sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Desventuras em Série - Mau Começo - Capítulos 1 ao 7

CAPÍTULO
UM

Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando, porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. E isso porque momentos felizes não são o que mais encontramos na vida dos três jovens Baudelaire* cuja história está aqui contada. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes, encantadoras e desembaraçadas, com feições bonitas, mas com uma falta de sorte fora do comum, que atraía toda espécie de infortúnio, sofrimento e desespero: Lamento ter que dizer isso a vocês, mas o enredo é assim, fazer o quê?

(*) Pronuncia-se "Bodler", com e tônico e aberto como em "mulher". (N. T.)

A infelicidade deles começou certo dia na Praia de Sal. Os três Baudelaire filhos moravam com seus pais numa enorme mansão no centro de uma cidade muito movimentada e muito poluída, e vez por outra os pais permitiam que pegassem sozinhos um bonde um tanto precário - a palavra precário, que vocês provavelmente conhecem, está sendo usada aqui com o sentido de "inseguro" - até a praia, a fim de passarem o dia como se estivessem em férias, contanto que voltassem antes da hora do jantar.
Nessa manhã de que estamos falando, o dia se mostrava cinzento e nublado, o que não importava nem um pouco aos jovens Baudelaire. Quando fazia sol e calor, a Praia de Sal se enchia de turistas, e era impossível encontrar um bom lugar para estender a esteira. Nos dias cinzentos e nublados, os Baudelaire tinham a praia à sua disposição para fazer o que bem entendessem.
Violet Baudelaire, a mais velha dos três, gostava de atirar pedras bem longe para vê-Ias deslizar na superfície do mar antes de afundarem. Como a maioria dos jovens de catorze anos, era destra – ou seja, estava acostumada a usar a mão direita, ao contrário dos canhotos - de modo que as pedras deslizavam mais tempo e avançavam mais longe nas águas turvas quando a mão com que as arremessava era a direita e não a esquerda. Enquanto atirava as pedras, tinha os olhos postos no horizonte e o pensamento absorvido numa invenção que desejava montar. Quem conhecesse bem Violet logo perceberia que ela estava firmemente concentrada em suas reflexões, porque havia amarrado os cabelos com uma fita para afastá-los dos olhos. Violet tinha uma forte inclinação para inventar e montar aparelhos estranhos, por isso o seu cérebro volta e meia se via tomado por imagens de roldanas, alavancas e engrenagens, e ela fazia questão de nessas horas não ser distraída por algo tão banal como seus cabelos.
Nessa manhã ela estava pensando em como construir um aparelho que permitisse recuperar as pedras depois de serem atiradas no mar.
Klaus Baudelaire, o irmão do meio, e o único menino, gostava de examinar os seres minúsculos que pululavam nas piscininhas formadas à beira d'água. Klaus tinha pouco mais que doze anos e usava óculos, o que lhe dava um ar inteligente. E ele era inteligente. Os Baudelaire pais possuíam uma enorme biblioteca em sua mansão, uma sala com milhares de livros sobre todos os assuntos imagináveis. Aos doze anos, é claro que Klaus não poderia ter lido todos os livros da biblioteca dos Baudelaire, mas lera uma porção deles, e era impressionante como retinha na memória a quantidade de informações assim obtidas. Sabia distinguir perfeitamente o aligátor, crocodilo do Mississipi, dos crocodilos de outras partes do mundo. Sabia o nome de quem matou Júlio César. E sabia milhões de coisas sobre as esquivas criaturinhas de beira-mar encontradas na Praia de Sal que atraíam naquele momento sua atenção.
Sunny Baudelaire, a mais nova da trinca, gostava de morder coisas. Era ainda quase um bebê e muito pequena para sua idade, pouco maior que uma bota. A pouca altura era compensada, no entanto, pelos quatro dentes bem grandes e afiados.
Sunny estava numa idade em que a maior parte do tempo a criança fala por uma série de gritos ininteligíveis. A não ser quando ela usava as poucas palavras de verdade que constavam de seu vocabulário, como mamã, mamá e dá!, a maioria das pessoas tinha dificuldade para entender o que Sunny estava dizendo. Por exemplo, nessa manhã ela disse "Gá!" muitas e muitas vezes, o que provavelmente era para se entender como: "Vejam só essa figura misteriosa surgindo do nevoeiro!”
De fato, ao longe, em meio à névoa que pairava sobre todo o recorte da Praia de Sal, podia-se ver um vulto alto que caminhava na direção dos Baudelaire filhos. Sunny já vinha olhando e gritando para o vulto havia algum tempo quando Klaus ergueu os olhos acima do caranguejo que examinava e também notou a figura. Voltou-se para Violet e a puxou pelo braço, tirando-a de seus pensamentos de inventora.
“Veja”, disse Klaus, e apontou para o vulto. Como este estivesse chegando mais perto, as crianças puderam enxergar alguns detalhes. Tinha o tamanho mais ou menos de um adulto, a não ser pela cabeça, que era desproporcionadamente alta e meio quadrada.
"O que você acha que pode ser? , perguntou Violet.
"Não sei", disse Klaus, e com olhos semicerrados acompanhou disfarçadamente a aproximação da criatura, "mas parece que está vindo na nossa direção.”
"Estamos sozinhos na praia”, disse Violet, um pouco nervosa. "Não há ninguém mais de quem possa estar querendo se aproximar." Sentiu em sua mão esquerda o contato da pedra lisa ali aninhada, que pretendera atirar e fazer deslizar nas águas o mais longe possível. Teve um ímpeto de atirar a pedra na criatura, tão assustadora esta lhe parecia.
"É só a aparência que é assustadora", disse Klaus, como se estivesse lendo os pensamentos da irmã, "por causa desse nevoeiro todo."
Verdade. Quando a figura chegou onde estavam, as crianças viram com alívio que não era ninguém que lhes causasse medo, e sim uma pessoa que eles conheciam: o sr. Poe. O sr. Poe era um amigo do sr. e da sra. Baudelaire que as crianças haviam encontrado em muitos jantares festivos. Uma das coisas que Violet, Klaus e Sunny realmente apreciavam em seus pais era que não excluíam os filhos quando recebiam para jantar, deixando que eles sentassem à mesa com os adultos e participassem das conversas contanto que ajudassem depois a tirar os pratos e travessas. Os meninos se lembravam do sr. Poe porque ele estava sempre resfriado e constantemente se desculpava de se retirar da mesa a fim de ter um acesso de tosse na sala ao lado.
O sr. Poe tirou a cartola, que havia feito sua cabeça exageradamente alta e quadrada em meio à névoa, e por um momento ficou parado diante deles, tossindo com estrondo dentro de um lenço branco. Violet e Klaus avançaram para lhe estender a mão e cumprimentá-lo.
"Como vai o senhor?", disse Violet. "Como vai o senhor?", disse Klaus. "
“Omoá”, disse Sunny.
"Vou bem, obrigado", disse o sr. Poe, mas parecia muito triste. Por alguns instantes ninguém disse nada, e os meninos ficaram imaginando o que o sr. Poe poderia estar fazendo na Praia de Sal quando deveria estar no banco, no centro da cidade, onde trabalhava. Não estava com roupas de ir à praia.
"Está um lindo dia", disse Violet finalmente, puxando conversa. Sunny fez um barulho que soava como a voz de uma ave enfurecida, e Klaus a pegou no colo.
"Sim, está um lindo dia", disse o sr. Poe com ar meio distraído, olhando para a praia vazia. "Lamento, mas tenho más notícias para vocês, crianças."
Os três irmãos Baudelaire olharam para ele. Violet, um pouco envergonhada, sentiu o contato da pedra em sua mão esquerda e deu graças a Deus por não a ter atirado no sr. Poe.
"Seus pais", disse o sr. Poe, "faleceram num terrível incêndio."
Os meninos não disseram nada.
"Eles faleceram", disse o sr. Poe, "num incêndio que destruiu a casa toda. Lamento muito, muitíssimo, ter que contar isso para vocês, meus queridos."
Violet desviou os olhos, que estavam fixos no sr. Poe, e os deslocou para longe no mar. O sr. Poe nunca antes havia chamado os Baudelaire filhos de "meus queridos". Ela entendeu as palavras que ele estava dizendo, mas achou que devia ser brincadeira, uma horrível brincadeira que ele resolvera fazer com ela, o irmão e a irmã.
"Faleceram", disse o sr. Poe:, "significa foram mortos.”
"Nós sabemos o que significa a palavra faleceram", disse Klaus, com irritação. Com efeito, ele sabia o que a palavra faleceram significava, mas continuava tendo dificuldade para entender exatamente o que o sr. Poe tinha dito. A impressão que teve foi que o sr. Poe de algum modo havia se expressado mal.
"Os bombeiros vieram, é claro", disse o sr. Poe,"mas chegaram tarde demais. A casa inteira foi devorada pelo fogo. Não sobrou nada."
Klaus viu na imaginação todos os livros da biblioteca pegando fogo. Agora nunca mais poderia lê-los todos.
O sr. Poe tossiu várias vezes no seu lenço antes de prosseguir. "Fui mandado com o objetivo de vir buscá-los aqui e levá-los para minha casa, onde vocês ficarão algum tempo enquanto estudamos a situação. Sou o executor testamentário da herança de seus pais. Isso significa que estarei lidando com a enorme fortuna deles e resolvendo para onde vocês vão. Quando Violet atingir a maioridade, a fortuna será de vocês, mas até que isso aconteça, os bens estarão sob os cuidados do banco."
Quando ele disse a palavra executor, Violet entendeu que o sr. Poe era o carrasco que chegava para decidir sobre o seu futuro e o de seus irmãos. Simplesmente veio andando pela praia em sua direção e mudou a vida deles para sempre.
"Venham comigo", disse o sr. Poe, e estendeu sua mão. Para pegá-la, Violet teve que jogar fora a pedra que estava segurando. Klaus pegou a outra mão de Violet, Sunny pegou a outra mão de Klaus, e desse modo os três Baudelaire filhos - agora Baudelaire órfãos - foram retirados da praia e da vida que levavam antes.

