domingo, 22 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 61 ao 70

Capítulo LXI

            Meios de livrar um jardineiro dos ratos-dos-pomares que lhe comem os pêssegos
            Não na mesma tarde, como dissera, mas sim no dia seguinte, o conde de Monte-Cristo saiu pela barreira do Inferno, tomou a estrada de Orleães, passou pela aldeia de Linas sem se deter no telégrafo, que precisamente no momento da passagem do conde movia os seus longos braços descarnados, e alcançou a torre de Montlhéry, situada, como todas as pessoas sabem, no ponto mais elevado da planície do mesmo nome.
            Ao pé da colina o conde apeou e, por um caminho circular, de dezoito polegadas de largura, começou a subir a encosta. Chegado no alto, viu-se detido por uma sebe na qual frutos verdes tinham sucedido às flores cor-de-rosa e brancas.
            Monte-Cristo procurou a porta do pequeno recinto e não tardou a encontrá-la. Era uma cancelinha de madeira que girava em gonzos de vime e se fechava com um prego e um cordel.    O conde não tardou a descobrir o funcionamento do “mecanismo” e a porta abriu-se.
            Monte-Cristo encontrou-se então num jardim de vinte pés de comprimento por doze de largura, limitado por um lado pela parte da sebe em que se enquadrava o engenhoso maquinismo que descrevemos sob o nome de porta e pelo outro pela velha torre rodeada de hera, toda salpicada de mostarda-brava e goivos.
            Ninguém diria, ao vê-la assim engelhada e florida como uma avó a quem os netinhos acabassem de dar os parabéns pelo seu aniversário, que poderia contar muitos dramas terríveis se juntasse uma voz aos ouvidos ameaçadores que um velho provérbio atribui às muralhas.
            Percorria-se o jardim seguindo por uma alameda coberta de saibro vermelho, ladeada de espessa sebe de luxo de vários tons, que teriam deliciado os olhos de Delacroix, o nosso Ruhens moderno. A alameda tinha a forma de um X e serpenteava continuamente de forma a abrir num jardim de vinte pés um passeio de sessenta. Nunca Flora, a alegre e fresca deusa dos bons jardineiros latinos, fora honrada com um culto tão
minucioso e puro como o que lhe prestavam naquele recinto.
            Com efeito, de vinte roseiras que compunham os canteiros nem uma folha apresentava sinal de mosca, nem uma hastezinha o pequeno cacho de pulgões-verdes que devastam e roem as plantas que vegetam em terreno úmido. No entanto, não era a umidade o que faltava naquele jardim a terra negra como fuligem e a
folhagem opaca das árvores bem o denunciavam. Aliás, a umidade artificial substituiria rapidamente a umidade natural, se fosse preciso, graças ao casco cheio de  água estagnada que escavava um dos cantos do jardim e no qual estacionavam, numa toalha verde, uma rã e um sapo, que, por incompatibilidade de humor, sem dúvida, se conservavam sempre, de costas um para o outro, nos dois pontos opostos do círculo.
            Além disso, nem uma erva nas alamedas, nem um rebento parasita nas guarnições dos canteiros. Uma elegante pretensiosa arranjaria e podaria com menos cuidado os gerânios, os cactos e os rododendros da sua jardineira de porcelana do que o dono até então invisível do pequeno recinto.
            Monte-Cristo parou depois de fechar a porta prendendo o cordel no prego e abarcou num olhar toda a propriedade. “Parece que o homem do telégrafo tem jardineiros contratados ao ano ou então que se dedica apaixonadamente à jardinagem”, disse para consigo.
            De súbito, esbarrou com qualquer coisa agachada atrás de um carrinho de mão carregado de folhas. Essa qualquer coisa endireitou-se, deixou escapar uma exclamação que denotava a sua surpresa e Monte-Cristo encontrou-se diante de um homenzinho dos seus cinquenta anos que apanhava morangos que colocava em cima de folhas de videira.            Ao levantar-se, o pobre homem quase deixou cair morangos, folhas e prato.
            - Está fazendo a sua colheita, senhor? - perguntou Monte-Cristo, sorrindo.
            - Perdão, senhor - respondeu o homenzinho, levando a mão ao boné -, não estou lá em cima, é certo, mas acabo de descer neste preciso instante.
            - Não quero incomoda-lo em nada, meu amigo - tranquilizou-o o conde. - Apanhe os seus morangos à vontade, se ainda não acabou.
            - Faltam-me dez - disse o homem. - Estão aqui onze e ao todo são vinte e um, mais cinco do que o ano passado. Mas não admira, este ano a Primavera foi quente e os morangos precisam de calor. Aí está porque, em vez dos dezesseis que tive o ano passado, este ano tenho, como vê, onze já colhidos... doze, treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove... Oh, meu Deus, faltam-me dois! E ainda estavam
ontem, senhor; estavam, tenho a certeza, porque os contei. Oxalá  não tenha sido o filho da Tia Simon que mos roubou; vi-o a rondar por aqui esta manhã... Grande patife, roubar num recinto fechado! Bem se vê que não sabe onde isso pode levá-lo. 
            - De fato - concordou Monte-Cristo - o caso é grave, mas o senhor terá  em conta a juventude do delinquente e a sua gulodice.
            - Claro - respondeu o jardineiro. - Mas mesmo assim, o caso não deixa de ser muito desagrável. Oh, mais uma vez perdão, senhor? É talvez um chefe que faço esperar assim?...
            E interrogava com um olhar receoso o conde e a sua sobrecasaca azul.
            - Tranquilize-se, meu amigo - respondeu o conde com aquele sorriso que tornava à sua vontade tão terrível e tão benevolente, e que desta vez só exprimia benevolência - não sou um chefe vindo para  inspecionar, mas sim um simples viajante levado pela curiosidade e que começa até  a arrepender-se da sua visita por ver que lhe faz perder o seu tempo.
            - Oh, o meu tempo não vale muito! - replicou o homenzinho, com um sorriso melancôlico. - No entanto, é o tempo do Governo e não deveria perdê-lo, mas como recebi o sinal de que podia descansar uma hora... - e olhou para o relógio de sol, porque havia de tudo no recinto da torre de Montlhéry, até  um relógio de sol - e como vê ainda disponho, de dez minutos... Além disso, os meus morangos estavam maduros, e mais um dia...
Acha, senhor, que são os ratos que os comem?
            - Creio que não - respondeu Monte-Cristo, gravemente. -  mas é má vizinhança, essa dos ratos-dos-pomares, sobretudo para nós que não os comemos barrados de mel, como faziam os Romanos.
            - Ah! Os Romanos comiam-nos? - admirou-se o jardineiro. Comiam os ratos-dos-pomares?
            - Li-o em Petrônio - respondeu o conde.
            - Deveras? Não devem saber bem, embora os haja bem gordos. E não admira que sejam gordos, atendendo a que dormem todo o santo dia e só acordam para roer toda a noite. Olhe, o ano passado tinha quatro adamasqueiros; atacaram-me um. E tinha também um pessegueiro, um só, desses que dão pêssegos-carecas, um fruto raro... Pois bem, senhor, devoraram-me metade dele do lado da muralha. Um pessegueiro soberbo e que dava uns pêssegos excelentes. Nunca comi outros melhores.
            - Comeu-os? - perguntou Monte-Cristo.
            - Quero dizer, comi a metade que restava, como deve compreender. Eram deliciosos, senhor! Claro, esses cavalheiros não escolhem os piores bocados. São como o filho da Tia Simon, que também não escolheu os piores morangos, isso sim! Mas este ano - continuou o jardineiro - pode estar tranquilo que isso não me acontecerá, nem que eu tenha, quando os frutos estiverem quase maduros, de passar a noite a guardá-los.
            Monte-Cristo já vira o bastante. Cada homem tem a sua paixão que o rói no fundo do coração, assim como cada fruto tem o seu bicho. A paixão do homem do telégrafo era a pomicultura. Pôs-se a colher as folhas da videira que ocultavam os cachos do sol e conquistou assim o coração do jardineiro.
            - O senhor veio para ver o telégrafo? - perguntou o homenzinho.
            - Vim, se isso não é proibido pelos regulamentos.
            - De modo nenhum - respondeu o jardineiro -, atendendo a que não há nada de perigoso, pois ninguém sabe nem pode saber o que transmitimos.
            - De fato, disseram-me - prosseguiu o conde - que os senhores repetem sinais que são os primeiros a não compreender. 
            - Claro, senhor, e por mim prefiro que seja assim - respondeu, rindo, o homem do telégrafo.
            - Porque prefere que seja assim?
            - Porque assim não tenho responsabilidades. Sou apenas uma máquina, e mais nada, e desde que funcione, é tudo, quanto me exigem.
            “Demônio!”, disse Monte-Cristo para consigo mesmo. “Terei por acaso deparado com um homem sem ambições? Irra, seria demasiada pouca sorte!”
            - Senhor - disse o jardineiro, deitando uma olhadela ao relógio de sol -, os dez minutos estão acabando e tenho de regressar ao meu posto. Gostaria de subir comigo?
            - Acompanho-o.
            Com efeito, Monte-Cristo entrou na torre, dividida em três andares. O debaixo continha algumas alfaias agrícolas, tais como enxadas, ancinhos e regadores, encostadas à muralha, e mais nada.
            O segundo era a residência habitual, ou antes, noturna, do funcionário. Continha alguns pobres utensílios domésticos, uma cama, uma mesa, duas cadeiras, uma bilha de barro e algumas ervas secas pendentes do teto, e que o conde identificou como ervilhas-de-cheiro e feijoeiros-escarlates, cujas sementes o homenzinho conservava na sua vagem, tudo etiquetado com um cuidado que faria inveja a um técnico do Jardim Botânico.
            - É preciso muito tempo para aprender telegrafia, senhor? - indagou Monte-Cristo.
            - Não, a aprendizagem não é longa, o que é longo é o tempo que se passa como supranumerário.
            - E quanto ganham?
            - Mil francos, senhor.
            - Não é muito...
            - Pois não, mas temos alojamento, como vê.
            Monte-Cristo olhou o quarto.
            - Oxalá que não esteja agarrado a isto - murmurou.
            Passaram ao terceiro andar: era a sala do telégrafo. Monte-Cristo olhou alternadamente os dois manípulos de ferro com o auxílio dos quais o funcionário fazia trabalhar a máquina.
            - Isto é muito interessante - disse -, mas com o tempo esta vida não lhe parecerá um bocado insípida?
            - Sim, ao princípio têm-se torcicolos à força de olhar, mas ao cabo de um ano ou dois acostumamo-nos. Além disso, temos as nossas horas de folga e os nossos dias de descanso.
            - Dias de descanso?
            - Sim.
            - Quais?
            - Aqueles em que há nevoeiro.
            - Ah, tem razão!
            - São os meus dias de festa. Nesses dias desço ao jardim e planto, podo, aparo e dou cabo das lagartas que apanho. Em suma, o tempo passa.
            - Há quanto tempo está aqui?
            - Há dez anos, mais cinco de supranumerário, quinze.
            - Que idade tem? 
            - Cinquenta e cinco anos.
            - Quanto tempo de serviço lhe falta para ter direito à reforma?
            - Oh, senhor, vinte e cinco anos!
            - E de quanto é a pensão?
            - Cem escudos.
            - Pobre humanidade! - murmurou Monte-Cristo.
            - Que diz, senhor?... - perguntou o funcionário.
            – Digo que é muito interessante.
            - O quê?
            - Tudo o que me mostra... e o senhor não percebe nada, absolutamente nada dos seus sinais?
            - Absolutamente nada.
            - Nunca tentou compreendê-los?
            - Nunca. Para quê?
            - No entanto, há sinais que lhe são destinados diretamente.
            - Sem dúvida.
            - E esses compreende-os?
            - São sempre os mesmos.
            - E que dizem?
            - “Nada de novo”, “Tem uma hora”, ou “Até amanhã“
            - Nada mais simples - observou o conde. - Mas repare, não é o seu correspondente que se está a pôr em movimento?
            - É verdade. Obrigado, senhor.
            - Que lhe diz ele? É alguma coisa que o senhor compreenda?
            - É. Pergunta-me se estou pronto.
            - E que lhe responde?
            - Respondo-lhe com um sinal que informa ao mesmo tempo o meu correspondente da direita que estou pronto e convida o meu correspondente da esquerda a preparar-se por seu turno.
            - Muito engenhoso - disse o conde.
            - Vai ver - prosseguiu o homenzinho com orgulho. - Dentro de cinco minutos começa a transmitir.
            - Tenho portanto cinco minutos - disse Monte-Cristo. - É mais do que preciso. Meu caro senhor - prosseguiu –, permite-me que lhe faça uma pergunta?
            - Decerto.
            - Gosta da jardinagem?
            - Com paixão.
            - E seria feliz se em vez de ter um bocado de terreno de vinte pés tivesse um recinto de duas jeiras?
            - Senhor, faria dele um paraíso terrestre.
            - Vive mal com os seus mil francos?
            - Bastante mal. Mas enfim, vivo...
            - Pois sim, mas tem apenas um jardim miserável. 
            - Lá isso é verdade; o jardim não é grande.
            - E mesmo assim, tal como é, está minado de ratos que lhe devoram tudo.
            - Isso é o meu flagelo.
            - Diga-me uma coisa: se por descuido virasse a cabeça quando o correspondente da direita começasse a transmitir, que aconteceria?
            - Não o veria.
            - E que aconteceria?
            - Não poderia repetir os sinais.
            - E depois?
            - Não os tendo repetido por negligência, seria multado.
            - Em quanto?
            - Cem francos.
            - A décima parte do seu vencimento. Bonito!
            - Ah! - suspirou o funcionário.
            - Já lhe aconteceu isso? - perguntou Monte-Cristo.
            - Uma vez, senhor, uma vez, em que me entretive a enxertar uma roseira cor de avelã.
            - Bem. E agora, se se atrevesse a alterar qualquer coisa ao sinal ou a transmitir outro?
            - Nesse caso, seria diferente: seria despedido e perderia a minha pensão.
            - Trezentos francos?
            - Cem escudos, sim, senhor. Portanto, como deve compreender, nunca farei semelhante coisa.
            - Nem mesmo por quinze anos dos seus vencimentos?  Vejamos, é caso para pensar, hem?
            - Por quinze mil francos?
            - Sim.
            - O senhor me assusta.
            - Ora!
            - O senhor quer me tentar?
            - Exatamente! Quinze mil francos, compreende?
            - Senhor, deixe me olhar o meu correspondente da direita!
            - Pelo contrário, não olhe para ele, olhe para isto.
            - Que é isto?
            - Como! Não conhece estes papeizinhos?
            - Notas!
            - Autênticas. Estão aqui quinze.
            - Para quem são?
            - Para si, se quiser.
            - Para mim?! - gritou o funcionário, sufocado.
            - Meu Deus, sim, para si e em propriedade plena.
            - Senhor, o meu correspondente da direita está transmitindo.
            - Deixe-o transmitir.
            - O senhor distraiu-me e vou ser multado.
            - O que lhe custará cem francos. Bem vê que tem todo o interesse em aceitar as minhas quinze notas.
            - Senhor, o meu correspondente da direita impacienta-se e repete os seus sinais. 
            - Deixe-o repetir e pegue este dinheiro.
            O conde meteu o maço na mão do funcionário.
            - Mas isto ainda não é tudo. Os quinze mil francos não lhe dariam para viver.
            - Continuaria a ter o meu lugar.
            - Não, perdê-lo-á, porque vai transmitir um sinal diferente do seu correspondente.
            - Oh, senhor, que pretende de mim?
            - Uma brincadeira de criança.
            - Senhor, a não ser que seja obrigado a isso...
            - Espero obrigá-lo, efetivamente.
            E Monte-Cristo tirou da algibeira outro maço de notas.
            - Aqui estão mais dez mil francos - disse. - Com os quinze mil que tem na algibeira, são vinte e cinco mil. Com cinco mil francos comprará uma bonita casinha e duas jeiras de terra; com os restantes vinte mil, arranjará mil francos de rendimento.
            - Um jardim de duas jeiras?
            - E mil francos de rendimento.
            - Meu Deus! Meu Deus!
            - Tome, vamos!
            E Monte-Cristo meteu à força os dez mil francos na mão do funcionário.
            - Que devo lazer?
            - Nada muito difícil.
            - Mas mesmo assim...
            - Repetir estes sinais.
            Monte-Cristo tirou da algibeira um papel com três sinais traçados e números a indicar a ordem por que deviam ser transmitidos.
            - Não levará muito tempo, como vê.
            - Pois não, mas...
            - Se quer ter pêssegos-carecas tem de merece-los, assim como o resto.
            O homenzinho decidiu-se. Rubro de excitação e suando por todos os poros, executou um após outro os três sinais dados pelo conde, apesar das horríveis deslocações do correspondente da direita, que, não compreendendo nada daquela troca de sinais, começava a crer que o homem dos pêssegos enlouquecera.
            Quanto ao correspondente da esquerda, repetiu conscienciosamente os mesmos sinais, que foram recebidos definitivamente no Ministério do Interior.
            - Pronto, agora está rico - disse Monte-Cristo.
            - Pois sim - respondeu o funcionário -, mas porque preço!
            - Escute, meu amigo - perguntou Monte-Cristo –, não quero que tenha remorsos. Acredite, porque lhe juro, que não fez mal a ninguém e serviu os planos de Deus.
            O funcionário olhava as notas, apalpava-as, contava-as. Tão depressa estava pálido como estava corado. Por fim, precipitou-se para o seu quarto, a fim de beber um copo de água. Mas não teve tempo de chegar à bilha; desmaiou no meio dos feijões secos.
            Cinco minutos depois da notícia telegráfica chegar ao ministério, Debray mandou atrelar os cavalos ao seu cupé e correu a casa de Danglars. 
            - O seu marido tem cupons do empréstimo espanhol? - perguntou à baronesa.
            - Creio que sim! Cerca de seis milhões.
            - Que os venda por qualquer preço.
            - Porquê?
            - Porque D. Carlos fugiu de Burges e regressou a Espanha.
            - Como sabe disso?
            - Com a breca, como sei as notícias! - perguntou Debray, encolhendo os ombros.
            A baronesa não esperou que ele repetisse a recomendação: correu ao encontro do marido, o qual correu por sua vez a casa do seu corretor, a quem ordenou que vendesse os cupons por qualquer preço.
            Quando se soube que o Sr. Danglars vendia, os fundos espanhóis baixaram imediatamente. Danglars perdeu quinhentos mil francos, mas desembaraçou-se de todos os seus cupons. À tarde leu-se no messager:
            Despacho telegráfico. - O rei D. Carlos escapou à vigilância que se exercia sobre ele em Burges e regressou a Espanha pela fronteira da Catalunha. Barcelona sublevou-se a seu favor.
            Durante toda a noite só se falou da previsão de Danglars, que vendera os seus cupons, e da sorte do especulador, que perdia apenas quinhentos mil francos com semelhante golpe. Aqueles que tinham conservado os seus cupons ou comprado os de Danglars consideraram-se arruinados e passaram uma má noite.
            No dia seguinte leu-se no Moniteur:
            Foi sem qualquer fundamento que o Messager anunciou ontem a fuga de D. Carlos e a revolta de Barcelona. O rei D. Carlos não saiu de Burges e a Península goza da mais profunda tranquilidade.
            Um sinal telegráfico mal interpretado, devido ao nevoeiro, deu origem a este erro.
            Os fundos subiram para o dobro do valor a que tinham descido, o que acarretou a Danglars, entre prejuízos e lucros perdidos, um milhão a menos.
            - Bom - disse Monte-Cristo a Morrel, que se encontrava em sua casa no momento em que foi anunciada a singular reviravolta de bolsa de que Danglars fora vítima –, acabo de fazer por vinte e cinco mil francos uma descoberta por que pagaria cem mil.
            - Que descobriu? - perguntou Maximilien.
            - Descobri o meio de livrar um jardineiro dos ratos-dos-pomares que lhe comiam os pêssegos. 


