sexta-feira, 29 de abril de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Capítulos 21 ao 25

CAPíTULO XXI
Naquele dia tivemos trabalhos dobrados com a Cathy:
levantou-se toda entusiasmada, ansiosa por ir ter com o primo;
porém, quando sonhe da sua partida, foi tal o pranto que o
próprio Mr. Edgar se viu obrigado a acalmá-la, prometendo-lhe
que Linton em breve estaria de volta, mas não sem acrescentar
«se isso estiver na minha mão», o
que não deixava grandes esperanças de tal vir a
acontecer.
A promessa não a acalmou, mas o tempo tudo apaga, e apesar
de ela continuar a perguntar ao pai, de vez em quando, se
ainda faltava muito para o primo voltar, os traços dele
apagaram-se-lhe de tal modo da lembrança, que não o reconheceu
no dia em que tornou a encontrá-lo.
Quando eu, por acaso, encontrava a outra governanta nas
nossas andanças por Gimmerton, costumava perguntar-lhe pelo
menino, pois levando ele uma vida tão isolada como a da
própria Catherine, ninguém lhe punha a vista em cima. Pelas
palavras da mulher percebia que a saúde dele continuava
periclitante, e que dava muito trabalho a toda a gente. Dizia
ela que Mr. Heathcliff parecia gostar cada vez menos dele,
embora se esforçasse por ocultar tais sentimentos. Não
suportava ouvir a sua voz, e não conseguia ficar sentado com
ele na mesma sala mais do que uns escassos minutos.
Raramente conversavam um com o outro: Linton passava as
tardes a estudar as suas lições numa pequena divisão a que
chamavam *a saleta* ou então deixava-se ficar na cama o dia
todo, pois andava constantemente constipado, com tosse, dores
e todo o tipo de achaques. :,
-- Nunca vi criatura mais pieges! -- acrescentava a mulher.
-- Nem ninguém mais preocupado com a sua saúde. Se deixo a
janela aberta até mais tarde, põe-se logo a protestar. Meu
Deus! Como se a aragem da noite o matasse! E o fogão tem de
estar aceso todo o dia mesmo no pino do Verão, e o cachimbo do
Joseph é para ele pior do que veneno. E tem de ter sempre à
mão guloseimas e leite; leite e mais leite. Esquece-se de que
no Inverno há muito pouco e não chega para todos. Quem o
quiser ver é sentado ao borralho a beber água, ou outro
líquido qualquer, que põe a aquecer ao lado da lareira. E se o
Hareton, condoído, tenta distraí-lo (o Hareton não é mau
rapaz, mas é bruto que se farta) não tarda que se separem, um
a praguejar e o onero a chorar. Acho que, se ele não fosse seu
filho, o patrão até gostava que o Earnshaw lhe desse uns
cascudos, e estou certa de que o poria porta fora se soubesse
de metade dos paparicos de que ele se rodeia. Mas assim não se
tenta a fazê-lo, pois nunca entra na saleta, e quando o
Linton se põe com parvoíces à sua frente, manda-o
imediatamente para o quarto.
Deduzi de todas estas conversas que a falta de carinho
transformara o pequeno Heathcliff num ser egoísta e
antipático, se é que não era já esse o seu feitio. Isto,
porém, fez diminuir o meu interesse pelo garoto, embora
continuasse a ter pena de ele não ter ficado connosco.
Mr. Edgar insistia para que eu obtivesse mais informações;
cá para mim, estava sempre com o sobrinho no pensamento, e
estou certa de que estaria até disposto a correr riscos para o
ver. Uma vez, chegou a mandar-me perguntar à governanta se ele
costumava ir à vila.
Ela disse que ele só lá fora duas vezes, a cavalo e na
companhia do pai, e que de ambas as vezes passara três ou
quatro dias a queixar-se de ter ficado todo derreado.
Se a memória me não falha, essa tal governanta foi-se
embora dois anos após a chegada de Linton e foi substituída
por outra que eu não conhecia e que ainda lá está.
Na Granja, o tempo foi correndo placidamente na forma do
costume, até Miss Cathy completar dezasseis anos. O seu
aniversário nunca era acompanhado de manifestações de alegria,
por coincidir com o aniversário da morte da minha antiga
patroa. O pai passava invariavelmente esse dia fechado na
biblioteca e, ao anoitecer, ia até ao cemitério de Gimmerton,
onde se demorava geralmente até :, depois da meia-noite. Por
conseguinte, Catherine tinha de festejar sozinha.
Nesse ano, o dia vinte de Março estava radioso, um
verdadeiro dia de Primavera, e, quando o pai se retirou, a
minha jovem patroa desceu do quarto preparada para sair,
dizendo que lhe tinha pedido licença para ir comigo dar um
passeio pela orla do brejo e que Mr. Linton tinha consentido,
mas só na condição de não nos afastarmos muito e de voltarmos
daí a uma hora.
-- Apressa-te Ellen! -- gritou ela entusiasmada -- Sei
muito bem onde quero ir, é ao lugar onde se instalaram uns
lagópodes; quero ir ver se já fizeram ninho.
-- Mas isso deve ficar muito longe! -- disse eu. -- Essas
aves não procriam na orla do brejo.
-- Não fica nada -- argumentou ela. -- Estive lá uma vez
com o papá e era muito perto.
Pus a touca na cabeça e saí, sem pensar mais no assunto. A
menina saltitava à minha frente, voltava a correr para ao pé
de mim e fugia de novo, como um pequeno galgo. A princípio,
distraí-me a ouvir as cotovias, ora longe, ora perto, a
saborear o calor ameno do sol, e a vigiar a minha querida
menina, com os seus caracóis loiros a cair soltos, as faces
coradinhas, puras e macias como rosas bravas, e os olhos
irradiantes de descuidados prazeres. Nesses tempos ela era
feliz como um anjo. Pena é que isso não lhe tenha
bastado.
-- Então, onde estão os seus lagópodes, Miss Cathy? --
disse eu. -- Já os devíamos ter encontrado. Olhe que já nos
afastámos muito da Granja.
-- É já ali adiante, é já ali adiante, Ellen! -- repetia a
menina. -- É só subir aquele monte, passar para lá daquele
talude e, quando chegares ao outro lado, já eu terei feito
levantar as aves.
No entanto, eram tantas os montes e os taludes que tínhamos
de subir e de passar, que comecei a ficar cansada. Achei, por
isso, que o melhor era ficarmos por ali e voltarmos para
trás.
Como ela já ia longe, gritei o mais que podia, mas ela ou
não ouviu ou não fez caso, pois continuou a saltitar por ali
fora, obrigando-me a ir atrás. Finalmente, desceu a pique em
direcção ao vale, desaparecendo por detrás de um, e, quando
tornei a avistá-la, já ela estava umas duas milhas mais perto
do Alto dos Vendavais do que da sua própria casa. Foi nessa
altura que vi duas pessoas agarrarem-na, uma das quais eu
estava convencida de se tratar do próprio Mr. Heathcliff. :,
Cathy tinha sido apanhada a roubar ovos ou, pelo menos, a
rondar os ninhos. Aqueles montes eram propriedade de
Heathcliff, que naquele momento repreendia a caçadora furtiva.
-- Não roubei nada, nem mexi em nada! -- asseverava Cathy
enquanto eu me aproximava, mostrando as mãos para provar o que
dizia. -- Não tinha a intenção de os apanhar, mas o papá disse
que havia muitos por aqui e eu só queria ver os ovos.
Heathcliff olhou para mim com um sorriso sarcástico,
mostrando saber de quem se tratava, e perguntou à menina quem
era o *papá* dela.
-- É Mr. Linton, da Granja dos Tordos -- foi a resposta.
--Pensei que não me tivesse reconhecido, senão não falaria
comigo nesse tom.
-- Julga então que o seu pai é muito estimado e respeitado?
-- disse ele, trocista.
-- E o senhor quem é? -- inquiriu Catherine, observando
atentamente o seu interlocutor. Aquele já eu vi uma vez; é
seu filho? e apontou para Hareton, o segundo indivíduo, que
agora, dois anos mais velho, nada mais ganhara durante esse
tempo a não ser força e corpulência, já que continuava o mesmo
brutamontes desajeitado de sempre.
-- Miss Cathy -- intervim -- vai fazer três horas, e não
uma, que andamos por fora. Temas de regressar!
-- Não, aquele não é meu filho -- respondeu Heathcliff,
empurrando-me para o lado. -- Mas eu tenho um filho e a
menina já o viu. E, embora a sua ama esteja cheia de pressa,
acho que era melhor descansarem as duas um bocadinho. Não quer
vir até minha casa? É já ali, por detrás daquele urzal. O
regresso custar-lhe-á muito menos depois de descansar, e terá
à sua espera uma calorosa recepção.
Segredei a Catherine que de forma alguma deveria aceitar o
convite. Nem pensar nisso era bom.
-- Porquê ? perguntou ela em voz alta -- Estou cansada de
vir a correr e o chão está todo molhado... Não me posso
sentar. Vamos, Ellen! Além disso, ele diz que eu já conheço o
filho; está enganado com certeza. Mas eu acho que sei onde ele
mora... deve ser naquela casa onde entrei quando vinha de
Penistone Crags. É aí que o senhor mora, não é?
-- É sim. E tu, Nelly, fica calada e vem dai! Ela há-de
gostar de :, nos fazer uma visita. Hareton, tu vais à frente
com a menina. E tu, Nelly, vens comigo.
-- Não senhor, ela não vai a lado nenhum -- exclamei,
tentando libertar o braço que ele me agarrava. Cathy, porém,
tinha contornado a encosta em louca correria e já ia a chegar
aos degraus do alpendre. Quanto ao seu acompanhante, nem se
deu ao trabalho de fingir que o era: meteu por um atalho e
desapareceu.
-- Mr. Heathcliff, isto não pode ser! -- insisti -- O
senhor sabe tão bem como eu quais são as suas intenções: ela
vai encontrar Master Linton e depois conta tudo ao pai quando
chegar a casa, e quem fica com as culpas sou eu.
-- Mas eu quero que ela se encontre com o Linton!
--retorquiu Heathcliff. -- Ele tem andado com melhor aspecto
nestes últimos dias e olha que isso só muito raramente
acontece. E nós já a vamos convencer a manter a visita em
segredo. Que mal há nisso, não me dirás?
-- O mal é que o pai ficaria furioso comigo se descobrisse
que eu a deixara entrar em sua casa. Além disso, estou
convencida de que não a convidou com boas intenções.
-- As minhas intenções são as melhores, e vou já
revelar-tas sem subterfúgios -- disse ele. -- Espero que os
dois primos se enamorem e se casem. E olha que estou a ser
até muito generoso para com o teu patrão. A descendente dele
não tem futuro nenhum, mas, se satisfizer os meus desejos,
terá desde já a garantia de vir a ser minha herdeira, com o
Linton.
-- Então, se o Linton morresse, -- repliquei sim, -- porque
a sua saúde é muito instável, a Catherine seria a única
herdeira.
-- Não, isso é que ela não seria! -- contrapôs. Não existe
nenhuma cláusula no testamento que o determine. Os bens dele
reverteriam a meu favor. Mas... Acabemos com a discussão...
Quero que esta união se dê e estou disposto a consegui-lo.
E eu estou disposta a nunca mais a deixar aproximar-se da
sua casa enquanto estiver comigo -- ripostei, quando já íamos
a chegar à cancela onde Miss Cathy se encontrava à nossa
espera.
Heathcliff mandou-me ficar calada e foi à frente abrir a
porta.
A minha jovem patroa não tirava os olhos dele, como se não
soubesse bem o que pensar. Ele, porém, sorria-lhe quando os
seus olhos se cruzavam e amaciava a voz quando falava com ela,
e eu fui suficientemente tola para pensar que a memória da mãe
dela pudesse dissuadi-lo de lhe querer mal. :,
Linton estava de pé junto à lareira. Via-se que tinha
andado a passear, pois conservava ainda o boné na cabeça e
chamava pelo Joseph, para que lhe trouxesse um par de sapatos
enxutos.
Era muito alto para a idade, pois só daí a alguns meses
completaria os dezasseis anos. As feições mantinham-se ainda
muito bonitas, e os olhos e a pele eram mais brilhantes do
que eu me lembrava, embora esse brilho talvez fosse apenas
temporário, conseguido à custa de bons ares e luz do sol.
-- Sabe quem é este? perguntou Heathcliff, virando-se para
Cathy -- É capaz de adivinhar?
-- O seu filho? -- alvitrou ela, em dúvida, olhando ora
para um, ora para o outro.
-- Sim sim, é o meu filho. Então, foi esta a única vez que
o viu? Pense bem! Ai, mas que memória tão fraca. E tu, Linton,
lembras-te da tua prima? O que tu nos fizeste passar para te
deixarmos ir visitá-la!
-- Es mesmo tu, Linton? -- exclamou Cathy, saltando de
espanto e de alegria ao ouvir pronunciar o nome dele. -- É
mesmo o Linton? Está mais alto do que eu. És mesmo tu, Linton?
O jovem aproximou-se e confirmou que era de facto o Linton.
Cathy beijou-o com fervor e ambos contemplaram admirados as
mudanças que o tempo operara em cada um. Catherine já havia
crescido tudo o que tinha a crescer: o seu corpo era roliço,
mas elegante, flexível como o aço, e irradiava saúde e
vivacidade. A expressão e os modos de Linton eram muito
languidos, e o seu corpo excessivamente magro; havia, no
entanto, nos seus gestos uma graciosidade que compensava os
defeitos e o tornava até uma pessoa agradável.
Depois de terem trocado amplas manifestações de afecto, a
prima foi ter com Mr. Heathcliff que, entre portas, dividia a
atenção entre o que se passava cá dentro e o que se passava
lá fora, isto é, fingia observar o exterior para melhor se
concentrar no interior.
-- Então o senhor é meu tio?! -- exclamou Cathy,
esticando-se para o beijar. -- Bem me parecia que simpatizava
consigo, apesar de a princípio se mostrar muito zangado. --
Por que não vai visitar-nos à Granja com o Linton? É muito
estranho sermos vizinhos há tantos anos e nunca ter ido
visitar-nos. Por que não foi?