CAPÍTULO
DOIS

Não adianta tentar transmitir como foi duro para os sentimentos de Violet, Klaus e Sunny o período que se seguiu em sua vida. Se alguma vez vocês perderam uma pessoa que tinha grande importância para vocês, então sabem como é que nos sentimos nessas horas, e, se nunca perderam, não dá nem para imaginar. Para os jovens Baudelaire, é claro, foi uma experiência especialmente terrível, porque perderam pai e mãe de uma só vez, e durante muitos e muitos dias se sentiram tão arrasados que mal tinham ânimo para sair da cama. Klaus não conseguia achar interesse nos livros. Os mecanismos que punham em ação o cérebro inventivo de Violet pareciam estar travados. E até mesmo Sunny, que evidentemente era jovem demais para entender de fato o que estava acontecendo, dava suas mordidas com menos entusiasmo.
Naturalmente, não melhorou nada a situação o fat de eles terem ficado também sem a casa e sem tudo o que possuíam. Vocês devem saber muito bem que basta estarmos em nosso próprio quarto, em nossa própria cama, para os momentos mais horríveis perderem um pouquinho do seu peso esmagador. Mas as camas dos Baudelaire órfãos haviam sido reduzidas a escombros carbonizados. O sr. Poe os levara para dar uma olhada no que restava da mansão, para ver se sobrara algo que se pudesse aproveitar, e a impressão foi terrível: o microscópio de Violet se fundira por completo no calor do fogo.A caneta preferida de Klaus estava transformada em cinzas, e todas as argolas de Sunny pôr na boca para morder tinham se derretido. Num e noutro canto, as crianças podiam notar os vestígios do que outrora fora o casarão tão amado por elas: pedaços do seu piano de cauda, uma elegante garrafa em que o sr. Baudelaire guardava o conhaque, o estofamento esturricado da poltrona que ficava junto à janela e em que a mãe deles gostava de sentar e ler.
Com seu lar destruído, os Baudelaire tiveram que se recuperar da terrível perda transferindo-se para a casa da família Poe, cujo ambiente não era agradável. O sr. Poe raras vezes estava em casa, porque ficava muito ocupado cuidando dos interesses dos Baudelaire, e quando estava, tossia tanto que mal conseguia manter uma conversa. A sra. Poe comprou para os órfãos roupas em cores grotescas e que pinicavam o corpo. E os dois filhos de Poe - Edgar e Alberto - eram meninos barulhentos, agitados, muito antipáticos, com quem os Baudelaire tiveram que partilhar um quarto minúsculo em que predominava um cheiro de flor dos mais enjoativos.
Mas, apesar desse ambiente pouco convidativo, os jovens Baudelaire afundaram em dúvidas quando, durante um jantar de galinha cozida com batatas cozidas e vagem escaldada - a palavra escaldada que estou usando aqui significa "cozida" -, o sr. Poe avisou que no dia seguinte eles se mudariam de sua casa.
“Ainda bem", disse Alberto, com um pedaço de batata entre os dentes. "Assim recuperamos o quarto. Não agüento mais dividir o espaço. Violet e Klaus passam o tempo todo sem fazer nada, e não têm a menor graça.”
E o bebê morde", disse Edgar, jogando um osso de galinha no chão como se ele fosse um bicho no Jardim  zoológico e não o filho de um respeitável membro da comunidade financeira.
“Para onde iremos?", perguntou Violet, nervosa.
O sr. Poe abriu a boca para dizer algo, mas rompeu num breve acesso de tosse.                   "Tomei providências" disse finalmente, "para que sejam criados por um parente afastado de vocês que mora no outro lado da cidade. Chama-se conde Olaf."
Violet, Klaus e Sunny se entreolharam, sem saber o que pensar. Por um lado, eles não queriam continuar morando com os Poe. Por outro, nunca tinham ouvido falar no conde Olaf e não faziam Idéia de como ele pudesse ser.
"O testamento de seus pais", disse o sr. Poe, "estabelece que vocês sejam criados nas melhores condições possíveis. Vocês já se acostumaram a morar na cidade, e esse conde Olaf é o único parente que vive dentro dos limites urbanos."
Klaus refletiu um minuto sobre o assunto, enquanto mastigava longamente um pedaço de vagem que estava custando a engolir. "Mas nossos pais nunca mencionaram para nós o conde Olaf. Qual é exatamente o grau de parentesco que ele tem conosco?"
O sr. Poe suspirou e baixou os olhos na direção de Sunny, que mordia um garfo e escutava, atenta. "Ele é primo em terceiro ou quarto grau de vocês. Não é o seu parente mais próximo na árvore genealógica, mas é o mais próximo geograficamente. É por isso que...
"Se ele mora na cidade", disse Violet, "como é que nossos pais nunca o convidaram para ir lá em casa?"
"Talvez por ele estar sempre muito ocupado", disse o sr. Poe. "É um ator profissional, e viaja muito pelo mundo com as mais diversas companhias teatrais.”
"Pensei que ele fosse um conde", disse Klaus.
“Ele é um conde e  um ator, disse o sr. Poe. Bom, lamento interromper a refeição, mas vocês precisam arrumar as malas, e eu tenho que voltar ao banco para continuar meu trabalho. Na condição de seu novo tutor legal, eu tenho muitos afazeres."
Os três irmãos Baudelaire tinham muitas outras perguntas para fazer ao sr. Poe, mas ele já se levantara da mesa e, com um leve aceno de mão, retirou-se da sala. Ainda ouviram quando tossiu no seu lenço, até que finalmente a porta da frente rangeu ao  fechar quando ele saiu para a rua.
"Bom", disse a sra. Poe, "vocês tratem de ir arrumando as malas. Edgar, Alberto, por favor, venham me ajudar a tirar a mesa."
Os órfãos Baudelaire foram para o quarto e melancolicamente arrumaram as malas com seus poucos pertences. Klaus olhava desgostoso para cada uma das camisas feiosas e ordinárias que a sra. Poe havia comprado para ele, à medida que as dobrava,  ia pondo numa maleta. Violet observava à sua volta e colhia uma impressão geral do cômodo malcheiroso e atravancado em que tinham estado morando. E Sunny engatinhava em todas as direções e mordia solenemente cada um dos sapatos de Edgar e Alberto, deixando marcas de seus dentinhos para que não fossem esquecidos. De quando em quando, os jovens Baudelaire se entreolhavam, mas, com o futuro sendo um tal mistério, não conseguiam imaginar nada para dizer. Deitados para dormir, viraram-se e se agitaram na cama a noite toda, mal conseguindo um farrapo de sono entre os roncos pesados de Edgar e Alberto e a perturbação que os seus próprios pensamentos aflitivos lhes causavam. Até que, por fim, o sr. Poe bateu à porta e pôs a cabeça dentro do quarto.
"Bom dia, vamos começar o grande dia", disse ele. "Está na hora de vocês irem para a casa do conde Olaf."
Violet olhou para o quarto atravancado em torno dela e, apesar de não gostar dali, sentiu-se muito aflita por ter que ir embora. "Temos que ir neste exato momento?” perguntou.
O sr. Poe abriu a boca para falar, mas primeiro tossiu algumas vezes. "Têm, sim. Vou deixá-los no meu caminho para o banco, de forma que precisamos ir o mais rápido possível. Por favor, saiam da cama e vistam-se", disse ele, num tom de absoluta determinação. "De absoluta determinação" aqui significa "que não dava margem a dúvidas quanto à urgência dos jovens Baudelaire irem para a rua.
Os órfãos Baudelaire deixaram a casa. O automóvel do sr. Poe seguiu, lento e ofegante, pelas ruas calçadas com paralelepípedos em direção ao bairro da cidade onde morava o conde Olaf. Passaram por carruagens puxadas por cavalos, passaram por motocicletas ao longo da Passagem da Calmaria. Passaram pela Fonte Volúvel, um monumento lindamente esculpido de que às vezes jorrava água, fazendo a diversão da criançada. Atravessaram um vasto espaço de terra batida onde outrora ficavam os Jardins Reais. Após algum tempo, o sr. Poe desceu com seu carro uma viela ladeada por casas de tijolos e parou a meio caminho do final do quarteirão.
“Cá estamos" , disse o sr. Poe, num tom de voz que tinha a intenção de ser animador. "Eis o novo lar de  vocês."
Os jovens Baudelaire olharam para fora e se depararam com a casa mais bonita do quarteirão. Os tijolos haviam recebido uma limpeza para valer, e pelas amplas janelas abertas dava para ver uma coleção de plantas bem tratadas. Diante da entrada da casa, com uma das mãos segurando a reluzente maçaneta de metal da porta, uma senhora de certa idade, elegantemente vestida, sorria para os Baudelaire. Na outra mão tinha um vaso de flores.
"Olá!", cumprimentou com muita simpatia. "Vocês devem ser as crianças que o conde Olaf está adotando.”
Violet abriu a porta do automóvel e saiu para cumprimentar a mulher com um aperto de mão. Sentiu um contato firme e caloroso, e pela primeira vez desde um tempo razoavelmente longo sentiu que sua vida e a de seus irmãos poderiam enfim tomar um rumo feliz. "Sim", disse. "Somos nós, sim. Eu sou Violet Baudelaire, e este é meu irmão Klaus, e esta é minha irmã Sunny. E este é o sr. Poe, que tem se encarregado de resolver tudo para nós desde a morte de nossos pais."
"Soube do acidente", disse a mulher, enquanto todos terminavam de dizer "como vai?". "Sou Justice* Strauss."
"Um prenome meio fora do comum", observou Klaus.
"É meu título", ela explicou, "não meu prenome. Sou juíza na Suprema Corte."
"Fascinante!", disse Violet. "E é casada com o conde Olaf?"
''Ah, não, imagine!", disse a juíza Strauss. "Na verdade, eu nem o conheço muito bem. Ele é apenas meu vizinho."
Os meninos deslocaram o olhar, transferindo-o da casa lindamente conservada da juíza Strauss para a casa deploravelmente dilapidada que ficava ao lado. Os tijolos estavam encardidos e ensebados. Na fachada, só duas pequenas janelas, mantidas fechadas apesar de o dia estar muito bonito. Acima das janelas se erguia uma torre alta e suja, um pouco tombada para a esquerda. A porta da frente estava precisando ser repintada, e entalhada em seu centro havia a imagem de um olho. A construção inteira caía para um dos lados, como um dente torto.

