sexta-feira, 27 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 111 ao 117 (Últimos Capítulos)

Capítulo CXI

Expiação


            O Sr. de Villefort vira abrirem-se diante de si as fileiras da multidão, por mais compacta que esta fosse. As grandes dores são de tal respeitáveis que não há exemplo, mesmo nos tempos mais calamitosos, de a primeira reação de uma multidão não ter sido de simpatia perante uma grande catástrofe. Muitas pessoas odiadas têm sido assassinadas no meio de motins; raramente um desventurado, ainda que criminoso, foi insultado pelos homens que assistiam à sua condenação à morte.
            Villefort atravessou portanto as alas de espectadores, guardas e funcionários do palácio da Justiça, e retirou-se, reconhecido culpado por via da sua própria confissão, mas protegido pela sua dor. 
            Há  situações de que os homens têm instintivamente consciência, mas que não podem comentar com a inteligência; o maior poeta, neste caso, é aquele que solta o grito mais veemente e natural. A multidão toma esse grito como se fosse um relato completo, e tem razão em contentar-se com ele, e mais razão ainda em o achar sublime quando é verdadeiro.
            De resto, seria difícil dizer em que estado de alheamento se encontrava Villefort ao sair do palácio da Justiça, descrever a febre que lhe fazia pulsar cada artéria, lhe retesava cada fibra, lhe intumescia, a ponto de quase a rebentar, cada veia e lhe dissecava cada ponto do corpo mortal em milhões de sofrimentos.
            Villefort arrastou-se ao longo dos corredores guiado apenas pelo hábito. Arrancou dos ombros a toga magistral, não por ver conveniência em tirá-la, mas sim porque lhe pesava como um fardo esmagador, porque era uma túnica de Nesso, fértil em torturas.
            Chegou cambaleante ao pátio Dauphine, viu a sua carruagem, acordou o cocheiro ao abrir pessoalmente a portinhola, deixou-se cair nas almofadas e indicou com o dedo a direção do Arrabalde de Saint-Honoré. O cocheiro partiu.
            Todo o peso do seu êxito em ruínas acabava de lhe desabar em cima da cabeça; esse peso esmagava-o, e ignorava com que consequências. Não as calculara; sentia-as, mas não interpretava o seu código como o íário assassino que comenta um artigo conhecido.
            Tinha Deus no fundo do coração.
            - Deus! - murmurava sem saber sequer o que dizia. -  Deus! Deus!
            Só via Deus atrás da derrocada que acabava de se verificar. A carruagem rodava velozmente. Sacudido nas almofadas, Villefort sentiu qualquer coisa magoá-lo.
            Levou a mão ao objeto: era um leque esquecido pela Sra de Villefort entre o assento e o encosto da carruagem. O leque lembrou-lhe uma coisa, e essa lembrança foi como que um relâmpago no meio da noite.
            Villefort lembrou-se da mulher...
            - Oh! - gritou, como se um ferro em brasa lhe atravessasse o coração.
            Com efeito, havia uma hora que só tinha diante dos olhos um aspecto da sua miséria, mas eis que de repente se lhe apresentava outra ao espírito, e uma outra não menos terrível.
            Armara em juiz inexorável com a mulher e condenara-a à morte; e ela, cheia de terror, consumida pelos remorsos, mergulhada na infâmia que ele lhe fizera sentir com a eloquência da sua impecável virtude; ela, pobre mulher fraca e indefesa contra um poder absoluto e supremo, preparava-se talvez naquele momento para morrer!
            Decorrera uma hora desde a sua condenação. Sem dúvida, naquele momento a mulher repassava na memória todos os seus crimes, pedia perdão a Deus, escrevia uma carta a implorar de joelhos o perdão do seu virtuoso marido, perdão que comprava com a sua morte...
            Villefort soltou um novo grito de dor e de raiva.
            - Oh, aquela mulher só se tornou criminosa porque casou comigo! - exclamou, agitando-se no cetim da carruagem. - Resumo crime e ela apanhou o crime como se apanha o tifo, como se apanha a cólera, como se apanha a peste!... E eu castiguei-a!... Ousei dizer-lhe: “Arrependa-se e morre..." Eu! Oh, não, não! Ela viverá... me seguirá ... Vamos fugir, deixar a França, seguir em frente até  onde a Terra possa nos levar.
Falei-lhe de cadafalso!... Grande Deus, como ousei pronunciar tal palavra? Mas o cadafalso também me espera a mim!... Fugiremos... Sim, me confessarei a ela! Sim, lhe direi todos os dias, humilhando-me, que também cometi um crime... Oh, a aliança do tigre com a serpente! Oh, digna mulher de um marido como eu!... É necessário que ela viva, que a minha infâmia empalideça a sua!
            E Villefort partiu, em vez de descer o vidro da frente do cupe.
            - Depressa, mais depressa! - gritou numa voz que fez saltar o cocheiro no assento.
            Levados pelo medo, os cavalos voaram até  casa.
            - Sim, sim - repetia Villefort à medida que se aproximava de casa –, é necessário que essa mulher viva, que se arrependa, que crie o meu filho, o meu pobre filho, o único, juntamente com o indestrutível velho, que sobreviveu à destruição da família! Ela ama-o; foi por ele que fez tudo.  Nunca se deve desesperar do coração de uma mãe que ama o filho. Se arrependerá, ninguém saberá que é culpada. Os crimes cometidos em minha casa e de que a sociedade já murmura depressa serão esquecidos com o tempo. E se algum inimigo se lembrar deles... bom, o incluirei na minha lista de crimes. Um, dois ou três crimes mais que importa! A minha mulher se salvará e fugirá  com o ouro, e sobretudo com o filho, para longe do abismo em que me parece que o mundo vai cair comigo. Viverá e será ainda feliz, pois  todo o seu amor é para o filho e o filho não a deixará. Praticarei uma boa ação e isso conforta o coração.
            E o procurador régio respirou mais livremente do que respirava havia muito tempo.
            A carruagem parou no pátio do palácio.
            Villefort saltou do estribo para a escadaria; viu os criados surpreendidos por o verem regressar tão cedo. Não leu mais nada nas suas fisionomias. Ninguém lhe dirigiu a palavra; pararam apenas diante dele, como de costume, para o deixarem passar, e mais nada.
            Passou diante do quarto de Noirtier e distinguiu através da porta entreaberta como que duas sombras, mas não quis saber quem era a pessoa que estava com o pai; era para outro lado que as suas preocupações o puxavam.
            - Vamos - disse, subindo a escadinha que conduzia ao patamar onde ficavam os aposentos da mulher e o quarto vazio de Valentine. - Nada mudou aqui...
            Antes de mais nada fechou a porta do patamar.
            - Não quero que ninguém nos incomode - disse. - Quero falar à vontade, acusar-me diante dela, dizer-lhe tudo...
            Aproximou-se da porta e deitou a mão à maçaneta de cristal; a porta cedeu.
            - Não está fechada! Bem... muito bem - murmurou.
            E entrou na salinha onde à noite armavam uma cama para Edouard, pois, apesar de interno, Edouard vinha ficar em casa todas as noites, a mãe nunca quisera separar-se dele.
            Abarcou num relance de olhos toda a salinha.
            - Ninguém - disse. - está no quarto, sem dúvida...
            E correu para a porta. Mas ali o fecho estava corrido. Parou tremendo.
            - Heloise! - gritou.
            Pareceu-lhe ouvir arrastar um móvel. 
            - Heloise! - repetiu.
            - Quem é? - perguntou a voz da mulher.
            Pareceu-lhe que a voz era mais fraca do que de costume.
            - Abra! Abra! - gritou Villefort. - Sou eu!
            Mas, apesar desta ordem, apesar do tom angustioso com que era dada, não abriram.
            Villefort arrombou a porta com um pontapé.
            A Sra de Villefort estava de pé à entrada da sala que dava  para o seu boudoir, pálida, com as feições contraídas e com uma fixidez assustadora nos olhos.
            - Heloise! Heloise! - gritou o marido. - Que tem? Fale! A jovem senhora estendeu-lhe a mão hirta e lívida.
            - Está feito, senhor - disse num arquejo que pareceu dilacerar-lhe a garganta. - Que mais quer?
            E caiu no tapete.
            Villefort correu para ela e pegou-lhe na mão. A mão apertava convulsivamente um frasco de cristal com rolha de ouro. A Sra de Villefort estava morta.
            Ébrio de horror, Villefort recuou até  à entrada da sala e olhou o cadáver.
            - Meu filho! - gritou de súbito. - Onde está o meu filho? Edouard! Edouard!
            E precipitou-se para fora dos aposentos da mulher, gritando:
            - Edouard! Edouard!
            Pronunciava este nome com tal acento de angústia que os criados acorreram.
            - O meu filho! Onde está o meu filho? - perguntou Villefort. - Afastem-no de casa; que não veja...
            - O Sr. Edouard não está aqui em baixo, senhor - respondeu o criado de quarto.
            - Deve estar brincando no jardim Vão ver! Vão ver!
            - Não, senhor. A senhora chamou o filho há cerca de meia hora; o Sr. Edouard entrou nos aposentos da senhora e não voltou a descer.
            Um suor gelado inundou a testa de Villefort, que escorregou no pavimento, e as idéias começaram a girar-lhe na cabeça como as engrenagens desordenadas de um relógio partido.
            - Nos aposentos da senhora! - murmurou. - Nos aposentos da senhora!...
            E voltou lentamente para trás, limpando a testa com uma das mãos apoiando-se com a outra nas paredes. Quando entrou na sala teve de tornar a ver o corpo da pobre mulher.
            Para chamar Edouard teria de acordar os ecos daquela sala transformada em túmulo; falar era violar o silêncio da tumba. Villefort sentiu a língua paralisada na boca.
            - Edouard, Edouard... - balbuciou.
            O garoto não respondeu. Onde estaria o pequeno, que, no dizer dos criados, entrara nos aposentos da mãe e não saíra?
            Villefort deu um passo em frente.
            O cadáver da Sra de Villefort estava caído atravessado na porta do boudoir em que inevitavelmente se devia encontrar Edouard. Aquele cadaver parecia velar no limiar com os olhos fixos e abertos e uma horrível e misteriosa ironia nos lábios.
            Atrás do cadáver, o reposteiro levantado deixava ver parte do boudoir, um piano vertical e a ponta de um sofá de cetim azul. Villefort deu três ou quatro passos em frente e viu o filho deitado no canapé.
            O garoto dormia, sem dúvida. O desgraçado teve um ímpeto de alegria indizível: um raio de pura luz descia ao inferno em que se debatia.
            Era apenas necessário passar por cima do cadáver, entrar no boudoir, tomar o pequeno nos braços e fugir com ele para longe, para muito longe.
            Villefort já não era o homem que, devido a uma requintada corrupção, conserva o tipo de homem civilizado; era um tigre ferido de morte que ficou com os dentes quebrados no último ferimento.
            Já não tinha medo dos preconceitos, mas tinha-o dos fantasmas. Tomou impulso e saltou por cima do cadáver como se se tratasse de transpor um braseiro devorador.
            Tomou o filho nos braços, apertou-o, sacudiu-o, chamou-o; o pequeno não respondeu. Colou os lábios  vidos às faces de Edouard, mas elas estavam lívidas e geladas. Apalpou-lhe os membros hirtos. Pôs-lhe a mão no coração, mas este já não batia.
            O garoto estava morto.
            Um papel dobrado em quatro caiu do peito de Edouard. Fulminado, Villefort deixou-se cair de joelhos; o pequeno escapou-lhe dos braços inertes e rolou para o lado da mãe.
            Villefort apanhou o papel, reconheceu a letra da mulher e percorreu-o avidamente.
            Eis o que dizia:

            Como sabe, era boa mãe, pois foi pelo meu filho que me tornei criminosa. Uma boa mãe não parte sem o filho!

            Villefort não podia acreditar nos seus olhos; Villefort não podia acreditar na sua razão. Arrastou-se para o corpo de Edouard, que examinou mais uma vez com a atenção minuciosa com que a leoa olha o seu leãozinho morto. Depois escapou-lhe do peito um grito dilacerante.
            - Deus! - murmurou. - Sempre Deus!...
            Aquelas duas vítimas apavoravam-no e sentia apoderar de si o horror daquela solidão povoada por dois cadáveres.
            Pouco antes amparava-o a raiva, essa imensa faculdade dos homens fortes, e o desespero, essa virtude suprema da agonia, que impelia os Titãs a escalar o céu e Ajax a mostrar o punho aos deuses.
            Villefort curvou a cabeça sob o peso da dor, levantou-se, sacudiu os cabelos úmidos de suor e eriçados de terror, e ele, que nunca tivera piedade de ninguém, foi procurar o velho pai para ter, na sua fraqueza, alguém com quem desabafar a sua desgraça, alguém junto de quem chorar. Desceu a escada que conhecemos e entrou nos aposentos de Noirtier.
            Quando Villefort entrou, Noirtier parecia escutar com atenção e tão afetuosamente quanto lhe permitia a sua imobilidade o abade Busoni, sempre tão calmo e frio como de costume. 
            Ao ver o abade, Villefort levou a mão à testa. O passado acudiu-lhe à memória, como uma dessas vagas cujo furor levanta mais espuma do que as outras.
            Recordou-se da visita que fizera ao abade dois dias depois do jantar de Auteuil e da visita que lhe fizera o próprio abade no dia da morte de Valentine.
            - O senhor aqui? - observou. - Então só aparece para escoltar a morte?...
            Busoni levantou-se. Ao ver a alteração do rosto do magistrado, o brilho feroz dos seus olhos, compreendeu ou julgou compreender que a cena do tribunal se verificara; ignorava o resto.
            - Estive uma vez aqui para rezar perante o corpo da sua filha - respondeu Busoni.
            - E hoje, que veio fazer aqui?
            - Vim dizer-lhe que já me pagou suficientemente a sua dívida e que a partir deste momento vou rezar a Deus para que se dê por satisfeito, tal como eu me dou.
            - Meu Deus! - exclamou Villefort, recuando com o pânico nos olhos. - Essa voz... não é a do abade Busoni!
            - Não.
            O abade arrancou a sua falsa tonsura, sacudiu a cabeça, e os seus longos cabelos negros, deixando de estar comprimidos, caíram-lhe sobre os ombros e emolduraram-lhe o rosto másculo.
            - É o rosto do Sr. de Monte-Cristo! - gritou Villefort, com os olhos esgazeados.
            - Ainda não é essa, Sr. Procurador régio; procure melhor e mais longe.
            - Essa voz... essa voz!... Onde a ouvi pela primeira vez?
            - Ouviu-a pela primeira vez em Marselha, há vinte e três anos, no dia do seu casamento com Mademoiselle de Saint-Méran. Procure nos seus arquivos.
            - Não é Busoni... Não é Monte-Cristo... Meu Deus, é o inimigo oculto, implacável, mortal! Fiz qualquer coisa contra si em Marselha... Oh, como sou infeliz!
            - Sim, tem razão, é isso - perguntou o conde, cruzando os braços no peito amplo. - Procure, procure!
            - Mas que lhe fiz eu?! - gritou Villefort, cujo espírito pairava já no limite em que se confundem a razão e a demência, nessa neblina que já não é sonho, mas ainda não é despertar. - Que lhe fiz eu? Diga! Fale!
            - Condenou-me a uma morte lenta e medonha, matou o meu pai e roubou-me o amor com a liberdade e a fortuna com o amor!
            - Quem é o senhor? Quem é o senhor? Meu Deus!...
            - Sou o fantasma do desventurado que o senhor sepultou nas masmorras do castelo de If. Esse fantasma, que conseguiu sair por fim da sua tumba, recebeu de Deus a máscara do conde de Monte-Cristo, e por Deus foi coberto de diamantes e ouro para que o senhor só hoje o reconhecesse.
            - Ah, já te reconheço, já te reconheço! - exclamou o procurador régio. - O senhor é...
            - Edmond Dantés!
            - O senhor é Edmond Dantés! - gritou o procurador régio, agarrando o conde pelo pulso. - Então, vem!
            E arrastou-o pela escada, na qual Monte-Cristo o seguiu, atônito, ignorando aonde o procurador régio o levava e pressentindo alguma nova catástrofe. 
            - Vê! Vê, Edmond Dantés! - disse, mostrando ao conde o cadáver da mulher e o corpo do filho. - Vê! Acha que está bem vingado?
            Monte-Cristo empalideceu perante o horrível espetáulo.  Compreendeu que acabava de ultrapassar os direitos da vingança; compreendeu que já não podia dizer: “Deus é por mim e está comigo."
            Lançou-se com um sentimento de angústia inexprimível sobre o corpo do garoto, abriu-lhe os olhos, apalpou-lhe o pulso e correu com ele para o quarto de Valentine, que fechou à chave...
            - O meu filho! - gritou Villefort. - Leva o cadáver do meu filho! Oh, maldição, maldição, que a morte caia sobre ti!
            Quis correr atrás de Monte-Cristo; mas como num sonho, sentiu os pés criarem raízes, os olhos dilatarem-se-lhe a ponto de quase lhe saltarem das órbitas, e os seus dedos recurvados no peito cravaram-se gradualmente na carne até  o sangue lhe avermelhar as unhas. Por fim, as veias das têmporas encheram-se de espíritos irrequietos, que lhe levantaram a abóbada muito estreita do crânio e lhe mergulharam o cérebro
num dilúvio de fogo.
            Aquela imobilidade durou vários minutos, até  se concluir a horrível subversão da razão.
            Então, soltou um grande grito, seguido de uma longa gargalhada, e precipitou-se para a escada.
            Um quarto de hora depois o quarto de Valentine voltou a abrir-se e o conde de Monte-Cristo reapareceu. Pálido, com os olhos tristes e o peito opresso, todas as feições daquele rosto habitualmente tão calmo e tão nobre estavam transtornadas pela dor. Trazia nos braços o garoto, ao qual nenhum socorro pudera restituir a vida.
            Pôs um joelho no chão e depositou-o religiosamente ao pé da mãe, com a cabeça pousada no peito dela. Depois levantou-se, saiu e perguntou a um criado que encontrou na escada:
            - Onde está o Sr. de Villefort?
            Sem responder, o criado apontou para o lado do jardim. Monte-Cristo desceu a escadaria, encaminhou-se para o lugar indicado e viu, no meio dos criados que formavam círculo à volta dele, Villefort, de enxada na mão a revolver a terra com uma espécie de raiva.
            - Ainda não é aqui - dizia. - Ainda não é aqui...
            E cavava mais longe. Monte-Cristo aproximou-se dele e disse-lhe baixinho, em tom quase humilde:
            - Perdeu um filho, mas...
            Villefort interrompeu-o; não ouvira nem compreendera.
            - Oh, hei-de encontrá-lo! - gritou. - Não está  aqui, pois hei-de encontrá-lo nem que tenha de procurá-lo
até ao dia do Juízo Final.
            Monte-Cristo recuou aterrado.
            - Enlouqueceu! - exclamou.
            E como se receasse que as paredes da casa maldita se abatessem sobre si, correu para a rua, duvidando pela primeira vez que tivesse o direito de fazer o que fizera.
            - Oh, basta, basta! - gritou. - Salvemos o último. 
            Ao chegar a casa, Monte-Cristo encontrou Morrel, que vagueava pelo palácio dos Campos Elísios, silencioso como um fantasma que esperasse o momento fixado por Deus para regressar ao seu túmulo.
            - Prepare-se, Maximilien - disse-lhe com um sorriso. -  Saímos de Paris amanhã.
            - Já não tem mais nada a fazer aqui? - perguntou Morrel.
            - Não - respondeu Monte-Cristo –, e Deus queira que não tenha feito demais.