-- Fui a sua casa uma ou duas vezes, antes de a Cathy ter
nascido -- disse ele. -- Pare, menina! Se tem assim tantos
beijos para dar, dê-os ao Linton, não os desperdice em
mim. :,
-- Oh, Ellen! -- disse Catherine, atirando-se a mim e
cobrindo-me de beijos -- Com que então, minha marota, querias
impedir-me de entrar aqui! De futuro darei este passeio todas
as manhãs. Posso, tio? E de vez em quando trago o papá comigo.
O tio vai gostar de o ver, não
vai?
-- Claro que sim! -- respondeu o tio, procurando, em vão,
disfarçar um esgar de repulsa. -- Mas, espera lá... Pensando
bem, acho melhor dizer-lhe uma coisa: Mr. Linton não gosta de
mim. Uma vez envolvemo-nos numa discussão encarniçada com uma
violência bem pouco cristã e, se lhe disser que veio cá a
casa, tenho a certeza de que ele porá fim às suas visitas.
Será portanto melhor não lhe contar nada, a menos que prefira
não voltar a ver o seu primo. Pode vir sempre que quiser, Miss
Linton, mas não diga nada ao seu pai.
-- E por que é que discutiram? -- perguntou Cathy, muito
pesarosa.
-- Ele achava-me demasiado pobre para casar com arma --
respondeu Heathcliff -- e não se conformou quando eu casei
com ela; feri-lhe o orgulho e ele jamais me perdoará.
-- Mas isso não está certo! -- exclamou Catherine. -- Um
dia destes ainda lho digo. Eu e o Linton não temos culpa das
vossas desavenças. Nesse caso, em vez de vir cá eu, vai o
Linton a minha casa.
-- É muito longe para mim! -- queixou-se Linton. -- Uma
caminhada de quatro milhas dava cabo de mim. Não, tem de vir
cá a menina, Miss Catherine! Mas não precisa de ser todas as
manhãs, basta duas vezes por semana.
O pai lançou-lhe um olhar de amargo desprezo.
-- Parece que vou perder o meu tempo, Nelly -- voltou a
segredar Heathcliff -- *_Miss* Catherine, como o sonsinho lhe
chama, depressa descobrirá o que ele vale e há-de mandá-lo
para o diabo. Ai, se fosse o Hareton! Sabes que o invejo mais
de vinte vezes ao dia, apesar de toda a sua brutalidade? Era
até capaz de gostar dele, se ele fosse outro qualquer; mas
acho que do amor dela está ele livre. Hei-de fazê-lo medir
forças com aquela criatura desprezível, a menos que o Linton
se resolva a sair da letargia em que tem vivido. Parece-me bem
que já nem chega aos dezoito anos. Raios partam tanta
sensaboria! Ele ali todo entretido à espera de que os pés lhe
sequem, e nem se digna olhar para ela. Oh, Linton!
-- Sim, pai -- respondeu o rapaz.
-- Não há nada que queiras ir mostrar à tua prima? Nem ao
:, menos um coelho ou uma toca de doninhas? Leva-a até ao
quintal antes de trocares de sapatos. E vai ao estábulo
mostrar-lhe o teu cavalo.
-- Não acha melhor ficarmos aqui? -- perguntou Linton a
Catherine, num tom que denunciava bem a sua relutância em
voltar a sair.
Não sei... -- respondeu ela, deitando um olhar esperançado
para a porta, cheia de vontade de ir fazer qualquer
coisa.
Ele, porém, chegou-se ainda mais para o lume, todo
encolhido.
Heathcliff levantou-se e passou para a cozinha e daí para o
pátio, pondo-se a chamar pelo Hareton. O rapaz acorreu ao
chamado e voltaram ambos para a sala. Hareton acabara de se
lavar, como era visível pelas faces lustrosas e o cabelo
molhado.
-- Tio, tenho de lhe fazer uma pergunta -- disparou Cathy,
lembrando-se da informação da governanta. -- Esse aí não é
meu primo, pois não?
-- É sim. É sobrinho da tua mãe. Porquê? Não gostas dele?
Catherine ficou embaraçada.
-- Não o achas um belo rapaz? -- continuou ele.
A atrevida pôs-se em bicos de pés e segredou qualquer coisa
ao ouvido do tio.
Heathcliff deu uma gargalhada e Hareton baixou a cabeça.
Percebi que o rapaz era muito sensível à mais pequena
desconsideração e que tinha, obviamente, uma noção muito vaga
da sua inferioridade. Mas o patrão, ou o tutor, depressa o
animou, dizendo:
-- Tu serás de entre todos nós o preferido, Hareton! Ela
diz que tu és... como é? Bem, qualquer coisa muito lisonjeira.
Olha, vai tu dar uma volta com ela pela quinta. Mas, vê lá,
porta-te como um cavalheiro! Nada de palavrões nem de te pores
embasbacado a olhar para a tua prima quando ela não estiver a
olhar para ti, e prepara-te para baixares os olhos quando
estiver; e, quando falares, articula as palavras devagar e não
fales com as mãos nos bolsos. E, agora, vai e distrai-a o
melhor que puderes.
Heathcliff ficou a ver o par passar debaixo da janela. A
expressão de Earnshaw era completamente diferente da sua
companheira: parecia observar aquela paisagem tão sua
conhecida com a atenção de um estranho ou de um
artista.
Catherine olhou-o de soslaio, com bem pouca admiração. Mas
logo desviou a atenção, pondo-se à procura de coisas que a :,
distraíssem, continuando alegremente o seu passeio
e trauteando uma cantiga para suprir a falta de assunto.
-- Pronto, cortei-lhe a língua! -- comentou Heathcliff. --
Agora é que ele não se atreve a dizer uma palavra! Nelly, tu,
que te lembras de mim com esta idade... com esta idade,
não... até uns anos mais novo, ora diz lá a verdade: alguma
vez fui assim tão estúpido, tão «bronco», como o Joseph
costuma dizer?
-- Era muito pior! -- respondi eu -- Porque andava sempre
mal encarado.
-- Tenho um certo orgulho nele -- disse, continuando a
pensar em voz alta. -- Satisfez todas as minhas expectativas.
Se já tivesse nascido idiota, não lhe acharia nem metade da
graça; mas de idiota ele não tem nada, e eu sou capaz de
compreender todos os seus sentimentos, porque já os
experimentei; avalio, por exemplo, muito bem o que ele está a
passar neste momento. Claro que isto é só uma amostra do que
ele há-de vir a sofrer mais tarde; nunca será capaz de se
libertar das garras da grosseria e da ignorância. Tenho-o mais
bem preso do que o velhaco do pai dele me tinha a mim, e mais
degradado, pois este tem orgulho na sua brutalidade. Ensinei-o
a desprezar tudo o que não seja grosseiro como sinal de
fraqueza e pieguice. Não te parece que o Hindley se orgulharia
do filho, se o visse agora? Quase tanto como eu me orgulho do
meu. Há, no entanto, uma diferença: um é ouro usado para
pavimentar o chão e o outro é lata polida a imitar prata. O
*meu* não vale nada, mas eu terei o mérito de o ajudar a
chegar tão longe quanto pode ir um sujeito sem préstimo. O
*dele* possuía excelentes qualidades que se perderam, que eu
soube tornar piores do que se ele já fosse destituído de
valor. Eu não tenho nada a lamentar; ele sim, e só eu sei o
quanto. A ironia máxima é que o Hareton é doido por mim. Tens
de reconhecer que neste ponto levei a palma ao Hindley: se o
patife pudesse erguer-se da sepultura para me insultar pelo
mal que causei ao filho, eu teria a satisfação de ver esse
filho recambiá-lo para a cova, indignado por o pai se atrever
a injuriar o único amigo que ele tem no mundo.
Heathcliff soltou uma gargalhada. Não respondi, pois
percebi que neo esperava resposta.
Entretanto, o nosso jovem companheiro, que estava algo
distante para nos ouvir, começou a dar sinais de inquietação,
provavelmente arrependido de se ter privado da agradável
companhia de Catherine só por medo de se fatigar. :,
O pai, reparando nos olhares ansiosos que ele deitava à
janela e na mão hesitante que estendia para o boné, interveio:
-- Mexe-te, preguiçoso! -- gritou-lhe, com afectado
entusiasmo. -- Vai atrás deles. Ainda só vão a chegar à
esquina, junto aos cortiços.
Linton fez das fraquezas forças e deixou a lareira para
trás. A janela estava aberta e, quando ele ia a sair, ouvi
Cathy perguntar ao seu lacónico companheiro qual o significado
da inscrição gravada por cima da porta. Hareton ergueu os
olhos, embasbacado, e coçou a cabeça como um verdadeiro
labrego;
-- Que letras tão esquisitas! murmurou. Não consigo ler
nada.
-- Não consegues ler? -- exclamou Catherine. Ler consigo
eu, pois se está escrito em inglês... O que eu quero é saber
por que lá estão.
Linton deixou escapar uma risadinha -- a sua primeira
manifestação de alegria.
-- Pois se ele nem o nome sabe ler! -- disse, virando-se
para a prima. -- Alguma vez imaginou que pudesse existir um
burro assim?
-- Ele tem o juízo todo, ou é um pouco simplório e não bate
lá muito certo? -- perguntou Cathy, muito séria -- Já lhe fiz
duas perguntas e, de cada vez, ele fez cá uma cara de
estúpido... até parece que não percebe o que eu digo. Palavra
que não o entendo!
Linton riu-se de novo e deitou um olhar furtivo a Hareton
que não parecia estar a entender nada do que se passava.
-- Isso é tudo preguiça, não é verdade, Earnshaw? A minha
prima julga que és um idiota. Ora aí tens no que dá dizeres
que «letras são tretas»... Já reparou, Catherine, no horroroso
sotaque do Yorkshire que ele tem.
-- P.ra que diabo prestam as letras? -- resmungou Hareton,
agora disposto a dar troco ao companheiro. E não teria ficado
por ali, se os outros dois não tivessem desatado a fazer
troça: a tonta da minha menina estava radiante por descobrir
que se podia divertir à custa do palavreado dele.
-- Que tem o diabo a ver com o que disseste? -- perguntou
Linton. -- O meu pai já te avisou para não dizeres asneiras e
tu, mal abres a boca, atiras logo uma cá para fora. Vá lá!
Tenta portar-te como um cavalheiro! :,
-- Se não fosses mais rapariga que rapaz, rachava-te já de
alto a baixo, meu xoninhas! -- respondeu o brutamontes, fora
de si, afastando-se com a cara a escaldar de raiva e
humilhação, pois sabia que tinha sofrido uma agressão, mas não
sabia como defender-se.
Mr. Heathcliff, que, tal como eu, ouvira a discussão,
sorriu ao vê-lo afastar-se, mas, logo a seguir, lançou um
olhar de refinado ódio ao parzinho petulante que ficara a
tagarelar à porta: o rapaz, todo feliz, a apontar os defeitos
e as limitações de Hareton e a contar anedotas acerca dele, e
a menina a saborear toda aquela maledicência, sem pensar na
má índole que isso revelava. E eu, nessa altura, comecei a
sentir por Linton menos compaixão e mais antipatia, dando até
certo ponto razão ao pai para o desprezar.
Fomo-nos deixando ficar até à tarde, pois não consegui
arrancar Miss Cathy de lá mais cedo. Por sorte, o meu patrão
não tinha saído dos seus aposentos e, assim sendo, não deu
pela nossa prolongada ausência.
No regresso, tentei elucidar Cathy sobre o caracter das
pessoas com quem tínhamos estado, mas ela havia metido na
cabeça que eu tinha má vontade contra elas.
-- Ai, ai, Ellen! Tomaste o partido do papá! Tenho a
certeza. Se não, porque me enganarias tu durante tantos anos,
fazendo-me crer que o Linton vivia muito longe daqui? Estou
muito zangada contigo, mas estou também tão contente que não
consigo mostrá-lo. E vê lá como falas do meu tio. Não te
esqueças de que ele é meu tio. Hei-de também ralhar ao papá
por ter cortado relações com ele.
E continuou a arengar, até eu desistir de a convencer de que
estava a cometer um erro.
Nessa noite não falou ao pai na visita porque não o chegou
a ver. Mas no dia seguinte, para mal dos meus pecados, pôs
tudo em pratos limpos. Por um lado, não achei mal, pois
cabia-lhe mais a ele do que a mim a tarefa de prevenir e
aconselhar a filha. Mr. Linton, porém, mostrou-se muito
titubeante a apresentar as razões que o levavam a não querer
que a filha se desse com os vizinhos do Alto dos Vendavais, e
ela queria conhecer sempre os motivos de tudo o que lhe
cerceasse os seus caprichos de menina mimada.
-- Papá -- começou Catherine depois de o cumprimentar pela
manhã -- adivinhe quem eu encontrei ontem no meu passeio pela
Charneca? Oh, papá, o senhor estremeceu! Não procedeu nada
bem, sabia? Eu que o diga... Mas escute-me e já vai ficar a
saber como eu descobri tudo... e que a Ellen também era sua
aliada, :, fingindo ter muita pena de mim, quando eu, sem
grandes esperanças, lhe perguntava quando voltava o Linton.
A menina fez um relato pormenorizado do passeio e o mais
que se seguiu, e o meu patrão, embora me dirigisse por mais de
uma vez olhares de censura, não abriu a boca até ela terminar.
Chegada ao fim, puxou-a para si e perguntou-lhe se conhecia a
razão pela qual ele lhe ocultara a existência de tais
vizinhos. Ou julgaria ela que fora apenas para a privar de um
prazer de que ela pudesse ter disfrutado sem inconvenientes?
-- Foi por o pai não gostar de Mr. Heathcliff -- disse ela.
-- Então tu pensas que prezo mais os meus sentimentos do
que os teus, Cathy? Não, não foi por isso, mas sim porque Mr.