(*) Justice pode, de fato, ser "Justiça” (como Klaus achou que fosse). Mas é também o título usado na Inglaterra e nos Estados Unidos para designar."juiz da Suprema Corte". (N. T)

“Oh!", disse Sunny, e todo mundo entendeu o que ela quis dizer. Ela quis dizer: "Que lugar mais terrível! Não quero ir morar lá de jeito nenhum!".
"Bem, foi um prazer conhecer a senhora", disse Violet para a juíza Strauss.
“Sim", disse a juíza, e indicou com um gesto o seu vaso de flores. "Quem sabe vocês não aparecem qualquer dia desses para me ajudar na jardinagem?"
“Isso seria muito agradável", disse Violet muito tristemente. Sem dúvida, seria muito agradável ajudar ajuíza Strauss em sua jardinagem, mas Violet não pôde deixar de pensar que seria bem mais agradável morar na casa da juíza Strauss, e não na casa do conde Olaf. Que tipo de homem seria aquele, perguntou-se Violet, capaz de entalhar a imagem de um olho na sua porta da rua?
O sr. Poe tocou com os dedos respeitosamente aba do seu chapéu para se despedir da juíza Strauss, que sorriu para as crianças e em seguida desapareceu dentro de sua adorável casa. Klaus deu dois passos para a frente e bateu à porta do conde Olaf, com os nós dos dedos fazendo pontaria bem no centro do olho entalhado. Houve uma pausa, e logo a porta se abriu com um rangido, e as crianças viram o conde Olaf pela primeira vez.
"Olá, olá, olá", disse o conde Olaf num murmúrio ofegante. Ele era muito alto e muito magro, e vestia um terno cinzento com várias manchas escuras. O rosto estava sem barbear e, no lugar das duas sobrancelhas que a maioria dos seres humanos possui, tinha uma única, bem comprida. Seus olhos brilhavam intensamente, o que lhe dava uma aparência de faminto e zangado ao mesmo tempo. "Olá, meus filhos. Entrem em seu novo lar, mas antes esfreguem a sola dos sapatos ai fora, para não trazerem lama para dentro de casa."
Quando entraram na casa, com o sr. Poe atrás, os órfãos Baudelaire perceberam o ridículo das palavras que o conde Olaf acabara de dizer. A sala em que se encontravam era o lugar mais sujo que já tinham visto, e um pouco de lama que trouxessem da rua não teria feito a menor diferença. Mesmo à luz fraca de uma única lâmpada presa num fio que pendia do teto, as três crianças podiam ver que tudo naquela sala estava na maior imundície, desde a cabeça empalhada de um leão pregada na parede até a tigela com pedaços de maçã sem casca sobre uma mesinha de madeira. Klaus fez força para não chorar quando passou os olhos à sua volta.
“Parece que esta sala está precisando de uma limpeza", disse o sr. Poe, tentando enxergar na penumbra reinante.
"Sei muito bem que minha humilde morada não se compara à mansão dos Baudelaire", disse o conde Olaf, "mas talvez com um pouco do seu dinheiro possamos lhe dar um aspecto melhor."
Os olhos do sr. Poe cresceram, tomados de surpresa, e sua tosse ecoou pela sala escura antes de ele falar. ''A fortuna dos Baudelaire", disse com firmeza, não será usada para finalidades como essa. Na verdade, não será usada de forma nenhuma antes de Violet atingir a maioridade."
O conde Olaf se virou para o sr. Poe com um piscar de olhos semelhante ao de um cão enfurecido. Por um instante Violet pensou que ele ia esbofetear o sr. Poe. Mas ele engoliu em seco - as crianças viram o seu pomo-de-adão se mexendo para cima e para baixo dentro da garganta magrela - e deu de ombros.
"Tudo bem", disse, "para mim tanto faz. Muito obrigado, sr. Poe, por tê-los trazido até aqui. Meus filhos, agora deixem-me mostrar o seu quarto."
''Adeus, Violet, Klaus e Sunny", disse o sr. Poe, encaminhando-se para a porta da rua. "Espero que sejam muito felizes aqui. Continuarei a visitá-los ocasionalmente, e vocês podem me procurar no banco se tiverem perguntas a fazer."
"Mas nem sequer sabemos onde fica o banco",disse Klaus.
"Tenho um mapa da cidade", disse o conde Olaf.
“Adeus, sr. Poe. O  conde se inclinou depressa para a frente a fim de fechar a porta, e os órfãos Baudelaire estavam mergulhados demais em seu desespero para querer se despedir do sr. Poe ainda uma última vez. Naquele momento teriam desejado mais que tudo continuar na casa do sr. Poe, apesar do mau cheiro. Em vez de olhar para a porta, os órfãos olharam foi para baixo, e viram que, embora o conde Olaf estivesse calçado com sapatos, não estava usando meias. E dava para eles verem, no intervalo de pele muito branca situado entre a surrada bainha da calça e o seu sapato preto, que o conde Olaf tinha tatuada a imagem de um olho em seu tornozelo, igual à do olho em sua porta da rua. Ficaram imaginando quantos outros olhos não haveria na casa do conde Olaf, e veio-lhes um pressentimento de que, para o resto de sua vida, estariam sempre se sentindo sob a estreita vigilância do conde Olaf, mesmo quando ele não estivesse por perto.