Capítulo LXII

Os fantasmas


            À primeira vista, e examinada de fora, a casa de Auteuil não tinha nada de esplêndida, nada do que se poderia esperar de uma residência destinada ao magnífico conde de Monte-Cristo. Mas tal simplicidade devia-se à vontade do proprietário, que ordenara taxativamente que nada fosse mudado no exterior. Mas
o exterior era o exterior e o interior era o interior, como era fácil de demonstrar. Com efeito, mal se abria a porta, o espetáculo mudava.
            O Sr. Bertuccio excedera-se a si mesmo no bom gosto das decorações e na rapidez da execução. Assim como outrora o duque de Antin mandara abater numa noite uma alameda de árvores que incomodava a vista de Luís XIV também em três dias o Sr. Bertuccio mandara encher de plantas um pátio inteiramente nu, e belos álamos e sicômoros, trazidos com os seus enormes blocos de raízes, sombreavam a fachada principal da casa, diante da qual em vez de pedras semiocultas pelas ervas, se estendia um tapete de relva cujas placas tinham sido colocadas naquela mesma manhã, tapete vasto ainda perlado da água com que fora regado.
            Quanto ao resto, as ordens provinham do conde. Ele próprio entregara a Bertuccio uma planta onde estavam indicados o número e a localização das árvores que deviam ser plantadas, bem como a forma e o espaço do relvado que devia suceder à calçada.
            Vista assim, a casa tornara-se irreconhecível, e o próprio Bertuccio protestava que não a reconhecia, assim metida na sua moldura de vegetação.
            O intendente não desgostaria, enquanto ali estava, de fazer algumas transformações no jardim, mas o conde proibira-o taxativamente de tocar fosse no que fosse. Bertuccio vingou-se enchendo de flores as antecâmaras, as escadas e as chaminés.
            O que denotava a extrema habilidade do intendente e a profunda ciência do amo, um para servir e o outro para se fazer servir, era o fato de aquela casa, deserta havia vinte anos, tão sombria e tão triste ainda na véspera, toda impregnada do cheiro a mofo que se poderia chamar odor do tempo, ter adquirido num dia, com o aspecto da vida, os aromas preferidos do proprietário e até  o seu grau de luminosidade favorito.
Porque o conde, quando chegasse, teria ali, ao alcance da mão, os seus livros e as suas armas, diante dos olhos os seus quadros preferidos e nas antecâmaras o cão de cujas carícias gostava e os pássaros cujo canto apreciava. Porque toda aquela casa, acordada do seu longo sono como o palácio da Bela do Bosque Adormecido, vivia, cantava, expandia-se, semelhante a essas casas que amamos há muito tempo e nas quais, quando por infelicidade as deixamos, fica involuntariamente parte da nossa alma.
            Os criados iam e vinham contentes naquele belo pátio: uns, já senhores das cozinhas, cirandavam, como se sempre tivessem morado naquela casa, pelas escadas restauradas na véspera; outros enchiam as cocheiras, onde as carruagens, numeradas e arrumadas, pareciam instaladas havia cinquenta anos, e outros
ainda percorriam as cavalariças, onde os cavalos, à manjedoura, respondiam  relinchando aos moços de estrebaria que lhes talavam com infinitamente mais respeito do que muitos criados falam aos amos.
            A biblioteca estava disposta em dois corpos, de ambos os lados da parede, e continha cerca de dois mil volumes. Uma seção inteira estava destinada aos romances modernos e o que saíra na véspera já estava arrumado no seu lugar, pavoneando-se na sua encadernação vermelha e ouro.
            Do outro lado da casa, no mesmo plano da biblioteca, ficava a estufa, guarnecida de plantas raras que vegetavam em grandes jarrões japoneses, e no meio da estufa, maravilha ao mesmo tempo da vista e do olfato, um bilhar que se diria abandonado havia uma hora no máximo pelos jogadores, que tinham deixado as bolas imobilizarem-se no tapete.
            Apenas um quarto fora respeitado pelo magnífico Bertuccio. Diante desse quarto, situado no canto esquerdo do primeiro andar e ao qual se podia subir pela escada secreta, os criados passavam com curiosidade e Bertuccio com terror.
            Às cinco horas exatas, acompanhado de Ali, o conde chegou diante da casa de Auteuil. Bertuccio esperava a sua chegada com uma impaciência laivada de inquietação. Esperava alguns cumprimentos, mas também temia uma franzidela de sobrolho.
            Monte-Cristo apeou no pátio, percorreu toda a casa e deu a volta ao jardim, silencioso e sem exteriorizar o menor sinal de aprovação ou descontentamento. Apenas quando entrou no seu quarto, situado do lado oposto ao quarto fechado, estendeu a mão para a gaveta de um movelzinho de pau-rosa, que já lhe chamara a atenção na sua primeira visita.
            - Isto só pode servir para guardar luvas - disse.
            - Com efeito, Excelência - respondeu Bertuccio, encantado. - Se a abrir, encontrará luvas.
            Nos outros móveis o conde encontrou também o que esperava encontrar: garrafas, charutos, jóias.
            - Muito bem! - disse novamente.
            E o Sr. Bertuccio retirou-se encantado, tão grande era o poder e real a influência daquele homem sobre tudo o que o rodeava. Às seis horas exatas ouviu-se tropear um cavalo diante da porta de entrada. Era o nosso capitão de sipaios, que chegava montado em Médeah. Monte-Cristo esperava-o na escadaria, com um sorriso nos lábios.
            - Tenho certeza de que sou o primeiro a chegar! - gritou-lhe Morrel. - Vim propositadamente mais cedo para o ter um instante só para mim, antes de todas as pessoas. Julie e Emmanuel mandam-lhe milhões de cumprimentos. Ah! Sabe que tudo isto aqui é magnífico? Diga-me uma coisa, conde: os seus criados cuidarão  do meu cavalo como deve ser?
            - Esteja tranquilo, meu caro Maximilien, eles sabem o que fazem.
            - É que ele precisa de ser esfregado com palha. Se visse o andamento que trouxe! Uma verdadeira tromba!
            - Acredito. Nem outra coisa era de esperar de um cavalo de cinco mil francos! - perguntou Monte-Cristo, no tom em que um pai falaria a um filho.
            - Lamenta-os? - perguntou Morrel, com um sorriso franco.
            - Eu? Deus me defenda! - respondeu o conde. - Não. Só lamentaria que o cavalo não fosse bom. 
            - É tão bom, meu caro conde, que o Sr. de Château-Renaud, o homem mais conhecedor de França, e o Sr. Debray, que monta os árabes do ministério, correm atrás de mim neste momento, um pouco distanciados, como vê, e ainda são seguidos pelos cavalos da baronesa Danglars, que vêm num trote que lhes permite percorrer com facilidade as suas seis léguas por hora.
            - Seguem-no, então? - perguntou Monte-Cristo.
            - Olhe, aí os tem!
            Com efeito, naquele preciso momento um cupe com a parelha toda fumegante e dois cavalos de sela já sem fôlego chegavam diante do portão da casa, que se abriu diante deles. O cupe descreveu imediatamente o seu círculo e foi parar diante da escadaria, seguido dos dois cavaleiros.
            Num instante, Debray desmontou e chegou à portinhola. Ofereceu a mão à baronesa, que ao descer lhe fez um sinal imperceptível para todos, exceto para Monte-Cristo. Mas o conde não perdia nada, e naquele gesto viu brilhar um bilhetinho branco, tão imperceptível como o sinal, e que passou, com uma facilidade que indicava o hábito de semelhante manobra, da mão da Sra Danglars para a do secretário do ministro.
            Atrás da mulher desceu o banqueiro, pálido como se saísse do sepulcro em vez de sair do seu cupe.
            A Sra Danglars lançou à sua volta um olhar rápido e investigador, que Monte-Cristo foi o único a compreender, e no qual abarcou o pátio, o peristilo e a fachada da casa. Depois, reprimindo uma leve emoção, que sem dúvida se lhe refletiria no rosto se fosse permitido ao seu rosto empalidecer, subiu a escadaria ao mesmo tempo que dizia a Morrel:
            - Se o senhor fosse um dos meus amigos, lhe perguntaria se o seu cavalo está à venda.
            Morrel esboçou um sorriso, que mais parecia uma careta, e virou-se para Monte-Cristo, como se lhe suplicasse que o tirasse do embaraço em que se encontrava.
            O conde compreendeu-o.
            - Minha senhora - respondeu –, porque não me faz antes a mim essa pergunta?
            - Porque consigo, senhor - declarou a baronesa –, não temos o direito de desejar seja o que for, pois estamos demasiado certas de o obter. Por isso me dirigi ao Sr. Morrel.
            - Infelizmente - prosseguiu o conde –, sou testemunha de que o Sr. Morrel não pode ceder o seu cavalo, pois deu a sua palavra de honra de que o conservaria.
            - Como assim?
            - Apostou que domaria Médeah no espaço de seis meses. Compreende agora, baronesa, que se se desfizesse dele antes do prazo fixado na aposta não só o perderia como ainda diriam que tinha medo? Ora um capitão de sipaios não pode, mesmo para satisfazer um capricho de uma mulher bonita, na minha opnião
uma das coisas mais sagradas deste mundo, deixar que se espalhe semelhante boato.
            - Como vê, minha senhora... - disse Morrel, dirigindo a Monte-Cristo um sorriso de reconhecimento. 
            - De resto, parece-me - interveio Danglars num tom desabrido mal disfarçado por um sorriso forçado - que a senhora já tem, cavalos de sobra.
            Não estava nos hábitos da Sra Danglars deixar passar semelhantes ataques sem responder, e no entanto, com grande admiração dos mais novos, fingiu não ouvir e não respondeu nada.
            Monte-Cristo sorriu do seu silêncio, que denotava uma humildade desacostumada, e mostrou à baronesa dois enormes vasos de porcelana da China sobre os quais serpenteavam vegetações marinhas de um tamanho e de um trabalho tais que só à natureza era dado possuir tanta riqueza, tanta seiva e tanta
espiritualidade. A baronesa estava maravilhada.
            - Pois sim, mas em outras mãos lhes plantariam lá dentro um castanheiro das Tulherias! - observou. - Como terá  sido possível cozer alguma vez semelhantes enormidades?
            - Minha senhora, não devemos fazer tal pergunta a nós próprios, fabricantes de estatuetas e de vidro despolido com desenhos transparentes; neste caso, trata-se de uma obra de outros tempos, de uma espécie de criação de gênios da terra e do mar.
            - Explique-se melhor. De que época são estes vasos?
            - Não sei. Apenas ouvi dizer que o imperador da China mandou fazer um forno de propósito; que nesse forno, um após outro, se cozeram doze vasos idênticos a estes; que dois se quebraram devido ao calor excessivo do lume, e que os restantes dez foram descidos a trezentas braças no fundo do mar. Mar que,
sabendo o que se pretendia dele, lançou sobre os vasos as suas lianas, torceu os seus corais e incrustou as suas conchas. Tudo isto foi cimentado por uma permanência de duzentos anos naquelas profundezas inauditas, porque uma revolução derrubou o imperador que ordenara a experiência e só deixou a ata de
que constava o cozimento dos vasos e a sua descida ao fundo do mar. Passados duzentos anos encontrou-se a ata e pensou-se recuperar os vasos. Mergulhadores munidos de máquinas construídas propositadamente partiram à descoberta na baía em que tinham sido lançados; mas dos dez só se encontraram três: os outros tinham sido dispersos e quebrados pelas vagas. Quero muito a estes vasos no fundo dos quais imagino às vezes que monstros informes, assustadores, misteriosos e idênticos àqueles que só os mergulhadores vêem, fixaram com espanto o seu olhar mortiço e frio, e nos quais dormiram cardumes de peixes, que neles se refugiaram para fugir à perseguição dos seus inimigos.
            Entretanto, Danglars, pouco apreciador de curiosidades, arrancava maquinalmente, uma a uma, as flores de uma magnífica laranjeira. E quando acabou com a laranjeira dirigiu-se para o cacto, mas este, de temperamento menos fácil do que a laranjeira, picou-o afrontosamente. Então, estremeceu e esfregou os olhos como se saísse de um sonho.
            - Senhor - disse-lhe Monte-Cristo sorrindo –, sei que é apreciador de quadros e que tem alguns magníficos; por isso, não lhe recomendo os meus, embora tenha aqui dois Hobbemas, um Paul Potter, um Mieris, dois gerards Dow, um Rafael, um Van Dyck, um Zurbaran e dois ou três Murillos dignos de lhe serem
apresentados.
            - Aqui está um Hobbema - disse Debray. - Reconheço-o.
            - Sim, é verdade! 
            - Ofereceram-no ao museu.
            - Que não tem nenhum, creio? - arriscou Monte-Cristo.
            - Não, e mesmo assim não o quis comprar.
            - Porquê? - perguntou Château-Renaud.
            - Você tem graça! Porque o Governo não é suficientemente rico para isso.
            - Perdão! - desculpou-se Château-Renaud. - Apesar de ouvir dizer isso todos os dias, há oito anos a esta parte, ainda não consegui me habituar.
            - Acabará por se habituar - disse Debray.
            - Não me parece - respondeu Château-Renaud.
            - O Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti! O Sr. Visconde Andrea Cavalcanti! - anunciou Baplistin.
            De gravata de cetim preto acabada de sair das mãos do fabricante, barba acabada de fazer, bigode grisalho, olhar atrevido e uniforme de major adornado com três placas e cinco cruzes, em suma, numa indumentária impecável de velho soldado, assim apareceu o major Bartolomeo Cavalcanti, o terno pai que
conhecemos.
            Junto dele, de casaca novinha em folha, caminhava de sorriso nos lábios o visconde Andrea Cavalcanti, o filho respeitoso que também já conhecemos. Os três jovens conversavam juntos. Olharam para o pai e para o filho, mas muito naturalmente os seus olhos detiveram-se mais tempo no último, que examinaram com minúcia.
            - Cavalcanti... - disse Debray.
            - Um belo nome - acrescentou Morrel. - Que figura!
            - Sim - disse Château-Renaud –, é verdade, os italianos denominam-se bem, mas vestem-se mal.
            - Você é difícil de contentar, Château-Renaud - contrapós Debray.  – Aquela casaca é de um excelente alfaiate e novinha em folha.
            - É precisamente isso que lhe critico aquele cavalheiro tem ar de quem se veste assim hoje pela primeira vez.
            - Quem são aqueles senhores? - perguntou Danglars ao conde de Monte-Cristo.
            - Bem ouviu: são os Cavalcanti.
            - Fico esclarecido quanto ao nome, mas mais nada.
            - É verdade, o senhor não está ao corrente da nossa nobreza de Itália. Quem diz Cavalcanti diz estirpe de príncipes.
            - Boa fortuna? - perguntou o banqueiro.
            - Fabulosa.
            - Que fazem?
            - Procuram gastá-la sem o conseguirem. Aliás, têm créditos sobre o senhor, segundo me disseram quando me visitaram anteontem. Convidei-os até  em sua intenção. Hei-de apresentar-los.
            - Mas parece-me que falam muito corretamente o francês - observou Danglars.
            - O filho foi educado num colégio do Meio-Dia, em Marselha ou nos arredores, creio. Verá pelo seu entusiasmo.
            - A propósito de quê? - perguntou a baronesa.
            - Das francesas, minha senhora. está absolutamente decidido a casar em Paris. 
            - Que rica idéia! - exclamou Danglars, com desdém, encolhendo os ombros.
            A Sra Danglars fitou o marido com uma expressão que em qualquer outro momento pressagiaria tempestade, mas pela segunda vez calou-se.
            - O barão parece hoje muito sombrio - observou Monte-Cristo à Sra Danglars. - Por acaso terão querido fazê-lo ministro?
            - Ainda não, que eu saiba. Creio antes que jogou na Bolsa, que perdeu e que não sabe como se justificar.
            - O Sr. e a Sra de Villefort! - gritou Baptistin.
            As duas pessoas anunciadas entraram. O Sr. de Villefort, apesar do seu domínio sobre si mesmo, estava visivelmente impressionado. Quando lhe apertou a mão, Monte-Cristo sentiu-a tremer.
            “Decididamente, não há como as mulheres para saberem dissimular”, disse Monte-Cristo para consigo, vendo a Sra Danglars sorrir ao procurador régio e beijar a mulher deste.
            Depois dos primeiros cumprimentos, o conde viu Bertuccio, que, ocupado até  ali do lado da copa, se esgueirava para uma salinha contígua àquela onde se encontravam. Foi ter com ele.
            - Que deseja, Sr. Bertuccio? - perguntou-lhe.
            - V. Exª  não me disse quantos convidados eram.
            - Ah, é verdade!
            - Quantos talheres?
            - Conte-os o senhor mesmo.
            - Todos já chegaram, Excelência?
            - Já.
            Bertuccio olhou através da porta entreaberta. Monte-Cristo não o perdia de vista.
            - Oh, meu Deus! - exclamou o intendente.
            - Que é? - perguntou o conde.
            - Aquela mulher!... Aquela mulher!...
            - Qual?
            - Aquela de vestido branco e cheia de diamantes! A loura!...
            - A Sra Danglars?
            - Não sei como se chama, mas é ela, senhor, é ela!
            - Ela, quem?
            - A mulher do jardim! A que estava grávida! A que passeava enquanto esperava!
            Bertuccio ficou de boca aberta, pálido e com os cabelos em pé.
            - Enquanto esperava quem?
            Sem responder, Bertuccio indicou Villefort com o dedo, mais ou menos da mesma maneira que Macbeth indicou Banco.
            - Oh!... Oh!... - murmurou por fim - vê?
            - O quê? Quem?
            - Ele!
            - Ele?... O Sr. Procurador régio? O Sr. de Villefort? Claro que vejo.
            - Mas então... não o matei? 
            - Tem cada uma! Começo a convencer-me que enlouqueceu, meu caro Sr. Bertuccio - perguntou o conde.
            - Não morreu?..
            - Não, claro que não morreu, como vê! Em vez de o ferir entre a sexta e a sétima costela esquerda, como fazem os seus compatriotas, o senhor feriu-o mais acima ou mais abaixo, e aquela gente da justiça tem a alma muito agarrada ao corpo, não sabia? A não ser que nada do que me contou fosse verdade, não passasse de um sonho da sua imaginação, de uma alucinação do seu espírito. Provavelmente adormeceu depois de digerir mal a sua vingança; ela pesou-lhe no estômago, o senhor teve um pesadelo e pronto! Vamos, recupere a calma e conte: o Sr. e a Sra de Villefort, dois; o Sr. e a Sra Danglars, quatro; o Sr. de Château-Renaud, o Sr. Debray e o Sr. Morrel, sete; o Sr. Major Bartolomeo Cavalcanti, oito.
            - Oito! - repeliu Bertuccio.
            - Espere! Espere! está com muita pressa de ir embora, que diabo! Esquece-se de um dos meus convidados.  Desvie-se um bocadinho pala a esquerda... olhe... o Sr. Andrea Cavalcanti, aquele jovem de casaca preta que está a admirar a Virgem de Murillo e que se vira agora.
            Desta vez, Bertuccio começou um grito, que o olhar de Monte-Cristo lhe extinguiu nos lábios.
            - Benedetto!.. - murmurou baixinho. - Que fatalidade!
            - Estão a dar seis e meia, Sr. Bertuccio - disse severamente o conde. - está na hora a que dei ordem para se ir para a mesa; bem sabe que não gosto de esperar.
            E Monte-Cristo voltou à sala, onde o esperavam os seus convidados, enquanto Bertuccio regressava à sala de jantar apoiando-se nas paredes. Cinco minutos mais tarde, as duas portas da sala abriram-se,
Bertuccio apareceu, e fazendo, como Vatel em Chantilly, um derradeiro e heróico esforço, anunciou:
            - Sr. Conde está servido.
            Monte-Cristo ofereceu o braço à Sra de Villefort.
            - Sr. de Villefort - disse –, seja o par da Sra Baronesa Danglars, peço-lhe.
            Villefort obedeceu e entraram na sala de jantar.

Capítulo LXIII

O jantar

            Era evidente que ao entrarem na sala de jantar o mesmo sentimento dominava todos os convivas. Perguntavam a si próprios que estranha influência levara todos àquela casa, e no entanto, por mais surpreendidos e até  inquietos que alguns estivessem por ali se encontrar, não desejariam de modo algum
lá não estar.
            Contudo, relações de fresca data, bem como a posição excêntrica e isolada e a fortuna desconhecida e quase fabulosa do conde, impunham aos homens o dever de serem circunspectos e às mulheres a regra de não entrarem numa casa onde não havia mulheres para as receber. Mas mesmo assim, homens e mulheres tinham passado por cima, uns da circunspecção e as outras das conveniências. A curiosidade, espicaçando-os com o seu aguilhão irresistível, prevalecera sobre tudo.
            Até os Cavalcanti, pai e filho, apesar do constrangimento de um e da desenvoltura do outro, pareciam preocupados por se encontrarem reunidos, em casa de um homem cujo objetivo não compreendiam, com outros homens que viam pela primeira vez.
            A Sra Danglars fizera um movimento ao ver, a convite de Monte-Cristo, o Sr. de Villefort aproximar-se dela para lhe oferecer o braço, e o Sr. de Villefort, sentira a vista turvar-lhe detrás dos óculos de ouro ao sentir o braço da baronesa pousar no seu.
            Nenhuma destas duas reações escapara ao conde. Aliás, o simples contato estabelecido entre os indivíduos possui já para o observador da cena o maior interesse. O Sr. de Villefort tinha à sua direita a Sra Danglars e à sua esquerda Morrel. O conde estava sentado entre a Sra de Villefort e Danglars.
            Os outros lugares estavam ocupados por Debray, sentado entre Cavalcanti pai e Cavalcanti filho, e por Château-Renaud. sentado entre a Sra de Villefort e Morrel.
            A refeição foi magnífica. Monte-Cristo tomara a peito alterar completamente as normas parisienses e dar ainda mais à curiosidade do que ao apetite dos seus convivas o alimento que ela desejava. Ofereceu-lhes um festim oriental, à maneira como poderiam sê-lo os festins das fadas orientais.
            Todos os frutos que as quatro parles do mundo podem lançar, intactos e saborosos, na cornucópia da abundância da Europa se empilhavam em pirâmides em vasos da China e taças do Japão. As aves raras, com a parte brilhante da sua plumagem, os peixes monstruosos deitados em chapas de prata, todos os vinhos do Arquipélago, da Ásia Menor e do Cabo, encerrados em frascos de formas extravagantes que pareciam aumentar-lhes ainda o sabor, desfilaram como numa dessas revistas que Apício passava com os seus convivas diante dos Parisienses, que compreendiam perfeitamente que se pudessem gastar mil luíses num jantar de dez pessoas desde que, como Cleépatra, se comessem pérolas ou, como Lourenço de Médicis, se bebesse ouro derretido. Monte-Cristo viu a surpresa geral e desatou a rir e a ridicularizar-se em voz alta.
            - Meus senhores - disse –, decerto concordam com o que lhes vou dizer. Não é verdade que, quando se atinge certo grau de fortuna, não há nada mais necessário do que o supérfluo, da mesma maneira que, como estas senhoras admitirão, atingindo certo grau de exaltação, não há nada mais positivo do que o
ideal? Ora, prosseguindo com o raciocínio, que é o maravilhoso? O que não compreendemos. Que é um bem realmente desejável? Um bem que não podemos ter. Por isso, ver coisas que não posso compreender e adquirir coisas impossíveis de possuir, tal é o desejo de toda a minha vida. E satisfaço-o com dois meios: o dinheiro e a vontade. Ponho em satisfazer um capricho, por exemplo, a mesma perseverança que o senhor, meu caro Danglars, emprega para criar uma linha de caminho-de-ferro; o senhor, meu caro Villefort, para que um homem seja condenado a morte; o senhor, meu caro Debray, para pacificar um reino; o senhor, meu caro Château-Renaud, para agradar a uma mulher, e o senhor, meu caro Morrel, para domar um cavalo que ninguém consegue montar. Assim, por exemplo, vejam estes dois peixes, nascidos um a cinquenta léguas de Sampetersburgo e o outro a cinco léguas de Nápoles: não é interessante reuni-los na mesma mesa?
            - Como se chamam esses dois peixes? - perguntou Danglars.
            - Aqui está o Sr. de Château-Renaud, que viveu na Rússia, que lhes dirá o nome de um - respondeu Monte-Cristo. - E aqui está o Sr. Major Cavalcanti, que é italiano, que lhes dirá o nome do outro.
            - Este - disse Château-Renaud – ‚se me não engano, um esturjão.
            - Exato.
            - E aquele - disse Cavalcanti - ‚, se não estou em erro, uma lampréia.
            - Isso mesmo. Agora, Sr. Danglars, pergunte àqueles dois senhores onde se pescam estes peixes.
            - Os esturjões - respondeu Château-Renaud - pescam-se exclusivamente no Volga.
            - E águas que dêem lampréias deste tamanho - disse Cavalcanti - só conheço as do lago Fusaro.
            - Exato, um veio do Volga e o outro do lago Fusaro.
            - Impossível! - exclamaram em uníssono todos os convivas.
            - Ora é isso precisamente que me diverte - perguntou Monte-Cristo. - Sou como Nero: cupitor impossibilium. E também o que os diverte neste momento. Eis, enfim, o que faz com que esta carne, que na realidade talvez não valha mais do que a da perca e a do salmão, lhes vá parecer deliciosa daqui a pouco, só porque no espírito de todos era impossível consegui-la. E no entanto ela aqui está...
            - Mas como foi possível transportar esses dois peixes para Paris?
            - Oh, meu Deus, nada mais simples! Os dois peixes foram transportados cada um numa grande barrica, uma revestida de caniços e ervas do rio e a outra de juncos e plantas do lago, ambas embarcadas num furgão feito de propósito. Viveram assim o esturjão doze dias e a lampréia oito. E ambos viviam
perfeitamente quando o meu cozinheiro tomou conta deles para fazer morrer um em leite e o outro em vinho. Não acredita, Sr. Danglars?
            - Duvido, pelo menos - respondeu Danglars, sorrindo forçadamente.
            - Baptistin! - chamou Monte-Cristo. - Mande trazer o outro esturjão e a outra lampréia, aqueles que vieram nas outras barricas e que ainda estão vivos.
            Danglars arregalou os olhos de espanto; os restantes convivas bateram palmas.
            Quatro criados trouxeram duas barricas guarnecidas de plantas marinhas, em cada uma das quais palpitava um peixe idêntico aos que estavam na mesa.
            - Mas porquê dois de cada espécie? - perguntou Danglars.
            - Porque um podia morrer - respondeu simplesmente Monte-Cristo.
            - O senhor é realmente um homem prodigioso - reconheceu Danglars - e os filósofos escusam de dizer o contrário, pois é soberbo ser rico.
            - E sobretudo ter idéias - acrescentou a Sra Danglars.
            -Oh, não me atribua a honra desta, minha senhora! É uma honra que pertence aos Romanos. Plínio conta que se mandavam de ôstia para Roma, por meio de mudas de escravos, que os transportavam à cabeça, peixes da espécie do chamado mulus, e que, segundo a descrição que dele existe, é provavelmente a dourada. Era também um luxo conservá-lo vivo e um espetáculo deveras interessante vê-lo morrer, pois ao
morrer mudava três ou quatro vezes de cor e, como um arco-íris que se evapora, passava por todos os cambiantes do prisma, depois do que o mandavam para as cozinhas. A sua agonia fazia parte do seu mérito. Se não o vissem vivo, não o queriam morto.
            - É verdade - confirmou Debray. - Mas também de ôstia a Roma são apenas sete ou oito léguas.
            - De acordo - concordou Monte-Cristo. - Mas onde estaria o mérito de vivermos mil e oitocentos anos depois de Lúculo se não fizéssemos melhor do que ele?
            Os dois Cavalcanti arregalavam muito os olhos, mas tinham o bom senso de não dizer nada.
            - Tudo isso é muito amável - declarou Château-Renaud. - No entanto, o que mais admiro, confesso, é a admirável prontidão com que o senhor é servido. Não é verdade, Sr. Conde, que só comprou esta casa há cinco ou seis dias?
            - Sim, quando muito - respondeu Monte-Cristo.
            - Pois bem, estou certo de que em tão pouco tempo sofreu uma transformação completa. Se me não engano, ela tinha outra entrada como esta e o pátio estava calcetado e vazio, enquanto que hoje tem um magnífico relvado orlado de árvores que parecem centenárias.
            - Que quer, aprecio a verdura e a sombra - respondeu Monte-Cristo.
            - Com efeito - interveio a Sra de Villefort –, antes se entrava por uma porta que dava para a estrada, e no dia da minha milagrosa salvação foi pela estrada, recordo-me, que o senhor me trouxe para casa.
            - É verdade, minha senhora - confirmou Monte-Cristo. - Mas depois preferi uma entrada que me permite ver o Bosque de Bolonha através do portão.
            - Em quatro dias, é um prodígio! - exclamou Morrel.
            - De fato - disse Château-Renaud –, transformar uma casa velha numa casa nova é coisa miraculosa. Porque ela era muito velha e até muito triste. Recordo-me de ter sido encarregado pela minha mãe de a visitar quando o Sr. de Saint-Méran a pôs à venda, há dois ou três anos.
            - O Sr. de Saint-Méran? - admirou-se a Sra de Villefort. - Mas esta casa pertencia ao Sr. de Saint-Méran antes de o senhor a comprar?
            - Parece que sim - respondeu Monte-Cristo.
            - Parece?... Não sabe a quem a comprou?
            - Palavra que não. É o meu intendente que se ocupa de todos esses pormenores.
            - É certo que havia dois anos, pelo menos, que não era habitada - prosseguiu Château-Renaud -, e causava uma grande tristeza vê-la com as persianas fechadas, as portas trancadas‚ o pátio cheio de ervas. Na verdade, se não tivesse pertencido ao sogro de um procurador régio poderia ser tomada por uma dessas casas malditas onde se cometeu qualquer crime.
            Villefort, que até  ali não tocara nos três ou quatro copos de vinhos extraordinários colocados diante de si, pegou num ao acaso e bebeu-o de um só trago. Monte-Cristo deixou passar um instante. Depois, no meio
do silêncio que se seguiu às palavras de Château-Renaud, disse: 
            - É estranho, Sr. Barão, mas tive o mesmo pensamento da primeira vez que entrei. A casa pareceu-me tão lúgubre que nunca a teria comprado se o meu intendente a não tivesse adquirido por mim. Provavelmente, o maroto recebeu algumas “luvas" do tabelião...
            - É provável - balbuciou Villefort, tentando sorrir. - Mas acredite que não meti prego nem estopa nesse suborno. O Sr. de Saint-Méran quis que esta casa, que faz parte do dote da neta, fosse vendida porque, se permanecesse mais três ou quatro anos desabitada, cairia em ruínas.
            Foi a vez de Morrel empalidecer.
            - Havia sobretudo um quarto - continuou Monte-Cristo -, oh, meu Deus, um quarto aparentemente muito simples, um quarto como todos os quartos forrado de damasco vermelho, que me pareceu, não sei porquê, deveras dramático!
            - Dramático?... Dramático porquê? - perguntou Debray.
            - Não costumam ter a percepção das coisas instintivas? - perguntou Monte-Cristo. - Não é verdade que há lugares onde parece que se respira naturalmente a tristeza? Porquê? Ninguém sabe nada a tal respeito. Mas isso acontece, quer por um encadeamento de recordações, quer por um capricho do pensamento que nos conduz a outros tempos, a outros lugares sem qualquer relação com os tempos e os lugares onde nos
encontramos. Tanto assim que aquele quarto me recordava admiravelmente o quarto da marquesa de Ganges ou o de Desdemona. Olhem, uma vez que já acabamos de jantar, quero que o vejam. Depois desceremos para tomar o café no jardim. Depois do jantar, o espetáculo.
            Monte-Cristo fez um sinal como se consultasse os seus convidados. A Sra de Villefort levantou-se, Monte-Cristo imitou-a e todos lhe seguiram o exemplo. Villefort e a Sra Danglars ficaram um instante como que pregados no seu lugar. Interrogavam-se com a vista, frios, mudos e aterrorizados.
            - Ouviu? - perguntou a Sra Danglars.
            - Temos de ir - respondeu Villefort, levantando-se e oferecendo-lhe o braço.
            Todos já tinham se espalhado pela casa, impelidos pela curiosidade, pois pensavam que a visita não se limitaria ao tal quarto e que ao mesmo tempo percorreriam o resto daquele pardieiro que Monte-Cristo transformara num palácio. Todos correram portanto para as portas abertas. Monte-Cristo esperou pelos dois retardatários. Depois, quando eles também saíram, fechou o cortejo, com um sorriso que, se o pudessem
compreender, apavoraria muito mais os convivas do que o quarto onde iam entrar.
            Começaram, com efeito, por percorrer os aposentos, os quartos mobilados à oriental, com divãs e almofadas a servirem de cama e cachimbos e armas a fazerem as vezes de móveis; as salas com as paredes cobertas dos mais belos quadros dos velhos mestres; os boudoirs revestidos de tecidos da China, de cores caprichosas e desenhos extravagantes, maravilhosos; por fim, chegaram ao famoso quarto.
            Não tinha nada de especial, exceto a circunstância de, apesar de o dia estar morrendo, se não encontrar iluminado e se apresentar em toda a sua vetustez, quando todos os outros quartos haviam sido arranjados de novo.
            Estas duas causas bastavam, efetivamente, para lhe dar um aspecto lúgubre.
            - Oh, é horrível, com efeito! - exclamou a Sra de Villefort.
            A Sra Danglars procurou balbuciar algumas palavras, que ninguém ouviu. Cruzaram-se várias observações cujo resultado foi concluir-se que na verdade o quarto de damasco vermelho tinha um aspecto
sinistro.
            - Não é verdade? - perguntou Monte-Cristo. - Vejam como a cama está estranhamente colocada e como é sombrio e sangrento o damasco das paredes! E aqueles dois retratos a pastel, que a umidade desbotou, não parecem dizer, com os seus lábios lívidos e os seus olhos esgazeados: “Eu vi!"
            Villefort perdeu por completo a cor e a Sra Danglars caiu num canapé colocado perto da lareira.
            - Oh! - exclamou a Sra de Villefort, sorrindo. - Tem a coragem de se sentar nesse canapé, onde talvez o crime foi cometido?...
            A Sra Danglars levantou-se vivamente.
            - Mas isto não é tudo... - disse Monte-Cristo.
            - Que mais temos? - perguntou Debray, a quem a comoção da Sra Danglars não escapara.
            - Sim, que mais temos ainda? - secundou-o Danglars. - Porque, até agora. confesso que não vi grande coisa. E o senhor, major Cavalcanti?
            - Oh! - exclamou o interpelado. - Nós temos em Pisa a torre de Ugolino, em Ferrara a prisão de Tasso e em Rimini o quarto de Francisca e Paulo...
            - Pois sim, mas não têm esta escadinha - atalhou Monte-Cristo, abrindo uma porta disfarçada na parede. - Vejam-na e digam o que lhes parece.
            – Que escada-de-caracol mais sinistra! - exclamou Château-Renaud, rindo.
            - A verdade é que - confessou Debray - não sei se é o vinho de Chio que me põe melancólico, mas não há dúvida de que acho esta casa muito soturna.
            Quanto a Morrel, desde que ouvira falar do dote de Valentine, ficara triste e não proferira uma palavra.
            - Imaginem - sugeriu Monte-Cristo - um Otelo ou um abade de Ganges qualquer descendo passo a passo, numa noite escura e tempestuosa, esta escada, com qualquer lúgubre fardo que tem pressa de furtar à vista dos homens, senão ao olhar de Deus...
            A Sra Danglars semidesmaiou nos braços de Villefort, que por sua vez foi obrigado a encostar-se à parede.
            - Meu Deus, senhora! - gritou Debray. - Que tem? Como está pálida!
            - O que ela tem é muito simples - interveio a Sra de Villefort. - está morta de medo. É o resultado do Sr. Conde de Monte-Cristo se pôr a contar-nos histórias horríveis, na intenção de nos aterrorizar.
            - Claro - concordou Villefort. - De fato, conde, o senhor aterroriza as senhoras...
            - Que tem? - repetiu baixinho Debray à Sra Danglars.
            - Nada, nada - respondeu ela, fazendo um estorço. - Preciso apenas de ar...
            - Quer descer ao jardim? - perguntou Debray, oferecendo o braço à Sra Danglars e encaminhando-se para a escada secreta.
            - Não, não - disse ela. - Prefiro ficar aqui.
            - Na verdade, minha senhora, esse terror é verdadeiro? - perguntou Monte-Cristo. 
            - Não, senhor - respondeu a Sra Danglars. - Mas o senhor tem uma maneira de supor as coisas que dá à ilusão o aspecto da realidade.
            - Oh, meu Deus, tem razão! - exclamou Monte-Cristo, sorrindo. - Tudo isto não passa de imaginação... Afinal, por que motivo não havemos antes de imaginar este quarto como um bom e respeitável quarto de mãe de família? E esta cama, com os seus cortinados cor de púrpura, como uma cama visitada pela deusa
Lucina? E esta escada misteriosa como a passagem por onde, devagarinho, para não perturbar o sono reparador da parturiente, entra o médico ou a ama, ou o próprio pai, para levar o filho que dorme?...
            Desta vez, a Sra Danglars, em vez de se tranquilizar com tão suave visão, soltou um gemido e desmaiou por completo.
            - A Sra Danglars encontra-se mal - balbuciou Villefort. - Talvez seja melhor transportá-la para a sua carruagem.
            - Oh, meu Deus, e eu que me esqueci do meu frasco! - lamentou-se Monte-Cristo...
            - Mas eu tenho o meu - disse a Sra de Villefort.
            E passou a Monte-Cristo um frasco cheio de um licor vermelho idêntico àquele cuja benfazeja influência o conde experimentara em Edouard.
            - Ah!... - exclamou Monte-Cristo, recebendo-o das mãos da Sra de Villefort.
            - Sim - murmurou esta –, experimentei de acordo com as suas indicações e...
            - E conseguiu?
            - Creio que sim.
            Tinham transportado a Sra Danglars para o quarto contíguo. Monte-Cristo deitou-lhe nos lábios uma gota do licor vermelho e ela voltou a si.
            - Oh, que sonho horrível! - exclamou.
            Villefort apertou-lhe fortemente o pulso para lhe fazer compreender que não sonhara. Procuraram o Sr. Danglars. Mas, pouco propenso às impressões poéticas, descera ao jardim e conversava com o Sr. Cavalcanti pai acerca de um projeto de caminho-de-ferro de Liorne a Florença.
            Monte-Cristo parecia desesperado. Deu o braço à Sra Danglars e conduziu-a ao jardim, onde encontraram o Sr. Danglars a tomar o café entre os Srs. Cavalcanti pai e filho.
            - Na verdade, minha senhora, assustei-a assim tanto? - perguntou Monte-Cristo à Sra Danglars.
            - Não, senhor. Mas, como sabe, as coisas impressionam-nos conforme a disposição de espírito em que nos encontramos.
            Villefort esforçou-se por rir.
            - E então, compreende, basta uma suposição, uma quimera...
            - No entanto, acreditem ou não, se quiserem, estou convencido de que foi cometido um crime nesta casa – teimou Monte-Cristo.
            - Cautela - recordou a Sra de Villefort –, temos aqui o procurador régio...
            - Bom, já que as coisas estão neste pé, aproveito a oportunidade para fazer a minha declaração - perguntou Monte-Cristo.
            - A sua declaração? - repetiu Villefort.
            - Sim, e diante de testemunhas. 
            - Tudo isto é deveras interessante - disse Debray. - E se houve realmente crime, vamos fazer admiravelmente a digestão.
            - Houve crime - insistiu Monte-Cristo. - Venham por aqui, meus senhores. Venha, Sr. de Villefort. Para que a declaração seja válida, deve ser feita às autoridades competentes.
            Monte-Cristo pegou no braço de Villefort, ao mesmo tempo que apertava debaixo do seu o da Sra Danglars, e arrastou o procurador régio até  ao plátano, onde a sombra era mais espessa.
            Todos os outros convidados os seguiram.
            - Veja - disse Monte-Cristo. - Aqui, precisamente aqui - e batia na terra com o pé –, aqui, para rejuvenescer estas árvores, já velhas, mandei cavar a terra e adubá-la. Pois bem, os meus trabalhadores, ao cavarem, desenterraram um cofre, ou antes, as ferragens de um cofre, no meio das quais estava o esqueleto de uma criança recém-nascida. Espero que não tomem isto como fantasmagoria...
            Monte-Cristo sentiu retesar-se o braço da Sra Danglars e tremer a mão de Villefort.
            - Uma criança recém-nascida? - repetiu Debray. - Diabo, parece-me que o caso esta ficando sério...
            - Bom - interveio Château-Renaud –, não me enganava portanto quando afirmava há pouco que as casas tinham uma alma e um rosto como os homens e que na sua fisionomia transparecia um reflexo do seu íntimo. A casa era triste porque tinha remorsos, e tinha remorsos porque ocultava um crime.
            - Quem diz que é um crime? - contrapós Villefort, tentando um derradeiro esforço.
            - Como, uma criança enterrada viva num jardim não é um crime? - exclamou Monte-Cristo. - Como designa então essa ação, Sr. Procurador régio?
            - Mas quem diz que foi enterrada viva?
            - Para quê enterrá-la aqui se estivesse morta? Este jardim nunca foi um cemitério.
            - Que fazem aos infanticidas neste país? - perguntou ingenuamente o major Cavalcanti.
            - Meu Deus, cortam-lhes muito simplesmente o pescoço! - respondeu Danglars.
            - Ah, cortam-lhes o pescoço!... - repetiu Cavalcanti.
            - Parece-me... Não é assim, Sr. de Villefort? - perguntou Monte-Cristo.
            - É, Sr. Conde - respondeu o interpelado num tom que já não tinha nada de humano.
            Monte-Cristo viu que as duas personagens para as quais preparara aquela cena não podiam suportar mais. E como não queria levá-las demasiado longe, mudou de assunto:
            - Então o café, meus senhores? Parece-me que o esquecemos!
            E levou os convidados para a mesa colocada no meio do relvado.
            - Na verdade, Sr. Conde - disse a Sra Danglars –, tenho vergonha de confessar a minha fraqueza, mas todas essas histórias horríveis me perturbaram. Deixe-me sentar, peço-lhe.
            E caiu numa cadeira. Monte-Cristo cumprimentou-a e aproximou-se da Sra de Villefort.
            - Creio que a Sra Danglars ainda precisa do seu frasco... - disse-lhe. 
            Mas antes de a Sra de Villefort se aproximar da amiga, já o procurador régio dissera ao ouvido da Sra Danglars:
            - Preciso de lhe falar.
            - Quando?
            - Amanhã.
            - Onde?
            - No meu gabinete... no tribunal, se não se importa. É ainda o lugar mais seguro.
            - Irei.
            Neste momento, a Sra de Villefort aproximou-se.
            - Obrigada, querida amiga - disse a Sra Danglars, procurando sorrir.
            - Isto não é nada e já me sinto muito melhor.