Heathcliff não gosta de mim e é uma criatura diabólica, que
se compraz em desgraçar os que ele odeia, mal eles lhe dão a
mais pequena oportunidade. Sabia que não podias conviver com o
teu primo sem acabares por encontrar o pai dele, o qual, por
minha causa, iria detestar-te. Assim, e somente para teu bem,
tomei as precauções necessárias para que não tornasses a ver o
Linton. Fazia tenção de te contar tudo um dia mais tarde,
quando fosses mais crescida, mas agora lamento tê-lo protelado
tanto!
-- Mas, papá, Mr. Heathcliff foi até muito cordial
contrapôs Cathy, pouco convencida. -- E não levantou qualquer
objecção a que nos encontrássemos outra vez. Disse-me que
podia ir lá a casa sempre que quisesse, mas que não lhe
contasse nada, porque o senhor estava zangado com ele e não
lhe perdoava por ele se ter casado com a tia Isabella; e está
visto que não lhe perdoou. Quem deve ser censurado é o papá;
ele, pelo menos, consente que eu e o Linton sejamos amigos, e
o senhor não.
O meu patrão, ao aperceber-se de que a filha não acreditava
no que ele lhe havia dito sobre as más intenções do tio,
descreveu-lhe em traços largos a conduta de Heathcliff para
com Isabella e o modo como o Alto dos Vendavais viera
parar-lhe às mãos. Era-lhe penoso alongar-se muito sobre este
assunto, pois embora só
raramente o aflorasse, continuava a sentir pelo seu
arqui-inimigo o mesmo horror e o mesmo ódio que lhe haviam
inundado o coração desde a morte de Mrs. Linton. «_Se não
fosse ele, ela ainda podia estar viva!»: esta era a sua
constante e amarga obsessão; a seus olhos, Heathcliff era um
assassino.
Miss Cathy que, no tocante a más acções só possuía a
experiência :, das suas próprias desobediências, injustiças e
arrebatamentos, motivados pelo seu temperamento fogoso e
irreflectido, e dos quais se arrependia logo no mesmo dia,
estava abismada com uma tal caliginosidade de espírito, capaz
de ruminar vinganças durante anos a fio, seguindo
deliberadamente um plano estabelecido, sem sombra de remorso.
Ficou de tal maneira chocada e impressionada com esta nova
faceta da natureza humana, tão fora até aí das suas
cogitações, que Mr. Edgar achou melhor não insistir na
questão, limitando-se a acrescentar:
-- Agora, minha querida, já ficaste a saber a razão pela
qual desejo que te mantenhas afastada da casa dele e da
família dele. Volta para as tuas ocupações e para as tuas
brincadeiras e não penses mais naquela gente!
Catherine deu um beijo ao pai e passou horas entregue às
suas lições, como de costume. Depois, foi dar um passeio com o
pai pela propriedade, e o dia decorreu como qualquer outro.
Quando à noite, porém, se retirou para o quarto e a fui ajudar
a despir-se, dei com ela a chorar ajoelhada aos pés da cama.
-- Que vergonha! Não seja tontinha! -- exclamei. -- Se
soubesse o que é ter um desgosto, não gastava lágrimas por
tão pouco; a menina nunca teve nada que se parecesse com um
desgosto. Imagine que eu e o seu pai morríamos e a menina
ficava sozinha no mundo; como é que se ia sentir nessa altura?
Compare o que se passou agora com uma aflição dessas e dê
graças a Deus pelos amigos que tem, em vez de querer sempre
mais e mais.
-- Não é por mim que choro, Ellen -- respondeu. -- É por
ele; ele está à minha espera amanhã, lá em casa, e vai ter uma
desilusão; vai ficar à espera e eu não apareço!
-- Ora, menina, julga que ele pensa tanto em si como a
menina pensa nele? E então ele não tem o Hareton para lhe
fazer companhia? Ninguém chora por deixar de ver uma prima que
só viu duas vezes, em duas tardes. O Linton vai perceber o que
se passou e não se preocupará mais com o assunto.
-- Mas não posso ao menos escrever-lhe um bilhete a
explicar a razão por que não vou? -- perguntou, pondo-se de
pé. -- E mandar-lhe só estes livros que prometi
emprestar-lhe? Os livros do Linton não são tão bons como os
meus e ele ficou cheio de vontade de os ler quando eu lhe
disse como eram interessantes. Posso, não posso, Ellen?
-- Não, não pode. De maneira nenhuma! disse eu, :,
peremptória. E depois ele ia responder-lhe e nunca mais
acabava. Não, Miss Catherine, têm de cortar relações
completamente. É isso que o seu pai quer e eu zelarei para que
assim seja.
-- Mas como é que um simples bilhetinho podia... --
recomeçou ela, com súplicas no olhar.
-- Silêncio! -- atalhei. Não vamos voltar a essa história
dos bilhetes. Vá, toca a ir para a cama!
Lançou-me um olhar furioso, tão furioso que a princípio nem
lhe dei o habitual beijo de boas-noites; tapei-a e saí do
quarto bastante arreliada. Porém, arrependi-me a meio do
caminho e voltei atrás sem fazer barulho; e que vejo eu? A
minha menina de pé junto ao toucador, com uma folha em branco
à sua frente e de lápis na mão, coisas que tentou esconder
muito atrapalhada assim que me ouviu
entrar.
-- Não conte com ninguém para lhe levar isso, Catherine --
observei. -- E agora vou apagar a vela.
Ia colocar o apagador sobre a vela quando levei uma palmada
na mão, acompanhada de um petulante «sua velha rabugenta!».
Retirei-me e ela veio a correr fechar a porta à chave, num
dos seus piores ataques de mau génio.
A carta foi escrita e feita chegar ao destinatário por
intermédio de um rapaz da vila que vinha à Granja buscar
leite, mas isso só mais tarde eu descobri. As semanas foram
passando e Cathy recuperou o seu bom-humor, embora mostrasse
cada vez mais tendência para se refugiar pelos cantos. E,
muitas vezes, quando estava a ler e eu aparecia de surpresa,
tinha um sobressalto e inclinava-se sobre o livro com a
intenção evidente de o esconder; mas não sem que eu detectasse
umas pontinhas de papel a espreitar por entre as folhas.
Apanhou o tique de vir passear de manhã cedo nas imediações
da cozinha, como se estivesse à espera de alguma coisa, e
havia também uma gavetinha do armário da biblioteca que ela
passava horas a vasculhar, muito entretida, e cuja chave tinha
sempre o cuidado de levar consigo.
Um dia, quando ela estava a mexer na gaveta, reparei que os
brinquedos e as bugigangas que anteriormente constituíam o seu
conteúdo, haviam sido substituídos por papelinhos dobrados, o
que me despertou a curiosidade e a desconfiança, pelo que
decidi dar uma vista de olhos a tão misteriosos tesouros. :,
Nessa noite, depois de todos já estarem recolhidos,
procurei no meu molho de chaves uma que servisse na fechadura
da dita gaveta; abri-a e despejei para o avental tudo quanto
lá encontrei, levando as coisas para o meu quarto para as
examinar mais à vontade.
Embora já tivesse suspeitas, fiquei mesmo assim
surpreendida ao descobrir que se tratava da já volumosa
correspondência enviada quase diariamente por Linton
Heathcliff em resposta aos bilhetes que ela lhe mandava. As
primeiras cartas eram breves e envergonhadas, mas iam-se
mostrando gradualmente mais afoitas, até se tornarem em longas
cartas de amor repletas de tolices, como era próprio da idade
do seu autor, mas com alguns toques aqui e ali dados por mão
mais experiente.
Algumas delas impressionaram-me pela forma singular como
nelas se misturavam o arrebatamento e a sensaboria, abrindo
com manifestações do mais genuíno amor e terminando num estilo
palavroso e afectado, próprio de um colegial dirigindo-se a
uma namorada imaginaria.
Se faziam as delícias de Cathy, isso não sei, mas cá para
mim não passavam de um monte de baboseiras.
Após ter lido as que achei que devia ler, embrulhei-as num
lenço e guardei-as bem guardadas, voltando em seguida a fechar
a gaveta vazia.
Como era seu hábito, a menina levantou-se muito cedo e foi
para a cozinha: vi-a acercar-se da porta quando chegou um
certo rapaz e, enquanto a criada da vacaria enchia a vasilha,
Cathy meteu qualquer coisa no bolso do casaco do dito
rapazote, tirando de lá outra.
Dei a volta ao quintal e apanhei o rapaz; ele lutou tão
desesperadamente para defender o que lhe havia sido confiado
que até entornou o leite quase todo, mas acabei por me
apoderar da epístola e, depois de o ameaçar de que lhe sairia
muito caro se não voltasse direito para casa, deixei-me ficar
encostada ao muro a ler a carta de amor de Miss Cathy. Era
mais simples e mais eloquente que a do primo, muito bonita e
muito tonta. Abanei a cabeça e fui para casa pensar. Estando o
dia chuvoso como estava, e não podendo ir passear para o
parque, a menina, mal terminou de estudar as lições daquela
manhã, foi procurar consolo na gaveta. O pai estava sentado à
mesa a ler e eu pus-me de propósito a consertar :, umas
franjas dos cortinados da janela, para poder seguir todos os
seus movimentos.
Nunca ave alguma, ao regressar ao ninho devassado que havia
deixado repleto de filhinhos chilreantes, exprimiu maior
desespero, com os seus pios angustiados, do que ela com aquele
simples «_Oh!» e com a transfiguração que se operou no rosto
alegre que a acompanhava ultimamente. Mr. Linton ergueu os
olhos.
-- Que foi, minha filha, magoaste-te? -- inquiriu.
Pelo seu tom de voz e expressão do olhar, Cathy teve a
certeza de que não fora ele quem descobrira o
tesouro.
-- Não, papá -- balbuciou. -- Ellen, Ellen, vem comigo lá
acima, não me estou a sentir muito bem.
Obedeci e acompanhei-a ao quarto.
-- Oh, Ellen, foste tu, não foste? Foste tu que mas
tiraste! -- disparou, de chofre, deixando-se cair de joelhos
quando ficámos sozinhas no quarto.
-- Oh, Ellen, devolve-mas e eu não torno mais. Não digas
nada ao papá. Ainda não disseste, pois não ? Sei que me portei
muito mal, mas não torno mais, prometo.
Com o semblante carregado, mandei-a pôr-se de pé e
disse-lhe zangada:
-- Sim senhora, Miss Catherine, desta vez a menina foi
longe demais, não lhe parece? Devia ter vergonha! Que lindas
baboseiras a menina lê nas horas vagas! Até valia a pena
mandá-las imprimir! E o que pensa a menina que o senhor vai
dizer quando eu lhas mostrar? Não o fiz ainda, mas não julgue
que vou guardar esse seu segredo ridículo. Que vergonha! E
deve ter sido a menina quem começou a escrever todos estes
disparates; o Linton não se atreveria
a ser o primeiro.
-- Não, não fui! -- volveu Cathy, a soluçar. -- Nem me
passava pela cabeça que pudesse vir a amá-lo, até que...
-- Vir a amá-lo! repeti, articulando as palavras da maneira
mais trocista possível. Amá-lo! Onde já se viu tal disparate.
Então eu também podia dizer que amava o moleiro que vem cá
buscar o nosso cereal uma vez por ano. Lindo amor, não haja
dúvida! Pois se a menina, das duas vezes que o viu, não chegou
a estar com ele ao todo nem quatro horas! Ora aqui está o
monte de disparates; vou levá-lo para a biblioteca e veremos o
que o seu pai tem a dizer a esse tal amor. :,
Catherine tentou surripiar-me as suas preciosas epístolas,
mas eu levantei-as no ar, bem acima da cabeça, e ela começou
então a implorar-me que as queimasse, que lhes fizesse
qualquer coisa menos entregá-las ao pai. Para ser franca, e
perante tamanha criancice, apetecia-me tanto rir como
ralhar-lhe; por fim, acabei por ceder e perguntei:
-- Se eu concordar em queimá-las, promete que não volta a
escrever nem a receber mais cartas, nem mais livros, pois
desconfio que lhos tem mandado; nem mais madeixas de cabelo,
nem anéis, nem brinquedos?
-- Nunca lhe mandei brinquedos! -- disse Catherine toda
ofendida.
-- Seja lá o que for -- repliquei. -- Se não prometer, vou
imediatamente mostrar isto tudo a Mr. Linton.
-- Prometo, sim, Ellen, eu prometo! -- E chorava, agarrada
ao meu vestido.
-- Queima-as, por favor!
Mas quando me viu pegar no atiçador para abrir uma cova no
borralho, não suportou o suplício e implorou que lhe guardasse
uma ou duas cartas.
-- Uma ou duas, Ellen, para ficar com uma recordação do
Linton!
Desamarrei o lenço e comecei a atirá-las uma a uma para a
chama, que recrudesceu, subindo pela chaminé.
-- Deixa-me ficar pelo menos com uma, minha grande peste!
-- implorou Cathy, metendo a mão nas brasas sem se importar
de queimar os dedos, para retirar alguns pedaços de papel
chamuscado.
-- Muito bem, guardarei então algumas para mostrar ao seu
pai! -- disse eu, embrulhando no lenço as que restavam e
encaminhando-me para a porta.
Ela lançou à fogueira os pedaços chamuscados que de lá
havia tirado e fez-me sinal para que queimasse o resto. Assim
fiz, deitando-lhe por cima mais uma pazada de carvão. E
enquanto ela, silenciosa e ofendida, se retirava para o
quarto, desci para informar o meu patrão de que a indisposição
da menina já tinha passado, mas que me parecera conveniente
que ficasse deitada por mais algum tempo.
Catherine não quis vir jantar e só apareceu à hora do chá,
muito :, pálida e com os olhos vermelhos, mas tentando
disfarçar o m ais possível. Na manhã seguinte respondi à carta
de Linton com um bocado de papel onde escrevi: «_Peço a Master
Heathcliff o favor de não mandar mais bilhetes a Miss Linton,
pois ela não os receberá». E, daí em diante, o tal rapaz
passou a vir de bolsos vazios.