Capítulo CXII

A partida


            Os acontecimentos que acabavam de se verificar preocupavam todas as pessoas em Paris. Emmanuel e a mulher contavam-nos, com uma surpresa muito natural, na sua salinha da Rua Meslay, e
relacionavam umas com as outras as três catástrofes, tão súbitas como inesperadas, de Morcerf; Danglars e Villefort.
            Maximilien, que os viera visitar, escutava-os, ou antes assistia à conversa mergulhado na sua insensibilidade habitual.
            - Na verdade - dizia Julie –, não parece, Emmanuel, que todos esses ricaços, ontem tão felizes, esqueceram, no cálculo em que basearam a sua fortuna, a sua felicidade e a sua consideração, a parte do gênio mau, e que este, como as fadas más dos contos de Perrault, que se esqueceram de convidar para
um casamento ou um batismo, apareceu de repente para se vingar desse fatal esquecimento?
            - Que desastres! - dizia Emmanuel, pensando em Morcerf e Danglars.
            - Que sofrimentos! - dizia Julie, recordando-se de Valentine, que, no seu instinto feminino, não queria citar diante do irmão.
            - Se foi Deus quem os feriu - acrescentava Emmanuel -, foi porque Deus, que é a suprema bondade, não encontrou nada no passado dessa gente que merecesse atenuação da pena. Foi porque essa gente era maldita.
            - Não estará sendo muito temerário no teu julgamento, Emmanuel? - perguntou Julie. - Quando o meu pai, de pistola em punho, estava prestes a estourar os miolos, se alguém tivesse dito como você dize agora: “Este homem mereceu a sua pena", esse alguém não estaria enganado?
            - Sem dúvida, mas Deus não permitiu que o nosso pai sucumbisse, tal como não permitiu que Abraão sacrificasse o filho. Ao patriarca, como a nós, enviou um anjo que cortou a meio do caminho as asas da morte.
            Ainda mal acabara de pronunciar estas palavras tocou a sineta. Era o sinal dado pelo porteiro para anunciar a chegada de uma visita. Quase no mesmo instante a porta da sala abriu-se e o conde de
Monte-Cristo apareceu no limiar. Os dois jovens soltaram um grito de alegria.
            Maximilien levantou a cabeça e voltou a baixá-la. 
            - Maximilien - disse o conde, sem parecer notar as diferentes impressões que a sua presença produzia -, venho buscá-lo.
            - Buscar-me? - repetiu Morrel, como se saísse de um sonho.
            - Sim - respondeu Monte-Cristo. - Não estava combinado que o levaria comigo e não o preveni que estivesse pronto?
            - Pois aqui estou - respondeu Maximilien. - Vim apenas despedir-me.
            - E aonde vai, Sr. Conde? - perguntou Julie.
            - Primeiro, a Marselha, minha senhora.
            - A Marselha? - repetiram em coro os dois jovens.
            - Sim, e levo o seu irmão.
            - Veja se o restitui curado, Sr. Conde... - pediu Julie. Morrel virou-se para ocultar o seu rubor.
            - Notou então que ele não estava bem? - inquiriu o Conde.
            - Notei - respondeu a jovem senhora –, e receio que ele se aborreça conosco.
            - Eu o distrairei - prometeu o conde.
            - Estou pronto, senhor - disse Maximilien. - Adeus, meus bons amigos! Adeus Emmanuel! Adeus, Julie!
            - Como adeus?! - exclamou Julie. - Parte assim de repente, sem ter nada preparado, sem passaporte?
            - Os adiamentos duplicam o desgosto das separações - observou Monte-Cristo –, e Maximilien, estou certo disso, deve ter tomado todas as providências, como lhe recomendei.
            - Tenho o meu passaporte e as minhas malas estão feitas - informou Morrel com a mesma tranquilidade alheada.
            - Ótimo! - exclamou Monte-Cristo, sorrindo. - Nem outra coisa era de esperar de um bom soldado.
            - E o senhor deixa-nos assim, de um momento para o outro? - perguntou Julie. - Não nos concede um dia, nem uma hora?
            - A minha carruagem está à porta, minha senhora. Preciso estar em Roma dentro de cinco dias.
            - Mas Maximilien não vai a Roma? - perguntou Emmanuel.
            - Vou aonde o conde quiser ME levar - respondeu Morrel, com um sorriso triste. - Pertenço-lhe ainda por um mês.
            - Oh, meu Deus, como ele diz aquilo, Sr. Conde!
            - Maximilien acompanha-me; portanto, esteja tranquila a respeito do seu irmão - respondeu o conde com a sua persuasiva afabilidade.
            - Adeus, minha irmã! - repetiu Morrel. - Adeus, Emmanuel!
            - Aflige-me o seu alheamento - confessou Julie. - Oh, Maximilien, Maximilien, esconde-nos qualquer coisa!           
            - Então, então!... - interveio Monte-Cristo. Prometo-lhes que o verão regressar alegre, risonho e feliz.
            Maximilien deitou a Monte-Cristo um olhar quase desdenhoso, quase irritado.
            - Partamos! - disse o conde.
            - Antes de partir, Sr. Conde - atalhou Julie –, permita-me que lhe diga tudo o que no outro dia... 
            - Minha senhora - interrompeu-a o conde, pegando-lhe nas mãos -, tudo o que me dissesse nunca valeria o que leio nos seus olhos, nem o que o seu coração sente, nem o que o meu experimenta. Como os benfeitores de romance, devia ter partido sem a tornar a ver; mas tal virtude era superior às minhas forças, pois sou um homem fraco e vaidoso e o olhar úmido, feliz e terno dos meus semelhantes me faz bem. Agora parto e levo o egoísmo ao ponto de lhes dizer: não me esqueçam, meus amigos, porque provavelmente não  tornarão a me ver.
            - Não o tornaremos a ver?! - exclamou Emmanuel, enquanto duas grossas lágrimas rolavam pelas faces de Julie. - Não o tornaremos a ver! Mas nesse caso não é um homem, é um deus que nos deixa, e esse deus vai subir ao céu depois de aparecer na Terra para nela praticar o bem!
            - Não diga isso - pediu vivamente Monte-Cristo. - Nunca digam isso, meus amigos Os deuses nunca fazem mal, os deuses param onde querem parar. O acaso não é mais forte do que eles, são eles que, pelo contrário, governam o acaso. Não, eu sou um homem, Emmanuel, e a sua admiração é tão injusta quanto as
suas palavras são sacrílegas.
            E beijando a mão de Julie, que se lhe precipitou nos braços, estendeu a outra mão a Emmanuel. Depois, arrancando-se daquela casa, doce ninho que albergava a felicidade, fez sinal a Maximilien para o seguir; um Maximilien passivo, insensível e consternado, como ficara depois da morte de Valentine.
            - Restitua a alegria ao meu irmão! - disse Julie ao ouvido de Monte-Cristo.
            Monte-Cristo apertou-lhe a mão como a apertara onze anos antes na escada que conduzia ao gabinete de Morrel.
            - Continua a confiar em Simbad, o Marinheiro? - perguntou-lhe sorrindo.
            - Oh, sim!
            - Então durma na paz e na confiança do Senhor.
            Como dissemos, a sege de posta esperava-os. Quatro cavalos vigorosos agitavam as crinas e batiam na calçada com impaciência. Ali esperava ao fundo da escadaria, com o rosto brilhante de suor. Parecia chegar de uma longa corrida.
            - Então, foi a casa do velho? - perguntou-lhe o conde em árabe.
            Ali fez sinal que sim.
            - E desdobrou a carta diante dos olhos, como te ordenei?
            - Sim - respondeu também, respeitosamente, o escravo.
            - E que disse ele, ou antes: que fez?
            Ali colocou-se debaixo da luz, de forma que o amo o pudesse ver, e, imitando com a sua inteligência tão dedicada a fisionomia do velho, fechou os olhos como fazia Noirtier quando queria dizer “sim".
            - Bem, aceita - disse Monte-Cristo. - Partamos!
            Ainda mal proferira esta palavra e já a carruagem rodava e os cavalos arrancavam da calçada uma chuva de faúlhas.  Maximilien acomodou-se no seu canto sem dizer palavra.
            Passou meia hora. A caleça deteve-se de súbito; o conde acabava de puxar o cordão de seda que correspondia ao dedo de Ali. O núbio desceu e abriu a portinhola.
            A noite cintilava de estrelas. Estavam no cimo da encosta de Villejuif, no planalto donde se vê Paris, como um mar sombrio, agitar os seus milhões de  luzes, que parecem ondas fosforescentes. Ondas, efetivamente, ondas mais ruidosas, mais apaixonadas, mais volúveis, mais furiosas e mais  vidas do que as do oceano irritado; ondas que não conhecem a calma, como as do vasto mar, ondas que se entrechocam constantemente, sempre espumando, sempre engolindo!...
            O conde ficou só, e a um sinal de mão seu a carruagem avançou um pouco.
            Então observou durante muito tempo, com os braços cruzados, aquele cadinho onde se fundiam, torciam e modelavam todas as idéias que brotam do abismo fervilhante para irem agitar o mundo. Depois de observar bem com o seu olhar poderoso aquela Babilônia que tanto fazia sonhar os poetas religiosos como os sarcásticos materialistas, murmurou, inclinando a cabeça e juntando as mãos, como se fosse rezar:
            - Grande cidade. há menos de seis meses que transpus as suas portas. Creio que foi o espírito de Deus que me trouxe até aqui e que me permite retirar triunfante. Confiei a esse Deus, o único capaz de ler no meu coração, o segredo da minha presença dentro das tuas muralhas; só ele sabe que me retiro sem ódio e
sem orgulho, mas não sem pesar; só ele sabe que não utilizei em meu proveito nem em benefício de causas vãs o poder que me confiou. Ó grande cidade, foi no teu seio palpitante que encontrei o que procurava! Mineiro paciente, revolvi-te as entranhas para fazer sair o mal. Agora, a minha obra está concluída e a minha missão terminada; agora já me não pode oferecer nem alegrias nem dores.  Adeus, Paris! Adeus!
            O seu olhar passeou ainda sobre a vasta planície, como o de um gênio noturno. Em seguida passou a mão pela testa, voltou a subir para a carruagem, que se fechou atrás dele e desapareceu em breve do outro lado da encosta num turbilhão de pó e ruído.
            Percorreram duas léguas sem pronunciar uma só palavra. Morrel sonhava, Monte-Cristo via-o sonhar.
            - Morrel, está arrependido de ter me seguido?
            - Não, Sr. Conde. Mas deixar Paris...           
            - Se soubesse que a felicidade o esperava em Paris, Morrel, o teria deixado lá.
            - É em Paris que Valentine repousa, e deixar Paris é perdê-la segunda vez.
            - Maximilien - disse o conde –, os amigos que perdemos não repousam na Terra, estão sepultados no nosso coração, e foi Deus que assim o quis para que estivessemos sempre acompanhados. Eu tenho dois amigos que me acompanham sempre assim um é aquele que me deu a vida, o outro o que me deu a
inteligência. O espírito de ambos vive em mim. Consulto-os quando tenho dúvidas, e se tenho feito algum bem é aos seus conselhos que o devo. Consulte a voz do seu coração, Morrel, e pergunte-lhe se deve continuar a mostrar-me tão má cara.
            - Meu amigo - respondeu Maximilien –, a voz do meu coração é muito triste e só me promete desventuras.
            - É próprio dos espíritos enfraquecidos ver todas as coisas através de um crepe. É a alma que abre a si própria os seus horizontes; como a sua alma está sombria, é ela que lhe mostra um céu tempestuoso.
            - É provável que isso seja verdade - admitiu Maximilien. E voltou a cair no seu devaneio.
            A viagem decorreu com a maravilhosa rapidez que era um dos poderes do  conde. As cidades passavam como sombras ao longo da estrada; as árvores, sacudidas pelos primeiros ventos do Outono, pareciam vir ao encontro deles como gigantes desgrenhados, e desapareciam rapidamente assim que as
alcançavam. No dia seguinte de manhã chegaram a Chalon, onde os esperava o barco a vapor do conde. Sem perda de um instante, a carruagem foi transportada para bordo; os dois viajantes já tinham embarcado.
            O barco, talhado para corrida, diria-se uma piroga índia. As suas duas rodas pareciam duas asas com as quais rasava a  água como uma ave de arribação. O próprio Morrel experimentava essa espécie de embriaguez da velocidade, e às vezes o vento que lhe agitava os cabelos parecia prestes a afastar por um
momento as nuvens que lhe cobriam a testa. Quanto ao conde, à medida que se afastava de Paris parecia
envolvê-lo como que uma auréola uma serenidade quase sobre-humana. Diria-se um exilado que regressasse à pátria.
            Em breve Marselha, branca, tépida, viva; Marselha, a irmã mais nova de Tiro e Cartago, às quais sucedeu no domínio do Mediterrâneo, Marselha, sempre mais nova à medida que envelhece, em breve lhes surgiu diante dos olhos. Não faltavam para ambos aspectos férteis em recordações, como a Torre
Redonda, o Forte de S. Nicolau, a Câmara Municipal de Puget e o porto de cais de tijolo onde um e outro tinham brincado na infância.
            Por isso, de comum acordo, detiveram-se na Cannebiére.
            Partia um navio para Argel. Os tardos e os passageiros empilhados na coberta, a chusma dos parentes e dos amigos que se despediam, gritavam e choravam, espetáculo sempre comovente mesmo para aqueles que assistem todos os dias a esse espetá culo, todo aquele movimento não conseguiu distrair
Maximilien de uma idéia que o assaltara no momento em que pusera pé nas grandes lajes do cais.
            - Veja - disse, pegando no braço de Monte-Cristo foi aqui que meu pai parou quando o Pharaon entrou no porto; foi aqui que o excelente homem que o senhor salvara da morte e da desonra se lançou nos meus braços. Sinto ainda a impressão das suas lágrimas na minho rosto, e ele não chorava sozinho, muita gente
também chorava ao ver-nos.
            Monte-Cristo sorriu.
            - Eu estava ali - disse, mostrando a Morrel a esquina de uma rua.
            Quando dizia isto, ouviu-se na direção indicada pelo conde um gemido doloroso e viu-se uma mulher fazer sinal a um passageiro do navio prestes a partir. A mulher estava velada. Monte-Cristo seguiu-a com a vista com uma emoção que Morrel teria facilmente notado se, ao contrário do conde, não tivesse os olhos fixos no navio.
            - Oh, meu Deus, não estou enganado! - exclamou Morrel. - Aquele rapaz que acena com o chapéu... aquele rapaz fardado é Albert de Morcerf!
            - Pois é - respondeu Monte-Cristo. - já o tinha reconhecido.
            - Como assim? O senhor estava olhando para o lado oposto!
            O conde sorriu como fazia quando não queria responder.
            E os seus olhos voltaram à mulher velada, que desapareceu à esquina da rua.
            Só então ele se virou e disse a Maximilien:
            - Meu caro amigo, não tem nada que fazer nesta terra? 
            - Tenho de ir chorar sobre a sepultura do meu pai - respondeu surdamente Morrel.
            - Então vá e espere-me no cemitério. Irei lá ter consigo.
            - Deixa-me?
            - Deixo... Também tenho uma piedosa visita a fazer.
            Morrel deixou cair a mão na que lhe estendia o conde; depois, com um aceno de cabeça cuja melancolia seria impossível exprimir, deixou o conde e dirigiu-se para o leste da cidade.
            Monte-Cristo deixou Maximilien afastar-se e permaneceu no mesmo lugar até  ele desaparecer. Depois dirigiu-se para as Alamedas de Meilhan, em busca da casa que nos começos desta história se tornou familiar aos nossos leitores.
            A casa erguia-se ainda à sombra da grande alameda de tílias que servia de passeio aos malsemeses ociosos, coberta de grandes maciços de vinha que cruzavam sobre a pedra amarelecida pelo sol ardente do Meio-Dia os seus ramos enegrecidos e retalhados pela idade. Dois degraus de pedra, gastos pelos pés, conduziam à porta de entrada, porta feita de três pranchas que nunca, apesar das suas reparações anuais,
tinham conhecido o betume e a pintura e esperavam que a umidade voltasse para as unir.
            Aquela casa, encantadora a despeito da sua vetustez, e alegre a despeito da sua aparente miséria, era a mesma em que habitara outrora o pai de Dantés. Simplesmente, o velho habitava a mansarda e o conde pusera toda a casa à disposição de Mercedes.
            Foi lá que entrou a mulher do longo véu que Monte-Cristo vira afastar-se do navio que ia partir. A mulher fechava a porta no preciso momento em que ele aparecia à esquina de uma rua, de forma que o conde a viu desaparecer quase no mesmo instante em que a avistou.
            Para ele, os degraus gastos eram velhos conhecidos; sabia melhor do que ninguém abrir a velha porta, de que um prego de cabeça larga levantava o loquete interior.
            Por isso entrou sem bater nem prevenir, como um amigo, como um hóspede.
            Ao fundo de um carreiro pavimentado a tijolo abria-se, rico de calor, de sol e de luz, um jardinzinho, o mesmo onde no sítio indicado Mercedes encontrara a importância cujo depósito a delicadeza do conde conservara durante vinte e quatro anos. Do limiar da porta da rua viam-se as primeiras árvores do jardim.
            Chegado à entrada, Monte-Cristo ouviu um suspiro que parecia um soluço. Esse suspiro guiou-lhe o olhar e permitiu-lhe descobrir Mercedes, sentada, inclinada e chorando, debaixo de um caramanchão de jasmim-da-virgínia, de folhagem espessa e grandes flores cor de púrpura.
            Levantara o véu e, sozinha perante o céu, com o rosto oculto nas mãos, dava livre curso aos suspiros e aos soluços tanto tempo reprimidos pela presença do filho.
            Monte-Cristo deu alguns passos em frente; a areia rangeu-lhe debaixo dos pés.
            Mercedes levantou a cabeça e soltou um grito de terror ao ver um homem diante de si.
            - Minha senhora - disse o conde –, já não está na minha mão dar-lhe a felicidade, mas ofereço-lhe a consolação. Quer dignar-se aceitá-la como vinda de um amigo? 
            - Sou, de fato, muito infeliz - respondeu Mercedes. - Estou sozinha no mundo... Só tinha o meu filho e ele deixou-me.
            - E fez bem, minha senhora - replicou o conde. - É um nobre coração. Compreendeu que todo o homem deve um tributo à pátria: uns os seus talentos, outros a sua indústria, estes as suas vigílias, aqueles o seu sangue. Se ficasse com a senhora, desperdiçaria a seu lado uma existência inútil e se habituaria a vê-la sofrer. Se tornaria rancoroso na sua impotência. Assim, se tornará  grande e forte lutando contra a sua adversidade, que transformará em fortuna. Deixe-o reconstruir o futuro de ambos, minha senhora. Ouso
garantir-lhe que está em mãos seguras.
            - Oh - disse a pobre mulher, abanando tristemente a cabeça -, a fortuna a que se refere, e que do fundo da minha alma peço a Deus que lhe conceda, não a gozarei! Quebraram-se tantas coisas em mim e à minha volta que me sinto perto da sepultura. Fez bem, Sr. Conde, em aproximar-me do lugar onde fui tão feliz: é onde fomos felizes que devemos morrer.
            - Infelizmente, todas as suas palavras, minha senhora, caem amargas e escaldantes no meu coração, tanto mais amargas e escaldantes quanto é certo ter motivos para me odiar. Fui eu que causei todas as suas desventuras. Porque me lamenta em vez de me acusar? Me tornaria muito mais infeliz...
            - Odiá-lo, acusá-lo, a você, Edmond?... Odiar, acusar o homem que salvou a vida do meu filho, porque era sua intenção fatal e cruel, não é verdade, matar ao Sr. de Morcerf o filho de que tanto se orgulhava? Oh, olhe para mim e veja se existe em mim a sombra de uma censura!
            O conde levantou os olhos e pousou-os em Mercedes, que, semilevantada, estendia as mãos para ele.
            - Sim, olhe para mim - continuou ela com profunda melancolia. - Hoje pode suportar o brilho dos meus olhos; já lá vai o tempo em que vinha sorrir a Edmond Dantés, que me esperava lá em cima, à janela da mansarda que habitava com o seu velho pai... Desde então, muitos dias dolorosos passaram que cavaram
como que um abismo entre mim e esse tempo. Acusá-lo, Edmond; odiá-lo, meu amigo! Não, é a mim que acuso e odeio! Oh, como fui miserável! -  exclamou, juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu. - Fui punida... Possuía a religião, a inocência e o amor, essas três felicidades que fazem os anjos, e, miserável como sou, duvidei de Deus!
            Monte-Cristo deu um passo para ela e estendeu-lhe silenciosamente a mão.
            - Não - disse ela, retirando suavemente a sua –, não, meu amigo, não me toque. Poupou-me, e no entanto, de todos aqueles que o feriram, eu era a mais culpada. Todos os outros agiram por ódio, por cupidez, por egoísmo; eu agi por covardia. Eles desejavam, eu tive medo. Não, não me aperte a mão. Edmond, pensa em qualquer palavra afetuosa, adivinho-o; não a diga...Guarde-a para outra, pois já não sou digna de a ouvir. Veja... - disse, descobrindo por completo o rosto - veja, a desgraça encheu-me de cabelos grisalhos, os meus olhos verteram tantas lágrimas que estão cercados de veias roxas, e a testa cobriu-se de rugas. O senhor, pelo contrário, Edmond, continua jovem, sempre belo, sempre orgulhoso. Porque teve fé,
porque teve coragem, porque confiou em Deus e Deus amparou-o. Eu fui covarde, reneguei, Deus abandonou-me e veja o...
             Mercedes desatou a chorar; o coração da mulher não resistia ao choque das recordações.
            Monte-Cristo pegou-lhe na mão e beijou-a respeitosamente; mas ela própria sentiu que aquele beijo carecia de ardor, era como o que o conde depositaria na mão de mármore da estátua de uma santa.
            - Existem vidas predestinadas cuja primeira falta destrói todo o futuro - continuou ela. - Julgava-o morto e por isso eu devia ter morrido. Porque, que adiantou ter trazido eternamente o seu luto no coração? Apenas transformar uma mulher de trinta e nove anos numa mulher de cinquenta, mais nada. Que adiantou que, tendo sido a única pessoa a reconhecê-lo, me tenha limitado a salvar o meu filho? Não deveria salvar também o homem, por mais culpado que fosse, que aceitara como marido? No entanto, deixei-o morrer. Que digo,
meu Deus? Contribui para a sua morte com a minha covarde insensibilidade, com o meu desprezo, não me lembrando, não querendo lembrar-me, de que fora por mim que se tomara perjuro e traidor! Que adiantou, finalmente, que tivesse acompanhado o meu filho até  aqui, se aqui o abandonei, se aqui o deixei partir sozinho, se aqui o entreguei à terra devoradora da África? Oh, tenho sido covarde, garanto-lhe! Reneguei o meu amor e, como os renegados, trago a desgraça a tudo o que me rodeia!
            - Não, Mercedes - disse Monte-Cristo –, não. Não persista nessa má opinião de si mesma. Não, a senhora é uma nobre e santa mulher, que me desarmara com a sua dor. Mas atrás de mim, invisível, desconhecido, irritado, havia Deus, do qual eu era apenas o mandatário, e que não quis deter o raio que eu
lançara. Oh, esse Deus aos pés do qual me prosterno todos os dias há dez anos sabe que lhe sacrificaria a vida, Mercedes, e com a vida os projetos que lhe estavam relacionados. Mas, digo-o com orgulho, Mercedes, Deus necessitava de mim e eu vivi. Examine o passado, examine o presente, procure adivinhar o futuro, e veja se não sou um instrumento do Senhor. A primeira parte da minha vida foi constituída pelas mais horríveis desventuras, pelos mais cruéis sofrimentos, pelo abandono de todos aqueles que me amavam, pela perseguição daqueles que me não conheciam. Depois, de repente, após o cativeiro, o isolamento e a miséria, o ar, a liberdade e uma fortuna tão deslumbrante, tão prodigiosa, tão desmedida que, a menos que fosse cego, teria de admitir que Deus ma enviava com grandes desígnios. Desde então, essa fortuna pareceu-me ser um sacerdócio; desde então, nem mais um pensamento dedicado a essa vida de que a senhora, pobre mulher, saboreou algumas vezes a doçura; nem uma hora de calma, nem uma. Senti-me impelido como a nuvem de fogo que passa no céu para ir queimar as cidades malditas. Como esses
capitães aventureiros que embarcam para uma viagem perigosa, que planejam uma expedição arriscada, preparei os víveres, carreguei as armas, amontoei os meios de ataque e defesa habituando o meu corpo aos exercícios mais violentos, a minha alma aos choques mais rudes, e ensinando o meu braço a matar,
os meus olhos a ver sofrer e a minha boca a sorrir aos aspectos mais terríveis. De bom, de confiante, de generoso que era, tornei-me vingativo, dissimulado, mau; ou antes impassível como a surda e cega fatalidade. Então lancei-me no caminho que abrira, transpus o espaço, consegui os meus fins. Ai daqueles que cruzassem no meu caminho!
            - Basta! - exclamou Mercedes. - Basta, Edmond! Acredite, aquela que foi a única capaz de o reconhecer foi também a única capaz de o compreender.  Ora, Edmond, aquela que soube reconhecê-lo, aquela que foi capaz de o compreender, se a tivesse encontrado no seu caminho e a tivesse quebrado como
vidro, nem por isso deixaria de o admirar, Edmond! Assim como existe um abismo entre mim e o passado, também existe um abismo entre o senhor e os outros homens, e a minha mais dolorosa tortura, confesso-lhe, é estabelecer comparações. Porque não há nada no mundo que se lhe compare, nada que se pareça consigo. E agora, Edmond, diga-me adeus e separemo-nos.
            - Antes de deixá-la, que deseja, Mercedes? - perguntou Monte-Cristo.
            - Só desejo uma coisa, Edmond: que o meu filho seja feliz.
            - Suplique-o ao Senhor, o único que tem a vida dos homens na mão, que afaste a morte dele. Do resto eu me encarrego.
            - Obrigada, Edmond.
            - Mas a senhora, Mercedes?
            - Eu não preciso de nada, vivo entre duas sepulturas: uma, a de Edmond Dantés, que morreu há muito tempo; amava-o! Esta palavra já não assoma aos meus lábios murchos, mas o meu coração ainda se recorda dela e por nada deste mundo desejaria perder essa lembrança do coração. A outra é a de um homem que
Edmond Dantés matou; aprovo a morte, mas devo rezar pelo morto.
            - O seu filho será feliz, minha senhora - repetiu o conde.
            - Então, serei também feliz quanto o possa ser.
            - Mas... enfim .. que fará?
            Mercedes sorriu tristemente
            - Se lhe dissesse que viveria nesta terra como a Mercedes de outrora, isto é, trabalhando, o senhor não acreditaria. Já só sei rezar, mas não tenho necessidade de trabalhar; o pequeno tesouro que o senhor enterrou encontrava-se no lugar indicado. As pessoas quererão saber quem sou, perguntarão o que faço,
ignorarão como vivo. Que importa! Trata-se de assunto entre Deus, o senhor e eu.
            - Mercedes - disse o conde –, não a censuro, mas exagerou o sacrifício renunciando a toda a fortuna acumulada pelo Sr. de Morcerf e metade da qual pertencia por direito à sua economia e à sua orientação?
            - Adivinho o que me vai propor, mas não posso aceitar. Edmond, o meu filho me proibiria.
            - Sendo assim, tomarei o cuidado de nada fazer pela senhora que não tenha a aprovação do Sr. Albert de Morcerf. Averiguarei as suas intenções e me submeterei a elas. Mas se aceitar o que pretendo fazer, o imitárá sem repugnância?
            - Bem sabe, Edmond, que já não sou uma criatura pensante; de determinação só tenho a de nunca mais cair em outra. Deus sacudiu-me de tal modo nas suas tempestades que perdi a vontade disso. Estou nas suas mãos como um pardal nas garras da águia. Ele não quer que morra, uma vez que vivo. Se me
enviar ajuda, será de sua vontade e a aceitarei.
            - Cautela, senhora, não é assim que se adora Deus! - observou Monte-Cristo. - Deus quer que compreendamos e discutamos o seu poder: foi para isso que nos deu o livre arbítrio.
            - Não me diga isso, desgraçado! - exclamou Mercedes. - Se acreditasse que Deus me dera o livre arbítrio, que me restaria para me salvar do desespero?
            Monte-Cristo empalideceu ligeiramente e baixou a cabeça, esmagado pela veemência daquela dor.
            - Não quer dizer-me até  à vista? - perguntou, estendendo-lhe a mão. 
            - Quero - respondeu Mercedes, mas apontando para o céu solenemente. - Como vê, ainda tenho esperança...
            E depois de tocar na mão do conde com mão trêmula, Mercedes correu para a escada e desapareceu.
            Monte-Cristo saiu então lentamente da casa e tomou o caminho do porto.
            Mas Mercedes não o viu afastar-se, embora estivesse à janela do quartinho do pai de Dantés. Os seus olhos procuravam ao longe o navio que levava o filho para o mar alto. Verdade sei a que a sua voz, como que a seu pesar, murmurava baixinho:
            - Edmond, Edmond, Edmond!