Capítulo LXIV


O mendigo


            A festa ia adiantada. A Sra de Villefort manifestara o desejo de regressar a Paris, o que não se atrevera a fazer a Sra Danglars, apesar do mal-estar evidente que experimentava.
            A pedido da mulher, o Sr. de Villefort deu portanto o primeiro sinal de partida e ofereceu à Sra Danglars lugar no seu landô, a fim de ela poder ter os cuidados da mulher.  Quanto ao Sr. Danglars, absorvido numa conversa industrial das mais interessantes com o Sr. Cavalcanti, não prestava nenhuma atenção ao que se passava.
            Ao pedir o frasco à Sra de Villefort, Monte-Cristo notara que o Sr. de Villefort se aproximara da Sra Danglars; e guiado pela sua intuição, adivinhara o que ele lhe dissera, embora tivesse falado tão baixo que a própria Sra Danglars mal o ouvira.
            Deixou, sem se opor a nenhuma combinação, partir Morrel, Debray e Château-Renaud a cavalo, e subir as duas senhoras para o landô do Sr de Villefort. Pela sua parte, Danglars, cada vez mais encantado com Cavalcanti pai, convidou-o a acompanhá-lo no seu cupe.
            Quanto a Andrea Cavalcanti, dirigiu-se para o seu tílburi, que o esperava diante da porta e cujo grume que exagerava os adornos da moda inglesa, lhe segurava, erguendo-se na ponta das botas, o enorme cavalo cinzento-escuro.
            Andrea não falara muito durante o jantar, precisamente por ser um rapaz muito inteligente e ter, como era natural, receado dizer alguma tolice no meio daqueles convivas ricos e poderosos, entre os quais os seus olhos dilatados talvez não vissem sem receio um procurador régio.
            Em seguida fora açambarcado pelo Sr. Danglars, que, depois de uma rápida olhadela ao velho major empertigado e ao filho ainda um bocadinho tímido, juntara a todos estes sintomas a hospitalidade de Monte-Cristo e concluíra que tinha diante de si algum nababo vindo a Paris para aperfeiçoar o filho na vida mundana. 
            Admirara portanto com indizível satisfação o enorme diamante que brilhava no dedo mindinho do major, porque o major, como homem prudente e experimentado, com receio de que acontecesse qualquer acidente às suas notas de banco, as convertera imediatamente num objeto de valor. Mais tarde, depois do
jantar, sempre sob pretexto de indústria e viagens, interrogara o pai e o filho acerca da sua maneira de viver. E o pai e o filho, sabedores de que era no banco de Danglars que lhes deviam ser abertos, a um, o seu crédito de quarenta e oito mil francos, uma vez concedidos, e ao outro, o seu crédito anual de cinquenta mil libras, tinham sido encantadores e cheios de afabilidade para com o banqueiro, a cujos criados, se estes se não tivessem esquivado, teriam apertado a mão, de tal forma o seu reconhecimento experimentava necessidade de expansão.
            Uma coisa sobretudo aumentou a consideração, quase diríamos a veneração de Danglars por Cavalcanti. Este, fiel aos princípios de Horácio: nil admirari, limitara-se, como vimos, a dar provas de saber dizendo em que lago se pescavam as melhores lampréias. Depois comera a sua parte daquela sem dizer uma única palavra. Danglars concluíra daí que semelhantes espécies de sumtuosidades eram familiares ao
ilustre descendente dos Cavalcanti, o qual provavelmente se alimentava em Luca com trutas que mandava vir da Suíça e com lagostas que lhe enviavam da Bretanha por processos idênticos àqueles de que o conde se servira para mandar vir lampréias do lago Fusaro, e esturjões do rio Volga. Por isso, acolhera com muita satisfação estas palavras de Cavalcanti.
            - Amanhã, senhor, terei a honra de o visitar para tratarmos de negócios.
            - E eu, senhor, me sentirei honrado em recebe-lo - respondera Danglars.
            Em seguida propusera a Cavalcanti, desde que não lhe custasse muito separar-se do filho, acompanhá-lo ao Hotel dos Princes.
            Cavalcanti respondeu que o filho estava habituado, havia muito tempo, a levar vida de rapaz independente; que, portanto, tinha os seus cavalos e as suas carruagens, e que, como não tinham vindo juntos, não via dificuldade em que se fossem embora separadamente.
            O major subira pois para a carruagem de Danglars e o banqueiro sentara-se a seu lado, cada vez mais encantado com as idéias de ordem e economia daquele homem, que no entanto dava ao filho cinquenta mil francos por ano, o que supunha a existência de uma fortuna que lhe proporcionava quinhentas ou seiscentas mil libras de rendimento.
            Quanto a Andrea, começou por se dar ares, ralhando com o grume por, em vez de o ir buscar à escadaria, o esperar à porta de saída, o que o obrigara ao incômodo de percorrer trinta passos para ir ao encontro do seu tílburi.
            O grume recebeu a descompostura com umildade, pegou com a mão esquerda no freio, para segurar o cavalo impaciente e que batia com as patas, e estendeu com a direita as rédeas a Andrea, que as recebeu e pousou ligeiramente a bota de verniz no estribo.
            Nesse momento apoiou-se-lhe uma mão no ombro. O rapaz virou-se, pensando que Danglars ou Monte-Cristo se tinham esquecido de lhe dizer alguma coisa e voltavam à carga no momento da partida.
            Mas, em vez de um ou de outro, viu apenas uma figura estranha, tisnada pelo sol, de barba hirsuta, olhos brilhantes como carbúnculos e sorriso trocista numa boca onde brilhavam, alinhados no seu lugar e sem que lhe faltasse um só, trinta e dois dentes brancos, aguçados e famintos, como os de um lobo ou de um chacal. 
            Cobria-lhe a cabeça, de cabelos grisalhos e sujos de terra, um lenço de quadrados vermelhos e envolvia-lhe o corpo alto, magro e ossudo, cujos ossos, como os de um esqueleto, davam a sensação de tilintar ao andar, um camisolão dos mais sebosos e esburacados que se possa imaginar. Por último, a mão que se apoiou no ombro de Andrea, e que foi a primeira coisa que o rapaz viu, pareceu-lhe de uma dimensão gigantesca.
            O jovem reconheceu aquelo rosto à claridade da lanterna do tíburi ou ficou apenas impressionado com o aspecto horrível do seu interlocutor? Não o, saberíamos dizer. Mas o tato é que estremeceu e recuou vivamente.
            - Que quer? - perguntou.
            - Perdão, nosso burguês! - respondeu o homem, levando a mão ao lenço vermelho. - Incomodo-o, talvez, mas preciso de lhe falar.
            - Não se mendiga de noite - interveio o grume, esboçando um gesto para desembaraçar o amo do importuno.
            - Eu não mendigo, meu lindo menino - respondeu o homem desconhecido ao criado, com um sorriso irônico e tão horrível que o rapaz se afastou. - Desejo apenas dizer duas palavras ao seu patrão, que me encarregou de um recado há quinze dias, pouco mais ou menos.
            - Vejamos, que deseja? Diga depressa, meu amigo - atalhou Andrea em tom bastante decidido para que o criado não notasse a sua atrapalhação.
            - Desejaria... desejaria... - perguntou baixinho o homem do lenço encarnado - que se dignasse poupar-me o sacrifício de regressar a Paris a pé. Estou muito cansado e, como não jantei tão bem como você, mal me tenho nas pernas.
            O jovem estremeceu perante esta estranha familiaridade.
            - Mas enfim, que deseja? - insistiu.
            - Desejo que me deixes subir para a tua bela carruagem e que me leve ao meu destino.
            Andrea empalideceu, mas não respondeu.
            - Meu Deus, sim! - insistiu o homem do lenço encarnado, metendo as mãos nas algibeiras e fitando o rapaz com olhos provocadores. - É uma idéia das minhas, percebe, meu querido Benedetto?...
            Ao ouvir este nome, o jovem refletiu sem dúvida, pois aproximou-se do groom e disse-lhe:
            - Este homem foi efetivamente encarregado por mim de um recado de que me vem dar conta. Vai a pé até  à barreira e toma lá um cabriolé a fim de não chegares atrasado.
            O criado afastou-se, surpreendido.
            - Deixe-me ao menos chegar ao escuro - pediu Andrea.
            - Oh, quanto a isso, eu mesmo vou levar-te para um excelente lugar! Espere aí - disse o homem do lenço vermelho.       
            E pegando no cavalo pelo freio conduziu o tílburi para um lugar onde era efetivamente impossível a quem quer que fosse ver a honra que lhe concedia Andrea.
            - Oh, não é pela glória de entrar numa boa carruagem! - declarou. - Não, é apenas porque estou cansado e também um bocadinho porque preciso falar de negócios contigo.
            - Vamos, suba - disse o rapaz. 
            Que pena não ser de dia, pois proporcionaria um espetá culo curioso ver aquele maltrapilho comodamente sentado nas almofadas de brocado ao lado do jovem e elegante condutor do tílburi.
            Andrea conduziu o cavalo até  à última casa da aldeia sem dizer uma única palavra ao companheiro, que, pelo seu lado, sorria e guardava silêncio, como se estivesse deslumbrado por passear  em tão excelente meio de locomoção.
            Uma vez fora de Auteuil, Andrea olhou à sua volta para se assegurar, sem dúvida, de que ninguém os podia ver nem ouvir, e então deteve o cavalo e cruzou os braços diante do homem do lenço vermelho.
            - É capaz de me dizer porque veio perturbar a minha tranquilidade? - perguntou.
            - E você, meu rapaz, porque desconfia de mim?
            - E em que é que eu desconfiei de você?
            - Em quê? Ainda pergunta? Nos separamos na Ponte do Varé depois de me dizer que ia viajar pelo Piemonte e pela Toscana, e em vez disso vem para Paris...
            - Em que é que isso o incomoda?
            - Em nada. Pelo contrário, espero que me ajude...
            - Ah, ah! - riu Andrea. - Quer dizer que está com idéias de me explorar não?
            - Pronto, lá vêm as tiradas bombásticas!
            - Pois olhe que faria mal, mestre Caderousse, já o previno...
            - Meu Deus, não se zangue, pequeno! No entanto, deve saber o que é a desgraça... A desgraça torna-nos invejosos. Julgava-te percorrendo o Piemonte e a Toscana, obrigado a fazer de faccino ou cicerone, e lamentava-te do fundo do coração como lamentaria um filho. Bem sabe que sempre te considerei meu
filho...
            - Adiante, adiante!
            - Tem paciência, com a breca!
            - Tenho paciência, mas acabe de uma vez.
            - E te vejo de repente passar a Barreira dos Bons-Homens, com um groom, um tílburi e uma casaca novinha em folha! Demônio, descobriste alguma, mina ou compraste um cargo de corretor?
            - De forma que, como confessou, tem inveja?...
            - Não, estou contente, tão contente que quis apresentar-te os meus cumprimentos, pequeno! Mas como não estava vestido decentemente, tomei as minhas precauções para não te comprometer.
            - Bonitas precauções! - perguntou Andrea. - Dirigiu-se diante do meu criado!
            - Que queria que fizesse, meu filho? Te abordei quando te pude apanhar. Tem um cavalo muito vivo e um tílburi muito ligeiro. Além disso, é naturalmente escorregadiço como uma enguia. Se não te apanhasse esta noite, correria o risco de nunca mais te pôr a vista em cima.
            - Bem vê que não me escondo.
            - É um felizardo! Gostaria muito de poder dizer o mesmo... Pois eu escondo-me. Sem contar que tinha medo que me não reconhecesse. Mas me reconheceu!  - acrescentou Caderousse com o seu sorriso. - É muito amável...
            - Vejamos, que quer de mim? - perguntou Andrea. 
            - Já me não trata por você e isso não está certo, Benedetto... Não se procede assim com um antigo camarada. Acautela-te que ainda acaba por me tornar exigente.
            Esta ameaça fez desaparecer a cólera do rapaz. O vento da prudência acabava de soprar por cima da sua cabeça. Pôs o cavalo a trote.
            - É mau para você mesmo, Caderousse - disse –, proceder assim para com um antigo camarada, como dizia há pouco. É marselhês e eu sou...
            - Agora já sabe o que é?
            - Não, mas fui criado na Córsega. É velho e teimoso; eu sou novo e casmurro. Entre gente como nós, a ameaça é mau sistema e tudo se deve fazer amigavelmente. Tenho culpa se a sorte, que continua a ser má  para você, é pelo contrário boa para mim?
            - Teve então sorte, hem?... Não se trata de um groom de empréstimo, de um tílburi de empréstimo, nem de uma casaca de empréstimo? Pois tanto melhor! - exclamou Caderousse com os olhos brilhantes de cobiça.
            - Vê e sabe isso perfeitamente, pois de contrário não me  abordaria - observou Andrea, animando-se pouco a pouco. - Se trouxesse um lenço como o teu na cabeça, um camisolão sebento pelos ombros e sapatos roto nos pés, não me reconheceria.
            - Não há dúvida que me despreza, pequeno, e faz mal. Agora que te encontrei, nada me impede de vestir do bom e do melhor, como qualquer outro, pois sei que tem bom coração. Se possui duas casacas, me dará uma, como eu te dava a minha ração de sopa e feijão quando estava cheio de fome.
            - É verdade - concordou Andrea.
            - Tinha aqui  um destes apetites! Continua a ser assim comilão?
            - Continuo - respondeu Andrea, rindo.
            - Como deve ter jantado em casa desse príncipe de onde vem!...
            - Não é um príncipe, é apenas um conde.
            - Um conde, e rico, não?
            - Sim, mas não se fie nisso. O cavalheiro não tem nada um ar tranquilizador...
            - Meu Deus, pode ficar sossegado! Não temos projetos acerca do seu conde, pode ficar com ele só para si... Mas - acrescentou Caderousse retomando o mau sorriso que já lhe aflorara aos lábios - é preciso dar qualquer coisa em troca, compreende?
            - Quanto?
            - Creio que com cem francos por mês...
            - Sim?
            - ...viverei.
            - Com cem francos?
            - Mas mal, bem sabes. Mas com...
            - Com?
            - ...cento e cinquenta francos serei muito feliz.
            - Aqui tens duzentos - disse Andrea.
            E meteu na mão de Caderousse dez luíses de ouro.
            - Ótimo... - murmurou Caderousse. 
            - Apresente-se ao porteiro todos os primeiros dias do mês e terá outro tanto.
            - Pronto, lá  está outra vez a humilhar-me!
            - Como assim?
            - Empurra-me para a criadagem. Isso não. Quero tratar contigo.
            - Seja. Procura-me todos os primeiros dias do mês e assim que eu receber a minha mesada você receberá a sua.
            - Muito bem, vejo que me não tinha enganado, que é um excelente rapaz e que é uma bênção quando a sorte bafeja pessoas como você. Vamos, conta-me a sua boa sorte.
            - Que necessidade tem de saber isso? - perguntou Cavalcanti.
            - Aí está outra vez a desconfiança!
            - Não. Encontrei o meu pai...
            - Um verdadeiro pai?
            - Com a breca, enquanto pagar...
            - Acreditará e honrará. É justo. Como se chama o teu pai?
            - Major Cavalcanti.
            - E ele está satisfeito contigo?
            - Até  agora parece que sim.
            - E quem te fez encontrar esse pai?
            - O conde de Monte-Cristo.
            - Aquele de casa de quem vens?
            - Sim.
            - Bom, já que isso é assim, veja se não me consegue meter em casa dele como avô...
            - Está bem, lhe falarei de ti. Mas entretanto que vai fazer?
            - Eu?
            - Sim, você.
            - É muito amável em se preocupar com isso - disse Caderousse.
            - Parece-me que, uma vez que se interessa por mim, também tenho o direito de querer saber alguma coisa de si - perguntou Andrea.
            - É justo... Vou alugar um quarto numa casa respeitável, vestir umas roupas decentes, barbear-me todos os dias e ler os jornais no café. À noite, irei a qualquer espetáculo com um chefe de claque. Enfim, parecerei um padeiro reformado... E o meu sonho.
            - Ótimo! Se quiseres pôr esse projeto em execução e ter juízo, correrá tudo às mil maravilhas.
            - Verá, Sr. Bossuet!... E você, que vai ser? Par de França?
            - Eh, eh! - riu Andrea. - Quem sabe?...
            - O Sr. Major Cavalcanti talvez o seja ... mas infelizmente a hereditariedade foi abolida.
            - Nada de política, Caderousse!... E agora que tem o que queria e chegamos, salta da minha carruagem e desaparece.
            - Nem por sombras, caro amigo!
            - Como nem por sombra?...
            - Pensa um bocadinho, pequeno. Um lenço encarnado na cabeça, quase sem sapatos, nenhum documentos e dez napoleões de ouro na algibeira, sem contar com o que já havia lá e que soma
exatamente duzentos francos... Prendiam-me  infalivelmente na Barreira! Então seria forçado, para me justificar, a dizer que fora você quem me dera os dez napoleões... Daí, informação, inquérito. Descobrem que deixei Toulon sem pedir licença e reconduzem-me de brigada em brigada até  às margens do Mediterrâneo. Volto a ser pura e simplesmente o nº  106 e adeus ao meu sonho de parecer um padeiro reformado! Nem por
sombras, meu filho. Prefiro ficar respeitavelmente na capital.
            Andrea franziu o sobrolho. Era, como ele próprio se gabara, tão casmurro como o filho putativo do Sr. Major Cavalcanti. Deteve-se um instante, deitou uma rápida olhadela à sua volta, e quando o seu olhar acabava de descrever o círculo investigador a sua mão desceu inocentemente à algibeira das calças, onde começou a acariciar o guarda-mato de uma pistola de bolso.
            Entretanto, porem, Caderousse, que não perdia de vista o companheiro, passava a mão por detrás das costas e abria muito devagarinho uma grande navalha espanhola, que trazia consigo para o que desse e viesse.
            Como se vê, os dois amigos eram dignos de se compreender e compreenderam-se. A mão de Andrea saiu inofensivamente da algibeira e subiu até  ao seu bigode ruivo, que afagou durante algum tempo.
            - Vai então ser feliz, meu bom Caderousse? - perguntou.
            - Farei todo o possível para isso - respondeu o estalajadeiro da Ponte do Gard, guardando a navalha na manga.
            - Vamos então, entremos em Paris. Mas como vai fazer para passar a Barreira sem despertar suspeitas? Parece-me que com esses trapos se arrisca ainda mais de carruagem do que a pé.
            - Espera, já vai ver... - disse Caderousse.
            Pegou no chapéu de Andrea e no capote de grande cabeção que o groom exilado do tílburi deixara no seu lugar e po-lo pelas costas, depois do que tomou a atitude impassível de um criado de casa rica cujo amo conduz pessoalmente.
            - E eu, vou ficar em cabelo? - protestou Andrea.
            - Ora! Está tanto vento que a brisa pode muito bem ter-te levado o chapéu...
            - Vamos então e acabemos com isto - resignou-se Andrea.
            - Que te detém? - perguntou Caderousse. - Não sou eu, espero...
            - Cale-se! - recomendou Cavalcanti.
            Atravessaram a Barreira sem contratempos. Na primeira rua transversal, Andrea parou o cavalo e
Caderousse apeou.
            - Eh! - gritou Andrea. - Então e o capote do meu criado e o meu chapéu?
            - Decerto não quer que corra o risco de me constipar... -perguntou Caderousse.
            - Mas eu?
            - Você é novo, ao passo que eu começo a ficar velho. até  mais ver, Benedetto!
            E entrou na ruela, onde desapareceu.
            - Infelizmente - disse Andrea, soltando um suspiro –, não se pode ser completamente feliz neste mundo! 