CAPíTULO XXII
O Verão estava a chegar ao fim com os primeiros alvores de
Outono. O dia de São Miguel já lá ia, mas nesse ano as
colheitas estavam atrasadas e havia searas ainda por
ceifar.
Mr. Linton costumava ir muitas vezes com a filha assistir à
ceifa, por lá se demorando até ao anoitecer, até ao carregar
dos últimos molhos, e, como a noite chegava fria e húmida, o
meu patrão acabou por apanhar uma forte constipação,
persistente e teimosa, que lhe atacou os pulmões, retendo-o em
casa todo o inverno quase ininterruptamente.
A pobre Cathy, abalada com o seu desaire amoroso, andava
consideravelmente mais triste e melancólica desde o sucedido,
pelo que o pai a aconselhara a ler menos e a fazer mais
exercício. Vendo-a privada da companhia do pai, achei ser meu
dever substituir a sua ausência; mas revelei-me bem fraca
substituta, pois se, por um lado, os meus afazeres do
dia-a-dia não me deixavam mais que duas ou três horas para lhe
fazer companhia, por outro, era óbvio que a minha presença lhe
agradava menos que a do pai.
Foi numa tarde de Outubro, ou talvez dos começos de
Novembro, uma tarde fria e chuvosa, em que os prados e as
veredas gemiam com a restolhada das folhas mortas e molhadas,
e o céu azul glacial se cobriu subitamente de esguias nuvens
negras, vindas do poente, que pressagiavam borrasca; pedi à
minha menina que desistisse do passeio, pois decerto a chuva
não tardava por aí, mas ela não me atendeu. Bem contra minha
vontade, pus o capote pelas Costas e peguei no guarda-chuva
para acompanhar num passeio até ao fundo do parque, como era
seu hábito sempre que se sentia deprimida, o que
invariavelmente acontecia quando o pai piorava; não que ele se
queixasse, mas era fácil de adivinhar pelo seu crescente
mutismo e semblante melancólico. :,
Cathy caminhava acabrunhada, sem querer saber de
saltos nem correrias, embora o vento gelado a convidasse
a ensaiar uma corrida. Por diversas vezes, olhando-a
dissimuladamente, a vi erguer a mão e passá-la pelo
rosto.
Olhei em redor à procura de alguma coisa que a pudesse
distrair. De um lado do caminho erguia-se uma barreira de
terra orlada de aveleiras e carvalhos raquíticos em instável
equilíbrio, com as raízes meio-descobertas: a terra estava
demasiado solta para agarrar os carvalhos, e o vento fizera
vergar alguns quase na horizontal. Durante o Verão, Miss Cathy
adorava trepar a estas árvores e sentar-se nos ramos,
deixando-se ficar a baloiçar a vinte pés do chão, enquanto eu,
apesar de achar graça à sua agilidade e alegria de criança,
não me coibia de lhe dar um raspanete sempre que a via
empoleirada, dando-lhe no entanto a entender ao mesmo tempo
que não precisava de descer. E ela lá ficava até à hora do
jantar naquele berço embalado pela brisa, a entoar velhas
canções que eu lhe ensinara ou a ver os passarinhos
darem de comer aos filhos e ensinarem-nos a voar, ou
então, aninhava-se de olhos fechados na ramada, entre o sonho
e a meditação, tão feliz que não sei exprimi-lo por palavras.
-- Olhe, menina! -- exclamei, apontando para uma
reentrância por debaixo da raiz de uma árvore retorcida.
--Ainda não chegou o Inverno. Estou a ver ali uma flor, a
última daquele manto lilás de campainhas que em Julho cobria
os socalcos verdejantes. Não quer ir lá apanhá-la, para
mostrar ao seu pai?
Cathy contemplou demoradamente a florinha solitária que
estremecia no seu esconderijo e, por fim, respondeu:
-- Não, não a vou tirar dali. Tem um ar tão triste, não
achas, Ellen?
-- Pois tem... quase tão frágil e definhada como a menina,
com essas suas faces tão descoradinhas. Dê cá a mão e vamos
fazer uma corrida. Está tão fraquinha que até eu a consigo
acompanhar.
-- Não me apetece -- disse ela, continuando a caminhar
vagarosamente, apenas se detendo aqui e além a olhar
pensativa ora para o musgo, ora para algum tufo de erva seca,
ora para algum cogumelo garridamente alaranjado que despontava
entre o amontoado de folhas amarelecidas. E, volta não volta,
lá levava ela a mão à cara.
-- Catherine, por que chora a minha lindinha? -- perguntei,
:, aproximando-me dela e enlaçando-a. -- Não vale a pena
chorar só porque o seu pai está constipado. Devia dar graças a
Deus por não ser coisa pior.
Ela, ao ouvir estas palavras, não conseguiu reter as
lágrimas e respondeu, com a voz embargada pelos
soluços:
-- Vai ser muito pior, eu sei -- lamentou-se. -- E que vai
ser de mim quando o papá e tu me deixarem e eu ficar sozinha?
Não consigo esquecer as tuas palavras, Ellen, não me saem da
cabeça: como toda a minha vida se modificará, como será triste
o mundo quando tu e o papá morrerem.
-- Sabe-se lá se não é a menina que morre primeiro! --
atalhei. -- Não se deve pensar nas coisas más. Vamos é desejar
que passem ainda muitos e muitos anos até um de nós morrer: o
patrão é novo e eu sou forte e ainda não cheguei aos quarenta
e cinco anos. A minha mãe viveu até aos oitenta, sempre rija
até ao fim. Suponha que Mr. Linton dura até aos sessenta: para
isso ainda faltam mais anos do que os que a menina tem de
idade. Então não é uma tolice chorar por uma desgraça que só
vai acontecer daqui a mais de vinte anos?
-- Mas a tia Isabella era mais nova que o papá! --
argumentou, voltando para mim os olhos, esperançada, à procura
de nova conãolação.
-- A tia Isabella não nos tinha, nem a si nem a mim, para
cuidarmos dela -- expliquei. -- Não era feliz como o patrão
e, por isso, não tinha tantas razões para viver. O que a
menina tem de fazer é cuidar bem do seu pai e alegrá-lo
mostrando-se também alegre, e evitar dar-lhe desgostos;
preste atenção, Cathy, não lhe vou mentir: o que o poderia
matar era a menina ser rebelde e leviana e alimentar uma
afeição tonta e fantasiosa pelo filho de um homem que ficaria
radiante se visse o seu pai na sepultura, ou deixá-lo
perceber que a menina não se conformou com a separação que
ele achou por bem impor-lhe.
-- A única coisa com que eu não me conformo é com a doença
do papá -- replicou a minha companheira. -- O resto não se lhe
pode comparar. Ouve bem, Ellen, nunca, nunca mais, enquanto
estiver no meu juízo perfeito, eu farei ou direi alguma coisa
que o magoe. Amo-o mais do que a mim mesma. Sei que assim é
porque rezo todas as noites para que Deus o leve primeiro a
ele, para lhe poupar o sofrimento; prefiro ser eu a sofrer.
Isto prova que o amo mais do que a mim mesma. :,
-- Bonitas palavras -- volvi eu. -- Mas é preciso que os
actos lhes correspondam. E, quando ele se restabelecer,
lembre-se de que não nos devemos esquecer das promessas feitas
nas horas de aflição.
Enquanto assim conversávamos, fomo-nos aproximando de um
portão que dava para a estrada. A minha menina, de novo
transbordante de alegria, trepou para cima do muro, sentou-se
lá no alto e pôs-se a colher as bagas escarlates dos ramos
mais elevados das roseiras bravas que sombreavam a berma do
caminho; dos ramos mais baixos as bagas haviam já
desaparecido, e aos de cima só os pássaros conseguiam chegar;
isto é, os pássaros e a minha Cathy, na posição em que se
encontrava. Porém, ao esticar-se mais para as apanhar, deixou
cair o chapéu e, como o portão estava fechado à chave,
resolveu saltar para a estrada para o ir apanhar.
Recomendei-lhe que tivesse cuidado para não cair e ela
desapareceu num abrir e fechar de olhos. Contudo, o regresso
revelou-se tarefa bem mais espinhosa: as pedras eram lisas e
cimentadas e os ramos das roseiras e das silvas não
facilitavam a subida. Eu, feita tola, só me apercebi disso
quando a ouvi a rir e a gritar do lado de lá.
-- Ellen, tens de ir buscar a chave, senão tenho de ir de
volta até à casa do caseiro. Por este lado não consigo escalar
o muro.
-- A menina não saia daí -- respondi. -- Tenho aqui o
chaveiro e talvez alguma destas chaves dê. Se não der, então
vou buscar a outra.
Catherine entretinha-se a dançaricar para trás e para a
frente diante do portão, enquanto eu ia experimentando, uma a
uma, todas as chaves grandes; mas cheguei à última e nenhuma
abriu. Assim, voltei a recomendar-lhe que não saísse de onde
estava e preparava-me já para ir a casa numa corrida, quando
um som me fez parar. Era o trote de um cavalo.
Cathy parou de dançar e, no minuto imediato, o cavalo parou
também.
-- Quem é? -- perguntei, baixando a voz.
-- Ai, Ellen, quem me dera que pudesses abrir o portão --
respondeu ela, aflita, falando também baixinho.
-- Olá, Miss Linton! -- bradou uma voz, a do cavaleiro. --
Bons olhos a vejam! Não tenha pressa de entrar, pois quero
pedir-lhe uma explicação que decerto não se furtará a dar-me.
-- Eu não falo consigo, Mr. Heathcliff -- retorquiu
Catherine. O papá diz que o senhor é diabólico e que nos
detesta a todos, e a Ellen diz o mesmo. :,
-- Isso agora não vem ao caso -- vociferou Heathcliff (pois
era dele que se tratava). -- Eu não detesto o meu filho, que
eu saiba, e é por ele que lhe peço um pouco de atenção. Sim,
sim, bem pode corar! Não é verdade que há dois ou três meses
costumava mandar cartinhas de amor ao Linton? Era só para se
divertir, não era? Deviam apanhar os dois uma boa sova,
especialmente a menina, por ser a mais velha e a menos
ajuizada, ao que parece. Tenho todas as suas cartas em meu
poder e, se começar com impertinências, mando entregá-las ao
seu pai. Presumo que se tenha fartado e atirado o devaneio
para trás das costas, não é assim? Pois fique sabendo que
atirou também o Linton para as ruas da amargura. Ele está
seriamente apaixonado por si e, tão certo como eu estar vivo,
não tarda a morrer por sua causa; está com o coração
despedaçado, não em sentido figurado, mas de uma forma bem
real. E embora o Hareton tenha feito dele o bombo da festa
nestas últimas seis semanas, e eu tenha tomado medidas mais
drásticas para ver se o faço sair do torpor em que se
encontra, o certo é que piora de dia para dia e estará debaixo
dos torrões antes do próximo Verão. A menos que a menina o
cure!
-- Como pode o senhor mentir tão descaradamente à pobre
criança? -- gritei eu do lado de dentro. -- Siga o seu
caminho! Não sei como pode inventar tantas aldrabices! Olhe,
Miss Cathy, eu vou é arrombar a fechadura com uma pedra. Não
acredite nesse chorrilho de disparates. Julgue a menina por
si mesma se é possível alguém morrer de amor por uma estranha.
-- Não sabia que havia ouvidos à escuta! -- resmungou o
velhaco, vendo-se desmascarado. -- Minha cara Mrs. Dean, gosto
muito de ti, mas desagrada-me esse teu jogo duplo. --
acrescentou em voz alta. -- Como pudeste afirmar que eu
detestava a «_pobre criança»? E inventar histórias
mirabolantes para a afastares da minha casa? Catherine
Linton... só o nome já me enternece... Minha querida...
estarei ausente durante toda esta semana. Vá lá e verá se
falei ou não verdade. Faça isso por mim, minha querida!
Imagine o seu pai no meu lugar e o Linton no seu, e pense que
ideia faria do seu namorado, se ele se negasse a dar um passo
para a conãolar, mesmo depois de o seu próprio pai lho ter
pedido. E por favor não faça a asneira de cair no logro dela.
Juro pela minha salvação que o Linton acabará por morrer e que
ninguém a não ser a menina lhe poderá
valer!
A fechadura cedeu finalmente e eu sai para a estrada.
-- Juro que o Linton está a morrer -- repetiu Heathcliff,
:, fitando-me duramente. -- O desgosto e a desilusão estão a
levá-lo à morte. Se não queres que ela vá, vai lá tu, Nelly.
Só volto daqui a uma semana, e creio que nem mesmo o teu
patrão se oporá a que ela vá visitar o
primo.
-- Entre, menina! -- disse eu a Cathy, puxando-a pelo
braço, e tendo quase de a obrigar a entrar, pois estava
especada, a olhar perplexa para o seu interlocutor, que
dissimulava toda a sua perfídia num semblante austero e
imperturbável. Aproximando-se com o cavalo, inclinou-se e
disse:
-- Devo admitir, Catherine, que tenho muito pouca paciência
para o Linton, e que o Hareton e o Joseph ainda têm menos.
Tenho de reconhecer que ele não ficará nas melhores mãos. E o
Linton precisa tanto de bondade como de amor. Uma palavra de
conforto da sua parte seria o melhor dos remédios. Não dê
ouvidos aos conselhos perversos de Mrs. Dean, seja generosa e
vá visitá-lo. Ele sonha consigo dia e noite e não há nada que
o convença de que a menina não o odeia, pois deixou de
escrever e de aparecer.
Fechei o portão e encostei-lhe um pedregulho, para
substituir a fechadura partida. Abri o guarda-chuva e puxei
Cathy para debaixo dele, que a chuva já caía em grossas pingas
por entre os ramos adejantes, mandando-nos para casa sem
demora.
A pressa impediu-nos de comentar o encontro com Heathcliff
durante o percurso, mas eu sentia que o coraçãozinho de
Catherine estava agora carregado com redobrada tristeza. Era
tanta a amargura do seu rosto que nem parecia a mesma -- era
evidente que tinha acreditado piamente em tudo o que ouvira.
