quarta-feira, 18 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 21 ao 30

Capítulo XXI

A Ilha de Tiboulen


            Apesar de aturdido e quase asfixiado, Dantés teve no entanto a presença de espírito de conter a respiração, e como segurava na mão direita, visto como já dissemos estar preparado para todas as eventualidades, a faca que herdara de Faria, esventrou rapidamente o saco e tirou um braço e depois a
cabeça. No entanto, apesar dos seus movimentos para levantar o pelouro, continuou a sentir-se arrastado. Então, curvou-se, procurou a corda que lhe amarrava as pernas e, num esforço supremo, cortou-a  precisamente no momento em que sufocava. Em seguida, com um vigoroso golpe de pés, subiu livre à
superfície do mar, enquanto o pelouro arrastava para profundezas desconhecidas o tecido grosseiro que por pouco não se transformara na sua mortalha.
            Dantés demorou-se na superfície apenas o tempo indispensável para respirar antes de mergulhar uma segunda vez. Porque a primeira precaução que devia tomar era evitar que o vissem.
            Quando reapareceu pela segunda vez encontrava-se já a cinquenta passos, pelo menos do local da queda. Viu por cima da cabeça um céu negro e tempestuoso, à superfície do qual o vento varria algumas nuvens rápidas. Por vezes descobria uma pontinha de azul realçada por uma estrela. Diante de si estendia-se a superfície sombria e murmurante, cujas vagas começavam a aumentar como à aproximação de uma tempestade, ao passo que atrás de si, mais negro do que o mar, mais negro do que o céu, se erguia como um fantasma ameaçador o gigante de granito, cuja extremidade sombria parecia um braço estendido para voltar a agarrar a sua presa. Na rocha mais alta estava uma lanterna que iluminava duas sombras.
            Pareceu-lhe que essas duas sombras se inclinavam para o mar com inquietação. De fato, aqueles estranhos fogueiros deviam ter ouvido o grito que soltara ao atravessar o espaço. Dantés voltou portanto a mergulhar e fez um trajeto bastante longo entre duas águas. Esta manobra era-lhe outrora familiar e atraia habitualmente à sua volta, na enseada do Pharo, numerosos admiradores, os quais o tinham proclamado muitas vezes o mais hábil nadador de Marselha,
            Quando tornou à superfície do mar, a lanterna desaparecera.
            Precisava se orientar. De todas as ilhas que rodeavam o Castelo de If, Ratonneau e Pommêgue eram as mais próximas. Mas Ratonneau e Pommêgue eram habitadas e o mesmo acontecia com a ilhazinha de Daume. As ilhas mais seguras eram portanto as de Tibouien e Lemaire, mas as ilhas de Tibouien e Lemaire ficavam a uma légua do Castelo de If.
            Dantés nem por isso desistiu de alcançar uma dessas ilhas. Mas como encontrá-las no meio da noite que se adensava a cada instante à sua volta?
            Nesse momento, viu brilhar como uma estrela o farol de Planier.
            Dirigindo-se em linha recta para o farol, deixaria a ilha de Tibouien um pouco à esquerda; derivando portanto um bocadinho para a esquerda, deveria encontrar essa ilha no seu caminho.
            Mas, como já dissemos, ia pelo menos uma légua do Castelo de If a Tibouien.
            Muitas vezes, na prisão, Faria repetia ao rapaz, ao vê-lo abatido e preguiçoso: “Dantés, não se entregue a esse amolecimento. Se afogará se tentar fugir e não tiver os músculos bem treinados."
            Através das ondas pesadas e salgadas estas palavras vieram soar aos ouvidos de Dantés. Apressara-se então a vir à superfície e a fender as vagas para ver se efetivamente não perdera as forças. Verificou com alegria que a sua inação forçada lhe não roubara nada da sua pujança e da sua agilidade e sentiu que continuava a dominar o elemento onde toda a infância brincara.
            De resto o medo, esse rápido perseguidor, duplicava o vigor de Dantés. Inclinado sobre a crista das ondas, escutava se algum rumor lhe chegava aos ouvidos. Todas as vezes que se erguia na extremidade de uma vaga, o seu olhar rápido abarcava o horizonte visível e procurava penetrar na espessa escuridão. Cada onda um pouco mais alta do que as outras parecia-lhe um barco em sua perseguição, e então redobrava de esforços, que o afastavam sem dúvida, mas cuja repetição rapidamente lhe esgotaria as forças.
            Continuava porém a nadar, embora o castelo terrível estivesse já um pouco diluído no vapor noturno. Porque apesar de o não distinguir, não deixava de senti-lo constantemente.
            Passou-se uma hora durante a qual Dantés, exaltado pelo sentimento da liberdade que invadira toda a sua pessoa, continuou a fender as vagas na direcção que se marcara.
            “Vejamos", dizia para consigo, “há  perto de uma hora que nado, mas como o vento me é contrário devo ter perdido um quarto da minha rapidez. No entanto, a menos que me tenha enganado no rumo, já não devo estar longe de Tibouien... Mas se me enganei?"
            Um arrepio percorreu todo o corpo do nadador. Tentou deitar-se de prancha para descansar; mas o mar era cada vez mais forte e não tardou a compreender que esse meio de recuperar forças, com o qual contara, era impossível.
            “Pronto, seja!", pensou. “Irei até  ao fim, até  os meus braços se cansarem, até  às caibras me invadirem o corpo, e depois me deixarei ir ao fundo!"
            E desatou a nadar com a energia e a velocidade do desespero.
            De súbito, pareceu-lhe que o céu, já de si tão escuro, se tornava ainda mais negro, que uma nuvem espessa, pesada, compacta, descia na sua direção. Ao mesmo tempo sentiu uma dor violenta num joelho. A imaginação, com a sua incalculável velocidade, disse-lhe então que se tratava do choque de uma bala e que ia ouvir imediatamente a explosão do tiro de espingarda. Mas a explosão não soou. Dantés estendeu a mão e
sentiu uma resistência, encolheu a outra perna e tocou em terra. Descobriu então qual era o objeto que tomara por uma nuvem.
            A vinte passos de si erguia-se uma massa de rochedos estranhos, que se tomaria por uma lareira imensa petrificada no momento da sua mais ardente combustão: era a ilha de Tibouien.
            Dantés levantou-se, deu alguns passos em frente e deitou-se, agradecendo a Deus, naquelas pontas de granito que lhe pareceram naquela altura mais macias do que jamais lhe parecera o leito mais macio. 
            Depois, apesar do vento, apesar da tempestade, apesar da chuva que principiava a cair, quebrado de fadiga como estava, adormeceu, mergulhou nesse sono delicioso do homem que tem o corpo entorpecido, mas cuja alma vela com a consciência de uma felicidade inesperada.
            Uma hora depois, Dantés acordou ao som de um enorme trovão. A tempestade desencadeara-se no espaço e fustigava o ar com o seu chicote deslumbrante. De vez em quando, um relâmpago descia do céu como uma serpente de fogo e iluminava as vagas e as nuvens que rolavam ao encontro umas das outras como as vagas de um imenso caos.
            Com o seu olho de marinheiro, Dantés não se enganara: abordara a primeira das duas ilhas, que era efetivamente a de Tibouien. Sabia que era escalvada, deserta e sem possibilidade de oferecer o mais pequeno asilo; mas quando a tempestade se acalmasse voltaria a fazer-se ao mar e alcançaria a nado a
ilha Lemaire, também árida, mas mais ampla, e consequentemente mais hospitaleira.
            Uma rocha inclinada ofereceu-lhe abrigo momentâneo. Dantés refugiou-se debaixo dela e quase imediatamente a tempestade rebentou em todo o seu furor.
            Edmond sentia tremer a rocha sob a qual se abrigava. As vagas quebravam-se contra a base da gigantesca pirâmide e ricocheteavam até  ele. Por mais em segurança que estivesse, encontrava-se no centro daquele ruído profundo, no meio daqueles deslumbramentos fulgurantes, dominado por uma espécie
de vertigem. Afigurava-se-lhe que a ilha tremia debaixo dele e que de um momento para o outro, como um navio ancorado, quebraria as amarras e seria arrastada para o meio do imenso turbilhão.
            Lembrou-se então que não comia havia vinte e quatro horas: tinha fome e sede.
            Dantés estendeu as mãos e a cabeça e bebeu a água da tempestade na cavidade de uma rocha.
            Quando ia se levantar, um relâmpago que pareceu fender o céu até junto do trono deslumbrante de Deus iluminou o espaço. A luz desse relâmpago, entre a ilha Lemaire e o cabo Croisille, a um quarto de légua de distância, Dantés viu aparecer, como um espectro deslizando do alto de uma vaga para o abismo, um
barquito de pesca arrastado simultaneamente pela tempestade e pelas ondas. Um segundo mais tarde, na crista doutra vaga, o fantasma reapareceu e aproximou-se com assustadora rapidez. Dantés; quis gritar, procurou qualquer trapo que pudesse agitar no ar para lhes avisar que iam se despedaçar, mas eles próprios viam-no perfeitamente. à luz doutro relâmpago o rapaz viu quatro homens agarrados aos mastros e aos estais; um quinto mantinha-se agarrado à barra do leme quebrado. Aqueles homens que via e que o viam, sem dúvida, soltavam gritos desesperados, trazidos pelo vento sibilante, que lhe ferira o ouvido. No cimo do mastro, torcido como uma cana, batia no ar, em pancadas precipitadas, uma vela em farrapos. De súbito, as
cordas que ainda a prendiam quebraram-se e ela desapareceu, arrebatada para as sombrias profundezas do céu, semelhante a essas grandes aves brancas que se desenham sobre nuvens negras.
            Ao mesmo tempo, ouviu-se um estalido medonho e gritos de agonia chegaram até  Dantés. Agarrado como uma esfinge ao seu rochedo, donde mergulhava no abismo, um novo relâmpago mostrou-se o barquito quebrado e no meio dos destroços cabeças de rostos desesperados e braços estendidos para o céu.
            Depois, tudo desapareceu na noite; o terrível espetáculo tivera a duração de um relâmpago.
            Dantés precipitou-se pelo declive deslizante dos rochedos, com risco de cair ele próprio ao mar Olhou e escutou, mas não ouviu nem viu mais nada; tinham acabado os gritos e os esforços humanos. Só a tempestade, essa grande obra de Deus, continuava a rugir com os ventos e a espumar com as vagas.
            Pouco a pouco o vento amainou e o céu cobriu-se para ocidente de grossas nuvens cinzentas e por assim dizer desbotadas pela tempestade. O azul reapareceu com as estrelas mais cintilantes do que nunca. Em breve, para as bandas do leste, uma comprida faixa avermelhada desenhou no horizonte ondulações de um azul-escuro. As vagas saltaram, uma claridade súbita percorreu-lhes as cristas e transformou as suas franjas espumosas em crinas de ouro.
            Nascia o dia.
            Dantés ficou imóvel e mudo diante do grandioso espetáculo, como se o visse pela primeira vez. De fato esquecera-o desde que entrara no Castelo de If. Virou-se para a fortaleza e interrogou simultaneamente com um longo olhar circular a terra e o mar.
            O sombrio edifício saia do seio das vagas com a majestade imponente das coisas horríveis, que parecem ao mesmo tempo vigiar e comandar.
            Deviam ser cinco horas da manhã. O mar continuava a acalmar-se.
            “Dentro de duas ou três horas", pensou Edmond, “o carcereiro entrará na minha cela, encontrará o cadáver do meu pobre amigo, o reconhecerá, me procurará em vão e dará o alarme. Então, descobrirão o buraco, a galeria. Interrogarão os homens que me lançaram ao mar e que devem ter ouvido o grito que
soltei. Ato contínuo, barcos cheios de soldados armados correrão atrás do pobre fugitivo, que se sabe perfeitamente não estar longe. O canhão avisará toda a costa de que ninguém deve dar asilo a um homem que seja encontrado a vaguear, nu e faminto. Os espiões e os alguazis de Marselha serão prevenidos e baterão a costa enquanto o governador do Castelo de If mandará bater o mar. Então, perseguido no mar e cercado por terra, que farei? Tenho fome, tenho frio, perdi até  a faca salvadora, que abandonei porque me incomodava para nadar. Estou à mercê do primeiro camponês que queira ganhar vinte francos entregando-me. Não tenho mais forças, nem idéias, nem resolução. Oh meu Deus, meu Deus, vede se já sofri o bastante
e se podeis fazer por mim mais do que eu posso fazer por mim próprio!"
            No momento em que Edmond, numa espécie de delírio ocasionado pelo esgotamento das suas energias e pelo vazio do seu cérebro, proferia, ansiosamente virado para o Castelo de If, esta prece ardente, viu aparecer na extremidade da ilha de Pommégue, com a sua vela latina desenhada no horizonte e semelhante a uma gaivota que voa rasando a água, um naviozinho que o olhar de um marinheiro só podia reconhecer como uma tartana genovesa na linha ainda pouco clara do mar. A embarcação vinha do porto de Marselha e dirigia-se para o largo impelindo a espuma cintilante diante da proa aguda que abria caminho mais fácil aos seus flancos arredondados.
            - Oh! - exclamou Edmond. - E dizer que dentro de meia hora alcançaria aquele navio se não receasse ser interrogado, reconhecido como fugitivo e reconduzido a Marselha! Que fazer? Que dizer? Que história inventar que possa iludi-los? Estes homens são todos contrabandistas, meio piratas. A pretexto de fazerem cabotagem, saqueiam a costa. Prefeririam vender-me a praticar uma boa ação estéril.
            "Esperemos.
            "Mas esperar é impossível! Morro de fome; dentro de poucas horas as fracas energias que me restam terão desaparecido. De resto, a hora da visita aproxima-se. O alarme ainda não foi dado talvez por não desconfiarem de nada. Posso fazer-me passar por um dos tripulantes do barquito que naufragou esta noite. A história não deixará de ter a sua verosimilhança. Ninguém vir  contradizer-me, pois afogaram-se todos. Vamos.
            Depois destas palavras, Dantés olhou para o local onde o barquito naufragara e estremeceu. O barrete frígio de um dos náufragos ficara preso na aresta de um rochedo e pertíssimo dali flutuavam alguns destroços da quilha, traves inertes que o mar impelia contra a base da ilha, onde batiam como impotentes aríetes.
            Dantés decidiu-se num instante. Deitou-se ao mar, nadou para o barrete, colocou-o na cabeça, agarrou numa das traves e nadou de forma a cortar a linha de rumo que devia seguir o navio.
            - Agora, estou salvo - murmurou.
            E esta convicção deu-lhe forças.
            Não tardou a ver a tartana que, com o vento quase de proa, bolinava entre o Castelo de If e a torre de Planier. Por instantes, Dantés receou que, em vez de passar perto da costa, o naviozinho ganhasse ao largo, como faria se, por exemplo, o seu destino fosse a Côrsega ou a Sardenha. Mas da forma que manobrava o nadador não tardou a descobrir que desejava passar, como era hábito dos navios que demandavam a Itália,
entre a ilha de Jaros e a ilha de Calaseraigne.
            Entretanto, o navio e o nadador aproximavam-se insensivelmente um do outro. Numa das suas bordadas, a embarcação aproximou-se mesmo cerca de um quarto de légua de Dantés. Este ergueu-se
então na água e agitou o barrete em sinal de quem pede socorro. Mas ninguém o viu do navio, que virou de bordo e recomeçou a bolinar. Dantés pensou em chamar, mas calculou a olho a distância e compreendeu que a sua voz não chegaria ao navio: primeiro seria levada e abafada pela brisa do mar e pelo ruído das ondas.
            Foi então que se felicitou pela precaução que tomara de se estender numa trave. Enfraquecido como estava, talvez não conseguisse aguentar-se à tona da água até  alcançar a tartana. E, com toda a certeza, se a tartana, o que era possível, passasse sem o ver, não teria forças para regressar à costa.
            Embora estivesse mais ou menos certo da rota que seguia o navio, Dantés acompanhou-o com a vista com certa ansiedade até  ao momento em que o viu mudar, de rumo e dirigir-se ao seu encontro.
            Então, lançou-se também ao encontro do navio. Mas antes de se alcançarem mutuamente, a embarcação começou a virar de bordo.
            Num esforço supremo, Dantés ergueu-se imediatamente quase de pé na água, agitou o barrete e soltou um desses gritos arrepiantes como os dos marinheiros em perigo e que parecem lamentos de qualquer gênio do mar.
            Desta vez viram-no e ouviram-no. A tartana interrompeu a sua manobra e aproou para o seu lado. Ao mesmo tempo, Dantés viu que se preparavam para lançar uma chalupa ao mar.
            Pouco depois a chalupa, tripulada por dois homens, dirigiu-se ao seu encontro, batendo o mar com o seu remo duplo. Dantés deixou então deslizar a trave, de que pensava já não necessitar, e nadou vigorosamente para poupar metade do caminho aos que vinham ao seu encontro.
            O nadador contara porém com forças quase esgotadas. Foi então que teve consciência de como lhe fora útil o bocado de madeira que flutuava já, inerte, a cem passos de si. Os braços começavam a ficar-lhe dormentes e as pernas tinham perdido a flexibilidade. Os seus movimentos eram rígidos e sacudidos e
tinha o peito arquejante.
            Soltou um grande grito, os dois remadores redobraram de energia e um deles gritou-lhe em italiano:
            - Coragem!
            A palavra chegou-lhe aos ouvidos no momento em que uma vaga que já não tivera força para transpor lhe passava por cima da cabeça e o cobria de espuma.
            Reapareceu batendo o mar com os movimentos desencontrados e desesperados de um homem prestes a afogar-se, soltou terceiro grito e sentiu-se mergulhar no mar como se ainda tivesse agarrado aos pés o pelouro mortal.
            A água passou-lhe por cima da cabeça e através dela viu o céu lívido com manchas negras.
            Um esforço violento trouxe-o à superfície. Pareceu-lhe então que o agarravam pelos cabelos. Depois, não viu nem ouviu mais nada; desmaiara.
            Quando reabriu os olhos, Dantés encontrou-se na coberta da tartana, que continuava a sua rota. O seu primeiro olhar foi para verificar que direção seguia: continuava a afastar-se do Castelo de If.
            Dantés estava tão exausto que a exclamação de alegria que soltou foi tomada por um gemido de dor.
            Como dissemos, estava deitado na coberta e um marinheiro esfregava-lhe os membros com um cobertor de lã. Outro, que reconheceu ser o que lhe gritara “Coragem!", introduzia-lhe o gargalo de uma garrafa empalhada na boca. Um terceiro, velho marinheiro que era ao mesmo tempo o piloto e o patrão,
olhava-o com o sentimento de compaixão egoísta que experimentam em geral os homens acerca de um infortúnio a que escaparam na véspera e que os pode atingir no dia seguinte.
            Algumas gotas do rum que continha a garrafa reanimaram o coração desfalecido do jovem ao mesmo tempo que as fricções que o marinheiro, de joelhos diante dele, continuava a prodigalizar-lhe com o cobertor de lã lhe restituíam a elasticidade aos membros.
            - Quem é você? - perguntou-lhe em mau francês o patrão.
            - Sou um marinheiro maltês - respondeu-lhe Dantés em mau italiano. - Vínhamos de Siracusa, carregados de vinho e panolina. A borrasca desta  noite surpreendeu-nos no cabo Morgiou e despedaçamo-nos contra aqueles rochedos que vê ali adiante.
            - De onde veio?
            - Desses rochedos, onde tive a sorte de me agarrar, enquanto o nosso pobre comandante quebrava neles a cabeça. Os nossos três outros companheiros afogaram-se. Creio que sou o único sobrevivente. Vi o seu navio e receando ter de esperar muito tempo naquela ilha isolada e deserta arrisquei-me num destroço
do nosso navio a tentar chegar até  aqui. Obrigado - continuou Dantés. - Salvaram-me a vida. Estava perdido quando um dos seus marinheiros me agarrou pelos cabelos.
            - Fui eu - disse um marinheiro de rosto franco e aberto, emoldurado por longas suíças pretas. - E foi mesmo a tempo, pois você já ia para o fundo.
            - É verdade - reconheceu Dantés, estendendo-lhe a mão. É verdade, meu amigo, e agradeço-lhe pela segunda vez.
            - Confesso que quase hesitei - declarou o marinheiro. - Com essa barba de seis polegadas de comprimento e esses cabelos de um pé, tinha mais o ar de um bandido do que um homem honesto.
            Dantés recordou-se efetivamente de que desde que entrara no Castelo de if nunca mais cortara o cabelo nem fizera a barba.
            - Tem razão, mas trata-se de uma promessa que fiz a Nossa Senhora del Pie de la Grotta, num momento de perigo, de passar dez anos sem cortar o cabelo nem a barba. Hoje que expirava a promessa é que estive quase a morrer afogado. Que rico aniversário!
            - E agora, que vamos fazer de você? - perguntou o patrão.
            - Bom, o que quiser!- respondeu Dantés. - O falucho em que andava embarcado naufragou e o comandante morreu. Como vê, escapei à mesma sorte mas completamente nu. O que vale é que sou bom marinheiro. Deixe-me no primeiro porto em que tocar e arranjarei maneira de embarcar num navio mercante.
            - Conhece o Mediterrâneo?
            - Navego nele desde a infância.
            - E os bons ancoradouros?
            - Há poucos portos, mesmos os mais difíceis, em que não possa entrar e sair de olhos fechados.
            - Nesse caso, patrão, se o camarada diz a verdade, que o impede de ficar conosco? - perguntou o marinheiro que gritara “Coragem!" a Dantés.
            - Sim, se diz a verdade... - respondeu o patrão, com ar de dúvida. - Mas no estado em que se encontra o pobre diabo todos prometem muito na mira de obter o que puder.
            - Darei mais do que prometo - perguntou Dantés.
            - Oh, oh! - exclamou o patrão, rindo. - Veremos isso.
            – Quando quiser - acrescentou Dantés, levantando-se. - Para onde vão?
            - Para Liorne.
            - Bom, nesse caso, em vez de andarem aos esses, o que lhes faz perder um tempo precioso, por que não cerram simplesmente o vento de bolina?
            - Porque iríamos cair direitinhos na ilha de Rion.
            - Passariam, pelo contrário, a mais de vinte braças... 
            - Sendo assim - disse o patrão –, pegue no leme e mostre-nos a sua ciência.
            O jovem foi sentar-se ao leme e assegurou-se por meio de uma leve pressão que o navio era obediente. E vendo que sem ser de primeira categoria não se recusava, comandou:
            - Aos braços e às escotas!
            Os quatro marinheiros que formavam a tripulação correram para os seus postos, enquanto o patrão os observava.
            - Icem! - continuou Dantés.
            Os marinheiros obedeceram com bastante precisão.
            - E agora, amarrem bem!
            Esta ordem foi executada como as duas primeiras e o naviozinho, em vez de continuar a bolinar, começou a rumar para a ilha de Rion, junto da qual passou, como predissera Dantés, deixando-a a estibordo, a uma vintena de braças.
            - Bravo! - gritou o patrão.
            - Bravo! - repetiram os marinheiros.
            E todos olharam com admiração para aquele homem cujo olhar recuperara a inteligência e o corpo um vigor que se estaria longe de supor nele.
            - Como vê - disse Dantés, largando o leme –, poderei ser-lhes de alguma utilidade, pelo menos durante a viagem. Se não quiserem mais nada comigo em Liorne, pois bem, deixe-me lá . Prometo com os meus primeiros meses de soldo reembolsá-los da minha alimentação até    e das roupas que me cederem.
            - Está bem, está bem - disse o patrão. - Poderemos entender-nos se for razoável.
            - Um homem vale um homem - declarou Dantés. - Dê-me o mesmo que dá aos camaradas e não se fala mais nisso.
            - Não é justo - objetou o marinheiro que tirara Dantés do mar. - Você sabe mais do que nós.
            - Por que diabo se mete nisto? Diz-te porventura respeito, Jacopo? - ralhou o patrão. - Cada um é livre de se contratar pelo salário que lhe convém.
            - É justo - concordou Jacopo. - Foi uma simples observação da minha parte.
            - De acordo, mas faria muito melhor se emprestasse a este valente rapaz, que está todo nu, umas calças e uma blusa, se ainda tem algumas de reserva.
            - Não - respondeu Jacopo – mas tenho uma camisa e umas calças.
            - É tudo de que preciso - declarou Dantés. - Obrigado, amigo.
            Jacopo deixou-se escorregar pela escotilha e voltou a subir pouco depois com as duas peças de roupa, que Dantés vestiu com indizível prazer.
            - E agora, não precisa de mais nada? - perguntou o patrão.
            - Um naco de pão e segunda golada desse excelente rum que já provei. Porque há muito tempo que não como nada.
            Com efeito, havia quarenta e oito horas, aproximadamente. Trouxeram a Dantés um naco de pão e Jacopo estendeu-lhe a garrafa empalhada.
            - Leme a bombordo! - gritou o patrão, virando-se para o timoneiro. 
            Dantés deitou uma olhadela para o mesmo lado, levando a garrafa à boca, mas a garrafa ficou a meio caminho.
            - Olhem! - exclamou o patrão. - Que se passa no Castelo de If?
            Com efeito, uma nuvenzinha branca - nuvem que já atraíra a atenção de Dantés - acabava de aparecer coroando as ameias do bastião sul do Castelo de If.
            Um segundo mais tarde, o estampido de uma explosão longínqua veio morrer a bordo da tartana.
            Os marinheiros ergueram a cabeça e entreolharam-se.
            - Que significa aquilo? - perguntou o patrão.
            - Deve ter fugido algum prisioneiro esta noite - informou Dantés - por isso disparam o canhão de alarme.
            O patrão deitou uma olhadela ao rapaz, que ao mesmo tempo que dizia estas palavras levava a garrafa à boca. Viu-o, porém, a saborear o licor que ela continha com tanta calma e satisfação que, se teve qualquer suspeita, essa suspeita apenas lhe atravessou o espírito e morreu imediatamente.
            - Irra, este rum é tremendamente forte! - exclamou Dantés, enxugando com a manga da camisa a testa coberta de suor.
            - Seja como for - murmurou o patrão olhando-o –, se é ele, tanto melhor, pois adquiri um excelente homem.
            A pretexto de estar cansado, Dantés pediu que o deixassem sentar-se ao leme. O timoneiro, encantado por ser substituído nas suas funções, consultou o patrão com a vista, o qual lhe acenou com a cabeça que podia entregar o leme ao novo companheiro.
            Assim colocado, Dantés pode ficar de olhos lixos para o lado de Marselha.
            - A quantos do mês estamos hoje? - perguntou Dantés a Jacopo, que viera sentar-se junto dele, perdendo de vista o Castelo de If.
            - A 28 de Fevereiro - respondeu o interrogado.
            - De que ano? - perguntou ainda Dantés.
            - Como, de que ano?! Pergunta de que ano?
            - Pergunto - insistiu o rapaz. - Pergunto de que ano.
            - Esqueceu-se do ano em que estamos?
            - Que quer, apanhei tamanho susto esta noite que quase perdi a cabeça e fiquei com a memória toda embaralhada! Por isso lhe pergunto em 28 de Fevereiro de que ano estamos.
            - Do ano de 1829 - respondeu Jacopo.
            Havia catorze anos dia a dia, que Dantés fora preso. Entrara com dezanove anos no Castelo de If e saíra com trinta e três.
            Passou-lhe pelos lábios um sorriso doloroso. Perguntou a si mesmo que teria sido feito de Mercedes durante aquele tempo, em que decerto o considerara morto.
            Depois, brilhou-lhe nos olhos um relâmpago de ódio ao pensar nos três homens a quem devia tão longo e cruel cativeiro.
            E renovou contra Danglars, Fernand e Villefort o juramento de implacável vingança que já pronunciara na prisão.
            E esse juramento já não era uma ameaça vã, pois naquele momento o melhor veleiro do Mediterrâneo não conseguiria apanhar a pequena tartana que singrava a todo o pano para Liorne. 