Capítulo LXV

Cena conjugal


            Os três rapazes separaram-se na Praça de Luís XV, isto é, Morrel seguiu pelos bulevares, Château-Renaud meteu pela Ponte da Revolução e Debray pelo cais.
            Segundo todas as probabilidades, Morrel e Château-Renaud alcançaram os seus lares domésticos, como se diz agora na tribuna da Câmara, nos discursos bem escritos, e no teatro da Rua de Richelieu, nas peças igualmente bem escritas. Mas o mesmo não aconteceu com Debray. Chegado à passagem do Luvre,
virou à esquerda, atravessou o Carrossel a galope, meteu pela Rua de Saint-Roch, desembocou pela Rua da Michodiêre e chegou à porta do Sr. Danglars no momento em que o landô do Sr. de Villefort, depois de o deixar a ele e à mulher no Arrabalde de Saint-Honoré, parava para a baronesa se apear em sua casa.
            Debray, como homem familiar da casa, entrou à frente no pátio, atirou as rédeas para as mãos de um lacaio e dirigiu-se para a portinhola da carruagem a fim de receber a Sra Danglars, à qual ofereceu o braço para a acompanhar aos seus aposentos.
            Uma vez a porta fechada e a baronesa e Debray no pátio, o rapaz perguntou:
            - Que tem, Hermine? Por que motivo se sentiu mal ao ouvir aquela história, ou antes, a fábula que o conde contou?
            - Porque estava horrivelmente deprimida esta noite, meu amigo - respondeu a baronesa.
            - Não, Hermine - prosseguiu Debray –, não posso acreditar nisso. Pelo contrário, estava com excelente disposição quando chegou a casa do conde. O Sr. Danglars é que estava um pouco aborrecido, isso é verdade, mas bem sei o pouco caso que a senhora faz do seu mau humor. Alguém lhe fez qualquer coisa. Conte-me o que foi. Bem sabe que nunca toleraria uma impertinência para consigo.
            - Engana-se, Lucien, garanto-lhe - perguntou a Sra Danglars. - As coisas são como lhe disse, mais o mau humor em que reparou e de que julgava não valer a pena falar-lhe.
            Era evidente que a Sra Danglars se encontrava sob a influência de uma dessas crises nervosas de que muitas vezes as próprias mulheres se não dão conta, ou que, como adivinhara Debray, experimentara qualquer comoção oculta que não queria confessar a ninguém. Como homem habituado a reconhecer os
flatos como um dos elementos da vida feminina, não insistiu mais e resolveu esperar o momento oportuno, quer para nova interrogação, quer para uma confissão de motu proprio.
            À porta do seu quarto a baronesa encontrou Mademoiselle Cornélie. Mademoiselle Connélie era a criada de quarto de confiança da baronesa.
            - Que faz a minha filha? - perguntou a Sra Danglars.
            - Estudou toda a noite e em seguida foi-se deitar - respondeu Mademoiselle Cornélie.
            - No entanto, parece-me que ouço o seu piano...
            - E Mademoiselle Louise de Armilly que toca enquanto a menina está deitada. 
            - Bem, venha despir-me - ordenou a Sra Danglars. Entraram no quarto. Debray estendeu-se num grande canapé e a Sra Danglars dirigiu-se para o seu quarto de vestir com Mademoiselle Cornélie.
            - Meu caro Sr. Lucien - disse a Sra Danglars através da porta do quarto de vestir –, porque está sempre a queixar-se de que Eugênie não lhe dá a honra de lhe dirigir a palavra?
            - Minha senhora - respondeu Lucien, brincando com o cãozinho da baronesa, o qual, reconhecendo a sua qualidade de amigo da casa, tinha o hábito de lhe fazer mil carícias –, não sou o único que lhe faço semelhantes recriminações. Creio ter ouvido um dia destes Morcerf queixar-se a si mesma de que não conseguia arrancar uma única palavra à noiva.
            - É verdade - reconheceu a Sra Danglars. - Mas creio que uma destas manhãs tudo isso mudará e verá  entrar Eugênie no seu gabinete.
            - No meu gabinete?
            - Quero dizer, no do ministério.
            - E porquê?
            - Para lhe pedir um contrato para a Ópera! Na verdade, nunca vi tal entusiasmo pela música. Chega a ser ridículo numa pessoa da sociedade.
            Debray sorriu.
            - Bom, desde que apareça com o seu consentimento e do barão,  lhe arranjaremos esse contrato e procuraremos que esteja de acordo com o seu mérito, embora sejamos muito pobres para pagar tão grande talento como o dela.
            - Pode ir, Cornélie, já não preciso de si - disse a Sra Danglars.
            Cornélie saiu e pouco depois a Sra Danglars saiu também do quarto de vestir num elegante néglige e foi sentar-se ao pé de Lucien.
            Depois, pensativa, pôs-se a afagar o petit-‚pagneul.
            Lucien olhou-a um instante em silêncio.
            - Vejamos, Hermine, responda francamente: que é que a preocupa? - perguntou por fim.
            - Nada - respondeu a baronesa.
            E no entanto, como sufocasse, levantou-se, tentou respirar e foi ver-se ao espelho.
            - Estou medonha, esta noite - declarou.
            Debray ia a levantar-se, sorrindo, para ir tranquilizar a baronesa a tal respeito, quando a porta se abriu de súbito. O Sr. Danglars entrou. Debray voltou a sentar-se.
            Ao ouvir o barulho da porta, a Sra Danglars virou-se e olhou o marido com um espanto que nem sequer se incomodou a dissimular.
            - Boa noite, minha senhora. Boa noite, Sr. Debray.
            A baronesa julgou, sem dúvida, que aquela visita inesperada significava qualquer coisa como o desejo de reparar as palavras amargas que tinham escapado ao barão durante o dia. Assumiu por isso um ar digno e, virando-se para Lucien, sem responder ao marido, disse-lhe:
            - Leia-me qualquer coisa, Sr. Debray.
            Debray, a quem a visita começava por inquietar ligeiramente, tranquilizou-se ao ver a calma da baronesa e estendeu a mão para um livro marcado ao meio por uma faca de lâmina de madrepérola incrustada de ouro. 
            - Perdão - disse o banqueiro –, mas se cansaria demasiado ficando acordada até  tão tarde. São onze horas e o Sr. Debray mora muito longe.
            Debray ficou tolhido de surpresa, não porque o tom de Danglars não fosse perfeitamente calmo e delicado mas, enfim, através daquela calma e daquela delicadeza transparecia certa veleidade pouco habitual de contrariar a vontade da mulher naquela noite.
            A baronesa também ficou admirada e manifestou a sua surpresa com um olhar que sem dúvida daria que pensar ao marido se este não tivesse os olhos fixos num jornal onde procurava o fecho da Bolsa.
Devido a isso, esse olhar tão ferino foi lançado em pura perda e falhou completamente o seu efeito.
            - Sr. Lucien - disse a baronesa –, declaro-lhe que não tenho a mais pequena vontade de dormir, que tenho inúmeras coisas para lhe contar esta noite e que o senhor vai passar a noite a ouvir-me, nem que tenha de dormir de pé.
            - Às suas ordens, minha senhora - respondeu fleumaticamente Lucien.
            - Meu caro Sr. Debray - disse por sua vez o banqueiro – não perca tempo, peço-lhe, a escutar esta noite as loucuras da Sra Danglars, pois as escutará facilmente amanhã. Mas esta noite é minha, reservo-a, e a dedicarei, se se dignar permitir-me, a conversar de graves interesses com a minha mulher.
            Desta vez o golpe era de tal forma direto e firme que deixou Lucien e a baronesa desorientados.
            Ambos se interrogaram com a vista, como se procurassem um no outro socorro contra aquela agressão. Mas o poder irresistível do dono da casa triunfou e deu força ao marido.
            - Que nem sequer lhe passe pela cabeça que o ponho na rua, meu caro Debray - continuou Danglars. - Não, por nada deste mundo. Apenas uma circunstância imprevista me obriga a desejar ter esta mesma noite uma conversa com a baronesa. Isto acontece-me muito raramente e portanto espero que me não guardem rancor.
            Debray balbuciou algumas palavras, cumprimentou e saiu, chocando com as esquinas, como Natã em :Atalia.
            - É incrível - disse quando a porta se fechou atrás de si – como estes maridos que achamos tão ridículos adquirem facilmente vantagem sobre nós!
            Depois de Lucien sair, Danglars instalou-se no seu lugar no canapé, fechou o livro que ficara aberto e, tomando uma atitude horrivelmente pretensiosa, continuou a brincar com o cão. Mas como o cão, que não tinha por ele a mesma simpatia que por Debray, o quisesse morder, agarrou-o pelo cachaço e atirou-o para cima doutro canapé colocado do lado oposto do quarto.
            O animal ganiu ao atravessar o espaço; mas chegado ao seu destino aninhou-se atrás de uma almofada e, estupefato com semelhante tratamento a que não estava habituado, ficou mudo e quieto.
            - Sabe, senhor - disse a baronesa sem pestanejar - que está fazendo progressos? Habitualmente é apenas grosseiro; esta noite é brutal.
            - É que estou esta noite de mais mau humor do que habitualmente - respondeu Danglars.
            Hermine olhou o banqueiro com supremo desdém. Regra geral, tais olhares exasperavam o orgulho de Danglars; mas naquela noite pareceu quase não reparar neles.  
            - E que me interessa a mim o seu mau humor? - replicou a baronesa, irritada com a impassibilidade do marido. - Porventura essas coisas dizem-me respeito? Guarde os seus maus humores para si ou  descarregue-os nos seus escritórios. Uma vez que tem empregados a quem paga, eles que lhe aturem os
maus humores!
            - De modo nenhum - respondeu Danglars. - Os seus conselhos são insensatos, minha senhora, e por isso não os seguirei. Os meus escritórios são o meu Patolo, como diz, se me não engano, o Sr.  Desmoustiers, e não desejo mudar-lhe o curso nem perturbar-lhe a calma. Os meus empregados são pessoas honestas, que ganham a minha fortuna e a quem pago uma taxa infinitamente inferior à que merecem, se os avaliar de acordo com o que me rendem. Portanto, não descarregarei a minha cólera sobre eles; e a descarregarei sobre aqueles que papam os meus jantares, rebentam os meus cavalos e esvaziam o meu cofre.
            - E quem são essas pessoas que esvaziam o seu cofre? Explique-se mais claramente, senhor, peço-lhe.
            - Oh, esteja tranquila! Embora fale por enigmas, estou certo de que não precisará de muito tempo para os decifrar - perguntou Danglars. - As pessoas que esvaziam o meu cofre são aquelas que numa hora tiram dele a bagatela de quinhentos mil francos.
            - Não o compreendo, senhor - disse a baronesa, procurando dissimular simultaneamente a emoção da voz e o rubor do rosto.
            - Pelo contrário, compreende muito bem - contrapós Danglars. - Mas se a sua má vontade continuar, lhe direi que acabo de perder setecentos mil francos do empréstimo espanhol.
            - Essa agora! - exclamou a baronesa, troçando. - E é a mim que torna responsável por essa perda?
            - Porque não?
            - Tenho por acaso a culpa se o senhor perdeu setecentos mil francos?
            - Seja como for, eu é que a não tenho.
            - De uma vez para sempre, senhor - perguntou azedamente a baronesa –, repito-lhe: nunca me fale em dinheiro! É uma linguagem que não aprendi nem em casa de meus pais nem em casa do meu primeiro marido.
            - Acredito, meu Deus! - volveu-lhe Danglars. Pois se nem um nem outro tinham um centavo!
            - Mais uma razão para que não tenha aprendido em sua casa o calão bancário com que me matam aqui o bichinho do ouvido de manhã à noite. Esse barulho de moedas que contam e recontam me é odioso, e só o som da sua voz me é ainda mais desagrável.
            - Na verdade, como tudo isto é estranho! - comentou Danglars. - E eu que julgava que a senhora dedicava o mais vivo interesse às minhas operações!
            - Eu? Quem lhe meteu na cabeça semelhante tolice?
            - A senhora mesma.
            - Ora essa!
            - Sem dúvida.
            - Gostaria muito que me dissesse quando isso aconteceu.
            - Nada mais fácil, meu Deus! Em Fevereiro último, a senhora foi a primeira pessoa a falar-me dos fundos de Haiti. Sonhara que um navio entrava no porto do Havre e que esse navio trazia a notícia de que se ia efetuar um pagamento que se  julgava relegado para as lendas gregas. Conheço a lucidez do seu sono, por isso, mandei comprar à socapa todos os cupons que consegui encontrar da dívida do Haiti e ganhei  quatrocentos mil francos, cem mil dos quais lhe foram religiosamente entregues. A senhora fez o que quis desse dinheiro e eu nunca lhe pedi contas dele.
            "Em Março, tratava-se de uma concessão de caminho-de-ferro. Concorriam três empresas que davam iguais garantias. A senhora disse-me que o seu instinto... (Aqui entre nós, embora a senhora se pretenda alheia às especulações, creio, pelo contrário, que possui um instinto desenvolvidíssimo a respeito de certas matérias... ) Pois nesse caso disse-me que o seu instinto lhe segredava que a concessão seria dada à empresa chamada do Meio-Dia.
            "Inscrevi-me imediatamente para subscrever dois terços das ações dessa sociedade. A concessão foi-lhe efetivamente dada, como a senhora previra; as ações triplicaram de valor e eu embolsei um milhão, do qual lhe entreguei duzentos e cinquenta mil francos para os seus alfinetes. Como empregou esses duzentos e cinquenta mil francos?
            - Mas onde quer o senhor chegar? – gritou-lhe a baronesa, trêmula de despeito e impaciência.
            - Calma, minha senhora. Lá iremos...
            - Assim espero!
            - Em Abril, jantou em casa do ministro. Falou-se da Espanha e a senhora ouviu uma conversa secreta. Tratava-se da expulsão de D. Carlos. Comprei fundos espanhóis. A expulsão realizou-se e eu ganhei seiscentos mil francos no dia em que Carlos V transpôs o Bidassoa. Desses seiscentos mil francos a senhora
recebeu cinquenta mil escudos. Eram seus, dispôs deles como muito bem entendeu e não lhe peço contas. Mas nem por isso é menos verdade que recebeu este ano quinhentas mil libras.
            - E depois, senhor?
            - Ah, sim, e depois! Aí é que precisamente o gato vai aos fios.
            - Tem cada maneira de se exprimir... na verdade...
            - Dizem o que quero dizer e isso é tudo o que pretendo. Depois, há três dias... há três dias a senhora falou de política com o Sr. Debray e julgou adivinhar nas suas palavras que D. Carlos regressara a Espanha. Então vendi os meus títulos, a notícia espalhou-se, houve pânico e em vez de vender acabei por dar. No dia seguinte descobre-se que a notícia era falsa e devido a essa falsa notícia perdi setecentos mil francos!
            - E depois?
            - E depois?... Se lhe dou um quarto quando ganho, a senhora deve-me um quarto quando perco. Ora, um quarto de setecentos mil francos são cento e setenta e cinco mil francos.
            - Tudo o que tem estado para aí a dizer é extravagante e não vejo por que motivo mistura o nome do Sr. Debray em toda essa história.
            - Porque se por acaso não tem os cento e setenta e cinco mil francos que reclamo, terá de pedi-los emprestados aos seus amigos e o Sr. Debray é um dos seus amigos.
            - Era o que faltava! - gritou a baronesa.
            - Oh, deixe-se de gestos, de gritos, de drama moderno, minha senhora! Do contrário, me obrigará  a dizer-lhe que estou vendo o Sr. Debray rindo junto das quinhentas mil libras que a senhora lhe deu este ano e dizendo para consigo que descobriu finalmente o que nem os mais hábeis jogadores nunca descobriram, ou seja, uma roleta onde se ganha sem entrar no jogo e onde não se perde quando se perde.
            A baronesa explodiu.
            - Miserável! Atreve-se a dizer-me que não sabia o que hoje ousa censurar-me?
            - Não lhe digo que sabia nem lhe digo que não sabia; digo-lhe: observe o meu comportamento desde que há quatro anos não é minha mulher e que não sou seu marido e verá se não tem sido sempre consequente consigo mesmo. Algum tempo antes do nosso rompimento, a senhora desejou estudar música com aquele famoso barítono que se estreou com tanto êxito no Teatro Italiano e eu quis estudar dança com aquela bailarina que adquirira tão grande fama em Londres. Isso custou-me, tanto pela sua parte como pela minha, perto de cem mil francos. Não disse nada, porque deve haver harmonia no lar. Cem mil francos para que o homem e a mulher saibam bem a fundo dança e música não é muito caro. Mas a senhora não tardou a aborrecer-se do canto e a vir-lhe à idéia de estudar diplomacia com um secretário de um ministro. Deixei-a estudar... Compreende: que me importava a mim, se a senhora pagava as lições da sua bolsa? Mas hoje
verifico que o dinheiro sai da minha e que a sua aprendizagem me pode custar setecentos mil francos por mês... Alto aí, minha senhora, porque as coisas não podem continuar assim! Ou o diplomata passa a dar as lições... de graça, e o tolerarei, ou não põe mais os pés nesta casa. Compreendeu, minha senhora?
            - Oh, é demais, senhor! - gritou Hermine, sufocada. - O senhor ultrapassa os limites do ignóbil!
            - Mas - continuou Danglars - verifico com prazer que a senhora não me fica atrás e que obedece voluntariamente àquela disposição do código que diz: “A mulher deve seguir o marido."
            - Insultos!
            - Tem razão: fiquemos pelos fatos e raciocinemos friamente. Nunca me meti na sua vida a não ser para seu bem. Faça o mesmo. O meu cofre não lhe diz respeito, não é o que a senhora afirma? Seja. Cuide do seu, mas não encha nem despeje o meu. Aliás, quem sabe se tudo isso não passa de uma pulhice política? Se o ministro, furioso por me ver na oposição e invejoso das simpatias populares que suscito, não está feito
com o Sr. Debray para me arruinar?
            - Acha isso possível?
            - Mas sem dúvida! Só quem nunca viu isso... uma falsa notícia telegráfica, isto é, o impossível ou quase... Sinais absolutamente diferentes transmitidos pelos dois últimos telégrafos!... Para mim, é esta a realidade.
            - Senhor - disse mais humildemente a baronesa –, não ignora, parece-me, que esse funcionário foi expulso, que se falou até de lhe levantar um processo, que se deu ordem para o prender e que essa ordem teria sido cumprida se ele se não tivesse subtraído às primeiras buscas por meio de uma fuga que prova a
sua loucura ou a sua culpabilidade... Foi um erro.
            - Sim, que fez rir os tolos, passar uma má noite ao ministro, escrevinhar os Srs. Secretários de Estado, mas que me custou a mim setecentos mil francos.
            - Mas, senhor - disse de súbito Hermine –, se tudo isso, em seu entender, é culpa do Sr. Debray, por que motivo, em vez de dizer todas essas coisas diretamente ao Sr. Debray, as diz a mim? Porque acusa o homem e censura a mulher? 
            - Conheço porventura o Sr. Debray? - perguntou Danglars. - Interessa-me porventura conhecê-lo? Quero porventura saber se ele dá conselhos? Estou porventura disposto a segui-los? Jogo, porventura? Não, é a senhora que faz tudo isto e não eu!
            - Mas parece-me, uma vez que o senhor tira proveito disso...
            Danglars encolheu os ombros.
            - Loucas criaturas, na verdade, estas mulheres que se julgam gênios só porque levaram a bom termo uma ou duas intrigas sem serem apontadas a dedo por toda Paris! Mas fique ciente que mesmo que tivesse conseguido ocultar os seus desregramentos ao seu marido, o que seria o abc da arte, porque a maior parte do tempo os maridos não querem ver, a senhora não passaria de uma pálida cópia do que faz metade das suas amigas da alta-roda.
            Mas comigo as coisas não se passam assim Tenho visto e sempre vi. Há dezesseis anos, mais ou menos, talvez me tivesse ocultado um pensamento, mas não um procedimento, uma ação,  uma falta. Enquanto pelo seu lado se felicitava pela sua astúcia e julgava firmemente enganar-me, que acontecia? Graças à minha pretensa ignorância, desde o Sr. de Villefort até  ao Sr. Debray, não há um dos seus amigos que não tenha tremido diante de mim. Não há um que não me tenha tratado como dono da casa, a minha única pretensão junto de si. Não há um, enfim, que se tenha atrevido a dizer-lhe de mim o que eu próprio lhe
digo agora. Permito-lhe que me torne odioso, mas a impedirei de me tornar ridículo, e sobretudo proíbo-a concretamente e acima de tudo de me arruinar.
            Até ao momento em que o nome de Villefort fora pronunciado, a baronesa conservara-se aparentemente calma. Mas ao ouvir aquele nome, empalidecera e, erguendo-se como se fosse impelida por uma mola, estendera os braços como que para conjurar uma aparição e deu três passos na direção do marido, como se quisesse arrancar-lhe o fim do segredo que ele não conhecia ou que talvez, por meio de qualquer cálculo odioso como eram quase sempre todos os cálculos de Danglars, ele não queria revelar inteiramente.
            - O Sr. de Villefort? Que significa... que quer dizer?
            - Quer dizer, minha senhora, que o Sr. de Nargonne, seu primeiro marido, não sendo filósofo nem banqueiro, ou talvez sendo um e outro, e vendo que não tinha nenhum partido a tirar de um procurador régio, morreu de desgosto ou de raiva por a encontrar grávida de seis meses, depois de uma ausência de nove. Sou brutal, e não só o sei como ainda me gabo disso. É um dos meus meios de êxito nas minhas operações comerciais. Por que motivo, em vez de matar se matou a si mesmo? Porque não tinha de salvar o seu dinheirinho. Mas eu devo-me ao meu dinheiro. O Sr. Debray, meu sócio, fez-me perder setecentos mil francos; pois que suporte a sua parte do prejuízo e continuaremos a negociar. De contrário, que declare falência
perante mim por essas cento e setenta e cinco mil libras e faça o que fazem os falidos, desapareça. Meu Deus, é um rapaz encantador, bem sei, quando as suas notícias são exatas; mas quando o não são, há cinquenta no mundo que valem mais do que ele.
            A Sra Danglars estava aterrada. No entanto, fez um derradeiro esforço para responder ao último ataque. Mas caiu numa poltrona a pensar em Villefort, na cena do jantar e na estranha série de contrariedades que havia alguns dias se abatiam uma a uma sobre a sua casa e transformavam em debates escandalosos a
calma forçada do seu lar. Danglars nem sequer a olhou, embora ela fizesse todo o  possível para desmaiar. Bateu com a porta do quarto sem acrescentar uma única palavra e regressou ao seu. Assim, quando voltou a si do seu meio desmaio, a Sra Danglars pode acreditar que tivera um mau sonho.