Antes de nós chegarmos, o meu patrão tinha-se recolhido no
quarto a descansar. Cathy foi logo ter com o pai para saber
como ele se sentia, mas encontrou-o a dormir. Voltou então
para baixo e pediu-me para me vir sentar ao pé dela na
biblioteca. Tomámos o chá juntas e, em seguida, ela
estendeu-se no tapete e pediu-me que ficasse calada, pois
estava muito cansada.
Peguei num livro e fingi ler; ela, assim que me julgou
absorvida na leitura, recomeçou a chorar baixinho, que era
pelos vistos o seu passatempo favorito nos últimos tempos.
Deixei-a chorar à vontade, mas daí a um bocado não me contive
e comecei a fazer troça do que Mr. Heathcliff dissera a
respeito do filho, convencida de que ela concordaria comigo.
Isso sim! Não tive artes de contrariar o efeito produzido
pelas palavras dele. E era isso mesmo que ele
queria.
-- Pode ser que tenhas razão, Ellen -- respondeu Cathy.
--Mas :, não fico sossegada enquanto não souber a verdade.
Tenho de dizer ao Linton que não é por minha culpa que não lhe
escrevo e que os meus sentimentos não mudaram.
Que podiam ralhos e protestos perante tão inocente
credulidade? Nessa noite despedimo-nos amuadas. Mas no dia
seguinte dei por mim a caminho do Alto dos Vendavais,
à ilharga do cavalo da minha voluntariosa menina. Não
suportando contemplar o seu desgosto, aquela palidez e aquela
tristeza no olhar, acabara por ceder, na vaga esperança de que
o próprio Linton provasse, pelo modo como nos recebesse, como
era falha de fundamento a história que o pai dele contara.
CAPíTULO XXIII
A noite chuvosa deu lugar a uma manhã de nevoeiro, geadas
e chuviscos e o nosso caminho era atravessado pelos regatos de
água das chuvas, que escorriam das terras altas. Tinha os pés
completamente encharcados e sentia-me zangada e deprimida,
que era precisamente o humor ideal para tirar o melhor partido
destas tarefas ingratas.
Entrámos no casarão pela porta da cozinha para nos
certificarmos de que Mr. Heathcliff não estava realmente em
casa, pois não acreditava muito na sua palavra.
Joseph parecia estar numa mansão elísia, sozinho junto a
uma fogueira crepitante; perto dele, em cima da mesa, estava
uma caneca de cerveja e grandes nacos de pão de aveia torrado;
e, na boca, o seu cachimbo preto e curto.
Catherine aproximou-se da lareira para se aquecer.
Perguntei se o patrão estava em casa.
A minha pergunta ficou tanto tempo sem resposta que pensei
que o velho tinha ficado surdo, e repeti-a mais alto.
-- Não! -- resmungou ele, ou melhor, ripostou com a sua voz
nasalada. -- Não! E vocemecê volte p.ró sítio donde veio.
-- Joseph! - gritou uma voz impaciente lá de dentro. --
Quantas vezes tenho de te chamar? O lume está apagado,
Joseph! Anda cá imediatamente.
As vigorosas baforadas do cachimbo e um olhar que não
arredava da parede mostravam que ele era surdo a este apelo.
Da governanta e do Hareton nem sinais: ela tinha ido fazer
uns recados, e ele estava possivelmente a trabalhar.
Reconhecemos a voz de Linton e entrámos.
-- Oh, espero que morras à fome fechado num sótão -- disse
o rapaz, confundindo os nossos passos com os do criado
negligente.
Calou-se, porém, mal percebeu o seu erro. A prima correu
para ele.
-- É a menina, Miss Linton? -- disse, levantando a cabeça
do braço do cadeirão onde estava recostado. -- Não, não me
beije que me sufoca. Ai meu Deus! O meu pai disse que viria --
continuou, depois de se ter recomposto do abraço de Catherine,
enquanto ela continuava de pé, ao lado dele, mostrando-se
contrita. -- Não se importa de fechar a porta, por favor?
Deixou-a aberta; e aquelas criaturas *detestáveis* nunca mais
trazem carvão para a lareira. Está tanto frio
aqui!
Remexi as cinzas e fui eu própria buscar um balde cheio de
carvão, e logo o enfermo se queixou de que estava todo
coberto de poeira; mas como tinha uma tosse irritativa e
parecia febril e doente, não o repreendi pelo seu
mau-humor.
-- Então, Linton -- disse Catherine baixinho, quando o viu
menos tenso. -- Estás contente por me ver? Há alguma coisa que
eu possa fazer?
-- Porque não veio há mais tempo? -- perguntou. -- Devia
ter vindo, em vez de escrever. Cansava-me imenso a
escrever-lhe aquelas longas cartas. Teria preferido mil vezes
falar consigo pessoalmente. Agora, não me apetece conversar
nem fazer mais nada. Onde estará a Zillah? Importa-se de ir à
cozinha ver se a encontra? -- E olhou para mim.
Como não me tinha agradecido pelo outro serviço que lhe
prestara e como não estava disposta a andar de um lado para o
outro, respondi:
-- Só lá está o Joseph.
-- Tenho sede protestou, agastado, virando-se para o outro
lado. -- Desde que o meu pai se foi embora, a Zillah passa a
vida a ir a Gimmerton. É uma vergonha! Sou obrigado a vir cá
para baixo pois, lá em cima, ninguém me ouve.
-- O seu pai é atencioso consigo, Master Heathcliff? --
perguntei, percebendo que Catherine não estava a ser um
modelo de solicitude.
-- Atencioso? Pelo menos, obriga-os a serem um pouco mais
atenciosos comigo -- exclamou. -- Os patifes! A Miss Linton
sabe que o bruto do Hareton se ri de mim?
Odeio-o... na verdade, odeio-os a todos... são criaturas
detestáveis. :,
Cathy foi à procura da água; descobriu um jarro no
aparador. encheu um copo e trouxe-lho. Ele pediu-lhe que
misturasse uma colher de vinho da garrafa que estava em cima
da mesa e, depois de ter bebido um pouco, pareceu mais calmo e
disse-lhe que ela era muito simpática.
-- E estás feliz por me ver? -- perguntou Miss Catherine,
reiterando de novo a pergunta, satisfeita por detectar um
leve esboçar de um sorriso.
-- Estou -- não é costume ouvir uma voz como a sua! --
respondeu ele. -- Mas *tenho andado* muito aborrecido por não
me querer vir visitar -- e o meu pai disse que a culpa era
minha e até me chamou criatura mesquinha, desonesta, sem
préstimo, e disse que a Cathy me desprezava e que, se
estivesse no meu lugar, já seria nesta altura mais dono da
Granja do que o seu pai. Mas a menina não me despreza, pois
não, Miss...
-- Preferia que me tratasses por tu! -- atalhou a minha
menina. -- Desprezar-te? Não! A seguir ao meu pai e à Ellen,
és a pessoa de quem mais gosto. No entanto, não gosto de Mr.
Heathcliff e não me atrevo a voltar cá quando ele regressar;
ele vai estar fora muitos dias?
-- Não muitos -- respondeu Linton. -- Mas, desde que abriu
a época da caça, vai muitas vezes para os brejos e tu podias
vir cá passar uma hora ou duas comigo quando ele não está.
Anda! Diz que sim! Acho que contigo não me tornarei
insuportável; e tu não me provocarás e estarás sempre pronta a
ajudar-me, não é verdade?
É -- disse Catherine, acariciando-lhe o cabelo longo e
macio -- se conseguisse, ao menos, que o papá me deixasse,
passaria metade do tempo contigo, querido Linton! Quem me dera
que fosses meu irmão.
-- E assim gostavas tanto do teu pai como de mim? -- observou
ele, mais contente. -- Mas o meu pai diz que gostarias mais de
mim do que do teu pai, se fosses minha mulher. Quem me dera
que fosses!
-- Não, nunca gostarei de ninguém como gosto do meu pai --
replicou ela gravemente. -- E as pessoas às vezes detestam as
suas mulheres, mas não os irmãos e as irmãs e, se fosses meu
irmão, ias viver connosco e o meu pai ia gostar tanto de ti
como gosta de mim.
Linton negou que as pessoas pudessem detestar as suas
mulheres, mas Cathy afirmou que podiam sim senhor e citou o
caso da aversão do pai dele em relação à sua tia.
Tentei fazer calar aquela tagarela, mas em vão, e ela só se
calou depois de contar tudo o que sabia. Master Heathcliff,
irritadíssimo, afirmou que tudo aquilo era mentira.
-- Foi o meu pai que me contou e o meu pai não mente
ripostou Catherine, peremptória
-- E o meu pai despreza o teu -- gritou Linton. -- E até
lhe chama um idiota chapado.
-- O teu pai é muito mau -- retrucou Catherine -- e tu não
devias repetir o que ele diz; ele deve ser mesmo muito mau
para a tia Isabella o ter deixado como deixou.
-- Ela não o deixou contrapôs o rapaz -- não me
contradigas!
-- Ai isso é que deixou! -- insistiu a minha menina.
-- Pois fica sabendo que a tua mãe odiava o teu pai. Ora
toma!
-- Oh! -- exclamou Catherine, furiosa demais para lhe dar
troco.
-- E amava o meu! -- acrescentou ele.
-- Mentiroso! Detesto-te -- disse ela ofegante, vermelha de
raiva.
-- Amava! Amava! -- cantarolou Linton, enterrando-se na
poltrona e recostando a cabeça para melhor apreciar o
desatino da adversária, que continuava de pé, atrás dele.
-- Esteja calado, Master Heathcliff! -- disse eu. -- Isso
são coisas que o seu pai lhe meteu na cabeça, tenho a
certeza.
-- Não, não são, e cale-se -- retorquiu Linton. -- Amava,
sim, Catherine, amava, amava.
Catherine, descontrolada, empurrou violentamente a
poltrona, fazendo o primo cair sobre um braço, o que lhe
provocou um ataque de tosse tão sufocante que logo terminou
com aquele seu ar de triunfo.
Foi um ataque de tosse tão prolongado que até eu fiquei
assustada. Quanto à prima, desatou a chorar, arrependida do
mal que lhe fizera, embora não o admitisse.
Amparei-o até que a tosse passasse. Depois, ele empurrou-me
e recostou a cabeça, sempre calado. Também Catherine pôs fim
às suas lamentações, indo sentar-se em frente dele e fixando o
lume com um ar compenetrado.
-- Como se sente agora, Master Heathcliff? -- inquiri ao
fim de dez minutos.
-- Só queria que *ela* se sentisse como eu me sinto --
respondeu. -- Criatura cruel e malvada! O Hareton nunca me
tocou, nunca me :, bateu na vida, e logo hoje que eu estava
melhor, e afinal... -- a sua voz esmoreceu.
-- Eu não te bati -- contrapôs Catherine, mordendo o lábio
para evitar novo ataque de choro.
Linton pôs-se a suspirar e a gemer como se estivesse em
grande sofrimento, e assim continuou durante um quarto de
hora, aparentemente com o objectivo de afligir a prima pois
sempre que ela deixava escapar um soluço, ele gemia ainda
mais.
-- Desculpa ter-te magoado, Linton -- disse Catherine
finalmente, não se contendo mais. -- Mas um empurrãozinho
daqueles não faz mal a ninguém e nunca me passou pela cabeça
que pudesse fazer. Não te magoei muito, pois não, Linton? Não
me deixes ir para casa a pensar que sim! Anda, responde, fala
comigo.
-- Não posso falar contigo -- murmurou -- magoaste-me
imenso e vou ficar acordado toda a noite a tossir. Se tivesses
esta tosse, saberias dar-lhe valor; mas tu vais dormir
regaladamente enquanto eu vou ficar para aqui nesta aflição e
sem ninguém ao pé de mim. Sempre gostava de saber como era se
tivesses de passar umas noites tão pavorosas como as minhas!
-- E começou a gemer muito alto, num alarde de
autocomiseração.
-- Uma vez que o menino está habituado a passar noites
horríveis disse eu não será Miss Catherine quem as tornará
piores; isso aconteceria, mesmo que ela não estivesse aqui.
Mas fique descansado que a menina não voltará a incomodá-lo
e, talvez o menino se sinta melhor assim que nos formos
embora.
-- Tenho mesmo de me ir embora? -- perguntou Catherine
tristemente, inclinada sobre ele. -- Queres que me vá embora,
Linton?
-- Agora já não podes modificar o que está feito --
replicou ele mal-humorado, afastando-a. -- A não ser que o
modifiques para pior, conseguindo irritares-me até eu ficar
com febre.
-- Então queres que eu vá? -- voltou a perguntar.
-- Deixa-me em paz -- disse ele -- não suporto ouvir a tua
voz!
Ela foi-se deixando ficar, resistindo às minhas
insistências para partirmos, mas como o primo nem dizia nada,
nem para ela olhava, decidiu finalmente vir-se embora, e eu
segui-a.
Um grito fez-nos retroceder: Linton tinha deslizado da
poltrona para a pedra da lareira e contorcia-se em convulsões,
como uma criança birrenta, apostada em irritar e afligir o
outros o mais possível.
Percebi logo qual era a sua verdadeira intenção e que, por
isso, :, era inútil tentar animá-lo. Mas Miss Catherine assim
não o entendeu e voltou para dentro aterrorizada,
ajoelhando-se e chorando, confortando-o e implorando até que
ele se recompôs da falta de ar, mas não da sua determinação em
afligi-la.
-- Vou deitá-lo no banco -- disse eu -- e assim poderá
rebolar-se à vontade. Não podemos estar aqui a vigiá-lo
eternamente. Espero que tenha percebido, Miss Cathy, que *a
menina* em nada o beneficia e que o estado do seu primo não é
ocasionado pelo que ele sente por si. -- Olhe, lá está ele
outra vez! Vamos embora, que assim que ele se aperceber de que
não está aqui ninguém para aturar os seus disparates,
sossegará!
Ela colocou-lhe uma almofada debaixo da cabeça, e
ofereceu-lhe água. A água, rejeitou-a; quanto à almofada,
mexeu-se tanto que mais parecia que lhe tinham dado uma pedra
ou um cepo.