Capítulo XXII

Os contrabandistas


            Ainda não passara um dia a bordo e já Dantés descobrira com quem estava metido. Sem ter frequentado a escola do abade Faria, o digno patrão da Jeune-Amélie, como se chamava a tartana genovesa, sabia quase todas as línguas faladas em redor desse grande lago chamado Mediterrâneo. Desde o  árabe ao provençal. Tal fato proporcionava-lhe, por lhe permitir dispensar os intérpretes, gente sempre maçadora e por vezes indiscreta, grandes facilidades de comunicação, quer com os navios que encontrava no mar, quer com os barquitos com que contactava ao longo da costa, quer enfim com a gente sem nome,
sem pátria e sem estado aparente, como existe sempre nas vielas próximas dos portos de mar, e que vive desses recursos misteriosos e ocultos que dir-se-ia receber em linha reta da Providência, visto a olho nu não ter nenhum meio de existência visível. Como se adivinha, Dantés encontrava-se a bordo de um navio de contrabando.
            Por isso o patrão recebera Dantés a bordo com certa desconfiança. Era muito conhecido de todos os guardas fiscais da costa e como havia entre ele e esses cavalheiros um jogo de artimanhas mais hábeis umas do que outras, ao princípio pensara que Dantés fosse um emissário dos “pica-chouriços", que empregassem aquele meio engenhoso para devassar alguns segredos do ofício. Mas a maneira brilhante como Dantés se saíra da prova quando comandara a manobra convencera-o por completo. Depois, quando vira aquele fumo ligeiro pairar como um penacho por cima do bastião do Castelo de if e ouvira o estampido distante da explosão, tivera por um momento a idéia de que acabara de receber a bordo aquele a quem, como nas entradas e saídas dos reis, se concedia as honras do canhão. Isso, diga-se desde já, preocupava-o menos do que se o recém-chegado fosse um guarda-fiscal. Mas a segunda suposição não tardara a desaparecer como a primeira, perante a perfeita tranquilidade do novo tripulante.
            Edmond teve portanto a vantagem de saber o que era o patrão sem que o patrão soubesse o que ele era. Por qualquer lado que o atacassem, quer o velho marinheiro, quer os seus camaradas, aguentou-se e não fez qualquer confissão; limitou-se a dar inúmeros pormenores acerca de Nápoles e de Malta, que  conhecia tão bem como Marselha, e agora com uma firmeza que fazia honra à sua memória e à sua primeira história. Foi pois o genovês, apesar de toda a sua subtileza, que se deixou enganar por Edmond, a favor do qual se depunham a sua pacatez, a sua experiência náutica e sobretudo a mais hábil dissimulação.
            E depois talvez o genovês fosse com essas pessoas prudentes que só sabem o que devem saber e só acreditam no que lhes convém acreditar.
            Foi pois nesta situação recíproca que chegaram a Liorne.
            Edmond faria lá uma nova experiência: saber se se reconheceria a si mesmo catorze anos depois de  não se ver. Conservava idéia bastante precisa de que fora na juventude e desejava ver no que se transformara como homem. Aos olhos dos camaradas a sua promessa estava cumprida. já estivera em Liorne umas vinte
vezes e conhecia um barbeiro na Rua de S. Fernando. Foi aí que entrou para mandar lazer a barba e cortar o cabelo.
            O barbeiro olhou com espanto aquele homem de longa cabeleira espessa e negra, que lembrava umas belas cabeças de Ticiano. Naquela época ainda não era moda usar-se a barba e o cabelo tão compridos; hoje um barbeiro apenas se admiraria se um homem dotado de tão notáveis atributos físicos consentisse em
privar-se deles.
            O barbeiro lionês deitou as mãos à obra sem fazer observações.
            Quando a operação terminou, quando Edmond sentiu o queixo inteiramente barbeado e o cabelo reduzido ao comprimento normal, pediu um espelho e olhou-se.
            Contava então trinta e três anos, como dissemos, e os catorze anos de prisão tinham por assim dizer ocasionado uma grande transformação moral na sua fisionomia.
            Dantés entrara no Castelo de If com o rosto redondo, risonho e despreocupado de um jovem feliz, a quem os primeiros passos na vida foram facilitados e que espera do futuro o que naturalmente deduz do passado. Mas tudo isso mudara.
            O seu rosto oval alongara-se, a sua boca risonha adquirira as linhas firmes e decididas que indicam a resolução, as suas sobrancelhas tinham-se arqueado sob uma ruga única, pensativa, os seus olhos estavam impregnados de profunda tristeza, do fundo da qual brotavam de vez em quando relâmpagos sombrios,
misantropia e ódio, e a sua tez, durante tanto tempo afastada da luz do dia e dos raios do Sol, adquirira a cor mate característica, quando o rosto é emoldurado por cabelos negros, da beleza aristocrática dos homens do Norte. Além disso, a ciência profunda que adquirira espalhava-lhe por todo o rosto uma auréola de inteligencia segurança. Mais, embora tosse naturalmente de estatura bastante alta, também adquirira o vigor pesado de um corpo que concentra constantemente as suas forças em si mesmo.
            À elegância das formas nervosas e franzinas sucedera a solidez das formas arredondadas e musculosas. Quanto à voz, as preces, os soluços e as imprecações tinham-na modificado, dando-lhe ora um timbre de uma doçura estranha, ora uma acentuação rude e quase rouca.
            Por outro lado, por viver constantemente na meia-luz e na escuridão, os seus olhos tinham adquirido a singular faculdade de distinguir os objetos durante a noite, como os da hiena e os do lobo.
            Edmond sorriu ao ver-se: era impossível que o seu melhor amigo, se ainda lhe restasse um amigo, o reconhecesse. Nem ele se reconhecia a si próprio.
            O patrão da Jeune-Amélie, empenhadíssimo em conservar entre os seus um homem do valor de Edmond, oferecera-lhe alguns adiantamentos sobre a sua parte nos lucros futuros, e Edmond aceitara. O seu primeiro cuidado, assim que saiu do barbeiro que acabava de proceder à sua primeira metamorfose, foi pois entrar numa loja e comprar um traje completo de marinheiro. Tal traje, como se sabe, é muito simples: compõe-se de calças brancas, camisa às riscas e barrete frígio.
            Foi assim vestido, depois de restituir a Jacopo a camisa e as calças que lhe emprestara, que Edmond reapareceu diante do patrão da Jeune-Amélie, a quem foi obrigado a repetir a sua história. O patrão não queria reconhecer  naquele marinheiro taful e elegante o homem de barba espessa, cabelo coberto de algas e corpo a escorrer água do mar que recolhera nu e moribundo na coberta do seu navio.
            Entusiasmado com o seu bom aspecto, renovou a Dantés as suas propostas de contratação. Mas Dantés, que tinha os seus projetos, só as aceitou por três meses.
            A tripulação da Jeune-Amélie era muito ativa e estava submetida às ordens de um patrão que adquirira o hábito de não perder tempo. Por isso, decorridos apenas oito dias desde a sua chegada a Liorne, os flancos arredondados do navio encontravam-se cheios de musselinas estampadas, algodões proibidos, pôlvora inglesa e tabaco que a régie do Estado se “esquecera" de selar. Tratava-se de fazer sair tudo isso de
Liorne, porto franco, e de o desembarcar nas costas da Côrsega, donde certos especuladores se  encarregariam de fazer passar o carregamento para França.
            Partiram. Edmond cruzou de novo aquele mar azulino, primeiro horizonte da sua juventude, que tantas vezes revira em sonhos na prisão. Deixaram à direita a Gôrgona e à esquerda Pianosa e rumaram para a pátria de Paoli e Napoleão.
            No dia seguinte, ao subir à coberta, o que fazia sempre muito cedo, o patrão encontrou Dantés encostado à amurada do navio e a olhar com expressão estranha um amontoado de rochedos graníticos que o sol nascente inundava de uma luz rosada: era a ilha de Monte-Cristo.
            A Jeune-Amélie deixou-a a três quartos de légua, aproximadamente, a estibordo e continuou a navegar para a Côrsega.
            Dantés pensava, enquanto passava ao largo daquela ilha de nome tão ressoante para ele, que lhe bastaria lançar-se ao mar para dentro de meia hora se encontrar naquela terra prometida. Mas que faria lá, sem instrumentos para descobrir o seu tesouro nem armas para o defender? Além disso, que diriam os
marinheiros? Que pensaria o patrão? Era necessário esperar.
            Felizmente, Dantés sabia esperar. Esperara catorze anos pela liberdade: podia muito bem, agora que estava livre, esperar seis meses ou um ano pela riqueza.
            Não teria aceitado a liberdade sem a riqueza, se a tivessem oferecido?
            Aliás, não era essa riqueza uma quimera? Nascida no cérebro enfermo do pobre abade Faria, não teria morrido com ele?
            De fato a carta do cardeal Spada era singularmente precisa...
            E Dantés repetia de ponta a ponta, na memória, essa carta, de que não esquecera uma palavra.
            Anoiteceu. Edmond viu a ilha passar por todas as cores que o crepúsculo traz consigo e desaparecer para todos nas trevas. Mas ele, com o seu olhar habituado à obscuridade da prisão, continuou sem dúvida a vê-la, pois foi o último a deixar a coberta.
            No dia seguinte acordaram à vista de Aleria. Mantiveram o mesmo rumo durante todo o dia e à noite acenderam-se fogueiras na costa. Pela disposição dessas fogueiras reconheceu-se, decerto, que se podia desembarcar, porque em vez do pavilhão subiu no rostongueja uma lanterna e o navio aproximou-se da costa até  ficar ao alcance de um tiro de espingarda. 
            Dantés notara que, sem dúvida devido à solenidade daquelas ocasiões, o patrão da Jeune-Amélie montara no seu reparo, ao aproximar-se de terra, duas pequenas colubrinas idênticas a espingardas de fortaleza, que, sem fazerem grande barulho, podiam atirar uma boa bala de quarto de libra a mil passos de
distância.
            Mas naquela noite a precaução foi supérflua; tudo se passou com a maior calma e correção do mundo. Quatro chalupas aproximaram-se quase sem ruído do navio, que sem dúvida para as honrar deitou a sua própria chalupa ao mar. O caso é que as cinco chalupas trabalharam tão bem que às duas horas da madrugada todo o carregamento passara de bordo da Jeune-Amélie para terra firme.
            Nessa mesma noite, de tal modo o patrão da Jeune-Amélie era homem de ordem, procedeu-se à distribuição do bolo: cada homem recebeu cem libras toscanas de quinhão, isto é, cerca de oitenta trancos na nossa moeda.
            Mas a expedição ainda não terminara. Aproaram na Sardenha. Tratava-se de ir recarregar o navio que acabava de se descarregar. A segunda operação decorreu com tanto êxito como a primeira; a Jeune-Amélie estava em mar‚ e com sorte.
             O novo carregamento destinava-se ao ducado de Luca e compunha-se quase inteiramente de charutos de Havana e vinho de Xerez e de Málaga.
            Mas aí surgiram complicações com os “pica-chouriços", os eternos inimigos do patrão da Jeune-Amélie. Um guarda caiu morto e dois marinheiros ficaram feridos. Dantés foi um desses marinheiros; uma bala atravessou-lhe a carne do ombro esquerdo.
            Dantés ficara quase feliz com a escaramuça e quase contente com a ferida. Ambas lhe tinham ensinado, essas severas professoras, com que olhos devia encarar o perigo e com que ânimo suportar o sofrimento. Enfrentara o perigo rindo e ao ser ferido dissera como o filôsofo grego: “Dor, não és um mal."
            Além disso, examinara o guarda ferido de morte e, quer pelo calor do sangue na ação, quer por arrefecimento dos sentimentos humanos, a vista do corpo causara-lhe apenas uma ligeira impressão. Dantés encontrava-se no caminho que queria percorrer e dirigia-se para o objetivo que pretendia atingir: o coração estava em vias de se petrificar no peito.
            Ao vê-lo cair, Jacopo julgara-o morto e precipitara-se para ele, levantara-o, e por fim, uma vez levantado, tratara-o como um excelente camarada.
            O mundo não era portanto tão bom como o via o Dr. Pangloss, mas também não era tão mau como o via Dantés, uma vez que aquele homem que nada tinha a esperar do companheiro, exceto herdar a sua parte no bolo, experimentava tão viva aflição ao julgá-lo morto.
            Felizmente, como dissemos, Edmond encontrava-se apenas ferido. Graças a certas ervas colhidas em determinadas épocas e vendidas aos contrabandistas por velhas sardas, o ferimento não tardou a fechar. Edmond quis então tentar Jacopo: ofereceu-lhe em troca dos seus cuidados a sua parte nos ganhos, mas Jacopo recusou com indignação.
            Era devido à espécie de dedicação simpática que Jacopo dedicara a Edmond desde o primeiro momento em que o vira que Edmond concedia a Jacopo uma certa afeição. Mas Jacopo não pedia mais. Adivinhara instintivamente em Edmond a suprema superioridade da sua posição, superioridade  que Edmond
conseguira esconder dos outros. E com o pouco que Edmond lhe concedia o bravo marinheiro já ficava satisfeito.
            Por isso, durante os longos dias passados a bordo, quando o navio, correndo com segurança pelo mar azul não necessitava, graças ao vento de feição que lhe enfunava as velas, mais do que da atenção do timoneiro, Edmond pegava num mapa marítimo e armava em professor de Jacopo, tal como o abade Faria se
armara em professor com ele. Mostrava-lhe o recorte da costa, explicava-lhe as variações da bússola e ensinava-o a ler no grande livro aberto por cima das nossas cabeças, a que chamamos céu e onde Deus escreveu no azul com letras de diamante.
            E quando Jacopo lhe perguntava:
            - Que adianta ensinar todas essas coisas a um pobre marinheiro como eu?
            Edmond respondia:
            - Quem sabe? Talvez um dia seja comandante de navio. O teu compatriota Bonaparte conseguiu ser imperador!
            Esquecemo-nos de dizer que Jacopo era corso.
            Tinham se passado já dois meses e meio nestas viagens sucessivas. Edmond tornara-se tão hábil cabotador como fora outrora ousado marinheiro. Estabelecera relações com todos os contrabandistas
da costa e aprendera todos os sinais maçônicos com os auxílio dos quais os meio-piratas se reconhecem uns aos outros.
            Passara e repassara vinte vezes diante da ilha de Monte-Cristo, mas em todas elas nem uma só vez encontrara oportunidade de lá desembarcar.
            Tomara portanto uma resolução: assim que o seu contrato com o patrão da Jeune-Amélie caducasse, alugaria um barco (Dantés podia fazê-lo, pois durante as suas diversas viagens amealhara uma centena de piastras) e, sob qualquer pretexto, se dirigiria para a ilha de Monte-Cristo.
            Uma vez lá, procederia com toda a liberdade às suas pesquisas. Não com inteira liberdade, pois seria, sem dúvida nenhuma, espiado por aqueles que o tivessem transportado.
            Mas em tais momentos é sempre necessário arriscar alguma coisa. A prisão tornara Edmond prudente e gostaria muito de não arriscar nada.
            Mas por mais tratos que desse à imaginação e por mais fecunda que esta fosse, não via outro meio de chegar à ilha tão cobiçada senão fazendo-se transportar para lá.
            Dantés debatia-se nestas hesitações quando o patrão, que se habituara a depositar uma grande confiança nele e que desejava muito conservá-lo ao seu serviço, lhe pegou uma noite pelo braço e o levou a uma taberna da Via del Oglio em que habitualmente se reunia a nata dos contrabandistas de Liorne.
            Era ali que por via de regra se tratava dos negócios da costa. Dantés já entrara duas ou três vezes naquela bolsa marítima. E ao ver aqueles ousados piratas que forneciam todo um litoral num raio de cerca de duas mil léguas perguntara a si mesmo de que poder não disporia um homem que conseguisse submeter à sua vontade todos aqueles fios reunidos ou divergentes.
            Desta vez tratava-se de um grande negócio, de um navio carregado de tapetes turcos, tecidos do Levante e de Caxemira. Era necessário encontrar um terreno neutro onde a permuta se pudesse fazer e depois tentar desembarcar esses objetos nas costas da França. 
            O bolo cra enorme: cinquenta a sessenta piastras por homem se o negócio fosse bem sucedido.
            O patrão da Jeune-Amélie propôs como local de desembarque a ilha de Monte-Cristo, a qual, sendo completamente deserta e não tendo soldados nem guardas-fiscais, parecia ter sido colocada no meio do mar, no tempo do Olimpo pagão, por Mercúrio, o deus dos comerciantes e dos ladrões, classes que
tornamos separadas, senão distintas, mas que a Antiguidade, segundo parece, tinha na mesma categoria.
            Ao ouvir falar em Monte-Cristo, Dantés estremecera de alegria. Levantou-se para ocultar a sua emoção e deu uma volta pela taberna enfumarada, onde todos os idiomas do mundo conhecidos se fundiam na língua tranca.
            Quando voltou a se reunir aos dois interlocutores, estava decidido que se arribaria a Monte-Cristo e que a expedição se iniciaria na noite seguinte.
            Edmond, consultado, foi de opinião que a ilha oferecia todas as vantagens possíveis e de que as grandes empresas, para triunfarem, deviam ser conduzidas depressa.
            O programa estabelecido não sofreu qualquer alteração. Ficou combinado que se aparelharia no dia seguinte à noite e que se procuraria, visto o mar estar calmo e o vento ser favorável, chegar no outro dia à noite às águas da ilha neutra.
           
Capítulo XXIII

A ilha De Monte-Cristo


            Finalmente, por uma dessas sortes inesperadas que às vezes têm aqueles sobre os quais o rigor do destino se encarniçou durante muito tempo, Dantés ia alcançar o seu objetivo por um meio simples e natural e pôr o pé na ilha sem inspirar a ninguém qualquer suspeita.
            Apenas uma noite o separava dessa partida tão esperada.
            Essa noite foi uma das mais febris que passou Dantés. Durante ela, todas as possibilidades boas e más lhe acudiram alternadamente ao espírito. Se fechava os olhos, via a carta do cardeal Spada escrita em caracteres chamejantes na parede; se adormecia um instante, os sonhos mais insensatos vinham fervilhar-lhe no cérebro. Descia as grutas pavimentadas de esmeraldas, de paredes de rubis e estalactites de diamantes.
As pérolas caiam gota a gota, tal como habitualmente se filtra a água subterrânea.
            Arrebatado, maravilhado, Edmond enchia as algibeiras de pedrarias. Depois regressava à luz do dia e as pedrarias transformavam-se em simples seixos. Então, procurava tornar a entrar nas grutas maravilhosas, apenas entrevistas. Mas o caminho torcia-se em espirais infinitas e a entrada voltara a ser invisível. Procurava em vão na memória fatigada a palavra mágica e misteriosa que abria ao pescador árabe as cavernas esplêndidas de Ali-Bab . Tudo era inútil; o tesouro desaparecido tornara-se novamente propriedade dos gênios da terra, aos quais tivera por instantes a esperança de o arrebatá-lo. 
            O dia rompeu quase tão febril como o fora a noite; mas trouxe a lógica em auxílio da imaginação e Dantés conseguiu fixar um plano até  ali vago e flutuante no seu cérebro.
            Veio a noite e com a noite os preparativos da partida. Esses preparativos eram um meio de Dantés ocultar a sua agitação. Pouco a pouco adquirira sobre os companheiros autoridade de comandar como se fosse senhor do navio; e como as suas ordens eram sempre claras, precisas e fáceis de executar, os
companheiros obedeciam-lhe não só com prontidão, mas também com prazer.
            O velho marinheiro deixava-o agir. Também ele reconhecera a superioridade de Dantés sobre os seus, outros marinheiros e sobre ele próprio. Via no rapaz o seu sucessor natural e lamentava não ter uma filha para prender Edmond por meio dessa aliança.
            Às sete horas da noite ficou tudo pronto; às sete e dez dobrava-se o farol, precisamente no momento em que o farol se acendia.
            O mar estava calmo, com vento fresco soprando do sudeste. Navegava-se sob céu azul, onde Deus acendia também alternadamente os seus faróis, cada um deles um mundo. Dantés declarou que todos podiam deitar, pois ele encarregaria do leme.
            Quando o maltês (era assim que chamavam a Dantés) fazia semelhante declaração, isso bastava e todos se iam deitar tranquilamente.
            Isso acontecia algumas vezes: lançado do isolamento no mundo, Dantés experimentava de vez em quando imperiosas necessidades de estar só. Ora, que isolamento haveria que fosse simultaneamente maior e mais poético do que o de um navio que flutua isolado no mar, durante a escuridão da noite, no silêncio da imensidade e sob o olhar do Senhor?
            Desta vez, porém, o isolamento foi povoado pelos seus pensamentos, a noite iluminada pelas suas ilusões e o silêncio animado pelas suas promessas.
            Quando o patrão acordou o navio navegava a todo o pano. Não havia um pedacinho de tela que não estivesse enfunado pelo vento. Navegava-se a mais de duas léguas e meia por hora.
            A ilha de Monte-Cristo crescia no horizonte.
            Edmond entregou o navio ao patrão e foi deitar-se por sua vez na sua rede. Mas, apesar de ter passado a noite em claro, não conseguiu pregar olho um só instante.
            Duas horas mais tarde voltou a subir à coberta. O navio preparava-se para dobrar a ilha de Elba. Encontravam-se próximos da Mareciana e para lá da ilha plana e verde da Pianosa. Distinguia-se no azul do céu o cume chamejante de Monte-Cristo.
            Dantés ordenou ao timoneiro que virasse a bombordo, a fim de deixar a Pianosa à direita. Calculara que tal manobra encurtaria a viagem duas ou três milhas.
            Por volta das cinco horas da tarde a ilha encontrava-se completamente à vista. Distinguiam-se os mais pequenos pormenores graças à limpidez atmosférico rostocterística da luz emitida pelos raios do Sol no acaso.
            Edmond devorava com os olhos aquela massa de rochedos que passava por todas as cores crepusculares, do rosa-vivo ao azul-escuro. De vez em quando  subiam-lhe à cara golfadas de sangue, a testa purpureava-se-lhe e uma nuvem escarlate passava-lhe diante dos olhos.
            Nunca jogador que tivesse arriscado toda a sua fortuna num lance de dados experimentara as angústias que Edmond sentia nos seus paroxismos de esperança.
            Anoiteceu. Às dez horas ancorou-se. A Jeune-Amélie era a primeira a comparecer ao encontro.
            Apesar do domínio que tinha habitualmente sobre si mesmo, Dantés não se pode conter: foi o primeiro a saltar para terra e se a tanto se atrevesse teria beijado-a como Bruto.
            A noite estava escura; mas às onze horas a Lua ergueu-se do mar e cobriu-lhe de prata cada frêmito. Depois os seus raios, à medida que se elevava, começaram a refletir-se, em brancas cascatas de luz, nos rochedos empilhados daquele outro Pélion.
            A ilha era familiar à tripulação da Jeune-Amélie, pois constituía uma das suas habituais estações. Quanto a Dantés, vira-a em todas as suas viagens no Levante, mas nunca lá desembarcara.
            Interrogou Jacopo:
            - Onde passamos a noite?
            - Mas... a bordo da tartana - respondeu o marinheiro.
            - Não ficaríamos melhor nas grutas?
            - Em quais grutas?
            - Nas grutas da ilha.
            - Não conheço tais grutas - respondeu Jacopo.
            Um suor frio inundou a testa de Dantés.
            - Não há grutas em Monte-Cristo? - insistiu.
            - Não.
            Dantés ficou um instante aturdido. Depois pensou que as grutas podiam ter sido entulhadas mais tarde, devido a qualquer acidente, ou até  fechadas, para maior precaução, pelo cardeal Spada.
            Nesse caso, tudo se resumia em encontrar essa abertura perdida. Mas seria inútil procurá-la durante a noite. Dantés adiou portanto a investigação para o dia seguinte. De resto, um sinal içado a cerca de meia légua no mar, e ao qual a Jeune-Amélie respondeu imediatamente com um sinal idêntico, indicou-lhe que chegara o momento de trabalhar.
            O navio retardatário, tranquilizado com o sinal que devia dar-lhe a conhecer que se podia aproximar com toda a segurança, surgiu imediatamente, branco e silencioso como um fantasma, e ancorou a uns duzentos metros da costa.
            O transporte começou logo a seguir.
            Enquanto trabalhava, Dantés pensava no hurra de alegria que com uma só palavra poderia levar todos aqueles homens a soltar se revelasse em voz alta o pensamento que incessantemente lhe sussurrava baixinho ao ouvido e ao coração. Mas, ao contrário de revelar o magnifico segredo, temia já ter dito demasiado a tal respeito e despertado suspeitas com as suas idas e vindas, as suas perguntas repetidas, as suas  observações minuciosas e a sua preocupação contínua. Felizmente, para esta circunstancia pelo menos, que nele um passado deveras doloroso lhe deixara refletida no rosto uma tristeza  indelével e que os lampejos de alegria entrevistos através dessa nuvem não passavam realmente de relâmpagos.
            Ninguém desconfiava portanto de nada, pelo que no dia seguinte, quando Dantés pegou uma espingarda, chumbo e pôlvora e manifestou o desejo de ir matar uma das numerosas cabras-monteses que se viam saltar de rochedo em rochedo todos atribuiram a excursão apenas ao amor da caça ou ao desejo de isolamento. Só Jacopo o acompanhou. Dantés não quis opor-se à sua presença com receio de que a repugnância em ser acompanhado inspirasse algumas desconfianças. Mas assim que percorreu um quarto de légua e teve oportunidade de atirar a matar a um cabrito, mandou Jacopo levá-lo aos companheiros,
para que o cozinhassem e, quando estivesse pronto, lhe dessem sinal para ir comer a sua parte disparando um tiro de espingarda. Alguns frutos secos e uma garrafa de vinho de Monte Pulciano completariam o banquete.
            Dantés continuou o seu caminho, virando-se de vez em quando. Chegado ao topo de uma rocha viu mil pés abaixo de si os companheiros, aos quais acabava de se juntar Jacopo, que se ocupavam já ativamente dos preparativos do almoço, aumentado, graças à destreza de Edmond, com uma peça fundamental.
            Edmond olhou-os um instante com o sorriso bondoso e triste do homem superior.
            “Dentro de duas horas”, pensou, “voltarão a partir cinquenta piastras mais ricos para irem, arriscando a vida, tentar ganhar mais cinquenta. Depois regressarão seiscentas libras mais ricos e delapidarão esse tesouro em qualquer cidade, com o orgulho de sultões e a despreocupação de nababos. Hoje a esperança leva-me a desprezar a sua riqueza, que me parece a maior miséria; amanhã, talvez a decepção me obrigue a olhar essa grande miséria como a felicidade suprema... Mas, oh, não, isso não acontecerá! O sábio, o infalível Faria, não se havia de enganar logo nessa única coisa. De resto, mais valeria morrer do que continuar a levar esta vida miserável e inferior.”
            Deste modo, Dantés, que havia três meses só aspirava à liberdade, já se não contentava apenas com a liberdade, aspirava também à riqueza. E a culpa não era dele, mas sim de Deus, que limitando o poder do homem lhe provocou desejos infinitos! Entretanto, por um caminho aberto entre duas muralhas de rochas e seguindo um carreiro aberto pela torrente e que, segundo todas as probabilidades, nunca fora pisado por
pé humano, Dantés aproximara-se do local onde supunha que as grutas deviam ter existido. Seguindo junto à costa e examinando os menores objetos com toda a atenção, julgou notar em certos rochedos entalhes feitos pela mão do homem.
            O tempo que lança sobre todas as coisas físicas o seu manto de musgo, tal como sobre as coisas morais o seu manto de esquecimento, parecia ter respeitado aqueles sinais traçados com certa regularidade e provavelmente com o fim de indicar uma pista. De tempos a tempos, porém, os sinais desapareciam sob tufos de murta que desabrochava em grandes ramos carregados de flores ou debaixo de íquenes parasitas. Edmond tinha então de afastar os ramos ou de levantar o musgo para reencontrar os sinais indicadores que o conduziam naquele outro labirinto. Esses sinais tinham, de resto, dado boas esperanças a Edmond. Porque não teria sido o cardeal quem os traçara para  que pudessem, no caso de uma catástrofe que não pudera prever tão completa, servir de guia ao sobrinho? Aquele lugar solitário era bem o que convinha a um homem que desejasse esconder um tesouro. Simplesmente, não teriam aqueles sinais infiéis atraído outros olhos além daqueles para os quais tinham sido traçados e teria a ilha de sombrias maravilhas guardado fielmente o seu magnífico segredo?
            Entretanto, a sessenta passos do porto, aproximadamente, pareceu a Edmond, sempre oculto dos companheiros pelos acidentes do terreno, que os entalhes terminavam.  Simplesmente, não conduziam a nenhuma gruta. Um grande rochedo redondo assente numa base sólida era a única coisa a que pareciam conduzir. Edmond pensou que em vez de ter chegado ao fim talvez estivesse, pelo contrário, apenas no princípio; deu, pois, meia volta e regressou por onde viera.
            Entretanto, os companheiros preparavam o almoço: iam buscar água à fonte, transportavam pão e fruta para terra e cozinhavam o cabrito. Precisamente no momento em que o tiravam do seu espeto improvisado viram Edmond que, ligeiro e audacioso como uma cabra-montês, saltava de rochedo em rochedo, e dispararam um tiro de espingarda para avisá-lo. O caçador mudou imediatamente de direção e correu para eles. Mas no momento em que todos o seguiam com a vista na espécie de vôo que executava, classificando de temeridade a sua, habilidade, e como que para dar razão aos seus receios, o pé falhou a Edmond. Viram-no cambalear no cume de um rochedo, soltar um grito e desaparecer.
            Saltaram todos ao mesmo tempo, pois todos gostavam de Edmond apesar da sua superioridade. No entanto, foi Jacopo quem chegou primeiro.
            Encontrou Edmond estendido, sangrando e quase sem sentidos; devia ter caído de doze ou quinze pés de altura. Introduziram-lhe na boca algumas gotas de rum, e este remédio, que já demonstrara tanta eficácia sobre ele, produziu o mesmo efeito da primeira vez.
            Edmond abriu os olhos e queixou-se de uma dor aguda no joelho, de um grande peso na cabeça e de picadas insuportáveis nos rins. Quiseram transportá-lo para a beira-mar, mas quando lhe tocaram, embora fosse Jacopo quem dirigia a operação, declarou gemendo que não se sentia com forças para suportar o
transporte.
            Todos compreenderam que era natural que Dantés tivesse perdido o apetite para o almoço, mas ele exigiu que os seus camaradas, que não tinham as mesmas razões que ele para fazer dieta, regressassem ao seu lugar. Quanto a ele, afirmou que precisava apenas de um bocadinho de repouso e que quando  regressassem o encontrariam melhor.
            Os marinheiros não se fizeram demasiado rogados. Tinham fome, e o cheiro do cabrito chegava até  eles e entre lobos-do-mar não se fazem muitas cerimônias.
            Uma hora depois voltaram. Mas tudo o que Edmond conseguira fazer fora arrastar-se uma dezena de passos para se encostar a uma rocha musgosa. No entanto, longe de diminuírem, as dores de Dantés parece que tinham aumentado de violência. O velho patrão, obrigado a partir de manhã para ir descarregar nas
fronteiras do Piemonte e da França, entre Nice e Fréjus, insistiu  com Dantés para que tentasse levantar-se. O rapaz fez esforços sobre-humanos para lhe fazer a vontade, mas a cada esforço tornava a cair, a gemer e pálido.
            – Tem os rins partidos - disse baixinho o patrão. - Não importa, é um bom companheiro e não devemos abandoná-lo. Vejamos se conseguimos transportá-lo para a tartana.
            Mas Dantés declarou que preferia morrer onde estava do que suportar as dores atrozes que lhe ocasionaria qualquer movimento, por mais ligeiro que fosse.
            - Bom - disse o patrão - aconteça o que acontecer, ninguém dirá que deixamos sem socorro um bom companheiro. Só partiremos à tardinha.
            Esta decisão surpreendeu muito os tripulantes, embora nenhum deles a desaprovasse, antes pelo contrário. O patrão era um homem muito rígido e viam-no pela primeira vez renunciar a uma empresa ou pelo menos adiar a sua execução.
            Por isso Dantés não permitiu que por sua causa se cometesse tão grave infração às regras de disciplina estabelecida a bordo.
            - Não - disse ao patrão –, fui imprudente e é justo que sofra as consequências da minha imprudência. Deixem-me uma pequena provisão de bolachas, uma espingarda, pólvora e balas para matar os cabritos, ou mesmo para me defender, e um enxadão para construir, se demorarem muito tempo a virem me buscar, uma
espécie de casa.
            - Mas morrerás de fome - objetou o patrão.
            - Prefiro assim - respondeu Edmond - a sofrer as dores inauditas que um só movimento me ocasiona.
            O patrão virou-se para o lado do navio, que balouçava, com um princípio de aparelhagem, no portinho, pronto a fazer-se ao mar logo que a sua toilette estivesse concluída.
            - Que havemos de fazer, maltês? - perguntou. - Não podemos te abandonar assim, mas também não podemos ficar...
            - Partam, partam! - gritou Dantés.
            - Estaremos pelo menos oito dias ausentes - declarou o patrão - e além disso teremos de nos desviar da nossa rota para vir te buscar.
            - Escute - disse Dantés. - Se dentro de dois ou três dias encontrar algum barco de pesca ou outro que venha para estas paragens, recomende-me. Pagarei vinte e cinco piastras pelo meu regresso a Liorne. Se não encontrar nenhum barco, volte para cá.
            O patrão abanou a cabeça.
            - Ouça, patrão Baldi, há um meio de conciliar tudo - interveio Jacopo. - Partam e deixem-me com o ferido que eu trato dele.
            - E renunciarás à tua parte na divisão para ficares comigo? - perguntou Edmond.
            - Renuncio e sem pesar - respondeu Jacopo.
            - Bom, você é um excelente rapaz, Jacopo - disse Edmond. - Deus recompensará  a tua boa vontade; mas não preciso de ninguém, obrigado. Um dia ou dois de repouso me porão bom e espero encontrar nestes rochedos certas ervas muito boas contra as contusões.
            E um sorriso estranho passou pelos lábios de Dantés. 
            Apertou a mão a Jacopo com efusão, mas manteve-se inabalável na resolução de ficar e de ficar sozinho.
            Os contrabandistas deixaram a Edmond o que ele pediu e retiraram-se, não sem se virarem várias vezes e fazerem de cada vez que se viravam sinais de um cordial adeus, ao qual Edmond respondia apenas com a mão, como se não pudesse mexer o resto do corpo.
            Depois, quando desapareceram, murmurou rindo:
            - É estranho que seja entre tais homens que se encontram provas de amizade e atos de dedicação.
            Em seguida arrastou-se com cuidado até  ao alto de um rochedo que lhe ocultava o aspecto do mar e de lá viu a tartana acabar de aparelhar, levantar ferro, balançar-se graciosamente como uma gaivota prestes a levantar vôo e partir.
            Passada uma hora, tinha desaparecido por completo. Pelo menos do lugar onde ficara o ferido era impossível vê-la.
            Então Dantés levantou-se, mais rápido e ligeiro do que os cabritos que saltavam por entre as murtas e os lentiscos, naqueles rochedos selvagens, pegou a espingarda com uma das mãos e a enxada com a outra e correu para a rocha onde terminavam os entalhes que descobrira nos rochedos.
            - E agora - gritou, lembrando-se da história do pescador árabe que lhe contara Faria –, agora: “Abre-te, Sésamo!”