Capítulo LXVI

Projetos de casamento


            No dia seguinte ao desta cena, à hora que Debray costumava escolher para, antes de ir para o seu gabinete, fazer uma visitinha à Sra Danglars, o seu cupe não apareceu no pátio. A essa hora, isto é, por volta do meio-dia e meia hora, a Sra Danglars pediu a sua carruagem e saiu.
            Danglars, colocado atrás de uma cortina, espreitara aquela saída, que esperava, e ordenou que o prevenissem imediatamente quando a senhora voltasse. Mas às duas horas ela ainda não tinha regressado.
Às duas horas, Danglars pediu os seus cavalos, dirigiu-se para a Câmara e inscreveu-se para falar contra o orçamento.
            Do meio-dia às duas horas, Danglars permanecera no seu gabinete lendo a sua correspondência com ar cada vez mais sombrio e a alinhar números sobre números, além de receber, entre outras, a visita do major Cavalcanti, que, sempre lívido, hirto e pontual, se apresentou à hora anunciada na véspera para concluir o seu negócio com o banqueiro.
            Quando saiu da Câmara, Danglars, que dera sinais evidentes de agitação durante a sessão e que sobretudo fora mais acerbo do que nunca contra o ministério, meteu-se na sua carruagem e ordenou ao cocheiro que o conduzisse à Avenida dos Campos Elísios, nº  30.
            Monte-Cristo estava em casa; mas como estava com alguém, pedia a Danglars que esperasse um instante na sala. Enquanto o banqueiro esperava, a porta abriu-se e ele viu entrar um homem vestido de abade, que, em vez de esperar como ele, o cumprimentou e, decerto por ser mais familiar do que ele na casa, se dirigiu para o interior desta e desapareceu. Pouco depois, a porta por onde entrara o padre voltou a
abrir-se e Monte-Cristo apareceu.
            - Desculpe, meu caro barão - disse -, mas um dos meus melhores amigos, o abade Busoni, que deve ter visto passar, acaba de chegar a Paris. Havia muito tempo que não nos víamos e não tive coragem de o deixar imediatamente. Espero que, atendendo ao motivo, me desculpe tê-lo feito esperar.
            - Ora essa, eu é que escolhi mal o momento. Mas o remédio ‚ simples: retiro-me.
            - De modo nenhum, Pelo contrário, faça favor de se sentar. Mas, meu Deus, que tem o senhor? Tem o ar de estar muito preocupado. Na verdade, assusta-me. Um capitalista preocupado é como os cometas: pressagia sempre alguma grande desgraça no mundo. 
            - Meu caro senhor - respondeu Danglars –, há vários dias que a pouca sorte me persegue e que só recebo más noticias.
            - Meu Deus, voltou a perder na Bolsa? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não, disso já me ressarci, pelo menos por alguns dias. Trata-se muito simplesmente para mim de uma falência em Trieste.
            - Sim? E o seu falido será por acaso Jacopo Manfredi?
            - Exatamente! Imagine um homem que tinha comigo, há não sei quanto tempo, negócios no montante de oitocentos ou novecentos mil francos por ano. Nunca um erro de contas, nunca um atraso. Um figurão que pagava como um príncipe... dos que pagam. Adiantei-lhe um milhão e o diabo do meu Jacopo Manfredi
suspende pagamentos!
            - Deveras?
            - Uma fatalidade inaudita. Saco sobre ele seiscentas mil libras e o papel vem-me devolvido incobrado, e além disso sou ainda portador de quatrocentos mil francos de letras aceites por ele e pagáveis no fim deste mês no seu correspondente em Paris. Estamos a 30, mandei receber. Pois sim, o correspondente desapareceu! Juntamente com o meu negócio de Espanha, tenho um bonito fim de mês.
            - Mas foi realmente uma perda o seu negócio de Espanha?
            - Claro, setecentos mil francos fora do meu cofre, apenas isso!
            - Como diabo cometeu semelhante asneira, o senhor, um velho especulador?
            - A culpa foi da minha mulher. Sonhou que D. Carlos regressara a Espanha. Ela acredita nos sonhos. Trata-se de magnetismo, diz ela, e quando sonha uma coisa, essa coisa, ao que afirma, tem infalivelmente de acontecer. Dada a sua convicção, deixo-a jogar. Ela tem o seu pé-de-meia, e o seu corretor. Joga e perde. E certo que se não trata do meu dinheiro e sim do seu, mas mesmo assim o caso interessa-me. Compreende, quando da bolsa da mulher saem setecentos mil francos, o marido acaba sempre por descobrir. Como, não sabia de nada? Pois olhe que o caso deu muito que falar.
            - Efetivamente ouvi qualquer coisa a esse respeito, mas ignorava os pormenores, pois não há ninguém mais ignorante desses negócios de Bolsa do que eu.
            - O senhor não joga?
            - Eu? Como queria que jogasse? Tenho já tanta dificuldade em cuidar dos meus rendimentos que, além do meu intendente, seria obrigado a contratar um escriturário e um caixa. Mas a propósito da Espanha, parece-me que a baronesa não sonhou completamente com a história do regresso de D. Carlos. Os jornais não disseram qualquer coisa a esse respeito?
            - E o senhor acredita nos jornais?
            - Absolutamente nada. Mas parece-me que esse honesto Messager era uma exceção à regra e só anunciava as notícias verdadeiras, as notícia telegráficas
            - Pois isso mesmo é que é inexplicável - perguntou Danglars. - O regresso de D. Carlos era efetivamente uma notícia telegráfica.
            - De modo que o senhor perdeu este mês um milhão e setecentos mil francos, pouco mais ou menos? - perguntou Monte-Cristo.
            - Não há pouco mais ou menos, foi exatamente essa verba.
            - Demônio, para uma fortuna de terceira ordem, é um rude golpe! - declarou Monte-Cristo, com compaixão. 
            - De terceira ordem? - repetiu Danglars um pouco vexado. - Que diabo entende o senhor por isso?
            - Sem dúvida - prosseguiu Monte-Cristo. - Divido as fortunas em três categorias: fortuna de primeira ordem, fortuna de segunda ordem e fortuna de terceira ordem. Chamo fortuna de primeira ordem à que se compõe de tesouros ao alcance da mão: terras, minas, títulos sobre Estados como a França, a  Àustria
e a Inglaterra, contanto que esses tesouros, essas minas e esses títulos atinjam o total de uma centena de milhões. Chamo fortuna de segunda ordem às explorações manufatureiras, às empresas por quotas, aos vice-reinos e aos principados que não excedam um milhão e quinhentos mil trancos de rendimento e ao todo possuam um capital à volta de cinquenta milhões. Finalmente, chamo fortuna de terceira ordem aos capitais que frutificam por meio de juros compostos, cujos ganhos dependem da vontade de outros ou dos caprichos do acaso, que uma falência desmorona, que uma notícia telegráfica abala; às especulações eventuais e, enfim, às operações submetidas aos acasos dessa fatalidade, que poderíamos chamar força menor comparando-a com a força maior, que é a força natural; tudo constituindo um capital fictício ou real dos seus quinze milhões. Não é pouco mais ou menos esta a sua situação, diga?
            - Pois sim, é! - respondeu Danglars.
            - O que significa que com seis fins de mês como este - continuou imperturbavelmente Monte-Cristo - uma casa de terceira ordem estaria na agonia.
            - Oh! - exclamou Danglars, com um sorriso muito pálido. - Onde o senhor vai!...
            - Digamos sete meses - replicou Monte-Cristo, no mesmo tom. - Já pensou alguma vez que sete vezes um milhão e setecentos mil francos fazem cerca de doze milhões?... Não? Claro, tem razão, pois com semelhantes reflexões nunca ninguém arriscaria os seus capitais, que são para o financeiro o que a pele é para o homem civilizado. Temos as nossas roupas, mais ou menos sumtuosas, que são o nosso crédito. Mas quando o homem morre tem apenas a sua pele, tal como, se renunciasse aos negócios, o senhor só teria a sua fortuna real, cinco ou seis milhões quando muito.
            "Porque as fortunas de terceira ordem quase só valem a terça ou a quarta parte do que aparentam, tal como a locomotiva de um comboio não passa quase sempre, no meio do fumo que a envolve e a faz parecer maior, de uma máquina mais ou menos forte. Pois bem, dos cinco milhões que constituem o seu ativo real, o senhor acaba de perder à volta de dois, que diminuem em igual quantia a sua fortuna fictícia ou o seu crédito. Quer dizer, meu caro Sr. Danglars! Precisa de dinheiro? Quer que lhe empreste?
            - O senhor é um mau calculador! - protestou Danglars, chamando em seu auxílio toda a filosofia e toda a dissimulação da aparência. - Neste momento o dinheiro já entrou nos meus cofres graças a outras especulações bem sucedidas. O sangue saído pela sangria voltou a entrar pela nutrição. Perdi uma batalha na Espanha e fui vencido em Trieste, mas a minha frota da índia apresou com certeza alguns galeões e os meus pioneiros do México devem ter descoberto alguma mina.
            - Ótimo, Ótimo! Mas a cicatriz ficará e ao primeiro prejuízo reabrirá...
            - Não, porque me baseio em certezas - prosseguiu Danglars, com a  loquacidade vulgar do charlatão que procura não deixar o seu crédito por mãos alheias. - Para me derrubar seria preciso que três governos caíssem.
            - Bom... já se tem visto.
            - Que a terra não produzisse.
            - Lembre-se das sete vacas gordas e das sete vacas magras.
            - Ou que o mar se abrisse, como no tempo do faraó. Mas há vários mares e os navios poderiam transformar-se em caravanas...
            - Tanto melhor, mil vezes tanto melhor, caro Sr. Danglars - disse Monte-Cristo. - Verifico que me enganei e que o senhor pertence às fortunas de segunda ordem.
            - Creio poder aspirar a essa honra - perguntou Danglars, com um daqueles sorrisos estereotipados que causavam a Monte-Cristo o eleito de uma dessas luas pastosas com que os maus pintores pintalgam as suas ruínas. - Mas já que estamos falando de negócios - acrescentou, encantado por encontrar pretexto para mudar de conversa - diga-me mais ou menos o que posso fazer pelo Sr. Cavalcanti.
            - Mas dar-lhe dinheiro, se ele tiver um crédito sobre o senhor e se esse crédito lhe parecer hom.
            - Excelente! Apresentou-se-me esta manhã com uma ordem de quarenta mil francos, pagável à vista sobre o senhor, assinada por Busoni e endossada a mim por si. Como calcula, entreguei-lhe imediatamente os quarenta mil francos.
            Monte-Cristo fez um sinal de cabeça que indicava estar plenamente de acordo.
            - Mas isto não é tudo - continuou Danglars. - Abriu ao filho um crédito sobre mim.
            - Quanto, se não é indiscrição, dá ele ao rapaz?
            - Cinco mil francos por mês.
            - Sessenta mil francos por ano. Já desconfiava disso - disse Monte-Cristo, encolhendo os ombros. - São uns forretas, esses Cavalcanti! Que quer ele que um rapaz faça com cinco mil francos por mês?
            - Mas se o rapaz necessitar de mais alguns milhares de francos...
            - Não caia nessa! O pai não os pagara. O senhor não conhece todos os milionários transalpinos; são autênticos sovinas. E por intermédio de quem lhe abriu o crédito?
            - Por intermédio da Casa Fenzi, uma das melhores de Florença.
            - Não quero dizer que o seu dinheiro não esteja seguro, nem por sombras; mas, mesmo assim, cinja-se aos termos da carta de crédito.
            - Devo entender que no meu lugar não confiaria no Cavalcanti?
            - Eu? Lhe daria dez milhões mediante a sua assinatura. A dele faz parte das fortunas de segunda ordem de que lhe falava há pouco, meu caro Sr. Danglars.
            - E, no entanto, como é simples! Tomá-lo-ia apenas por um major, se não soubesse mais nada a seu respeito.
            - E já seria uma grande honra para ele! Porque o senhor tem razão, o homem não tem grande figura. Quando o vi pela primeira vez, pareceu-me um velho tenente que tivesse criado bolor debaixo da sua charlateira. Mas todos os italianos são assim: lembram velhos judeus, quando não deslumbram como magos
do Oriente.
            - O rapaz é melhor - declarou Danglars. 
            - Sim, mas talvez um bocadinho tímido. No entanto, pareceu-me aceitável. Estava preocupado, sabe?
            - Porquê?
            - Porque o senhor viu-o em minha casa pouco depois da sua entrada na sociedade, pelo menos segundo me disseram. Viajou com um preceptor severíssimo e nunca viera a Paris.
            - Todos esses italianos de alta linhagem têm o hábito de casar entre si, não é verdade? - perguntou negligentemente Danglars. - Gostam de juntar as suas fortunas.
            - Habitualmente procedem assim, é verdade; mas Cavalcanti é um original que não faz nada como os outros. Ninguém me tira da idéia que mandou vir o filho para França a fim de ele arranjar mulher.
            - Parece-lhe?
            - Tenho certeza.
            - Já ouviu falar da sua fortuna?
            - Não se fala de outra coisa. - Simplesmente, uns atribuem-lhe milhões, ao passo que outros pretendem que não possui centavo.
            - E qual é a sua opnião?
            - Não deve confiar demasiado nela; é meramente pessoal.
            - Mas enfim...
            - Na minha opnião, todos esses antigos podestades, todos esses velhos condottieri, porque os Cavalcanti comandaram exércitos e governaram províncias; na minha opnião, repito, eles enterraram milhões em recantos que só os seus primogênitos conhecem e dão a conhecer aos seus primogênitos de geração em geração. E a prova é que são todos amarelos e magros como os seus florins do tempo da República, de que
conservam um reflexo à força de os olhar.
            - Perfeito - concordou Danglars. - E isso é tanto mais verdade quanto é certo ninguém conhecer uma polegada de terra a toda essa gente.
            - Muito pouca, pelo menos. Pela minha parte, só conheço a Cavalcanti o seu palácio de Luca.
            - Ah, ele tem um palácio! – exclamou, rindo, Danglars. - já é qualquer coisa.
            - Pois é, embora o tenha alugado ao ministro das Finanças, enquanto ele mora numa casinha. Oh, mas como já lhe disse, creio que o homenzinho é um avarento!
            - Então, então, não seja tão severo...
            - Ouça, eu mal o conheço. Creio tê-lo visto três vezes na minha vida. O que sei a seu respeito é por intermédio do abade Busoni e por ele mesmo. Falava-me esta manhã dos seus projetos acerca do filho e deixava-me entrever que, farto de ver dormir fundos consideráveis na Itália, que é um pais morto, gostaria de encontrar maneira, quer na França, quer na Inglaterra, de fazer frutificar os seus milhões. Mas tome sempre bem nota que, embora tenha a maior confiança no abade Busoni, pessoalmente não garanto nada.
            - Não importa. Obrigado pelo cliente que me arranjou. Trata-se de um belíssimo nome a inscrever nos meus registros, e o meu tesoureiro, a quem expliquei quem eram os Cavalcanti, ficou todo orgulhoso. A propósito, e isto não passa de um simples pormenor sem importância, quando essa gente casa os filhos
dá-lhes dote?
            - Meu Deus, é conforme! Conheci um príncipe italiano, rico como uma  mina de ouro, um dos primeiros nomes da Toscana, que quando os filhos casavam a seu gosto lhes dava milhões, e quando casavam contra sua vontade se limitava a conceder-lhes uma mesada de trinta escudos por mês. Admitamos que Andrea
casa de acordo com os desejos do pai; talvez este lhe dê um, dois ou três milhões. E se casasse com a filha de um banqueiro, por exemplo, talvez adquirisse uma quota na casa do sogro do filho...
            “ Mas suponha também que a nora lhe desagradava: adeus, minhas encomendas, o pai Cavalcanti pegava na chave do cofre, dava-lhe duas voltas na fechadura e mestre Andrea viria-se obrigado a viver como um filho-família parisiense, marcando cartas ou viciando dados.
            - Esse rapaz encontrará uma princesa bávara ou peruana. Ambicionará uma coroa fechada, um Eldorado atravessado pelo Potosi.
            - Não, todos os grandes senhores do outro lado dos montes casam frequentemente com simples mortais. São como Júpiter, gostam de cruzar as raças. Mas diga-me, meu caro Sr. Danglars: é por pretender casar Andrea que me faz todas essas perguntas?...
            - Confesso - respondeu Danglars - que não me parece má especulação. E eu sou um especulador...
            - Presumo que não seja com Mademoiselle Danglars... – Decerto não quereria ver o pobre Andrea degolado por Albert...
            - Albert? - exclamou Danglars, encolhendo os ombros. Bem se preocuparia ele com isso!
            - Mas, se me não engano, trata-se do noivo da sua filha...
            - Bom, o Sr. de Morcerf e eu falamos algumas vezes desse casamento; mas a Sra de Morcerf e Albert...
            - Decerto não me vai dizer que não é um bom partido...
            - Eh, eh, Mademoiselle Danglars vale bem o Sr. de Morcerf, parece-me!
            - O dote de Mademoiselle Danglars será excelente, com efeito, não duvido disso, sobretudo se o telégrafo não fizer mais novas loucuras.
            - Oh, não se trata apenas do dote? Mas diga-me uma coisa...
            - O quê?
            - Porque não convidou Morcerf e a família para o seu jantar?
            - Também o convidei, mas ele objetou-me com uma viagem a Dieppe com a Sra de Morcerf, a quem recomendaram o ar do mar.
            - Sim, sim - disse Danglars rindo –, deve fazer-lhe bem...
            - Porque diz isso?
            - Porque foi o ar que ela respirou na juventude.
            Monte-Cristo deixou passar o epigrama sem parecer prestar-lhe atenção.
            - Mas enfim - disse o conde –, se Albert não é tão rico como Mademoiselle Danglars, o senhor não pode negar que possui um belo nome.
            - De acordo, mas também gosto do meu - perguntou Danglars.
            - Claro que o seu nome é popular e honrou o título com que se supôs honrá-lo, mas o senhor é um homem suficientemente inteligente para compreender que, de acordo com certos preconceitos excessivamente enraizados para que os extirpem, nobreza de cinco séculos vale mais do que nobreza de vinte anos.
            - E exatamente por isso - respondeu Danglars com um sorriso que procurou tornar sardônico –, é por isso que preferiria o Sr. Andrea Cavalcanti ao Sr. Albert de  Morcerf. 
            - Mas eu supunha que os Morcerfs não ficavam atrás dos Cavalcanti... -  observou Monte-Cristo.
            - Os Morcerfs!... Ouça, meu caro conde - prosseguiu Danglars –, o senhor é um homem de sociedade, não é verdade?
            - Julgo que sim.
            - E, além disso, perito em brasões?
            - Um pouco.
            - Pois então, veja a cor do meu; é mais firme do que a do brasão de Morcerf.
            - Porquê?
            - Porque eu, se não sou barão de nascimento, ao menos chamo-me Danglars.
            - E depois?
            - Ao passo que ele não se chama Morcerf.
            - Como é que não se chama Morcerlf.
            - Nem por sombras.
            - Mas porquê?!
            - A mim, alguém me fez barão e portanto o sou; ele fez-se conde sozinho e portanto não o é.
            - Impossível.
            - Escute, meu caro conde - continuou Danglars. - O Sr. de Morcerf é meu amigo, ou antes, meu conhecido há trinta anos. Eu, como o senhor sabe, não ligo importância ao meu brasão, pois nunca esqueci de onde vim.
            - Prova de uma grande humildade ou de um grande orgulho - comentou Monte-Cristo.
            - Pois bem, quando eu era praticante de escritório, Morcerf era simples pescador.
            - E então chamava-se?...
            - Fernand.
            - Apenas?
            - Fernand Mondego.
            - Tem certeza disso?
            - Ora essa! Vendeu-me peixe mais do que suficiente para que o conheça.
            - Então porque lhes dava a sua filha?
            - Porque Fernand e Danglars não passam de dois novos-ricos, ambos enobrecidos, ambos enriquecidos, que no fundo valem tanto um como outro, exceto no tocante a certas coisas que se disseram dele e que nunca se disseram de mim.
            - O quê?
            - Nada.
            - Ah, sim, compreendo! O que me diz agora refresca-me a memória a propósito do nome de Fernand Mondego. Ouvi pronunciar esse nome na Grécia.
            - A propósito do caso de Ali-Pax ?
            - Exatamente.
            - É aí que reside o mistério - prosseguiu Danglars –, e confesso que daria muito para o descobrir.
            - Não é difícil, se tem muita vontade disso.
            - Como?
            - Sem dúvida tem algum correspondente na Grécia?... 
            - Claro!
            - Em Janina?
            - Tenho-os em toda a parte...
            - Bom, escreva ao seu correspondente em Janina e pergunte-lhe que papel desempenhou na catástrofe de Ali-Tebelin um francês chamado Fernand.
            - Tem razão! - exclamou Danglars, levantando-se vivamente. - Escreverei hoje mesmo!
            - Faça-o.
            - Vou fazê-lo.
            - E se receber alguma notícia muito escandalosa...
            - O Informarei.
            - Me daria muito prazer.
            Danglars correu para fora da sala e num salto alcançou a sua carruagem.