Ela tentou acomodá-lo melhor.
-- Não está bem -- disse ele. -- Não é suficientemente
alta!
Catherine foi buscar outra e colocou-a em cima da primeira.
-- Agora ficou alto demais -- queixou-se a quezilenta
criatura.
-- Então como é que a queres? -- perguntou ela,
desesperada.
Ele soergueu-se e inclinou-se para ela, que estava
meia-ajoelhada junto ao banco e apoiou-se no seu
ombro.
-- Não, nem pense nisso! -- disse eu. -- Contente-se com as
almofadas, Master Heathcliff! A menina já perdeu tempo demais
consigo e não podemos ficar aqui nem mais cinco minutos.
-- Podemos, claro que podemos -- replicou Catherine. --
A birra já lhe passou. Ele já percebeu que sou capaz de ficar
muito pior do que ele hoje à noite se pensar que ele piorou
por minha causa, e se assim for, não me atreverei mais a
voltar cá. Diz-me se é assim, Linton, pois se te tiver
magoado, não voltarei .
-- Tens de vir, para tratares de mim -- respondeu ele. -- É
a tua obrigação porque me magoaste, e muito. Tu sabe-lo bem!
Quando entraste, eu não estava tão mal como estou agora, pois
não?
-- Mas ficou pior porque chorou e se enervou.
-- A culpa não foi minha -- disse Catherine. -- Contudo,
ficaremos amigos. Queres que eu... Gostarias realmente que eu
te viesse visitar de vez em quando?
-- Já te disse que sim! -- respondeu impaciente. --
Senta-te aqui no banco e deixa-me deitar a cabeça no teu colo:
era assim que a mamã costumava fazer tardes inteiras. Senta-te
e não fales, mas podes cantar uma cantiga, se souberes cantar,
ou então recitar uma :, balada que seja longa e interessante,
uma daquelas que prometeste ensinar-me, ou uma história... no
entanto, eu prefiro a balada. Podes começar.
Catherine recitou uma das maiores baladas de que se
conseguia lembrar. O entretenimento agradou imenso aos dois.
Linton quis ouvir outra, e mais outra, apesar dos meus mais
enérgicos protestos; e assim continuaram até que o relógio
bateu as doze horas e ouvimos o Hareton no pátio, de regresso
para o jantar.
-- E amanhã, Catherine, vens cá outra vez? -- perguntou o
jovem Heathcliff, agarrando-lhe no vestido quando ela se
levantou, ainda que contrariada.
-- Não! -- respondi eu -- E depois de amanhã também não. --
Ela, porém deve ter-lhe dado uma resposta diferente, pois a
testa enrugada do menino desanuviou-se quando ela se inclinou
e lhe segredou qualquer coisa ao ouvido.
-- A menina não se esqueça de que amanhã não poderá vir --
observei, quando já nos encontrávamos fora de casa. -- Não
está a pensar vir, pois não?
Ela sorriu.
-- Deixe, que eu cá me arranjo! -- continuei. -- Vou mandar
consertar aquela fechadura e, assim, já não poderá fugir.
-- Posso saltar a cerca -- disse, a rir. -- A Granja não é
uma prisão, Ellen, e tu não és a minha carcereira. E, além
disso, tenho quase dezassete anos. Sou uma mulher e tenho a
certeza de que o Linton se restabeleceria muito mais
rapidamente se fosse eu a cuidar dele: sou mais velha e mais
ajuizada e menos infantil, não sou? Não tarda nada e ele fará
tudo o que lhe mando, não sem alguma manha da minha parte...
Ele é um amor quando se porta bem. Se fosse meu, estragava-o
com mimos, e nunca havíamos de discutir, depois de nos
afeiçoarmos um ao outro, pois não? Não gostas dele, Ellen?
-- Gostar dele? -- exclamei. -- É a criatura mais
mal-humorada e quezilenta que eu já vi com aquela idade!
Felizmente não chegará aos vinte anos, como Mr. Heathcliff
previu! Duvido mesmo que chegue à Primavera... E pouca falta
fará aos dele quando se for. Foi uma sorte para nós o pai ter
ficado com ele. Quanto mais carinhosamente o tratássemos,
mais enfadonho e egoísta se havia de tornar! Ainda bem que
não há hipótese nenhuma de ele vir a ser seu marido, Miss
Catherine!
A minha companheira pôs-se muito séria a escutar todo este
:, meu arrazoado: ouvir falar da morte do primo com tanta
frieza magoou-a profundamente.
-- É mais novo do que eu -- protestou, após uma prolongada
pausa de reflexão. -- Tem de viver muito mais. Vai viver tanto
como eu. Está tão forte agora como estava quando veio para o
Norte, disso tenho eu a certeza! Aquilo é só uma gripe, como a
do papá. Disseste que o papá ia ficar bom; então, porque é que
ele também não há-de ficar?
-- Bem, bem -- disse eu -- afinal de contas não temos
necessidade de nos preocuparmos; oiça, menina, olhe que eu
cumprirei a minha promessa. Se tentar ir ao Alto dos Vendavais
outra vez, sozinha ou comigo, informarei Mr. Linton e, a não
ser que ele de o seu consentimento, a convivência com o seu
primo não será reatada.
-- Já foi reatada -- murmurou Cathy, zangada.
-- Então, não deve continuar -- afirmei.
-- Isso é o que veremos! -- foi a sua resposta, desatando a
correr desenfreadamente e deixando-me ficar para trás.
Chegámos ambas a casa antes da hora de jantar. O meu patrão
pensava que tínhamos andado a passear pelo parque e, por isso,
não pediu explicações sobre a nossa ausência. Assim que
entrei, apressei-me a ir trocar de sapatos e de meias. Mas a
longa permanência no Alto ia ter graves consequências. Na
manhã seguinte fiquei de cama e durante três semanas estive
incapacitada de cumprir as minhas obrigações -- uma calamidade
jamais sofrida antes e que, graças a Deus, nunca mais se
repetiu.
A minha menina portou-se como um anjo, vindo tratar de mim
e alegrar a minha solidão: o isolamento abateu-me por demais
-- era algo de insuportavelmente fastidioso para uma pessoa
tão viva e activa como eu -- mas pouca gente devia ter menos
razões para se queixar do que eu. Mal Catherine saía do quarto
de Mr. Linton, vinha sentar-se à minha cabeceira. Repartia o
seu tempo entre nós dois e não perdia um só minuto com
distracções: negligenciou as refeições. os estudos e as
brincadeiras. Era a enfermeira mais zelosa que eu já vi; devia
ter um coração deveras generoso para ainda lhe sobrar tanto
carinho para me dar depois de todo o amor que dedicava ao
pai.
Como já disse, os seus dias eram repartidos entre nós: o
patrão recolhia-se cedo, e eu geralmente não precisava de nada
depois das seis horas, pelo que ela tinha a noite
livre.
Coitadinha! Nunca pensei no que ela fazia depois do chá, :,
apesar de, frequentemente, lhe notar um certo rubor nas faces
e uma certa vermilhidão nos dedos finos, quando me vinha dar
as boas-noites. E, em vez de pensar numa cavalgada ao frio
através dos brejos, atribuía culpas ao calor da lareira
biblioteca.
CAPíTULO XXIV
Ao fim de três semanas, pude enfim sair do quarto e
movimentar-me pela casa. E, na primeira vez que fiquei a pé
até à noitinha, pedi a Catherine que me lesse qualquer coisa
porque os meus olhos ainda estavam fracos. O senhor já se
tinha ido deitar e estávamos as duas na biblioteca. Acedeu ao
meu pedido, embora com bastante relutância, e eu, imaginando
que o meu tipo de livros não lhe agradava, disse-lhe para
escolher o que mais gostasse.
Escolheu um dos seus favoritos e leu-o ininterruptamente
durante quase uma hora, altura em que começou a fazer
perguntas.
-- Ellen, não estás cansada? Não será melhor ires
deitar-te? Vais piorar, se ficares a pé até muito tarde,
Ellen.
-- Não, menina, não estou cansada -- respondi.
Vendo que eu não arredava pé, lançou mão de outro
estratagema para mostrar o tédio que aquela ocupação lhe
causava. Começou a bocejar e, espreguiçando-se, disse:
-- Ellen, estou cansada.
-- Então pare de ler e conversemos -- respondi.
Pior ainda: ficou inquieta e a suspirar, e não parou de
olhar para o relógio até às oito horas, altura em que se
retirou finalmente para o quarto cheia de sono, a julgar pela
sua cara sonolenta e pelas vezes que tinha esfregado os olhos.
Na noite seguinte parecia ainda mais impaciente e na
terceira disse que tinha dores de cabeça e retirou-se.
Achei o seu procedimento muito estranho e, depois de ter
ficado sozinha alguns minutos, resolvi ir ver se ela estava
melhor e dizer-lhe para se vir estender no sofá, em vez de
estar lá em cima no escuro.
Não a encontrei em parte alguma e os criados também não a
tinham visto. Escutei à porta de Mr. Edgar, mas o quarto
estava silencioso. Voltei para o quarto dela, apaguei a vela e
sentei-me à janela.
Estava uma bela noite de luar. Uma finíssima camada de
flocos de neve cobria o chão, e pensei que talvez ela tivesse
ido passear para o jardim para espairecer. Cheguei mesmo a
detectar um vulto a mover-se lentamente do lado de dentro da
cerca, mas não era ela; quando saiu da sombra, reconheci um
dos moços da cavalariça.
Ele ficou durante muito tempo a vigiar a estrada, que se
perdia para lá dos campos, e depois começou a correr como se
tivesse avistado alguma coisa, reaparecendo em seguida com o
cavalo de Miss Catherine pela arreata, e ela ao lado dele,
como se tivesse acabado de desmontar.
O rapaz levou o cavalo para a cavalariça, passando por cima
da relva para não fazer barulho. Cathy entrou em casa pela
janela da varanda da sala de estar e subiu em bicos de pés até
ao quarto, onde eu estava à espera dela.
Abriu a porta muito devagar, tirou os sapatos cobertos de
neve, desapertou as fitas do chapéu, e ia começar a tirar a
capa, sem saber que eu a observava quando, de repente, me
levantei e apareci. A surpresa deixou-a petrificada por
instantes: balbuciou uma explicação desarticulada e não se
mexeu.
-- Minha querida Miss Catherine -- comecei eu, demasiado
impressionada pela sua recente bondade para ser ríspida com
ela. -- Por onde é que andou a passear a uma hora destas? E
por que tentou enganar-me com as suas mentiras? Onde esteve?
Diga lá!
-- No fundo do parque -- gaguejou. -- Eu não menti.
-- E não foi a mais lado nenhum? -- perguntei.
-- Não -- respondeu baixinho.
-- Oh, menina! -- exclamei eu, desgostosa. -- Sabe bem que
se tem andado a portar mal ou então não me teria mentido. Isso
entristece-me. Preferia estar três meses de cama a ouvi-la
mentir com essa desfaçatez.
Ela avançou para mim e, irrompendo em lágrimas, lançou-se
ao meu pescoço.
-- Sabes, Ellen, tenho tanto medo de que te zangues.
Promete que não te zangas e conto-te toda a verdade. Detesto
ter de mentir.
Sentámo-nos nos poiais da janela. Assegurei-lhe que não a
repreenderia, fosse qual fosse o segredo, embora já
suspeitasse de qual era. E então, ela começou:
-- Tenho ido ao Alto dos Vendavais, todos os dias, desde
que adoeceste, excepto três: uma antes, e duas depois, de
teres saído do teu quarto. Dei ao Michael livros e estampas
para me aparelhar a Minny todas as noites e para que, depois
de eu voltar, a levasse de novo para a cavalariça. Não te
esqueças de que também não o deves repreender. Chegava ao Alto
por volta das seis e meia e geralmente ficava lá até às oito e
meia e depois voltava para casa. Não era para me divertir que
lá ia: a maior parte das vezes sentia-me mal comigo mesma. Só
de vez em quando me sentia feliz, talvez uma vez por semana.
De início, ainda pensei dar-me ao trabalho de te persuadir a
deixares-me cumprir a promessa que fizera ao Linton, uma vez
que me tinha comprometido a visitá-lo no dia seguinte, mas
como adoeceste logo a seguir, não tive a mínima dificuldade e,
enquanto o Michael reparava a fechadura do parque, apoderei-me
da chave e contei-lhe como o meu primo queria que eu o
visitasse, porque era doente e não podia vir à Granja e as
objecções que o meu pai levantava à minha ida até lá. Foi
então que negociei com ele para me arranjar o cavalo. Ele
gosta de ler e está a pensar ir-se embora para casar e, por
isso, ofereceu-se para fazer o que eu quisesse se eu lhe
emprestasse alguns livros da nossa biblioteca. Mas eu preferi
dar-lhe alguns dos meus, o que lhe agradou ainda mais.
-- Na minha segunda visita, o Linton parecia muito mais
animado e a Zillah, a governanta, limpou a sala, acendeu a
lareira e disse-nos para estarmos à vontade, já que o Joseph
tinha ido a uma reunião religiosa e o Hareton Earnshaw saíra
com os cães para ir roubar faisões nas nossas moitas, como
soube mais tarde.
-- Ela trouxe-me ainda um pouco de vinho quente e alguns
pães de gengibre e pareceu-me uma pessoa extremamente afável.
O Linton sentou-se na cadeirão e eu sentei-me na cadeira de
baloiço perto da pedra da
lareira. O que nós rimos e conversámos! Tínhamos tanto para
contar. Fizemos planos para o Verão. Não vou repetir o que
planeámos, pois acharias ridículo.