Capítulo CXIII

O passado


            O conde saiu com a alma magoada daquela casa onde deixava Mercedes para nunca mais a ver, segundo todas as probabilidades. Desde a morte do pequeno Edouard operara-se em Monte-Cristo
uma grande transformação. Chegado ao alto da sua vingança pela encosta lenta e tortuosa que seguira, vira do outro lado da montanha o abismo da dúvida.
            Mas havia mais: a conversa que acabava de ter com Mercedes despertara tantas recordações no seu coração que elas próprias precisavam de ser combatidas. Um homem da têmpera do conde não podia entregar-se durante muito tempo a uma melancolia capaz de alimentar os espíritos vulgares dando-lhes uma originalidade aparente, mas que mata as almas superiores. O conde disse para consigo que para quase
ter chegado a censurar-se era porque algum erro se insinuara nos seus cálculos.
            - Analiso mal o passado - disse. - Não posso ter-me enganado assim... Seria possível que me propusesse atingir um objetivo insensato? Terei seguido caminho errado durante dez anos? Não bastaria uma hora para provar ao arquiteto que a obra em que depositara todas as suas esperanças era uma obra impossível ou pelo menos sacrílega?
            "Não me posso habituar a semelhante idéia; enlouqueceria. O que falta aos meus raciocínios atuais é a apreciação exata do passado, porque revejo o passado da outra extremidade do horizonte. Com efeito, à medida que avançamos o passado esbate-se, tal como a paisagem que atravessamos se esfuma à medida que nos afastamos. Acontece-me o que acontece às pessoas que se ferem em sonhos: vêem e sentem o ferimento, mas não se lembram de o ter recebido...
            "Vamos, homem renovado; vamos, rico extravagante; vamos, dorminhoco acordado; vamos, visionário todo-poderoso, vamos, milionário invencível: retoma por instantes a perspectiva funesta da vida miserável e faminta; volta a passar pelos caminhos para onde a fatalidade te empurrou ou a desventura te conduziu e o desespero te recebeu. Demasiados diamantes, ouro e sorte brilham hoje no espelho em que Monte-Cristo vê Dantés. Esconde esses diamantes, cobre de lama esse ouro, apaga esse brilho; rico, volta a ser pobre; livre, volta a ser prisioneiro; ressuscitado, volta a ser cadáver.
            Enquanto dizia isto a si mesmo, Monte-Cristo seguia pela Rua da Caisserie, a mesma pela qual vinte e quatro anos antes fora conduzido por uma guarda silenciosa e noturna. Aquelas casas, de aspecto risonho e animado, estavam naquela noite sombrias, mudas e fechadas.
            - Mas são as mesmas - murmurou Monte-Cristo. - Só que então era de noite e hoje é de dia; é o sol que ilumina tudo isto e torna tudo isto alegre.
            Desceu ao cais pela Rua de Saint-Laurent e encaminhou-se para a Consigne, o ponto do porto onde fora embarcado. Um barco de passeio passava com a sua cobertura de lona. Monte-Cristo chamou o patrão, que navegou imediatamente para ele, com a pressa que põem nesse exercício os barqueiros que farejam uma boa gorjeta.
            O tempo estava magnífico e a viagem foi uma festa. No horizonte o Sol descia, vermelho e chamejante, nas vagas, que se incendiavam à sua aproximação. O mar, liso como um espelho, franzia-se por vezes devido aos saltos dos peixes, que, perseguidos por algum inimigo oculto, saltavam para fora de água a fim de procurarem a salvação em outro elemento.  Finalmente, no horizonte viam-se passar, brancas e graciosas
como gaivotas de arribação, as barcas de pescadores que se dirigiam para Martigues ou os navios mercantes carregados que seguiam para a Córsega ou para a Espanha.
            Apesar daquele lindo céu, daquelas barcas de contornos graciosos e da luz dourada que inundava a paisagem, o conde, envolto na sua capa, recordava um a um todos os pormenores da terrível viagem aquela luz única e isolada que ardia nos Catalães, a vista do castelo de If que lhe revelou para onde o levavam, a luta com os guardas quando quis lançar-se ao mar, o seu desespero quando se sentiu vencido e a sensação fria do cano do rostobina encostado à têmpora, como um anel de gelo.
            E pouco a pouco, como as nascentes secas no Verão que quando se acastelam as nuvens de Outono se umedecem lentamente e começam a correr gota a gota, o conde de Monte-Cristo sentiu igualmente nascer-lhe no peito o velho fel extravasado que outrora inundara o coração de Edmond Dantés.
            A partir daí acabou-se para ele o céu bonito, as barcas graciosas, o sol quente; o céu velou-se de crepes fúnebres e o aparecimento do negro gigante chamado castelo de If fê-lo estremecer como se lhe tivesse surgido de súbito o fantasma de um inimigo mortal.
            Chegaram.
            Instintivamente, o conde recuou até  à extremidade do barco. O patrão teve de lhe dizer com a sua voz mais diferente:
            - Chegamos, senhor.
            Monte-Cristo lembrou-se de que naquele mesmo local, naquele mesmo rochedo, fora violentamente arrastado pelos seus guardas e que o tinham obrigado a subir a rampa picando-lhe os rins com a ponta das baionetas.
            O caminho parecera então muito longo a Dantés; Monte-Cristo achou-o muito curto. Cada remada fizera brotar, juntamente com a poalha úmida do mar, um milhão de pensamentos e recordações. 
            Desde a revolução de Julho que não havia prisioneiros no Castelo de If; apenas um posto destinado a impedir o contrabando se encontrava instalado na casa da guarda. Um porteiro recebia os curiosos à porta para lhes mostrar aquele monumento de terror transformado em monumento de curiosidade.
            E no entanto, embora conhecesse pormenorizadamente o que ia ver, quando entrou debaixo da abóbada, quando desceu a escada negra, quando o conduziram às celas que pedira para ver, uma palidez fria invadiu-lhe a testa, cujo suor gelado lhe refluiu até ao coração.
            O conde perguntou se ainda havia algum antigo carcereiro do tempo da Restauração; todos tinham sido reformados ou se dedicavam a outras profissões. O porteiro que o acompanhava estava ali desde 1830 apenas. Levaram-no a sua própria cela.
            Reviu a luz baça filtrar-se através do estreito respiradouro; reviu o lugar onde estava a cama, retirada depois, e atrás da cama, embora tapada, mas ainda visível devido às pedras mais novas, a abertura praticada pelo abade Faria. Monte-Cristo sentiu as pernas fraquejarem-me; pegou num banco de madeira e sentou-se.
            - Contaram-se algumas histórias acerca deste castelo além da relacionada com a prisão de Mirabeau? - perguntou o conde. - Existe alguma tradição relacionada com estas celas lúgubres, onde custa a crer que homens alguma vez tenham encerrado um homem vivo?
            - Existe, sim, senhor - respondeu o porteiro -, e a respeito desta mesma cela o carcereiro Antoine transmitiu-me uma.
            Monte-Cristo estremeceu.
            O carcereiro Antoine era o seu carcereiro. Quase lhe esquecera o nome e o rosto, mas assim que o seu nome foi pronunciado reviu-o tal qual era, com o rosto rodeada de barba, o seu casaco escuro e o seu molho de chaves, cujo tilintar lhe parecia ainda ouvir.
            O conde virou-se e julgou vê-lo na sombra do corredor, tornada mais densa pelo contraste com a luz do archote que ardia nas mãos do porteiro.
            - O senhor quer que a conte? - perguntou o porteiro.
            - Pois sim, conte - respondeu Monte-Cristo.
            E pôs a mão no peito para comprimir as violentas pulsações do coração, assustado por ir ouvir contar a sua própria história.
            - Conte - repetiu.
            - Esta cela - prosseguiu o porteiro - era ocupada por um prisioneiro, há muito tempo, um homem perigosíssimo, ao que parece, e tanto mais perigoso quanto lhe não faltava engenho. Nessa altura, havia outro homem no castelo, mas esse não era mau, era um pobre padre louco.
            - Ah, sim, louco!... - repetiu Monte-Cristo. - E qual era a sua loucura?
            - Oferecia milhões se lhe restituíssem a liberdade.
            Monte-Cristo ergueu os olhos ao céu, mas não viu o céu: havia um véu de pedra entre ele e o firmamento. Pensou que houvera um véu não menos espesso entre os olhos daqueles a quem o abade Faria oferecia tesouros e os tesouros que lhes oferecia.
            - Os prisioneiros podiam ver-se? - perguntou Monte-Cristo. 
            - Oh, não, senhor, era expressamente proibido! Mas eles eludiram a proibição abrindo uma galeria que ia de uma cela à outra.
            - E qual dos dois abriu a galeria?
            - O mais novo, com certeza - respondeu o porteiro. - O rapaz era engenhoso e forte, ao passo que o pobre abade era velho e fraco. Além disso, tinha o espírito demasiado vacilante para seguir uma idéia.
            - Cegos!... - murmurou Monte-Cristo.
            - Seja como for - continuou o porteiro -, o mais novo abriu a galeria. Com quê? Ninguém sabe. Mas abriu-a, e a prova é que ainda se vêem sinais dela. Repare, não os vê?
            E aproximou o archote da parede.
            - Sim, realmente... - respondeu o conde, com a voz embargada pela emoção.
            - Daí resultou que os dois prisioneiros comunicaram um com o outro. Quanto tempo durou a comunicação? Ninguém sabe. Ora, um dia o prisioneiro velho adoeceu e morreu. Adivinha o que fez o novo? - perguntou o porteiro, interrompendo-se.
            - Diga.
            - Apoderou-se do defunto, que deitou na sua própria cama com a cara virada para a parede, voltou à cela vazia, tapou o buraco e meteu-se no saco do morto. Já viu semelhante idéia?
            Monte-Cristo fechou os olhos e sentiu-se passar de novo por todas as impressões que experimentara quando aquela tela grosseira, ainda impregnada do frio do cadáver, lhe tocara na cara.
            O porteiro continuou:
            - Veja o senhor qual era o seu plano: julgava que enterravam os mortos no Castelo de If, e como estava convencido de que não gastavam dinheiro com caixões para os presos, contava levantar a terra com os ombros. Mas infelizmente havia no castelo um costume que prejudicava o seu plano: não enterravam os mortos; limitavam-se a prender-lhes um peso aos pés e a lançá-los ao mar. Foi o que se fez e o nosso homem foi lançado à água do alto da galeria. No dia seguinte encontraram o verdadeiro morto na sua cama e adivinharam tudo, porque os coveiros disseram então o que se não tinham atrevido a dizer até ali, isto é, que no momento em que o corpo fora lançado no vácuo tinham ouvido um grito terrível, abafado imediatamente
pela água, na qual desaparecera.
            O conde respirou penosamente. O suor corria-lhe pela testa e a angústia apertava-lhe o coração.
            - Não - murmurou –, não! A dúvida que experimentei era um princípio de esquecimento. Mas aqui o coração sangra de novo e volta a sentir-se faminto de vingança. E o prisioneiro, nunca mais ouviram falar dele? - perguntou.
            - Nunca por nunca ser. Compreende, das duas uma: ou caiu de chapa de cinquenta pés de altura e morreu imediatamente...
            - Disse que lhe tinham prendido um pelouro aos pés; portanto, deve ter caído de pé.
            - Ou caiu de pé - prosseguiu o porteiro e então o peso do pelou o arrastou-o para o fundo, onde ficou, pobre homem!
            - Lamenta-o?
            - Claro que sim, embora morresse no seu elemento. 
            - Que quer dizer?
            - Que corria o boato de que o desgraçado fora, no seu tempo, um oficial de marinha preso por bonapartista.
            - É verdade - murmurou o conde para consigo. - Deus fê-la flutuar à superfície das vagas e das paixões, e assim o pobre marinheiro vive na memória de alguns narradores.  Conta-se a sua terrível história ao canto da lareira e estremece-se no momento em que ele fende o espaço para mergulhar no mar profundo.
            - Nunca souberam o seu nome? – perguntou o conde em voz alta.
            - Ah. sim. claro!... - respondeu o guarda. - Como? Era só conhecido pelo número 34.
            - Villefort, Villefort... - murmurou o conde. - O que não terá pensado quando o meu fantasma importunava as tuas insônias...
            - O senhor quer continuar a visita? - perguntou o porteiro.
            - Sim, sobretudo se me quiser mostrar a cela do pobre abade.
            - Ah! A do número 27?
            - Sim, a do número 27 - repetiu Monte-Cristo.
            E pareceu-lhe ouvir ainda a voz do abade Faria quando lhe perguntara o seu nome e ele lhe gritara o número através da parede.
            - Venha.
            - Espere, deixe-me dar uma última vista de olhos à cela.
            - Calha bem - disse o guia –, porque me esqueci da chave da outra.
            - Vá  buscá-la.
            - Deixo-lhe o archote.
            - Não, leve-o.
             - Mas fica sem luz...
            - Enxergo bem no escuro.
            - Olha, é como ele!...
            - Ele quem?
            - O número 34. Dizem que estava tão habituado às trevas que era capaz de ver um alfinete no canto mais escuro da cela.
            - Mas precisou de dez anos para o conseguir - murmurou Monte-Cristo.
            O guia afastou-se com o archote.
            O conde dissera a verdade: bastaram-lhe apenas uns segundos na escuridão para distinguir tudo como em pleno dia. Então olhou a toda a volta de si e reconheceu realmente a sua cela.
            - Sim, aqui está a pedra em que me sentava! E aqui a marca dos meus ombros escavada na muralha! E aqui uns restos do sangue que me correu da testa no dia em que quis partir a cabeça contra a parede! Oh, estes números!... Lembro-me deles... Fi-los num dia em que calculava a idade do meu pai, para saber se o encontraria vivo, e a idade de Mercedes, para saber se a encontraria livre ... Tive um momento de esperança depois de fazer estes cálculos ... Não contava com a fome nem com a infidelidade!
            E um riso amargo saiu da boca do conde. Acabava de ver, como num sonho, o pai a ser conduzido à sepultura... E Mercedes dirigindo-se para o altar! No outro lance da muralha deu com os olhos numa inscrição.
Ainda se destacava, a branco, na parede esverdeada: “meu deus, conserva-me a memória!" 
            - Oh, sim, era esta a minha única prece nos últimos tempos! - exclamou. - já não pedia a liberdade, pedia a memória, receava enlouquecer e esquecer. Meu Deus, conservaste-me a memória e lembrei-me. Obrigado, obrigado, meu Deus!
            Neste momento a luz do archote refletiu-se nas paredes; era o guia que descia.
            Monte-Cristo foi ao seu encontro.
            - Siga-me - disse o homem.
            E sem necessitar de vir à superfície, fê-lo seguir por um corredor subterrâneo que o conduziu a outra entrada. Também ali Monte-Cristo foi assaltado por um mundo de pensamentos.
            A primeira coisa que lhe saltou à vista foi o meridiano traçado na muralha, com o auxílio do qual o abade Faria contava as horas; depois os restos da cama em que o pobre prisioneiro morrera.
            Ao ver isto, em vez das angústias que o conde experimentara na sua cela, um sentimento suave e terno, um sentimento de reconhecimento, encheu-lhe o coração e duas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.
            - Era aqui que estava o abade louco - informou o guia. - Era por ali que o rapaz vinha ter com ele - e mostrou a Monte-Cristo a entrada da galeria, que daquele lado ficara aberta. - Pela cor da pedra - continuou - um sábio descobriu que devia haver mais ou menos dez anos que os dois prisioneiros comunicavam um com o outro. Pobres homens, muito se devem ter aborrecido durante esses dez anos!
            Dantés tirou alguns luíses da algibeira e estendeu a mão para o homem que pela segunda vez o lamentava sem o conhecer. O porteiro aceitou-os, julgando receber algumas moedas de pouco valor mas à luz do archote verificou que o visitante lhe dera muito dinheiro.
            - Senhor - disse-lhe -, deve ter se enganado...
            - Como assim?
            - Deu-me moedas de ouro.
            - Bem sei.
            - Sabe?!
            - Sim.
            - Era sua intenção dar-me este ouro?
            - Era.
            - E posso guardá-lo com a consciência tranquila?
            - Pode.
            O porteiro olhou atônito para Monte-Cristo.
            - E honestidade - acrescentou o conde, como Hamlet.
            - Senhor - tornou o porteiro, que não ousava acreditar na sua sorte –, senhor, não compreendo a sua generosidade...
            - É fácil de compreender, meu amigo - perguntou o conde. - Fui marinheiro e a sua história comoveu-me mais do que qualquer outra.
            - Então, senhor - disse o guia –, já que é tão generoso, merece que lhe ofereça qualquer coisa.
            - Que tem para me oferecer, meu amigo? Conchas, objetos de palha? Obrigado.
            - Não, senhor; não, senhor! Qualquer coisa que se refere à história que lhe contei há pouco. 
            - Deveras?! - exclamou o conde, entusiasmado. - O quê?
            - Ouça, vou contar-lhe o que aconteceu - disse o porteiro. - Pensei aqui para comigo: “Encontra-se sempre qualquer coisa numa cela onde um prisioneiro permaneceu quinze anos..." E pus-me a sondar as paredes.
            - Ah! - exclamou Monte-Cristo. Lembrando-se do duplo esconderijo do abade. - Com efeito.
            - À força de procurar - continuou o porteiro –, descobri que a parede soava a oco à cabeceira da cama e na lareira da chaminé.
            - Claro, claro - disse Monte-Cristo.
            - Levantei as pedras e encontrei...
            - Uma escada de corda? Ferramentas? - antecipou-se o conde.
            - Como sabe? - perguntou o porteiro, surpreendido.
            - Não sei, mas calculo - respondeu o conde. - Habitualmente‚ esse gênero de coisas que se encontra nos esconderijos dos prisioneiros.
            - Exato, senhor, uma escada de corda e ferramentas - confirmou o guia.
            - E ainda as tem? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não, senhor. Vendi esses objetos, que eram muito curiosos, a visitantes. Mas resta-me outra coisa...
            - O quê? - perguntou o conde com impaciência.
            - Resta-me uma espécie de livro escrito em tiras de pano.
            - Oh, ainda tem esse livro?! - exclamou Monte-Cristo.
            - Não sei se é um livro - respondeu o porteiro. – Mas ainda o tenho, como lhe disse.
            - Vá buscá-lo, meu amigo, vá - pediu o conde. - E se for o que presumo, não se arrependerá...
            - Vou num pé e venho noutro, senhor.
            E o guia saiu.
            Então, Monte-Cristo foi ajoelhar-se piedosamente diante dos restos daquela cama de que a morte fizera para ele um altar.
            - Óh meu segundo pai - disse –, tu que me deste a liberdade, a ciência e a riqueza; tu que, a exemplo das criaturas de essência superior à nossa, conhecias a ciência do bem e do mal, se no fundo da sepultura resta alguma coisa de nós que estremeça ao ouvir a voz daqueles que ficaram na Terra; se na transfiguração que sofre o cadaver alguma coisa animada paira nos lugares onde muito amamos e sofremos, nobre coração, espírito supremo, alma profunda, por uma palavra, por um sinal, por uma revelação qualquer, conjuro-te, em nome do amor paternal que me concedias e do respeito filial que te dedicava, a tirar-me este resto de dúvida que, a não se transformar em convicção, se transformar  em remorso.
            O conde baixou a cabeça e juntou as mãos.
            - Veja, senhor! - disse uma voz atrás dele.
            Monte-Cristo estremeceu e virou-se.
            O porteiro estendia-lhe as tiras de pano em que o abade Faria registrara todos os tesouros da sua ciência. Aquele manuscrito era a grande obra do abade Faria acerca da realeza na Itália.
            O conde pegou-lhe sofregamente e os seus olhos pousaram em primeiro lugar na epígrafe. Leu: “Arrancará os dentes do dragão e calcarás aos pés os leões, disse o Senhor." 
            - Ah, aqui está a resposta! - exclamou. - Obrigado, meu pai, obrigado!
            Depois disse, tirando da algibeira uma carteirinha que continha dez notas de mil francos cada uma:
            - Tome, aceite esta carteira.
            - O senhor a está me dabdo?
            - Dou, mas com a condição de só ver o que tem dentro depois de me ir embora.
            E apertando ao peito a relíquia que acabava de recuperar e que tinha para ele o valor do mais rico tesouro, saiu do subterrâneo e meteu-se na barca.
            - Para Marselha! - ordenou.
            E enquanto se afastava, disse com os olhos cravados na sombria prisão:
            - Ai daqueles que me mandaram encerrar naquela prisão e daqueles que esqueceram que lá estive encerrado!
            Quando voltou a passar diante dos Catalães, o conde virou-se, envolveu a cabeça na capa e murmurou um nome feminino.
            A vitória era completa; o conde vencera duas vezes a dúvida. O nome que pronunciara com uma expressão de ternura que era quase de amor fora o nome de Haydée.
            Assim que pôs pé em terra, Monte-Cristo dirigiu-se para o cemitério, onde sabia encontrar Morrel.
            Também ele, dez anos antes, procurara piedosamente uma sepultura naquele cemitério, e procurara-a em vão. Ele, que regressava a França com milhões, não conseguira encontrar a sepultura do pai morto de fome.
            Morrel bem mandara lá colocar uma cruz., mas a cruz caíra e o coveiro queimara-a, como fazem todos os coveiros a toda a madeira velha que encontram caída nos cemitérios. O digno negociante fora mais feliz: morto nos braços dos filhos, fora, levado por eles, dormir o sono eterno junto da mulher, que o precedera dois anos na eternidade.
            Duas grandes lajes de mármore com os seus nomes encontravam-se colocadas uma ao lado da outra num pequeno recinto fechado por uma balaustrada de ferro e sombreado por quatro ciprestes. Maximilien estava encostado a uma das árvores e olhava sem ver para as duas sepulturas. A sua dor era profunda, quase desvairada.
            - Maximilien, não é para ai que deve olhar, é para ali - disse-lhe o conde, indicando-lhe o céu.
            - Os mortos estão em toda a parte – perguntou Morrel. - Não foi o que me disse quando me trouxe de Paris?
            - Maximilien - disse o conde –, pediu-me durante a viagem que lhe permitisse ficar uns dias em Marselha. Continua a ser essa a sua vontade?
            - Já não tenho vontade, conde, mas parece-me que esperarei menos penosamente aqui do que em outro lugar.
            - Tanto melhor, Maximilien, porque vou deixá-lo, mas levo comigo a sua palavra, não é verdade?
            - Oh, a esquecerei, conde, a esquecerei! - respondeu Morrel.
            - Não, não a esquecera porque acima de tudo é um homem honrado, Morrel; porque jurou e porque vai jurar novamente. 
            - Conde, tenha compaixão de mim! Sou tão infeliz, conde!
            - Conheci um homem mais infeliz do que o senhor, Morrel.
            - Impossível.
            - Claro! - exclamou Monte-Cristo, - É um dos orgulhos da nossa pobre humanidade cada homem julgar-se mais infeliz do que outro infeliz que chora e geme a seu lado.
            - Quem pode ser mais infeliz do que o homem que perdeu o único bem que amava e desejava no mundo?
            - Ouça, Morrel - disse Monte-Cristo -, e fixe um instante o espírito no que lhe vou dizer. Conheci um homem que, tal como o senhor, depositara todas as suas esperanças de felicidade numa mulher. Esse homem era novo e tinha um velho pai que amava e uma noiva que adorava. Ia casar com ela quando de
súbito um desses caprichos do destino que fariam duvidar da bondade de Deus se Deus se não revelasse mais tarde mostrando que tudo é para ele um meio de conduzir à sua unidade infinita, quando de súbito um capricho do destino lhe roubou a liberdade, a amada e o futuro com que sonhava e que julgava pertencer-lhe, pois, cego como estava, só podia ler no presente, e o lançou no fundo de uma masmorra.
            - Pois sim, mas sai-se de uma masmorra ao fim de oito dias, de um mês, de um ano... - observou Morrel.
            - Ele ficou lá catorze anos, Morrel - disse o conde, pousando a mão no ombro do rapaz..
            Maximilien estremeceu.
            - Catorze anos!... - murmurou.
            - Catorze anos - repetiu o conde. - Também ele, durante esses catorze anos, teve muitos momentos de desespero. Também ele, como o senhor, Morrel, julgando-se o mais infeliz dos homens, quis se matar.
            - E depois? - perguntou Morrel.
            - E depois? No momento supremo Deus se revelou por um meio humano. Porque Deus já não faz milagres. Talvez à primeira vista (os olhos velados de lágrimas precisam de tempo para se abrir por completo) não tenha compreendido a misericórdia infinita do Senhor, mas enfim, encheu-se de paciência e
esperou. Um dia saiu miraculosamente da tumba, transfigurado, rico, poderoso, quase um deus. O seu primeiro pensamento foi para o pai, mas o pai morrera!
            - A mim também me morreu o meu pai - observou Morrel.
            - Sim, mas o seu pai morreu-lhe nos braços, amado, feliz, respeitado, rico, vergado ao peso dos anos, ao passo que o pai dele morrera pobre, desesperado, duvidando de Deus; e quando dez anos depois da sua morte o filho lhe procurou a sepultura, a sua própria sepultura desaparecera e ninguém lhe pôde dizer:
“é aqui que repousa no Senhor o coração que tanto te amou."
            - Oh! - exclamou Morrel.
            - Ele era portanto mais infeliz filho do que o senhor, Morrel, pois nem sequer sabia onde fora sepultado o pai.
            - Mas - disse Morrel - restava-lhe a mulher que amara, ao menos.
            - Engana-se, Morrel. Essa mulher...
            - Também morrera? - atalhou Maximilien.
            - Pior do que isso: fora infiel, casara com um dos perseguidores do noivo. Bem vê, Morrel, que esse homem era mais infeliz, como apaixonado, do que o senhor... 
            - E Deus mandou consolação a esse homem? - perguntou Morrel.
            - Mandou-lhe pelo menos calma.
            - E esse homem ainda poderá ser feliz um dia?
            - Tem essa esperança, Maximilien.
            O jovem deixou cair a cabeça para o peito.
            - Tem a minha promessa - disse, após um instante de silêncio e estendendo a mão a Monte-Cristo. - Mas lembre-se...
            - Em 5 de Outubro, Morrel, espero-o na ilha de Monte-Cristo. Em 4, um iate o esperará no porto de Bástia; um iate chamado Eurus. Apresente-se ao capitão, que o levar  junto de mim. Está combinado, não é verdade, Maximilien?
            - Está combinado e farei o que está combinado. Mas lembre-se que em 5 de Outubro...
            - Criança, que ainda não sabe o que é a promessa de um homem... já lhe disse vinte vezes que nesse dia, se quiser morrer, até  o ajudarei, Morrel. Adeus.
            - Deixa-me?
            - Deixo. Tenho que ir a Itália. Deixo-o sozinho, sozinho em luta com a desventura, sozinho com essa  águia de asas poderosas que o Senhor envia aos seus eleitos para os transportar a seus pés. A história de Ganimedes não é uma fábula, Maximilien, é uma alegoria.
            - Quando parte?
            - Imediatamente. O navio a vapor espera-me e daqui a uma hora já estarei longe de si. Acompanha-me até  ao porto, Morrel?
            - Estou às suas ordens, conde.
            - Abrace-me.
            Morrel acompanhou o conde até  ao porto. O fumo já saía como um penacho imenso da chaminé negra que o lançava ao céu. Pouco depois o navio partiu, e uma hora mais tarde, como dissera Monte-Cristo, o mesmo penacho de fumo esbranquiçado raiava, quase invisível, o horizonte oriental, escurecido pelas primeiras neblinas da noite.