Capítulo XXIV

Deslumbramento


            O Sol chegara a um terço do seu trajeto, aproximadamente, e os seus raios de Maio batiam quentes e vivos nos rochedos, que pareciam sensíveis ao seu calor. Milhares de cigarras, invisíveis nas urzes, faziam ouvir o seu murmúrio monótono e contínuo. As folhas dos mirtos e das oliveiras agitavam-se trêmulas e faziam um ruído quase metálico. A cada passo que dava no granito aquecido, Edmond provocava a fuga de numerosos lagartos que pareciam esmeraldas. Ao longe viam-se saltar sobre os taludes inclinados as cabras-monteses que às vezes atraíam ali os caçadores. Numa palavra, a ilha era habitada, viva, animada, e no entanto Edmond sentia-se nela sozinho e debaixo da mão de Deus.
            Experimentava não sei que emoção bastante semelhante à do medo. Tratava-se dessa desconfiança da luz do dia que leva a supor, mesmo no deserto, que olhos inquisidores estão postos em nós.
            Tal sensação foi tão forte que no momento de deitar mãos à obra Edmond parou, pousou a enxada, pegou a espingarda, trepou mais uma vez à rocha mais elevada da ilha e daí lançou um olhar atento a tudo o que o rodeava.
            Mas, devemos dizê-lo, o que lhe atraiu a atenção não foi nem a Côrsega poética, da qual podia distinguir até as casas, nem a Sardenha quase desconhecida que se lhe seguia, nem a ilha de Elba, de recordações gigantescas, nem  finalmente a linha imperceptível que se estendia no horizonte e que ao olhar
experimentado do marinheiro revelava Gênova, a soberba, e Liorne, a comercial. Não, o que lhe atraiu a atenção foi o bergantim que partira ao romper do dia e a tartana que acabava de partir.
            O primeiro estava prestes a desaparecer no estreito de Bonifácio; a outra, seguindo rumo oposto, costeava a Côrsega, que se preparava para contornar.
            O que viu tranquilizou Edmond.
            Observou os objetos que o rodeavam mais imediatamente. Viu-se no ponto mais elevado da ilha, cônica e frágil estátua nesse imenso pedestal. Por baixo de si, nenhum homem; à sua volta, nenhum barco, nada exceto o mar azulado que vinha bater na base da ilha e que com esse choque eterno bordava uma franja
de prata.
            Desceu com passo rápido, mas cheio de prudência. Temia mais do que nunca naquele momento um acidente semelhante ao que tão habilmente e com tanto êxito simulara.
            Como dissemos, Dantés voltara para trás quando chegara ao fim dos entalhes deixados nos rochedos e verificara que essa linha conduzia a uma espécie de enseadazinha oculta como um banho de ninfas antigo. A enseada era suficientemente larga na entrada e bastante profunda no centro para que um naviozinho do gênero dos spéronares lá  pudesse entrar e permanecer escondido. Então, seguindo o fio das induções - esse fio que nas mãos do abade Faria vira guiar o espirito de forma tão engenhosa no dédalo das probabilidades - pensou que o cardeal Spada, interessado em não ser visto, procurara aquele enseada,
escondera o seu barquinho, seguira a linha indicada pelos entalhes e, na extremidade dessa linha, escondera o seu tesouro.
            Fora esta suposição que levara Dantés junto do rochedo circular.
            Havia, porém, uma coisa que preocupava Edmond e lhe embaralhava todas as idéias que possuía acerca da dinâmica: como fora possível, sem empregar forças consideráveis, içar o rochedo, que devia pesar cinco ou seis toneladas, da espécie de base onde assentava?
            De súbito Dantés teve uma idéia: “Em vez de o fazerem subir, devem tê-lo feito descer”, disse para si mesmo.
            Correu para a parte de cima do rochedo e procurou o lugar da sua primeira base.
            De fato, não tardou a descobrir que fora praticada uma ligeira rampa. O rochedo deslizara da sua base até  se deter no local onde agora se encontrava. Outro rochedo, do tamanho de uma pedra vulgar, servira-lhe de cunha. Pedras e seixos tinham sido cuidadosamente reajustados para fazer desaparecer qualquer solução de continuidade. Essa espécie de pequena obra de pedreiro fora coberta com terra vegetal onde a erva
crescera e o musgo se desenvolvera algumas sementes de murta e lentisco tinham-se fixado e o velho rochedo parecia soldado ao chão.
            Dantés retirou a terra com precaução e reconheceu ou julgou reconhecer todo esse engenhoso artifício.
            Atacou então com a enxada aquela muralha intermédia cimentada pelo tempo.
            Depois de trabalhar durante dez minutos, a muralha cedeu e abriu-se um buraco onde cabia um braço. 
            Dantés cortou a oliveira mais forte que encontrou, desramou-a, introduziu-a no buraco e utilizou-a como alavanca.
            Mas a rocha era não só muito pesada como, ainda por cima, estava calçada tão solidamente pelo rochedo inferior que nenhuma torça humana, mesmo a do próprio Hércules, seria capaz de a deslocar.
            Dantés refletiu então que era precisamente o calço que se impunha atacar.
            Mas como ?
            Dantés olhou à sua volta, como fazem os homens embaraçado e o seu olhar pousou num corno de cabrito-montês cheio de pôlvora que lhe deixara o seu amigo Jacopo.
            Sorriu: a invenção infernal ia ser útil.
            Com o auxílio da enxada, Dantés abriu entre o rochedo superior e o que lhe servia de base um canal de mina como costumam fazer os sapadores quando querem poupar ao braço do homem uma fadiga  demasiado grande, e depois encheu-o de pôlvora. Em seguida, desfiou o lenço, impregnou-o de pólvora e fez dele uma mecha.
            Largou fogo à mecha e afastou-se.
            A explosão não tardou: o rochedo superior foi por momentos erguido da sua base pela força incalculável desencadeada e o rochedo interior voou em pedaços. Pela aberturazinha que Dantés praticara inicialmente fugiu toda a espécie de insetos palpitantes e uma cobra enorme, guarda daquele caminho
misterioso, rolou sobre as suas volutas azuladas e desapareceu.
            Dantés aproximou-se: o rochedo superior, agora sem apoio, inclinava-se para o abismo. O intrépido pesquisador contornou-o, escolheu o lugar mais vacilante, apoiou a alavanca numa das arestas e, como Sísifo, retesou-se com toda a força contra o rochedo.
            Este, já abalado pela explosão, cambaleou. Dantés redobrou de esforços. Diria-se um daqueles Titãs que arrancavam montanhas da sua base para guerrearem o senhor dos deuses. Por fim o rochedo cedeu, rolou, saltou, precipitou-se e desapareceu engolido pelo mar.
            Deixou a descoberto um espaço circular e à vista uma argola de ferro cravada no meio de uma laje quadrada.
            Dantés soltou um grito de alegria e surpresa. Nunca tão magnífico resultado coroara uma primeira tentativa.
            Quis continuar, mas as pernas tremiam-lhe tanto, o coração pulsava-lhe com tanta violência e cobria-lhe os olhos uma nuvem tão ardente que foi obrigado a parar.
            Mas esse momento de hesitação teve a duração do relâmpago. Edmond meteu a alavanca na argola, levantou-a vigorosamente e a laje soltou-se, abriu-se e descobriu a rampa inclinada de uma espécie de escada que mergulhava na sombra de uma gruta cada vez mais escura.
            Outro teria se precipitado e soltado exclamações de alegria; Dantés deteve-se, pálido e desconfiado.
            “Então, sejamos homem!”, disse para consigo. “Habituados à adversidade, não nos deixemos abater por uma decepção. De contrário, teríamos sofrido para nada. O coração fraqueja quando, depois de ser dilatado para além das marcas pelo hálito típido da esperança, reentra e se reencerra na fria realidade. Faria sonhou: o cardeal Spada não escondeu nada nesta gruta,  talvez até  nunca aqui tenha vindo, ou, se veio,
César Bórgia, o intrépido aventureiro, o infatigável e sombrio ladrão, veio depois dele, descobriu-lhe a pista, seguiu os mesmos sinais que eu segui, levantou esta pedra como eu levantei e, descendo primeiro do que eu, não deixou nada para mim.”
            Ficou um momento imóvel, pensativo, de olhos cravados na negra abertura, e continuou:
            “Ora, agora que já não conto seja com o que for, agora que já disse para comigo que seria insensato conservar qualquer esperança, o resto desta aventura é para mim um caso de curiosidade e mais nada.”
            Permaneceu imóvel e meditativo durante mais algum tempo e prosseguiu:
            “Sim, sim, isto é uma aventura que cabe perfeitamente na vida, misto de luz e sombra, desse real bandido; nessa teia de acontecimentos estranhos que constituíam a trama matizada da sua existência. Esse fabuloso acontecimento encadeou-se sem dúvida nenhuma com outras coisas. Sim, Bórgia veio uma noite
qualquer aqui, de archote numa das mãos e espada na outra, enquanto a vinte passos dele, talvez ao pé desta rocha, se conservavam, sombrios e ameaçadores, dois esbirros interrogando a terra, o ar e o mar. Entretanto, o seu senhor entrava na gruta, tal como eu vou fazer, e quebrava as trevas com o seu braço temível e chamejante.
            “Sim, mas que terá feito César dos esbirros a quem confiou assim o seu segredo?”, perguntou-se Dantés.
            “O mesmo que fizeram dos amortalhadores de Alarico, que enterraram com o amortalhado”, respondeu-se sorrindo.
            “Todavia, se tivesse vindo aqui”, prosseguiu Dantés, “e tivesse encontrado e roubado o tesouro, Bórgia, homem que comparava a Itália a uma alcachofra e a comia folha a folha; Bórgia sabia tão bem quanto o tempo era precioso que não perderia o seu a recolocar o rochedo na sua base.
            “Desçamos.”
            Desceu, com o sorriso da dúvida nos lábios e murmurando esta última palavra da sabedoria humana: “Talvez!...”
            Mas em vez das trevas que esperava encontrar, em vez de uma atmosfera opaca‚ viciada, Dantés viu apenas uma luz suave e azulada. O ar e a luz infiltravam-se não só pela abertura que acabava de ser praticada, mas também pelas fendas dos rochedos, invisíveis do exterior, através das quais se via o azul do céu onde se agitavam os ramos trêmulos das azinheiras e os ligamentos espinhosos e rastejantes das silvas.
            Passados alguns segundos de permanência na gruta, cuja atmosfera mais tépida do que úmida, mais perfumada do que bafienta, estava para a temperatura da ilha como a luz azulada estava para o sol, o olhar de Dantés, habituado, como já dissemos, às trevas, pode sondar os recantos mais ocultos da caverna. Esta era de granito e as suas facetas palhetadas cintilavam como diamantes.
            “Meu Deus”, disse Edmond para consigo, sorrindo, “estes são sem dúvida todos os tesouros que deixou o cardeal. E aquele bom abade, ao ver em sonhos estas paredes resplandecentes, forjou as suas ricas esperanças.”
            Mas Dantés recordou-se dos termos do testamento que sabia de cor: “No canto mais afastado da segunda abertura”, dizia o documento. 
            Dantés penetrara apenas na primeira gruta; era necessário agora procurar a entrada da segunda.
            Dantés orientou-se. A segunda gruta devia, naturalmente, penetrar no interior da ilha. Examinou os aglomerados de pedras e foi bater numa das paredes que lhe pareceu ser aquela onde se devia situar a abertura, disfarçada, sem duvida, para maior precaução.
            A enxada ecoou um instante, arrancando ao rochedo um som abafado. Continuou, mas a pedra era tão rija que a testa de Dantés se cobriu de suor. Por fim, pareceu ao mineiro perseverante que uma porção da muralha granítica respondia com um eco mais surdo e profundo ao apelo que lhe dirigiam. Aproximou o olhar ardente da muralha e reconheceu, com o tato do prisioneiro, o que talvez mais ninguém reconhecesse: que
devia haver ali uma abertura.
            No entanto, para não fazer um trabalho inútil, Dantés, que como César Bórgia estudara o valor do tempo, sondou as outras paredes com a enxada e o chão com a coronha da espingarda, cavou a areia nos lugares suspeitos e, não tendo encontrado nem reconhecido nada, tornou a atacar a porção da muralha que
emitia o som animador.
            Bateu de novo e com mais força.
            Viu então uma coisa singular: que debaixo das pancadas do instrumento uma espécie de reboco, idêntico ao que se aplica nas paredes para pintar a fresco, se despegava e caía em palhetas, ao mesmo tempo que descobria uma pedra esbranquiçada e mole, semelhante às nossas vulgares pedras de cantaria.
Fechara-se a abertura do rochedo com pedras de outra natureza e em seguida estendera-se sobre essas pedras uma camada de reboco, e por cima do reboco imitara-se a cor e o aspecto cristalino do granito.
            Dantés atacou então a parede com a extremidade aguçada da enxada, que penetrou uma polegada na porta-muralha.
            Era ali que se devia atacar.
            Por um mistério estranho do comportamento humano, quanto mais as provas de que Faria se não enganara deviam, acumulando-se, tranquilizar Dantés, tanto mais o seu coração desfalecia e se entregava à dúvida e quase ao desânimo. Aquela nova experiência, que lhe deveria dar uma força nova, roubou-lhe a
força que lhe restava. A enxada desceu e quase lhe escapou das mãos. Pousou-a no chão, enxugou a testa e saiu da gruta, dando a si mesmo o pretexto de ver se ninguém o espiava, mas na realidade porque  necessitava de ar, porque sentia estar, prestes a desfalecer.
            A ilha estava deserta e o Sol, no zênite, parecia cobri-la com o seu olho de fogo. Ao longe, barquitos de pescadores abriam as velas sobre o mar de um azul de safira. Dantés ainda não comera nada; mas estava muito longe de lhe apetecer comer em semelhante altura. Tomou um golo de rum e voltou a entrar na gruta com o coração mais fortalecido.
            A enxada, que lhe parecera tão pesada, tornara-se leve. Levantou-a como levantaria uma pena e entregou-se vigorosamente ao trabalho.
            após algumas enxadadas, verificou que as pedras não se encontravam cimentadas, mas apenas pousadas umas sobre as outras e cobertas com o reboco a que já nos referimos. Introduziu numa das fissuras a ponta da enxada, carregou no cabo e viu com alegria a pedra cair-lhe aos pés. 
            Desde então, Dantés não teve mais que tirar cada pedra com o bico de ferro da enxada, e cada uma foi caindo junto da anterior.
            Dantés poderia ter entrado logo que fizera a primeira abertura; mas demorar esse momento alguns instantes equivalia a retardar a certeza e agarrar-se à esperança. Por fim, depois de nova hesitação de um instante, Dantés passou da primeira gruta para a segunda.
            A segunda gruta era mais baixa e escura e de aspecto mais assustador do que a primeira. O ar, que só penetrava nela pela abertura praticada naquele mesmo instante, tinha o cheiro mefítico que Dantés se admirara, de não encontrar na primeira.
            Dantés deu tempo ao ar exterior para reavivar aquela atmosfera de morte e entrou.
            À esquerda da abertura ficava um canto profundo e sombrio. Mas, como dissemos, para a vista de Dantés não havia trevas. Sondou com o olhar a segunda gruta. Eslava vazia como a primeira. O tesouro, se existia, encontrava-se enterrado no canto escuro.
            Chegara a hora da angústia. Dois pés de terra a resolver era tudo o que restava a Dantés entre a suprema alegria e o supremo desespero.
            Avançou para o canto e, como que tomado de uma resolução súbita, atacou o solo ousadamente. À quinta ou sexta enxadada, o ferro encontrou ferro.
            Nunca toque a rebate, nunca dobre a finados produziu semelhante efeito sobre quem ouviu. Se nada tivesse encontrado, Dantés não ficaria com certeza mais pálido.
            Sondou ao lado do lugar onde já sondara e encontrou a mesma resistência, mas não o mesmo som.
            “ É um cofre de madeira com arcos de ferro”, pensou. Neste momento passou uma sombra rápida que interceptou a luz do dia.
            Dantés deixou cair a enxada, pegou na espingarda, transpôs a abertura e correu para fora.
            Uma cabra-montês saltara por cima da primeira entrada da gruta e pastava a poucos passos dali.
            Era uma excelente oportunidade para assegurar o jantar, mas Dantés receou que a detonação da espingarda atraísse alguém. Refletiu um instante, cortou uma árvore resinosa, correu a acendê-la na fogueira ainda fumegante onde os contrabandistas tinham cozinhado o almoço e voltou com esse archote.
            Não queria perder nenhum pormenor do que ia ver. Aproximou o archote do buraco informe e inacabado e verificou que não se enganara: as enxadadas tinham batido alternadamente em ferro e em madeira.
            Cravou o archote no chão e entregou-se de novo ao trabalho. Num instante abriu uma cova de três pés de comprido por dois de largo, aproximadamente, e encontrou um cofre de carvalho com arcos de ferro lavrado. No meio da tampa resplandeciam, numa placa de prata que a terra não conseguira embaciar, as
armas da família Spada, isto é, uma espada pousada em pala sobre um escudo oval, como são os escudos italianos, e encimada por um chapéu de cardeal. 
            Dantés reconheceu-os facilmente. O abade Faria desenhara-os tantas vezes! A partir daquele momento não havia qualquer dúvida: o tesouro estava efetivamente ali. Ninguém toma tantas precauções para
colocar em semelhante lugar um cofre vazio.
            Num instante, todos os lados do cofre foram libertos de terra e Dantés viu aparecer sucessivamente a fechadura do meio, colocada entre dois cadeados, e as asas das faces laterais, tudo lavrado como se lavrava na época, em que a arte tornava preciosos os mais vis metais.
            Dantés pegou no cofre pelas asas e tentou levantá-lo. Impossível.
            Procurou abri-lo. Fechadura e cadeados eram fortes. Os fiéis guardiães pareciam não querer entregar o seu tesouro. Dantés introduziu a parte cortante da enxada entre o cofre e a tampa, carregou no cabo da enxada e a tampa estalou e rebentou.
            Uma ampla abertura nas tábuas tornou as ferragens inúteis e estas acabaram por ceder por seu turno, embora apertando ainda nas suas garras tenazes as tábuas partidas na sua queda, e o cofre ficou destapado.
            Apoderou-se de Dantés uma febre vertiginosa. Pegou na espingarda, armou-a e colocou-a junto de si. Primeiro fechou os olhos, como fazem as crianças para distinguir na noite cintilante da sua imaginação mais estrelas do que podem contar num céu ainda claro, depois abriu-os e ficou deslumbrado.
            O cofre dividia-se em três compartimentos.
            No primeiro brilhavam rutilantes escudos de ouro de reflexos fulvos.
            No segundo, lingotes mal polidos e bem arrumados, mas que do ouro só tinham o peso e o valor.
            Finalmente no terceiro, meio cheio, Edmond revolveu às mãos-cheias diamantes, pérolas e rubis, os quais, transformados em cascata cintilante, faziam, ao cair uns sobre os outros, o ruído do granizo nos vidros.
            Depois de tocar, apalpar e enterrar as mãos trêmulas no ouro e nas pedrarias, Edmond levantou-se e correu novamente através das cavernas com a trêmula exaltação de um homem prestes a enlouquecer. Saltou para um rochedo de onde podia observar o mar e não viu nada; estava só, bem só, com as suas riquezas
incalculáveis, inauditas, fabulosas, que lhe pertenciam. Mas sonhava ou estava acordado? Vivia um sonho fugaz ou abraçava firmemente uma realidade?
            Necessitava rever o seu ouro e no entanto sentia que não teria forças, naquele momento, para o olhar. Levou por instantes as mãos ao alto da cabeça, como que para impedir a razão de lhe fugir. Depois correu através da ilha, sem seguir, qualquer caminho, que o não havia na ilha de Monte-Cristo, mas sim uma direção determinada, afugentando as cabras-monteses e assustando as aves marinhas com os seus gritos e as suas gesticulações. Em seguida deu uma volta e regressou, ainda hesitante, até  que se precipitou para a primeira gruta, depois para a segunda e por fim se deteve diante daquela mina de ouro e diamantes.
            Desta vez caiu de joelhos, comprimiu convulsivamente com as mãos o coração que parecia querer saltar-lhe do peito e murmurou uma prece que só Deus poderia ouvir. 
            Não tardou a sentir-se mais calmo e portanto mais feliz, pois só naquele momento começava a acreditar na sua felicidade. Pôs-se então a contar a sua fortuna. Havia mil lingotes de ouro de duas a três libras cada um. Em seguida empilhou vinte e cinco mil escudos de ouro, que valeriam, cada um, oitenta
francos da nossa moeda atual, todos com a efígie do Papa Alexandre VI e dos seus predecessores, e verificou que o compartimento estava apenas meio vazio. Finalmente, mediu dez vezes a capacidade das suas mãos em pérolas, pedrarias e diamantes, muitos dos quais montados pelos melhores ourives da
época e por isso mesmo possuíam um valor artístico notável, mesmo comparado com o seu valor intrínseco.
            Dantés viu o Sol descer e extinguir-se pouco a pouco. Receava ser surpreendido se permanecesse na caverna e por isso saiu, de espingarda em punho. Algumas bolachas e uns goles de vinho, foram o seu jantar. Depois recolocou a pedra, deitou-se em cima e dormiu apenas algumas horas, tapando com o corpo a
entrada da gruta.
            Aquela noite foi ao mesmo tempo uma dessas noites deliciosas e terríveis como aquele homem de emoções fulminantes passara já duas ou três na vida.