-- Certa vez, porém, quase nos zanga: nos. Ele teimou que a
melhor maneira de passar um dia quente de Verão era numa
encosta coberta de urze, no meio do brejo, a ouvir o zumbido
das abelhas nas flores e o canto das cotovias lá no alto,
deitado sob o céu azul :, e o sol resplandecente. Esta era a
sua ideia de felicidade paradisíaca. A minha, pelo contrario,
consistia em baloiçar-me nas ramadas sussurrantes de uma
árvore, embalada pela brisa, com as nuvens brancas lá no alto
correndo velozmente. E eu gosto não só de cotovias, mas também
de tordos, melros, milheiros e cucos, chilreando à nossa
volta, com os brejos em pano de fundo, recortados por vales
frios e sombreados, mas orlados de grandes tufos de erva alta,
ondulando ao sabor da brisa, e bosques, e cursos de água a
cantarolar e o mundo inteiro acordado e rejubilante. Ele
queria que tudo permanecesse num êxtase passivo, enquanto eu
queria que tudo brilhasse e bailasse em jubilosa glória.
-- Disse-lhe que o paraíso dele seria para mim uma
semi-morte, e ele retorquiu que o meu seria um desbragamento;
afirmei que o dele me poria a dormir e ele garantiu que não
conseguiria respirar no meu e, a partir daí, começou a ficar
muito rezingão. Por fim, concordámos em experimentar os dois
paraísos assim que o tempo o permitisse e, então, beijámo-nos
e ficámos amigos novamente. Depois, ficámos em silêncio
durante uma hora, até que eu reparei naquela sala esplêndida,
no chão polido e sem carpetes, e pensei como seria bom brincar
ali se retirássemos a mesa; pedi então ao Linton que chamasse
a Zillah para nos ajudar e para brincar connosco à
cabra-cega. Ela teria de nos apanhar como tu costumavas fazer,
lembras-te Ellen? Ele não queria, disse que não tinha graça
nenhuma, mas acabou por concordar em jogar comigo à bola.
Encontrámos duas no armário, no meio de um monte de
brinquedos velhos, peões, arcos, raquetes e penas. Uma tinha
um C. e a outra um H. Eu quis ficar com a que tinha um C.
porque poderia ser um C. de Catherine e o H. poderia ser de
Heathcliff, o nome dele. Mas a dele estava rasgada, deitava
farelo pelo H., pelo que não quis ficar com ela.
-- Ganhei-lhe quase sempre: ele zangava-se, engasgava-se,
tossia e voltava para a sua cadeira. Contudo, naquela noite
recuperou facilmente a boa disposição. Estava encantado com
duas ou três canções -- as *tuas* canções, Ellen -- e quando
chegou a hora de me vir embora, pediu e implorou que eu
voltasse lá no dia seguinte, o que eu prometi. A Minny e eu
regressámos a casa num ápice e passei a noite a sonhar com o
Alto dos Vendavais e com o meu querido e amoroso primo.
-- No dia seguinte, acordei triste: em parte, porque tu
estavas doente e, em parte, porque gostaria que o meu pai
soubesse e :, aprovasse as minhas visitas; mas depois do chá
estava um luar lindíssimo e, à medida que cavalgava, a
tristeza dissipou-se.
-- Aproxima-se mais uma noite bem passada, pensei eu, mas o
que mais me reconfortava era, acima de tudo, saber que o meu
primo também teria uma noite feliz.
-- Subi a trote pelo jardim e, quando me preparava para
contornar a casa, apareceu o tal Earnshaw, que pegou nas
rédeas do cavalo e me obrigou a entrar pela porta principal.
Afagou o pescoço da Minny, disse que era um excelente animal e
pareceu-me que estava à espera de que eu conversasse com ele.
Mas eu disse-lhe apenas que deixasse o cavalo em paz, senão
ainda lhe dava um coice, ao que ele respondeu, com o seu
sotaque boçal:
-- «_Não me magoaria muito se desse», ao mesmo tempo que
olhava para as pernas do cavalo.
-- Eu estava tentada a experimentar; contudo, ele
afastou-se para ir abrir a porta e, enquanto levantava o
ferrolho, olhou para cima, para a inscrição que lá estava
gravada, com uma expressão grotesca, misto de rudeza e
orgulho:
-- «_Já sei ler, Miss Catherine!».
-- «_Óptimo!» exclamei. «_Mostra lá, por favor, a tua
sabedoria».
-- Ele então soletrou, arrastando as sílabas, o nome
*_Hareton Eanshaw*.
-- «_E os números?» perguntei, ao aperceber-me de que tinha
chegado ao fim.
-- «_Ainda não aprendi» respondeu.
-- «_Sempre és muito burro!» disse eu, rindo-me do seu
fracasso.
-- O idiota olhou-me fixamente, por entre um esboço de
sorriso e um franzir de sobrolho, como se hesitasse entre
aderir ou não à minha chacota, como se estivesse indeciso, sem
saber se ela provinha de uma certa sem-cerimónia ou do que
realmente era: puro desprezo.
-- Desfiz-lhe quaisquer dúvidas ao recuperar subitamente o
meu ar compenetrado, pedindo-lhe que se fosse embora, já que
eu tinha ido ao Alto para ver o Linton e não a ele.
-- Corou. Sei-o porque estava uma noite de luar. Depois,
tirou a mão do ferrolho e retirou-se envergonhado, verdadeira
imagem da vaidade mortificada. Acho que se considerava tão
instruído como o Linton só porque conseguia soletrar o seu
próprio nome, e estava deliciosamente desconcertado por eu não
pensar o mesmo. :,
-- Chega, Miss Catherine -- disse eu, interrompendo-a
-- Não a vou repreender, mas não gosto nada da forma como
procedeu. Se se tivesse lembrado de que o Hareton é tão seu
primo como Master Linton, ter-se-ia dado conta da
indelicadeza com que o tratou. Pelo menos, é louvável da parte
dele desejar ser tão culto como Linton e, se calhar, não
aprendeu tudo isto só para se exibir; a menina já antes o
devia ter feito sentir-se envergonhado da sua ignorância,
disso não duvido, e ele só queria ultrapassar essa
desvantagem e agradar-lhe. Zombar da sua tentativa fracassada
foi uma crueldade; se a menina, por acaso, tivesse sido criada
nas mesmas circunstancias, acha que teria mais educação? Ele,
em criança, era tão vivo e inteligente como a menina, e
custa-me vê-lo agora desprezado, só porque aquele miserável do
Heathcliff o tratou tão injustamente.
-- Bem, Ellen, não te vais pôr a chorar, pois não? --
exclamou Catherine, surpreendida com a minha severidade.
-- Mas espera e já vais ver se foi ou não para me agradar que
o Hareton aprendeu o _A_B_C, e se tinha valido a pena ser
civilizada com aquele bruto.
-- Entrei. O Linton estava deitado no cadeirão e sentou-se
para me cumprimentar.
-- «_Hoje sinto-me muito mal, minha querida Catherine»
disse ele, «_e, por isso, a conversa fica por tua conta. Anda,
senta-te aqui ao pé de mim. Tinha a certeza de que cumpririas
a tua palavra e, antes de te ires embora, vou obrigar-te de
novo a prometer que voltas cá amanhã».
-- Eu já sabia que não devia aborrecê-lo quando estava mal
disposto, e, por isso, falei baixinho, não fiz perguntas e
evitei irritá-lo fosse com o que fosse. Tinha-lhe levado
alguns dos meus melhores livros e o Linton pediu-me que lhe
lesse um trecho de um deles; estava prestes a começar quando o
Earnshaw abriu a porta de rompante e entrou por ali dentro
como um furacão, depois de ter reflectido no que eu lhe
dissera. Veio direito a nós, agarrou o Linton por um braço e
atirou-o abaixo do cadeirão.
-- «_Vai para o teu quarto!» gritou, com a voz embargada
pela fúria, e o rosto transfigurado. «_E leva-a para lá quando
ela te vier visitar. Não pensem que me impedem de estar aqui.
Saiam daqui os dois!»
-- Desatou a insultar-nos, sem dar tempo ao Linton de
responder, levando-o à sua frente quase até à cozinha, ao
mesmo tempo :, que me ameaçava de punho cerrado ao ver-me ir
atrás deles, como se me quisesse bater. Por um momento tive
medo e deixei cair um livro; ele deu-lhe um pontapé e
fechou-nos a porta, deixando-nos do lado de fora da sala.
-- Ouvimos uma gargalhada perversa vinda da lareira e,
virando-nos, vimos o odioso do Joseph, esfregando as mãos
esqueléticas, a tremer de frio.
-- «_Eu sabia qu.ele os punha de lá p.ra fora! É um rapaz e
pêras! Está a portar-se à altura! Sabe tão bem como eu quem é
que devia mandar aqui. Ah! Ah! Ah! Chegou-lhes a valer! Ah!
Ah! Ah!»
-- «_Para onde vamos?» perguntei ao meu primo, ignorando as
zombarias daquele velho atrevido.
-- O Linton estava branco e trémulo. Não estava nada bem,
Ellen! Não estava mesmo: o aspecto era péssimo! A sua cara
magra e os seus grandes olhos transbordavam de fúria
desvairada e impotente. Agarrou a maçaneta da porta e
abanou-a com toda a força, mas encontrou-a fechada por dentro.
-- «_Se não me deixares entrar, mato-te! Se não me deixares
entrar, mato-te!» gritou o Linton. «_Com os diabos! Vou-te
matar! Vou-te matar!»
-- O Joseph emitiu mais uma das suas sonoras
gargalhadas.
-- «_Olha, é tal qual o pai!» disse ele. «_É tal qual o
pai! Temos sempre qualquer coisa de um lado e do outro. Não se
preocupe, Hareton, ele não consegue apanhá-lo».
-- Peguei nas mãos do Linton e tentei puxá-lo dali para
fora, mas ele fez tal gritaria que achei melhor largá-lo. Por
fim, os seus gritos foram abafados por um avassalador ataque
de tosse que o atirou para o chão, a deitar sangue pela
boca.
-- Corri para o pátio, agoniada de pavor e gritei pela
Zillah o mais alto que pude. Ela ouviu-me logo, pois estava a
ordenhar as vacas num coberto por detrás do celeiro e, vindo a
correr, perguntou-me o que se passava.
-- Eu não conseguia falar e, por isso, arrastei-a para
dentro de casa e fui à procura do Linton. O Earnshaw tinha
vindo cá fora para ver a confusão que provocara e levava agora
o pobrezinho para o andar de cima. A Zillah e eu subimos atrás
deles, mas o Hareton deteve-me quando cheguei ao cimo das
escadas e disse-me que eu não devia entrar, que devia era ir
para casa. Respondi-lhe que ele tinha matado o Linton e que eu
*ia* entrar.
-- O Joseph fechou a porta à chave e declarou que eu não ia
:, entrar coisíssima nenhuma e perguntou-me se eu queria ficar
tão doida como o Linton.
-- Pus-me a chorar e a gritar até a governanta aparecer e
afirmar que ele ficaria bom num instante, mas que não
conseguiria recuperar com todo aquele barulho, levando-me
quase de rastos lá para baixo, para a
sala.
-- Sabes, Ellen, estava capaz de arrancar todos os cabelos
da cabeça! Solucei e chorei tanto que os meus olhos incharam e
quase não via nada, e o patife por quem sentes tanta
compaixão, ali à minha frente, dando-se ao luxo de me mandar
calar de vez em quando, negando que a culpa fosse dele.
Finalmente, assustado com as minhas ameaças de contar tudo ao
papá, que o mandaria para a prisão para ser enforcado, começou
a chorar e saiu precipitadamente, para que não
testemunhássemos a sua cobardia.
-- Contudo, ainda não estava livre dele por completo:
quando, por fim, conseguiram convencer-me a vir-me embora e eu
já me encontrava a umas cem jardas da casa, o Hareton saltou
de repente da sombra, susteve a Minny e agarrou-me.
-- «_Miss Catherine, lamento muito» começou. «_Foi uma pena
que...»
-- Dei-lhe com o chicote, pensando talvez que ele me
quisesse matar, mas ele largou-me, soltando um dos seus
horríveis palavrões, e eu vim a galope para casa,
desaustinada.
-- Nessa noite não te dei as boas-noites e, na noite
seguinte, não fui ao Alto dos Vendavais, embora bem o
desejasse; mas estava estranhamente nervosa e, ora receava
ouvir que o Linton estava morto, ora tremia perante a ideia de
me encontrar com o Hareton.
-- No terceiro dia enchi-me de coragem, ou pelo menos, não
pude suportar mais aquela espera e aquele jogo das escondidas.
Parti às cinco horas, e fui a pé, pensando que conseguiria
esgueirar-me até ao quarto do Linton sem ser vista. Todavia,
os cães puseram-se a ladrar mal me pressentiram, denunciando
a minha presença: a Zillah veio ao meu encontro, dizendo que
o menino estava a convalescer bastante bem e levou-me para um
pequeno aposento, muito limpo e atapetado, onde, para minha
grande alegria, vi o Linton deitado num pequeno sofá a ler um
dos meus livros. Contudo, durante uma hora inteira não falou
comigo nem olhou para mim, Ellen. Que mau feitio o dele! O que
me deixou ainda mais pasmada foi que, quando realmente abriu a
boca, foi para dizer que a :,culpada de todo aquele
burburinho era eu e que o Hareton estava inocente!
-- Incapaz de ripostar, a não ser pela violência,
levantei-me e saí do quarto. Quando ia a sair, ele lançou-me
um débil «_Catherine», pois não esperava que eu reagisse
daquela maneira. Mas eu não voltei para trás e o dia seguinte
foi o segundo dia em que lá não fui, sentindo-me quase tentada
a não o visitar nunca mais.
-- Mas era-me tão penoso deitar-me e levantar-me daí em
diante sem nunca mais ter notícias dele, que a minha decisão
ficou sem efeito, antes mesmo de ser tomada. Tinha-me parecido
errado fazer toda aquela caminhada, mas agora era impossível
retroceder. O Michael veio perguntar-me se era preciso selar a
Minny e eu disse-lhe que sim e, enquanto a Minny me levava
através dos montes, mais me convencia
de que não estava a fazer mais do que a minha
obrigação.
-- Como era obrigada a passar pelas janelas da frente para
ir até ao pátio, era inútil tentar ocultar a minha
presença.
-- «_O menino está na sala» disse a Zillah quando me viu
encaminhar-me para a saleta.