CAPÍTULO
TRÊS



Não sei se vocês já perceberam, mas as primeiras impressões muitas vezes são inteiramente falsas. Você pode olhar para um quadro uma primeira vez, por exemplo, e não gostar nem um pouco, mas, depois de olhar mais algum tempo, você é capaz de achá-lo muito bom. Na primeira vez em que você experimenta queijo gorgonzola, pode achar que é forte demais, mas, quando você for mais velho, pode querer não comer outra coisa na vida a não ser queijo gorgonzola. Quando Sunny nasceu, Klaus não gostava dela de jeito nenhum, mas quando ela completou seis semanas, os dois viviam agarradíssimos. A primeira opinião que você tem sobre qualquer coisa pode mudar com o tempo. Eu gostaria de poder dizer para vocês que os Baudelaire estavam enganados nas primeiras impressões que tiveram sobre o conde Olaf e sua casa, como muitas vezes acontece. Mas aquelas impressões de que o conde Olaf era uma pessoa horrível e de que sua casa era um chiqueiro deprimente _ estavam absolutamente corretas. Durante os primeiros dias que se seguiram à chegada dos órfãos à casa do conde Olaf, bem que Violet, Klaus e Sunny se esforçaram para se sentir à vontade no novo ambiente, mas de nada adiantou. Apesar de a casa do conde Olaf ser bem grande, as crianças foram postas juntas num único quarto nojento com uma só cama para os três. Violet e Klaus se revezavam para dormir nela, uma noite na cama, outra noite no chão duro de madeira, e o próprio colchão tinha tantos calombos que ficava difícil dizer quem dormia com menos conforto. A fim de arranjar uma cama para Sunny, Violet tirou as cortinas empoeiradas presas à barra de ferro em cima da única janela do quarto e, com elas dobradas várias vezes, formou uma espécie de almofadão que foi a conta para acolher o corpinho da irmã. No entanto, sem cortinas que cobrissem a vidraça rachada, o sol invadia o quarto todas as manhãs, e os meninos acordavam cedinho e mal-humorados. Em vez de armário, havia uma grande caixa de papelão, usada noutros tempos para o transporte da geladeira, mas uma coisa era servir para guardar uma geladeira, outra, para guardar as roupas das três crianças, ainda que empilhadas num bloco só. Em lugar de brinquedos, livros ou outras coisas para divertir os jovens, o conde Olaf tinha providenciado um pequeno amontoado de pedras. E a única decoração nas paredes descascadas era um quadro grande e feio representando um olho, igualzinho àquele do tornozelo do conde e a todos os outros espalhados pela casa.
Mas as crianças sabiam, como tenho certeza de que vocês também sabem, que por pior que seja o ambiente à nossa volta, ele pode ser suportado, desde que as pessoas que nele se encontram sejam interessantes e gentis. O conde Olaf não era uma coisa nem outra; era exigente, tinha pavio curto e ainda por cima era fedorento. A única coisa que se podia dizer a favor do conde é que não era sempre que ele estava por perto. Quando as crianças acordavam e tiravam da caixa de papelão a roupa que escolhiam para vestir, iam em seguida até a cozinha e viam uma lista de instruções que o conde Olaf lhes deixara, já que com freqüência ele não voltava para casa antes do anoitecer. O conde passava a maior parte do dia fora, ou no alto da torre, onde as crianças estavam proibidas de entrar. As instruções que ele deixava tinham a ver com tarefas em geral difíceis, como repintar a varanda dos fundos ou consertar as janelas; em vez de assinar, o conde Olaf desenhava um olho na parte de baixo do bilhete.
Certa manhã, estava escrito no bilhete: "Os atores da minha trupe virão jantar antes do espetáculo desta noite. O jantar deve estar pronto para os dez convidados quando eles chegarem às sete horas. Comprem a comida, preparem, ponham a mesa, sirvam o jantar, depois lavem a louça, e não nos incomodem". Abaixo, lá estava o olho de sempre, e sob o bilhete uma pequena soma de dinheiro para as compras.
Violet e Klaus leram o bilhete ao tomarem o café da manhã, que consistia num mingau de aveia, cinzento e encaroçado, que o conde Olaf deixava para eles todas as manhãs numa panela grande em cima do fogão. Leram e em seguida olharam um para o outro, muito aflitos.
"Nenhum de nós sabe cozinhar", disse Klaus. "É verdade", disse Violet. "Eu soube consertar as janelas e limpar a chaminé, porque são coisas que me interessam. Mas, em matéria de cozinha, o máximo que eu sei fazer são torradas."
“E às vezes você ainda queima as torradas", disse Klaus, e eles riram. Estavam se lembrando de uma ocasião em que os dois se levantaram cedo para preparar um café da manhã especial para os pais. Violet  havia queimado a torrada e seus pais, sentindo o cheiro de queimado, desceram a escada correndo para ver o que tinha acontecido. Quando viram Violet e Klaus examinando desapontados os pedaços enegrecidos de torrada, morreram de rir e prepararam panquecas para toda a família.
"Gostaria que estivessem aqui", disse Violet. Não precisou explicar que estava se referindo aos pais. Eles jamais deixariam que ficássemos neste lugar horrível.”
"Se estivessem aqui", disse Klaus, levantando a voz à medida que se mostrava cada vez mais revoltado, "antes de mais nada não precisaríamos estar tom o conde Olaf. Detesto isto aqui, Violet! Detesto esta casa! Detesto nosso quarto! Detesto ter que fazer todos esses trabalhos, e detesto o conde Olaf!"
"Também detesto", disse Violet, e Klaus olhou para a irmã mais velha com alívio. Às vezes o simples fato de você dizer que detesta alguma coisa e ler alguém que concorda com você pode ajudá-lo a suportar uma situação horrível. "Detesto tudo o que há em nossa vida neste momento, Klaus", disse ela, "mas vamos ter que manter o queixo erguido." Essa era uma expressão que o pai dos meninos costumava usar e que significava "tentar não perder o ânimo .
"Tem razão", disse Klaus. "Mas é muito difícil manter o queixo erguido quando o conde Olaf só faz empurrá-lo para baixo."
"Juf!", gritou Sunny, batendo na mesa com sua  colher de mingau de aveia. Violet e Klaus foram interrompidos em sua conversa e olharam mais uma vez para o bilhete do conde Olaf.
"Quem sabe não encontramos um livro de receitas e descobrimos alguma página que ensine a cozinhar?", disse Klaus. "Não pode ser tão difícil assim preparar uma simples refeição."
Violet e Klaus levaram vários minutos abrindo e fechando os armários da cozinha do conde Olaf, mas não acharam nenhum livro de receitas.
''A mim, não me surpreende", disse Violet. "Nesta casa, não encontramos livros de nenhum tipo."
"Eu sei", disse Klaus na maior tristeza. "Sinto muita falta de ler. Vamos precisar sair qualquer dia desses e procurar onde é que tem uma biblioteca."
"Mas não hoje", disse Violet. "Hoje temos que cozinhar para dez pessoas."
Nesse momento bateram na porta da rua. Violet e Klaus se entreolharam, nervosos.
"Quem neste mundo poderia querer visitar o conde Olaf?", Violet indagou a si mesma em voz alta.
"Talvez seja alguém que esteja querendo nos visitar" , disse KIaus sem maiores esperanças. Desde a linda de seus pais, a maioria dos amigos dos órfãos Baudelaire tinham desertado, e quando digo "tinham desertado", quero dizer que "pararam de telefonar ou escrever para eles, não apareceram nem uma vez para ver como estavam, deixando-os muito solitários". É evidente que vocês e eu jamais faríamos uma coisa dessas com algum conhecido que estivesse de luto, mas é uma triste verdade da vida: quando perdemos um ente querido, os amigos às vezes nos evitam, justamente quando a presença de amigos é mais necessária.
Violet, Klaus e Sunny foram andando devagar até a porta da rua e espiaram pelo olho mágico, que, como era de esperar, tinha também a forma de um olho. Ficaram encantados ao ver a juíza Strauss, que os examinava do outro lado, e abriram a porta.
''Juíza Strauss!", exclamou Violet. "Que bom que a senhora veio!" Estava a ponto de acrescentar: "Entre, por favor!", mas pensou duas vezes e concluiu que a juíza Strauss provavelmente não quereria se aventurar na sala suja e pouco iluminada.
"Por favor, perdoem-me por não ter aparecido antes", disse a juíza Strauss, enquanto os Baudelaire se postavam diante da entrada, meio contrafeitos. "Eu bem que tive vontade de ver como vocês estavam se acomodando na nova casa, mas tive um processo muito difícil na Suprema Corte, que me deixou sem tempo para mais nada."
"Que tipo de processo foi?", perguntou Klaus. Privado de leitura como se achava, estava faminto de informações novas.
"Na verdade, não posso discuti-lo", disse a juíza Strauss, "porque é um assunto oficial. Mas posso dizer que envolve uma planta venenosa e o uso ilegal de um cartão de crédito alheio."
"Iiica!", gritou Sunny, como se quisesse dizer:"Que interessante!", embora evidentemente não houvesse a menor possibilidade de Sunny ter entendido o que estava sendo dito.
A juíza Strauss baixou os olhos para Sunny e riu. "É o caso: iiica!", disse, e estendeu a mão para acariciar a cabeça da menina. Sunny pegou a mão da juíza e a mordeu gentilmente.
"Isso significa que ela gostou da senhora', explicou Violet. "Ela morde com muita força, morde para valer, quando não gosta de alguém ou quando alguém quer dar banho nela."
"Sei", disse a juíza Strauss. ''Agora me digam: como é que vocês estão? Há alguma coisa que vocês desejem?”
As crianças se entreolharam, com o pensamento em tudo o que desejavam. Outra cama, por exemplo. Um berço decente para Sunny. Cortinas para a janela do quarto. Um armário em vez da caixa de papelão. Mais que tudo, porém, desejavam não ter nenhum tipo de ligação com o conde Olaf, é claro. Mais que tudo, desejavam estar morando com seus pais novamente, em sua casa de verdade, o que era impossível, sabiam muito bem. Violet, Klaus e Sunny ficaram, todos, olhando para o chão, refletindo com infelicidade na pergunta. Até que Klaus falou.
"Poderíamos pedir emprestado um livro de receitas?", disse. "O conde Olaf mandou que fizéssemos um jantar esta noite para os atores da sua companhia teatral, e não conseguimos achar nenhum livro de receitas em casa."
"Deus do céu", disse a juíza Strauss. "Parece exagero pedir que crianças cozinhem para toda uma companhia teatral."
"O conde Olaf nos dá muitas responsabilidades", disse Violet. O que ela quis dizer foi: "O conde Olaf é um homem mau". Mas era uma menina bem-educada.
"Bom, por que vocês não vêm comigo até a minha casa e não procuram um livro de receitas que lhes agrade?"
Os jovens aceitaram o convite e seguiram a juiza Strauss, passando ao interior de sua tão bem cuidada casa. Ela os levou por um elegante corredor com perfume de flores até um vasto salão, e quando viram o que havia ali, quase desmaiaram de encantamento, especialmente Klaus.
A sala era uma biblioteca. Não uma biblioteca pública, mas uma biblioteca particular, ou seja: uma grande coleção de livros pertencentes à juiza Strauss. Havia estantes e mais estantes repletas, em todas as paredes, do chão ao teto. E estantes soltas, no meio da sala, muitas delas - o único lugar em que não se viam livros era um dos cantos, onde havia poltronas que pareciam bem confortáveis e uma mesa de madeira com pontos de luz projetados sobre ela, perfeitos para a leitura. Apesar de não ser tão grande quanto a biblioteca de seus pais, aquela era igualmente aconchegante, e os jovens Baudelaire estavam empolgados.
"É uma biblioteca maravilhosa, parabéns!", disse Violet.
“Muito obrigada!", disse a juíza Strauss. "Venho colecionando livros há anos, e tenho muito orgulho de minha coleção. Contanto que cuidem direitinho deles, estão todos à disposição de vocês, quando quiserem. Vejam, os livros de receitas ficam na parede esquerda. Vamos dar uma olhada neles?"
"Vamos", disse Violet, "e se não se importar, gostaria de olhar os livros que tratam de engenharia mecânica. Inventar coisas é minha paixão."
"E eu gostaria de olhar livros sobre lobos", disse Klaus. "Ultimamente ando fascinado pelos animais selvagens da América do Norte."
"Liiiv!", gritou Sunny, querendo dizer: "Por favor, não se esqueçam de pegar um livro com figuras para mim .
A juíza Strauss sorriu. "É um prazer conhecer jovens interessados em livros", disse. "Mas primeiro acho que precisamos encontrar uma boa receita, não é mesmo?"
As crianças concordaram e por cerca de trinta minutos examinaram diversos livros de receitas recomendados pela juíza. Para dizer a verdade, os três órfãos estavam tão entusiasmados por se encontrar fora da casa do conde Olaf, naquela agradável biblioteca, que se distraíam e sua atenção se desviava um pouco, impedindo-os de se concentrar no campo da culinária. Mas finalmente Klaus descobriu um prato que parecia delicioso e fácil de fazer.
"Escutem só", disse. "Puttanesca. É um molho italiano para massas. Prepara-se com azeitonas, alcaparras, enchovas, alho, salsa picada e tomates misturados na panela, depois é só fazer espaguete e juntar com o molho."
"Parece fácil", concordou Violet, e os órfãos Baudelaire se entreolharam. Quem sabe, com a amável juíza Strauss e sua biblioteca bem ao lado de casa, as crianças não seriam capazes de preparar uma vida agradável para si próprias com tanta facilidade como fariam espaguete à puttanesca para o conde Olaf.