Capítulo XXV

O desconhecido


            Nasceu o dia. Dantés esperava-o havia muito tempo, acordado. Logo que brilhavam os primeiros raios de Sol, levantou-se e subiu, como na véspera, no rochedo mais alto da ilha, a fim de explorar os arredores. Como na véspera, tudo estava deserto.
            Edmond desceu, levantou a pedra, encheu as algibeiras de pedrarias, recolocou o melhor que pode as tábuas e as ferragens do cofre, cobriu-o de terra, calcou-a e deitou-lhe areia por cima, a fim de tornar o lugar recentemente revolvido idêntico ao resto do solo. Saiu da gruta, recolocou a laje e amontoou em cima dela pedras de diversos tamanhos.  Introduziu terra nos intervalos, plantou nesses intervalos mirtos e urzes, regou as plantações novas para que parecessem antigas, apagou os sinais dos seus passos, que rodeavam
abundantemente o local e esperou com impaciência o regresso dos companheiros. Com efeito, agora já se não tratava de passar o tempo a admirar o ouro e os diamantes, a permanecer em Monte-Cristo como um dragão que guardasse inúteis tesouros. Agora era necessário regressar à vida entre os homens e tomar na sociedade a categoria, a influência e o poder que dá neste mundo a riqueza, a primeira e a maior das forças de que pode dispor a criatura humana.
            Os contrabandistas regressaram no sexto dia. Dantés reconheceu de longe o porte e o andamento da Jeune-Amélie. Arrastou-se até  ao porto como Filoctetes ferido e quando os companheiros ancoraram anunciou-lhes embora ainda queixando-se, melhoras sensíveis. Depois escutou por seu turno o relato dos aventureiros. Tinham-se saído bem, era verdade, mas mal a carga fora descarregada tinham sido avisados de que um brigue de vigilância em Toulon acabava de sair do porto e vinha ao encontro deles. Tinham fugido a todo o pano, lamentando que Dantés, que sabia dar ao navio uma velocidade tão superior, não estivesse lá
para dirigir. Com efeito, não tardaram a ver o navio caçador, mas com o auxílio da noite e dobrando o cabo da Côrsega, conseguiram escapar-lhe.
            Em suma, a viagem não fora má. E todos, e sobretudo Jacopo, lamentava que Dantés não tivesse ido, a fim de ter a sua parte nos lucros que o negócio rendera, parte que ascendia a cinquenta piastras.
            Edmond manteve-se impenetrável; nem sequer sorriu quando enumeraram as vantagens que teria compartilhado se tivesse podido deixar a ilha. Mas como a Jeune-Amélie apenas viera a Monte-Cristo para o buscar, reembarcou naquela mesma noite e acompanhou o patrão a Liorne.
            Em Liorne procurou um judeu e vendeu por cinco mil francos cada um quatro dos seus mais pequenos diamantes. O judeu gostaria de salber como é que um marinheiro se encontrava de posse de semelhantes pedras, mas conteve a curiosidade, pois ganhava mil francos em cada uma.
            No dia seguinte comprou um barco novinho em folha, que deu a Jacopo, bem como mais cem piastras para que pudesse contratar uma tripulação. E isto com a condição de Jacopo ir a Marselha procurar notícias de um velho chamado Louis Dantés, residente nas Alamedas de Meilhan, e de uma moça moradora na aldeia
dos Catalães e chamada Mercedes.
            Jacopo julgou sonhar. Edmond contou-lhe então que se tornara marinheiro devido a uma cabeçada e porque a família lhe recusava o dinheiro necessário à sua manutenção. Mas que ao chegar a Liorne recebera a herança de um tio que o nomeara seu único herdeiro. A educação elevada de Dantés dava a essa história tal verosimilhança que Jacopo nem por um instante duvidou que o seu antigo companheiro lhe não dissesse a
verdade.
            Por outro lado, como o contrato de Edmond a bordo da Jeune-Amélie expirara, o jovem despediu-se do patrão, que começou por tentar retê-lo, mas que ao saber como Jacopo a história da herança perdeu imediatamente a esperança de vencer a resolução do seu antigo marinheiro.
            No dia seguinte, Jacopo fez-se de vela para Marselha. Deveria reencontrar-se com Edmond em Monte-Cristo.
            No mesmo dia, Dantés partiu sem dizer para onde ia, depois de se despedir da tripulação da Jeune-Amélie com uma esplêndida gratificação e do patrão com a promessa de lhe dar qualquer dia notícias suas.
            Dantés seguiu para Gênova.
            No momento da sua chegada experimentava-se um iatezinho encomendado por um inglês que, tendo ouvido dizer que os Genoveses eram os melhores construtores do Mediterrâneo, quisera ter um iate construído em Gênova. O inglês ajustara o preço de quarenta mil francos; Dantés ofereceu sessenta mil,
com a condição de o navio lhe ser entregue naquele mesmo dia.
            O inglês fora dar uma volta pela Suíça enquanto esperava que o navio fosse construído e só deveria voltar dentro de três semanas ou um mês. O construtor pensou que teria tempo de pôr outro no estaleiro. Dantés levou o construtor a casa de um judeu, entrou com ele para os fundos da loja e o judeu contou
sessenta mil francos ao construtor. 
            Este ofereceu a Dantés os seus serviços para lhe arranjar uma tripulação, mas Dantés agradeceu-lhe, dizendo-lhe que estava habituado a navegar sozinho e que a única coisa que desejava era que lhe fizessem no camarote, à cabeceira da cama, um armário secreto, com três compartimentos também secretos. Deu
as medidas dos compartimentos e estes foram executados no dia seguinte.
            Duas horas mais tarde, Dantés saia do porto de Gênova escoltado pelos olhares de uma multidão de curiosos que queriam ver o cavalheiro espanhol que tinha o hábito de navegar sozinho.
            Dantés desvencilhou-se maravilhosamente. Com a ajuda do leme, e sem ter necessidade de o deixar, obrigou o navio a fazer todas as evoluções que quis. Dir-se-ia um ser inteligente pronto a obedecer ao mais pequeno gesto, a ponto de o próprio Dantés concordar que os genoveses mereciam a sua reputação de primeiros construtores navais do mundo.
            Os curiosos seguiram o naviozinho com os olhos até  o perderem de vista, e então discutiu-se qual seria o seu destino. Uns inclinaram-se para a Côrsega, outros para a ilha de Elba; estes dispuseram-se a apostar que ia para Espanha, aqueles teimaram que seguia para a África. Ninguém pensou em indicar a
ilha de Monte-Cristo.
            No entanto, era para Monte-Cristo que ia Dantés. Chegou ao fim do segundo dia. O navio era excelente veleiro e percorrera a distancia em trinta e cinco horas. Dantés reconhecera perfeitamente a costa e, em vez de entrar no porto habitual, lançou ferro na enseadazinha.
            A ilha estava deserta. Ninguém parecia ter ali desembarcado desde que Dantés partira. Foi procurar o seu tesouro; encontrava-se tudo no mesmo estado em que o deixara. No dia seguinte a sua imensa fortuna foi transportada para bordo do iate e fechada nos três compartimentos do armário secreto.
            Dantés esperou mais oito dias. Entretanto, manobrou o iate à roda da ilha, estudando-o como um picador estuda um cavalo. Ao fim desse tempo conhecia-lhe todas as qualidades e todos os defeitos. Dantés prometeu a si mesmo aumentar uns e remediar outros.
            Ao oitavo dia, Dantés viu um barquinho dirigir-se para a ilha com todas as velas desfraldadas e reconheceu a embarcação de Jacopo. Fez-lhe um sinal a que Jacopo correspondeu e duas horas mais tarde o barco estava junto do iate.
            Havia uma triste resposta para cada uma das duas perguntas de Edmond.
            O velho Dantés morrera.
            Mercedes desaparecera.
            Edmond escutou as duas notícias com ar calmo, mas desceu imediatamente a terra e proibiu que o acompanhassem.
            Duas horas mais tarde voltou. Dois homens do barco de Jacopo passaram para o iate a fim de ajudarem na manobra e Dantés ordenou que se aproasse a Marselha. Previra a morte do pai; mas que fora feito de Mercedes?
            Edmond não poderia dar instruções suficientes a um agente sem divulgar o seu segredo. De resto, havia mais informações que desejava obter e acerca das quais só confiava em si mesmo. O espelho dissera-lhe em Liorne que não corria o perigo de ser reconhecido. Aliás, tinha agora ao seu dispor todos os meios
de se disfarçar. Assim, uma manhã, o iate, seguido do barquinho, entrou  ousadamente no porto de Marselha e deteve-se precisamente defronte do lugar onde na noite de fatal memória o tinham embarcado para o Castelo de If.
            Não foi sem certo estremecimento que Dantés viu aproximar-se um guarda no escaler da Sanidade. Mas com a segurança perfeita que adquirira apresentou-lhe um passaporte inglês que comprara em Liorne e mediante esse salvo-conduto estrangeiro, muito mais respeitado na França do que o nosso, desceu a terra
sem dificuldade.
            A primeira coisa que Dantés viu ao pôr o pé na Cannebiére foi um dos marinheiros do Pharaon o homem servira sob as suas ordens e vinha a propósito para tranquilizar Dantés a respeito das mudanças que se tinham operado em si. Foi direito ao homem e fez-lhe várias perguntas às quais ele respondeu sem sequer
deixar suspeitar, quer nas suas palavras, quer na sua fisionomia, que se lembrava de ter visto alguma vez aquele que lhe dirigia a palavra.
            Dantés deu ao marinheiro uma moeda de ouro para lhe agradecer as informações. Um instante depois ouviu o bom homem correr atrás de si.
            Dantés voltou-se.
            - Desculpe, senhor - disse o marinheiro –, mas com certeza enganou-se. Deve ter querido dar-me uma moeda de quarenta soldos e deu-me um duplo napoleão.
            - De fato meu amigo, enganei-me - respondeu Dantés. - Mas como a sua honestidade merece uma recompensa, aqui tem outro que lhe peço aceite para beber à minha saúde com os seus camaradas.
            O marinheiro olhou para Dantés tão espantado que nem sequer se lembrou de agradecer e ficou a vê-lo afastar-se dizendo:
            - É algum nabado vindo da índia.
            Dantés continuou o seu caminho. Cada passo que dava oprimia-lhe o coração uma emoção nova. Todas as suas recordações de infância recordações indeléveis, eternamente presentes na memória, estavam ali erguiam-se a cada canto da praça, a cada esquina da rua, em cada cruzamento. Ao chegar ao fim da Rua de Noailles e ver a Alameda de Meilhan, sentiu os joelhos vergarem-se e quase caiu debaixo das rodas de uma carruagem. Por fim chegou à casa onde morara o pai. As aristolóquias e as capuchinhas tinham desaparecido da mansarda, onde outrora a mão do pobre homem as tratava com tanto cuidado.
            Encostou-se a uma árvore e ficou algum tempo pensativo, a olhar os últimos andares da modesta casinha. Por fim dirigiu-se para a porta, transpôs o limiar, perguntou se havia alguma habitação vaga e, apesar de estar ocupada, insistiu tanto em visitar a do quinto andar que o porteiro subiu e pediu, da parte de um estrangeiro, às pessoas que lá moravam, licença para mostrar as duas divisões que constituíam o andar. As pessoas que ocupavam o pequeno apartamento eram um rapaz e uma moça casados havia apenas oito dias.
            Ao ver os dois jovens, Dantés soltou um profundo suspiro.
            Nada recordava já a Dantés o apartamento do pai. O papel não era o mesmo e todos os velhos móveis, esses amigos de infância de Edmond, presentes na sua memória em todos os pormenores, tinham desaparecido. Só as paredes eram as mesmas.  Dantés virou-se para o lado da cama, que ocupava o  mesmo lugar da do antigo inquilino. A seu pesar, os olhos de Edmond encheram-se de lágrimas. Devia ter sido ali que o velho morrera chamando pelo filho.
            Os dois jovens olhavam com espanto aquele homem de rosto severo, pelas faces do qual corriam duas grossas lágrimas sem que ele se importasse Mas como toda a dor traz consigo a sua religião, os jovens não perguntaram nada ao desconhecido. Limitaram-se a recuar para o deixar chorar à vontade, e quando se retirou acompanharam-no e disseram-lhe que poderia voltar quando quisesse, pois a sua pobre casa Ihe seria sempre hospitaleira.
            Ao passar pelo andar de baixo, Edmond parou diante de outra porta e perguntou se continuava a morar ali o alfaiate Caderousse. Mas o porteiro respondeu-lhe que o homem a quem se referia tivera maus negócios e possuía agora uma estalagenzinha na estrada de Bellegarde a Beaucaire.
            Dantés desceu, perguntou a morada do proprietário da casa das Alamedas de Meilhan, dirigiu-se para lá, fez-se anunciar sob o nome de Lorde Wimore (o nome e o título inscritos no passaporte) e comprou-lhe o prédio por vinte e cinco mil francos. Eram, pelo menos, mais dez mil francos do que valia. Mas se lhe tivessem pedido meio milhão, Dantés teria dado.
            No mesmo dia, os inquilinos do quinto andar foram avisados pelo tabelião que lavrara a escritura de que o novo proprietário lhos dava a escolher um apartamento em todo o prédio, sem aumentar de forma alguma a renda, com a condição de lhe cederem os dois quartos que ocupavam.
            Este acontecimento estranho ocupou durante mais de oito dias todos os frequentadores habituais das Alamedas de Meilhan e originou mil e uma conjecturas, nenhuma das quais exata.
            Mas o que sobretudo confundiu todos os cérebros e perturbou todos os espíritos foi ver-se à tardinha o mesmo homem que se vira entrar na casa das Alamedas de Meilhan a passear na aldeola dos Catalães e entrar numa pobre casa de pescadores, onde ficou mais de uma hora a pedir notícias de diversas pessoas que tinham morrido ou desaparecido havia mais de quinze ou dezesseis anos.
            No dia seguinte, as pessoas em casa de quem entrara para fazer todas essas perguntas receberam como presente um barco catalão novinho em folha acompanhado de duas chinchas e de uma xávega.
            Essa pobre gente bem gostaria de agradecer ao generoso perguntador, mas ao deixá-los tinham-no visto, depois de dar algumas ordens a um marinheiro, montar a cavalo e sair de Marselha pela porta de Aix.

Capítulo XXVI

A Estalagem da Ponte do Gard


            Aqueles que como eu percorreram a pé o Meio-Dia da Franca devem ter notado entre Bellegarde e Beaucaire, aproximadamente a meio caminho da aldeia à cidade, mas mais perto de Beaucaire do que de Bellegarde, uma  estalagenzinha donde pende, numa chapa metálica que range à menor aragem, uma grotesca representação da ponte de Gard. Tomando como ponto de referência o curso do Rôdano, a
estalagenzinha está situada do lado esquerdo da estrada, de costas viradas para o rio. Completa-a o que no Linguadoque se chama um quintal, isto é, o lado oposto àquele onde se abre a porta destinada aos viajantes dá para um recinto onde vegetam algumas oliveiras enfezadas e outras tantas figueiras-bravas, de folhagem prateada pela poeira. Nos seus intervalos crescem, e é tudo quanto a legumes, alhos, pimentos e chalotas.
Finalmente, num dos cantos, como uma sentinela esquecida, um grande pinheiro manso ergue  melancolicamente o tronco flexível, enquanto a copa, aberta em leque, torra sob um sol de trinta graus.
            Todas essas árvores, grandes ou pequenas, se inclinam naturalmente na direção onde passa o mistral, um dos três flagelos da Provença. Os outros dois, como se sabe ou como se não sabe, são a Durance e o Parlamento.
             Aqui e ali, na planície circundante, que lembra um grande lago de poeira, vegetam algumas espigas de trigo candial, que os horticultores da região cultivam sem dúvida por curiosidade e cada uma das quais serve de poleiro a uma cigarra que persegue com o seu canto  spero e monôtono os viajantes perdidos nesta
tebaida.
            Havia cerca de sete ou oito anos que a estalagenzinha era explorada por um homem e uma mulher que tinham apenas como pessoal uma criada de quartos chamada Trinette e um moço de estrebaria chamado Pacaud - dupla cooperação que de resto chegava amplamente para satisfazer as necessidades do serviço
desde que um canal aberto entre Beaucaire e Aiguemortes fizera suceder vitoriosamente os barcos ao transito acelerado e a embarcação de carga e passageiros à diligência.
            Como que para tornar ainda mais pungentes as queixas do pobre estalajadeiro que arruinava, o canal passava entre o Rôdano, que o alimentava, e a estrada, que exauria, e a cerca de cem passos da estalagem de que acabamos de dar uma breve mas fiel descrição.
            O homem que dirigia a estalagenzinha devia contar quarenta a quarenta e cinco anos, era alto, magro e nervoso, autêntico tipo meridional com os seus olhos encovados e brilhantes, o seu nariz aquilino e os seus dentes brancos como os de um animal carnívoro. Os seus cabelos que pareciam, apesar dos primeiros ataques da idade, não se decidirem a embranquecer, eram, assim como a barba que usava em forma de colar, espessos, frisados e entremeados de pouquíssimos cabelos brancos. A sua tez, naturalmente morena, estava ainda coberta por uma camada de bistre, devido ao hábito que o pobre diabo adquirira de se manter de manhã à noite à porta do estabelecimento, para ver se, quer a pé, quer de carruagem, chegava algum cliente - espera quase sempre frustrada e durante a qual se limitava a proteger o rosto do calor escaldante do sol com um lenço de assoar vermelho, atado na cabeça, à maneira dos almocreves espanhóis. Este homem era o nosso velho conhecido Gaspard Caderousse.
            A mulher, pelo contrário, que em solteira se chamava Madeleine Radelle, era uma mulher pálida, magra e achacada. Nascida nos arredores de Arles, embora conservasse os traços primitivos da beleza tradicional das suas patrícias, vira o rosto arruinar-se-lhe lentamente devido aos acessos quase contínuos de uma dessas febres inexoráveis tão comuns entre as populações vizinhas das lagoas de  Aiguemortes e dos
pântanos da Camarga. Conservava-se portanto quase sempre sentada e a tiritar ao fundo do quarto, situado no primeiro andar, quer estendida numa poltrona, quer encostada à cama, enquanto o marido montava à porta o seu quarto de sentinela habitual, que prolongava com tanto mais prazer quanto é certo que todas as vezes que se encontrava com a sua azeda metade esta perseguia-o com as suas eternas queixas contra o destino,
queixas a que o marido respondia habitualmente apenas com estas palavras filosóficas:
            “Cala-te, Carconte! E Deus que assim o quer.”
            Esta alcunha devia-se ao fato de Madeleine Radeile ter nascido na aldeia da Carconte, situada entre Salon e Lambesc. Ora, de acordo com um hábito da região, segundo o qual se designam quase sempre as pessoas por uma alcunha em vez de as designar por um nome, o marido substituíra por aquele apelativo o de Madeleine, demasiado suave e eufônico, talvez para a sua linguagem rude.
            Todavia, apesar da sua pretensa resignação aos decretos da Providência, não se julgue que o nosso estalajadeiro não sentia profundamente o estado de miséria a que o reduzira o miserável canal de Beaucaire e que era insensível aos incessantes queixumes com que a mulher o perseguia. Era, como todos os meridionais, um homem sóbrio e sem grandes necessidades, mas exibicionista. Por isso, no tempo da sua
prosperidade não deixava passar nem uma ferra de gado, nem uma procissão da tarasca sem nelas se mostrar com a Carconte, um no trajo pitoresco dos homens do Meio-Dia, misto de catalão e andaluz, e a outra com o encantador trajo das mulheres de Arles, que parece inspirado na Grécia e na Arábia. Mas pouco a
pouco, correntes de relógio, colares, cintas de mil cores, corpetes bordados, jaquetas de veludo, meias elegantes, polainas sarapintadas e sapatos com fivelas de prata tinham desaparecido e Gaspard Caderousse, não podendo continuar a mostrar-se à altura do seu esplendor passado, renunciara por si e pela mulher a todas as pompas mundanas cujo estrépido alegre ouvia, roído de inveja, ecoar até  à pobre estalagem que continuava a conservar mais como um abrigo do que como um negócio.
            Caderousse mantivera-se, como era seu hábito, parte da manhã diante da porta, passeando o olhar melancólico de um relvadozinho pelado, onde debicavam algumas galinhas, até  às duas extremidades do caminho deserto, que se dirigia de um lado para o sul e do outro para o norte. De súbito, porém, a voz azeda da mulher obrigou-o a abandonar o seu posto. Entrou na casa resmungando e subiu ao primeiro andar, mas deixou a porta escancarada como se quisesse convidar os viajantes a não a esquecerem quando passassem.
            No momento em que Caderousse entrou em casa, a estrada de que falamos e que ele percorria com a vista encontrava-se tão vazia e solitária como o deserto ao meio-dia. Estendia-se, branca e infinita, entre duas alas de  árvores enfezadas, e compreendia-se perfeitamente que um viajante, livre de escolher outra hora do dia, se não aventurasse naquele medonho Saara.
            No entanto, apesar de todas as probabilidades, se Caderousse tivesse ficado no seu posto poderia ter visto aparecer, do lado de Bellegarde, um cavaleiro e um cavalo no passo respeitável e amistoso que indica as melhores relações entre o cavalo e o cavaleiro. O animal era um cavalo castrado e avançava a passo travado; o cavaleiro era um padre vestido de preto e coberto com um tricôrnio, apesar do calor escaldante
do Sol, então no seu zênite. O andamento de ambos não ia além de um trote muito razoável.
            Chegado diante da porta o grupo parou. Seria difícil decidir se foi o cavalo que deteve o homem ou o homem que deteve o cavalo; mas em todo o caso o cavaleiro pôs pé em terra e, puxando o animal pela brida, foi prendê-lo ao torniquete de um guarda-vento escalavrado que já só tinha um gonzo. Em seguida dirigiu-se para a porta, enxugando com um lenço de algodão encarnado a testa coberta de suor, e bateu três vezes no
limiar com a ponta ferrada da bengala que segurava na mão.
            Ato contínuo, um grande cão preto levantou-se e deu alguns passos rosnando e mostrando os dentes brancos e agudos, dupla demonstração hostil que provava quão pouco habituado estava a conviver.
            Imediatamente um passo pesado fez estremecer a escada de madeira que subia ao longo da parede e que descia, curvado e às arrecuas, o dono do pobre estabelecimento à porta do qual se encontrava o padre.
            - Já  vou! - dizia entretanto Caderousse, surpreendidíssimo. - Já  vou! Faça o favor de se calar, Margottin? Não tenha medo, senhor; ladra mas não morde. Deseja vinho, não é verdade? Sempre está um destes calores... Ah, perdão! - interrompeu-se Caderousse ao ver com que espécie de viajante tratava. - Não
sabia quem tinha a honra de receber. Que deseja, em que o posso servir, Sr. Abade? Estou às suas ordens.
            O padre olhou o homem durante dois ou três segundos com uma atenção estranha e pareceu até  procurar atrair sobre si a atenção do estalajadeiro. Depois, vendo que as feições deste só exprimiam surpresa por não receber resposta, achou que era tempo de pôr termo a essa surpresa e perguntou com um acento italiano muito pronunciado:
            - O senhor não se chama Caderousse?
            - Chamo, senhor - respondeu o estalajadeiro, talvez ainda mais surpreendido com a pergunta do que com o silêncio. - Sou, com efeito. Gaspard Caderousse para o servir.
            - Gaspard Caderousse... Sim, creio serem esses o nome e o apelido. Morou há tempos nas Alamedas de Meilhan, não é verdade? No quarto andar?
            - Exato.
            - Exercia lá a profissão de alfaiate?
            - Exercia, mas o negócio foi por água abaixo. E que faz tanto calor naquela maldita Marselha que, na minha opnião, as pessoas acabarão por andar nuas. Mas a propósito de calor, não deseja refrescar-se, Sr. Abade?
            - Pois sim. Dê-me uma garrafa do seu melhor vinho e continuemos a conversa, se não se importa, a partir do ponto onde a deixamos.
            - Como quiser, Sr. Abade - respondeu Caderousse.
            E para não perder a oportunidade de vender uma das últimas garrafas de vinho de Cahors que lhe restavam, Caderousse apressou-se a levantar um alçapão aberto do próprio soalho daquela espécie de sala do térreo, que servia ao mesmo tempo de cozinha.
            Quando passados cinco minutos reapareceu, encontrou o abade sentado num banco, com o cotovelo apoiado numa mesa comprida, enquanto Margottin, que parecia ter feito as pazes com ele, talvez por esperar que, contrariamente ao habitual, aquele viajante singular tomasse qualquer coisa, lhe estendia sobre a coxa o pescoço descarnado e o olhar langoroso.
            - Está sozinho? - perguntou o abade ao estalajadeiro enquanto este pousava diante dele a garrafa e um copo.
            - Oh, meu Deus! Sim, sozinho ou quase, Sr. Abade! Tenho a minha mulher, mas ela não me pode ajudar em nada, atendendo a que está sempre doente, a pobre Carconte.
            - Ah, é casado! - disse o padre, com uma espécie de interesse, e deitando à sua volta um olhar que parecia avaliar no seu escasso valor o modesto mobiliário do pobre casal.
            - Parece-lhe que não sou rico, não é verdade, Sr. Abade? - disse, suspirando, Caderousse. - Mas que quer, não basta um homem ser honesto para prosperar no mundo.
            O abade cravou nele um olhar penetrante.
            - Sim, um homem honesto; posso me gabar disso, senhor -  insistiu o estalajadeiro, sustentando o olhar do abade, com uma das mãos no peito e abanando a cabeça de cima para baixo. - Nos tempos que correm, são poucos que podem dizer o mesmo.
            -Tanto melhor se é verdade isso que se gaba - perguntou o abade –, pois mais tarde ou mais cedo, é minha firme convicção, o homem honesto é recompensado e o mau punido.
            - É próprio do seu estado dizer isso, Sr. Abade; é próprio do seu estado dizer isso - prosseguiu Caderousse com uma expressão amarga –, mas cada qual é livre de não acreditar no que o senhor diz.
            - Faz mal em falar assim, senhor - perguntou o abade –, pois talvez eu próprio seja para si, dentro em breve, uma prova do que afirmo.
            - Que quer dizer? - perguntou Caderousse com ar atônito.
            - Quero dizer que antes de mais nada tenho de me assegurar se o senhor é o homem que procuro.
            - Que provas quer que lhe dê?
            - Conheceu em 1814 ou 1815 um marinheiro chamado Dantés?
            - Dantés!... Se conheci o pobre Edmond! Sem dúvida nenhuma! Era até  um dos meus melhores amigos! - exclamou Caderousse, cujo rosto foi invadido por um vermelho-púrpura, enquanto os olhos claros e firmes do abade pareciam dilatar-se para abarcarem por completo aquele que interrogava.
            - Sim, creio que efetivamente se chamada Edmond.
            - Se se chamava Edmond, o pequeno! Claro que chamava! Tão certo como eu chamar-me Gaspard Caderousse. E que foi feito dele, senhor, desse pobre Edmond? - prosseguiu o estalajadeiro. - Conheceu-o? Ainda está vivo? Está em liberdade? É feliz?
            - Morreu prisioneiro, mais desesperado e miserável do que os forçados que arrastam a grilheta na cadeia de Toulon.
            Uma palidez mortal sucedeu no rosto de Caderousse ao rubor que inicialmente o cobria. Virou-se e o abade viu-o enxugar uma lágrima com uma ponta do lenço encarnado que lhe servia para cobrir a cabeça.
            - Pobre rapaz! - murmurou Caderousse.- Pois aí tem mais uma prova do que lhe dizia, Sr. Abade: Deus só é bom para os maus. Ah - continuou Caderousse, com a linguagem colorida da gente do Meio-Dia –, o mundo vai de mal a pior! Deviam cair do céu dois dias de pólvora e uma hora de fogo, para acabar com isto
tudo! 
            - Parece que o senhor gostava muito desse rapaz - observou o abade.
            - É verdade, gostava muito dele - confirmou Caderousse  - embora tenha de me penitenciar de ter por um instante invejado a sua felicidade. Mas depois, juro-lhe, palavra de Caderousse, tenho lamentado muito a sua pouca sorte.
            Fez-se um momento de silêncio durante o qual o olhar fixo do abade não cessou um instante de interrogar a fisionomia mutável do estalajadeiro.
            - E o senhor conheceu o pobre rapaz? - continuou Caderousse.
            - Fui chamado ao seu leito de morte para lhe oferecer os derradeiros socorros da religião - respondeu o abade.
            - De que morreu? - perguntou Caderousse, com voz estrangulada.
            - De que se morre na prisão quando se morre aos trinta anos, se não da própria prisão?
            Caderousse enxugou o suor que lhe corria pela testa.
            - O que é estranho no meio de tudo isto - prosseguiu o abade - é que Dantés me jurou sempre no seu leito de morte, sobre o Cristo cujos pés beijava, ignorar a verdadeira causa do seu cativeiro.
            - É verdade, é verdade - murmurou Caderousse –, não podia sabê-lo. Não, Sr. Abade, ele não mentia, o pobre rapaz.
            - Foi por isso que me encarregou de esclarecer a sua desgraça, o que ele nunca pode lazer, e de reabilitar a sua memória, se essa memória tivesse recebido qualquer mácula.
            E o olhar do abade, cada vez mais fixo, devorou a expressão quase sombria que apareceu no rosto de Caderousse.
            - Um rico inglês - continuou o abade - seu companheiro de infortúnio e que saiu da prisão quando da II Restauração possuía um diamante de grande valor. Ao sair da prisão quis deixar a Dantés, que numa doença que contraíra o tratara como um irmão, uma prova do seu reconhecimento e ofereceu-lhe esse diamante. Dantés, em vez de se servir dele para subornar os carcereiros, que Aliás poderiam receber-lhe o diamante e
atraiçoá-lo depois, conservou-o sempre preciosamente, para o caso de sair da prisão. Porque se saísse da prisão a sua fortuna estava assegurada só com a venda do diamante.
            - Era portanto, como o senhor disse, um diamante de grande valor? - perguntou Caderousse, com os olhos coruscantes.
            - Tudo é relativo - prosseguiu o abade. - De grande valor para Edmond. O diamante estava avaliado em cinquenta mil francos.
            - Cinquenta mil francos! - exclamou Caderousse. - Mas então... seria assim do tamanho de uma noz?
            - Nem tanto - respondeu o abade. - Mas, vai ver por si mesmo, pois trago-o comigo.
            Caderousse pareceu procurar nas vestes do abade onde estaria a pedra preciosa.
            O abade tirou da algibeira uma caixinha de chagrém preto, abriu-a e fez brilhar aos olhos deslumbrados de Caderousse a cintilante maravilha, montada num anel de admirável trabalho.
            - E isso vale cinquenta mil francos?
            - Sem a montagem, que por si só também tem certo valor - respondeu o abade. 
            Fechou o estojo e voltou a meter na algibeira o diamante, que continuava a brilhar no fundo do cérebro de Caderousse.
            - Mas como se explica que tenha esse diamante em seu poder Sr. Abade? - perguntou Caderousse. - Edmond nomeou-o seu herdeiro?
            - Não, mas sim seu executor testamentário. “Tenho três bons amigos e uma noiva”, disse-me. “Estou certo de que todos os quatro me lamentam amargamente. Um desses bons amigos chamava-se  Caderousse.”
            Caderousse estremeceu.
            - “Outro...” - continuou o abade sem parecer notar a emoção de Caderousse - “outro chamava-se Danglars e o terceiro” acrescentou, “apesar de meu rival, estimava-me muito.”
            Um sorriso diabôlico iluminou as feições de Caderousse, que fez um gesto para interromper o abade.
            - Espere - atalhou este –, deixe-me acabar, se tiver alguma observação a fazer-me, faça-a  depois. “O outro, apesar de meu rival, também me estimava e chamava-se Fernand. Quanto à minha noiva, o seu nome era...” já não me lembro do nome da noiva - disse o abade.
            - Mercedes - informou Caderousse.
            - Ah, sim, é isso! - exclamou o abade, que depois soltou um suspiro abafado. - Mercedes...
            - E que mais? - perguntou Caderousse.
            - Dê-me uma garrafa de água - pediu o abade.
            Caderousse apressou-se a obedecer.
            O abade encheu o copo e bebeu uns golos.
            - Aonde estávamos? - perguntou, pousando o copo em cima da mesa.
            - A noiva chamava-se Mercedes.
            - Sim, é isso. “Vá a Marselha...” Continua a ser Dantés quem fala, compreende?
            - Perfeitamente.
            - “Venda o diamante, faça cinco quinhões e divida-os entre esses bons amigos, os únicos entes que me estimaram no mundo!”
            - Como cinco quinhões? - atalhou Caderousse. - O senhor só se referiu a quatro pessoas...
            - Porque a quinta morreu, segundo me disseram... A quinta era o pai de Dantés.
            - Sim, desgraçadamente! - confirmou Caderousse, impressionado pelos sentimentos que se entrechocavam em si. - Sim, desgraçadamente o pobre homem morreu.
            - Soube do seu falecimento em Marselha - declarou o abade, fazendo um esforço para parecer indiferente. - Mas a morte foi há  tanto tempo que não pude obter nenhum pormenor... Sabe alguma coisa acerca do fim do velhote?
            - Ora, ora!... A tal respeito ninguém sabe mais do que eu! Morava porta com porta com o pobre homem... Sim, meu Deus, passado apenas um ano depois da prisão do filho, o pobre velho morreu!
            - Mas de quê?
            - Os médicos chamaram à doença... gastrenterite, se me não engano. Mas aqueles que o conheciam disseram que morreu de dor. E eu, que quase o vi morrer, digo que morreu... 
            Caderousse deteve-se.
            - Morreu de quê? - insistiu com ansiedade o padre.
            - Bom... morreu de fome!
            - De fome?! - gritou o abade, saltando do banco. - De fome? Os mais vis animais não morrem de fome! Os cães que vagueiam pelas ruas encontram uma mão compassiva que lhos atira um bocado de pão. E um homem, um cristão, morre de fome no meio de outros homens que se dizem cristãos como ele! Impossível!
Oh, é impossível.
            - O que disse está dito! - perguntou Caderousse.
            - Mas não devia ter dito! - exclamou uma voz vinda da escada. - Porque se mete onde não é chamado?
            Os dois homens viraram-se e viram através das barras do corrimão o rosto doentia da Carconte. Arrastara-se até  ali e escutava a conversa sentada no último degrau, com o rosto apoiada nos joelhos.
            - E você, mulher, porque se intromete na conversa? - volveu-lhe Caderousse. - Este senhor pede informações e a delicadeza manda que as dê.
            - Pois sim, mas a prudência manda que as recuse. Quem te diz com que intenção te querem fazer falar, imbecil?
            - Com a melhor das intenções, minha senhora, garanto-lhe - interveio o abade. - O seu marido não tem nada a temer, desde que responda francamente.
            - Ora não tem nada a temer, não tem nada a temer!... Claro que tem! Começa-se com bonitas promessas e depois diz-se apenas que não tem nada a temer... Em seguida desaparece-se sem cumprir nada do que se prometeu e uma boa manhã a desgraça cai sobre um pobre de Cristo sem que ele saiba donde lhe vem.
            - Esteja tranquila, boa mulher, que nenhuma desgraça lhos virá da minha parte, garanto-lhe.
            A Carconte resmungou algumas palavras que ninguém entendeu, deixou cair novamente nos joelhos a cabeça que levantara por instantes e continuou a tremer de febre, deixando o marido livre para continuar a conversa, mas colocada de maneira a não perder uma palavra.
            Entretanto, o abade bebera alguns goles de água e recuperara a serenidade.
            - Mas então esse infeliz velho estava assim tão abandonado por toda a gente, a ponto de morrer dessa maneira?
            - Oh, senhor, Mercedes, a catalã, e o Sr. Morrel não o abandonaram! - prosseguiu Caderousse. - Mas o pobre velho tomou-se de uma antipatia profunda por Fernand, esse mesmo - acrescentou Caderousse com um sorriso irônico - que Dantés lhe disse ser um dos seus amigos.
            - E não o era? - perguntou o abade.
            - Gaspard, Gaspard!... murmurou a mulher do cimo da escada. - Preste atenção ao que vai dizer.
            Caderousse fez um gesto de impaciência, única resposta que se dignou conceder à mulher, e respondeu ao abade:
            - É possível ser amigo daquele cuja mulher se cobiça? Dantés, que era um coração de ouro, chamava a toda essa gente amigos...Pobre Edmond!... Na verdade, é preferível que não tenha sabido de nada. Teria muita dificuldade em lhes perdoar na hora da morte... E, apesar do que dizem - continuou Caderousse  na
sua linguagem a que não faltava uma espécie de poesia rude –,ainda tenho mais medo da maldição dos mortos do que do ódio dos vivos.
            - Imbecil! - gritou a Carconte.
            - Sabe então - continuou o abade - o que Fernand fez contra Dantés?
            - Se sei? Creio bem que sim.
            - Fale então.
            - Gaspard, aja como quiser, pois você é que manda - interveio a mulher –, mas se confia em mim não diga mais nada.
            - Desta vez creio que tem razão, mulher - concordou Caderousse.
            - Portanto, não quer dizer mais nada? - perguntou o abade.
            - Que adianta falar? - perguntou Caderousse. - Se o rapaz fosse vivo e me procurasse para saber concretamente quem eram os seus amigos e os seus inimigos, não digo que não falasse. Mas ele está debaixo da terra, segundo o senhor me disse, e já não pode ter ódio, já não pode se vingar. Ponhamos uma pedra em cima de tudo isso.
            - Quer então - disse o abade - que dê a essa gente, que o senhor considera indigna, a esses amigos que considera falsos, uma recompensa destinada à fidelidade?
            - É verdade, tem razão - admitiu Caderousse. - De resto, que representaria agora para eles o legado do pobre Edmond? Uma gota de água no oceano!
            - Sem contar que essa gente pode te esmagar com um gesto - salientou a mulher.
            - Como assim? Quer dizer que se tornaram ricos e poderosos?
            - Então não conhece a sua história?
            - Não. Conte-me.
            Caderousse pareceu refletir um instante.
            - Não. Na verdade, seria demasiado longo - acabou por dizer.
            - Tem todo o direito de se calar, meu amigo - disse o abade, em tom da mais profunda indiferença –, e respeito os seus escrúpulos. Aliás, o seu procedimento é o de um homem verdadeiramente bom. Não falemos portanto mais disso. De que estava eu encarregado? De uma simples formalidade. Venderei
pois o diamante.
            E tirou o diamante da algibeira, abriu o estojo e fê-lo brilhar nos olhos deslumbrados de Caderousse.
            - Venha , mulher! - disse o estalajadeiro, com voz rouca.
            - Um diamante! - exclamou a Carconte, levantando-se e descendo com passo bastante firme a escada. - Que diamante é esse?
            - Não ouviu, mulher? - disse Caderousse. - É um diamante que o pequeno nos legou: ao pai, em primeiro lugar, e depois aos seus três amigos, Fernand, Danglars e eu, e a Mercedes, sua noiva. O diamante vale cinquenta mil francos.
            - Oh, que linda jóia! - exclamou a mulher.
            - Pertence-nos então a quinta parte dessa importância? - perguntou Caderousse.
            - Pertence - respondeu o abade. - Mais a parte do pai de Dantés, que me julgo autorizado a repartir pelos quatro.
            - E porquê pelos quatro? - perguntou a Carconte.
            - Porque são os quatro amigos de Edmond. 
            - Os amigos não são aqueles que atraiçoam! - murmurou surdamente, por sua vez, a mulher.
            - Claro, claro - acrescentou Caderousse. - Era exatamente o que eu dizia. É quase uma profanação, quase um sacrilégio, recompensar a traição, o crime talvez.
            - Vocês assim querem... - perguntou tranquilamente o abade, voltando a guardar o diamante na algibeira da sotaina. - Agora dêem-me as moradas dos amigos de Edmond, a fim de poder executar as suas últimas vontades.
            O suor corria em grandes gotas pela testa de Caderousse. Viu o abade levantar-se e dirigir-se para a porta, como que para deitar uma olhadela ao cavalo, e voltar.
            Caderousse e a mulher entreolhavam-se com expressão indizível.
            - O diamante seria inteirinho para nós - disse Caderousse.
            - Acha - respondeu a mulher.
            - Um padre não viria aqui para nos enganar.
            - Faça como quiser - disse a mulher. - Quanto a mim, não me meto nisso.
            E retomou o caminho da escada, sempre tiritando. Batia os dentes, apesar do calor escaldante que fazia. No último degrau parou um instante.
            - Pense bem, Gaspard! - aconselhou ao marido.
            - Estou decidido! - respondeu Caderousse.
            Carconte reentrou no quarto suspirando. Ouviu-se o soalho ranger-lhe debaixo dos pés até  chegar à poltrona, onde se sentou pesadamente.
            - Está decidido a quê? - indagou o abade.
            - A dizer-lhe tudo - respondeu o estalajadeiro.
            - Na verdade, parece-me que é o melhor que tem a fazer - concordou o padre. - Não porque me interesse saber as coisas que me queria esconder; mas enfim, se puder ajudar-me a distribuir os legados de acordo com os desejos do testador, será  melhor.
            - Assim espero - respondeu Caderousse, com as faces incendiadas pelo rubor da esperança e da cupidez.
            - Escuto-o - disse o abade.
            - Espere - pediu Caderousse. - Poderiam interromper-nos no ponto mais interessante e seria desagradável. Aliás, ninguém precisa saber que o senhor esteve aqui.
            Dirigiu-se para a porta da estalagem e fechou-a, e para maior precaução trancou-a também.
            Entretanto, o abade escolheu um bom lugar para ouvir tudo à vontade: sentou-se a um canto, de modo a ficar na sombra, enquanto a luz cairia em cheio no rosto do seu interlocutor. Com a cabeça inclinada e as mãos juntas, ou antes, crispadas, preparava-se para ouvir com toda a atenção.
            Caderousse puxou um banco e sentou-se diante dele.
            - Lembre-se de que não te incitei a nada - disse a voz trêmula da Carconte, como se pudesse ver, através do sobrado, a cena que se preparava.
            - Está bem, está bem - perguntou Caderousse. - Não falemos mais disso. Assumo toda a responsabilidade.
            E começou.