Capítulo LXVII


No gabinete do Procurador régio


            Deixemos o banqueiro retirar-se a todo o galope dos seus cavalos e sigamos a Sra Danglars na sua excursão matinal. Dissemos que ao meio-dia e meia hora a Sra Danglars pedira os seus cavalos e saíra de carruagem. Dirigiu-se para os lados do Arrabalde de Saint-Germain, meteu pela Rua Mazarino e mandou parar na passagem da Ponte Nova.
            Apeou-se e atravessou a passagem. Estava vestida com muita simplicidade, como convém a uma mulher de bom gosto que sai de manhã. Na Rua de Guénegaud meteu-se num fiacre e mandou seguir para
a Rua do Harlay.
            Assim que se instalou na viatura, tirou da bolsa um véu preto muito espesso, que prendeu ao chapéu de palha. Depois, voltou a pôr o chapéu na cabeça e viu com prazer, olhando-se num espelhinho de algibeira, que só se podia ver de si a pele branca e as pupilas cintilantes dos seus olhos.
            O fiacre atravessou a Ponte Nova e entrou pela Praça Dauphine no pátio do Harlay. A Sra Danglars pagou a corrida quando o cocheiro lhe abriu a portinhola, e correu para a escada, que subiu ligeiramente, e não tardou a chegar à Sala dos Passos Perdidos.
            De manhã há muitos julgamentos e ainda mais pessoas afadigadas no palácio da Justiça, e as pessoas atarefadas não olham muito para as mulheres. A Sra Danglars atravessou pois a Sala dos Passos Perdidos sem ser mais notada do que as outras dez mulheres que esperavam os seus advogados.
            Havia muita gente na antecâmara do Sr. de Villefort, mas a Sra Danglars nem sequer necessitou de pronunciar o seu nome. Assim que apareceu, um continuo levantou-se, foi ao seu encontro, perguntou-lhe se era a pessoa a quem o Sr. Procurador régio concedera audiência e, perante a sua resposta afirmativa, conduziu-a por um corredor reservado ao gabinete do Sr. de Villefort. 
            O magistrado escrevia, sentado na sua plataforma, de costas para a porta. Ouviu esta abrir-se, o continuo dizer “Entre, minha senhora!" e a porta voltara a fechar-se, sem fazer um único gesto; mas logo que ouviu diminuir o ruído dos passos do continuo, que se afastava, virou-se vivamente, foi correr os ferrolhos e os reposteiros e examinar lodos os cantos do gabinete.
            Depois, quando adquiriu a certeza de que não podia ser visto nem ouvido e, por consequência, ficou tranquilo, disse:
            - Obrigado, minha senhora; obrigado pela sua pontualidade.
            E ofereceu-lhe uma cadeira, que a Sra Danglars aceitou, porque o coração pulsava-lhe tão fortemente que ela se sentia prestes a sufocar.
            - Há quanto tempo - começou o procurador régio, sentando-se por sua vez e fazendo a poltrona descrever um semicírculo a fim de ficar defronte da Sra Danglars –, há quanto tempo, minha senhora, não tinha a felicidade de conversar a sós consigo. E com meu grande pesar, reencontramo-nos para ter uma
conversa deveras penosa.
            - No entanto, senhor, bem vê que acorri ao seu primeiro chamamento, embora certamente esta conversa seja ainda mais penosa para mim do que para si.
            Villefort sorriu amargamente.
            - É então verdade - prosseguiu, respondendo muito mais ao seu próprio pensamento do que às palavras da Sra Danglars –, é então verdade que todos os nossos atos deixam vestígios, uns sombrios, outros luminosos, no nosso passado! É então verdade que todos os nossos passos nesta vida se assemelham ao passo do réptil na areia e deixam rasto! Infelizmente, para muitos esse rasto, esse sulco, é o das suas lágrimas!
            - Senhor, compreende a minha emoção, não é verdade? - perguntou a Sra Danglars - Poupe-me portanto, suplico-lhe. Este gabinete, por onde tantos culpados têm passado, trêmulos e envergonhados; esta cadeira, onde me sento por minha vez também envergonhada e trêmula... Oh, acredite que necessito de
toda a minha razão para não ver em mim uma mulher culpada e em si um juiz ameaçador.
            Villefort abanou a cabeça e suspirou.
            - E eu - perguntou –, e eu não digo para comigo que o meu lugar não é na poltrona do juiz, mas sim no banco do réu?
            - O senhor? - disse a Sra Danglars, surpreendida.
            - Sim, eu.
            - Creio que da sua parte, senhor, o seu puritanismo exagera a situação - contrapós a Sra Danglars, cujos olhos, tão belos, brilharam fugazmente. - Os sulcos de que acaba de falar foram traçados por todas as juventudes ardentes. No fundo das paixões, para lá do prazer, há sempre um pouco de remorso. É por isso que o Evangelho, esse recurso eterno dos infelizes, nos deu como amparo, a nós, pobres mulheres, a admirável parabola da jovem pecadora e da mulher adúltera. Por isso, confesso-lhe, quando me recordo desses delírios da minha juventude, penso às vezes que Deus nos perdoará, porque se não a desculpa, pelo menos a compensação encontra-se nos meus sofrimentos. Mas o senhor, que tem a temer de tudo isso, se
aos homens todos desculpam e o escândalo os nobilita?
            - Minha senhora - replicou Villefort –, não me conhece. Não sou um hipócrita ou pelo menos não armo em hipócrita sem motivo. Se a minha fronte é severa, isso deve-se às desgraças que a têm assombrado; se o meu coração se petrificou, foi para poder suportar os choques que tem recebido. Não era assim na minha juventude, não era assim na noite de noivado em que estavamos todos sentados à roda de uma mesa na Rua do Cours, em Marselha. Mas depois tudo mudou em mim e à minha volta; a minha vida gastou-se a perseguir coisas difíceis e a quebrar, nas dificuldades, aqueles que voluntária ou involuntariamente, por sua livre vontade ou por acaso, se encontraram colocados no meu caminho para me suscitar essas coisas. É raro que o que desejamos ardentemente não seja defendido com afinco por aqueles de quem o pretendemos obter ou aos quais tentamos arrancá-lo. Assim, a maioria das más ações dos homens vieram ao encontro deles  mascaradas especiosamente de necessidade. Depois da má ação cometida num momento de exaltação, de medo e de delírio, chegamos à conclusão de que poderíamos ter passado por ela e evitado-a. Então, o meio que teria sido conveniente empregar, mas que, cegos como estavamos, não vimos surge-nos diante dos olhos fácil e simples, e dizemos para conosco: “Porque não fiz isto em vez de fazer aquilo?" As senhoras, pelo contrário, muito raramente são atormentadas por remorsos, porque também muito raramente a decisão é sua. As suas desgraças são-lhes quase sempre impostas, as suas faltas são quase sempre o crime dos outros.
            - Em todo o caso - respondeu a Sra Danglars –, admita que, se cometi uma falta, essa falta foi pessoal e por ela fui severamente castigada a noite passada.
            - Pobre mulher! - murmurou Villefort, apertando-lhe a mão.
            – Demasiado severamente para a sua energia, pois por duas vezes esteve quase a sucumbir, e no entanto...
            - O quê?
            - Bom, devo dizer-lhe ... Apele para toda a sua coragem, minha senhora, porque ainda não chegou ao fim.
            - Meu Deus! - exclamou a Sra Danglars, aterrada. - Que mais há ainda?
            - A senhora só vê o passado, e claro que ele é sombrio. Pois imagine um futuro ainda mais sombrio, um futuro... horrível, certamente... e talvez sangrento!
            A baronesa conhecia a calma de Villefort. Por isso, ficou tão apavorada com a sua exaltação que abriu a boca para gritar, mas o grito morreu-lhe na garganta.
            - Como ressuscitou esse passado terrível? - disse Villefort. - Como saiu como um fantasma do fundo da sepultura e do fundo dos nossos corações, onde dormia, para nos fazer empalidecer as faces e corar a fronte?
            - Infelizmente, sem dúvida, por acaso - declarou Hermine.
            - Por acaso! - repetiu Villefort. - Não, não, minha senhora, não se trata de obra do acaso!
            - Claro que trata. Não foi o acaso, fatal é certo, mas de qualquer maneira o acaso, que originou tudo aquilo? Não foi por acaso que o conde de Monte-Cristo comprou aquela casa. Não foi por acaso que mandou cavar a terra? Finalmente não foi por acaso que a infeliz criança foi enterrada debaixo das árvores? Pobre criatura saída de mim, à qual nunca pude dar um beijo, mas a quem tenho dado muitas lágrimas. Ah, todo o meu coração voou ao encontro do conde quando ele falou do querido despojo debaixo das flores!
            - Não, minha senhora, e é isso que tenho de terrível para lhe dizer - perguntou Villefort com a voz estrangulada –; não, não houve despojo encontrado  debaixo das flores; não, não houve criança desenterrada; não, é inútil chorar; não, é inútil gemer, não, o que devemos é tremer!
            - Que quer dizer, senhor? - perguntou a Sra Danglars,  muito agitada.
            - Quero dizer que o Sr. de Monte-Cristo não pode encontrar, ao cavar ao pé das arvores, nem esqueleto de criança, nem ferragem de cofre, porque debaixo das árvores não havia nem um nem outra.
            - Não havia nem um nem outra?! - repetiu a Sra Danglars, cravando no procurador régio uns olhos cujas pupilas, horrivelmente dilatadas, indicavam terror. - Não havia nem um nem outra! - repetiu mais uma vez, como uma pessoa que procura fixar pelo som das palavras e pelo ruído da voz as idéias prestes a fugir-lhe.
            - Não! - insistiu Villefort, deixando cair a fronte nas mãos.
            - Não, cem vezes não!...
            - Mas não foi ali que sepultou a pobre criança, senhor?  Porque me enganou? Com que fim, diga-me!
            - Tem razão. Mas ouça-me, minha senhora, ouça-me, e verá que me lamenta, a mim que trouxe durante vinte anos às costas, sem nunca lhe pedir que carregasse com a mais pequena parte, o fardo de dores de que lhe vou falar.
            - Meu Deus, o senhor assusta-me! Mas não imporia; fale, escuto-o.
            - Sabe o que se passou naquela noite dolorosa em que a senhora expirava no seu leito, naquele quarto de damasco vermelho, enquanto eu, quase tão arquejante como a senhora, esperava que desse à luz. A criança nasceu, foi-me entregue sem movimentos, sem respiração e sem voz, e julgamo-la morta.
            A Sra Danglars fez um gesto rápido, como se quisesse saltar da cadeira. Mas Villefort deteve-a juntando as mãos, como que para lhe implorar atenção.
            - Julgamo-la morta - repetiu. - Meti-a num cofre, que deveria substituir o caixão, desci ao jardim, abri uma cova e enterrei-a precipitadamente. Mal acabara de cobrir a sepultura de terra quando o braço do corso se estendeu para mim. Vi como que uma sombra erguer-se, como que reluzir um relâmpago. Senti uma dor, quis gritar, um arrepio gelado percorreu-me todo o corpo e apertou-me a garganta... Caí moribundo e julguei-me assassinado. Nunca esquecerei a sua coragem sublime quando ao voltar a mim me arrastei, expirando, até ao fundo da escada, onde, expirando também, a senhora veio ao meu encontro. Era necessário ocultar a terrível catástrofe. A senhora teve a coragem de voltar para casa amparada pela sua ama; um duelo foi o pretexto do meu ferimento. Contra toda a expectativa, ninguém revelou o nosso segredo. Transportaram-me para Versalhes; durante três meses estive às portas da morte. Por fim, como parecesse agarrar-me à vida, recomendaram-me o sol e os ares do Meio-Dia. Quatro homens transportaram-me de Paris a Chalon, percorrendo seis léguas por dia. A Sra de Villefort acompanhava a maca na sua carruagem. Em Chalon puseram-me no Sena, depois passei para o Rôdano e, levado apenas pela velocidade da corrente, desci até  Arles. Em Arles retomei a maca e continuei o meu caminho para Marselha. A minha convalescença durou seis meses. Nunca mais ouvira falar da senhora e não me atrevia a perguntar o que lhe acontecera. Quando regressei a Paris, soube que, viúva do Sr. Nargonne, casara com o Sr. Danglars.
            "Em que pensei depois de recuperar os sentidos? Pensava sempre na mesma coisa, sempre naquele cadáver de criança, que todas as noites, nos meus sonhos, saía do seio da terra e pairava por cima da cova, ameaçando-me com a vista e com o gesto. Por isso, assim que regressei a Paris informei-me. A casa não voltara a ser habitada desde que a deixamos, mas acabava de ser alugada por nove anos. Procurei o
locatário, fingi ter um grande desejo de não ver passar a mãos estranhas aquela casa que pertencia ao pai e à mãe da minha mulher e ofereci uma indenização pela renúncia ao arrendamento. Pediram-me seis mil francos, mas eu daria dez mil, daria vinte mil. Como trazia o dinheiro comigo, fiz o inquilino assinar imediatamente a rescisão. Depois, logo que me encontrei de posse desse documento tão desejado, parti a
galope para Auteuil. Ninguém, desde que eu de lá saíra, entrara naquela casa.
            " Eram cinco horas da tarde. Subi ao quarto vermelho e esperei pela noite.
            "Ali, tudo o que dizia a mim próprio havia um ano, na minha agonia contínua, me veio à idéia de forma muito mais ameaçadora do que nunca.
            "Aquele corso que me declarara a vendetta e me seguira de Nimes a Paris; aquele corso, que se encontrava escondido no jardim e me ferira, vira-me abrir a cova, vira-me enterrar a criança e poderia acabar por descobrir quem era a senhora. Talvez até  já a conhecesse... Não a faria pagar um dia o segredo do terrível acontecimento?... Não seria isso para ele uma, agrável vingança, quando soubesse que eu não morrera da sua punhalada? Era portanto urgente que antes de mais nada, e acontecesse o que acontecesse, fizesse desaparecer os vestígios do passado, destruísse todo e qualquer rastro material, embora na minha memória a realidade permanecesse sempre demasiado viva.
            "Fora para isso que rescindira o arrendamento, fora para isso que viera, era para isso que esperava.
            " Anoiteceu, mas esperei até  que a noite ficasse bem escura. Não tinha luz no quarto, onde as rajadas de vento faziam tremer os reposteiros atrás dos quais julgava sempre ver algum espião emboscado. De vez enquando estremecia e parecia-me ouvir atrás de mim, na cama, os seus gemidos, minha senhora, mas não ousava voltar-me. O meu coração pulsava no meio do silêncio e sentia-o bater tão violentamente que cheguei a pensar que o meu ferimento se reabrisse. Por fim, ouvi extinguirem-se um após outro todos os diversos ruídos do campo. Compreendi que já não tinha nada a temer, que não poderia ser visto nem ouvido, e decidi-me a descer.
            "Ouça, Hermine, considero-me tão corajoso como qualquer outro homem, mas quando retirei do peito a chavinha da escada, aquela chavinha a que os dois tanto queríamos e que a senhora mandara prender a uma argola de ouro; quando abri a porta e vi através das janelas uma lua pálida lançar sobre os degraus em
espiral uma comprida faixa de luz branca semelhante a um fantasma, agarrei-me à parede e estive prestes a gritar. Tinha a sensação de enlouquecer.
            "Por fim consegui dominar-me e desci a escada degrau a degrau. A única coisa que não conseguira vencer era uma estranha tremura nos joelhos. Agarrei-me ao corrimão; se o largasse, por um instante que fosse, me precipitaria por ali abaixo.
            "Cheguei à porta do jardim. Da parte de fora, encostada à parede, estava uma enxada. Munira-me de uma lanterna de furta-fogo. No meio do relvado parei para a acender e depois continuei o meu caminho.
            "Novembro eslava prestes a terminar, toda a verdura do jardim desaparecera, as árvores não eram mais do que esqueletos de compridos braços descarnados e as tolhas mortas rangiam com o saibro debaixo dos meus pés. 
            "O terror apertava-me tão fortemente o coração que ao aproximar-se do maciço tirei uma pistola da algibeira e destravei-a. Julgava sempre ver aparecer através dos ramos a cara do corso.
            "iluminei o maciço com a minha lanterna de furta-fogo; estava vazio. Olhei em redor de mim e verifiquei que me encontrava sozinho. Nenhum ruído perturbava o silêncio da noite, exceto o canto de uma coruja, que emitia o seu pio agudo e lúgubre como um chamamento aos fantasmas da noite.
            "Pendurei a lanterna num ramo em forma de forquilha, em que já reparara um ano antes, no próprio local onde me detivera para abrir a cova.
            "Durante o Verão, a erva crescera ali bem espessa, e chegado o Outono ninguém houvera na casa para a apanhar. No entanto, um lugar menos guarnecido chamou-me a atenção. Era evidente que fora ali que eu revolvera a terra. Deitei mãos à obra.
            "Chegara portanto o momento por que esperara mais de um ano!
            "Como confiava, como trabalhava, como sondava cada tufo de relva, julgando sentir resistência na ponta da enxada! Mas nada. E contudo abri um buraco duas vezes maior do que o primeiro. Julguei ter-me enganado no lugar. Orientei-me, observei as árvores, procurei reconhecer os pormenores que me tinham impressionado. Soprava uma brisa fria e cortante através dos ramos nus e no entanto o suor escorria-me da
testa. Lembrei-me de que recebera a punhalada no momento em que calcava a terra para tapar a cova; para isso, apoiava-me numa giesteira. Atrás de mim havia um rochedo artificial destinado a servir de banco aos passeantes. Ao cair, depois de largar a giesteira, a minha mão sentira a frescura da pedra. À minha direita encontrava-se a giesteira e atrás de mim o rochedo. deixei-me cair do mesmo modo, levantei-me e pus-me a
aprofundar e alargar a cova. Nada! Sempre nada! O cofre não estava ali.
            - O cofre não estava ali? - murmurou a Sra Danglars, sufocada de pavor.
            - Não julgue que me limitei àquela tentativa - continuou Villefort. Não. Revistei todo o maciço. Pensei que o assassino tivesse desenterrado o cofre julgando tratar-se de um tesouro, e que, resolvido a apoderar-se dele, o tivesse levado. Depois, descobrindo o seu erro, abrira por sua vez uma cova, onde o depositara. Nada! Em seguida assaltou-me a idéia de que não tomara tantas precauções e o atirara pura e simplesmente para um canto. Nesta última hipótese, tinha de esperar que amanhecesse para proceder às minhas buscas. Subi ao quarto e esperei.
            - Oh, meu Deus!
            - Quando amanheceu, desci de novo. A minha primeira visita foi ao maciço; esperava encontrar nele vestígios que me tivessem escapado na escuridão. Revolvera a terra numa superfície de mais de vinte pés quadrados e numa profundidade de mais de dois pés. Um dia de trabalho mal chegaria a um assalariado
para fazer o que eu fizera numa hora. Nada, não vi absolutamente nada.
            "Então, pus-me a procurar o cofre, partindo da suposição de ter sido atirado para qualquer canto. Sendo assim, devia estar no caminho que levava à portinha de saída. Mas a nova investigação foi tão inútil como a primeira e, de coração opresso, voltei ao maciço, que por si próprio já me não alimentava qualquer esperança.
            - Oh, era caso para enlouquecer! - exclamou a Sra Danglars.
            - Por um instante pensei que isso me acontecesse, mas não tive essa sorte. Entretanto, apelando para a minha energia e por consequência para as minhas idéias, perguntei a mim mesmo:
            “Porque teria o homem levado o cadáver?"
            - O senhor já o disse: para ter uma prova - lembrou a Sra Danglars.
            - Não, não, minha senhora, já não podia ser isso. Ninguém guarda um cadáver durante um ano; mostra-o a um magistrado e faz o seu depoimento. Ora nada semelhante acontecera.
            - Bom, e então?... - perguntou Hermine toda palpitante.
            - Então, tratava-se de qualquer coisa mais terrível, mais fatal, mais assustadora para nós: a criança estava talvez viva e o assassino salvara-a.
            A Sra Danglars soltou um grito terrível e agarrou as mãos de Villefort.
            - O meu filho estava vivo! O senhor enterrou o meu filho vivo! Garantira-me que o meu filho estava morto e enterrou-o... Oh!
            A Sra Danglars levantara-se e mantinha-se de pé e quase ameaçadora diante do procurador régio, cujos pulsos apertava com as mãos delicadas.
            - Que queria que lhe dissesse? Disse-lhe isso como lhe poderia dizer outra coisa - perguntou Villefort com uma fixidez de olhar indicadora de que aquele homem tão poderoso estava prestes a atingir os limites do desespero e da loucura.
            - Ah, meu filho, meu pobre filho! - gritou a baronesa, caindo de novo na cadeira e abafando os soluços com o lenço.
            Villefort caiu em si e compreendeu que para desviar a tempestade materna que se acumulava sobre a sua cabeça era necessário que a Sra Danglars se recompusesse do terror que ele próprio experimentava.
            - Como deve compreender, se o caso é assim, estamos perdidos - disse, levantando-se por seu turno e aproximando-se da baronesa para lhe falar em voz mais baixa. - Essa criança vive, alguém sabe que vive, alguém possui o nosso segredo. E uma vez que Monte-Cristo fala diante de nós de uma criança desenterrada de um local onde essa criança já não existia, quem está de posse do segredo é ele.
            - Deus, Deus justo, Deus vingador! - murmurou a Sra Danglars.
            Em resposta, Villefort limitou-se a soltar uma espécie de rugido.
            - Mas e essa criança, essa criança, senhor? - insistiu a mãe, obstinada.
            - Oh, o que a procurei! - respondeu Villefort, torcendo os braços. - Quantas vezes a chamei nas minhas longas noites sem sono! Quantas vezes desejei possuir uma riqueza real para comprar um milhão de segredos a um milhão de homens e encontrar o meu segredo entre os deles! Enfim, um dia em que pela centésima vez pegava na enxada, perguntei a mim mesmo também pela centésima vez que teria o corso feito da criança. Uma criança estorva um fugitivo... Talvez notasse que ainda estava viva e a tivesse atirado ao rio.
            - Oh, impossível! - exclamou a Sra Danglars. - Assassina-se um homem por vingança, mas não se afoga a sangue-frio uma criança!
            - Talvez a tivesse entregado às Crianças Expostas... - acrescentou Villefort.
            - Oh, sim, sim! - exclamou a baronesa. - O meu filho está aí, senhor!
            - Corri ao hospício e soube que naquela mesma noite de 20 de Setembro fora depositada uma criança na roda. Tal criança estava envolta em metade de  uma toalha de pano fino, intencionalmente rasgada. Essa metade da toalha tinha metade de uma coroa de barão e a leira H.
            - É isso, é isso! - gritou a Sra Danglars. - Toda a minha roupa está marcada assim! O Sr. de Nargonne era barão e eu chamo-me Hermine. Obrigada, meu Deus! O meu filho não estava morto!
            - Não, não estava morto!
            - E o senhor diz-me isso... diz-me isso sem receio de me fazer morrer de alegria! Onde está ele? Onde está o meu filho?
            Villefort encolheu os ombros.
            - Como quer que saiba? E julga que se o soubesse a faria passar por todas estas gradações, como o faria um dramaturgo ou um romancista? Não, infelizmente não sei. Quando contava cerca de seis meses, uma mulher foi reclamar a criança com a outra metade da toalha. Essa mulher deu todas as garantias que a lei exigia e por isso a entregaram.
            - Mas devia ter-se informado acerca dessa mulher, devia tê-la procurado...
            - E que julga que fiz, minha senhora? Simulei uma instrução criminal e mandei procurá-la pelos mais finos agentes secretos e pelos mais hábeis detetives da Polícia. Encontraram-lhe a pista até  Chalon; ai perderam-na.
            - Perderam-na?...
            - Sim, perderam-na; perderam-na para sempre.
            A Sra Danglars escutara o relato soltando de vez em quando um suspiro, deixando correr uma lágrima ou emitindo um grito, conforme as circunstâncias.
            - É tudo? - perguntou. - O senhor limitou-se a isso?
            - Oh, não! - protestou Villefort. - Nunca deixei de procurar, de investigar, de me informar. No entanto, há dois ou três anos descansei um pouco. Mas agora vou recomeçar com mais perseverança e encarniçamento do que nunca. E vencerei, pode ter a certeza; porque já não é a consciência que me impele, é o medo.
            - Mas o conde de Monte-Cristo não sabe de nada - declarou a Sra Danglars. - De contrário, parece-me que não nos procuraria como nos procurou.
            - Oh, a maldade dos homens é muito grande! - sentenciou Villefort. - Muito maior do que a bondade de Deus. Reparou nos olhos desse homem enquanto nos falava?
            - Não.
            - Mas observou-o atentamente algumas vezes?
            - Sem dúvida. É estranho, mas mais nada. Houve só uma coisa que me impressionou: de toda a requintada refeição que nos serviu não tocou em nada, não se serviu de nenhum prato.
            - Tem razão, tem razão! - disse Villefort. - Também notei isso. Se soubesse o que sei agora, teria feito o mesmo, não tocaria em nada. Julgaria que nos queria envenenar.
            - E teria enganado, bem vê.
            - Sim, sem dúvida. Mas acredite no que lhe digo: esse homem tem outros projetos. Por isso quis vê-la, por isso desejei falar consigo, por isso quis precavê-la contra todose, mas sobretudo contra ele. Diga-me - continuou Villefort, cravando ainda mais profundamente do que até  ali os olhos na baronesa –, não falou da nossa ligação a ninguém?
            - Nunca, a ninguém. 
            - Compreende o que quero dizer – prosseguiu afetuosamente Villefort –, quando digo a ninguém, perdoe-me a insistência, retiro-me a ninguém no mundo, percebe?
            - Oh, sim, sim, compreendo perfeitamente! – respondeu a baronesa, corando. - Nunca! Juro-lhe.
            - Já não tem o hábito de escrever à noite o que se passou durante o dia? Não tem diário?
            - Não. Infelizmente, a minha vida passa levada pela frivolidade. Eu própria a esqueço.
            - Não sonha em voz alta, que saiba?
            - Durmo como uma criança. Não se lembra?...
            A púrpura subiu ao rosto da baronesa e o medo invadiu o de Villefort.
            - É verdade - disse ele, tão baixo que mal se ouviu.
            - E agora? - perguntou a baronesa.
            - Agora? Já sei o que devo fazer - declarou Villefort. - Dentro de oito dias, saberei quem é o Sr. de Monte-Cristo, de onde vem, para onde vai e por que motivo fala diante de nós de crianças desenterradas no seu jardim.
            Villefort proferiu estas palavras num tom que faria tremer o conde se as pudesse ouvir.
            Depois apertou a mão que a baronesa hesitava em estender-lhe e acompanhou-a respeitosamente à porta.
            A Sra Danglars tomou outro fiacre, que a levou à passagem, do outro lado da qual encontrou a sua carruagem e o seu cocheiro, que, enquanto esperava, dormia calmamente no seu lugar.