CAPÍTULO
QUATRO



Os órfãos Baudelaire copiaram a receita do livro numa sobra de papel, e a juíza Strauss teve a gentileza de acompanhá-los até o mercado para que comprassem os ingredientes necessários. O conde Olaf não havia deixado muito dinheiro para eles, mas os garotos conseguiram comprar tudo o que era preciso. De um vendedor de rua levaram as azeitonas, depois de provar diversas variedades e escolher suas preferidas. Numa loja de massas adquiriram macarrão em formato muito interessante e pediram à gerente uma quantidade que desse para treze pessoas - as dez pessoas mencionadas pelo conde Olaf, mais eles três. Foram ao supermercado e compraram alho, que é um bulbo vegetal de gosto muito ativo; enchovas, que são peixinhos bem salgados; alcaparras, botões florais que dão em pequenos arbustos e têm um sabor maravilhoso, e tomates, que na verdade são frutos, e não legumes como a maioria das pessoas imagina. Eles acharam que deviam incluir uma sobremesa, e compraram vários envelopes de pó para pudim. Talvez, pensaram os órfãos, se fizessem uma refeição deliciosa, o conde Olaf passasse a ser mais gentil com eles.
"Muitíssimo obrigada pela ajuda que nos deu hoje", disse Violet, e foi andando até em casa com os irmãos e a juíza Strauss. "Não sei como teríamos nos arranjado sem a senhora."
"Vocês me parecem muito inteligentes", disse a juíza Strauss. "E eu sabia que certamente seriam capazes de inventar alguma solução. Mas continuo achando estranho o conde Olaf pedir que vocês preparassem uma refeição para tanta gente. Bom, aqui estamos. Tenho que entrar para arrumar minhas próprias compras. Espero que vocês não tardem a me visitar e levar emprestados livros de minha biblioteca.
"Amanhã?", perguntou Klaus sem perder tempo. Podemos aparecer amanhã?
"Não vejo por que não", disse a juíza Strauss, sorrindo.
"Nem sei como lhe agradecer", disse Violet, medindo as palavras. Com os pais mortos e o conde Olaf tratando-os de maneira tão abominável, as três crianças não estavam acostumadas a receber gentilezas dos adultos, e não sabiam ao certo se era esperado que dessem alguma coisa em troca. ''Amanhã, antes de tornarmos a recorrer a sua biblioteca, Klaus e eu gostaríamos de prestar serviços domésticos para a senhora. Sunny ainda não tem propriamente idade para trabalhar, mas garanto que vamos descobrir um modo dela poder ajudá-la."
A juíza Strauss sorriu para as três crianças, mas havia tristeza nos seus olhos. Estendeu a mão e a pousou nos cabelos de Violet, o que deu à menina um consolo que fazia tempo ela não sentia. "Não vai ser preciso", disse a juíza. "Vocês sempre serão bem-vindos em minha casa." Depois disso, ela se voltou para a porta e entrou. Por um breve instante os órfãos Baudelaire seguiram com o olhar seus movimentos, antes de eles próprios entrarem em casa.
Durante a maior parte da tarde, Violet, Klaus e Sunny prepararam o molho de acordo com a receita. Violet dourou o alho, limpou e picou as enchovas. Klaus descascou os tomates e tirou o caroço das azeitonas. Sunny ficou batendo numa panela com uma colher de pau, enquanto cantava uma canção um tanto repetitiva que ela havia composto. E as três crianças se sentiram menos melancólicas, como ainda não tinham se sentido desde que se mudaram para a casa do conde Olaf. O cheiro de comida indo ao fogo tem geralmente um efeito calmante, e a cozinha ficou mais aconchegante quando eles começaram a esquentar o molho em fogo baixo. Os três órfãos falaram de lembranças agradáveis de seus pais e sobre a juíza Strauss, que concordaram se tratar de uma vizinha maravilhosa, e planejaram passar um bom tempo em sua biblioteca. Conversando, misturaram e provaram o pudim de chocolate.
Bem no momento em que estavam pondo o pudim na geladeira para que esfriasse, Violet, Klaus e Sunny escutaram a porta da frente se abrir e se escancarar com estrondo, e é claro que não preciso dizer a vocês quem havia chegado em casa.
"Órfãos?", chamou o conde Olaf com sua voz arranhada."Onde estão vocês, órfãos?
"Na cozinha, conde Olaf", respondeu Klaus. "Estamos terminando de fazer o jantar."
"Assim espero", disse o conde Olaf, e entrou como um raio na cozinha. Encarou fixo os três Baudelaire com seus olhos faiscantes. "Meus colegas estão chegando e estão morrendo de fome. Onde está o) rosbife?"
"Não fizemos rosbife", disse Violet. "Fizemos macarrão a puttanesca.”
“Quê?!”,perguntou o conde. Não tem rosbife?
"O senhor não nos disse que queria rosbife", disse Klaus.
O conde Olaf se aproximou das crianças, para parecer ainda mais alto do que era. Seus olhos faiscaram com um brilho maior, e sua sobrancelha tipo duas-em-uma se ergueu raivosamente. "Quando concordei em adotá-los", disse, "tornei-me seu pai e, como pai, não admito que zombem de mim. Ordeno que sirvam rosbife, a mim e aos meus convidados. os.
"Não temos como!", gritou Violet. "Fizemos macarrão à puttanesca!"
"Na! Na! Na!, berrou Sunny.
O conde Olaf baixou os olhos para Sunny, que tinha tomado a palavra tão subitamente. Com um rugido inumano, pegou-a com uma única de suas mãos descarnadas e a levantou até a altura em que ela pudesse olhá-lo nos olhos. Não preciso dizer que Sunny se assustou muito e começou a chorar na mesma hora, apavorada demais para sequer tentar morder a mão que a retinha.
"Ponha já a menina no chão, seu animal!", gritou Klaus. E deu um salto, querendo salvar Sunny das garras do conde, mas este a suspendera mais alto do que o menino podia alcançar. O conde Olaf baixou os olhos para Klaus e lhe dirigiu um sorriso terrível, com os dentes todos à mostra, ao mesmo tempo que erguia ainda mais alto no ar a chorosa Sunny. Ele parecia disposto a deixá-la cair quando se ouviu uma explosão de gargalhadas vindo da sala ao lado.    .
"Olaf! Onde está Olaf?", chamavam muitas vozes. O conde Olaf fez uma pausa, ainda com a chorosa Sunny suspensa no ar, enquanto membros da companhia teatral entravam ruidosamente na cozinha. Logo ocuparam todo o espaço - uma multidão que reunia os tipos de aparência mais estranha, de todas as formas e tamanhos. Havia um careca com nariz bem comprido, vestindo um longo roupão negro. Havia duas mulheres com o rosto inteiro coberto de um pó branco e brilhante que lhes dava o aspecto de fantasmas. Atrás das mulheres, estava um homem de braços muito compridos e magricelas que terminavam por ganchos em vez de mãos. Havia uma pessoa tremendamente gorda e que não parecia ser nem homem nem mulher. Atrás dessa pessoa, amontoadas junto à porta da cozinha, achavam-se várias outras que as crianças não podiam ver mas que também deviam ser assustadoras.
"Aí está o homem!", disse uma das mulheres de rosto branco. "Que diabo você está fazendo, Olaf?"
"Estou dando uma lição nesses órfãos", disse o conde Olaf. "Pedi a eles que preparassem o ‘jantare' tudo o que fizeram foi um molho nojento."
"Não se pode dar moleza para as crianças", disse o homem com mãos de gancho. "Elas têm que aprender a obedecer aos mais velhos."
O careca alto fixou o olhar nos meninos. "São estes, perguntou ao conde Olaf, "os riquinhos de que você me falou?"
"Sim", disse o conde. "São tão horríveis que mal consigo suportar o contato de qualquer um deles." Ao dizer isso, pôs no chão Sunny, que continuava chorando. Violet e Klaus suspiraram aliviados por ele não a ter deixado despencar da altura em que se achava.
"Você está certo", disse alguém que estava junto à porta da cozinha.
O conde Olaf esfregou as mãos uma na outra como se houvesse estado segurando algo repelente e não um bebê. "Bem, chega de conversa”, disse. ''Acho que vamos ter que comer o jantar deles, mesmo que tenha saído tudo errado. Venham comigo à sala de jantar, que eu servirei vinho para vocês. Pode ser que quando esses pirralhos puserem a comida na mesa, já estejamos bêbados o suficiente para nem reparar se é rosbife ou não."
"Viva!", gritaram vários membros da trupe, e se retiraram da cozinha, acompanhando o conde Olaf até a sala de jantar. Ninguém prestou a menor atenção nos meninos, a não ser o tal careca, que parou e ficou olhando Violet nos olhos.
"Você até que é bonitinha”, disse, tomando-lhe o rosto nas mãos. "Se eu fosse você, tentaria não aborrecer o conde Olaf, do contrário ele é capaz de arrebentar esse lindo rostinho." Violet estremeceu e o careca deu uma risada estridente ao seguir na direção dos outros.
Os Baudelaire, deixados a sós na cozinha, respiraram pesado, como se tivessem acabado de correr uma longa distância. Sunny continuava chorando, e Klaus descobriu que seus próprios olhos também estavam molhados. Só quem não chorava era Violet, tomada apenas por uns tremores que eram de medo e repulsa, palavra que aqui está usada no sentido de "mistura desagradável de horror e aversão". Por alguns momentos nenhum deles conseguiu falar.
"É terrível, é terrível", disse Klaus afinal. "Violet, o que podemos fazer?"
"Não sei", disse ela. "Estou com medo." "Eu também", disse Klaus.
"Rac!", disse Sunny, parando de chorar.
"Como é? E esse jantar?", gritou alguém da sala vizinha, e a trupe em peso começou a bater na mesa ritmadamente, o que é uma grosseria que não tem tamanho.
"É melhor pôr a comida na mesa, ou sabe-se lá o que o conde Olaf é capaz de fazer conosco."
Violet pensou no que o careca tinha dito, sobre aquela história de arrebentar o rosto dela, e concordou. Os dois olharam para a panela onde borbulhava o molho, que lhes parecera tão apetitoso enquanto o estavam preparando e agora era como um barril de sangue. Depois, deixando Sunny na cozinha, caminharam para a sala de jantar. Klaus levava uma tigela com o macarrão em formato interessante, e Violet a panela com o molho, acompanhada de uma pesada concha para servi-lo. A trupe conversava às gargalhadas, bebendo seguidamente de suas taças de vinho, sem prestar a menor atenção nos órfãos Baudelaire, que se empenhavam em dar a volta ao redor da mesa servindo o jantar a cada um. A mão direita de Violet doía do esforço de segurar a pesada concha. Ela pensou em usar a outra mão para suportar melhor o peso, mas como era destra, receava derramar o molho com sua mão esquerda, o que poderia enfurecer o conde Olaf mais uma vez. Olhou com tristeza para o prato de comida do conde, e se surpreendeu desejando ter comprado veneno no mercado para acrescentar ao molho. Tendo terminado de servir, Klaus e Violet discretamente se retiraram para a cozinha. Sempre escutando o gargalhar grosseiro e desenfreado do conde Olaf e de sua trupe, fizeram seu próprio prato, mas estavam tão tristes que nem tinham vontade de comer. Não demorou muito, e os convidados de Olaf mais uma vez começaram a bater ritmadamente na mesa, um sinal para que os órfãos corressem à sala de jantar, recolhessem os pratos e em seguida servissem o pudim de chocolate. Àquela altura era óbvio que o conde Olaf e seus colegas haviam bebido toneladas de vinho, pois se debruçavam procurando apoio na mesa e falavam muito menos. Até que por fim se levantaram, saindo em rebanho para atravessar de novo a cozinha e acertar com o caminho que levava à porta da rua. O conde Olaf circulou um olhar pela cozinha, que estava repleta de pratos sujos.
"Já que vocês ainda não terminaram de limpar", disse ele aos órfãos, "estão desculpados de não comparecerem ao espetáculo desta noite. Mas, depois de tudo arrumado, vão direto para suas camas."
Klaus olhava fixo para o chão, tentando esconder a raiva de que se sentia possuído. Mas, ouvindo isso, não agüentou ficar calado.
"O senhor quer dizer para a cama", gritou. "Pois li senhor só providenciou uma cama para todos nós!"
Os membros da companhia teatral pararam no meio de seu caminho, surpreendidos por aquele rompante, e de Klaus transferiram o olhar para o ronde Olaf, a fim de ver o que aconteceria em seguida. O conde ergueu sua sobrancelha tipo duas-em-uma, com os olhos brilhando intensamente, mas falou com calma.
"Se acham que precisam de outra cama", disse ele, "é só irem amanhã à cidade comprar uma."
"O senhor sabe perfeitamente que não temos dinheiro", disse Klaus.
"Claro que têm", disse o conde Olaf, e seu tom de voz começou a se levantar um pouco. "Vocês são herdeiros de uma enorme fortuna."
"Esse dinheiro", disse Klaus, recordando o que o sr. Poe havia dito, "é para ser usado só quando Violet atingir a maioridade."
O conde Olaf ficou muito vermelho de raiva. Por um instante, não disse nada. Em seguida, com um movimento súbito do braço, acertou o rosto de Klaus. O garoto caiu no chão, com a cabeça a poucos centímetros do olho tatuado no tornozelo do conde. Seus óculos saltaram do rosto e foram parar mais adiante. A face esquerda, que havia recebido a pancada de Olaf, ardia como se estivesse pegando fogo. A trupe caiu na risada, e alguns deles até aplaudiram, como se o conde Olaf tivesse realizado um ato de grande bravura, e não uma baixeza desprezível.
"Vamos embora, amigos", disse o conde Olaf para seus camaradas. "Senão nos atrasaremos para o espetáculo. "
"Se o conheço bem, Olaf", disse o homem com mãos de gancho, "vai acabar descobrindo um jeito de tomar esse dinheiro dos Baudelaire."
"Vamos ver", disse o conde Olaf, mas seus olhos brilhavam como se ele já tivesse uma idéia a respeito do assunto. Ouviu-se outro estrondo quando a porta da rua bateu fechando-se atrás do conde Olaf e de seus terríveis amigos, e os Baudelaire ficaram sozinhos na cozinha. Violet se ajoelhou ao lado de Klaus, abraçando-o para ver se ele se sentia melhor. Sunny engatinhou até onde tinham ido parar seus óculos, pegou-os e os levou para ele. Klaus começou a chorar, não por causa da dor, mas de raiva pela horrível situação em que estavam metidos. Violet e Sunny choraram com ele, e o choro se prolongou enquanto lavavam os pratos, e quando sopraram apagando as velas na sala de jantar, e quando trocaram de roupa e se deitaram para dormir, Klaus na cama, Violet no chão e Sunny em sua pequena almofada feita com as cortinas. O luar entrava pela janela, e se alguém olhasse para dentro do quarto dos órfãos Baudelaire, veria três crianças chorando de mansinho a noite inteira.