Capítulo CXIV

Peppino


            No preciso instante em que o navio a vapor do conde desaparecia para lá do cabo Morgiou, um homem em viagem pela estrada de Florença a Roma acabava de deixar para trás a cidadezinha de Aquapendente. A sua velocidade era a suficiente para percorrer boa distância sem no entanto se tornar
suspeito.
            Envergando uma redingote, ou antes um sobretudo que a viagem pusera em muito mau estado, mas que ainda deixava ver, brilhante e fresca, uma fita da Legião de Honra, repetida na sobrecasaca, o homem, não só por esse duplo sinal, mas também pela pronúncia com que falava ao postilhão, devia ser francês.
Mais uma prova de que nascera no pais da língua universal: não sabia outras palavras italianas a não ser essas palavras de música que podem, como o godman de Fígaro, substituir todas as sutilezas de determinada língua. 
            - Alegro! - dizia ao postilhão em cada subida.
            - Moderato! - gritava em cada descida.
            E Deus bem sabe se há subidas e descidas na estrada de Florença a Roma por Aquapendente!...
            De resto, aquelas duas palavras faziam rir muito a boa gente a quem eram dirigidas.
            Perante a cidade eterna, isto é, à chegada a Storta, ponto de onde se vê Roma, o viajante não experimentou esse sentimento de curiosidade entusiástica que leva todos os estrangeiros a levantarem-se do seu lugar para tentarem ver a famosa cúpula de S. Pedro, que se descobre muito antes de distinguir outra
coisa. Não, tirou apenas uma carteira da algibeira, e da carteira um papel dobrado em quatro, que desdobrou e dobrou com uma atenção respeitosa, e limitou-se a dizer:
            - Bom, ainda o tenho...
            A carruagem transpôs a Porta del Popolo, virou à esquerda e deteve-se no Hotel de Espanha.
            Mestre Pastrini, nosso velho conhecido, recebeu o viajante no limiar da porta e de chapéu na mão.
            O viajante apeou-se, encomendou um bom jantar e informou-se do endereço da casa Thomson & French, que lhe foi indicado imediatamente, visto essa casa ser uma das mais conhecidas de Roma.
            Estava situada na Via dei Banchi, perto de S. Pedro.
            Em Roma, como em toda a parte, a chegada de uma sege de posta é um acontecimento. Dez jovens descendentes de Mário e dos gracos, descalços e de cotovelos rotos, mas de mão na anca e com o braço pitorescamente curvado por cima da cabeça, observavam o viajante, a sege de posta e os cavalos. A esses
garotos da cidade por excelência tinham-se juntado uns cinquenta basbaques dos Estados de Sua Santidade, daqueles que fazem rodas e cospem para o Tibre do alto da Ponte de Santo Angelo quando o Tibre leva água. Ora, como os garotos e os basbaques de Roma, mais felizes do que os de Paris, compreendem todas as línguas, e sobretudo a língua francesa, perceberam o viajante pedir um quarto, pedir
de jantar e pedir, finalmente, o endereço da casa Thomson & French.
            Dai resultou que quando o recém-chegado saiu do hotel com o cicerone da praxe, um homem separou-se do grupo de curiosos e, sem ser notado pelo viajante e sem parecer ser notado pelo guia, caminhou a curta distância do estrangeiro, seguindo-o com tanta perícia que talvez causasse inveja a um agente da
polícia parisiense.
            O francês tinha tanta pressa de visitar a casa Thomson & French que nem sequer esperara que os cavalos fossem substituídos; a carruagem deveria apanhá-lo no caminho ou esperá-lo à porta dos banqueiros.
            Chegaram antes de a carruagem os apanhar.
            O francês entrou e deixou na antecâmara o guia, que imediatamente meteu conversa com dois ou três desses industriais sem indústria, ou antes de mil indústrias, que se encontram em Roma à porta dos banqueiros, das igrejas, das ruínas, dos museus e dos teatros.
            Ao mesmo tempo que o francês entrou também o homem que se separara do grupo de curiosos. O francês bateu no guichê dos escritórios e entrou na primeira sala; a sua sombra fez outro tanto. 
            - Os Srs. Thomson & French? - perguntou o estrangeiro.
            Uma espécie de lacaio levantou-se a um sinal de um empregado de confiança, guarda solene do primeiro escritório.
            - Quem devo anunciar? - perguntou o lacaio, preparando-se para caminhar à frente do estrangeiro.
            - O Sr. Barão Danglars - respondeu o viajante.
            - Acompanhe-me - disse o lacaio.
            Abriu-se uma porta e o lacaio e o barão desapareceram por ela.  O homem que entrara atrás de Danglars sentou-se num banco de espera.
            O empregado continuou a escrever durante cerca de cinco minutos; durante esses cinco minutos, o homem sentado guardou o mais profundo silêncio e a mais completa imobilidade. Depois a pena do empregado deixou de ranger no papel; o homem levantou a cabeça, olhou atentamente à sua volta e disse, após se assegurar de que estavam sós:
            - Ah, ah!... Por aqui , Peppino?
            - É verdade - respondeu laconicamente este último.
            - Farejou alguma coisa que valha a pena nesse gordo?
            - Não tive grande mérito nisso: fomos avisados.
            - Sabe portanto o que vem fazer aqui? Curioso...
            - Por Deus, vem receber! Apenas falta saber quanto.
            - Saberemos daqui a pouco, amigo.
            - Muito bem; mas que não aconteça como no outro dia, em que me deste uma informação falsa.
            - Quer fazer o favor de me dizer do que está falando? Será daquele inglês que levantou há dias três mil escudos?
            - Não. Esse tinha efetivamente os três mil escudos e nós encontramos-lhos. Refiro-me ao príncipe russo.
            - E então?
            - Então? Falou-nos em trinta mil libras e nós só lhe encontramos vinte e duas.
            - É porque procuraram mal.
            - Foi Luigi Vampa em pessoa quem o revistou.
            - Nesse caso, é porque pagara as suas dívidas...
            - Um russo?
            - Ou gastou o dinheiro.
            - É possível, no fim de contas.
            - É certo. Mas deixe-me ir ao meu observatório antes de o francês concluir a transação sem eu saber a importância exata.
            Peppino acenou afirmativamente, tirou um rosário da algibeira e pôs-se a resmonear uma prece enquanto o empregado saía pela mesma porta que dera passagem ao lacaio e ao barão. Passados cerca de dez minutos, o empregado voltou radiante.
            - Então? - perguntou Peppino, ao amigo.
            - Alerta, alerta! - disse o empregado. - A importância é alta...
            - Cinco a seis milhões, não é verdade?
            - Sim. Sabe a importância? 
            - Sobre um recibo de Sua Excelência o conde de Monte-Cristo.
            - Conhece o conde?
            - Crédito sobre Roma, Veneza e Viena.
            - Exato! - exclamou o empregado. - Como é que está tão bem informado?
            - Já te disse que fomos prevenidos antecipadamente.
            - Então porque veio ter comigo?
            - Para ter a certeza de que é de fato o homem que esperavamos.
            - Não há dúvida que é ele... Cinco milhões. Uma bonita quantia, não é verdade, Peppino?
            - É.
            - Nunca possuiremos tanto.
            - Pelo menos teremos algumas migalhas - respondeu filosoficamente Peppino.
            - Cale-se! Vem aí o nosso bem.
            O empregado voltou a pegar na pena e Peppino no seu rosário. Um escrevia e o outro rezava quando a porta se abriu. Danglars apareceu radiante, acompanhado do banqueiro, que o levou até  à porta.
            Peppino saiu atrás de Danglars.
            De acordo com o combinado, a carruagem que devia ir buscar Danglars esperava-o já diante da casa Thomson & French. O cicerone segurava a portinhola aberta. O cicerone é um indivíduo muito prestável e que se pode utilizar no que se quiser.
            Danglars saltou para a carruagem com a agilidade de um rapaz de vinte anos. O cicerone fechou a portinhola e subiu para junto do cocheiro.
            Peppino subiu para o acento da retaguarda.
            - Sua Excelência quer ver S. Pedro? - perguntou o cicerone.
            - Para quê?... - respondeu o barão.
            - Demônio, para ver!
            - Não vim a Roma para ver - disse Danglars em voz alta, e depois acrescentou baixinho e com o seu sorriso cúpido: -  Vim para receber.
            E tocou na carteira, em que acabava de guardar uma carta.
            - Então, Sua Excelência vai...?
            - Para o hotel.
            - Casa Pastrini - disse o cicerone ao cocheiro.
            E a carruagem partiu rápida, como uma carruagem particular.
            Dez minutos mais tarde o barão entrava nos seus aposentos e Peppino instalava-se no banco existente na fachada do hotel, depois de dizer algumas palavras ao ouvido de um dos descendentes de Mário e dos Gracos a que nos referimos no princípio deste capítulo, o qual descendente tomou o caminho do Capitólio a toda a velocidade das suas pernas.
            Danglars estava cansado, satisfeito e ensonado. Deitou-se, meteu a carteira debaixo da almofada e adormeceu. Peppino tinha tempo de sobra. Jogou à morra com uns facchini, perdeu três escudos e para se consolar bebeu uma garrafa de vinho de Orvieto.
            No dia seguinte, Danglars acordou tarde, apesar de ter se deitado cedo. Mas havia cinco ou seis noites que dormia muito mal, quando dormia. Almoçou, e pouco interessado, como dissera, em ver as belezas da cidade eterna, pediu os seus cavalos de posta para o meio-dia.
            Mas Danglars não contara com as formalidades da polícia nem com a preguiça do homem da posta.
            Os cavalos só chegaram às duas horas e o cicerone só voltou com o passaporte visado às três horas.
            Os descendentes dos Gracos e de M rio também não faltaram ao bota-fora.
            O barão atravessou triunfalmente os grupos, que lhe chamavam Excelência para apanharem um bajocco.
            Como Danglars, homem popularíssimo, como sabemos, se contentara até  ali que o tratassem por barão e ainda não fora tratado por Excelência, este titulo lisonjeou-o e por isso distribuiu uma dúzia de pauls a toda aquela canalha, mais que disposta, por outros doze pauls, a tratá-lo por Alteza.
            - Por que estrada? - perguntou o postilhão em italiano.
            - Estrada de Ancona - respondeu o barão.
            Mestre Pastrini traduziu a pergunta e a resposta e a carruagem partiu a galope.
            Danglars queria, efetivamente, chegar a Veneza, receber aí parte da sua fortuna e, depois de Veneza, alcançar Viena, onde realizaria o resto.
            A sua intenção era fixar-se nesta última cidade, que lhe tinham garantido ser uma cidade de prazeres.
            Mal percorreu três léguas na campina de Roma começou a anoitecer. Danglars não esperara partir tão tarde, pois de contrário teria ficado. Assim, perguntou ao postilhão quanto faltava para chegaram à próxima cidade.
            - Non capisco - respondeu o postilhão.
            Danglars fez um gesto com a cabeça que queria dizer: “Muito bem! "
            A carruagem continuou o seu caminho.
            “Na primeira posta o mandarei parar", disse Danglars para consigo.
            Danglars experimentava ainda um resto do bem-estar que sentira na véspera e lhe proporcionara tão boa noite. Estava estiraçado molemente numa boa caleça inglesa de molas duplas, sentia-se levado pelo galope de dois bons cavalos e a distância entre cada muda era de sete léguas e ele sabia-o.  Que fazer quando se é banqueiro e se teve a sorte de falir?
            Danglars pensou dez minutos na mulher que deixara em Paris, outros dez minutos na filha correndo o mundo com Mademoiselle de Armilly, concedeu mais dez minutos aos seus credores e à forma como empregaria o seu dinheiro, e depois, não tendo mais nada em que pensar, fechou os olhos e adormeceu.
            No entanto, de vez em quando, sacudido por um solavanco mais forte do que os outros, Danglars abria por um momento os olhos. Mas continuava a sentir-se, transportado com a mesma velocidade através da campina romana, toda salpicada de aquedutos em ruínas, que pareciam gigantes de granito petrificados no meio da sua corrida. Além disso, a noite estava fria, escura e chuvosa, e era muito mais agradável para
um homem meio adormecido permanecer no fundo da sua sege de olhos fechados do que deitar a cabeça fora da portinhola para perguntar onde estavam a um postilhão que só sabia responder.  “non capisco."
            Danglars continuou portanto a dormir, dizendo para consigo que teria sempre tempo de acordar na muda. 
            A carruagem parou. Danglars pensou que chegara finalmente ao ponto tão desejado.
            Abriu os olhos, olhou através do vidro e esperou encontrar-se no meio de qualquer cidade ou pelo menos de qualquer aldeia. Mas não viu nada, exceto uma espécie de casebre isolado, e três ou quatro homens que iam e vinham como fantasmas.
            Danglars esperou um instante que o postilhão que acabara de chegar lhe viesse pedir o dinheiro da posta. Tencionava aproveitar a oportunidade para pedir algumas informações ao seu novo condutor. Mas os cavalos foram desatrelados e substituídos sem que ninguém viesse pedir dinheiro ao viajante. Danglars, surpreendido, abriu a portinhola; mas uma mão vigorosa empurrou-o imediatamente para dentro e a sege
pôs-se em andamento.
            O barão, estupefato, acordou por completo.
            - Eh! - gritou ao postilhão. - Eh, mio caro!
            Era ainda o italiano de romança, que Danglars fixara quando a filha cantava duos com o príncipe Cavalcanti.
            Mas o mio caro não respondeu. Danglars limitou-se então a abrir o vidro.
            - Eh, amigo! Aonde vamos? - perguntou, metendo a cabeça pela abertura.
            - Dentro la testa! - gritou uma voz grave e imperiosa, acompanhada de um gesto de ameaça.
            Danglars compreendeu que dentro la testa queria dizer “cabeça para dentro". Fazia, como vemos, rápidos progressos no italiano.
            Obedeceu, não sem inquietação, e como a inquietação aumentava de minuto a minuto, passados alguns instantes o seu espírito, em vez do vácuo que assinalamos no momento da partida e que o levara a adormecer, o seu espírito, dizíamos, encontrou-se cheio de inúmeros pensamentos, uns mais próprios do que outros para manterem desperto o interesse de um viajante, e sobretudo de um viajante na situação de Danglars.
            Os seus olhos adquiriram nas trevas o grau de acuidade que transmitem no primeiro momento as emoções fortes e que se embota mais tarde por excesso de utilização. Antes de se ter medo, vê-se bem; enquanto se tem medo, vê-se a dobrar, e depois de se ter medo vê-se nublado. Danglars viu um homem envolto numa capa que galopava à portinhola da direita.
            - Algum guarda - murmurou. - Terei sido assinalado pelos telégrafos franceses às autoridades pontifícias?
            Resolveu sair de semelhante ansiedade.
            - Para onde me levam? - perguntou.
            - Dentro la testa! - repetiu a mesma voz no mesmo tom de ameaça.
            Danglars virou-se para a portinhola da esquerda. Outro homem a cavalo galopava à portinhola da esquerda.
            “Decididamente", pensou Danglars com a testa coberta de suor, “decididamente, fui apanhado..."
            E recostou-se no fundo da caleça, desta vez não para dormir, mas sim para pensar.
            Pouco depois a Lua surgiu no céu.
            Do fundo da caleça olhou para os campos; tornou a ver então os grandes aquedutos, fantasmas de pedra que notara ao passar; simplesmente, em vez de os ter à direita, tinha-os agora à esquerda. 
            Compreendeu que tinham obrigado a carruagem a dar meia volta e que o levavam novamente para Roma.
            - Que pouca sorte - murmurou –, devem ter obtido a extradição!
            A carruagem continuava a correr com espantosa velocidade. Passou uma hora terrível, pois em cada novo ponto de referência que via à sua passagem o fugitivo reconhecia, sem sombra de dúvida, que o reconduziam ao ponto de partida. Por fim distinguiu uma massa sombria contra a qual lhe pareceu que
a carruagem ia chocar. Mas a carruagem virou e contornou essa massa sombria, que não passava da cintura de muralhas que rodeia Roma.
            - Oh, oh! - murmurou Danglars. - Não entramos na cidade, o que prova que não estou nas mãos da justiça. Meu Deus, será que...?
            Os cabelos eriçaram-se lhe.
            Recordou-se das interessantes histórias de bandidos romanos, tão pouco acreditadas em Paris, que Albert de Morcerf contara à Sra Danglars e a Eugenie quando o jovem visconde ainda aspirava a ser genro de uma e marido da outra.
            - São talvez ladrões! - murmurou.
            De repente, a carruagem rodou sobre qualquer coisa mais dura do que o chão de um caminho arenoso. Danglars arriscou um olhar aos dois lados da estrada. Distinguiu monumentos de forma estranha e o seu pensamento, preocupado com a história de Morcerf, que lhe surgia agora em todos os seus pormenores,
o seu pensamento disse-lhe que devia estar na Via Ápia.
            À esquerda da carruagem, numa espécie de vale, via-se uma escavação circular.
            Era o Circo de Caracala.
            A uma ordem do homem que galopava à portinhola da direita, a carruagem parou.
            Ao mesmo tempo, a portinhola da esquerda abriu-se.
            - Scendi! - ordenou uma vez.
            Danglars desceu imediatamente. Ainda não falava italiano, mas já o entendia.
            Mais morto do que vivo, o barão olhou à sua volta. Rodeavam-no quatro homens, sem contar com o postilhão.
            - Di quà - disse um dos quatro homens, descendo um carreirinho que levava à Via Ápia, no meio das desigualdades do terreno da campina romana.
            Danglars seguiu o seu guia, sem discussão, e não teve necessidade de se virar para saber que o seguiam mais três homens.
            Pareceu-lhe no entanto que esses homens se detinham como sentinelas a distâncias pouco mais ou menos iguais. Após cerca de dez minutos de caminho, durante os quais Danglars não trocou uma única palavra com o seu guia, encontrou-se entre um cabeço e uma moita de ervas altas.  Três homens de pé e calados formavam um triângulo de que ele era o centro.
            Quis falar, mas a língua embaraçou-se-lhe.
            - Avanti - disse a mesma voz de tom breve e imperioso.
            Desta vez, Danglars compreendeu duplamente: compreendeu pela palavra e pelo gesto, pois o homem que vinha atrás empurrou-o tão rudemente para diante que ele foi de encontro ao guia.
            O guia era o nosso amigo Peppino, que se meteu através das ervas altas por uma sinuosidade que só os furões-bravos e os lagartos seriam capazes de reconhecer como um caminho aberto. Peppino deteve-se diante de uma rocha encimada por uma moita espessa. Essa rocha, entreaberta como uma pálpebra, deu
passagem ao rapaz, que desapareceu nela como desaparecem nos seus alçapões os diabos das nossas mágicas.
            A voz e o gesto do que seguia Danglars “convidaram" o banqueiro a fazer o mesmo. Não havia que duvidar: o falido francês estava as contas com os bandidos romanos.
            Danglars decidiu-se como um homem colocado entre dois perigos terríveis e a quem o medo dá coragem. Apesar de a sua barriga o não ajudar muito a entrar nas grutas da campina de Roma, lá se introduziu atrás de Peppino e, deixando-se escorregar de olhos fechados, conseguiu cair em pé.
            Logo que tocou no solo abriu os olhos.
            O caminho era amplo, mas escuro. Peppino, pouco preocupado em esconder-se, agora que estava em “casa", petiscou fogo e acendeu um archote.
            Mais dois homens desceram atrás de Danglars, formando a retaguarda, os quais, empurrando o banqueiro quando por acaso parava, o fizeram chegar por uma rampa suave ao meio de uma encruzilhada de aspecto sinistro.
            Com efeito, as paredes, escavadas em forma de túmulos sobrepostos, pareciam no meio das pedras brancas, órbitas negras e profundas como as das caveiras.
            Uma sentinela bateu com a mão esquerda no fuste do rostobina.
            - Quem vem lá ? - perguntou a sentinela.
            - Amigo, amigo! - respondeu Peppino. - Onde está o capitão?
            - Ali - respondeu a sentinela, indicando por cima do ombro uma espécie de grande sala aberta na rocha e cuja luz se refletia no corredor através de grandes aberturas arqueadas.
            - Boa presa, capitão; boa presa - disse Peppino em italiano.
            E agarrando Danglars pela gola da redingote, conduziu-o para uma abertura semelhante a uma porta e pela qual se penetrava na sala em que o capitão parecia alojar-se.
            - É esse o homem? - perguntou o capitão, que lia muito atentamente a Vida de Alexandre, de Plutarco.
            - O próprio, capitão; o próprio.
            - Muito bem. Mostre-me.
            Cumprindo esta ordem, Aliás bastante impertinente, Peppino aproximou tão bruscamente o archote do rosto de Danglars que este recuou sobressaltado, para não ficar com as sobrancelhas queimadas. O seu rosto transtornado apresentava todos os indícios de um pálido e abjeto terror.
            - Esse homem está cansado - disse o capitão. - Conduzam-no à sua cama.
            - Oh! - murmurou Danglars. - A cama é provavelmente um dos túmulos escavados na parede e o sono a morte que um dos punhais que vejo cintilar na sombra me vai dar.
            Com efeito, nas profundezas escuras da imensa sala soerguiam-se nas suas camas de ervas secas ou de peles de lobo os companheiros do homem que Albert de Morcerf encontrara a ler os Comentários de César e que Danglars encontrava lendo a Vida de Alexandre.
            O banqueiro soltou um gemido abafado e seguiu o seu guia. Não tentou suplicar nem gritar. Já não tinha nem coragem, nem vontade, nem força, nem sensibilidade; iria para onde o arrastassem. 
            Tropeçou num degrau e, compreendendo que havia uma escada na sua frente, baixou-se instintivamente para não partir a cabeça e encontrou-se numa cela talhada em plena rocha.
            A cela estava limpa, apesar de vazia, e seca, apesar de situada debaixo da terra a uma profundidade incomensurável. Uma cama de ervas secas cobertas de peles de cabra encontrava-se, não erguida, mas estendida, num canto da cela. Ao vê-la, Danglars julgou ver o símbolo radioso da sua salvação.
            - Deus seja louvado, é uma verdadeira cama! - murmurou. Era a segunda vez numa hora que invocava o nome de Deus, coisa que lhe não acontecia havia dez anos.
            - Ecco - disse o guia.
            E empurrou Danglars para dentro da cela e fechou a porta.
            Rangeu um ferrolho, Danglars estava prisioneiro.
            De resto, mesmo que não houvesse ferrolho seria necessário ser S. Pedro e ter por guia um anjo do céu para passar através da guarnição que ocupava as Catacumbas de S. Sebastião e acampava à volta do seu chefe, no qual os nossos leitores já certamente reconheceram o famoso Luigi Vampa.
            Danglars também reconhecera o bandido, em cuja existência não quisera acreditar quando Morcerf tentara descrevê-lo em França. Não só o reconhecera, como também reconhecera a cela em que Morcerf estivera encerrado e que, segundo todas as probabilidades, era o alojamento dos estranhos.
            Estas recordações, nas quais, de resto, Danglars se comprazia com certa satisfação, restituíam-lhe a tranquilidade. Uma vez que o não tinham matado imediatamente, era porque os bandidos não tencionavam mesmo matá-lo.
            Tinham-no capturado para roubar, e como só trazia consigo alguns luíses, lhe exigiriam com certeza algum resgate.
            Recordou-se de que Morcerf fora taxado em qualquer coisa como quatro mil escudos; como se atribuía um aspecto muito mais importante do que Morcerf; fixou pessoalmente no seu espírito que o seu resgate seria de oito mil escudos.
            Oito mil escudos correspondiam a quarenta mil libras.
            Ficava-lhe ainda qualquer coisa como cinco milhões e cinquenta mil francos.
            Com isso, um homem safava-se em qualquer parte.
            Portanto, quase certo de se tirar de apuros, atendendo a que não havia exemplo de alguma vez se ter taxado um homem em cinco milhões e cinquenta mil libras, Danglars deitou-se na sua cama, onde, depois de se virar duas ou três vezes, adormeceu com a tranquilidade do herói cuja história Luigi Vampa estudava.