Capítulo LXVIII

Um baile de verão


            No mesmo dia, mais ou menos à mesma hora em que a Sra Danglars tinha o encontro a que nos referimos no gabinete do Sr. Procurador régio, uma caleça de viagem entrava na Rua do Helder, transpunha a porta nº  27 e parava no pátio. Pouco depois a portinhola abriu-se e a Sra de Morcerf apeou-se apoiada no braço do filho.
            Assim que Albert acompanhou a mãe aos seus aposentos, pediu um banho e os seus cavalos, entregou-se nas mãos do seu criado de quarto e em seguida fez-se conduzir aos Campos Elísios, a casa
do conde de Monte-Cristo.
            O conde recebeu-o com o seu sorriso habitual. Coisa estranha: nunca ninguém parecia avançar um passo no coração ou no espirito daquele homem. Os que queriam, se assim se pode dizer, forçar a passagem da sua intimidade deparavam com uma parede.
            Morcerf, que corria para ele de braços abertos, deixou-os cair ao vê-lo, apesar do seu sorriso amistoso, e ousou, quando muito, estender-lhe a mão. Pela sua parte, Monte-Cristo tocou-lhe nela, como fazia sempre, mas sem a apertar. 
            - Pronto, aqui me tem, meu caro conde - disse Albert.
            - Seja bem-vindo.
            - Cheguei há uma hora.
            - De Dieppe?
            - Do Tréport.
            - Ah, é verdade!
            - E a minha primeira visita é para o senhor.
            - É amável da sua parte - disse Monte-Cristo, como diria qualquer outra coisa.
            - Então, que notícias me dá?
            - Notícias?... Pede notícias a mim, um estrangeiro?
            - Eu explico-me: quando pergunto que notícias, quero dizer se o senhor fez qualquer coisa por mim...
            - Tinha-me encarregado de alguma incumbência? - perguntou Monte-Cristo, simulando inquietação.
            - Então, então, não simule indiferença? - exclamou Albert. 
            - Dizem que existem avisos simpáticos que transpõem a distância. Pois bem, no Tréport recebi o meu choque elétrico: o senhor, se não trabalhou para mim, pensou pelo menos em mim.
            - É possível - admitiu Monte-Cristo. - De fato, pensei em si; mas a corrente magnética de que era o condutor atuava, confesso, independentemente da minha vontade.
            - Deveras? Conte-me isso. Peço-lhe.
            - É fácil. O Sr. Danglars jantou em minha casa.
            - Bem sei, pois foi para fugir à sua presença que partimos, a minha mãe e eu. - Mas jantou com o Sr. Andrea Cavalcanti.
            - O seu príncipe italiano?
            - Não exageremos. O Sr. Andrea usa apenas o título de visconde.
            - Usa, diz o senhor?
            - Digo: usa.
            - Não o é, portanto?
            - Sei lá! Ele usa-o, eu dou-lhe, todos o dão... Não é como se tivesse?
            - Que homem estranho o senhor me saiu! E depois?
            - E depois o quê?
            - Portanto, o Sr. Danglars jantou na sua casa?
            - Jantou.
            - Com o seu visconde Andrea Cavalcanti?
            - Com o visconde Andrea Cavalcanti, o marquês seu pai, a Sra Danglars, o Sr. e a Sra de Villefort, pessoas encantadoras, o Sr. Debray, Maximilien Morrel e ainda...  espere... Ah, o Sr. de Château-Renaud!
            - Falaram de mim?
            - Nem uma palavra.
            - Tanto pior.
            - Porquê? Se o esqueceram, parece-me que, procedendo assim, fizeram apenas o que o senhor desejava...
            - Meu caro conde, se ninguém falou de mim foi porque pensaram muito na minha pessoa, o que me deixa desesperado.
            - Que lhe interessa isso, se Mademoiselle Danglars não foi uma das pessoas  que pensaram em si em minha casa? Verdade seja que podia pensar em casa dela...
            - Oh, quanto a isso não, tenho a certeza! Ou se pensasse seria certamente da mesma maneira que penso nela.
            - Comovente simpatia! - comentou o conde. - Então detestam-se?
            - Escute - pediu Morcerf. - Se Mademoiselle Danglars fosse mulher que se compadecesse do mártir que não está disposto a sofrer por ela e me quisesse recompensar disso à margem das convenções matrimoniais estabelecidas entre as nossas duas famílias, seria maravilhoso. Em resumo, creio que  Mademoiselle Danglars daria uma amante encantadora, mas como esposa, diabo...
            - É assim que encara o seu futuro? - perguntou Monte-Cristo, rindo.
            - Meu Deus, é! De forma um pouco brutal, confesso, mas pelo menos verdadeira. Ora, como não é possível transformar este sonho em realidade; como para chegar a determinado fim, é indispensável que Mademoiselle Danglars seja minha mulher, isto é, que viva comigo, que pense junto de mim, que cante ao
pé de mim, que escreva versos e música a dez passos de mim, e isso durante toda a minha vida, apavora-me. Uma amante, meu caro conde, deixa-se; mas uma mulher, com a breca, é outra coisa! Conserva-se eternamente, perto ou longe. Ora, é horrível ter de conservar sempre Mademoiselle Danglars, mesmo
longe.
            - O senhor é muito exigente, visconde.
            - Pois sou, porque muitas vezes penso numa coisa impossível.
            - Qual?
            - Encontrar para mim uma mulher como o meu pai encontrou uma para ele.
            Monte-Cristo empalideceu e fitou Albert, sem deixar de brincar com umas pistolas magníficas cuja fecharia percutia rapidamente.
            - O seu pai tem sido portanto muito feliz? - perguntou.
            - Sabe a minha opinião acerca de minha mãe, Sr. Conde: um anjo do Céu. Vejo-a ainda bonita, espiritual, cada vez melhor do que nunca. Venho de Tréport; para qualquer outro filho, meu Deus, acompanhar a mãe seria uma condescendência ou um frete! Pois eu passei quatro dias a conversar com ela, mais satisfeito, mais repousado e confesso-lhe que mais poético até  do que se tivesse levado para Tréport a rainha Mab ou Titânia.
            - Trata-se de uma perfeição invulgar e com isso o senhor dá a todos aqueles que o ouvem enormes desejos de ficar solteiros.
            - É precisamente por saber que existe no mundo uma mulher perfeita que não tenho pressa de casar com Mademoiselle Danglars. já notou alguma vez como o nosso egoísmo reveste de cores brilhantes tudo o que nos pertence? O diamante que cintilava na montra de Marlé ou Fossin torna-se muito mais belo desde que é o nosso diamante; mas se a evidência nos força a reconhecer que existem diamantes de uma água mais pura e somos obrigados a usar eternamente esse diamante inferior a outro, compreende o sofrimento?
            - Mundano! - murmurou o conde.
            - Aí está porque saltarei de alegria no dia em que Mademoiselle Eugênie descubra que não passo de um mísero átomo e que com dificuldade possuo tantas centenas de milhares de francos como ela possui milhões.
            Monte-Cristo sorriu.
            - Tinha pensado noutra coisa - continuou Albert. - Franz aprecia as excentricidades e, mal-grado seu, procurei que se apaixonasse por Mademoiselle  Danglars. Mas a quatro cartas que lhe escrevi no estilo mais sedutor, Franz respondeu-me imperturbavelmente: “Sou excêntrico, é verdade, mas a minha excentricidade não vai ao ponto de retirar a minha palavra depois de a dar."
            - Ora aí está o que chamo a dedicação da amizade: dar a outro a mulher que para nós mesmos só queríamos como amante?
            Albert sorriu.
            - A propósito - prosseguiu -, o caro Franz vem aí. Mas a notícia pouco lhe interessa, creio. O senhor não gostava dele, pois não?
            - Eu? - perguntou Monte-Cristo. - Meu caro visconde, onde descobriu que eu não gostava do Sr Franz? Gosto de todas as pessoas.
            - E eu estou incluído no “todas as pessoas"... Obrigado.
            - Não confundamos - defendeu-se Monte-Cristo. - Gosto de todas as pessoas da maneira que Deus nos ordena que amemos o próximo, cristãmente; mas só estimo realmente certas pessoas. Voltemos ao Sr. Franz de Epinay. Diz que vem aí?
            - Exato. Mandado chamar pelo Sr. de Villefort, tão empenhado, ao que parece, em casar Mademoiselle Valentine como o Sr. Danglars em casar Mademoiselle Eugênie.  Decididamente, parece tratar-se de um estado dos mais fatigantes ser pai de filhas crescidas. Afigura-se que ficam febris e que o pulso lhes bate à razão de noventa pulsações por minuto enquanto se não vêem livres delas.
            - Mas o Sr. de Epinay não se parece consigo; aceita a sua cruz com paciência.
            - Mais do que isso, toma-a a sério. Usa gravatas brancas e fala já da sua família. De resto, tem uma grande consideração pelos Villeforts.
            - Merecida, não é verdade?
            - Creio que sim. O Sr. de Villefort sempre foi considerado um homem severo, mas justo.
            - Até que enfim! - exclamou Monte-Cristo. - Haja ao menos um que o senhor não trate como o pobre Sr. Danglars!...
            - Talvez isso se deva ao fato de não ser obrigado a casar com a sua filha - respondeu Albert, rindo.
            - Na verdade, meu caro senhor, acho-o de uma fatuidade revoltante - declarou Monte-Cristo.
            - Eu?
            - Sim, o senhor. Mas tome um charuto.
            - Com muito prazer. E por que motivo sou fátuo?
            - Porque está para ai a defender-se, a debater-se para não casar com Mademoiselle Danglars. Meu Deus, deixe as coisas correrem e talvez não seja o primeiro a retirar a sua palavra!
            - Ora, ora! - exclamou Albert, de olhos muito abertos.
            - Que diabo, Sr. Visconde, no fim de contas decerto ninguém lhe porá a corda ao pescoço! Falemos seriamente - prosseguiu Monte-Cristo mudando de intonação –apetece-lhe romper?
            - Daria cem mil francos para isso.
            - Pronto, seja feliz: o Sr. Danglars está disposto a dar o dobro para atingir o mesmo fim. 
            - Isso é verdade, essa sorte? - perguntou Albert, que, no entanto, ao proferir estas palavras, não pode evitar que uma sombra imperceptível lhe passasse pela fronte. - Mas, meu caro conde, o Sr. Danglars tem motivos para isso?
            - Ora aí está, natureza orgulhosa e egoísta! Até  que enfim encontro o homem que quer destruir o amor-próprio de outrem à machadada, mas que protesta quando lhe picam o seu com uma agulha!
            - Não! Mas é que me parece que o Sr. Danglars...
            - Deveria estar encantado com o senhor, não é? Pois bem, o Sr. Danglars é um homem de mau gosto, como se sabe, e está ainda mais encantado com outro...
            - Com quem?
            - Não sei. Examine, observe, procure ouvir as alusões à passagem dele e tire disso o melhor partido que puder.
            - Compreendo. Ouça, a minha mãe... Não, estou enganado, não foi a minha mãe! O meu pai teve a idéia de dar um baile...
            - Um baile nesta altura do ano?
            - Os bailes de Verão estão na moda.
            - Se não estivessem, bastaria a condessa querer para estarem.
            - Talvez. Compreende, são bailes “puro-sangue". Aqueles que ficam em Paris em Julho são verdadeiros parisienses. Quer encarregar-se de um convite para os Srs. Cavalcanti?
            - Daqui a quantos dias se realiza o seu baile?
            - No sábado.
            - Já o Sr. Cavalcanti pai terá partido.
            - Mas o Sr. Cavalcanti filho fica. Quer se encarregar de levár o Sr. Cavalcanti filho?
            - Ouça, visconde, eu não o conheço...
            - Não o conhece?
            - Não. Vi-o pela primeira vez há três ou quatro dias e não respondo por ele em nada.
            - Mas o senhor recebe-o bem!
            - Comigo é outra coisa. Foi-me recomendado por um excelente abade, que no entanto pode muito bem ter sido ele próprio enganado. Convide-o diretamente, se quiser, mas não me peça que lhe apresente. Se mais tarde casasse com Mademoiselle Danglars, o senhor me acusaria de manejos e quereria bater-se
comigo. De resto, não sei se eu mesmo irei.
            - Aonde?
            - Ao seu baile.
            - Porque não iria?
            - Primeiro porque o senhor ainda me não convidou...
            - Vim aqui  de propósito trazer-lhe pessoalmente o seu convite.
            - Oh, que amabilidade! Mas posso ter qualquer impedimento.
            - Quando lhe disser uma coisa, creio que será suficiente amável para nos sacrificar todos os impedimentos.
            - Diga.
            - A minha mãe pede-lhe que vá.
            - A Sra Condessa de Morcerf? - perguntou Monte-Cristo, estremecendo.
            - Ah, conde - disse Albert –, previno-o de que a Sra de Morcerf conversa livremente comigo! E se o senhor não sentiu ainda vibrar em si as fibras simpáticas de que lhe falava há pouco, é porque essas fibras lhe faltam completamente, pois durante quatro dias só falamos do senhor.
            - De mim? Na verdade, confunde-me!
            - Privilégio do seu comportamento. Quando se é um problema vivo...
            - Ah! Sou portanto também um problema para a sua mãe?... Para ser franco, julgava-a demasiado sensata para se dedicar a semelhantes fantasias!
            - Problema, meu caro conde, problema para todos, tanto para a minha mãe como para os outros; problema aceito, mas não adivinhado, pois o senhor continua a ser um enigma. Tranquilize-se: a minha mãe apenas se interroga constantemente como é possível que o senhor seja tão novo. Creio que no fundo, enquanto a condessa G... o toma por Lorde Ruthwen, a minha mãe toma-o por Cagliostro ou pelo conde de
Saint-Germain. A primeira vez que vir a Sra de Morcerf, confirme-lhe essa opinião. Não lhe será difícil, pois possui a pedra filosofal de um e o espirito do outro.
            - Agradeço-lhe ter-me prevenido - perguntou o conde, sorrindo. - Procurarei pôr-me em condições de enfrentar todas as hipóteses.
            - Portanto, irá no sábado?
            - Se a Sra de Morcerf me pede...
            - É muito amável.
            - E o Sr. Danglars?
            - Oh, já recebeu o triplo convite! O meu pai encarregou-se disso. Procuraremos ter também o grande Aguesseau, ou seja, o Sr. de Villefort, mas duvido.
            - Nunca se deve duvidar de nada, diz o provérbio.
            - Dança, caro conde?
            - Eu?
            - O senhor, sim. Que haveria de surpreendente se dançasse?
            - Com efeito, enquanto se não passa dos quarenta... Não, não danço; mas gosto de ver dançar. E a Sra de Morcerf dança?
            - Também não, nunca. Conversarão. Ela tem tanta vontade de conversar consigo!
            - Deveras?
            - Palavra de honra! E declaro-lhe que o senhor é o primeiro homem por quem a minha mãe manifestou tal curiosidade.
            Albert pegou no chapéu e levantou-se. O conde acompanhou-o até  à porta.
            - Tenho de me penitenciar - disse Monte-Cristo, detendo Albert no alto da escadaria.
            - De quê?
            - Fui indiscreto, não lhe devia ter falado do Sr. Danglars.
            - Pelo contrário, fale-me mais, fale-me muitas vezes, fale-me sempre. Mas da mesma forma...
            - Bom, tranquiliza-me! A propósito, quando chega o Sr. Epinay?
            - Daqui a cinco ou seis dias, o mais tardar.
            - E quando se casa?
            - Logo após a chegada do Sr. e da Sra de Saint-Méran.
            - Traga-o quando estiver em Paris. Embora o senhor pretenda que não gosto dele, declaro-lhe que terei prazer em vê-lo. 
            - Muito bem, as suas ordens serão cumpridas, senhor.
            - Até  breve!
            - Até sábado, pelo menos, claro, não é verdade?
            - Ora essa! A palavra está dada.
            O conde seguiu Albert com a vista, acenando-lhe com a mão. Depois dele subir para o seu faeton, virou-se e deparou com Bertuccio atrás de si.
            - Então? - perguntou.
            - Foi ao palácio da Justiça - respondeu o intendente.
            - Esteve lá muito tempo?
            - Hora e meia.
            - E depois regressou para casa?
            - Diretamente.
            - Muito bem! Agora, meu caro Sr. Bertuccio - acrescentou o conde -, se quer um conselho, vá ver se encontra na Normandia o bocadinho de terra de que lhe falei.
            Bertuccio inclinou-se, e como os seus desejos estavam perfeitamente de acordo com a ordem recebida, partiu naquela mesma tarde.


Capítulo LXIX

As informações


            O Sr. de Villefort cumpriu a palavra que dera à Sra Danglars, e sobretudo a si mesmo, e procurou saber de que forma o Sr. Conde de Monte-Cristo conseguira descobrir a história da casa de Auteuil.
            Escreveu no mesmo dia a um tal Sr. de Boville, que, depois de ter sido noutros tempos inspetor das prisões, fora colocado num alto posto da Polícia de Segurança. Pediu-lhe que lhe desse as informações que desejava e Boville solicitou-lhe dois dias para saber ao certo junto de quem se poderia informar.
            Passados esses dois dias, o Sr. de Villefort recebeu a seguinte nota:
            A pessoa chamada conde de Monte-Cristo é conhecida especialmente de Lorde Wilmore, rico estrangeiro que é visto algumas vezes em Paris, onde se encontra neste momento. É igualmente conhecida do abade Busoni, padre siciliano de grande reputação no Oriente, onde tem feito muito boas obras.
            O Sr. de Villefort respondeu ordenando que tirassem acerca desses dois estrangeiros as informações mais rápidas e rigorosas. No dia seguinte à tarde as suas ordens estavam cumpridas. Eis as informações que recebeu:
            O abade, que se encontrava havia apenas um mês em Paris, residia atrás da Igreja de S. Suipício numa casinha composta unicamente de térreo e primeiro andar: quatro divisões, duas em cima e duas em baixo, constituíam toda a habitação, onde morava sozinho. 
            As duas divisões do térreo eram uma sala de jantar com mesa, cadeiras e aparador de nogueira e uma sala forrada de madeira pintada de branco, sem ornamentos, tapetes e relógio de sala. Via-se que pessoalmente o abade se limitava aos objetos estritamente necessários.
            Verdade seja que o abade ocupava de preferência a sala do primeiro andar. Essa sala, repleta de livros de teologia e pergaminhos, no meio dos quais passava, dizia o seu criado de quarto, meses inteiros, era na realidade menos uma sala do que uma biblioteca.
            O criado observava os visitantes através de uma espécie de postigo e quando a seu rosto lhe era desconhecida ou não lhe agradava, respondia que o Sr. Abade se não encontrava em Paris, com o que muita gente se contentava, pois sabia-se que o abade viajava frequentemente e ficava às vezes muito tempo
ausente.
            De resto, quer estivesse em casa, quer não estivesse, quer se encontrasse em Paris, quer se encontrasse no Cairo, o abade dava sempre e o postigo servia de roda às esmolas que o criado distribuía incessantemente em nome do seu amo.
            A outra divisão, situada ao pé da biblioteca, era um quarto de dormir. Uma cama sem cortinados, quatro cadeiras e um canapé de veludo-de-utreque amarelo formavam, com um genuflexório, todo o seu mobiliário.
            Quanto a Lorde Wilmore, residia da Rua Fontaine-Saint-Georges. Era um desses turistas ingleses que
gastam toda a sua fortuna em viagens. Alugara mobilado o apartamento em que morava, no qual passava apenas duas ou três horas por dia e onde raramente dormia. Uma das suas manias era recusar-se terminantemente a falar a língua francesa, que no entanto escrevia, afirmava-se, com muita pureza.
            No dia seguinte àquele em que estas preciosas informações chegaram às mãos do Sr. Procurador régio, um homem que se apeara de uma carruagem à esquina da Rua Férou foi bater a uma porta pintada de verde-azeitona e perguntou pelo abade Busoni.
            - O Sr. Abade saiu logo de manhãzinha - respondeu o criado.
            - Poderia não me contentar com essa resposta - perguntou o visitante –, porque venho da parte de uma pessoa para quem todos sempre estão em casa. Mas queira entregar ao abade Busoni...
            - Já lhe disse que não está - repetiu o criado.
            - Então, quando voltar, entregue-lhe este cartão e esta carta. O Sr. Abade estará em casa às oito horas, esta noite?
            - Com certeza, senhor, a menos que o Sr. Abade trabalhe, porque então é como se tivesse saído.
            - Voltarei portanto esta noite, à hora indicada - disse o visitante.
            E retirou-se.
            Com efeito, à hora indicada o mesmo homem voltou na mesma carruagem, que, desta vez, em lugar de parar à esquina da Rua Férou, se deteve diante da porta verde. Bateu, abriram e entrou.
            Pelos sinais de respeito de que o criado foi pródigo para com ele, compreendeu que a sua carta produzira o efeito desejado.
            - O Sr. Abade está em casa? - perguntou?
            - Está. Trabalha na sua biblioteca, mas vai atender o senhor - respondeu o criado.
            O desconhecido subiu uma escada bastante íngreme e, diante de uma secretária cujo tampo estava inundado da luz que concentrava um grande quebra-luz, enquanto o resto da sala ficava na sombra, viu o abade, em vestes eclesiásticas e com a cabeça coberta por um desses capuzes com que ocultavam o
crânio os pretensos sábios da Idade Média.
            - É ao Sr Busoni que tenho a honra de falar? - perguntou o visitante.
            - Sim, senhor - respondeu o abade. - E o senhor é a pessoa que o Sr. de Boville, antigo intendente das prisões, me manda da parte do Sr. Prefeito da Polícia?
            - Exatamente, senhor.
            - Um dos agentes afetos à Segurança de Paris?
            - Sim, senhor - respondeu o desconhecido, com uma espécie de hesitação e sobretudo um pouco de rubor.
            O abade reajustou os grandes óculos, que lhe cobriam não só os olhos, mas também as têmporas, e voltando a sentar-se, fez sinal ao visitante para se sentar igualmente.
            - Estou às suas ordens, senhor - disse o abade, com um acento italiano dos mais pronunciados.
            - A missão de que me encarregaram, senhor - começou o visitante, vincando cada uma das palavras, como se tivessem dificuldade em sair -, é uma missão de confiança para quem a desempenha e para a pessoa junto da qual a desempenha.
            O abade inclinou-se.
            - Sim-prosseguiu o desconhecido –, a sua probidade, Sr. Abade, é tão conhecida do Sr. Prefeito da Polícia que ele deseja saber do senhor, como magistrado, uma coisa que interessa à segurança pública em nome da qual o venho procurar. Esperamos, portanto, Sr. Abade, que não haja nem laços de amizade nem consideração humana que possam levá-lo a ocultar a verdade à justiça.
            - Conquanto, senhor, que as coisas que deseja saber não briguem em nada com os escrúpulos da minha consciência. Sou padre, senhor, e os segredos da confissão, por exemplo, devem ficar entre mim e a justiça de Deus, e não entre mim e a justiça humana.
            - Oh, esteja tranquilo, Sr. Abade! - disse o desconhecido. - Seja em que circunstâncias for,  respeitaremos a sua consciência.
            Ao ouvir estas palavras, o abade carregou do seu lado no quebra-luz, o qual se levantou do lado oposto, de forma que, embora iluminasse em pleno rosto o desconhecido, deixava a cara do abade na sombra.
            - Perdão, Sr. Abade - disse o enviado do Sr. Prefeito da Polícia –, mas essa luz fere-me horrivelmente a vista.
            O abade baixou o cartão verde.
            - Agora, senhor, escuto-o. Fale.
            - Vou direito ao assunto. Conhece o Sr. Conde de Monte-Cristo?
            - Refere-se ao Sr. Zaccone, presumo?...
            - Zaccone! ... Não se chama portanto Monte-Cristo?
            - Monte-Cristo é o nome de uma terra, ou antes, de um rochedo, e não um nome de família.
            - Pois seja. Não discutamos as palavras, e visto o Sr. de Monte-Cristo e Sr. Zaccone serem o mesmo homem...disse o abade, com um acento italiano. 
            - Absolutamente o mesmo.
            - Falemos do Sr. Zaccone.
            - Pois sim.
            - Conhece-o?
            - Perfeitamente.
            - Quem é?
            - O filho de um rico armador de Malta.
            - Sim, bem sei, é o que se diz. Mas, como o senhor compreende, a Polícia não se pode contentar com um diz-se...
            - No entanto - prosseguiu o abade, com um sorriso afabilíssimo -, quando esse diz-se é a verdade, todas as pesoas devem se contentar com ele e é necessário que a Polícia proceda como todos.
            - Mas o senhor tem a certeza do que diz?
            - Como? Se tenho a certeza?!
            - Note, senhor, que não duvido de forma alguma da sua boa-fé. Limito-me a perguntar: tem a certeza?
            - Ouça, eu conheci o Sr. Zaccone pai.
            - Ah, ah!
            - Sim, e em criança brinquei várias vezes com o filho nos seus estaleiros navais.
            - No entanto, esse título de conde...
            - Como sabe, compra-se.
            - Na Itália?
            - Em qualquer parte.
            - Mas as suas riquezas, que são imensas, ao que também se diz...
            - Oh, quanto a isso, “imensas", é a palavra adequada! - respondeu o abade.
            - Quanto calcula que possui, o senhor que o conhece?
            - Oh, tem bem cento e cinquenta a duzentas mil libras de rendimento!
            - Sim, é razoável - admitiu o visitante. - Mas fala-se de três ou quatro milhões!
            - Duzentas mil libras de rendimento, senhor, dão precisamente quatro milhões de capital.
            - Mas fala-se de três ou quatro milhões de rendimento!
            - Oh, isso não é crível!
            - E o senhor conhece a sua ilha de Monte-Cristo?
            - Certamente. Qualquer homem que tenha vindo de Palermo, de Nápoles ou de Roma para França, por mar, a conhece, pois passou por ela e viu-a ao passar.
            - Trata-se de um lugar encantador, ao que se afirma...
            - É um rochedo.
            - Porque terá o conde comprado um rochedo?
            - Justamente para ser conde. Na Itália, para se ser conde ainda é necessário possuir um condado.
            - Decerto ouviu falar das aventuras de juventude do Sr. Zaccone.
            - Do pai?
            - Não, do filho.
            - Aí é que começam as minhas incertezas, porque em dada altura perdi o meu jovem companheiro de vista.
            – Ele entrou na guerra? 
            - Creio que serviu.
            - Em que arma?
            - Na Marinha.
            - Vejamos, o senhor não é o seu confessor?
            - Não, senhor. Creio que é luterano.
            - Como, luterano?!
            - Digo que creio; não afirmo. De resto, julgava a liberdade de cultos estabelecida na França.
            - Sem dúvida. Por isso, não é das suas crenças que nos ocupamos neste momento, mas sim dos seus atos. Em nome do Sr. Prefeito da Polícia, convido-o a dizer o que saiba.
            - Passa por homem muito caritativo. O nosso Santo Padre, o Papa fê-lo cavaleiro de Cristo, honra que quase só concede aos príncipes, pelos serviços eminentes que prestou aos cristãos do Oriente. Além disso, possui cinco ou seis grã-cruzes, concedidas por serviços prestados tanto aos príncipes como aos Estados.
            - Usa-as?
            - Não, mas orgulha-se de as possuir. Diz que aprecia mais as recompensas concedidas aos benfeitores da humanidade do que as atribuídas aos destruidores dos homens.
            - É então um quacre, esse homem?
            - Exato, é um quacre, mas sem o grande chapéu e o fato castanho, evidentemente.
            - Tem amigos?
            - Tem. São seus amigos todos aqueles que o conhecem.
            - Mas, enfim, também deve ter inimigos.
            - Só um.
            - Como se chama?
            - Lorde Wilmore.
            - Onde se encontra?
            - Neste momento, em Paris.
            - E poderá dar-me informações?
            - Preciosas. Esteve na Öndia ao mesmo tempo que Zaccone.
            - Sabe onde mora?
            - Algures na Chaussée-d'Antin, mas ignoro a rua e o número.
            - O senhor tem más relações com esse inglês?
            - Estimo Zaccone e ele detesta-o. Não nos damos bem por isso.
            - Sr. Abade, acha que o conde de Monte-Cristo esteve alguma vez na França antes da viagem que acaba de fazer a Paris?
            - Quanto a isso posso responder-lhe concretamente. Não, senhor, nunca esteve, pois dirigiu-se a mim, há seis meses, para obter as informações que desejava. Pela minha parte, como ignorava quando eu próprio regressaria a Paris, recomendei-lhe o Sr. Cavalcanti.
            - Andrea?
            - Não. Bartolomeo, o pai.
            - Muito bem, senhor. Não tenho mais nada a perguntar-lhe, exceto uma coisa, e peço-lhe, em nome da honra, da humanidade e da religião, que me responda francamente. 
            - Diga, senhor.
            - Sabe com que fim o Sr. Conde de Monte-Cristo comprou uma casa em Auteuil?
            - Sei, porque ele me disse.
            - Com que fim, senhor?
            - Com o de instalar um hospital psiquiátrico no gênero do fundado pelo barão de Pisani, em Palermo. Conhece esse hospital?
            - De nome, senhor.
            - É uma instituição magnífica.
            E dito isto, o abade cumprimentou o desconhecido como um homem que desejasse dar a entender que se não importaria de voltar ao trabalho interrompido.
            O visitante, quer porque tivesse compreendido o desejo do abade, quer porque não tivesse mais perguntas a fazer, levantou-se por seu turno. O abade acompanhou-o até  à porta.
            - O senhor dá muitas esmolas - disse o visitante –, mas embora se diga que é rico, atrevo-me a oferecer-lhe qualquer coisa para os seus pobres. Importa-se de aceitar a minha oferenda?
            - Obrigado, senhor, mas há apenas uma coisa de que sou cioso no mundo: é que o bem que faça provenha de mim.
            - No entanto...
            - É uma resolução inabalável. Mas procure, senhor, e encontrará. Infelizmente! No caminho de cada homem rico cruzam-se muitas misérias.
            O abade cumprimentou mais uma vez e abriu a porta. O desconhecido cumprimentou por seu turno e saiu. A carruagem levou-o direito a casa do Sr. de Villefort.
            Uma hora mais tarde a carruagem tornou a sair e desta vez dirigiu-se para a Rua Fontaine-Saint-Georges. Parou no nº 5. Era ali que morava Lorde Wilmore.
            O desconhecido escrevera a Lorde Wilmore pedindo-lhe que o recebesse e este marcara o encontro para as dez horas. Por isso, como o enviado do Sr. Prefeito da Polícia chegou às dez horas menos dez minutos, foi-lhe respondido que Lorde Wilmore, que era a exatidão e a pontualidade em pessoa ainda não
chegara, mas que chegaria sem dúvida ao bater as dez.
            O visitante esperou na sala, a qual não tinha nada de notável e era como todas as salas das casas alugadas mobiladas.
            Uma chaminé com dois vasos de Sevres modernos, um relógio de sala com um Amor retesando o seu arco, um espelho bipartido, de cada lado do espelho uma gravura, representando uma Homero conduzido pelo seu guia, a outra, Belisário pedindo esmola, paredes forradas de papel cinzento de vários tons e um sofá  de tecido vermelho estampado a preto, tal era a sala de Lorde Wilmore.
            Iluminavam-na globos de vidro fosco, que espalhavam apenas uma luz fraca, a qual parecia preparada propositadamente para os olhos cansados do enviado do Sr. Prefeito da Polícia. Ao cabo de dez minutos de espera, o relógio de sala deu as dez horas, e à quinta pancada a porta abriu-se e Lorde Wilmore apareceu.
            Lorde Wilmore era um homem mais alto do que baixo, de suíças ralas e ruivas, tez branca e cabelo louro-grisalho. Vestia com toda a excentricidade inglesa, isto é, envergava casaca azul com botões dourados e gola alta  pespontada, como se usava em 1811, colete de casimira branca e calças de nanquim três
polegadas mais curtas do que deviam, mas que presilhas do mesmo tecido passadas por baixo dos pés impediam de lhe subir aos joelhos.
            As suas primeiras palavras quando entrou foram:
            - Como sabe, senhor, não falo francês.
            - Sei, pelo menos, que não gosta de falar na nossa língua - respondeu o enviado do Sr. Prefeito da Polícia.
            - Mas o senhor pode falar nela - perguntou Lorde Wilmore -, pois se a não falo, compreendo-a.
            - E eu - replicou o visitante, mudando de idioma - falo o inglês com facilidade suficiente para sustentar uma conversa nessa língua. Não se incomode, pois, senhor.
            - Hao! - exclamou Lorde Wilmore, com a intonação exclusiva dos mais puros naturais da Grã-Bretanha.
            O enviado do prefeito da Polícia entregou a Lorde Wilmore a sua carta de apresentação. Este leu-a com uma fleuma muito anglicana e quando terminou a leitura disse, em inglês:
            - Compreendo. Compreendo perfeitamente.
            Começaram então as perguntas.
            Foram pouco mais ou menos as mesmas que tinham sido dirigidas ao abade Busoni. Mas como Lorde Wilmore, na sua qualidade de inimigo do conde de Monte-Cristo, não punha nas suas respostas a mesma reserva que o abade, estas foram muito mais extensas. Contou a juventude de Monte-Cristo, que, segundo
ele, entrara aos dez anos ao serviço de um desses pequenos soberanos da índia que guerreiam os Ingleses. Fora lá que ele, Wilmore, o encontrara pela primeira vez e tinham combatido um contra o outro. Nessa guerra, Zaccone fora feito prisioneiro e enviado para Inglaterra num pontão, mas fugira a nado. Tinham começado então as suas viagens, os seus duelos e as suas paixões. Por essa altura, a Grécia revoltara-se e ele
servira nas fileiras dos Gregos. Enquanto estava ao seu serviço, descobrira uma mina de prata nas montanhas da Tessália, mas não revelara a ninguém tal descoberta. Depois de Navarino e da consolidação do governo grego, pediu ao rei Otão um alvará para explorar a mina, o qual lhe foi concedido. Dai a sua imensa fortuna, que, segundo Lorde Wilmore, podia ascender a um ou dois milhões de rendimento, fortuna que no entanto poderia exaurir-se de súbito, se a mina se esgotasse.
            - Mas não sabe porque veio a França? - perguntou o visitante.
            - Quer especular nos caminhos-de-ferro - respondeu Lorde Wilmore. - Além disso, como é um hábil químico e um físico não menos distinto, descobriu um novo telégrafo cuja aplicação ambiciona.
            - Quanto gasta pouco mais ou menos por ano? - perguntou o enviado do Sr. Prefeito da Polícia.
            - Oh, quinhentos ou seiscentos mil francos, no máximo! - respondeu Lorde Wilmore. - É um sovina.
            Era evidente que o rancor é que fazia falar o inglês, o qual, não sabendo o que censurar ao conde, lhe censurava a avareza.
            - Sabe alguma coisa a respeito da sua casa de Auteuil?
            - Claro que sei.
            - Nesse caso, que sabe? 
            - Quer saber com que fim a comprou?
            - Quero.
            - Bom, o conde é um especulador que certamente acabará por se arruinar com experiências e utopias. Pretende que existe em Auteuil, nas imediações da casa que acaba de comprar, uma corrente de água mineral capaz de rivalizar com as águas de Bagneres, de Luchon e de Cauterets. Quer transformar a sua
aquisição num bad-haus, como dizem os Alemães. Revolveu duas ou três vezes o jardim à procura do famoso curso de água, e como o não conseguiu descobrir, vai ver que dentro de pouco tempo desata a comprar as casas que rodeiam a dele. Ora, como lhe desejo, espero que graças ao seu caminho-de-ferro, ao seu telégrafo elétrico ou à sua exploração de banhos acabe por se arruinar. Então, estarei aqui para desfrutar a sua ruína, que não pode deixar de acontecer mais dia menos dia.
            - Mas porque lhe quer assim tão mal? - perguntou o visitante.
            - Odeio-o - respondeu Lorde Wilmore - porque numa das suas passagens por Inglaterra seduziu a mulher de um dos meus amigos.
            - Mas se o odeia, porque não procura vingar-se dele?
            - Já me bati três vezes com o conde - respondeu o inglês. - A primeira vez, à pistola, a segunda, à espada, e a terceira, ao montante.
            - E qual foi o resultado desses duelos?
            - Da primeira vez, partiu-me um braço; da segunda vez, traspassou-me um pulmão, e da terceira, fez-me este ferimento.
            O inglês baixou o colarinho da camisa, que lhe subia até  às orelhas, e mostrou-lhe uma cicatriz cuja vermelhidão indicava ser pouco antiga.
            - De forma que o odeio muito - repetiu o inglês - e que desejo, evidentemente, que morra apenas às minhas mãos.
            - Mas assim o senhor não leva jeito de vir a matá-lo, parece-me - observou o enviado da Prefeitura.
            - Hao! - exclamou o inglês. - Vou todos os dias à carreira de tiro e de dois em dois dias Grisier vem a minha casa.
            Era o que queria saber o visitante, ou antes, era tudo o que parecia saber o inglês. O agente levantou-se portanto e, depois de cumprimentar Lorde Wilmore, que lhe correspondeu com a rigidez e a cortesia inglesas, retirou-se.
            Pela sua parte, Lorde Wilmore, depois de ouvir fechar a porta da rua, entrou no seu quarto, onde num  ápice perdeu os seus cabelos louros, as suas suíças ruivas, o seu falso maxilar e a sua cicatriz, para readquirir os cabelos pretos, a tez mate e os dentes de pérolas do conde de Monte-Cristo.
            Verdade seja que, pelo seu lado, foi o Sr. de Villefort e não o enviado do Sr. Prefeito da Polícia que entrou em casa do mesmo Sr. de Villefort. O procurador régio ficara um pouco tranquilizado depois das
duas visitas, que aliás lhe não tinham revelado nada de tranquilizador, mas que também lhe não haviam dado motivos de inquietação. Daí que, pela primeira vez desde o jantar de Auteuil, dormisse naquela noite um bocadinho mais tranquilo. 


