, suspirando.
            E por acaso Albert não se enganava. 

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