CAPÍTULO
CINCO

A não ser que vocês tenham tido uma sorte rara, raríssima, na vida, certamente terão passado por experiências que os fizeram chorar. Ou seja, a não ser que tenham tido essa sorte raríssima, vocês sabem que uma boa e longa sessão de choro é capaz de melhorar nosso ânimo, mesmo que as circunstâncias se mantenham as mesmas. Foi o que aconteceu com os órfãos Baudelaire. Depois de chorarem uma noite inteira, acordaram na manhã seguinte se sentindo como se tivessem tirado um peso dos ombros deles. As três crianças sabiam, é claro, que continuavam numa situação horrível, mas começaram a pensar que poderiam fazer alguma coisa para melhorá-la.
O bilhete deixado aquela manhã pelo conde Olaf.mandava que eles fossem cortar lenha no quintal, e enquanto Violet e Klaus atacavam a machadadas as toras para reduzi-las a pedaços menores, discutiram possíveis planos de ação, ao mesmo tempo que
Sunny mastigava pensativamente uma lasca de madeira.
"É evidente", disse Klaus, apontando o horrendo machucado feito em seu rosto pelo conde Olaf, “que não podemos ficar aqui por mais tempo. Prefiro me arriscar vivendo na rua a continuar neste lugar pavoroso.”
"Mas quem sabe as desgraças que podem nos acontecer se nos mudarmos para a rua?", observou Violet. "Pelo menos temos um teto para cobrir nossa cabeça.
“Gostaria que pudéssemos usar o dinheiro de nossos pais desde já, em vez de termos que esperar pela maioridade", disse Klaus. "Aí poderíamos comprar um castelo e morar nele, com seguranças armados, vigiando do lado de fora para não deixar que o conde Olaf e sua trupe entrassem."
"E eu poderia ter um amplo estúdio para minhas invenções", disse Violet, com a tristeza de quem menciona um sonho impossível. Ela brandiu o machado e partiu a tora de madeira em duas exatas metades. "Um estúdio todo equipado com fios, roldanas, engrenagens e um sistema sofisticado de computadores.
"E eu poderia ter uma ampla biblioteca", disse Klaus, "igualzinha em conforto à da juíza Strauss, mas mais gigantesca.”
"Guibo!", gritou Sunny, como se dissesse: "E eu poderia ter um monte de coisas para morder".
"Mas, enquanto isso", disse Violet, "temos que fazer alguma coisa para sair deste aperto."
"Quem sabe a juíza Strauss não poderia nos adotar?", disse Klaus. "Ela falou que seríamos sempre bem-vindos em sua casa."
"Ela estava falando de uma visita, ou de uma consulta à sua biblioteca", assinalou Violet. "Não falou em morar.”
"Se explicássemos nossa situação para ela, talvez ela concordasse em nos adotar", disse Klaus, como que esperançoso, mas quando Violet olhou para ele, viu escrito no rosto dela: "nenhuma chance". Adotar crianças é uma decisão muito séria, e é pouco provável tomá-la impulsivamente. Tenho certeza de que, na vida de vocês, já houve momentos em que desejaram ser criados por pessoas diferentes daqueles que os criam, mas no fundo do coração sabiam que as chances de isso acontecer eram mínimas.
"Acho que devíamos procurar o sr. Poe", disse Violet. "Ele falou, quando nos deixou aqui, que podíamos entrar em contato com ele no banco sempre que tivéssemos alguma dúvida."
"Não se trata propriamente de dúvida”, disse Klaus. "Temos uma queixa." Voltou-lhe à memória a imagem do sr. Poe caminhando na direção deles, na Praia de Sal, com sua mensagem terrível. Apesar de o sr. Poe evidentemente não ter sido culpado do incêndio, Klaus hesitava em vê-lo por medo de que ele pudesse trazer más notícias outra vez.
"Não sei de mais ninguém que possamos procurar", disse Violet. "O sr. Poe é quem trata dos nossos assuntos, e tenho certeza de que, se ele soubesse o horror que é o conde Olaf, nos tiraria daqui na mesma hora.”
Klaus imaginou o sr. Poe chegando e pondo os órfãos Baudelaire dentro do carro, a fim de levá-los para qualquer outro lugar, e sentiu uma centelha de esperança se acender. Qualquer lugar seria melhor do que aquele. "Está certo", disse. "Assim que acabarmos de rachar essa lenha, vamos até o banco."
Animados com seu plano, os órfãos Baudelaire baixaram o machado com renovado vigor e uma velocidade assombrosa, de modo que em pouco tempo a lenha estava toda cortada e eles, prontos para ir ao banco. Lembraram-se de o conde dizer que tinha um mapa da cidade, e revistaram a casa inteira à sua procura, mas não o acharam. Concluíram que deveria estar na torre, onde haviam sido proibidos de entrar. E, assim, sem orientação de nenhum tipo, seguiram para a zona bancária da cidade, na esperança de encontrar o sr. Poe.
Depois de percorrer a zona de açougues, a zona de flores e a zona de estátuas, as três crianças chegaram à zona bancária, fazendo uma pausa para beber água na Fonte da Vitória das Finanças. A zona bancária era formada por várias ruas largas com grandes construções de mármore de cada lado, todas servindo a bancos. Entraram primeiro no Banco de Toda a Confiança, depois na Caixa Segura de Empréstimos e Poupanças e, em seguida, na Prestação de Serviços Financeiros, sempre perguntando pelo sr. Poe. Uma recepcionista na Prestação informou que o sr. Poe trabalhava no final da rua, na Administração de Multas. O prédio era quadrado e com um jeitão simplório, mas, uma vez lá dentro, os três órfãos se sentiram intimidados com a agitação de pessoas que em grandes levas corriam de um lado para outro do vasto salão, os passos ecoando desmesuradamente. Por fim se decidiram a perguntar a um guarda uniformizado se ali era de fato o lugar onde trabalhava o sr. Poe, e ele os conduziu a um amplo escritório com muitos arquivos de aço e nenhuma janela.
"Olá, vocês por aqui?", disse o sr. Poe, com certa surpresa na voz. Estava sentado a uma escrivaninha coberta de folhas datilografadas, que passavam ao mesmo tempo uma imagem de importância e de tédio. À volta de um pequeno retrato emoldurado de sua mulher e dos dois animais que eram seus filhos, havia três telefones com luzes que piscavam.
“Entrem, façam o favor.”
"Obrigado", disse Klaus, trocando um aperto de mão com o sr. Poe. Os jovens Baudelaire sentaram-se em três poltronas grandes e confortáveis.
O sr. Poe abriu a boca para falar, mas primeiro tossiu num lenço. "Hoje estou cheio de trabalho", disse finalmente. "Não vou ter muito tempo para conversar. A próxima vez que vocês vierem para estes lados avisem antes por telefone, aí eu reservo um tempo e almoçamos juntos."
"Gostaríamos muito", disse Violet, "e desculpe-nos de não ter avisado o senhor antes de vir, mas acontece que estamos numa situação de urgência."
"O conde Olaf é um louco", disse Klaus, indo diretamente à questão. "Não dá para ficarmos com ele.”.
"Ele bateu no rosto do Klaus. Está vendo a marca que deixou?", disse Violet, mas mal acabou de falar, soou o telefone, com um gemido estridente e desagradável. "Com licença”, disse o sr. Poe, e colou o aparelho no ouvido. "Poe falando", respondeu. "Quê? Sim. Sim. Sim. Sim. Não. Sim. Obrigado." Desligou o telefone e ficou olhando para os Baudelaire como se houvesse esquecido que estavam ali.
"Desculpem-me, disse o sr. Poe. O que era mesmo que estávamos falando? Ah, sim, do conde Olaf. Lamento que a primeira impressão que estão tendo dele não seja boa."
"Ele providenciou uma cama só para todos nós",disse Klaus.
"E nos obriga a fazer uma porção de serviços difíceis. "
"Bebe vinho demais."
"Com licença”, disse o sr. Poe, quando tocou outro telefone. "Poe falando", respondeu. "Sete. Sete. Sete. Sete. Seis e meio. Sete. Não tem de quê." Desligou o aparelho e rapidamente fez uma anotação num dos seus papéis, depois olhou para os meninos.
“Desculpem-me, disse, O que era mesmo que estavam dizendo do conde Olaf? Dar serviços para vocês não me parece que seja algo tão ruim."
“Ele nos chama de órfãos.”
"Ele tem uns amigos horríveis."
"Está sempre perguntando pelo nosso dinheiro." "Pocô!" (Isso quem disse foi Sunny.)
O sr. Poe ergueu as mãos num sinal de que já ouvira bastante. "Garotada, garotada", disse. "Vocês precisam de um tempo para se adaptar ao novo lar. Estão lá há apenas alguns dias."
"O tempo que passamos lá foi suficiente para sabermos que o conde Olaf é um homem mau", disse Klaus.
O sr. Poe suspirou e olhou para cada uma das três crianças. Tinha um ar bondoso, mas não parecia estar acreditando no que os órfãos Baudelaire diziam. "Vocês já ouviram falar na expressão latina in loco parentis?", perguntou.
Violet e Sunny olharam para Klaus. Sendo o maior leitor dos três, era de esperar que tivesse o maior vocabulário e conhecesse locuções estrangeiras. ''Alguma coisa a ver com trens?", perguntou. Talvez o sr. Poe estivesse pensando em levá-los de trem para um outro parente.
O sr. Poe balançou a cabeça. "In loco parentis” significa 'assumindo o papel dos pais', disse. "É uma expressão jurídica e se aplica ao conde Olaf. Agora que estão sob os cuidados dele, o conde pode educá-los usando os métodos que considere apropriados. Lamento se seus pais não os encarregaram de fazer serviços domésticos, ou se vocês jamais os viram tomar vinho, ou se vocês gostavam mais dos amigos deles do que dos amigos do conde Olaf. Mas essas são coisas às quais vocês têm que se acostumar, já que o conde Olaf age in loco parentis. Entendem?"
"Mas ele bateu no meu irmão!", disse Violet. "Olhe para o rosto dele!"
Enquanto Violet falava, o sr. Poe puxou o lenço do bolso e, cobrindo a boca, tossiu muitas vezes seguidas - com um barulho tão forte que Violet ficou sem saber se tinha dado para ele ouvir o que ela dissera.
"Seja o que for que o conde Olaf tenha feito", disse o sr. Poe, baixando os olhos para um dos seus papéis e traçando um círculo em torno de um número, "ele o fez agindo in loco parentis, e não há nada que eu possa fazer a respeito disso, O dinheiro de vocês estará protegido por mim e pelo banco, mas as técnicas de que se serve o conde in loco parentis são assunto dele. Não queria que vocês saíssem chispando, mas tenho muito que fazer."
As crianças continuaram sentadas, perplexas. O sr. Poe olhou para o alto e pigarreou. "Chispando",disse ele, significa...
"...significa que o senhor não fará nada para nos ajudar", Violet concluiu por ele. Ela tremia de raiva e frustração. Quando um dos telefones começou a tocar, ela se levantou e se retirou da sala, seguida por Klaus, que carregava Sunny. Foram andando empertigados e pararam ao chegar à rua, não sabendo o que fazer em seguida.
"E agora, o que vamos fazer?", perguntou Klaus insistentemente.
Violet ergueu os olhos para o céu. Gostaria de ser capaz de inventar alguma coisa que pudesse levá-los para bem longe. "Está ficando um pouco tarde", disse. "É melhor voltarmos e amanhã pensamos em outra saída. Agora podíamos, quem sabe, fazer uma visita à juíza Strauss."
"Mas você falou que ela não nos ajudaria”, disse Klaus.
"Não estou pensando em ajuda", disse Violet."Estou pensando em livros."
É muito útil, quando se é jovem, saber a diferença entre "literal" e "figurado". Se alguma coisa acontece no sentido literal, acontece de verdade; se acontece no sentido figurado, dá a impressão de estar acontecendo. Se você está literalmente pulando de alegria, por exemplo, quer dizer que você está dando saltos no ar porque se sente muito feliz. Se você está pulando de alegria figuradamente, o que isso quer dizer é que você se sente tão feliz que poderia pular de alegria, mas está poupando sua energia para outros fins. Os órfãos Baudelaire percorreram o caminho de volta para a casa do conde Olaf e pararam na casa vizinha, da juíza Strauss, que os fez entrar de maneira acolhedora e deixou que escolhessem livros da biblioteca. Violet escolheu vários que tratavam de invenções mecânicas, Klaus se abasteceu de diversos volumes sobre lobos, e Sunny descobriu um livro com muitas figuras de dentes. Em seguida, foram para o seu quarto e se acotovelaram na cama única, lendo com atenção e na maior felicidade. Figuradamente, eles escaparam ao conde Olaf e a sua existência miserável. Não escaparam literalmente, porque continuavam na casa dele e vulneráveis aos seus maléficos procedimentos in loco parentis. Mas ao mergulhar nos seus temas de leitura preferidos, sentiam-se bem longe do seu sufoco, como se tivessem escapado. É claro que considerando a questão do ângulo de sua situação real, "escapar figuradamente não era o bastante, mas, no fim de um dia cansativo e desanimador, era a solução possível. Violet, Klaus e Sunny leram seus livros e mantiveram bem acesa, no fundo, no fundo, a esperança de que em breve sua fuga figurada acabaria se transformando numa fuga literal.