capítulo CXV


A ementa de Luigi Vampa

            Todo o sono que não seja aquele que Danglars temia tem o seu despertar. Danglars acordou. 
            Para um parisiense habituado aos cortinados de seda, às paredes aveludadas e ao perfume que deita a lenha a arder esbranquiçada na chaminé e que cai das abóbadas de cotim, o acordar numa gruta de pedra gredosa deve ser como que um sonho de mau agouro.
            Ao tocar nas suas cortinas de pele de bode, Danglars devia julgar que dormira com samoiedos ou lapões. Mas em semelhante circunstância, um segundo bastou para transformar a dúvida mais firme em certeza.
            - Sim, sim - murmurou -, estou nas mãos dos bandidos de que nos falou Albert de Morcerf.
            O seu primeiro movimento foi respirar, a fim de se assegurar de que não estava ferido. Era um meio que descobrira no D. Quixote, o único livro, não que tivesse lido, mas de que retivera alguma coisa.
            - Não, não me mataram nem feriram, mas talvez me tenham roubado...
            E levou vivamente as mãos às algibeiras. Estavam intactas: os cem luíses que reservara para a viagem de Roma a Veneza encontravam-se na algibeira das calças e a carteira que continha a carta de crédito de cinco milhões e cinquenta mil francos estava na algibeira da redingote.
            - Singulares bandidos, que me deixam a bolsa e a carteira! Como dizia ontem quando me deitei, vão exigir-me resgate. Olha, também tenho o relógio!... Vejamos que horas são.
            O relógio de Danglars, obra-prima de Bréguet, a que dera cuidadosamente corda na véspera, antes de iniciar a viagem, deu cinco e meia da manhã. Sem ele, Danglars teria ficado completamente às aranhas a respeito das horas, pois a luz não penetrava na sua cela.
            Deveria provocar uma explicação por parte dos bandidos?
            Deveria esperar pacientemente que lha dessem? A última alternativa era a mais prudente. Danglars esperou. Esperou até  ao meio-dia.
            Entretanto, uma sentinela guardara-lhe a porta. Às oito da manhã a sentinela fora rendida.
            Danglars sentira então vontade de ver quem o guardava.
            Notara que raios de luz, não do dia, mas sim de lanterna,  se filtravam através das tábuas da porta mal juntas. Aproximou-se de uma dessas aberturas no preciso momento em que o bandido bebia algumas goladas de aguardente, a qual, devido ao odre de pele que a continha, exalava um cheiro que repugnou
muito a Danglars.      
            - Puf! - exclamou, recuando até  ao fundo da cela.
            Ao meio-dia o homem da aguardente foi substituído por outra sentinela. Danglars teve curiosidade de ver o seu novo guarda e aproximou-se mais uma vez das juntas.
            Aquele era um bandido atlético, um Golias de grandes olhos, lábios grossos e nariz achatado. A cabeleira ruiva pendia-lhe sobre os ombros em madeixas encaracoladas como cobras.
            - Oh, oh, este parece mais um papão do que uma criatura humana! - disse Danglars. - Em todo o caso, sou velho e bastante duro; branco gordo não presta para comer. 
            Como se vê, Danglars tinha ainda suficiente presença de espírito para gracejar. No mesmo instante, como que para lhe provar que não era um papão, o guarda sentou-se diante da porta da cela, tirou da
sacola pão escuro, cebolas e queijo e começou incontinente, a devorá-los.
            - Diabos me levem - disse Danglars, deitando através das fendas da porta uma olhadela ao almoço do bandido -, diabos me levem se compreendo como se podem comer semelhantes porcarias.
            E foi sentar-se nas peles de bode, que lhe recordavam o cheiro da aguardente da primeira sentinela.
            Mas, por mais esquisito que Danglars fosse, os segredos da natureza são incompreensíveis e há muita eloquência em certos convites materiais dirigidos pelas mais grosseiras substâncias aos estômagos em jejum.
            Danglars sentiu de súbito que o seu não tinha fundo naquele momento e achou o homem menos feio, o pão menos negro e o queijo mais fresco.
            Finalmente, as cebolas cruas, horrível alimentação do selvagem, recordaram-lhe certos molhos Robert e certas carnes aceboladas que o seu cozinheiro preparava de forma superior quando Danglars lhe dizia: “Sr. Deniseau, faça-me para hoje um bom pratinho canalha."
            Levantou-se e foi bater à porta.
            O bandido ergueu a cabeça.
            Danglars viu que fora ouvido e insistiu.
            - Che cosa? - perguntou o bandido.
            - Ouça, ouça, amigo - disse Danglars, tamborilando com os dedos na porta –, parece-me que já é tempo de pensarem em dar-me também de comer!
            Mas, fosse por não ter compreendido, fosse por não ter ordens a respeito da alimentação de Danglars, o gigante voltou ao seu almoço.
            Danglars sentiu o seu orgulho ferido e, não querendo mais conversa com o bruto, deitou-se nas suas peles de bode e não disse mais nada.
            Passaram quatro horas e o gigante foi substituído por outro bandido. Danglars, que experimentava horríveis espasmos de estômago, levantou-se devagarinho, aplicou mais uma vez o olho às fendas da porta e reconheceu o rosto inteligente do seu guia.
            Era com efeito Peppino que se preparava para levar a guarda o mais agradavelmente possível sentando-se diante da porta e pousando entre os joelhos um tacho de barro contendo, quentes
e cheirosos, grão e toucinho de fricassé.
            Junto do tacho, Peppino pousou ainda um lindo cesto de uvas de Veletri e uma garrafa de vinho de Orvieto.
            Decididamente, Peppino era um gastrônomo. Ao ver aqueles preparativos gastronômicos, Danglars sentiu crescer-lhe água na boca.
            - Ah, ah! - exclamou o prisioneiro. - Vejamos se este é mais tratável do que o outro...
            E batou delicadamente na porta.
            - Lá vamos - respondeu o bandido, que, devido à frequência da casa de mestre Pastrini, acabara por aprender o francês, incluindo os seus idiotismos.
            De fato, foi abrir. 
            Danglars reconheceu-o como aquele que lhe gritara furioso: “Cabeça para dentro!" Mas não era altura para recriminações. Mostrou, pelo contrário, a seu rosto mais agrável e perguntou com um sorriso gracioso:
            - Perdão, senhor, mas tencionarão não me dar também de jantar?
            - Como, V. Exª  estará por acaso com fome?  - estranhou Peppino.
            - Essa do “por acaso" está boa - murmurou Danglars. - Há precisamente vinte e quatro horas que não como...
            Depois, erguendo a voz, acrescentou:
            - Mas claro, senhor, que tenho fome, e até  muita fome!
            - E V. Exª  quer comer?
            - Imediatamente, se for possível.
            - Nada mais fácil - respondeu Peppino. - Aqui arranja-se tudo o que se queira, pagando, bem entendido, como acontece entre todos os cristãos honestos.
            - Claro! - exclamou Danglars. - Embora, na verdade, as pessoas que nos prendem e conservam prisioneiros devessem ao menos alimentar-nos.
            - Ah, Excelência, não é costume! - perguntou Peppino.
            - Parece-me uma razão muito pouco convincente - volveu-lhe Danglars, que contava amaciar o seu guarda com a sua amabilidade –, mas conformo-me com ela. Então, quando me dão de comer?
            - Imediatamente, Excelência. Que deseja?
            E Peppino pousou o tacho no chão, de tal forma que o fumo subiu diretamente às narinas de Danglars.
            - Vamos, peça!
            - Têm cozinhas aqui? - perguntou o banqueiro.
            - Se temos cozinhas?! Temos cozinhas completas!
            - E cozinheiros?
            - Excelentes!
            - Então, tragam-me um frango, peixe, caça... qualquer coisa, contanto que eu coma.
            - Como V. Ex. queira. Um frango, está bem?
            - Sim, um frango.
            Peppino levantou-se e gritou a plenos pulmões:
            - Um frango para Sua Excelência!
            A voz de Peppino ainda vibrava nas abóbadas e já aparecia um rapaz, belo, esbelto, e seminu como os peixeiros antigos. Trazia um frango numa travessa de prata, frango que se segurava sozinho na cabeça.
            - Parece que estamos no Café de Paris - murmurou Danglars.
            - Pronto, Excelência - disse Peppino, tirando o frango das mãos do jovem bandido e colocando-o em cima de uma mesa carunchosa, que, com um banco e a cama de peles de bode, constituía todo o mobiliário da cela. Danglars pediu um garfo e uma faca.
            - Aqui tem, Excelência - disse Peppino, oferecendo-lhe uma faquita de ponta romba e um garfo de buxo.
            Danglars pegou na faca com unia das mãos e no garfo com a outra e começou a trinchar a ave.
            - Perdão, Excelência - disse Peppino, pousando a mão no ombro do banqueiro –, mas aqui paga-se antes de comer. As pessoas podem não ficar satisfeitas no fim... 
            - Ah, ah, já não é como em Paris, sem contar que provavelmente vão-me esfolar! - exclamou Danglars. - Mas façamos as coisas à grande... Sempre ouvi dizer que a vida é barata na Itália; um frango deve valer doze soldos em Roma... Aqui tem - acrescentou, atirando um luís a Peppino.
            Peppino apanhou o luís e Danglars; aproximou a faca do frango.
            - Um momento, Excelência - disse Peppino, endireitando-se. - Um momento. V. Exª  ainda me fica a dever qualquer coisa...
            - Não dizia eu que me esfolariam? - comentou Danglars para consigo.
            Depois, resolvido a ver até  onde ia a extorsão, perguntou:
            - Vejamos, quanto lhe fico a dever por esta ave esquelética?
            - V. Exª  deu um luís por conta.
            - Um luís por conta de um frango?
            - Sem dúvida, por conta.
            - Bom, bom, não me venha com essa!...
            - V. Exª  fica-me ainda a dever apenas quatro mil novocentos e noventa e nove luíses.
            Danglars esbugalhou os olhos ao ouvir tão gigantesca pilhéria.
            - Muito engraçado, não há dúvida... - murmurou.
            E quis continuar a trinchar o frango. Mas Peppino deteve-lhe a mão direita com a mão esquerda e estendeu a outra mão.
            - Vamos - disse.
            - O quê, não estava brincando?! - perguntou Danglars.
            - Nós nunca brincamos, Excelência - respondeu Peppino, sério como um quacre.
            - Como, cem mil francos este frango?!
            - Excelência, é incrível o trabalho que dá criar galináceos nestas malditas grutas.
            - Está bem, está bem! - atalhou Danglars. - Acho isso muito cômico, muito divertido, na verdade, mas, como tenho fome, deixe-me comer. Olhe, tome lá mais um luís para si, meu amigo.
            - Então agora só fica a dever quatro mil novecentos e noventa e oito luíses - disse Peppino, conservando o mesmo sangue-frio. - Com paciência, chegaremos lá...
            - Oh, quanto a isso - perguntou Danglars, revoltado com aquela perseverança em o desfrutar -, quanto a isso nunca! Vá para o diabo! Não sabe com quem está tratando...
            Peppino fez um sinal, o rapaz estendeu as mãos e retirou rapidamente o frango. Danglars atirou-se para cima da sua cama de peles de bode, Peppino, voltou a fechar a porta e continuou a comer o seu grão com toucinho.
            Danglars não podia ver o que fazia Peppino, mas o bater dos dentes do bandido não devia deixar ao prisioneiro qualquer dúvida acerca do exercício a que se dedicava. Era evidente que comia; embora comesse ruidosamente e como um homem mal educado.
            - Alarve! - gritou Danglars.
            Peppino fez de conta que não ouvira, e sem sequer virar a cabeça continuou a comer com propositada lentidão. Danglars tinha a sensação de ter o estômago furado como o tonel das Danaides e desconfiava que nunca o conseguiria encher.
            No entanto, armou-se de paciência durante mais meia hora; mas é justo dizer que essa meia hora lhe pareceu um século. Levantou-se e dirigiu-se de novo para a porta.
            - Vejamos, senhor, não abusem mais tempo da minha paciência e digam-me imediatamente o que querem de mim
            - Mas, Excelência, diga antes o que quer de nós... Dê-nos as suas ordens e as cumpriremos.
            - Então abra primeiro.
            Peppino abriu.
            - Quero... - começou Danglars. - Irra, quero comer!
            - Tem fome?
            - Bem sabe que tenho.
            - Que deseja comer V. Exª ?
            - Um naco de pão seco, visto os frangos serem demasiado caros nestes malditos subterrâneos.
            - Pão? Seja - concordou Peppino. - Olá, pão! - gritou.
            O rapaz trouxe um pãozinho.
            - Pronto! - disse Peppino.
            - Quanto? - perguntou Danglars.
            - Quatro mil novecentos e noventa e oito luíses. Há dois luíses pagos adiantados.
            - Como, um pão cem mil francos?...
            - Cem mil francos - repetiu Peppino.
            - Mas também me pediu cem mil francos por um frango!
            - Nós não servimos à lista, mas sim a preço fixo. Quer se coma pouco, quer se coma muito, quer se peçam dez pratos, quer se peça só um, paga-se sempre o mesmo.
            - Outra brincadeira! Meu caro amigo, declaro-lhe que tudo isto é absurdo, estúpido! Diga-me de uma vez que querem que morra de fome e acabaremos mais depressa.
            - Mas não, Excelência! V. Exª  é que se quer suicidar... Pague e comerá.
            - Pagar com quê, grande animal? - perguntou Danglars, exasperado. - Julga que alguém traz cem mil francos na algibeira?
            - O senhor traz cinco milhões e cinquenta mil francos na sua, Excelência... - observou Peppino. - Isso dá para cinquenta frangos a cem mil francos e para meio frango a cinquenta mil...
            Danglars estremeceu; a venda caiu-lhe dos olhos: continuavam a brincar com ele, mas finalmente compreendia a brincadeira.
            E até  de justiça que se diga que já a não achava tão chata como pouco antes.
            - Vejamos, vejamos... Se lhes der os cem mil francos ficarei quite e poderei comer à minha vontade?
            - Sem dúvida - respondeu Peppino.
            - Mas como hei-de dá-los? - perguntou Danglars, respirando mais livremente.
            - Nada mais fácil. O senhor tem um crédito aberto na casa Thomson & French, Via dei Banchi, Roma. Dê-nos uma ordem de pagamento de quatro mil  novecentos e noventa e oito luíses sobre esses senhores e o nosso banqueiro a cobrará. Danglars quis ao menos atribuir-se o mérito da boa vontade; pegou na pena e no papel que lhe apresentava Peppino, escreveu a ordem e assinou-a.
            - Pronto, aqui tem a sua ordem ao portador.
            - E o senhor aqui tem o seu frango.
            Danglars trinchou a ave suspirando; parecia-lhe muito magra para tão elevada quantia.
            Quanto a Peppino, leu atentamente o papel, guardou-o na algibeira e continuou a comer o grão.