Capítulo XXVII

O relato


            - Antes de mais nada - disse Caderousse - devo, senhor, pedir-lhe que me prometa uma coisa.
            - Qual? - perguntou o abade.
            - Se alguma vez utilizar algum dos fatos que lhe vou revelar, que ninguém saiba que soube esses fatos por mim, pois aqueles de quem lhe vou falar são ricos e poderosos e se me tocassem só que fosse com a ponta de um dedo me quebrariam como vidro.
            - Esteja descansado, meu amigo - declarou o abade. - Sou padre e as confissões morrem comigo. Lembre-se de que o nosso objetivo é apenas cumprir dignamente as últimas vontades do nosso amigo. Fale pois à vontade, mas sem ódio. Diga a verdade, toda a verdade. Não conheço e provavelmente nunca conhecerei as pessoas de que vai falar. De resto, sou italiano e não francês. Pertenço a Deus e não aos homens e vou regressar ao meu convento, donde saí apenas para cumprir as últimas vontades de um moribundo.
            Esta promessa positiva pareceu dar a Caderousse um pouco de confiança.
            - Bom, nesse caso, quero, direi mesmo mais, devo desenganá-lo a respeito dessas amizades que o pobre Edmond julgava sinceras e dedicadas.
            - Comecemos pelo pai, se não se importa - sugeriu o abade. - Edmond falou-me muito do velhote, pelo qual nutria profundo amor.
            - A história é triste, senhor - observou Caderousse, abanando a cabeça. - Conhece-lhe provavelmente os princípios.
             - Conheço - respondeu o abade. Edmond contou-me tudo até  o momento de ser preso, num restaurantezinho perto de Marselha.
            - Na Reserva! Oh, meu Deus, sim! Ainda vejo tudo tal qual como se passou.
            - Não foi no próprio banquete de noivado?
            - Foi. E o banquete, que tivera um começo alegre, teve um fim triste: um comissário de polícia acompanhado de quatro soldados entrou e prendeu Dantés.
            - É exatamente aí que termina o que sei - declarou o padre. - O próprio Dantés não sabia mais nada além do que lhe era estritamente pessoal, pois nunca mais tornou a ver nenhuma das cinco pessoas de que lhe falei, nem ouviu falar delas.
            - Bom, uma vez, Dantés preso, o Sr. Morrel correu a obter informações, que foram bem tristes. O velho voltou sozinho para casa, despiu o traje de festa chorando, passou todo o dia andando de um lado para o outro no quarto e à noite não se deitou, pois eu morava por baixo dele e ouvi-o andar toda a noite. Eu próprio, devo dizê-lo, também não dormi, porque a dor do pobre pai me afligia muito e cada um dos seus passos
esmagava-me o coração como se ele me pusesse realmente o pé no peito.
            “no dia seguinte, Mercedes veio a Marselha implorar a proteção do Sr. de Villefort, mas não conseguiu nada. Aproveitou no entanto a oportunidade para visitar o velhote. Quando o viu tão triste e abatido e soube que passara a noite sem se meter na cama e que não comia desde a véspera, quis levá-lo para cuidar dele, mas o velho recusou terminantemente.
            “- Não - dizia ele –, não sairei de casa, pois é a mim que o meu pobre filho ama antes de mais nada e se sair da prisão é a mim que correrá a ver em primeiro lugar. Que diria se não estivesse aqui à sua espera?
            “eu escutava tudo isto do patamar da escada, porque gostaria que Mercedes convencesse o velho a acompanhá-la. O eco daqueles passos todos os dias por cima da minha cabeça não me deixavam um instante de repouso.
            - Mas o senhor mesmo não subia a casa do velho para o confortar? - perguntou o padre.
            - Ah, senhor, só se confortam aqueles que querem ser confortados e ele não o queria ser! - respondeu Caderousse. - De resto, não sei porquê, mas parece-me que tinha repugnância em ver-me. Uma noite, ao ouvir os seus soluços, não aguentei mais e subi; mas quando cheguei à porta já não soluçava, rezava. As palavras eloquentes e as súplicas piedosas que encontrava para se exprimir eram tão comoventes que não
saberia repetir-lhas, senhor. Aquilo era mais do que devoção, era mais do que dor. Por isso, eu que não sou beato falso nem gosto dos Jesuítas, disse para comigo naquele dia: “é uma grande sorte, na verdade, ser só e Deus não me ter dado filhos, porque se fosse pai e sentisse dor idêntica à do pobre velho, como não poderia encontrar na memória nem no coração nada do que ele diz a Deus, iria direitinho atirar-me ao mar
para não sofrer mais tempo.”
            - Pobre pai! - murmurou o padre.
            - De dia para dia vivia mais só e isolado. O Sr. Morrel e Mercedes apareciam muitas vezes para ve-lo, mas a sua porta estava sempre fechada. E embora eu tivesse certeza absoluta de que estava em casa, não respondia. Um dia em que contra o seu hábito recebeu Mercedes e em que a pobre pequena, ela própria desesperada, tentava reconfortá-lo, o velho disse-lhe: “Acredita, minha filha, que ele morreu, e que em vez de o esperarmos é ele quem nos espera. Sinto-me muito feliz porque, como sou o mais velho, serei por consequência quem o verá primeiro.”
            “por melhor que uma pessoa seja, como sabe, não tarda a afastar-se daqueles que a entristecem, e o velho Dantés acabou por ficar completamente só. Apenas de tempos a tempos via subir a casa dele pessoas desconhecidas, que desciam com qualquer embrulho mal escondido. Compreendi depois que continham esses embrulhos: o velho vendia pouco a pouco o que possuía para viver. Finalmente, o pobre homem chegou ao fim dos seus míseros haveres. Devia três meses de renda e ameaçaram po-lo na rua. Pediu mais oito dias e concederam-lhe. Soube deste pormenor porque o senhorio foi a minha casa depois de sair da dele.
            “durante os três primeiros dias, ouvi-o caminhar como de costume, mas no quarto dia não ouvi mais nada. Arrisquei-me a subir. A porta estava fechada, mas através da fechadura vi-o tão pálido e abatido que, julgando-o muito doente, mandei avisar o Sr. Morrel e corri a casa de Mercedes. Ambos vieram logo. O Sr. Morrel trazia um médico. Este diagnosticou uma gastrenterite e prescreveu dieta. Estava lá, senhor, e nunca
mais esquecerei o sorriso do velho ao ouvir a receita.
            “a partir desse dia passou a abrir a porta. Tinha uma desculpa para não comer: o médico prescrevera dieta.
            O abade soltou uma espécie de gemido.
            - Esta história interessa-lhe, não é verdade, senhor? - perguntou Caderousse. 
            - Interessa, de fato - respondeu o abade. - É comovente.
            - Mercedes voltou. Encontrou-o tão mudado que como da primeira vez quis mandá-lo transportar para casa dela. Essa era também a opinião do Sr. Morrel, que estava disposto a levá-lo à força. Mas o velho gritou tanto que tiveram medo. Mercedes ficou à sua cabeceira. O Sr. Morrel saiu depois de fazer sinal à catalã de que deixava uma bolsa em cima da chaminé. Mas fazendo finca pé na receita do médico, o velho recusou-se a comer. Por fim, após nove dias de desespero e abstinência, o velho amaldiçoando aqueles que tinham causado a sua desgraça e dizendo a Mercedes: “Se tornares a ver o meu Edmond, diga-lhe que morro abençoando-o.”
            O abade levantou-se, deu duas voltas na sala e levou a mão trêmula à garganta seca.
            - E o senhor julga que morreu...
            - De fome, senhor, de fome - respondeu Caderousse. - Não lhe oculto a verdade porque estamos aqui dois cristãos.
            O abade pegou com mão convulsa no copo de água ainda meio cheio, despejou-o de um trago, e conteve-se, com os olhos avermelhados e as faces pálidas.
            - Reconheça que foi uma grande infelicidade!- disse com voz rouca.
            - Tanto maior, senhor, quanto é certo não ter Deus sido para aí metido nem achado. Os culpados foram apenas os homens.
            - Passemos portanto a esses homens - disse o abade. - Mas lembre-se - continuou com ar quase ameaçador - de que se comprometeu a dizer-me tudo. Vejamos, quem são esses homens que fizeram morrer o filho de desespero e o pai de fome?
            - Dois homens que o invejavam, um por amor e o outro por ambição: Fernand e Danglars.
            - E de que forma se manifestou essa inveja?
            - Denunciaram Edmond como agente bonapartista.
            - Mas qual dos dois o denunciou, qual dos dois foi o verdadeiro culpado?
            - Ambos, senhor. Um escreveu a carta e o outro a colocou no correio.
            - E onde foi escrita essa carta?
            - Na própria Reserva, na véspera do casamento.
            - Está certo, isso está certo. Oh, Faria, Faria, como conhecias bem os homens e as coisas?...
            - Que diz, senhor? - perguntou Caderousse.
            - Nada - perguntou o padre. - Continue.
            - Foi Danglars quem escreveu a denúncia com a mão esquerda, para que a sua letra não fosse conhecida, e Fernand quem a enviou.
            - Mas o senhor também estava lá! - gritou de súbito o abade.
            - Eu? - disse Caderousse, atônito. - Quem lhe disse que também lá estava?
            O abade viu que avançara demasiado.
            - Ninguém - respondeu. - Mas para conhecer tão bem todos esses pormenores é necessário que os tenha testemunhado.
            - É verdade - admitiu Caderousse com voz sufocada. - Eu estava lá.
            - E não se opôs a essa infâmia? - indagou o abade. - Nesse caso é seu cúmplice. 
            - Senhor - disse Caderousse –, ambos me tinham feito beber a ponto de quase não saber o que fazia. Via apenas através de uma nuvem. Disse tudo o que pode dizer um homem em semelhante estado, mas responderam-me ambos que era uma brincadeira que queriam pregar a Dantés e daí não adviria quaisquer
consequências.
            - Mas no dia seguinte, senhor, no dia seguinte bem viu o que aconteceu. E no entanto não disse nada, embora estivesse presente quando o prenderam.
            - Tem razão, senhor, de fato estava lá e quis falar, quis dizer tudo, mas Danglars não me deixou. “E se por acaso é culpado?”, disse-me. “Se realmente aportou à ilha de Elba e o encarregaram de trazer uma carta para o comitê bonapartista de Paris? Se encontram essa carta em seu poder, aqueles que o defenderem passarão por seus cúmplices.”
            “Eu temia a política, tal como ela se fazia então, confesso, e calei-me. Foi uma covardia, admito, mas não foi um crime.”
            - Compreendo, limitou-se a deixar as coisas seguirem o seu curso e mais nada.
            - É verdade, senhor - confessou Caderousse-, e esse é o meu remorso de dia e de noite. Peço muitas vezes perdão a Deus, juro-lhe, tanto mais que essa ação, a única que tenho seriamente a censurar-me em toda a minha vida, é sem dúvida a causa da minha adversidade. Expio um instante egoísmo. Por isso, digo sempre à Carconte quando se queixa: “Cale-se, mulher, é Deus que assim quer.”
            E Caderousse baixou a cabeça, com todos os sinais de verdadeiro arrependimento.
            - Bem, senhor - disse o abade –, falou com franqueza. Quem se acusa assim, merece perdão.
            - Infelizmente - observou Caderousse –, Edmond morreu e não me perdoou!
            - Por ignorância... - atalhou o abade.
            - Mas agora talvez saiba - acrescentou Caderousse. - Dizem que os mortos sabem tudo.
            Fez-se um instante de silêncio. O abade levantara-se e passeava pensativo. Voltou para o seu lugar e sentou-se.
            - Já se referiu duas ou três vezes a um tal Sr. Morrel. Quem é esse homem? - perguntou.
            - Era o armador do Pharaon, o patrão de Dantés.
            - E que papel teve esse homem em todo esse triste caso? - perguntou o abade.
            - O papel de um homem honesto, corajoso e amigo, senhor. Intercedeu vinte vezes por Edmond. Quando o imperador regressou, escreveu, suplicou e ameaçou, de tal forma que na II Restauração o perseguiram encarniçadamente como bonapartista. Dez vezes, como já lhe disse, foi a casa do Tio Dantés; para o retirar de lá, e ainda na véspera da sua morte, como também já lhe disse, deixou em cima da chaminé uma bolsa com a qual se pagaram as dívidas do pobre homem e se fez face ao seu funeral. Assim, o infeliz velho pode morrer ao menos como vivera, sem prejudicar ninguém. Sou eu que tenho a bolsa, uma grande bolsa de rede encarnada.
            - E esse Sr. Morrel ainda é vivo? - perguntou o abade.
            - É - respondeu Caderousse. 
            - Nesse caso - prosseguiu o abade –, deve ser um homem abençoado por Deus, rico... feliz...
            Caderousse sorriu amargamente.
            - Sim, feliz como eu - perguntou.
            - O Sr. Morrel deveria ser feliz! - exclamou o abade.
            - Está quase na miséria, senhor, e, pior do que isso, quase desonrado.
            - Como assim?
            - Sim - prosseguiu Caderousse –, é como lhe digo. Depois de vinte e cinco anos de trabalho; depois de adquirir a mais respeitável reputação na praça de Marselha, o Sr. Morrel está completamente arruinado. Perdeu cinco navios em dois anos, passou por três falências terríveis e a sua única esperança cifra-se apenas nesse mesmo Pharaon que comandava o pobre Dantés e que deve regressar da índia com um carregamento de cochonilha e índigo. Se esse navio naufragar como os outros, estará perdido.
            - E esse infeliz tem mulher e filhos? - quis saber o abade.
            - Tem uma mulher que no meio de tudo aquilo se comporta como uma santa, uma filha que ia casar com o homem que amava, mas cuja família já não o quer deixar desposar uma moça arruinada, e também um filho que é tenente do Exército. Mas. como deve calcular, tudo isto aumenta a sua dor, em vez de a diminuir. Pobre e digno homem! Se não tivesse ninguém, daria um tiro nos miolos e pronto.
            - Que coisa horrível! - murmurou o padre.
            - Aí está como Deus recompensa a virtude, senhor - comentou Caderousse. - Veja, eu que nunca pratiquei uma má ação, excetuando a que lhe contei, estou na miséria; eu, depois de ver morrer a minha pobre mulher da febre, sem poder fazer nada por ela, morrerei de fome como morreu o Tio Dantés, enquanto
Fernand e Danglars nadam em ouro.
            - Porque diz isso?
            - Porque tudo lhes correu bem, ao passo que às pessoas honestas tudo corre mal.
            - Que foi feito de Danglars, o mais culpado, não é verdade, o instigador?
            - Que foi feito dele? Deixou Marselha e empregou-se por recomendação do Sr. Morrel, que ignorava o seu crime, como secretário de um banqueiro espanhol. Durante a guerra de Espanha encarregou-se de parte dos fornecimentos ao Exército francês e enriqueceu. Então, com esse primeiro dinheiro, jogou na Bolsa e triplicou, quadruplicou os seus capitais. Viúvo da filha do seu banqueiro, casou com uma viúva, a Sra de
Nargonne, filha do Sr. de Servieux, camareiro do atual rei, e que goza de enorme influência. Tornou-se milionário e fizeram-no barão. Portanto, agora é o barão Danglars, tem um palácio na Rua do Mont-Blanc, dez cavalos nas cavalariças, seis lacaios na sua antecâmara e não sei quantos milhões nos seus cofres.
            - Ah! - exclamou o abade num tom singular. - E é feliz?
            - Se é feliz? Quem pode garantir isso? A felicidade ou a infelicidade é o segredo das paredes. As paredes têm ouvidos, mas não têm língua. Se se é feliz com uma grande fortuna, Danglars é feliz.
            - E Fernand?
            - Fernand já não é o mesmo, também. 
            - Mas como pode enriquecer um pobre pescador catalão sem recursos nem educação? Não compreendo, confesso.
            - Nem compreende ninguém. Deve ter na vida qualquer segredo estranho que ninguém sabe.
            - Mas, enfim, por meio de que degraus visíveis subiu a essa alta fortuna ou a essa alta posição?
            - A ambas, senhor, a ambas! Possui ao mesmo tempo fortuna e posição.
            - O que me diz parece um conto de fadas.
            - A verdade é que o caso tem todo o aspecto disso. Mas escute que já vai compreender.
            “Alguns dias antes do regresso de Napoleão, Fernand foi às sortes. Os Bourbons deixaram os Catalães muito quietinhos, mas quando Napoleão chegou decretou um recrutamento extraordinário
e Fernand foi obrigado a partir. Eu também parti, mas como era mais velho do que Fernand e acabava de casar com a minha pobre mulher, mandaram-me apenas para a costa.
            “Fernand foi arregimentado nas tropas ativas, passou a fronteira com o seu regimento e assistiu à batalha de Ligny.
            “Na noite que se seguiu à batalha estava de plantão à porta do general que tinha relações secretas com o inimigo. Nessa mesma noite o general deveria juntar-se aos Ingleses. Propôs a Fernand que o acompanhasse. Fernand aceitou, abandonou o seu posto e seguiu o general.
            “o que levaria Fernand a um conselho de guerra se Napoleão tivesse permanecido no trono, serviu-lhe de recomendação junto dos Bourbons. Regressou a França com a dragona de alferes; e como a proteção do general, que gozava de grande influência, o não abandonou, era capitão em 1823, aquando da guerra de
Espanha, isto é, no preciso momento em que Danglars arriscava as suas primeiras especulações. Fernand era espanhol e mandaram-no a Madrid observar o estado de espírito dos seus compatriotas. Voltou a encontrar Danglars, entendeu-se com ele, prometeu ao seu general o apoio dos monárquicos da
capital e das províncias, recebeu promessas, assumiu pela sua parte compromissos, guiou o seu regimento por caminhos só dele conhecidos nos desfiladeiros guardados pelos monárquicos, e enfim prestou naquela curta campanha tais serviços que depois da tomada do Trocadero o nomearam coronel e concederam-lhe a
cruz de oficial de Legião de Honra, bem como o título de conde.
            - Que sorte! Que sorte! - murmurou o abade.
            - Sim, mas escute que ainda não é tudo. Terminada a guerra de Espanha, a carreira de Fernand encontrava-se comprometida devido à longa paz que prometia reinar na Europa. Apenas a Grécia se encontrava sublevada contra a Turquia e acabava de iniciar a guerra da sua independência. Todos os olhos estavam postos em Atenas. Era moda lamentar e apoiar os Gregos. O Governo francês, sem os proteger abertamente, como sabe, tolerava as migrações parciais. Fernand solicitou e obteve licença para ir servir na Grécia, embora permanecendo sempre sob o controlo do Exército.
            “Passado algum tempo soube-se que o conde de Morcerf, como então se chamava, entrara ao serviço de Ali Pax  com o posto de general instrutor.
            “Ali Pax  foi assassinado, como sabe; mas antes de morrer recompensou os serviços por Fernand com uma importância considerável, com a qual Fernand regressou a França, onde o seu posto de tenente-general lhe foi confirmado. 
            - De modo que hoje... - começou o abade.
            - De modo que hoje - prosseguiu Caderousse - possui um magnífico palácio em Paris, na Rua do Helder, nº  27.
            O abade abriu a boca, permaneceu um instante como um homem que hesita, mas fazendo um esforço sobre si mesmo perguntou:
            - E Mercedes? Garantiram-me que desaparecera...
            - Sim, desapareceu - respondeu Caderousse –, mas como desaparece o Sol para surgir no dia seguinte mais brilhante.
            - Quer dizer que também fez fortuna? - inquiriu o abade com um sorriso irônico.
            - Neste momento, Mercedes é uma das maiores damas de Paris - respondeu Caderousse.
            - Continue - pediu o abade. - Parece-me ouvir o relato de um sonho. Mas eu próprio já vi coisas tão extraordinárias que as que me conta me surpreendem menos.
            - Ao princípio, Mercedes ficou desesperada com o golpe que lhe roubava Edmond. Já lhe falei das suas instâncias junto do Sr. de Villefort e da sua dedicação ao pai de Dantés. No meio do seu desespero atingiu-a nova dor a partida de Fernand, de Fernand cujo crime ignorava e que considerava um irmão.
            “Fernand partiu e Mercedes ficou sozinha.
            “Passou três meses chorando, sem notícias de Edmond nem de Fernand, tendo apenas diante dos olhos um velho que morria de desespero.
            “Uma noite, depois de estar todo o dia sentada, como era seu costume, no cruzamento dos dois caminhos que ligam Marselha aos Catalães, regressou a casa mais abatida do que nunca: nem o noivo, nem o amigo regressavam por um ou por outro desses dois caminhos e não tinha notícias de nenhum deles.
            “De súbito, pareceu-lhe ouvir passos conhecidos. Virou-se com ansiedade, a porta abriu-se e apareceu Fernand com o seu uniforme de alferes.
            “Não era o homem por quem ela chorava, mas era parte do seu passado que vinha ao seu encontro.
            “Mercedes agarrou nas mãos de Fernand com um transporte que este tomou por amor, embora não passasse da alegria de já se não encontrar sozinha no mundo e de tornar a ver finalmente um amigo, após longas horas de triste solidão. E depois, deve-se dizê-lo, Fernand nunca fora odiado; não era apenas amado.
Outro possuía todo o coração de Mercedes, mas esse estava ausente... desaparecera... talvez tivesse morrido. Sempre que lhe ocorria esta última idéia, Mercedes rompia em soluços e torcia as mãos de dor, mas tal idéia, que antes repelia quando lhe era sugerida por outrem, acudia-lhe agora por si só o espírito. De resto, pela sua parte o velho Dantés não se cansava de lhe dizer: "O nosso Edmond morreu, porque se não
tivesse morrido voltaria para junto de nós."
            “O velho morreu, como já lhe disse. Se tivesse vivido, talvez Mercedes nunca se tivesse tornado a mulher de outro, pois ele estaria presente para lhe censurar a sua infidelidade. Fernand compreendeu isso. Quando soube da morte do velho, voltou. Desta vez era tenente. Na primeira viagem não dissera a Mercedes uma palavra de amor; na segunda recordou-lhe que a amava.
            “Mercedes pediu-lhe mais seis meses para esperar e chorar Edmond.
            - Tudo somado - disse o abade com um sorriso amargo - dava dezoito meses ao todo. Quem pode exigir mais à noiva mais adorada? 
            Depois murmurou as palavras do poeta inglês: Frailty thy name is woman!
            - Passados seis meses - prosseguiu Caderousse –, realizou-se o casamento na Igreja dos Accoules.
            - A mesma igreja onde devia casar com Edmond - murmurou o padre. - Só havia que mudar o noivo, e pronto.
            - Mercedes casou-se, portanto - continuou Caderousse. - Mas embora aos olhos de todos parecesse calma, nem por isso deixou de desmaiar ao passar diante da Reserva, onde dezoito meses antes fora festejado o seu noivado com aquele que verificaria amar ainda se se atrevesse a olhar o fundo do seu coração.
            “Fernand, mais feliz mas não mais tranquilo, pois vi-o nessa época e temia constantemente o regresso de Edmond, Fernand tratou imediatamente de expatriar a mulher e de se exilar ele próprio. Os Catalães ofereciam ao mesmo tempo demasiados perigos e demasiadas recordações.
            “Partiram oito dias depois do casamento.
            - Tornou a ver Mercedes? - inquiriu o padre.
            - Tornei, No momento da guerra de Espanha, em Perpinhão, onde Fernand a deixara. Ela ocupava-se então da educação do filho.
            O abade estremeceu.
            - Do filho? - disse.
            - Sim - respondeu Caderousse –, do pequeno Albert.
            -Mas para instruir esse filho - continuou o abade - tinha ela própria de se instruir primeiro... Ora, parece-me ter ouvido dizer a Edmond que era filha de um modesto pescador, bela mas inculta.
            - Oh, nesse caso conhecia muito mal a sua própria noiva! - observou Caderousse. - Mercedes poderia ser rainha, senhor, se a coroa devesse assentar apenas nas cabeças mais belas e inteligentes. A sua fortuna progredia já e ela progredia com a sua fortuna. Aprendia desenho, música... aprendia tudo. Aliás, aqui para nós, creio que fazia tudo isso só para se distrair, para esquecer, que metia tantas coisas na cabeça apenas para combater o que tinha no coração. Mas agora tudo deve ser dito - continuou Caderousse. - A riqueza e as honrarias confortaram-na, sem dúvida. É rica, é condessa, e no entanto...
            Caderousse deteve-se.
            - No entanto, o quê? - perguntou o abade.
            - No entanto, estou certo de que não é feliz - respondeu Caderousse.
            - Que o leva a supor isso?
            - Bom... quando me encontrei na mó de baixo, pensei que os meus antigos amigos me ajudariam em qualquer coisa. Apresentei-me em casa de Danglars, que nem sequer me recebeu. Fui a casa de Fernand, que me mandou cem francos pelo seu criado de quarto.
            - Então não viu nem um nem outro?
            - Não. Mas viu-me a Sra de Morcerf.
            - Como assim?
            - Quando saí, caiu-me aos pés uma bolsa. Continha vinte e cinco luíses. Levantei rapidamente a cabeça e vi Mercedes fechar a persiana.
            - E o Sr. de Villefort? - indagou o abade.
            - Oh, esse não fora meu amigo, a esse não o conhecia, a esse não tinha nada a pedir! 
            - Mas não sabe o que foi feito dele e a parte que tomou na desgraça de Edmond?
            - Não. Sei apenas que algum tempo depois de o mandar prender casou com Mademoiselle de Saint-Méran e em breve deixou Marselha.
            “Decerto a felicidade lhe sorriu, como aos outros; decerto é rico como Danglars e considerado como Fernand. Só eu, como vê, fiquei pobre, miserável e esquecido de Deus.
            - Engana-se, meu amigo - perguntou o abade. - às vezes, Deus pode parecer esquecer, quando a sua justiça descansa, mas chega sempre um momento em que Ele se recorda, e aqui está a prova.
            Ao dizer estas palavras, o abade tirou o diamante da algibeira e apresentou-o a Caderousse.
            - Tome, meu amigo - disse-lhe –, tome este diamante porque ele pertence-lhe.
            - Como, a mim só?! - exclamou Caderousse. - Vamos, senhor, não está brincando?
            - Este diamante devia ser vendido entre os seus amigos. Como Edmond só tinha um amigo, a divisão é portanto inútil. Tome este diamante e venda-o. Vale cinquenta mil francos, repito-lhe, importância que, assim espero, bastar  para o tirar da miséria.
            - Oh, senhor! - disse Caderousse, estendendo timidamente uma das mãos e enxugando com a outra o suor que lhe perlava testa! - Oh, senhor, não brinque com a felicidade ou o desespero de um homem!
            - Sei o que é a felicidade e o que é o desespero e nunca brincarei sem motivo com os sentimentos das pessoas. Tome, pois, mas em troca...
            Caderousse, que tocava já no diamante, retirou a mão.
            O abade sorriu.
            - Em troca - continuou - dê-me essa bolsa de seda encarnada que o Sr. Morrel deixou em cima da chaminé do velho Dantés e que me disse encontrar-se ainda em seu poder.
            Cada vez mais atônito, Caderousse dirigiu-se para um grande armário de carvalho, abriu-o e deu ao abade uma bolsa comprida, de seda vermelha desbotada, com duas argolas de cobre que em tempos tinham sido douradas.
            O abade pegou-lhe e em seu lugar deu o diamante a Caderousse.
            - Oh, o senhor é um enviado de Deus! - exclamou Caderousse. - Na verdade, ninguém sabia que Edmond lhe dera este diamante e o senhor poderia ficar com ele.
            - Ao que parece, era o que farias - disse baixinho o abade.
            Depois levantou-se e pegou no chapéu e nas luvas.
            - Ah! Tudo o que me disse é bem verdade, não é? Posso  acreditar inteiramente nas suas palavras? - perguntou ainda.
            - Olhe, Sr. Abade - respondeu Caderousse - aqui tem ao canto desta parede um Cristo de madeira benzida, e em cima deste baú o livro dos Evangelhos da minha mulher. Abra o livro e jurarei sobre ele, com a mão estendida para o crucifixo, pela salvação da minha alma e pela minha fé de cristão, que lhe contei tudo
como realmente se passou e como o anjo dos homens lhe contar ao ouvido de Deus no dia do Juízo Final! 
            - Está bem - disse o abade - convencido pelo seu tom de que Caderousse dizia a verdade. - está bem, que esse dinheiro lhe aproveite! Adeus, volto para longe dos homens, que tanto mal fazem uns aos outros.
            Esquivando-se com grande dificuldade aos entusiásticos agradecimentos de Caderousse, o abade retirou pessoalmente a tranca da porta, saiu, montou a cavalo, cumprimentou pela última vez o estalajadeiro, que se confundia em despedidas ruidosas, e partiu na mesma direção em que viera.
            Quando se virou, Caderousse viu atrás de si a Carconte, mais pálida e trêmula do que nunca.
            - É bem verdade o que ouvi?  -perguntou ela.
            - O quê? Que nos dava o diamante só para nós? – perguntou Caderousse, quase louco de alegria.
            - Sim.
            - Nada mais verdadeiro, porque... ei-lo!
            A mulher olhou-o um instante. Depois, perguntou em voz abafada:
            - E se for falso?
            Caderousse empalideceu e cambaleou.
            - Falso - murmurou –, falso... E por que motivo me daria esse homem um diamante falso?
            - Para saber o teu segredo sem o pagar, imbecil!
            Caderousse ficou um instante aturdido sob o peso desta hipótese.
            - Oh - disse passado um instante, pegando no chapéu que colocou por cima do lenço encarnado atado à volta da cabeça –, vamos já sabê-lo!
            - Como?
            - Hoje é dia de feira em Beaucaire e estão lá joalheiros de Paris. Vou mostrar-lhes. Você, mulher, guarda a casa. Dentro de duas horas estarei de volta.
            E Caderousse correu para fora de casa e meteu, sempre correndo, pela estrada oposta à que pouco antes tomara o desconhecido.
            - Cinquenta mil francos! - murmurou a Carconte a sós. - É dinheiro... mas não é uma fortuna.