CAPÍTULO
SEIS


Na manhã seguinte, quando as crianças saíram cambaleando de sono do quarto para a cozinha, em vez de um bilhete do conde Olaf encontraram o próprio conde Olaf.
"Bom dia, órfãos", disse ele. "Já preparei o mingau de aveia para vocês. Está nas tigelas."
As crianças sentaram-se à mesa da cozinha e olharam aflitas para o mingau de aveia. Se vocês conhecessem o conde Olaf, e ele de repente lhes servisse: uma refeição, não teriam medo de que houvesse algo terrível dentro dela, como veneno ou vidro mofo do? Em vez disso, Violet, Klaus e Sunny verificaram que em cima de cada um dos mingaus foram postas framboesas frescas. Os órfãos Baudelaire não comiam framboesa desde a morte de seus pais, embora fosse uma sobremesa que adoravam.
"Obrigado", disse Klaus, pegando uma das framboesas e examinando-a cuidadosamente. Talvez fossem framboesas envenenadas disfarçadas de framboesas deliciosas. Ao ver a desconfiança com que Klaus olhava para as frutinhas, o conde Olaf sorriu , catou uma framboesa da tigela de Sunny. Encarando cada um dos três meninos, jogou-a para dentro da boca e a comeu.
"Framboesa não é uma coisa deliciosa?", perguntou. "Era a minha fruta preferida quando eu tinha a idade de vocês."
Violet tentou imaginar o conde Olaf criança, mas não conseguiu. Seus olhos faiscantes, as mãos ossudas e o sorriso velado pareciam coisas que só os adultos possuem. Apesar do medo que sentia dele, entretanto, segurou a colher com a mão direita e começou a comer seu mingau de aveia. O conde Olaf tinha provado dele, de modo que não devia estar envenenado, e de qualquer forma ela estava com muita fome. Klaus começou a comer também. O mesmo fez Sunny, que espalhou mingau de aveia e framboesas pela cara toda.
"Recebi um telefonema ontem", disse o conde Olaf, "do sr. Poe. Ele me contou que vocês foram lhe fazer uma visita."
As crianças trocaram olhares. Haviam esperado que o caráter confidencial da visita fosse respeitado, frase que aqui significa "a visita fosse mantida em segredo entre o sr. Poe e eles, e não passada adiante em fofoca para o conde Olaf".  .
"O sr. Poe me disse", continuou o conde Olaf, "que vocês pareciam estar encontrando dificuldade para se adaptar à vida que tão generosamente tenho proporcionado a vocês. Lamento muito saber disso."
Os meninos olharam para o conde Olaf. Ele tinha a fisionomia muito séria, como se de fato lamentasse muito saber daquilo, mas seus olhos faiscavam com o brilho característico que a gente vê nos olhos de quem está falando de brincadeira.
"É mesmo?", disse Violet. "Lamento que o sr. Poe tenha importunado o senhor."
"Gostei dele ter feito isso", disse o conde Olaf, "porque desejo que vocês três se sintam aqui como em sua casa, agora que sou o pai de vocês."
Os meninos estremeceram um pouco ao ouvir isso, lembrando-se do bom pai que haviam tido e fitando tristemente o pobre substituto sentado na frente deles, do outro lado da mesa.
"Ultimamente", disse o conde Olaf, "as preocupações com minha atuação no espetáculo da companhia teatral têm me deixado muito nervoso, e meu comportamento pode ter sido um tanto reservado.”
Reservado é uma ótima palavra, mas não descreve em absoluto o comportamento do conde Olaf para com os jovens Baudelaire. Significa "relutante em se relacionar com os outros", e serviria para descrever alguém que, numa festa, se isola num canto e não conversa com ninguém. Não serviria para descrever quem oferece uma só cama para três pessoas dormirem, força essas três pessoas a prestar serviços horríveis e bate na cara delas. Há muitas palavras para definir gente desse tipo, mas reservado não se encaixa de maneira nenhuma. Klaus sabia o significado dessa palavra e quase deu uma gargalhada diante do uso incorreto que o conde Olaf fez dela. Porém a marca do machucado continuava em seu rosto, de modo que Klaus ficou em silêncio.
''Assim sendo, para que vocês se sintam um pouco mais em casa aqui, gostaria que participassem da próxima peça que encenarei. Talvez, se estiverem integrados ao meu trabalho, seja menos provável vocês irem correndo se queixar ao sr. Poe."
"De que modo participaríamos?", perguntou Violet. Ela estava pensando em todos os serviços que os Baudelaire já faziam para o conde, e não estava a fim de que ficassem ainda mais sobrecarregados.
"Bem", disse o conde Olaf com os olhos faiscando animadamente, "a peça se chama O casamento maravilhoso, e foi escrita pelo grande dramaturgo Ivon Culto. Daremos um único espetáculo, esta sexta-feira à noite. É sobre um homem muito corajoso e inteligente, que eu interpreto. No final, esse homem se casa com a jovem e bela mulher que ele ama, diante de uma multidão de figurantes que brindam e dão vivas com entusiasmo. Você, Klaus, e você, Sunny, estarão entre os figurantes que brindam e dão vivas."
"Mas somos mais baixos que a maioria dos adultos", disse Klaus. "O público não vai achar estranho?”
"Vocês farão dois anões que assistem ao casamento", disse Olaf com a maior paciência.
"E eu faço o quê?", perguntou Violet. "Tenho muito jeito com ferramentas, talvez pudesse ajudar a montar o cenário.”
"Montar o cenário? Deus do céu, nada disso", falou o conde Olaf. "Uma menina linda como você não pode ficar escondida nos bastidores."
"Mas eu gostaria", disse Violet.
A sobrancelha do conde Olaf se ergueu ligeiramente, e os órfãos Baudelaire reconheceram esse sinal, que indicava sua raiva. Mas a sobrancelha voltou a baixar, e ele fez força para manter a calma. "Acontece que eu tenho um papel importante para você no palco", disse ele. "Você vai interpretar a moça com quem eu me caso.”
Violet sentiu o mingau de aveia e as framboesas girarem no seu estômago como se ela houvesse acabado de pegar uma gripe. Já era ruim demais ter o conde Olaf agindo in loco parentis e se proclamando seu pai, mas considerar esse homem seu marido, ainda que só para os efeitos de uma peça de teatro, era o que podia haver de mais horrível.
"É um papel muito importante", prosseguiu ele, curvando os cantos da boca num sorriso não convincente, "embora sua fala seja apenas um 'sim' quando a juíza Strauss lhe pergunta se me aceita como esposo.”
"A juíza Strauss?", disse Violet. "O que é que ela tem a ver com isso?"
"Ela concordou em fazer o papel de juiz", disse o conde Olaf. Por trás dele, um dos olhos pintados na parede da cozinha observava atentamente cada uma das crianças  Baudelaire. "Pedi à juíza Strauss que participasse da peça porque quis me sentir um bom vizinho, além de um bom pai."
"Conde Olaf", disse Violet, mas em seguida se interrompeu. Ela queria justificar com argumentos seu propósito de não fazer o papel da noiva, mas também não queria que ele se zangasse. "Pai", disse ela, "não sei se tenho talento bastante para interpretar profissionalmente. Não gostaria de causar danos ao seu bom nome nem ao nome de Ivon Culto. Além do mais, estarei ocupadíssima nas próximas semanas, trabalhando em minhas invenções... e aprendendo a fazer rosbife", apressou-se a acrescentar, bem lembrada de como ele havia reagido ao jantar que prepararam.
O conde Olaf estendeu uma das mãos em feitio de aranha e segurou Violet pelo queixo, olhando fundo nos seus olhos. "Você vai", disse ele, "participar desse espetáculo teatral. Eu preferiria que você participasse voluntariamente, mas acredito que o sr. Poe tenha lhe explicado que posso mandá-la participar e você tem que obedecer." As unhas afiadas e sujas dos dedos do conde Olaf arranharam delicadamente o queixo de Violet, o que lhe provocou arrepios. A cozinha ficou no maior silêncio, até que Olaf soltou o queixo de Violet, levantou-se e saiu sem dizer nada. Os jovens Baudelaire ouviram os seus passos pesados subindo os degraus para chegar torre, onde eles estavam proibidos de entrar.
"Bom", disse Klaus, meio hesitante, "acho que não vai ser nenhum sofrimento participar da peça. Isso parece ser muito importante para ele, e não nos interessa que ele fique contra nós.”
"É, mas alguma ele deve estar aprontando", disse Violet.
"Você acha que aquelas framboesas estavam envenenadas?", perguntou Klaus, preocupado.
"Não", disse Violet. "Olaf está atrás da fortuna que herdaremos. Nossa morte não lhe traria nenhum benefício."
"Mas que benefício vai trazer a ele a nossa participação nessa bobagem dessa peça?"
"Não sei", admitiu Violet, consternada. Levantou-se e começou a lavar as tigelas de mingau de aveia.
"Gostaria que soubéssemos um pouco mais sobre o que a lei estabelece a respeito de heranças", disse Klaus. ''Aposto que o conde Olaf bolou algum plano para ficar com nosso dinheiro, mas não imagino qual possa ser."
"Acho que poderíamos perguntar sobre isso ao sr. Poe", disse Violet sem muita convicção, quando Klaus se pôs a seu lado para ajudar a lavar os pratos. "Ele conhece todas aquelas expressões jurídicas em latim."
"Mas muito provavelmente o sr. Poe telefonaria de novo para o conde Olaf, e aí ele ficaria sabendo que estamos de olho nele", observou Klaus. "Talvez fosse melhor tentarmos conversar com a juíza Strauss. Ela é juíza, e deve saber tudo sobre leis."
"É, mas ela também é vizinha de Olaf", argumentou Violet, "e poderia contar para ele a pergunta que fizemos.”
Klaus tirou os óculos, o que tinha o costume de fazer quando se esforçava muito para pensar. "Como poderíamos nos informar sobre essa lei sem Olaf ficar sabendo?"
"Liiiv!", gritou Sunny de repente. Ela provavelmente quis dizer algo como: ''Alguém, por favor, limpe a minha cara!", mas sua manifestação levou Violet e Klaus a olharem um para o outro. Liiiv... Os dois tiveram o mesmo pensamento: é claro que a juíza Strauss deveria ter um livro sobre leis de herança.
"O conde não deixou nenhum serviço para nós", disse Violet, "por isso acho que vamos ter uma chance de ir visitar a juíza Strauss e sua biblioteca."
Klaus sorriu. "Isso mesmo!", disse. "E sabe de uma coisa? Acho que hoje não vou escolher um livro sobre lobos."
"Nem eu", disse Violet, "vou escolher nenhum sobre engenharia mecânica. Estou pensando em ler alguma coisa relacionada com leis de herança."
"Então vamos!", disse Klaus. ''A juíza falou que não tardássemos a aparecer, e não vamos querer dar lima de reservados."
Ante a menção da palavra que o conde Olaf usara de maneira tão ridícula, os órfãos Baudelaire caíram lodos na risada, até mesmo Sunny, cujo vocabulário obviamente não era grande coisa. Apressaram-se em guardar as tigelas limpas nos armários, que os encararam com seus olhos pintados. Em seguida, os três correram para a casa vizinha. Faltavam poucos dias para a sexta-feira em que o espetáculo seria encenado, e os jovens Baudelaire queriam descobrir o mais rápido possível qual era o plano do conde Olaf.