Capítulo CXVI

O PERDÃO


            No dia seguinte, Danglars voltou a ter fome, o ar daquela caverna abria o apetite. Naquele dia, porém, o prisioneiro julgou que não teria de fazer qualquer despesa, pois, como um homem econômico, escondera metade do frango e um naco de pão num canto da cela.
            Mas, mesmo sem comer, teve sede, coisa com que não contara. Lutou contra a sede até  sentir a língua ressequida pegar-see ao céu-da-boca.
            Então, não podendo resistir mais ao fogo que o devorava, chamou.
            A sentinela abriu a porta; era um rosto novo.
            Pensou que era preferível tratar com um antigo conhecido e chamou Peppino.
            - Aqui me tem, Excelência - disse o bandido, apresentando-se com uma rapidez que pareceu de bom augúrio a Danglars. - Que deseja?
            - Beber - respondeu o prisioneiro.
            - Excelência, como sabe, o vinho é caríssimo nos arredores de Roma... - observou Peppino.
            - Então dê-me  gua - pediu Danglars, procurando aparar a estocada.
            - Oh, Excelência, a água ainda é mais rara do que o vinho! Tem estado uma tal seca!...
            - Pronto, vamos recomeçar, ao que parece... - disse Danglars para consigo.
            E embora sorrindo para ter o ar de gracejar, o desgraçado sentia o suor umedecer-lhe as têmporas.
            - Então, meu amigo - disse Danglars, vendo que Peppino permanecia impassível –, só lhe peço um copo de vinho; será capaz de me recusar?
            - Já lhe disse, Excelência - respondeu gravemente Peppino -, que não vendíamos a retalho.
            - Nesse caso, dê-me uma garrafa.
            - De qual?
            - Do menos caro. 
            - São todos do mesmo preço.
            - E qual é o preço?
            - Vinte e cinco mil francos a garrafa.
            - Será melhor dizerem que me querem arrancar a pele e acabarem depressa com isto do que devorarem-me assim, pedaço a pedaço! - protestou Danglars  com uma amargura que só Harpagão seria
capaz de notar no diapasão da voz humana.
            - É possível - admitiu Peppino - que seja esse o projeto do chefe.
            - Quem é o chefe?
            - Aquele à presença de quem o conduziram anteontem.
            - E onde está ele?
            - Aqui.
            - Gostaria de lhe falar.
            - É fácil.
            Pouco depois, Luigi Vampa estava diante de Danglars.
            - Chamou-me? - perguntou ao prisioneiro.
            - O senhor é que é o chefe das pessoas que me trouxeram para cá?
            - Sou, sim, Excelência.
            - Que resgate deseja de mim? Fale.
            - Apenas os cinco milhões que traz consigo.
            Danglars sentiu um espasmo horrível apertar-lhe o coração.
            - Só tenho isso no mundo, senhor, e é o resto de uma enorme fortuna. Se a tirar, tira-me a vida.
            - Estamos proibidos de derramar o seu sangue, Excelência.
            - Proibidos por quem?
            - Por aquele a quem obedecemos.
            - Obedecem portanto a alguém?
            - Sim, a um chefe.
            - Julgava que o chefe fosse o senhor.
            - Eu sou o chefe destes homens; mas há outro homem que é meu chefe.
            - E esse chefe obedece a alguém?
            - Obedece.
            - A quem?
            - A Deus.
            Danglars ficou um momento pensativo.
            - Não o compreendo - confessou.
            - É possível.
            - E foi esse chefe que lhes mandou tratarem-me assim?
            - Foi.
            - Com que fim?
            - Não sei.
            - Mas a minha bolsa se esgotará ...
            - É provável.
            - Vejamos, quer um milhão? - perguntou Danglars.
            - Não.
            - Dois milhões?
            - Não. 
            - Três milhões? Quatro? Vejamos, quatro? Dou-lhes com a condição de me deixar ir embora.
            - Porque nos oferece quatro milhões pelo que vale cinco? - perguntou Vampa. - Isso é usura, Sr. Banqueiro, ou eu  não percebo nada dessas coisas.
            - Fiquem com tudo! Fiquem com tudo, já disse! - gritou Danglars. - E matem-me!
            - Então, então, acalme-se, Excelência. Assim ativa a circulação do sangue e arranja um apetite que é capaz de comer um milhão por dia... Seja mais econômico, com a breca!
            - E quando não tiver dinheiro para lhes pagar? - gritou Danglars, exasperado.
            - Passará fome...
            - Passarei fome? - repetiu Danglars, empalidecendo.
            - É provável - respondeu fleumaticamente Vampa.
            - Mas o senhor disse que não queriam me matar...
            - E não queremos.
            - Mas querem deixar-me morrer de fome?
            - Não é a mesma coisa.
            - Miseráveis! - gritou Danglars. - Pois eu frustrarei os seus cálculos infames! Morrer por morrer, prefiro morrer já. Façam-me sofrer, torturem-me, matem-me, mas não terão mais a minha assinatura!
            - Como quiser, Excelência - perguntou Vampa.
            E saiu da cela.
            Danglars atirou-se, rugindo, para cima das peles de bode. Quem eram aqueles. homens? Quem era o chefe invisível?  Que projetos tinham a seu respeito? E quando todas as pessoas se podiam resgatar, por que motivo só ele não podia?
            Oh, sim, a morte, uma morte rápida e violenta, era um bom meio de enganar os seus inimigos encarniçados que pareciam submetê-lo a uma vingança incompreensível!
            Pois sim, mas morrer!...
            Talvez pela primeira vez, na sua longa carreira, Danglars pensasse na morte simultaneamente com o desejo e o receio de morrer. Mas chegara para ele o momento de deter a vista no espectro implacável que existe em toda a criatura, que a cada pulsação do coração diz a si mesma: “Morrerá!"
            Danglars assemelhava-se àquelas feras que a caça anima, que depois desespera, e que, à força de desespero, conseguem por vezes salvar-se. Danglars pensou numa evasão.
            Mas as paredes eram a própria rocha; mas na única saída fora da cela um homem lia, e atrás desse homem viam-se passar e repassar sombras armadas de espingarda.
            A sua resolução de não voltar a assinar durou dois dias, passados os quais pediu alimentos e ofereceu um milhão.
            Serviram-lhe um jantar magnífico e levaram-lhe o milhão.
            Desde então, a vida do pobre prisioneiro foi uma divagação perpétua. Sofrera tanto que já não queria expor-se a sofrer e suportava todas as exigências. Passados doze dias, numa tarde em que almoçara como nos seus belos dias de fortuna, fez as suas contas e verificou que passara tantas ordens de pagamento ao portador que já só lhe restavam cinquenta mil francos.
            Então, operou-se nele uma reação estranha: o homem que abrira mão de cinco milhões tentou salvar os cinquenta mil francos que lhe restavam. Em vez de dar esses cinquenta mil francos, resolveu voltar a uma vida de privações e teve momentos de esperança que raiavam a loucura. Ele, que havia tanto tempo
esquecera Deus recordou-o para dizer para consigo que às vezes Deus fazia milagres: que a caverna podia desmoronar-se; que os carabineiros pontifícios podiam descobrir aquele esconderijo maldito e vir em seu socorro; que então ainda lhe restariam cinquenta mil trancos para impedir um homem de morrer de fome.
E pediu a Deus que lhe conservasse os cinquenta mil francos, e enquanto suplicava chorou.
            Passaram-se assim três dias, durante os quais o nome de Deus esteve constantemente, senão no seu coração, pelo menos nos seus lábios. De vez em quando tinha momentos de delírio em que julgava ver, através das janelas, num pobre quarto, um velho agonizar num catre.
            Esse velho também morria de fome.
            Ao quarto dia já não era um homem, era um cadáver vivo.  Apanhara do chão as últimas migalhas das suas antigas refeições e começara a devorar a esteira que cobria o chão.
            Então suplicou a Peppino, como se suplica ao anjo-da-guarda, que lhe desse qualquer coisa de comer, e ofereceu-lhe mil francos por um naco de pão.
            Peppino não respondeu.
            Ao quinto dia arrastou-se até  à entrada da cela.
            - Mas você não é um cristão? - perguntou, erguendo-se nos joelhos. - Quer assassinar um homem que é um irmão perante Deus? Oh, os meus amigos de outros tempos, os meus amigos de outros tempos!... - murmurou.
            E caiu de bruços no chão.
            Depois levantou-se com uma espécie de desespero e gritou:
            - O chefe! O chefe!
            - Aqui estou - disse Vampa, aparecendo de repente. - Que mais deseja?
            - Tome o meu último ouro - balbuciou Danglars estendendo-lhe a carteira - e deixe-me viver aqui, nesta caverna; já não peço a liberdade, só peço que me deixem viver.
            - Sofre muito? - perguntou Vampa.
            - Oh, sim, sofro, e cruelmente!
            - Pois há homens que ainda sofreram mais do que o senhor.
            - Não acredito.
            - Pois pode acreditar. Aqueles que morreram de fome.
            Danglars pensou no velho que, durante as suas horas de alucinação, via através das janelas do seu pobre quarto gemer no seu leito. Bateu com a testa no chão e gemeu.
            - Sim, é verdade, há quem tenha sofrido ainda mais do que eu, mas esses ao menos eram mártires.
            - Está pelo menos arrependido? - perguntou uma voz sombria e solene, que fez eriçar os cabelos na cabeça de Danglars.
            O seu olhar enfraquecido procurou distinguir os objetos e viu atrás do bandido um homem envolto numa capa e oculto na sombra de uma coluna de pedra. 
            - Arrependido de quê? - balbuciou Danglars.
            - Do mal que fez - disse a mesma voz.
            - Oh, sim, estou arrependido, estou arrependido! - gritou Danglars.
            E bateu no peito com o punho emagrecido.
            - Então perdoo-lhe - disse o homem, tirando a capa e dando um passo para se colocar debaixo da luz.
            - O conde de Monte-Cristo! - exclamou Danglars, mais pálido de terror do que estava um momento antes de fome e miséria.
            - Engana-se, não sou o conde de Monte-Cristo.
            - Quem é então?
            - Sou aquele que o senhor vendeu, entregou, desonrou; sou aquele cuja noiva o senhor infamou; sou aquele que o senhor calcou para se erguer até  à fortuna; sou aquele cujo pai o senhor fez morrer de fome, que condenou a morrer de fome, e que no entanto lhe perdoa porque necessita de ser também perdoado, sou Edmond Dantés!
            Danglars soltou apenas um grito e caiu prosternado.
            - Levante-se - disse o conde. - Tem a vida salva. A mesma sorte não tiveram os seus dois outros cúmplices: um enlouqueceu e o outro morreu! Guarde os cinquenta mil francos que lhe restam e que lhe ofereço; quanto aos seus cinco milhões roubados aos hospícios, já foram restituídos por mão desconhecida. E agora coma e beba; esta noite é meu hóspede. Vampa, quando este homem estiver refeito, será livre.
            Danglars permaneceu prosternado enquanto o conde se afastava. Quando levantou a cabeça só viu uma espécie de sombra desaparecer no corredor, diante da qual se inclinavam os bandidos.
            Como o conde ordenara, Danglars foi servido por Vampa, que lhe mandou trazer o melhor vinho e os mais belos frutos da Itália, e que, depois de o meter na sua sege de posta, o abandonou na estrada encostado a uma árvore.
            Ali ficou até amanhecer, ignorando onde estava.
            Quando nasceu o dia, verificou que se encontrava junto de um ribeiro. Tinha sede e arrastou-se até lá.
            Quando se baixou para beber, descobriu que o cabelo lhe embranquecera.