Capítulo XXVIII

Os registos das prisões


            No dia seguinte àquele em que se passou na estrada de Bellegarde a Beaucaire a cena que acabamos de contar, um homem de trinta a trinta e dois anos, envergando fraque azul-claro, calças amarelo-torrado e colete branco, tendo ao mesmo tempo aspecto e sotaque britânicos, apresentou-se no gabinete do
maire de Marselha.
            - Senhor - disse-lhe –, sou chefe de escritório da casa Thompson & French, de Roma. há dez anos que mantemos relações com a casa Morrel & Filhos, de Marselha. Temos aproximadamente uma centena de milhar de francos comprometidos nessas relações, e não sem alguma preocupação,  atendendo a que se
diz a casa ameaça ruína. Venho portanto propositadamente de Roma para lhe pedir informações acerca dessa casa.
            - Senhor - respondeu o maire –, sei efetivamente que há  quatro ou cinco anos o azar parece perseguir o Sr. Morrel. Perdeu sucessivamente quatro ou cinco navios e passou por três ou quatro falências. Mas não me compete, embora eu próprio seja seu credor por uma dezena de milhar de francos, dar qualquer informação a respeito do estado da sua fortuna. Pergunte-me o que penso do Sr. Morrel como maire e lhe responderei que é um homem correto até ao exagero e que até agora satisfez todos os seus compromissos com perfeita pontualidade. É tudo o que lhe posso dizer, senhor. Se deseja saber mais, dirija-se ao Sr. de Boville, inspetor das prisões, Rua de Noailles, nº  15, que tem, segundo creio, duzentos mil francos colocados na casa Morrel. Se há realmente alguma coisa a temer, como esta importância é mais considerável do que a minha o encontrará  provavelmente melhor informado do que eu a respeito.
            O inglês pareceu apreciar tão grande delicadeza, cumprimentou, saiu e dirigiu-se no andamento especial dos filhos da Grã-Bretanha para a rua indicada.
            O Sr. de Boville estava no seu gabinete. Ao vê-lo, o inglês fez um gesto de surpresa que parecia indicar não ser a primeira vez que se encontrava diante da pessoa que vinha visitar. Quanto ao Sr. de Boville, estava tão desesperado que era evidente que todas as faculdades do seu espírito, absorvidas no pensamento que o ocupava naquele momento, não deixavam nem à sua memória nem à sua imaginação vagar para se ocupar do passado.
            Com a fleuma da sua nação, o inglês fez-lhe pouco mais ou menos nos mesmos termos a pergunta que fizera ao maire de Marselha.
            - Oh, senhor, infelizmente os seus receios não podem ser mais fundados e tem na sua presença um homem desesperado! - exclamou o Sr. de Boville. - Tinha duzentos mil francos colocados na casa Morrel, todo o dote da minha filha que contava casar dentro de quinze dias. Esses duzentos mil francos eram reembolsáveis, cem mil em 15 deste mês e cem mil em quinze do próximo mês. Avisei o Sr. Morrel de que desejava que o reembolso fosse feito pontualmente e ele veio aqui apenas há meia hora dizer-me que se o navio Pharaon não entrar aqui até  ao dia 15 lhe será  impossível pagar-me.
            - Mas isso assemelha-se muito a um subterfúgio - observou o inglês.
            - Diga antes, senhor, que se assemelha a uma falência! - gritou o Sr. de Boville, desesperado.
            O inglês pareceu refletir um instante e depois perguntou:
            - Assim, senhor, esse crédito inspira-lhe receios?
            - Para ser mais exato, considero-o perdido.
            - Bom, nesse caso compro-lho.
            - O senhor?
            - Sim, eu.
            - Mas com uma desvalorização enorme, sem dúvida?
            - Não, por duzentos mil francos. A nossa casa - acrescentou o inglês, rindo não se dedica a esse gênero de negócios.
            - E o senhor paga...
            - Em dinheiro.
            E o inglês tirou da algibeira um maço de notas de banco que devia ascender ao dobro da importância que o Sr. de Boville receava perder. Um relâmpago de alegria passou pelo rosto do Sr. de Boville. No entanto, fez um esforço sobre si mesmo e disse:
            - Senhor, devo preveni-lo de que segundo todas as probabilidades, não cobrará mais de seis por cento dessa importância.
            - Isso não é comigo - respondeu o inglês. - Isso é com a casa Thomson & French, em nome da qual procedo. Talvez a ela interesse precipitar a ruína de uma casa rival. Tudo o que sei senhor, é que estou pronto a entregar-lhe essa importância em troca da sua transmissão. Apenas pretendo uma comissão de corretagem.
            - Claro, senhor, é justíssimo! - exclamou o Sr. de Boville. - A comissão é habitualmente de um e meio; quer dois! Quer três? Quer cinco? Quer mais, enfim? Diga!
            - Senhor - respondeu o inglês, rindo –, sou como a minha casa, também não me dedico a essa espécie de negócios. Não, a minha comissão de corretagem é de natureza muito diferente.
            - Diga, senhor. Estou às suas ordens.
            - O senhor não é inspetor das prisões?
            - Sou, há mais de catorze anos.
            - Possui registros de entrada e saída?
            - Sem dúvida.
            - A esses registos devem estar juntas notas relativas aos prisioneiros?
            - Cada prisioneiro tem o seu processo.
            - Bom, senhor, fui educado em Roma pelo pobre diabo de um abade que desapareceu de súbito. Soube mais tarde que estivera detido no Castelo de If e desejaria conhecer alguns pormenores acerca da sua morte.
            - Como se chamava?
            - Abade Faria.
            - Oh, lembro-me perfeitamente dele! - exclamou o Sr. de Boville. - Estava louco.
            - Dizia-se.
            - Oh, estava-o, sem dúvida nenhuma!
            - É possível. E qual era o seu gênero de loucura?
            - Pretendia saber da existência de um tesouro imenso e oferecia importâncias astronômicas ao Governo se o pusessem liberdade.
            - Pobre diabo! Morreu?
            - Sim, senhor, há cinco ou seis meses pouco mais ou menos, em Fevereiro último.
            - Possui uma excelente memória, senhor, para se lembrar assim das datas.
            - Lembro-me desta porque a morte do pobre diabo foi acompanhada de uma circunstância singular.
            - Pode-se saber qual? - perguntou o inglês com uma expressão de curiosidade de um observador profundo se admiraria de encontrar em rosto tão fleumático.
            - Oh, meu Deus, claro que sim, senhor! A cela do abade ficava distante quarenta e cinco a cinquenta pés, aproximadamente, da de um antigo agente bonapartista, um dos que mais tinham contribuído para o regresso do usurpador em 1815, homem muito resoluto e perigoso.
            - Deveras? - disse o inglês. 
            - Sim - respondeu o Sr. de Boville. - Eu próprio tive a oportunidade de ver esse homem em 1816 ou 1817 e só se descia à sua cela com um piquete de soldados. Esse homem causou-me profunda impressão e nunca esquecerei a suo rosto.
            O inglês sorriu imperceptivelmente.
            - Mas dizia, senhor - atalhou –é que as duas celas...
            - Estavam separadas por uma distância de cinquenta pés.  Mas parece que Edmond Dantés...
            - Esse homem perigoso chamava-se?...
            - Edmond Dantés. Sim, senhor, parece que Edmond Dantés arranjara ferramentas ou fabricara-as, porque se encontrou uma galeria através da qual os prisioneiros comunicavam um com o outro.
            - Essa galeria fora sem dúvida praticada com uma finalidade de evasão?
            – Exato. Mas infelizmente para os prisioneiros o abade Faria teve um ataque de catalepsia e morreu.
            - Compreendo. Isso deve ter frustrado os planos de evasão.
            - Quanto ao morto, sim - respondeu o Sr. de Boville. - Mas quanto ao vivo, não. Pelo contrário, Dantés viu nisso um meio de antecipar a sua fuga. Pensava sem dúvida que os prisioneiros que morriam no Castelo de if eram enterrados num cemitério vulgar. Por isso, levou o defunto para a sua cela, tomou o lugar dele no saco onde fora encerrado e esperou o momento do funeral.
            - Era um meio arriscado e que indicava certa coragem - observou o inglês.
            - Oh, como já lhe disse, senhor, era um homem forte e perigoso! Felizmente, ele próprio desembaraçou o Governo dos receios que nutria a seu respeito.
            - Como assim?
            - Como? Não compreende?
            - Não.
            - O Castelo de If não tem cemitério. Os mortos são pura e simplesmente lançados ao mar depois de se lhos prender aos pés um pelouro de trinta e seis.
            - E depois? - perguntou o inglês, como se fosse de raciocínio lento.
            - E depois?... Prenderam-lhe um pelouro de trinta e seis aos pés e atiraram-no ao mar!
            - Deveras?! - exclamou o inglês.
            - É verdade, senhor - continuou o inspector. - Decerto compreende qual foi a surpresa do fugitivo quando se sentiu precipitado do alto dos rochedos. Gostaria de ver a suo rosto nesse momento.
            - Seria difícil...
            - Mas não tem importância! - exclamou o Sr. de Boville, a quem a certeza de recuperar os seus duzentos mil francos punha de bom humor. - Não tem importância! Imagino-a...
            E desatou a rir.
            – E eu também - disse o inglês.
            E desatou igualmente a rir, mas como riem os Ingleses, isto é, entredentes.
            - Assim - continuou o inglês, o primeiro a deixar de rir –, assim, o fugitivo morreu afogado?
            - Evidentemente. 
            - De modo que o governador do castelo se livrou ao mesmo tempo do furioso e do louco?
            - Exato.
            - No entanto, deve ter sido lavrada uma espécie de ata do sucedido, não? - perguntou o inglês.
            - Claro, claro, passou-se uma certidão de óbito. Compreende, os parentes de Dantés, se os tinha, podiam ter interesse em se assegurar se estava morto ou vivo.
            - De forma que podem estar agora tranquilos, se houver herança. Está morto e bem morto.
            - Oh, meu Deus, se está! Atestarão quando quiserem.
            - Perfeitamente - disse o inglês. - Mas voltaremos aos registros.
            - É verdade. Esta história desviou-nos disso. Perdão.
            - Perdão de quê? Da história? De modo nenhum, até a achei curiosa.
            - E ela é de fato. Portanto, deseja ver, senhor tudo o que se relaciona com o seu pobre abade, que era a bondade personificada, não é verdade?
            - Me daria prazer.
            - Entre no meu gabinete que eu mostro-lhe o que pretende.
            Ambos entraram no gabinete do Sr. de Boville, onde efetivamente tudo se encontrava em perfeita ordem: cada registro tinha o seu número e cada processo o seu cacifo. O inspetor convidou o inglês a sentar-se na sua poltrona, colocou diante dele o registro e o processo relativos ao Castelo de if e deu-lhe todo o tempo que quisesse para os consultar, enquanto ele próprio, sentado num canto, lia o seu jornal.
            O inglês encontrou facilmente o processo relativo ao abade Faria. Mas parece que a história que lhe contara o Sr. de Boville o interessava vivamente, porque depois de tomar conhecimento das primeiras peças continuou a folhear até  chegar ao processo de Edmond Dantés. Encontrou aí cada coisa no seu lugar: denúncia, interrogatório, petição de Morrel e despacho do Sr. de Villefort. Dobrou muito devagarinho a
denúncia e meteu-a na algibeira. Leu o interrogatório e verificou que o nome de Noirtier não era mencionado nele; percorreu a petição de 10 de Abril de 1815, em que Morrel, de acordo com o conselho do substituto, exagerava com excelente intenção, visto Napoleão reinar então, os serviços que Dantés prestara à causa imperial, serviços que o certificado de Villefort tornava incontestáveis, e compreendeu tudo: aquela
petição dirigida a Napoleão e guardada por Villefort tornara-se depois da II Restauração uma arma terrível nas mãos do procurador régio. Não estranhou portanto, ao folhear o registo, encontrar esta nota aposta ao seu nome:
            Edmond Dantés: Bonapartista fanático, tomou parte ativa no regresso da ilha de Elba. Manter no maior segredo e sob a mais rigorosa vigilância.
            Por baixo destas linhas estava escrito com outra letra: “Em vista da nota supra, nada a fazer”.
            No entanto, comparando a letra da nota com a do certificado escrito por baixo da petição de Morrel, adquiriu a certeza de que a nota fora escrita pela mesma pessoa que escrevera o certificado, ou seja, por Villefort. 
            Quanto à segunda nota, o inglês deduziu que fora escrita por algum inspetor que tomara interesse passageiro pela situação de Dantés, mas que a recomendação da primeira colocara na impossibilidade de dar seguimento a esse interesse.
            Como dissemos, o inspetor, por descrição e para não incomodar o pupilo do abade Faria nas suas investigações, afastara-se e lia Le Drapeau blanc.
            Não viu portanto o inglês dobrar e meter na algibeira a denúncia escrita por Danglars debaixo do caramanchão da Reserva, que tinha o carimbo dos correios de Marselha, com a data de 27 de Fevereiro e a hora de tiragem das 6 da tarde.
            Mas, devemos dizê-lo, mesmo que o tivesse visto ligava tão pouca importância àquele papel e tanta aos seus duzentos mil francos que se não oporia ao que fizesse o inglês, por mais incorreto que fosse.
            - Obrigado - disse este fechando ruidosamente o registro. - Já  tenho aquilo de que precisava. Agora compete-me cumprir a minha promessa. Faça-me uma simples transferência do seu crédito, em que declare ter recebido o seu montante. Vou entregar-lhe o dinheiro.
            Cedeu o seu lugar à mesa ao Sr. de Boville, que se sentou sem hesitar e se apressou a lazer a transferência pedida, enquanto o inglês contava as notas de banco a um canto da papeleira.