-- Entrei. O Earnshaw também lá estava, mas saiu logo. O
Linton estava sentado no cadeirão, meio adormecido.
Aproximei-me da lareira e comecei a falar, muito séria,
tentando fazer parecer que tudo o que eu dizia era
verdade.
-- «_Como não gostas de mim, Linton, e como pensas que
venho cá só para te magoar, e insistes que é para isso que cá
venho, este será o nosso último encontro. O melhor é dizermos
adeus um ao outro. E podes dizer a Mr. Heathcliff que não me
queres ver nunca mais e que não precisa de inventar mais
mentiras sobre este assunto.
-- «_Senta-te e tira o chapéu» respondeu ele. «_És muito
mais feliz do que eu, não deverias ser como eu. O meu pai já
fala até demais dos meus defeitos, já me despreza o suficiente
e, assim, é natural que eu próprio duvide de mim. Chego até a
duvidar se não serei tão inútil como ele diz e, depois, fico
tão irritado e tão azedo que detesto toda a gente! Não valho
nada; tenho quase sempre mau feitio e sou de má rés. Se
quiseres, podes ir-te embora e ver-te-ás livre de muitos
aborrecimentos. Mas faz-me justiça, Catherine: acredita que se
eu pudesse ser tão doce, tão simpático e tão bom como tu,
teria todo o gosto em sê-lo, mais ainda do que ser saudável e
feliz. E acredita que a tua amabilidade fez-me gostar de ti
ainda mais do :, que se merecesse o teu amor e, embora não
pudesse nem possa deixar de te mostrar como verdadeiramente
sou, tenho muita pena de ser assim; é algo de que me
arrependerei até morrer.
Senti que ele dizia a verdade e que devia perdoá-lo e que,
mesmo que ele voltasse a discutir no minuto seguinte, deveria
perdoá-lo novamente. Reconciliámo-nos e chorámos os dois
durante todo o tempo que lá estive. Não só de tristeza, mas
também porque tinha pena de que o Linton tivesse aquela
natureza tortuosa. Ele nunca deixará os seus amigos sossegados
e nem ele próprio terá alguma vez sossego!
-- Desde aquela noite, passámos a encontrar-nos sempre na
tal saleta, pois o pai dele regressou no dia seguinte. Só três
vezes, salvo erro, estivemos contentes e felizes desde o nosso
primeiro encontro; o resto das minhas visitas foram
fatigantes e conturbadas, ora devido ao seu egoísmo e ódio,
ora por causa dos seus sofrimentos. Mas uma coisa eu aprendi:
a suportar o seu feitio com quase com tão pouco ressentimento
como a sua doença.
-- Mr. Heathcliff evita-me propositadamente. Quase nunca o
vi. No último domingo, cheguei mais cedo e ouvi-o injuriar o
pobre do Linton de forma cruel, pela maneira como se tinha
portado na noite anterior. Não vejo como é que ele pode ter
sabido, a menos que tenha escutado atrás da porta. O Linton
tinha-se portado de forma irreverente; contudo, o problema era
só meu. Interrompi o sermão de Mr. Heathcliff quando entrei e
disse-lhe isso mesmo. Mr. Heathcliff soltou uma gargalhada e
retirou-se, dizendo que se alegrava por eu encarar o assunto
por esse prisma. A partir daí, disse ao Linton que deveria
proferir em voz baixa as suas palavras mais azedas.
-- Pronto, Ellen, agora já sabes tudo e não me podem
impedir de ir ao Alto dos Vendavais, a não ser que queiram
tornar duas pessoas infelizes e, se não contares nada ao
papá, as minhas visitas não perturbarão a tranquilidade de
ninguém. Não lhe vais contar, pois não? Serias muito má se o
fizesses.
-- Amanhã lhe darei a resposta, Miss Catherine -- disse eu.
-- Isto requer algum estudo pelo que a vou deixar repousar
enquanto reflicto sobre o que me pediu.
Reflecti de facto, mas em voz alta e na presença do meu
patrão, pois fui directamente do quarto dela para o dele e
contei-lhe toda a história, excepto as conversas de Miss
Catherine com o primo, e também não mencionei o
Hareton.
Mr. Linton ficou talvez mais alarmado e angustiado do que
:, deixou transparecer. Na manhã seguinte, Catherine soube
que eu a tinha traído e que as suas visitas secretas iam
acabar.
Chorou e debateu-se em vão contra a interdição e implorou
ao pai que tivesse piedade do Linton. Tudo o que conseguiu foi
a promessa de que Mr. Linton escreveria ao sobrinho
autorizando-o a vir à Granja sempre que desejasse e
explicando-lhe que não veria nunca mais Miss Catherine no Alto
dos Vendavais. Tivesse ele conhecimento do caracter e do
estado de saúde do sobrinho, e talvez tivesse achado
conveniente nem sequer conceder a Catherine essa pequena
consolação.
CAPíTULO XXV
-- Tudo isto aconteceu no Inverno passado, Mr. Lockwood --
disse Mrs. Dean -- há pouco menos de um ano. Nunca pensei
nessa altura que um ano depois estivesse a entreter uma
pessoa estranha à família com o relato de todos estes factos!
Porém, não se sabe por quanto tempo o senhor permanecerá um
estranho. O senhor é demasiado novo para ficar solteiro e eu
acho que é quase impossível ver Miss Catherine e não se
apaixonar por ela. O senhor ri-se, mas por que será que se
mostra sempre tão animado e interessado quando falo nela? E
por que me pediu que pendurasse o retrato dela por cima da sua
lareira? E por que...
-- Pare, minha boa amiga -- pedi. -- Pode ser que eu me
apaixone por ela, mas apaixonar-se-á ela por mim? Duvido
demais que isso aconteça, para arriscar a minha tranquilidade
caindo em tal tentação. Além disso, eu não sou daqui.
Pertenço ao mundo atribulado da cidade e para os braços dela
devo voltar. Mas continue. E Catherine, cumpriu os desejos do
pai?
-- Cumpriu, sim senhor -- continuou a governanta. -- O seu
amor pelo pai era ainda o sentimento mais forte que ela
albergava no coração. Mr. Linton falou-lhe com a ternura
própria de quem está prestes a abandonar o seu tesouro entre
perigos e inimigos, num mundo onde a memória das suas palavras
seria a única ajuda, o único guia que ele lhe podia legar.
Alguns dias mais tarde disse-me:
-- Quem me dera que o meu sobrinho escrevesse ou nos
visitasse, Ellen. Diz-me sinceramente o que achas dele; achas
que está mudado para melhor ou que ainda pode vir a melhorar à
medida que se faz homem?
-- Ele é muito débil respondi. -- E muito dificilmente
chegará à idade adulta, mas uma coisa lhe posso garantir: não
é nada parecido com o pai e, se Miss Catherine tiver a
infelicidade de casar com ele, conseguirá controlá-lo, a não
ser que se mostre extrema e ingenuamente indulgente. Contudo,
Mr. Linton, o senhor terá muito tempo para o conhecer e ver se
ele está ou não à altura da sua filha. Ainda lhe faltam mais
de quatro anos para atingir a maioridade.
Mr. Edgar suspirou e, aproximando-se da janela, olhou na
direcção da igreja de Gimmerton. Estava uma tarde de
nevoeiro, mas o sol de Fevereiro brilhava timidamente,
permitindo distinguir os dois abetos do cemitério e as poucas
e dispersas lápides.
-- Rezei bastante para que ela me viesse buscar depressa --
disse, como se falasse sozinho. -- E, agora, começo a
receá-la. Achava que a lembrança da hora em que desci aquela
encosta recém-casado me era menos tolerável do que a
antecipação de que, dentro de alguns meses ou, quem sabe,
talvez apenas semanas, seria levado lá para cima e sepultado
na encosta solitária! Ellen, tenho sido tão feliz com a minha
Cathy. Nas noites de Inverno e nos dias de Verso ela tem sido
sempre uma esperança viva ao meu lado; mas também fui feliz
quando, sozinho, meditava entre as lápides, por baixo da velha
igreja, nas longas noites de Junho, deitado no verde montículo
da sepultura da mãe, desejando e ansiando pelo momento em que
me juntaria a ela. Que posso fazer pela Cathy? Como hei-de
deixá-la? Não me importaria que o Linton fosse filho do
Heathcliff nem que ma roubasse, se ao menos a consolasse da
minha perda. Não me importaria que o Heathcliff alcançasse os
seus objectivos e conseguisse roubar-me o meu último tesouro.
Mas, se o Linton for um inútil, se for apenas um instrumento
nas mãos do pai, não posso consentir que fique com a minha
filha! E, embora me custe reprimir uma alegria tão espontânea,
devo resignar-me a entristecê-la enquanto for vivo e
abandoná-la quando morrer. Querida Cathy! Prefiro entregá-la
aos desígnios de Deus e enterrá-la antes de mim.
-- Deixe-a estar como está, entregue à divina Providência
-- respondi. -- E, se o senhor deixar... que Ele não o
permita... continuarei amiga e conselheira da menina até ao
fim. Miss Catherine é uma boa alma e não creio que enverede
pelo mau caminho de livre vontade. Todo aquele que cumpre a
sua missão é sempre recompensado.
Estávamos na Primavera e, contudo, o meu amo continuava :,
debilitado, embora tivesse retomado os seus passeios pelo
campo com a filha. Para ela, inexperiente como era, isto era
sinal de grandes melhoras, e, como Mr. Edgar tinha muitas
vezes a cara rosada e os olhos brilhantes, estava certa do seu
restabelecimento.
No dia do seu décimo sétimo aniversário, o pai não visitou
o cemitério. Estava a chover e eu disse-lhe:
-- Certamente o senhor hoje não vai sair.
-- Não, este ano vou adiar a visita um pouco mais
respondeu.
Voltou novamente a escrever ao Linton, expressando o desejo
ardente de o ver e, se o doente estivesse bom, não tenho
dúvidas de que o pai o teria deixado vir. Ele, porém, como
estava a ser orientado, respondeu à carta dizendo que o pai o
proibia de ir à Granja, mas que só o facto de o tio se ter
lembrado dele o tinha deixado encantado e que ainda tinha
esperança de o ver mais tarde ou mais cedo durante os seus
passeios, para lhe pedir pessoalmente que ele e a prima não
ficassem tanto tempo separados.
Aquela parte da carta era simples e, provavelmente, tinha
sido escrita por ele. Mr. Heathcliff sabia que o filho tinha
eloquência suficiente para solicitar a companhia de Miss
Catherine. E continuava:
«_Não peço que ela me venha visitar aqui, mas como poderei
vê-la se o meu pai me proíbe de ir a casa dela e o pai dela a
proíbe de vir à minha? Dê com ela um passeio a cavalo de vez
em quando nas imediações do Alto e deixe-nos trocar algumas
palavras na sua presença! Não fizemos nada de mal para
merecer esta separação. O tio não está zangado comigo e não
tem razões para não gostar de mim, como já o declarou. Querido
tio! Mande-me uma resposta positiva amanhã e deixe-nos
encontrar onde o tio quiser, menos na Granja dos Tordos. Creio
que uma conversa o convenceria de que não tenho o mesmo
caracter do meu pai. Ele costuma dizer que sou mais seu
sobrinho que filho dele e, embora tenha defeitos que me tornam
indigno da Catherine, ela aceitou-os e, para o bem dela, o tio
deveria aceitá-los também. Perguntou-me como tenho passado de
saúde: estou melhor, mas, enquanto viver sem esperança,
confinado à solidão ou ao convívio daqueles que nunca
gostaram nem nunca gostarão de mim, como poderei estar alegre
e restabelecido?«
Mr. Edgar, embora tivesse pena do rapaz, não pôde
satisfazer o seu desejo, pois nso estava em condições de
acompanhar a filha.
Mandou dizer que talvez no Verão se pudessem encontrar, e
que, entretanto, gostaria que o sobrinho continuasse a
escrever :, regularmente e prometeu dar-lhe por carta todos os
conselhos e todo o conforto de que fosse capaz, tendo em
consideração a difícil posição do sobrinho na família.
Linton concordou e, se não tivesse sido impedido, teria
possivelmente estragado tudo ao encher as cartas de queixas e
lamentos, mas o pai vigiava-o atentamente e, claro, exigiu que
cada linha que o meu patrão escrevesse lhe fosse mostrada.
Assim, em vez de descrever os seus sofrimentos e ansiedades,
temas que lhe ocupavam o pensamento, só falava da cruel
obrigação de estar separado da sua amiga e amada, sugerindo
delicadamente que Mr. Linton deveria em breve permitir um
encontro, caso contrário pensaria que o tio o estava a enganar
com vãs promessas.
Cathy era uma poderosa aliada e, entre os dois, conseguiram
finalmente persuadir o meu patrão a consentir que dessem um
passeio a cavalo ou a pé, um vez por semana, sob a minha
vigilância, nos terrenos circundantes da Granja. No mês de
Junho, Mr. Linton estava ainda mais fraco e, embora tivesse
posto de lado todos os anos uma certa percentagem do seu
rendimento para aumentar a fortuna da filha, tinha o desejo
compreensível de que ela pudesse conservar, ou pelo menos
recuperar brevemente, a casa dos seus antepassados.
Considerava que a única forma de o conseguir era casando-a com
o herdeiro: ignorava que este último se encontrava numa
situação quase igual à sua; acho, aliás, que toda a gente
ignorava isso. Nenhum médico ia ao Alto dos Vendavais e
ninguém visitava Master Heathcliff, para que se pudesse saber
como passava.
Eu, pela minha parte, comecei a imaginar que os meus
pressentimentos estavam errados e que ele devia estar mesmo
melhor, uma vez que mencionara passeios a cavalo ou a pé pelo
brejo, parecendo deveras decidido a perseguir os seus
objectivos.
Eu não era capaz de imaginar um pai a tratar uma criança
moribunda tão tirânica e maldosamente como mais tarde vim a
saber que Mr. Heathcliff fizera, aparentemente só para
satisfazer a sua ambição, redobrando os seus esforços de
intensidade à medida que os seus planos mesquinhos e
calculistas se viam ameaçados de derrota pela morte.