Capítulo CXVII

O 5 de Outubro


            Eram cerca de seis horas da tarde. Uma claridade cor de opala, na qual um belo sol de Outono infiltrava os seus raios dourados, descia do céu sobre o mar azulado.
            O calor do dia extinguira-se gradualmente e começava-se a sentir essa ligeira brisa que parece a respiração da natureza ao acordar depois da sesta ardente do meio-dia, aragem deliciosa que refresca as costas do Mediterrâneo e leva de margem em margem o perfume das árvores de mistura com o cheiro
acre do mar.
            Naquele imenso lago que se estende de Gibraltar aos Dardanelos e de Tunes  a Veneza, um iate ligeiro, de linhas puras e elegantes, navegava entre as primeiras neblinas da noite. O seu movimento lembrava o do cisne que abre as asas ao vento e parece deslizar à superfície da água. Avançava, ao mesmo tempo rápido e gracioso, deixando atrás de si uma esteira fosforescente.
            Pouco a pouco o Sol, cujos últimos raios saudamos, desapareceu no horizonte ocidental; mas, como que para dar razão aos sonhos brilhantes da mitologia, os seus clarões indiscretos, reaparecendo na crista de cada vaga, pareciam revelar que o deus do fogo acabava de se esconder no seio de Anfitrite, que em vão procurava ocultar o amante nas pregas do seu manto azulado.
            O iate avançava rapidamente, embora na aparência houvesse apenas vento suficiente para agitar a cabeleira anelada de uma jovem. De pé, à proa, um homem alto, de rosto bronzeado e olhar fixo, via aproximar-se a terra sob a forma de uma massa sombria disposta em cone, que saía do meio das vagas como um enorme chapéu catalão.
            - É ali Monte-Cristo? - perguntou, numa voz grave e impregnada de profunda tristeza, o viajante às ordens de quem o pequeno iate parecia encontrar-se momentaneamente.
            - É, sim, Excelência - respondeu o patrão. - Estamos chegando.
            - Estamos chegando! - murmurou o viajante, com indefinível acento de melancolia.
            Depois acrescentou em voz baixa:
            - Sim, será  ali o porto...
            E voltou a absorver-se nos seus pensamentos, traduzidos num sorriso mais triste do que as lágrimas.
            Passados alguns minutos distinguiu-se em terra um clarão que se extinguiu imediatamente e chegou até  ao iate o estampido de uma arma de fogo.
            - Excelência - disse o patrão -, é o sinal de terra. Quer responder pessoalmente?
            - Que sinal? - perguntou o interpelado.
            O patrão estendeu a mão para a ilha, nos flancos da qual subia, isolado e esbranquiçado, um grande floco de fumo, que se ia desfazendo e espalhando.
            - Ah, sim, quero! - respondeu como se saísse de um sonho.
            O patrão estendeu-lhe umo rostobina carregada. O passageiro pegou-lhe, levantou-se lentamente e fez fogo para o ar.
            Dez minutos depois colhiam as velas e ancoravam a quinhentos passos de um portinho.
            O escaler estava já no mar, com quatro remadores e o piloto.  O passageiro desceu e, em vez de se sentar à popa, guarnecida para ele de um tapete azul, conservou-se de pé com os braços cruzados. Os  remadores esperavam, com os remos semilevantados, como aves com as asas a secar.
            - Vamos - disse o viajante.
            Os oito remos mergulharam no mar simultaneamente e sem fazerem brotar uma gota de  gua. Depois o escaler, cedendo ao impulso, deslizou rapidamente. Chegaram num instante a uma enseadazinha formada por um recorte natural; o escaler tocou num fundo de areia fina.
            - Excelência - disse o piloto –, suba para os ombros de dois dos nossos homens, que o levarão para terra. 
            O jovem respondeu ao convite com um gesto de completa indiferença, pôs as pernas fora do escaler e deixou-se escorregar para a água, que lhe subiu até  à cintura.
            - Ah, Excelência - murmurou o piloto –, não devia ter feito isso! Assim, o patrão ralha conosco...
            O jovem continuou a avançar para a margem, seguindo dois marinheiros, que escolhiam o melhor fundo.
            Ao cabo de uns trinta passos chegaram a terra. O jovem sacudiu os pés num terreno seco ao mesmo tempo que procurava com os olhos, à sua volta, o caminho que provavelmente lhe iam indicar, pois entretanto anoitecera por completo. No momento em que virava a cabeça pousou-lhe uma mão no ombro e uma voz lê-lo estremecer.
            - Boa noite, Maximilien - disse essa voz. - Foi pontual; obrigado.
            - E o senhor também, conde! - exclamou o jovem, com expressão que parecia de alegria e apertando com ambas as mãos a mão de Monte-Cristo.
            - Sim, como vê, tão pontual como você. Mas está encharcado, meu caro amigo! Tem de mudar de roupa, como diria Calipso a Telemaco. Venha, há por aqui aposentos preparados para você em que esquecerá  fadigas e frio.
            Monte-Cristo viu Morrel virar-se e esperou.
            Com efeito, o jovem via com surpresa que nem uma palavra tora pronunciada por aqueles que o tinham trazido, que lhes não pagara e que no entanto se tinham ido embora. Ouviam-se já, até, os remos do escaler, que regressava ao iatezinho.
            - Procura os seus marinheiros, não é? - perguntou o conde.
            - Sem dúvida. Não lhes dei nada e no entanto foram-se embora.
            - Não se preocupe com isso, Maximilien - perguntou, rindo, Monte-Cristo. - Tenho um contrato com a marinha nos termos do qual o acesso à minha ilha está isento de qualquer direito de transporte e viagem. Tenho uma avença, como dizem nos países civilizados.
            Morrel olhou o conde com espanto.
            - Conde, o senhor já não é o mesmo que era em Paris.
            - Como assim?
            - É verdade. Aqui, o senhor ri.
            A fronte de Monte-Cristo nublou-se de súbito.
            - Fez bem em me chamar a atenção para isso, Maximilien. Tornar a vê-lo foi uma felicidade Para mim e esqueci-me de que toda a felicidade é passageira.
            - Oh, não, não, conde! - exclamou Morrel, pegando de novo nas mãos do amigo. - Pelo contrário, ria, seja feliz, e prove-me com a sua despreocupação que a vida só é má  para aqueles que sofrem. O senhor é caridoso, é bom, é grande, meu amigo, e é para me dar coragem que simula essa alegria.
            - Engana-se, Morrel; de fato, sentia-me feliz.
            - Então, foi porque se esqueceu de mim Tanto melhor!
            - Como assim?
            - Claro! Como dizia o gladiador ao entrar no circo, dirigindo-se ao sublime imperador, também eu lhe digo, meu amigo: “Aquele que vai morrer saúda-te."
            - Não está conformado? - perguntou Monte-Cristo, com um olhar estranho. 
            - Oh! - exclamou Morrel com um olhar cheio de amargura. - Acreditou realmente que isso fosse possível?
            - Ouça - disse o conde. - Compreenda bem as minhas palavras, não é verdade, Maximilien? Não me considera um homem vulgar, um tolo que emite sons vagos e vazios de sentido. Quando lhe pergunto se está conformado, falo-lhe como um homem para quem o coração humano já não tem segredos. Pois bem, Morrel,
desçamos ambos ao fundo do seu coração e o sondemos. Sente ainda essa impaciência ardente e dolorosa que faz saltar o corpo como salta o leão picado pelo mosquito? Continua a experimentar essa sede devoradora que só se extingue na sepultura? Domina-o essa fantasia da saudade que lança o vivo fora da vida em busca da morte? Ou trata-se apenas de prostração, de coragem esgotada, de contrariedade que sufoca o raio de esperança que procura brilhar? Ou da perda da memória que leva à impotência das lágrimas? Oh, meu caro amigo, se é isso, se já não pode chorar, se julga morto o seu coração embotado, se já só tem confiança em Deus, olhares apenas para o céu, então, amigo, ponhamos de parte as palavras, demasiado inexpressivas para o sentido que lhes dá a nossa alma! Maximilien, você está conformado, já não se lamenta.
            - Conde - respondeu Morrel, na sua voz suave e firme ao mesmo tempo. - Conde, ouça-me como se ouve um homem que fala de dedo estendido para a terra e olhos erguidos para o céu: vim ter consigo para morrer nos braços de um amigo. Claro que existem pessoas que amo: amo a minha irmã Julie, amo o seu marido, Emmanuel; mas necessito que se me abram braços fortes e que me sorriam nos meus derradeiros instantes. A minha irmã desataria a chorar e desmaiaria; a veria sofrer e já sofri bastante. Emmanuel me arrancaria a arma das mãos e encheria a casa com os seus gritos. O senhor, conde, de quem tenho a palavra, o senhor, que é mais do que um homem, o senhor, a quem chamaria um deus se não fosse mortal, o senhor me conduzirá suave e ternamente até  às portas da morte, não é verdade?
            - Meu amigo - disse o conde –, ainda me resta uma dúvida: teria tão pouca coragem que fosse capaz de recorrer ao orgulho para exibir a sua dor?
            - Não, veja, sou sincero - respondeu Morrel, estendendo a mão ao conde –, e o meu pulso não bate nem mais depressa nem mais devagar do que de costume. Não, sinto-me no fim do caminho; não, não irei mais longe. Disse-me que esperasse e tivesse esperança; sabe o que fez, pobre sábio que é? Esperei um mês, isto é, sofri um mês! Tive esperança (o homem é uma pobre e miserável criatura), mas esperança em quê? Não sei, em algo desconhecido, absurdo, insensato! Num milagre... mas em qual? Só Deus o pode dizer, ele que juntou à nossa razão essa loucura chamada esperança. Sim, esperei; sim, tive esperança,
conde, e desde que falamos, há um quarto de hora, o senhor, sem o saber, torturou-me, dilacerou-me cem vezes o coração, porque cada uma das suas palavras provou-me que já não existe esperança para mim. Óh conde, como repousarei doce e voluptuosamente na morte!
            Morrel pronunciou as últimas palavras com uma explosão de energia que fez estremecer o conde.
            - Meu amigo - continuou Morrel, vendo que o conde se calava –, indicou-me o dia 5 de Outubro como termo do prazo que me pediu... Meu amigo, é hoje o dia 5 de Outubro... 
            Morrel puxou do relógio.
            - São nove horas, ainda tenho três horas de vida.
            - Seja - respondeu Monte-Cristo. - Venha.
            Morrel seguiu maquinalmente o conde. Estavam já na gruta mas Maximilien ainda não dera por isso.
            Encontrou tapetes debaixo dos pés; uma porta abriu-se, sentiu-se envolto em perfumes e uma luz viva feriu-lhe os olhos. Morrel parou, hesitou em avançar; desconfiava das delícias excitantes que o rodeavam.
            Monte-Cristo puxou-o suavemente.
            - Não será melhor empregarmos as três horas que nos restam como os antigos romanos, que, condenados por Nero, seu imperador e seu herdeiro, se sentavam à mesa coroados de flores e aspiravam a morte com o perfume dos heliotrópios e das rosas?
            Morrel sorriu.
            - Como queira - disse. - A morte é sempre a morte, isto é, o esquecimento; isto é, o repouso; isto é, a ausência da vida e por conseguinte da dor.
            Sentou-se e Monte-Cristo sentou-se diante dele. Encontravam-se na maravilhosa sala de jantar que já descrevemos e em que estátuas de mármore traziam à cabeça cestas cheias de flores e de frutos. Morrel olhara tudo vagamente e era provável que não tivesse visto nada.
            - Conversemos como homens - disse, olhando fixamente o conde.
            - Fale - respondeu Monte-Cristo.
            - Conde - prosseguiu Morrel –, o senhor reúne em si todos os conhecimentos humanos e dá-me a impressão de provir de um mundo mais avançado e adiantado do que o nosso.
            - Há um pouco de verdade nisso, Morrel - respondeu o conde, com o sorriso melancólico que lhe ficava tão bem - Provenho de um planeta chamado dor.
            - Acredito em tudo o que o senhor me diz sem procurar aprofundar-lhe o sentido, conde; e a prova é que o senhor me disse que vivesse e eu tenho vivido; que me disse que tivesse esperança e eu quase tenho tido esperança. Ousarei portanto perguntar-lhe, como se o senhor já tivesse morrido uma vez: conde, custa muito?
            Monte-Cristo fitava Morrel com indefinível expressão de ternura.
            - Sim - respondeu. - Sim, sem dúvida, custa muito se quebrarmos brutalmente o invólucro mortal que deseja obstinadamente viver. Se fizermos gritar a nossa carne nos dentes imperceptíveis de um punhal. Se furarmos com uma bala ininteligente e sempre pronta a enganar-se no caminho o nosso cérebro, que o mais pequeno choque magoa. Claro que sofrerá e deixará odiosamente a vida, que no meio da sua agonia
desesperada lhe parecerá melhor do que um repouso adquirido tão caro.
            - Sim, compreendo - disse Morrel. - A morte, como a vida, tem os seus segredos de dor e volúpia: o principal é desvendá-los.
            - Exatamente, Maximilien; acaba de dizer a palavra certa. A morte é, conforme o cuidado que ponhamos em nos darmos bem ou mal com ela, ou uma amiga que nos embala tão suavemente como
uma ama, ou uma inimiga que nos arranca violentamente a alma do corpo. Um dia, depois de o nosso mundo viverá mais um milhar de anos, quando dominarmos todas as forças destrutivas da natureza para as pormos ao serviço do bem-estar geral da humanidade; quando o homem conhecer, como você dizia há pouco,
os segredos da morte, a morte se tornará tão agradável e voluptuosa como o sono saboreado nos braços da nossa bem-amada.
            - E se o senhor quisesse morrer, conde, saberia morrer assim?
            - Saberia.
            Morrel estendeu-lhe a mão.
            - Compreendo agora por que motivo me marcou encontro aqui, nesta ilha desolada, no meio do mar, neste palácio subterrâneo, sepulcro capaz de fazer inveja a um faraó: foi porque gosta de mim, não é verdade, conde? Foi por gostar de mim o suficiente para me dar uma dessas mortes de que me falava há pouco, uma morte sem agonia, uma morte que me permitirá morrer pronunciando o nome de Valentine e apertando
a sua mão, conde?
            - Sim, adivinhou, Morrel - respondeu o conde com simplicidade.
            - E é assim que eu a entendo.
            - Obrigado. A idéia de que amanhã já não sofrerei é agradável ao meu pobre coração.
            - Não leva saudades de ninguém? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não - respondeu Morrel.
            - Nem mesmo de mim? – insistiu o conde, com profunda emoção.
            Morrel deteve-se. Os seus olhos tão puros embaciaram-se de súbito; depois brilhou neles um relâmpago desusado e uma grossa lágrima brotou e rolou, deixando-lhe um sulco prateado na face.
            - O quê, leva uma saudade da Terra e quer morrer?! - observou o conde.
            - Suplico-lhe - pediu Morrel em voz fraca –, nem mais uma palavra, conde; não prolongue o meu suplício!
            O conde julgou que Morrel traquejava.
            Esta impressão momentânea ressuscitou em si a horrível dúvida já vencida uma vez no castelo de If.
            “Procuro", pensou, “restituir a felicidade a este homem e encaro essa restituição como um peso posto na balança para equilibrar o prato onde coloquei o mal. Mas se me enganasse, se este homem não fosse suficientemente infeliz para merecer a felicidade? Que seria de mim, que só posso esquecer o mal praticando o bem?"
            - Escute, Morrel: a sua dor é enorme, bem vejo; mas no entanto você crê em Deus e não quer arriscar a salvação da sua alma...
            Morrel sorriu tristemente.
            - Conde, bem sabe que não faço poesia a frio; mas juro-lhe que a minha alma já não me pertence.
            - Ouça, Morrel: não tenho nenhum parente no mundo, como sabe. Habituei-me a olhá-lo como um filho. Pois bem, para salvar o meu filho sacrificaria a vida e com mais forte razão a fortuna.
            - Que quer dizer?