Capitulo XXJX

A casa Morrel


            Quem tivesse deixado Marselha alguns anos antes e conhecesse o interior da casa Morrel, teria encontrado uma grande mudança se regressasse e a visse na época a que chegamos.
            Em vez do ar de vida, abastança e felicidade que se exala, por assim dizer, de uma casa próspera; em vez de caras alegres mostrando-se por detrás das cortinas das janelas e de escriturários atarefados atravessando os corredores de pena atrás da orelha; em vez do pátio a abarrotar de fardos e cheio de gritos e risos dos carregadores, encontraria à primeira vista não sei quê de triste e de morto. No corredor deserto e
no pátio vazio, dos numerosos empregados que outrora enchiam os escritórios, só dois restavam: um era um rapaz de vinte e três ou vinte e quatro anos, chamado Emmanuel Raymond, que estava apaixonado pela filha de Morrel e que ficara e ficaria na casa fizessem o que fizessem os pais para o tirar de lá; o outro era um velho cobrador zarolho chamado Coclés, alcunha que lhe tinham posto os rapazes que povoavam outrora aquela grande colmeia zumbidora, hoje quase desabitada, e que substituíra tão bem e tão completamente o seu verdadeiro nome que havia todas as probabilidades de nem sequer se virar se alguém o chamasse actualmente por esse nome.
            Coclés permanecera ao serviço do Sr. Morrel, embora se tivesse verificado na situação do excelente homem uma mudança singular: subira ao mesmo tempo ao posto de tesoureiro e descera à categoria de criado. 
            Mas nem por isso deixara de ser o mesmo Coclés, bom paciente e dedicado, embora inflexível a respeito da aritmética, o único ponto em que não recearia enfrentar o mundo inteiro, mesmo o Sr. Morrel. Só conhecia a sua tábua de Pitágoras, que sabia na ponta da unha, fosse qual fosse a forma como lha virassem e o erro em que tentassem fazê-lo cair.
            No meio da tristeza geral que invadira a casa Morrel, Coclés era o único que permanecia impassível. Mas que ninguém se engane a tal respeito: essa impassibilidade não era consequência de falta de amizade, mas sim, pelo contrário, de uma convicção inquebrantável. Como os ratos que, segundo dizem, abandonam pouco a pouco o navio antecipadamente, condenado pelo destino a perecer no mar, de maneira que esses
hóspedes egoístas já o deixaram por completo no momento em que levanta ferro, também, como dissemos, toda a multidão de escriturários e empregados que ganhavam a vida em casa do armador tinham pouco a pouco abandonado o escritório e o armazem. Ora, Coclés vira-os afastarem-se todos sem pensar sequer em averiguar o motivo da sua partida. Como dissemos, para Coclés tudo se resumia numa questão de números, e como, nos vinte anos que tinha de casa, sempre vira os pagamentos efetuarem-se pontualmente e com toda a regularidade, não admitia que essa regularidade se pudesse interromper e esses pagamentos suspender, tal como um moleiro que possui uma azenha alimentada pelas águas de uma ribeira caudalosa não admite que essa ribeira possa deixar de correr. Com efeito, até ali nada viera ainda desmentir a convicção de Coclés. No último fim de mês, os pagamentos tinham-se efetuado com rigorosa pontualidade. Coclés descobrira um erro de setenta cêntimos cometido pelo Sr. Morrel em seu prejuízo, e no mesmo dia restituíra os catorze soldos excedentes ao Sr. Morrel que, com um sorriso melancólico, os recebera e deixara cair numa gaveta quase vazia, dizendo:
            - Obrigado, Coclés. Você é a pérola dos tesoureiros.
            E Coclés retirara-se satisfeitíssimo, porque um elogio do Sr. Morrel, a pérola das pessoas honestas de Marselha, lisonjeava mais Coclés do que a gratificação de cinquenta escudos.
            Mas depois daquele fim de mês tão vitoriosamente concluído, o Sr. Morrel passara por momentos cruéis. Para fazer face a esse fim de mês, reunira todos os seus recursos, e ele próprio, temendo que a noticia da sua penúria se espalhasse em Marselha se o vissem recorrer a semelhantes extremos, fizera uma viagem à feira de Beaucaire para vender algumas jóias pertencentes à mulher e à filha e parte das suas pratas. Graças a esse sacrifício, tudo se passara ainda dessa vez com a maior honra para a casa Morrel. Mas a caixa ficara completamente vazia. O crédito, assustado pelos boatos que corriam, retirara-se com seu egoísmo habitual, e para fazer face aos cem mil francos a reembolsar em 15 do mês corrente ao Sr. de Boville, bem como aos outros cem mil francos vencíveis em 15 do mês seguinte, o Sr. Morrel só podia contar, na realidade, com a esperança do regresso do Pharaon, de cuja partida soubera por um navio que levantara ferro ao mesmo tempo que ele chegara a bom porto.
            Mas esse navio, vindo como o Pharaon de Calcutá, já chegara havia quinze dias, ao passo que do Pharaon não havia nenhuma notícia.
            Foi neste estado de coisas que no dia seguinte àquele em que fechara com o Sr. de Boville o importante negócio a que nos referimos o enviado da casa Thomson & French, de Roma, se apresentou em casa do Sr. Morrel. 
            Foi Emmanuel quem o recebeu. O rapaz, a quem cada novo rosto assustava, porque cado rosto nova anunciava um novo credor que, na sua preocupação, vinha atormentar o patrão, o rapaz, dizíamos, quis poupar a esse mesmo patrão os incômodos daquela visita e perguntou ao visitante o que pretendia. Mas o
visitante declarou que não tinha nada a dizer ao Sr. Emmanuel e que era com o Sr. Morrel em pessoa que desejava falar Emmanuel chamou, suspirando, Coclés. Coclés apareceu e o rapaz ordenou-lhe que acompanhasse o estrangeiro ao Sr. Morrel.
            Coclés foi à frente e o estrangeiro seguiu-o.
            Na escada encontraram-se com uma bonita moça de dezesseis a dezessete anos, que olhou o estrangeiro com inquietação.
            Coclés não notou tal expressão do rosto da jovem, que no entanto pareceu não ter escapado ao estrangeiro.
            - O Sr. Morrel está no seu gabinete, não esté, Mademoiselle Julie? - perguntou o tesoureiro.
            - Está... Pelo menos creio que está - respondeu a moça, hesitando. - Veja primeiro, Coclés, e se o meu pai lá estiver anuncie esse senhor.
            - Anunciar-me seria inútil, menina - respondeu o inglês. -  o Sr. Morrel não conhece o meu nome. Este bom homem tem de dizer apenas que sou o chefe de escritório da firma Thomson & French, de Roma, com a qual a casa do senhor seu pai mantem relações.
            A jovem empalideceu e continuou a descer, enquanto Coclés e o estrangeiro continuavam a subir.
            Ela entrou no escritório onde se encontrava Emmanuel e Coclés puxou de uma chave de que era possuidor, o que denotava a confiança que o patrão depositava nele, abriu a porta situada no canto do patamar do segundo andar, introduziu o estrangeiro numa antecâmara, abriu segunda porta que fechou atrás de si e, depois de ter deixado por um instante sozinho o enviado da casa Thomson & French reapareceu e fez-lhe sinal de que podia entrar.
            O inglês entrou. Encontrou o Sr. Morrel sentado a uma mesa, pálido perante as colunas assustadoras do registro onde estava inscrito o seu passivo.
            Ao ver o estrangeiro, o Sr. Morrel fechou o registro, levantou-se e puxou uma cadeira. Depois, quando viu o estrangeiro sentar-se, sentou-se também.
            Catorze anos tinham modificado muito o digno negociante, o qual contava trinta e seis anos no início desta história e estava agora prestes a chegar aos cinquenta. Os cabelos tinham-lhe embranquecido e a sua testa estava sulcada de rugas de preocupação. Por último, o seu olhar, outrora tão firme e decidido, tornara-se vago e irresoluto e parecia recear constantemente ser forçado a deter-se numa idéia ou num homem.
            O inglês olhou-o com um sentimento de curiosidade evidentemente laivada de interesse.
            - Senhor - disse Morrel, a quem tal exame pareceu aumentar o mal-estar –, pediu para me falar?
            - Pedi, senhor. Já sabe da parte de quem venho, não é verdade?
            - Da parte da casa Thomson & French. Foi pelo menos o que me disse o meu tesoureiro.
            - E disse-lhe a verdade, senhor. A casa Thomson & French tem de pagar na França, durante o corrente mês e no próximo, trezentos ou quatrocentos mil  francos e, conhecedora da rigorosa pontualidade da casa Morrel, reuniu todo o papel que encontrou com a sua assinatura e encarregou-me de, à medida
que esse papel se vencer, o cobrar e dar destino a tais fundos.
            Morrel soltou um profundo suspiro e passou a mão pela testa coberta de suor.
            - Portanto, senhor, possui letras assinadas por mim? - perguntou Morrel.
            - É verdade, senhor, e de montante bastante considerável.
            - Quanto? - perguntou Morrel em voz que procurara tornar firme.
            - Vejamos primeiro - atalhou o inglês, tirando um maço de papéis da algibeira - uma transferência de duzentos mil francos feita para a nossa casa pelo Sr. de Boville, o inspetor das prisões. Reconhece dever esta importância ao Sr. de Boville?
            - Reconheço, senhor. Trata-se de um investimento feito por ele em minha casa, a quatro e meio por cento, vai para cinco anos.
            - E que o senhor deve reembolsar...
            - Metade em 15 deste mês e metade em 15 do mês próximo.
            - Exato. Depois temos aqui trinta e dois mil e quinhentos francos, a liquidar em fins do mês corrente. Trata-se de letras assinadas pelo senhor e endossadas à nossa ordem por terceiros portadores.
            - Também reconheço esses débitos - declarou Morrel, a quem o rubor da vergonha subia à cara ao pensar que pela primeira vez na sua vida talvez não pudesse honrar a sua assinatura. - É tudo?
            - Não, senhor. Tenho ainda para o fim do mês próximo estes valores que nos foram cedidos pelas casas Pascal e Wild & Turner, de Marselha, no montante de cerca de cinquenta e cinco mil francos. Ao todo, duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos.
            É impossível de descrever o que sofria o pobre Morrel durante esta enumeração.
            - Duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos - repetiu maquinalmente.
            - Sim, senhor - respondeu o inglês. - Ora - continuou depois de um momento de silêncio –, não lhe ocultarei, Sr. Morrel, que sem deixar de ter em conta a sua probidade, até  agora sem mácula, é voz pública em Marselha que o senhor não está em condições de satisfazer os seus compromissos.
            Perante esta declaração quase brutal, Morrel empalideceu horrivelmente.
            - Senhor - perguntou –, até  agora, e há mais de vinte e quatro anos que recebi esta casa das mãos do meu pai, que ele próprio geriu durante trinta e cinco anos, até  agora nenhuma letra assinada por Morrel & Filhos foi apresentada à cobrança sem ser paga.
            - Sim, sei isso - respondeu o inglês. - Mas fale francamente, de homem de honra para homem de honra: pagaria estas com a mesma pontualidade?
            Morrel estremeceu e olhou aquele que lhe falava, assim, com mais convicção do que ele.
            - As perguntas feitas com essa franqueza deve-se dar uma resposta franca. Sim, senhor, pagarei se, como espero, o meu navio chegar a bom porto, pois a sua chegada proporcionar-me-  o crédito que os sucessivos acidentes de que tenho sido vítima me privaram. Mas se por desgraça o Pharaon, o último
recurso com que conto, não chegar...
            As lágrimas subiram aos olhos do pobre armador. 
            - Se esse último recurso lhe faltasse?... - insistiu o seu interlocutor.
            - Bom - continuou Morrel –, é cruel dizê-lo, senhor... mas como já estou habituado à desgraça, é mister que me habitue também à vergonha. Nesse caso, creio que seria obrigado a suspender os meus pagamentos.
            - Não tem amigos que o possam ajudar nessa circunstância?
            Morrel sorriu tristemente.
            - Nos negócios não há amigos, senhor, bem sabe, há apenas correspondentes.
            - É verdade – murmurou o inglês. - Portanto, é essa a sua única esperança?
            - A única.
            - A derradeira?
            - A derradeira.
            - De forma que se essa esperança falhar...
            - Estarei perdido, senhor, completamente perdido.
            - Quando vinha para cá havia um navio a entrar no porto.
            - Bem sei, senhor. Um rapaz que permaneceu fiel à minha pouca sorte passa parte do seu tempo num mirante situado no cimo da casa, na esperança de me vir anunciar em primeira mão uma boa notícia. Soube por ele da entrada desse navio.
            - E não é o seu?
            – Não, é um navio bordelês, a Gironde. Também vem da índia, mas não é o meu.
            - Talvez tenha avistado o Pharaon e lhe traga alguma notícia.
            - Confesso-lhe, senhor, que receio quase tanto ter noticias do meu três mastros como permanecer na incerteza. A incerteza ainda é esperança.
            Depois, o Sr. Morrel acrescentou com voz abalada:
            - Este atraso não é natural - O Pharaon partiu de Calcutá em 5 de Fevereiro; há mais de um mês que deveria estar aqui.
            - Que é isto? - perguntou o inglês, apurando o ouvido. - Que significa este barulho?
            - Oh, meu Deus, meu Deus! - exclamou Morrel, empalidecendo. - Que mais haverá ainda?
            De fato, ouvia-se um grande barulho na escada: idas e vindas e até  se ouviu um grito de dor.
            Morrel levantou-se para ir abrir a porta, mas as forças faltaram-lhe e voltou a cair na poltrona.
            Os dois homens ficaram diante um do outro. Morrel tremendo como vara verde, o estrangeiro olhando-o com expressão de profunda compaixão. O barulho cessara, mas se diria que Morrel esperava qualquer coisa. Aquele baralho tinha uma causa e devia ter um efeito.
            Pareceu ao estrangeiro que alguém subia suavemente a escada e que os passos de várias pessoas se detinham no patamar.
            Foi introduzida uma chave na fechadura da primeira porta e ouviu-se essa porta chiar nos gonzos.
            - Só duas pessoas têm a chave daquela porta - murmurou Morrel. - Coclés e Julie.
            Ao mesmo tempo a segunda porta abriu-se e viu-se aparecer a moça, pálida e lavada em lágrimas.
            Morrel ergueu-se muito trêmulo e apoiou-se no braço da poltrona, pois de contrário não conseguiria ter-se de pé.  Queria interrogar, mas não tinha voz.
            - Oh, meu pai! - exclamou a jovem, juntando as mãos. - Perdoe à sua filha ser a portadora de uma má  notícia!
            Morrel empalideceu horrivelmente. Julie lançou-se-lhe nos braços.
            - Oh, meu pai, meu pai, coragem!
            - Assim, o Pharaon naufragou? - perguntou Morrel em voz estrangulada.
            A moça não respondeu, mas fez um sinal afirmativo com a cabeça encostada ao peito do pai.
            - E a tripulação? - indagou Morrel.
            - Salva - respondeu a jovem. -  Foi salva pelo navio bordelês que acaba de entrar no porto.
            Morrel levantou ambas as mãos ao céu com uma expressão de resignação e reconhecimento sublime.
            - Obrigado, meu Deus! - disse Morrel. - Ao menos só a mim feris.
            Por mais fleumático que fosse o inglês, nem por isso uma lágrima deixou de lhe umedecer as pálpebras.
            - Entrem - disse Morrel. - Entrem, pois presumo que estão todos à porta.
            Com efeito, mal pronunciou estas palavras, a .Sra Morrel entrou soluçando. Emmanuel seguia-a. Ao fundo da antecâmara viam-se as figuras rudes de sete ou oito marinheiros seminus. Ao ver aqueles homens, o inglês estremeceu. Deu um passo em frente como que para se lhos dirigir, mas conteve-se e ocultou-se, pelo contrário, no canto mais escuro e afastado do gabinete.
            A Sra Morrel foi sentar-se na poltrona e tomou uma das mãos do marido nas suas, enquanto Julie continuava encostada ao peito do pai. Emmanuel ficara a meio caminho do gabinete e parecia servir de ligação entre o grupo da família Morrel e os marinheiros que se encontravam à porta.
            - Como foi que aconteceu? - perguntou Morrel.
            - Aproxime-se, Penelon - disse o rapaz –, e conte como as coisas se passaram.
            Um velho marinheiro bronzeado pelo sol do equador, adiantou-se rodando nas mãos os restos de um chapéu.
            - Bom dia, Sr. Morrel - disse, como se tivesse saído de Marselha na véspera e chegasse de Aix ou Toulon.
            - Bom dia, meu amigo - respondeu o armador, sem poder deixar de sorrir apesar das lágrimas. - Mas onde está o comandante?
            - O comandante, Sr. Morrel, ficou doente em Palma. Mas se Deus quiser não será nada e o verá  chegar um dia destes de tão boa saúde como o senhor ou eu.
            - Está bem... Agora fale, Penelon - pediu o Sr. Morrel.
            Penelon passou o tabaco de mascar do lado direito para o lado esquerdo da boca, pôs a mão diante desta, virou-se, lançou na antecâmara um longo jato de saliva negra, adiantou um pé e disse, gingando-se:
            - No momento, Sr. Morrel, encontravamo-nos qualquer coisa como entre o cabo Branco e o cabo Bojador, navegando com uma linda brisa de su-sudoeste, depois de oito dias de calmaria, quando o comandante Gaumard se aproximou de mim,  que ia ao leme, e me disse: “Tio Penelon, que lhe parecem aquelas nuvens que se erguem lá adiante no horizonte?”
            “- Eu estava precisamente naquele momento a olhar para elas.
            “- Que me parecem, comandante? Parece-me que sobem um bocado mais depressa do que têm direito e que são mais negras do que conviria a nuvens que não tivessem más intenções.
            “- É também a minha opinião- disse o comandante - e vou já tomar as minhas precauções. Temos demasiadas velas para o vento que não tarda a soprar... Ol ? Eh? Preparar para ferrar os sobrejoanetes e içar baixo a giba!
            “- Era tempo. Ainda a ordem não estava cumprida e já o vento estava sobre nós e o navio ficava de querena.
            “- Demônio, ainda temos demasiado pano! - disse o comandante. - Preparar para ferrar a vela grande.
            “- Cinco minutos depois a vela grande estava ferrada e navegamos com a mezena, as gáveas e os joanetes.
            “- Que é isso, Tio Penelon, porque está a abanar a cabeça - perguntou-me o comandante.
            “- No seu lugar não ficaria por aí...
            “- Creio que tem razão, velho, vamos ter vendaval - disse ele.
            “- Com a breca, comandante - respondi-lhe eu –, quem comprasse o que se passa lá adiante por um vendaval faria um rico negócio? Trata-se de uma tempestade de se lhe tirar o chapéu ou eu já não percebo nada disto!
            “- Quer dizer, via-se vir o vento como se vê vir a poeira em Montredon. Felizmente tinha diante de si um homem que o conhecia.
            “- Preparar para colocar dois rizes nas gáveas! - gritou o comandante. - Largar bolinas, bracear ao vento, amainar as gáveas e carregar as talhas sobre as vergas!
            - Isso não era o suficiente nessas paragens - interveio o inglês. - Eu teria colocado quatro rizes e ter-me-ia desembaraçado da mezena.
            Esta voz firme, sonora e inesperada fez estremecer toda a gente. Penelon pôs a mão em pala sobre os olhos e olhou aquele que criticava com tanta arrogância a manobra do seu comandante.
            - Fizemos ainda melhor do que isso, senhor - perguntou o velho marinheiro com certo respeito. - Ferramos a brigantina e metemos o leme ao vento para correr diante da tempestade. Dez minutos depois, ferramos as gáveas; e deixamo-nos ir em  árvore seca.
            - O navio era muito velho para arriscar isso - observou o inglês.
            - Exatamente! Foi o que nos perdeu. Depois de sermos sacudidos durante doze horas como se o Diabo tivesse tomado conta de nós, o navio abriu água. “Penelon”, disse-me o comandante, “parece-me que nos afundamos, meu  velho. De-me o leme e desce ao porão.”
            “- Dei-lhe o leme e desci. Havia já três pés de água. Tornei a subir, gritando: “As bombas! As bombas!” Mas era já demasiado tarde. Mesmo assim deitamos mãos à obra, mas creio que quanto mais água tiravamos mais  água havia.
            “- Com a breca – disse ao cabo de quatro horas de trabalho –, já que nos afundamos deixemo-nos afundar, pois só se morre uma vez!
            “- É assim que dá o exemplo, mestre Penelon? - disse o comandante. - Pois já vai ver... 
            “E foi buscar um par de pistolas no meu camarote.
            “- Estouro os miolos do primeiro que largar a bomba! - gritou.
            - Muito bem - disse o inglês.
            - Não há nada para dar coragem como as boas razões - continuou o marinheiro-, tanto mais que entretanto o tempo melhorara e o vento amainara. Mas também não era menos verdade que a água
continuava a subir, não muito, talvez duas polegadas por hora, mas enfim, subia. Duas polegadas por hora, veja o senhor, parece coisa de nada, mas em doze horas são pelo menos vinte e quatro polegadas e vinte e quatro polegadas são dois pés... Com mais dois ou três pés que já tínhamos, eram cinco. Ora quando um navio tem cinco pés de água no ventre, pode passar por hidrôpico.
            “- Pronto já basta – disse o comandante. – O Sr. Morrel não terá nada a censurar-nos; fizemos o que pudemos para salvar o navio. Agora é preciso tentar salvar os homens. Para a lancha, rapazes, e mais depressa do que nunca!
            - Escute, Sr. Morrel - continuou Penelon –, nós gostavamos muito do Pharaon; mas por muito que um marinheiro goste do seu navio, gosta ainda mais da sua pele.  Por isso, não esperamos que o comandante nos desse a ordem duas vezes. Mesmo assim, veja o senhor, o navio gemia e parecia dizer-nos: “Andem, Vão-se embora!  Vão-se embora!” E tinha razão, o pobre Pharaon, pois sentíamo-lo literalmente afundando debaixo dos pés.  Num abrir e fechar de olhos a lancha estava no mar e nós oito dentro dela.
            “-  O comandante foi o último a descer, ou antes, não, não desceu, porque não queria deixar o navio. Eu é que o agarrei  pela cintura e o atirei aos camaradas, e em seguida saltei. Era tempo. Mal acabei de saltar a coberta partiu-se com um barulho que parecia a bordada de um navio de guerra de quarenta e oito.
            “- Dez minutos depois, mergulhou de proa, em seguida de popa e depois pôs-se a girar sobre si mesmo como um cão a correr atrás do rabo. E por fim, acabou-se. Pronto, está tudo dito, acabou-se o Pharaon!
            “- Quanto a nós, passamos três dias sem comer nem beber, e já falavamos em tirar à sorte quem alimentaria os outros quando vimos a Cironde. Fizemos-lhe sinais, ela viu-nos, aproou a nós, mandou-nos a sua lancha e recolheu-nos. Aqui tem o que se passou, Sr. Morrel, palavra de honra! Palavra de marinheiro!
Não é verdade, rapazes?
            Um murmúrio geral de aprovação indicou que o narrador conquistara todos os sufrágios pela veracidade do fundo e pelo pitoresco dos pormenores.
            - Bom, meus amigos - disse o Sr. Morrel –, todos vocês são homens honrados e eu sabia antecipadamente que na desgraça que me atingia só havia um culpado: o meu destino.  Trata-se da vontade de Deus e não de culpa dos homens. Respeitemos a vontade de Deus. Agora, quanto lhes é devido de
soldo?
            - Ora, não falemos disso, Sr. Morrel!
            - Pelo contrário, falemos - perguntou o armador, com um sorriso triste.
            - Bom, devem-no três meses... - disse Penelon.
            - Coclés, pague duzentos francos a cada um destes dignos homens. Noutra época, meus amigos - continuou Morrel -, acrescentaria: “E dê a cada um duzentos francos de gratificação.” Mas os tempos estão maus, meus amigos, e o pouco dinheiro que me resta já não me pertence. Desculpem-me portanto e não sejam menos meus amigos por isso. 
            Penelon fez uma careta de comoção, virou-se para os companheiros, trocou algumas palavras com eles e voltou-se de novo:
            - Quanto a isso, Sr. Morrel - disse passando o tabaco de mascar de um lado para o outro da boca e lançando na antecâmara segundo jato de saliva que foi emparelhar com o primeiro –, quanto a isso...
            - Quanto a isso o quê?
            - Do dinheiro...
            - Sim...
            - Bom, Sr. Morrel, os camaradas dizem que de momento lhes chega cinquenta francos a cada um e que esperarão pelo resto.
            - Obrigado, meus amigos, obrigado! - exclamou o Sr. Morrel, profundamente comovido. - Têm todos excelente coração. Mas recebam, recebam, e se arranjarem um bom lugar aproveitem-no, pois estão livres.
            Esta última parte da frase produziu efeito prodigioso sobre os dignos marinheiros, que se entreolharam com ar desorientado. Penelon, que ficara sem fôlego, quase engoliu o rolo de tabaco.
            Felizmente, levou a tempo a mão à garganta.
            - Como, Sr. Morrel? - disse com voz estrangulada. - Como, o senhor despede-nos?! Isso quer dizer que não está satisfeito conosco?
            - Não, meus filhos - respondeu o armador. - Não estou descontente com vocês, muito pelo contrário, nem os despeço. Mas que querem, já não tenho navios e portanto já não necessito de marinheiros.
            - Como é que já não tem navios? - replicou Penelon. - Pois mandará  construir outros e nós esperaremos! Graças a Deus, sabemos o que é navegar de bolina.
            - Já não tenho dinheiro para mandar construir navios, Penelon - confessou o armador com um sorriso triste. - Não posso portanto aceitar essa resposta, por mais generosa que seja.
            - Pois bem, se não tem dinheiro escusa de nos pagar.  Faremos como o pobre Pharaon, correremos em árvore seca e pronto!
            - Basta, basta, meus amigos - pediu Morrel, sufocado de emoção. - Vão, peço-lhes. Voltaremos a encontrar-nos em tempos melhores. Emmanuel - acrescentou o armador -, acompanhe-os e providencie para que os meus desejos sejam satisfeitos.
            - Pelo menos até  breve, não é verdade, Sr. Morrel? - disse Penelon.
            - Sim, meus amigos. Pelo menos assim espero. Vão.
            E fez um sinal a Coclés, que saiu à frente. Os marinheiros seguiram o tesoureiro e Emmanuel seguiu os marinheiros.
            - Agora - disse o armador à mulher e à filha –, deixem-me só um instante. Tenho de conversar com este senhor.
            E indicou com os olhos o mandatário da casa de Thomson & French, que permanecera de pé e imóvel no seu canto durante toda a cena, na qual apenas participara com as poucas palavras que reproduzimos. As duas mulheres ergueram os olhos para o estrangeiro, que tinham esquecido por completo, e retiraram-se. Mas ao sair a jovem lançou ao visitante um sublime olhar de súplica a que ele respondeu com um sorriso
que um observador frio se admiraria de ver desabrochar naquele rosto de gelo. Os dois homens ficaram sós. 
            - Pronto, senhor! - disse Morrel, voltando a deixar-se cair na poltrona. - Viu tudo, ouviu tudo, não tenho mais nada a dizer-lhe.
            - Vi, senhor - perguntou o inglês –, que foi vítima de uma nova desgraça, tão imerecida como as outras, e isso reforçou o desejo que já tinha de lhe ser agradável.
            - Oh, senhor! - exclamou Morrel.
            - Vejamos - continuou o estrangeiro. - Sou um dos seus principais credores, não é verdade?
            - É pelo menos o que possui os valores a mais curto prazo.
            - Deseja um prazo para me pagar?
            - Um adiamento poderia salvar-me a honra e consequentemente a vida.
            - Que prazo deseja?
            Morrel hesitou.
            - Dois meses - respondeu.
            - Bom - disse o estrangeiro -, concedo-lhe três.
            - Mas acha que a casa Thomson & French...
            - Esteja tranquilo, senhor. Responsabilizo-me por tudo. Estamos hoje a 5 de Junho.
            - É verdade.
            - Portanto, reformemos todas estas letras para 5 de Setembro. E no dia 5 de Setembro, às onze horas da manhã (o relógio da sala marcava onze horas precisamente naquele momento), me apresentarei em sua casa.
            - Eu o esperarei, senhor - disse Morrel –, e será pago ou estarei morto.
            Estas últimas palavras foram pronunciadas tão baixo que o estrangeiro as não pode ouvir.
            As letras foram reformadas, rasgaram-se as antigas e o pobre armador encontrou-se pelo menos com três meses à sua frente para reunir os seus últimos recursos.
            O inglês recebeu os seus agradecimentos com a fleumo rostocterística da sua nação e despediu-se de Morrel, que o acompanhou, manifestando-lhe a sua gratidão, até  à porta.
            Na escada, o inglês voltou a encontrar Julie. A moça simulava descer, mas na realidade esperava-o.
            - Oh, senhor! - exclamou, juntando as mãos.
            - Menina - disse-lhe o estrangeiro –, um dia receberá uma carta assinada por Simbad, o Marinheiro... Faça ponto por ponto, o que lhe disser essa carta, por mais estranha que lhe pareça a recomendação.
            - Sim, senhor - respondeu Julie.
            - Promete-me que o fará?
            - Juro-lhe.
            - Muito bem! Adeus, menina. Seja sempre uma boa e santa filha, como é, e tenho muita esperança de que Deus a recompensará dando-lhe Emmanuel por marido.
            Julie soltou um gritinho, corou como uma cereja e agarrou-se ao corrimão para não cair.
            O estrangeiro continuou o seu caminho depois de lhe fazer um aceno de adeus.
            No pátio encontrou Penelon com um maço de notas no valor de cem francos em cada mão, que parecia não poder decidir-se a guardar.
            - Venha, meu amigo - disse-lhe. - Preciso de falar contigo. 