Capítulo LXX

O baile


            Tinham chegado os mais quentes dias de Julho quando se apresentou por seu turno, na ordem do tempo, o sábado em que se devia realizar o baile do Sr. de Morcerf. Eram dez horas da noite. As grandes árvores do jardim do palácio do conde destacavam-se pelo seu porte num céu onde deslizavam, descobrindo um tapete azul recamado de estrelas douradas, os últimos vapores de uma tempestade que trovejara
ameaçadora durante todo o dia.
            Nas salas do térreo ouvia-se ressoar a música e rodopiar a valsa e o galope, enquanto faixas deslumbrantes de luz passavam delgadas através dos intervalos das persianas. O jardim estava entregue naquele momento a uma dezena de criados, a quem a dona da casa, tranquilizada por o tempo. Acalmar de momento a momento, acabava de ordenar que servissem a ceia.
            Até ali hesitara-se se se cearia na sala de jantar ou debaixo de uma comprida tenda de lona erguida no relvado. Mas aquele belo céu azul, todo recamado de estrelas, acabava de decidir o processo a favor da tenda e do relvado.
            Iluminavam-se as alamedas do jardim com lanternas de cor, como é hábito na Itália, e cobria-se de velas e de flores a mesa da ceia, como é uso em todos os países onde se compreende um pouco o luxo da mesa, o mais raro de todos os luxos, quando se pretende torná-lo completo.
            No momento em que a condessa de Morcerf entrava nos seus salões, depois de dar as suas últimas ordens, os salões começavam a encher-se de convidados, atraídos muito mais pela encantadora hospitalidade da condessa do que pela posição de relevo do conde. Porque se podia ter antecipadamente a certeza de que a festa proporcionaria, graças ao bom gosto de Mercedes, alguns pormenores dignos de ser contados ou copiados, se necessário.
            A Sra Danglars, a quem os acontecimentos que narramos tinham inspirado profunda inquietação, hesitava em ir a casa da Sra de Morcerf quando de manhã a sua carruagem se cruzara com a de Villefort. Este fizera-lhe um sinal, as duas viaturas tinham-se aproximado e o procurador régio perguntara através
das portinholas:
            - Vai a casa da Sra de Morcerf, não vai?
            - Faz mal - observou Villefort, com um olhar significativo. - Seria importante que a vissem lá.
            - Acha? - perguntou a baronesa.
            - Acho.
            - Nesse caso, irei.
            E as duas viaturas tinham retomado a sua direção oposta. A Sra Danglars viera portanto, não só bela pela sua própria beleza, mas também deslumbrante de luxo. Entrava por uma porta no preciso instante em que Mercedes entrava pela outra.
            A condessa mandou Albert ao encontro da Sra Danglars. Albert obedeceu, apresentou à baronesa, a propósito da sua toilette, os devidos cumprimentos e  ofereceu-lhe o braço para a conduzir ao lugar que lhe aprouvesse escolher, Albert olhou à sua volta.
            - Procura a minha filha? - inquiriu, sorrindo, a baronesa.
            - Confesso que sim - respondeu Albert. - Seria capaz de cometer a crueldade de não a trazer ?
            - Tranquilize-se, encontrou Mademoiselle de Villefort e deu-lhe o braço. Olhe, ai vêm atrás de nós, ambas de vestido branco, uma com um ramo de camélias e a outra com um ramo de miosótis. Mas diga-me uma coisa...
            - Que procura a senhora por sua vez? - perguntou Albert, sorrindo.
            - Não terão esta noite o conde de Monte-Cristo?
            - Dezessete! - respondeu Albert.
            - Que quer dizer?
            - Quero dizer que as coisas vão bem - esclareceu o visconde, rindo - e que a senhora é a décima sétima pessoa que faz a mesma pergunta. Não há dúvida, o conde está bem lançado!...Tenho de felicitá-lo...
            - O senhor responde a toda a gente como a mim?
            - Ah, é verdade, não lhe respondi! Sossegue, minha senhora, teremos o homem da moda, pertencemos ao número dos privilegiados.
            - Foi ontem à Ópera?
            - Não.
            - Ele estava lá.
            - Deveras? E o excentric man teve alguma nova originalidade?
            - Pode porventura exibir-se sem isso? Eissler dançava O Diabo Coxo; a princesa grega estava enleada. Depois da cachucha, ele meteu um anel magnífico no pé de um ramo de flores e atirou-o à encantadora bailarina, que no terceiro ato reapareceu em cena, para o distinguir, com o anel no dedo. E a sua princesa grega, também virá?
            - Não, tem de ter paciência e privar-se dela, mas a sua situação em, casa do conde não está bem definida.
            - Olhe, deixe-me aqui e vá cumprimentar a Sra de Villefort - disse a baronesa. - Adivinho que está ansiosa por lhe falar.
            Albert cumprimentou a Sra Danglars e foi ao encontro da Sra de Villefort, que abria a boca à medida que ele se aproximava.
            - Aposto - disse Albert, interrompendo-a - que sei o que me vai perguntar...
            - Essa agora! - exclamou a Sra de Villefort.
            - Se acertar, confessa-o?
            - Confesso.
            - Palavra de honra?
            - Palavra de honra!
            - Ia perguntar-me se o conde de Monte-Cristo já veio ou ainda vem...
            - De modo nenhum. Não me ocupo dele neste momento. Ia perguntar-lhe se recebeu notícias do Sr. Franz.
            - Recebi, ontem.
            - Que lhe dizia?
            - Que partia ao mesmo tempo que a sua carta.
            - Muito bem. E agora, que me diz do conde?
            - O conde virá, fique tranquila. 
            - Sabe que tem outro nome além do de Monte-Cristo?
            - Não, não sabia.
            - Monte-Cristo é o nome de uma ilha e ele tem um nome de família.
            - Nunca lho ouvi pronunciar.
            - Então estou mais adiantada do que o senhor. Ele chama-se Zaccone.
            - É possível.
            - E é maltês.
            - Também é possível.
            - Filho de um armador.
            - Oh, mas na verdade a senhora devia contar essas coisas ali, em voz alta! Teria o maior êxito.
            - Serviu na índia, explora uma mina de prata na Tessália e veio a Paris para montar um estabelecimento de águas minerais em Auteuil.
            - Que grandes notícias! - exclamou Morcerf. - Permite-me que as repita? - Pois sim, mas pouco a pouco, uma a uma, sem dizer que provêm de mim.
            - Porquê?
            - Porque é quase um segredo roubado.
            - A quem?
            - À Polícia.
            - Então essas notícias espalhavam-se...
            - Ontem à noite, em casa do prefeito. Paris impressionou-se, como sabe, perante aquele luxo inusitado e a Polícia tirou informações.
            - Muito bem. Só faltava prender o conde como vagabundo a pretexto de ser demasiado rico.
            - Era o que poderia muito bem acontecer-lhe se as informações não fossem tão favoráveis.
            - Pobre conde! Desconfia do perigo que correu?
            - Não creio.
            - Então será uma obra de caridade avisá-lo. Não deixarei de o fazer quando ele chegar.
            Neste momento um bonito rapaz de olhos vivos, cabelo preto e bigode brilhante veio cumprimentar respeitosamente a Sra de Villefort. Albert estendeu lhe a mão.
            - Minha senhora - disse Albert –, tenho a honra de lhe apresentar o Sr. Maximilien Morrel, capitão de sipaios, um dos nossos bons e sobretudo dos nossos bravos oficiais.
            - Já tive o prazer de encontrar este senhor em Auteuil, em casa do Sr. Conde de Monte-Cristo - respondeu a Sra de Villefort, virando-se com acentuada frieza.
            Esta resposta, e sobretudo o tom em que foi dada, apertou o coração do pobre Morrel. Mas estava-lhe reservada uma compensação: ao voltar-se, descobriu à porta uma bela figura branca cujos olhos azuis, dilatados e sem expressão aparente, se cravavam nele, enquanto o ramo de miosótis lhe subia lentamente aos lábios.
            Este cumprimento foi tão bem compreendido que Morrel, com a mesma expressão no olhar, aproximou por sua vez o lenço da boca. E as duas estátuas vivas, cujo coração pulsava rapidamente sob o mármore aparente do rosto, separadas uma da outra por toda a largura da sala, esqueceram-se por um instante, ou antes, por um instante esqueceram toda a gente naquela muda contemplação. E poderiam ter ficado muito mais tempo assim absortas uma na outra, sem que ninguém notasse o seu alheamento de tudo e de todos, se o conde de Monte-Cristo não acabasse de entrar.
            O conde, quer por prestigio fitício, quer por prestigio natural, atraia a atenção em toda a parte onde se
apresentava. Não era a sua casaca preta, de corte impecável, é certo, mas simples e sem condecorações; não era o seu colete branco sem qualquer bordadura; não eram as suas calças, que se ajustavam a um pé da forma mais delicada, que atraiam a atenção: eram a sua tez mate, o seu cabelo preto, ondulado, era o seu rosto calmo e puro, era o seu olhar profundo e melancólico, era finalmente a sua boca desenhada com uma
delicadeza maravilhosa, e que adquiria facilmente a expressão de um alto desdém, que levavam todos os olhos a fixarem-se nele.
            Poderia haver homens mais belos, mas não os havia, sem dúvida, mais significativos, passe a expressão. Tudo no conde queria dizer qualquer coisa e tinha o seu valor; porque o hábito do pensamento útil dera às suas feições, à expressão do seu rosto e ao mais insignificante dos seus gestos uma flexibilidade e
uma firmeza incomparáveis.
            No entanto, a nossa sociedade parisiense é tão estranha que ele talvez não tivesse despertado a atenção por tudo isso se debaixo de tudo isso não houvesse uma história misteriosa dourada por uma imensa fortuna.
            Como quer que fosse, adiantou-se sob o peso dos olhares e, trocando pelo caminho breves cumprimentos, até  à Sra de Morcerf, que de pé diante da chaminé guarnecida de flores o vira aparecer num espelho colocado defronte da porta e se preparava para o receber. Virou-se portanto para ele com um sorriso grave precisamente no momento em que Monte-Cristo se inclinava diante dela.
            A condessa supôs, sem dúvida, que o conde lhe dirigiria a palavra, e pela sua parte ele também imaginou, sem dúvida, que ela lhe falaria; mas ambos ficaram mudos, de tal forma uma banalidade lhes pareceu, decerto, indigna deles. E após uma troca de cumprimentos, Monte-Cristo dirigiu-se para Albert,
que vinha ao seu encontro de mão aberta.
            - Viu a minha mãe? - perguntou Albert.
            - Acabo de ter a honra de a cumprimentar - respondeu conde -, mas ainda não vi o seu pai.
            - Olhe, conversa de política ali, naquele grupinho de grandes celebridades.
            - Na verdade aqueles cavalheiros são celebridades? - admirou-se Monte-Cristo. - Nunca o suporia! E de que gênero? Há celebridades de toda a espécie, como sabe.
            - Em primeiro lugar, um sábio, aquele cavalheiro alto e magro: descobriu na campina de Roma uma espécie de lagarto que tem mais uma vértebra do que os outros e essa descoberta valeu-lhe fazer parte do Instituto. A coisa foi durante muito tempo contestada, mas enfim o cavalheiro alto e magro levou a melhor. A vértebra causara grande alvoroço no mundo científico. O cavalheiro alto e magro, que era apenas cavaleiro da Legião de Honra, foi nomeado oficial. 
            - Até  que enfim! - exclamou Monte-Cristo. - Aí está uma condecoração que me parece sensatamente dada. Então, se encontrar segunda vértebra, o farão comendador?
            - É provável - respondeu Morcerf.
            - E aquele que teve a singular idéia de vestir uma casaca azul bordada de verde quem é?
            - Não foi ele que teve a idéia de se meter naquela casaca, foi a República, a qual, como sabe, era um tanto artista. Por isso, desejando dar um uniforme aos academicos, pediu a David que lhe desenhasse uma casaca.
            - Tem razão - concordou Monte-Cristo. - Portanto aquele senhor é um academico?
            - Há oito dias que faz parte da douta assembléia.
            - E qual é o seu mérito, a sua especialidade?
            - A sua especialidade? Parece-me que espeta alfinetes na cabeça de coelhos, que obriga as galinhas a comer garança e que extrai com barbas de baleia a espinal-medula aos cães.
            - E é da Academia das Ciências por isso?
            - Não, da Academia Francesa.
            - Mas que tem a Academia Francesa a ver com essas coisas?
            - Vou dizer-lhe. Parece...
            - Que as suas experiências fizeram, decerto, a ciência dar um grande passo?
            - Não, mas que escreve num excelente estilo.
            - O que deve lisonjear enormemente o amor-próprio dos coelhos em que espeta alfinetes na cabeça, as galinhas cujos ossos tinge de vermelho e os cães a que extrai a espinal-medula - comentou Monte-Cristo.
            Albert desatou a rir.
            - E aquele? - perguntou o conde.
            - Qual?
            - O terceiro.
            - Ah! O de casaca azul-clara?
            - Sim.
            - É um colega do conde que acaba de se opor energicamente a que a Câmara dos Pares tenha um uniforme. Por causa disso obteve um grande êxito na tribuna. Andava de candeias às avessas com as gazetas liberais, mas a sua nobre oposição aos desejos da corte acaba de o reconciliar com elas. Fala-se em nomeá-lo embaixador.
            - E quais são os seus títulos para o pariato?
            - Escreveu duas ou três operas cômicas, intentou quatro ou cinco ações contra o Siecle e votou cinco ou seis anos pelo ministério.
            - Bravo, visconde! - exclamou Monte-Cristo, rindo. - O senhor é um cicerone notável. Agora, importa-se de me fazer um favor?
            - Qual?
            - Não me apresente a esses cavalheiros e se eles pedirem para me serem apresentados, previna-me.
            Neste momento o conde sentiu que lhe pousavam uma mão no braço. Virou-se. Era Danglars.
            - Ah! E o senhor, barão? 
            - Porque me chama barão? - perguntou Danglars. - Bem sabe que não ligo importância ao meu título. Não sou como o senhor, visconde; o senhor liga mesmo importância ao seu, não é verdade?
            - Certamente - respondeu Albert –, pois se não fosse visconde não seria mais nada, ao passo que o senhor pode sacrificar o seu título de barão porque ainda lhe fica o de milionário.
            - O que me parece o mais belo título que se possa desejar na monarquia de Julho - salientou Danglars.
            - Infelizmente - atalhou Monte-Cristo –, não se é milionário vitalício como se é barão, par de França ou acadêmico; assim o provam os milionários Franck & Poulmann, de Frankfurt, que acabam de abrir falência.
            - Sim? - murmurou Danglars, empalidecendo.
            - Palavra. Recebi a notícia esta tarde, por um correio. Tinha qualquer coisa como um milhão na casa deles, mas, avisado a tempo, exigi o seu reembolso há coisa de um mês, pouco mais ou menos.
            - Ah, meu Deus, sacaram sobre mim duzentos mil francos! - exclamou Danglars.
            - Então está avisado - a sua assinatura vale cinco por cento.
            - Pois sim, mas o seu aviso vem demasiado tarde - perguntou Danglars. - já honrei a assinatura deles.
            - Bom, são mais duzentos mil francos que se foram juntar... - começou Monte-Cristo.
            - Cale-se! - atalhou Danglars. - Não fale dessas coisas...
            Depois, aproximando-se de Monte-Cristo:
            - Sobretudo diante do Sr. Cavalcanti filho - acrescentou o banqueiro, que, ao pronunciar estas palavras, se virou sorrindo para o lado do jovem italiano. Morcerf deixara o conde para ir falar à mãe.
            Danglars deixou-o para cumprimentar Cavalcanti filho. Monte-Cristo encontrou-se por um instante sozinho. Entretanto, o calor começava a tornar-se excessivo. Os criados circulavam pelos salões com bandejas carregadas de fruta e gelados.
            Monte-Cristo enxugou com o lenço o rosto perlado de suor. Mas recuou quando a bandeja passou diante dele e não tirou nada para se refrescar.
            A Sra de Morcerf não tirava os olhos de Monte-Cristo. Viu passar a bandeja sem que ele lhe tocasse e notou também a forma como se afastou dela.
            - Albert, reparaste numa coisa?
            - Qual, minha mãe?
            - Que o conde nunca aceitou jantar em casa do Sr. de Morcerf.
            - Pois sim, mas aceitou almoçar em minha casa, e foi até  por intermédio desse almoço que entrou na sociedade.
            - Em sua casa não é em casa do conde - murmurou Mercedes. - Além disso, desde que chegou que o observo.
            - E então?
            - E então? Ainda não tomou nada.
            - O conde é muito sóbrio.
            Mercedes sorriu tristemente.
            - Aproxime-se dele - pediu, e à primeira bandeja que passar, insiste. 
            - Porquê, minha mãe?
            - Faça-me esse favor, Albert - insistiu Mercedes.
            Albert beijou a mão da mãe e foi postar-se junto do conde. Passou outra bandeja, carregada como as precedentes. A condessa viu Albert insistir com o conde, tirar mesmo um gelado e oferecer-lhe, mas ele recusar obstinadamente. Albert voltou para junto da mãe. A condessa estava muito pálida.
            - Como viu, recusou.
            - É verdade, mas em que é que isso a pode preocupar?
            - Como sabes, Albert, as mulheres têm manias singulares. Teria visto com prazer o conde tomar qualquer coisa em minha casa, nem que fosse um bago de romã. Mas talvez não se adapte aos costumes franceses, talvez prefira outras coisas...
            - Meu Deus, não! Na Itália vi-o tomar de tudo. Sem dúvida está maldisposto esta noite.
            - Acha que tendo residido sempre em climas quentes, será menos sensível ao calor do que as outras pessoas? - perguntou a condessa.
            - Não creio, pois queixava-se de que asfixiava e perguntava por que motivo, visto já se terem aberto as janelas, não se abriam também as persianas.
            - Com efeito - disse Mercedes –, é um meio de me assegurar se a sua abstinência é alguma atitude preconcebida...
            E saiu do salão.
            Pouco depois, as persianas abriram-se e todos puderam ver, através dos jasmins e das clematites que guarneciam as janelas, todo o jardim iluminado com lanternas e a ceia servida debaixo da tenda.
            Dançarinos e dançarinas, jogadores e conversadores soltaram um grito de alegria. Todos aqueles pulmões ávidos aspiravam com delícia o ar que entrava a jorros.
            Ao mesmo tempo, Mercedes reapareceu, mais pálida do que saíra, mas com a serenidade de rosto que era notável nela em determinadas circunstâncias. Foi direita ao grupo de que o marido era o centro e disse-lhe:
            - Não retenha estes cavalheiros aqui, Sr. Conde. Se não jogam, decerto preferirão tomar ar no jardim a abafar aqui dentro.
            - Mas, minha senhora - interveio um velho general muito galante, que cantara Partamos para a Síria! em 1809 –, não iremos sozinhos para o jardim...
            - Seja, estou pronta a dar o exemplo - respondeu Mercedes.
            E virando-se para Monte-Cristo:
            - Sr. Conde, quer dar-me a honra de me oferecer o seu braço?
            O conde quase cambaleou ao ouvir estas simples palavras.  Em seguida fitou um momento Mercedes. Esse momento teve a rapidez do relâmpago e no entanto pareceu à condessa ter durado um século, tantos pensamentos pusera  Monte-Cristo nesse único olhar.
            Ofereceu o braço à condessa. Esta apoiou-se nele ou, para melhor dizer, aflorou-o com a sua mãozinha, e ambos desceram uma das escadas adornadas de rododendros e camélias.
            Atrás deles, e pela outra escada, correram para o jardim, soltando ruidosas exclamações de prazer, cerca de vinte convidados. 

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