            - Quero dizer, Morrel, que você quer deixar a vida porque não conhece todos os prazeres que a vida permite a uma grande fortuna. Morrel, possuo cerca de cem milhões; dou-lhes. Com semelhante fortuna, poderá alcançar todos os resultados que se propuser. E ambicioso? Todas as carreiras lhe estarão abertas.
Revolva o mundo, mude-lhe a face, entregue-se a práticas insensata, seja criminoso se for preciso, mas viva.
            - Conde, tenho a sua palavra - respondeu friamente Morrel; e acrescentou, tirando o relógio: - São onze e meia.
            - Morrel! Pensa morrer diante dos meus olhos, na minha casa?
            - Então, deixe-me partir - perguntou Maximilien sombriamente - ou julgarei que não gosta de mim por mim, mas sim por si.
            E levantou-se.
            - Está bem - disse Monte-Cristo, cujo rosto se desanuviou ao ouvir aquelas palavras. - Você assim o quer, Morrel, e é inflexível sim, é profundamente infeliz e, como disse, só um milagre o poderia curar. Sente-se, Morrel, e espere.
            Morrel obedeceu. Monte-Cristo levantou-se por seu turno e foi buscar a um armário cuidadosamente fechado e de que trazia a chave suspensa de uma corrente de ouro uma caixinha de prata maravilhosamente esculpida e cinzelada, cujos cantos representavam quatro figuras curvadas, semelhantes a essas cariátides de ar desolado, figuras de mulheres, símbolos de anjos que aspiram ao céu.
            Pousou a caixinha em cima da mesa.
            Depois abriu-a e tirou outra caixinha de ouro cuja tampa se levantava comprimindo uma mola secreta.
            Esta caixa continha uma substância gordurosa, meio sólida e de cor indefinível graças ao reflexo do ouro polido, das safiras, dos rubis e das esmeraldas que guarneciam a caixa. Era como que uma cintilação de azul, púrpura e ouro.
            O conde tirou uma pequena quantidade da tal substância com uma colher de prata dourada e ofereceu-a a Morrel, fitando-o longamente.
            Viu-se então que a substância era esverdeada.
            - Aqui tem o que me pediu - disse. - Aqui tem o que lhe prometi.
            - Ainda vivo - disse o jovem tomando a colher das mãos de Monte-Cristo –, agradeço-lhe do fundo do meu coração.
            O conde pegou outra colher e meteu-a na caixa de ouro.
            - Que vai fazer, meu amigo? - perguntou Morrel, detendo-lhe a mão.
            - Palavra, Morrel - disse-lhe sorrindo –, creio, Deus me perdoe, que também estou tão cansado da vida como você, e uma vez que se apresenta a oportunidade...
            - Pare! - gritou o rapaz. - Oh, o senhor que ama e é amado, o senhor que tem a fé da esperança!... Oh, não faça isso! Da sua parte seria um crime. Adeus, meu nobre e generoso amigo, vou dizer a Valentine tudo o que fez por mim.
            E lentamente, sem nenhuma hesitação, com uma pressão da mão esquerda que estendia ao conde, Morrel engoliu, ou antes saboreou a misteriosa substância oferecida por Monte-Cristo.
            Então, ambos se calaram. Ali, silencioso e atento, trouxe o tabaco e os narguilés, serviu o café e desapareceu.
            Pouco a pouco as lanternas empalideceram nas mãos das estátuas de mármore que as empunhavam e o perfume dos defumadores pareceu menos penetrante a Morrel. Sentado diante de Monte-Cristo, que o olhava do fundo da sombra, Morrel via apenas brilhar os olhos do conde. 
            Uma dor imensa apoderou-se do jovem; sentia o narguilé fugir-lhe das mãos; os objetos perdiam insensivelmente a forma e a cor; os seus olhos nublados viam abrir-se como que portas e reposteiros na parede.
            - Amigo, sinto que morro; obrigado.
            Fez um esforço para lhe estender a mão pela última vez, mas a mão, sem força, caiu junto dele.
            Então pareceu-lhe que Monte-Cristo sorria, não já com o seu riso estranho e assustador, que várias vezes lhe deixara entrever os mistérios daquela alma profunda, mas sim com a benevolente compaixão que os pais têm para com os filhos pequenos que fazem disparates.
            Ao mesmo tempo, o conde cresceu a seus olhos; a sua figura, quase duas vezes mais alta, desenhava-se nas tapeçarias vermelhas. Atirara para trás os cabelos negros e surgia de pé e orgulhoso como um desses anjos com que se ameaçam os maus no dia do Juízo Final.
            Vencido, dominado, Morrel caiu numa poltrona; um torpor suave insinuou-se-lhe nas veias. Uma mutação de idéias enriqueceu-lhe por assim dizer o cérebro, tal como uma nova disposição de desenhos enriquece o caleidoscópio.
            Deitado, nervoso, arquejante, Morrel não sentia mais nada vivo em si do que esse sonho; parecia-lhe entrar a todo o pano no vago delírio que precede esse outro desconhecido chamado morte.
            Tentou mais uma vez estender a mão ao conde, mas desta feita a mão nem sequer se mexeu; quis articular um supremo adeus, mas a língua enrolou-se-lhe pesadamente na boca, como uma pedra que fechasse um sepulcro.
            Os seus olhos carregados de languidez fecharam-se, mal-grado seu. Contudo, atrás das pálpebras agitava-se uma imagem, que reconheceu apesar da escuridão que julgava envolvê-lo. Era o conde que acabava de abrir uma porta.
            Imediatamente unia imensa claridade que brilhava numa sala contígua, ou antes num palácio maravilhoso, inundou a sala onde Morrel se entregava à sua suave agonia. Então viu aparecer no limiar da sala, no limite dos dois aposentos, uma mulher de uma beleza maravilhosa.
            Pálida e suavemente sorridente, parecia o anjo da misericórdia conjurando o anjo das vinganças.
            - Será já o céu que se abre para mim? - murmurou o moribundo. - Este anjo parece-se com o que perdi...
            Monte-Cristo indicou com o dedo à jovem o sofá onde repousava Morrel. Ela dirigiu-se para ele, de mãos postas e com um sorriso nos lábios.
            - Valentine! Valentine! - gritou Morrel do fundo da alma.
            Mas a sua boca não proferiu um som; e como se todas as suas forças estivessem unidas naquela emoção interior, suspirou e fechou os olhos. Valentine precipitou-se para ele.
            Os lábios de Morrel esboçaram ainda um movimento.
            - Chama-a - disse o conde. - Chama-a do fundo do seu sono aquele a quem confiara o seu destino e de quem a morte a quis separar. Mas por sorte eu estava lá e venci a morte!  Valentine, daqui em diante não devem separar-se mais na Terra; porque para a tornar a ver ele precipitava-se na sepultura. Sem mim, morreriam ambos; restituo-os um ao outro. Assim possa ter em conta a meu favor estas duas existências que salvo!
            Valentine pegou na mão de Monte-Cristo e, num impulso de alegria irresistível, levou-a aos lábios.
            - Oh, agradeça-me muito! - pediu o conde. - Repita-me, sem se cansar de me repetir, repita-me que a tornei feliz? Não imagina quanto necessito dessa certeza.
            - Sim, sim, agradeço-lhe de toda a minha alma - respondeu Valentine. - E se dúvida da sinceridade dos meus agradecimentos, pergunte a Haydée, interrogue a minha querida irmã Haydée, que desde a nossa partida de França me tem feito esperar pacientemente, falando-me do senhor pelo feliz dia que brilha hoje por mim.
            - Ama então Haydée? - perguntou Monte-Cristo, com uma emoção que em vão se esforçava por dissimular.
            - Oh, com toda a minha alma!
            - Nesse caso, escute, Valentine - disse o conde. - Tenho um pedido a fazer-lhe.
            - A mim, Santo Deus? Merecerei tamanha felicidade?...
            - Merece, sim. Chamou a Haydée sua irmã; que ela seja sua irmã de fato, Valentine. Pague-lhe a ela tudo o que julga dever-me a mim. Protejam-na, Morrel e a menina, porque... - a voz do conde quase lhe morreu na garganta - no futuro ela estará sozinha no mundo.
            - Sozinha no mundo! - repetiu uma voz atrás do conde. - E porquê?
            Monte-Cristo virou-se.
            Haydée estava ali, de pé, pálida e siderada, a olhar o conde com uma expressão de mortal espanto.
            - Porque amanhã, minha filha, será, livre - respondeu o conde. - Porque retomará no mundo o lugar que te é devido. Porque não quero que o meu destino obscureça o teu. Filha de príncipe, restituo-te as riquezas e o nome do teu pai!
            Haydée empalideceu, abriu as mãos diáfanas como faz a virgem que se encomenda a Deus e perguntou, com a voz embargada pelas lágrimas:
            - Quer dizer, meu senhor, que me deixa?
            - Haydée! Haydée! É jovem e bela; esquece inclusivamente o meu nome e seja feliz.
            - Está bem - respondeu Haydée –, as suas ordens serão cumpridas, meu senhor; esquecerei inclusivamente o seu nome e serei feliz.
            E deu um passo atrás para se retirar.
            - Oh, meu Deus! - exclamou Valentine, amparando no ombro a cabeça adormecida de Morrel. - Não vê como ela está pálida, não compreende como ela sofre?
            Haydée perguntou-lhe com uma expressão pungente:
            - Como quer que me compreenda, minha irmã? Ele é o meu senhor e eu sou sua escrava; tem o direito de não ver nada.
            O conde estremeceu ao ouvir o tom desta voz, que fez vibrar mesmo as fibras mais íntimas do seu coração. Os seus olhos encontraram os da jovem e não puderam suportar-lhe o brilho.
            - Meu Deus, meu Deus, será então verdade o que me deixaste suspeitar? Haydée, seria feliz se me não deixasse?
            - Sou nova - respondeu ela meigamente –, amo a vida que sempre me tornaste tão agrável, e lamentaria morrer. 
            - Quer dizer que se te deixasse, Haydée...
            - Morreria, meu senhor, morreria!
            - Amas-me então?
            - Oh, Valentine, pergunta-me se o amo! Valentine, diga-lhe você se ama Maximilien!
            O conde sentiu o peito dilatar-se, e com ele o coração.  Abriu os braços e Haydée soltou um grito e lançou-se neles.
            - Oh, sim, te amo! - exclamou a jovem. - Te amo-te como se ama um pai, um irmão e um marido! Te amo como se ama a vida, como se  ama Deus, porque é para mim o mais belo, o melhor e o maior dos seres da criação!
            - Seja então feita a sua vontade, meu anjo querido - respondeu o conde. - Deus, que me instigou contra os meus inimigos e me tornou vingador, Deus, bem o vejo, não quer que haja arrependimento no fim da minha vitória. Queria castigar-me; Deus quer perdoar-me. Ama-me, pois, Haydée! Quem sabe, talvez o teu amor me faça esquecer o que devo esquecer.
            - Que quer dizer com isso, meu senhor? - perguntou a jovem.
            - Quero dizer que uma palavra tua, Haydée, me esclareceu mais do que vinte anos da minha lenta aprendizagem. Só tenho a você no mundo, Haydée; por você volto a prender-me à vida, por você posso sofrer, por você posso ser feliz.
            - Ouve-o, Valentine? - atalhou Haydée. - Diz que pode sofrer por mim! Por mim, que daria a vida por ele!
            O conde recolheu-se um instante.
            - Entrevi a verdade? Meu Deus, não importa! Recompensa ou castigo, aceito o meu destino. Vem, Haydée, vem...
            E passando o braço à roda da cintura da jovem, apertou a mão a Valentine e saiu.
            Passou cerca de uma hora, durante a qual, arquejante, calada, de olhos fixos, Valentine permaneceu junto de Morrel. Por fim, sentiu o coração dele bater, um sopro imperceptível abrir-lhe os lábios e o leve frêmito que anuncia o regresso à vida percorreu todo o corpo do jovem.
            Por fim abriu os olhos, ao princípio fixos e como que enlouquecidos; depois, a vista voltou-lhe, precisa, real, e com a vista a sensação e com a sensação a dor.
            - Oh, ainda estou vivo, o conde enganou-me! - exclamou com acento de desespero.
            E a sua mão estendeu-se para a mesa e pegou numa faca.
            - Amigo - disse Valentine, com o seu sorriso adorável – acorda e olha para mim.
            Morrel soltou um grande grito e delirante, cheio de dúvidas, mas deslumbrado como que por uma visão celeste, caiu de joelhos.
            No dia seguinte, ao amanhecer, Morrel e Valentine passeavam de braço dado na margem. Valentine contou a Morrel como Monte-Cristo aparecera no seu quarto, como lhe revelara tudo, como lhe fizera tomar conhecimento do crime e finalmente como a salvara miraculosamente da morte conseguindo que tudo
fizesse crer que estava de fato morta.
            Tinham encontrado aberta a porta da gruta e saído; no céu brilhavam no azul matinal as últimas estrelas da noite. Então Morrel viu na penumbra de um grupo de rochedos um homem que esperava um sinal para avançar e indicou esse homem a Valentine. 
            - É Jacopo, o comandante do iate - disse ela. E chamou-o com um gesto.
            - Tem alguma coisa para nos dizer? - perguntou Morrel. - Devo entregar-lhes esta carta da parte do conde.
            - Do conde?... - murmuraram os dois jovens.
            - Sim, leiam.
            Morrel abriu a carta e leu:

            Meu caro Maximilien:
            Há um falucho ancorado à disposição de ambos. Jacopo os levará a Liorne, onde o Sr. Noirtier espera a neta para a abençoar antes de ela o acompanhar ao altar. Tudo o que se encontra nessa gruta, meu amigo, bem como a minha casa dos Campos Elísios e o meu palacete de Tréport, são o presente de casamento de Edmond Dantés ao filho do seu patrão Morrel. Mademoiselle de Villefort poderá ficar com metade, pois suplico-lhe que dê aos pobres de Paris toda a fortuna do lado do pai, que enlouqueceu, e do lado do irmão, falecido em Setembro último juntamente com a mãe.
            Diga ao anjo que vai velar pela sua vida, Morrel, que reze algumas vezes por um homem que, qual Satanás, se julgou por momentos igual a Deus e que reconheceu, com toda a humildade de um cristão, que só nas mãos de Deus se encontram o poder supremo e a infinita sabedoria. Talvez essas preces suavizem o remorso que ele traz no fundo do coração.
            Quanto a si, Morrel, aqui tem todo o segredo da minha conduta para consigo: não existe felicidade nem infelicidade neste mundo, existe apenas a comparação de um estado com outro e mais nada. Só aquele que experimentou o extremo infortúnio se encontra apto a experimentar a extrema felicidade. É necessário ter querido morrer, Maximilien, para saber como é bom viver.
            Vivam pois e sejam felizes, filhos queridos do meu coração, e nunca esqueçam que até  ao dia em que Deus se dignar desvendar o futuro ao homem, toda a sabedoria humana residirá nestas palavras:
            Esperar e ter esperança!
            Seu amigo,
            Edmond Dantés,
            Conde de Monte-Cristo.

            Durante a leitura desta carta, que lhe revelava a loucura do pai e a morte do irmão - morte e loucura que ignorava -, Valentine empalideceu, escapou-lhe um doloroso suspiro do peito, e lágrimas, que não eram menos pungentes por serem silenciosas, rolaram-lhe pelas faces. A sua felicidade saía-lhe muito cara.
            Morrel olhou à sua volta com inquietação.
            - Mas... na verdade, o conde exagera a sua generosidade; Valentine se contentará com a minha modesta fortuna. Onde está o conde, meu amigo? Leve-me à sua presença.
            Jacopo estendeu a mão para o horizonte. 
            - O quê! Que quer dizer? - perguntou Valentine. - Onde está o conde? Onde está Haydée?
            - Vejam - respondeu Jacopo.
            Os olhos dos dois jovens fixaram-se na linha indicada pelo marinheiro, e nessa linha de um azul-escuro que separava no horizonte o céu do Mediterrâneo viram uma vela branca do tamanho das asas de uma gaivota.
            - Partiu! - exclamou Morrel. - Partiu! Adeus, meu amigo, meu pai!
            - Partiu! - murmurou Valentine. - Adeus, minha amiga!  Adeus, minha irmã!
            - Quem sabe se alguma vez os tornaremos a ver? - observou Morrel, limpando uma lágrima.
            - Meu amigo - disse Valentine –, o conde não acaba de nos dizer que a sabedoria humana reside por completo nestas palavras: Esperar e ter esperança!

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