Capítulo XXX


O 5 de Setembro


            O prazo concedido pelo mandatário da casa Thomson & French no momento em que Morrel esperava o pior pareceu ao pobre armador uma dessas reviravoltas do destino que anunciam ao homem que o azar se cansou finalmente de se encarniçar contra ele. No mesmo dia contou o que lhe acontecera à filha, à mulher e a
Emmanuel, e um pouco de esperança, senão de tranquilidade, reentrou na família. Mas infelizmente Morrel não tinha apenas negócios com a casa Thomson & French, que se mostrara tão transigente para consigo. Como dissera, no comércio têm-se correspondentes e não amigos. Quando pensava profundamente no caso, nem sequer compreendia o comportamento generoso da firma Thomson & French para consigo e só explicava por meio desta reflexão inteligentemente egoísta que essa teria feito: “Mais vale amparar um homem que nos deve cerca de trezentos mil francos, e receber esses trezentos mil francos ao fim de três
meses, do que apressar-lhe a ruína e receber apenas seis ou oito por cento do capital.”
            Infelizmente, quer por ódio, quer por cegueira, nem todos os correspondentes de Morrel fizeram a mesma reflexão, e alguns até fizeram a reflexão contrária. As letras aceites por Morrel foram portanto apresentadas a pagamento com escrupuloso rigor e, graças ao adiamento concedido pelo inglês, pagas por Coclés à boca do cofre. Coclés continuou portanto a viver na sua tranquilidade fatídica e só o Sr. Morrel viu com terror que se tivesse tido de reembolsar, em 15, os cem mil francos de Boville e, em 30, os trinta e dois mil e quinhentos francos de letras para as quais, assim como para o crédito do inspetor das prisões, dispunha de um adiamento, seria naquele mês um homem perdido.
            A opinião de todo o comércio de Marselha era que Morrel não resistiria aos sucessivos revezes que tinham desabado sobre si. A surpresa foi portanto grande quando o viram satisfazer no fim do mês, com a pontualidade habitual, todos os seus compromissos. Apesar disso, a confiança não reentrou nos espíritos e foi unanimemente adiada para o fim do próximo mês a declaração de falência do infeliz armador.
            Passou-se todo o mês em esforços inauditos da parte de Morrel para reunir todos os seus recursos. Em outros tempos o seu papel, fosse a que prazo fosse, era aceito com confiança e até  solicitado. Morrel tentou negociar papel a noventa dias e encontrou os cofres de todos os bancos fechados. Felizmente,
Morrel tinha algumas cobranças com as quais podia contar. Essas cobranças efetuaram-se e Morrel encontrou-se ainda em condições de fazer face aos seus compromissos quando chegou o fim de Julho.
            No tocante ao mandatário da casa Thomson & French, ninguém mais lhe pusera a vista em cima em Marselha. No dia seguinte ou dois dias depois da sua visita a Morrel desaparecera. Ora, como em Marselha só falara com o maire, o inspetor das prisões e o Sr. Morrel, a sua passagem só deixara como sinal a
diferente recordação com que ficaram dele essas três pessoas.
            Quanto aos marinheiros do Pharaon, parece que tinha encontrado qualquer colocação, pois também haviam desaparecido. 
            O comandante Gaumard, refeito da indisposição que o retivera em Palma, regressou por seu turno, mas hesitava em se apresentar ao Sr. Morrel. Este soube porém da sua chegada e foi procurá-lo pessoalmente. O digno armador sabia antecipadamente, pela descrição de Penelon, a forma corajosa
como se comportara o comandante durante todo o sinistro e foi ele quem procurou animá-lo. Além disso, levou-lhe o montante do seu soldo, que o comandante Gaumard não ousaria ir receber.
            Quando descia a escada, o Sr. Morrel encontrou Penelon, que subia. Penelon fizera, ao que parecia, bom emprego do seu dinheiro, pois estava todo vestido de novo. Ao ver o seu armador, o digno timoneiro pareceu muito embaraçado. Afastou-se para o canto mais distante do patamar, passou alternadamente o rolo de tabaco da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, arregalando os olhos atarantado, e
correspondeu apenas com uma tímida pressão ao aperto de mão que, com a sua cordialidade habitual, lhe ofereceu o Sr. Morrel. Este atribuiu o embaraço de Penelon à elegância da sua indumentária. Era evidente que o excelente homem não se dera por si próprio a semelhante luxo; portanto, estava já sem dúvida contratado a bordo de qualquer outro navio e a sua vergonha provinha, se assim se pode dizer, do fato de não ter usado mais tempo do luto pelo Pharaon. Talvez viesse até  informar o comandante Gaumard da sua boa fortuna e apresentar-lhe alguma proposta da parte do seu novo patrão.
            “Excelentes homens”, disse Morrel para consigo enquanto se afastava, “oxalá o seu novo patrão seja capaz de os estimar como eu os estimo e ser mais feliz do que eu!”
            Agosto passou em tentativas constantemente renovadas por Morrel para readquirir o seu antigo crédito ou conseguir outro. Em 20 de Agosto soube-se em Marselha que embarcara na mula-posta e disse-se então que a falência deveria ser declarada no fim desse mês e que Morrel partira antecipadamente para não assistir a esse ato cruel, delegado, sem dúvida, ao seu primeiro-escriturário Emmanuel e no seu tesoureiro Coclés. Mas contra todas as previsões quando chegou o dia 31 de Agosto a tesouraria abriu como de costume, Coclés apareceu atrás da rede de arame, calmo como o justo Horácio, examinou com a mesma atenção o papel que lhe apresentavam e depois, da primeira à última, pagou as letras com a habitual
pontualidade. Apareceram até  dois reembolsos, como o Sr. Morrel previra, que Coclés pagou com a prontidão com que pagara as letras aceitas pelo armador. As pessoas não compreendiam nada e adiavam, com a tenacidade característica dos profetas da desgraça, a falência para fins de Setembro.
            Morrel chegou no dia 1. Toda a família o esperava com grande ansiedade. Daquela viagem a Paris deveria surgir a sua derradeira oportunidade de salvação. Morrel pensara em Danglars. Atualmente milionário e em outros tempos seu protegido, pois fora graças à recomendação de Morrel que Danglars entrara ao serviço do banqueiro espanhol, em casa do qual iniciara a sua imensa fortuna. Atualmente, dizia-se, Danglars possuía seis ou oito milhões e crédito ilimitado. Podia portanto, sem tirar um escudo da algibeira, salvar
Morrel: lhe bastaria garantir um empréstimo e Morrel estaria salvo. Havia muito tempo que Morrel se lembrara de Danglars, mas existem repulsas instintivas de que não somos senhores e Morrel adiara tanto quanto lhe fora possível recorrer a esse meio supremo. E tivera razão, pois regressara abatido pela humilhação de uma recusa. 
            Mesmo assim, à chegada, Morrel não deixara escapar nenhum queixume nem proferira nenhuma recriminação. Beijara chorando a mulher e a filha, estendera a mão amiga a Emmanuel, fechara-se no seu gabinete do segundo andar e mandara chamar Coclés.
            - Desta vez, estamos perdidos - disseram as duas mulheres a Emmanuel.
            Depois, num curto conciliábulo entre elas, decidiram que Julie escreveria ao irmão, de guarnição em Noemes, para que viesse imediatamente.
            As pobres mulheres sentiam instintivamente que necessitavam de todas as suas forças para aparar o golpe que as ameaçava. Aliás, Maximilien Morrel, apesar de contar apenas vinte e dois anos, tinha já grande influência sobre o pai.
            Era um jovem firme e reto. Quando se tratara de abraçar uma carreira, o pai não quisera impor-lhe antecipadamente um futuro e consultara os gostos do jovem Maximilien. Este declarara então que queria seguir a carreira militar, fizera brilhantemente os estudos adequados e entrara por concurso para a Escola Politécnica e saíra de lá alferes do 53º de linha. Havia um ano que tinha esse posto, mas tinha a promessa
de ser promovido a tenente na primeira oportunidade. No regimento, Maximilien Morrel era citado como rígido observador não só de todas as obrigações impostas aos soldados, mas ainda de todos os deveres inerentes ao homem, pelo que só o tratavam por estóco. Escusado ser  dizer que muitos daqueles que lhe davam este epíteto o repetiam por o ter ouvido e nem sequer sabiam o que ele significava.
            Era este jovem que a mãe e a irmã chamavam em seu auxílio, para as amparar na circunstância grave em que pressentiam ir encontrar-se.
            Não se enganavam acerca da gravidade dessa circunstância, porque pouco depois de o Sr. Morrel entrar no seu gabinete com Coclés, Julie viu sair este último, pálido, trêmulo e de rosto descomposto.
            Quis interrogá-lo ao passar por ela, mas o excelente homem continuou a descer a escada com uma precipitação que lhe não era habitual e limitou-se a exclamar, erguendo os braços ao céu:
            - Oh, menina, menina, que horrível desgraça! Quem esperaria alguma vez uma coisas destas!
            Pouco depois, Julie viu-o tornar a subir carregado como dois ou três volumosos registros, uma pasta e um saco de dinheiro.
            Morrel consultou os registros, abriu a pasta e contou o dinheiro.
            Todos os seus recursos ascendiam a seis ou oito mil francos e as suas cobranças até  ao dia cinco a quatro ou cinco mil, o que totalizava, avaliando por alto, um ativo de catorze mil francos para pagar uma letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos. Nem sequer havia meio de oferecer semelhante amortização.
            No entanto, quando desceu para jantar, Morrel parecia bastante calmo. Mas tal calma assustou mais as duas mulheres do que o faria o mais profundo abatimento. Depois do jantar, Morrel tinha o hábito de sair. Ia tomar o café ao Círculo dos Fôcios e ler o Sémaphore. Naquele dia, porém, não saiu e tornou a subir para o seu gabinete.
            Quanto a Coclés, parecia completamente estupidificado. Durante parte do dia conservara-se no pátio, sentado numa pedra, de cabeça descoberta debaixo de um sol de trinta graus. 
            Emmanuel tentava tranquilizar as mulheres, mas era pouco eloquente. O rapaz encontrava-se tão ao corrente dos negócios da casa que não podia deixar de adivinhar que uma grande catástrofe estava prestes a desabar sobre a família Morrel.
            Anoiteceu. As duas mulheres não se deitaram, esperando que quando descesse do seu gabinete Morrel fosse ter com elas. Mas ouviram-no passar diante da sua porta e estugar o passo, receando, sem dúvida, que o chamassem.
            Escutaram e ouviram-no entrar no seu quarto e fechar a porta por dentro.
            A Sra Morrel mandou a filhe deitar. Em seguida, cerca de meia hora depois de Julie se retirar, levantou-se, descalçou os sapatos e deslizou pelo corredor, a fim de ver através da fechadura o que fazia o marido.
            No corredor notou uma sombra que se retirava: era Julie que, também inquieta, precedera a mãe.
            A jovem foi ao encontro da Sra Morrel.
            - Está escrevendo - disse-lhe.
            As duas tinham-se adivinhado sem trocar palavra.
            A Sra Morrel inclinou-se ao nível da fechadura. Com efeito, Morrel escrevia. Mas o que não notara a filha notou-o a Sra Morrel: o marido escrevia em papel selado.
            Assaltou-a a idéia terrível de que fazia o seu testamento. Estremeceu da cabeça aos pés, mas teve a coragem de não dizer nada.
            No dia seguinte, o Sr. Morrel parecia absolutamente calmo. Esteve no seu gabinete como de costume, desceu para almoçar como habitualmente e apenas depois do jantar fez sentar a filha junto de si, tomou-lhe a cabeça nos braços e manteve-a assim durante muito tempo apertada ao peito. À noite, Julie disse à mãe que, embora na aparência calmo, notara que o coração do pai batia violentamente.
            Os dois outros dias decorreram de forma mais ou menos idêntica. No dia 4 de Setembro à noite, o Sr. Morrel pediu à filha a chave do seu gabinete.
            Julie estremeceu ao ouvir tal pedido, que lhe pareceu sinistro. Por que motivo lhe pediria o pai uma chave que ela sempre tivera e que só lhe tiravam na infância para a castigar?
            A jovem fitou o Sr. Morrel.
            - Que mal fiz eu, meu pai, para que me tire a chave?
            - Nada, minha filha - respondeu o pobre Morrel, a quem esta pergunta tão simples da filha fez brotar as lágrimas dos olhos. - Nada, apenas necessito dela.
            Julie simulou procurar a chave.
            - Devo tê-la deixado no meu quarto.
            E saiu. Mas em vez de ir ao quarto, desceu e correu para consultar Emmanuel.
            - Não entregue a chave ao seu pai - disse-lhe Emmanuel - e amanhã de manhã, se for possível, não o deixe.
            Ela procurou interrogar o rapaz, mas ou este não sabia mais nada ou não queria dizer outra coisa.
            Durante toda a noite de 4 para 5 de Setembro a Sra Morrel esteve de ouvido colado à parede. Até  às três da madrugada ouviu o marido passear agitadamente no quarto.
            Só às três horas se atirou para cima da cama.
            As duas mulheres passaram a noite juntas. Desde a véspera à noite que esperavam Maximilien. Às oito horas, o Sr. Morrel entrou no quarto da mulher e da filha. Estava clamo, mas a agitação da noite transparecia-lhe no rosto pálido e desfeito.
            As duas mulheres não ousaram perguntar-lhe se dormira bem. Morrel foi melhor para a mulher e mais paternal com a filha do que em qualquer outra ocasião. Não se cansava de olhar e beijar a pobre criança.
            Julie recordou-se da recomendação de Emmanuel e quis acompanhar o pai quando este saiu. Mas ele repeliu-a com doçura e disse-lhe.
            - Fica com a tua mãe.
            Julie quis insistir.
            - Quero que fiques! - atalhou Morrel.
            Era a primeira vez que Morrel dizia à filha: “Quero!”, mas disse-o em tom impregnado de tão paternal doçura que Julie não ousou dar um passo em frente.
            Ficou onde estava, de pé, muda e imóvel. Pouco depois a porta abriu-se e a jovem sentiu dois braços rodearam-na e uma boca colar-se-lhe à testa.
            Ergueu os olhos e soltou uma exclamação de alegria.
            - Maximilien, meu irmão!
            Ao ouvir este grito a Sra Morrel acorreu e lançou-se nos  braços do filho.
            - Minha mãe - disse o rapaz, olhando ora para a Sra Morrel, ora para a irmã. - Que aconteceu? A vossa carta assustou-me e vim imediatamente.
            - Julie - disse a Sra Morrel, fazendo sinal ao rapaz para esperar –, vai dizer ao teu pai que Maximilien acaba de chegar.
            A jovem correu para fora do apartamento, mas encontrou no primeiro degrau da escada um homem com uma carta na mão.
            - É Mademoiselle Julie Morrel? - perguntou o homem com um sotaque italiano deveras pronunciado.
            - Sou, sim, senhor - respondeu Julie balbuciante. - Que me quer? Não o conheço...
            - Leia esta carta - disse o homem, estendendo-lha.
            Julie hesitava.
            - Está nela a salvação do seu pai - acrescentou o mensageiro.
            A moça arrancou-lhe a carta da mão.
            Em seguida abriu-a rapidamente e leu:
              imediatamente às Alamedas de Meilhan, entre no prédio nº  15, peça à porteira a chave do quarto do quinto andar, entre nesse quarto, pegue numa bolsa de rede de seda encarnada que está no canto da chaminé e leve-a ao seu pai.
            É importante que ele a receba antes das onze horas.
            Prometeu obedecer-me cegamente, lembro-lhe a sua  promessa.

            SIMBAD, O MARINHEIRO

            A jovem soltou um grito de alegria, levantou os olhos e procurou, para o interrogar, o homem que lhe entregara a carta, mas ele desaparecera. 
            Voltou então a olhar para a carta, a fim de a ler segunda vez, e descobriu que tinha um pôs-escrito. Leu-o:
            É importante que desempenhe esta missão pessoalmente e sozinha. Se fosse acompanhada ou mandasse outra pessoa, a porteira responderia que não sabia que queriam dizer.
            Este pós-escrito diminuiu consideravelmente a alegria da moça. Não teria nada a temer? Não quereriam armar-lhe alguma cilada? A sua inocência fazia-a ignorar quais eram os perigos que podia correr uma moça da sua idade, mas ninguém precisa de conhecer o perigo para ter medo. Deve-se até notar que são precisamente os perigos desconhecidos aqueles que inspiram os maiores terrores.
            Julie hesitava e resolveu pedir conselho.
            Mas, por um sentimento estranho, não foi nem à mãe nem ao irmão que recorreu, foi a Emmanuel.
            Desceu e contou-lhe o que lhe acontecera no dia em que o mandatário da casa Thomson & French viera procurar o pai. Contou-lhe a cena da escada, revelou-lhe a promessa que lhe fizera e mostrou-lhe a carta.
            - Deve ir, menina - disse Emmanuel.
            - Acha? - murmurou Julie.
            - Acho. Eu a acompanharei.
            - Mas não vê que devo ir sozinha? - observou Julie.
            - Irá sozinha - respondeu o rapaz. - Eu esperarei à esquina da Rua do Museu e se a sua demora começar a preocupar-me irei procurá-la e ai daquele ou daqueles de que me disser ter razão de queixa!
            - Assim, Emmanuel - perguntou hesitante a moça –, acha que devo fazer o que me indicam?
            - Acho. O mensageiro não lhe disse que ia nisso a salvação do seu pai?
            - Mas, Emmanuel, que perigo corre ele? - perguntou a moça.
            Emmanuel hesitou um instante, mas o desejo de decidir Julie sem delongas levou a melhor.
            - Ouça, hoje são 5 de Setembro, não é verdade?
            - São.
            - Pois hoje às onze horas o seu pai tem de pagar cerca de trezentos mil francos.
            - Pois tem, bem o sabemos.
            - Mas não tem nem quinze mil em caixa! - disse Emmanuel.
            - Então, que vai acontecer?
            - Vai acontecer que se hoje, antes das onze horas, o seu pai não encontrar alguém que o ajude, ao meio-dia será obrigado a declarar-se falido.
            - Oh, venha, venha! - gritou a moça, arrastando o rapaz consigo.
            Entretanto, a Sra Morrel contara tudo ao filho.
            O jovem sabia bem que em consequência das sucessivas desgraças que tinham acontecido ao pai haviam sido feitos grandes cortes nas despesas da casa, mas ignorava que as coisas tivessem chegado a tal ponto.
            Ficou aniquilado. 
            Depois, de repente, correu para fora do apartamento e subiu rapidamente a escada, porque julgava o pai no gabinete, mas bateu em vão.
            Junto da porta do gabinete ouviu a do apartamento abrir-se, virou-se e viu o pai. Em vez de subir direito ao seu gabinete, o Sr. Morrel entrara no seu quarto, do qual saía apenas naquele momento.
            O Sr. Morrel soltou um grito de surpresa ao ver Maximilien, pois ignorava a chegada do rapaz. Ficou imóvel onde estava, apertando com o braço esquerdo um objeto que tinha escondido debaixo da sobrecasaca.
            Maximilien desceu rapidamente a escada e lançou-se ao pescoço do pai. Mas de repente recuou, deixando apenas a mão direita apoiada no peito do pai.
            - Meu pai - disse, fazendo-se pálido como a morte –, porque traz um par de pistolas debaixo da sobrecasaca?
            - Pronto, aí está o que eu temia! - exclamou Morrel.
            - Meu pai, meu pai, em nome do Céu! - gritou o rapaz. - Para que são essas armas?
            - Maximilien - respondeu Morrel, olhando fixamente o filho –, você é um homem e um homem de honra. Anda comigo, vou te contar tudo.
            E Morrel subiu com passo firme ao seu gabinete, enquanto Maximilien o seguia cambaleando.
            Morrel abriu a porta e fechou-a atrás do filho. Depois atravessou a antecâmara, aproximou-se da mesa, depositou as pistolas à ponta do móvel e indicou ao filho, com o dedo, um registro aberto.
            Nesse registro encontrava-se consignado o estado exato da firma.
            Morrel tinha de pagar dentro de meia hora duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos.
            E possuía ao todo quinze mil duzentos e cinquenta e sete francos.
            - Leia - disse Morrel.
            O rapaz leu e ficou um momento como que esmagado.
            Morrel não disse nem uma palavra. Que poderia dizer que contrariasse a inexorável eloquência dos números?
            - E fez tudo, meu pai, para evitar esta desgraça? - perguntou o rapaz passado um instante.
            - Tudo - respondeu Morrel.
            - Não espera nenhuma entrada de fundos?
            - Nenhuma.
            - Esgotou todos os seus recursos?
            - Todos.
            - E dentro de meia hora o nosso nome estará desonrado? - continuou o jovem, com voz sombria.
            - O sangue lavará a desonra - declarou Morrel.
            - Tem razão, meu pai, e compreendo-o.
            Depois, estendendo a mão para as pistolas:
            - Há uma para si e outra para mim - disse. - Obrigado!
            Morrel deteve-lhe a mão.
            - E a tua mãe... e a tua irmã... quem as sustentará ?
            Um arrepio percorreu todo o corpo do rapaz.
            - Meu pai, tenciona pedir-me que viva? 
            - Sim, tenciono - respondeu Morrel –, porque é esse o teu dever. Possui um espírito calmo, forte, Maximilien... Maximilien, você não é um homem vulgar. Não te recomendo nada, não te ordeno nada, apenas te digo: examina a situação como se te tosse estranha e julgue-a por si mesmo.
            O rapaz refletiu um instante e em seguida passou-lhe pelos olhos uma expressão de resignação sublime. Apenas tirou, com um gesto lento e triste, a dragona e a contradragona, insígnias do seu posto.
            - Está bem - disse, estendendo a mão a Morrel –, morra em paz, meu pai! Eu viverei.
            Morrel esboçou o gesto de se lançar aos joelhos do filho, mas Maximilien puxou-o para si e aqueles dois nobres corações bateram um instante um contra o outro.
            - Sabe que a culpa não é minha, não sabe? - perguntou Morrel.
            Maximilien sorriu.
            - Sei, meu pai, que é o homem mais honesto que jamais conheci.
            - Pronto, está tudo dito. Agora, volta para junto da tua mãe e da tua irmã.
            - Meu pai, abençoe-me - pediu o jovem, dobrando o joelho. Morrel tomou a cabeça do filho nas mãos, aproximou-a de si e beijou-a diversas vezes.
            - Oh, sim, sim! - exclamou. - Abençoo-te em meu nome e em nome de três gerações de homens irrepreensíveis. Ouve o que te dizem por meu intermédio: o edifício que a desgraça destruiu pode ser reconstruído pela Providência. Quando me virem morto de semelhante morte os mais inexoráveis terão compaixão de ti. A ti talvez dêem o tempo que me recusariam. Então, procura que a palavra infame não seja pronunciada. Mete ombros à obra. Trabalhe, rapaz, lute ardente e corajosamente. Vivam, você, a sua mãe e a sua irmã, com o estritamente necessário para que, dia a dia, o capital daqueles a quem devo aumente e frutifique nas suas mãos. Lembre-se de que será um belo dia, um grande dia, um dia solene o da reabilitação, o dia em que, neste mesmo gabinete, dirá: “O meu pai morreu por não poder fazer o que eu faço hoje. Mas morreu tranquilo e calmo, porque sabia ao morrer que eu o faria.”
            - Oh, meu pai, meu pai! - exclamou o rapaz. - Se apesar de tudo pudesse viver!...
            - Se viver, tudo se modificará. Se viver, o interesse se transformará-  em dúvida, a compaixão em encarniçamento. Se viver, não passarei de um homem que faltou à sua palavra, que não respeitou os seus compromissos, não passarei, enfim, de um falido. Pelo contrário, se morrer (pensa nisto Maximilien), o
meu cadáver será apenas o de um homem honesto infeliz. Vivo, os meus melhores amigos evitarão esta casa; morto, Marselha em peso me acompanhará chorando à minha última morada. Vivo, se envergonhará do meu nome; morto, levantará a cabeça e dirá: “Sou filho daquele que se matou porque, pela primeira vez, foi obrigado a faltar à sua palavra.”
            O rapaz soltou um gemido, mas pareceu resignado. Era a segunda vez que a convicção entrava, não no seu coração, mas sim no seu espírito.
            - E agora - disse Morrel - deixe-me sozinho e procure afastar as mulheres.
            - Não quer ver mais uma vez a minha irmã? - perguntou Maximilien. 
            O jovem depositava - derradeira e recôndita esperança nesse encontro e por isso o sugeria. Mas o Sr. Morrel abanou a cabeça.
            - Eu a vi esta manhã e despedi-me dela
            - Não tem nenhuma recomendação especial a fazer-me, meu pai? - perguntou Maximilien em voz alterada.
            - Tenho, sim, meu filho, uma recomendação sagrada.
            - Diga, meu pai.
            - A casa Thomson & French foi a única que por humanidade ou talvez por egoísmo - mas não sou eu que posso ler no coração dos homens - teve compaixão de mim. O seu mandatário, que dentro de dez minutos se apresentará para cobrar o montante de uma letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos
francos, não direi que me concedeu, mas ofereceu-me três meses. Quero que essa casa seja a primeira a
ser reembolsada, meu filho, e que considere esse homem sagrado.
            - Pois sim, meu pai - disse Maximilien.
            - E agora, mais uma vez, adeus - disse Morrel. - Vai, vai, preciso estar só. Encontrar o meu testamento na mesa do meu quarto.
            O rapaz ficou de pé, imóvel, apenas com a sua força de vontade, mas não de execução.
            - Escuta, Maximilien - disse o pai. - Supõe que sou soldado como você, que recebi ordem de tomar um reduto e que sabe que para o tomar terei de morrer. Não me dirias o que me disseste há  pouco: “Vá, meu pai, porque se desonrar se ficar, e mais vale a morte do que a desonra!?”
            - Sim, sim - admitiu o jovem. - Sim.
            E apertando convulsivamente Morrel nos braços:
            - Vá, meu pai - disse.
            E correu para fora do gabinete.
            Depois de o filho sair, Morrel ficou um instante de pé e com os olhos fixos na porta. Em seguida estendeu a mão, encontrou o cordão de uma campainha e tocou.
            Pouco depois apareceu Coclés.
            Já não era o mesmo homem Aqueles três dias de tortura tinham-no alquebrado. Esta idéia: “A casa Morrel vai cessar os seus pagamentos” curvava-o para o chão mais do que o fariam vinte anos de vida, além dos que já tinha, sobre a sua cabeça.
            - Meu bom Coclés - disse Morrel num tom em que seria impossível encontrar expressão –, vai ficar na antecâmara. Quando aquele senhor que veio há três meses (você sabe, o mandatário da casa Thomson  & French) chegar, o anunciará.
            Coclés não disse nada. Acenou com a cabeça, foi-se sentar na antecâmara e esperou.
            Morrel deixou-se cair na sua cadeira. Olhou para o relógio de sala: restavam-lhe apenas sete minutos. O ponteiro andava com uma rapidez incrível; parecia-lhe que o via avançar
            O que se passou então, naquele momento supremo, no espírito daquele homem que, ainda novo, em consequência de um raciocínio talvez falso, ou pelo menos especial, se ia separar de tudo o que amava no mundo e deixar a vida, que tinha para si todas as doçuras da família, é impossível exprimir. Seria necessário  ver, para se fazer uma idéia, a sua testa coberta de suor, e no entanto resignada, e os seus olhos cheios de lágrimas, e no entanto erguidos ao céu.
            O ponteiro continuava a andar e as pistolas estavam carregadas. Estendeu a mão, pegou numa e murmurou o nome da filha.
            Em seguida pousou a arma mortífera, pegou na pena e escreveu algumas palavras.
            Parecia-lhe que se não despedira o suficiente da filha querida.
            Depois tornou a olhar para o relógio. Já não contava os minutos, mas sim os segundos.
            Voltou a pegar na arma, com a boca entreaberta e os olhos fixos no ponteiro. Depois estremeceu ao ouvir o ruído que ele próprio fazia ao armar o cão.
            Nesse momento cobriu-lhe a testa um suor mais frio e uma angústia mortal apertou-lhe o coração.
            Ouviu a porta da escada ranger nos gonzos.
            Em seguida abriu-se a do gabinete.
            O relógio ia dar onze horas.
            Morrel não se virou; esperava apenas que Coclés dissesse estas palavras: “O mandatário da casa Thomson & French.”
            Aproximou a arma da boca...
            De súbito, ouviu um grito: era a voz da filha.
            Virou-se e viu Julie; a pistola caiu-lhe das mãos.
            - Pai! - gritou a moça, sem fôlego e quase morta de alegria. - Salvo! está salvo!
            E lançou-se-lhe nos braços, erguendo na mão uma bolsa de rede de seda vermelha.
            - Salvo, minha filha? Que quer dizer? - perguntou Morrel.
            - Salvo, sim! Veja, veja! - respondeu a jovem.
            Morrel pegou a bolsa e estremeceu, pois uma vaga recordação lembrou-lhe que aquele objeto já lhe pertencera. De um lado estava a letra de duzentos e oitenta e sete mil e quinhentos francos.
            A letra estava paga.
            Do outro, estava um diamante do tamanho de uma avelã, com estas três palavras escritas num bocadinho de pergaminho:
            “Dote de Julie.”
            Morrel passou a mão pela testa. Julgava estar sonhando.
            Naquele momento o relógio deu onze horas.
            A campainha vibrou para ele como se cada pancada do martelo de aço fizesse vibrar-lhe o próprio coração.
            - Vejamos, minha filha, explique-se. Onde encontrou esta bolsa?
            - Numa casa das Alamedas de Meilhan, no nº  15, ao canto da chaminé de um pobre quartinho do quinto andar.
            - Mas esta bolsa não te pertence! - gritou Morrel.
            Julie estendeu ao pai a carta que recebera de manhã.
            - E você foi sozinha a essa casa? - perguntou Morrel, depois de ler.
            - Emmanuel acompanhou-me, meu pai. Devia esperar-me à esquina da Rua do Museu, mas, coisa estranha, quando voltei não estava lá.
            - Sr. Morrel! - gritou uma voz na escada. - Sr. Morrel! 
            - É a sua voz - disse Julie.
            Ao mesmo tempo, Emmanuel entrou. Com o rosto transtornado de alegria emoção.
            - O Pharaon! - gritou. - O Pharaon!
            - Que diz? O Pharaon? Endoideceu, Emmanuel? Sabe muito bem que naufragou.
            - O Pharaon! Senhor, assinalam o Pharaon; o Pharaon está  entrando no porto.
            Morrel voltou a cair na sua cadeira. Faltavam-lhe as forças e a sua inteligência recusava-se a classificar aquela sucessão de acontecimentos incríveis, inauditos, fabulosos.
            Mas o filho entrou por seu turno.
            - Pai! - gritou Maximilien. - Não disse que o Pharaon naufragara? Pois o vigia assinalou-o, está entrando no porto!
            - Meus amigos - disse Morrel –, se isso fosse verdade, seria necessário acreditar num milagre de Deus. Impossível! Impossível!
            Mas o que era real e não menos incrível era aquela bolsa que tinha na mão, era aquela letra resgatada, era aquele magnífico diamante.
            - Ah, senhor! - disse Coclés por seu turno. - Que significa isto? O Pharaon...
            - Vamos, meus filhos - atalhou Morrel, levantando-se –, vamos ver e que Deus tenha piedade de nós se a notícia é falsa.
            Desceram. A meio da escada encontraram a Sra Morrel. A pobre mulher não ousava subir.
            Chegaram num instante à Cannebiére.
            Havia muita gente no porto.
            Todos se afastaram diante de Morrel.
            - O Pharaon! o Pharaon! - diziam todas aquelas vozes.
            De fato, coisa maravilhosa, inaudita, diante da Torre de S. João um navio, tendo à popa estas palavras escritas em letras brancas  Pharaon (Morrel & Filhos, Marselha)”, absolutamente idêntico ao outro Pharaon e como o outro carregado de cochonilha e índigo, ancorava e ferrava as velas. Na ponte, o comandante Gaumard dava as suas ordens e mestre Penelon fazia sinais ao Sr. Morrel.
            Já não era possível duvidar: o testemunho dos sentidos estava ali e dez mil pessoas confirmavam esse testemunho.
            Quando Morrel e o filho se abraçaram no molhe, perante os aplausos de toda a cidade, testemunha daquele prodígio, um homem, com o rosto semicoberto por uma barba preta e que escondido atrás da guarita de uma sentinela assistia à cena enternecido, murmurou estas palavras:
            - Seja feliz, nobre coração; seja abençoado por todo o bem que fez e que ainda fará, e que o meu reconhecimento permaneça na sombra como o teu bem-fazer.
            E com um sorriso, em que transpareciam a alegria e a felicidade, deixou o seu esconderijo e, sem que ninguém lhe prestasse atenção, de tal modo estavam todos interessados no acontecimento do dia, desceu uma dessas escadinhas que servem de cais e chamou três vezes:
            - Jacopo! Jacopo! Jacopo! 
            Então veio ao seu encontro uma chalupa, que o recebeu a bordo e o transportou para um iate ricamente aparelhado, para a coberta do qual subiu com a ligeireza de um marinheiro. Daí, olhou mais uma vez para Morrel, que chorando de alegria distribuía cordiais apertos de mão a toda a gente e agradecia
com um olhar vago ao benfeitor desconhecido que parecia procurar no Céu.
            - E agora - disse o homem desconhecido –, adeus bondade, humanidade, reconhecimento... Adeus a todos os sentimentos que dilatam o coração!... Substituí a Providência para recompensar os bons... que Deus vingador me ceda o seu lugar para castigar os maus!
            Depois destas palavras, fez um sinal, e como se esperasse apenas esse sinal para partir, o iate fez-se imediatamente ao mar.

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