CAPÍTULO
SETE

Há muitos tipos de livros no mundo, o que faz sentido, porque há muitos e muitos tipos de pessoas, e os gostos são diferentes. Por exemplo, pessoas que detestam histórias em que acontecem coisas horríveis a criancinhas deveriam fechar este livro imediatamente. Mas um tipo de livro que praticamente ninguém gosta de ler é um livro de direito. Os livros de direito têm fama de ser muito compridos, muito chatos e muito difíceis de ler. Essa é uma das razões por que os advogados ganham rios de dinheiro. O dinheiro é um incentivo - a palavra incentivo aqui quer dizer "recompensa oferecida a alguém para que faça algo que não quer fazer" - para ler livros compridos, chatos e difíceis.
Os jovens Baudelaire tinham um incentivo um pouco diferente para ler esses livros, é claro. Seu incentivo não eram rios de dinheiro, e sim impedir o conde Olaf de cometer algo horrível contra eles que lhe permitiria ganhar rios de dinheiro. Mas, mesmo com esse incentivo, achar o seu caminho no emaranhado dos livros jurídicos da biblioteca particular da juíza Strauss era um trabalho verdadeiramente insano.
“Deus do céu”, exclamou a juíza Strauss, quando entrou na biblioteca e viu o que estavam lendo. Ela havia aberto a porta para eles, mas logo em seguida se metera no quintal, às voltas com seus trabalhos de jardinagem, deixando os órfãos Baudelaire se virarem sozinhos no meio de sua gloriosa coleção de livros. "Pensei que vocês estivessem interessados em engenharia mecânica, animais da América do Norte e dentes. Têm certeza de que querem ler esses enormes livros jurídicos? Nem mesmo eu gosto de lê-los, e olhem que o direito é o meu campo de trabalho."
"Na verdade", mentiu Violet, "acho que são uma leitura muito interessante, juíza Strauss."
"Eu também", disse Klaus. "Violet e eu estamos pensando em estudar direito, por isso estamos fascinados por estes livros."
"Bem", disse a juíza Strauss, "em todo caso, Sunny certamente não está interessada. Que tal ela vir me ajudar na jardinagem?"
"Uipi!", gritou Sunny, o que significava: "Bem que eu prefiro jardinagem a ficar aqui sentada olhando meus irmãos quebrarem a cabeça para decifrar esses livros jurídicos".
"Bom, é só ter cuidado para ela não comer terra", disse Klaus, entregando a caçula à juíza.
"Claro", disse a juíza Strauss. "Quem gostaria que ela ficasse doente às vésperas do grande espetáculo.”
Violet e Klaus se entreolharam. ''A senhora está entusiasmada com a peça?", perguntou Violet, meio hesitante.
O rosto da juíza Strauss se iluminou. ''Ah, com certeza!", disse. "Eu sempre quis subir ao palco, desde garotinha. E agora o conde Olaf me deu a oportunidade de viver o sonho de minha vida. Vocês não estão emocionados por participar de uma peça de teatro?"
''Acho que estamos", disse Violet.
"Mas claro que estão!", disse a juíza, com estrelas nos olhos e Sunny nas mãos. Retirou-se da biblioteca, e Violet e Klaus olharam um para o outro e suspiraram.
"Ela está tomada de paixão pelo teatro", disse Klaus. "Não vai acreditar de jeito nenhum que o conde Olaf está aprontando alguma."
"De qualquer forma, ela não iria nos ajudar", observou Violet melancolicamente. "Ela é juíza e logo viria com a baboseira do in loco parentis, tal como o sr. Poe."
"Por isso é que temos que descobrir um motivo legal para impedir o espetáculo", disse Klaus com firmeza. "Você ainda não encontrou nada no seu livro?"
"Nada que preste", disse Violet, baixando os olhos para um pedaço de papel onde vinha fazendo anotações. "Há cinqüenta anos houve uma mulher que deixou uma enorme fortuna para uma fuinha de que ela cuidava, e nem um centavo para seus três filhos. Os filhos tentaram provar que a mulher não estava em seu juízo perfeito, para ficarem com o dinheiro."
"E o que aconteceu depois?", perguntou Klaus.
''Acho que a fuinha morreu", respondeu Violet, "mas não tenho certeza. Algumas palavras preciso olhar no dicionário."
"De qualquer forma, não creio que esse caso possa nos ajudar", disse Klaus.
"Talvez o conde Olaf esteja querendo provar que nós não estamos em nosso juízo perfeito, para avançar no dinheiro", disse Violet.
"Mas por que o fato de nos fazer participar de O casamento maravilhoso provaria que não estamos em nosso juízo perfeito?", perguntou Klaus.
"Não sei", admitiu Violet. "Estou atrapalhada." E você, descobriu alguma coisa?"
"Aí pela época da sua dona da fuinha", disse Klaus, folheando um livro enorme que estivera lendo, "um grupo de atores fez uma encenação do Macbeth, de Shakespeare, em que nenhum deles aparecia vestido com roupa nenhuma."
Violet enrubesceu. "Você está me dizendo que eles se apresentaram nus?"
"Por pouco tempo", disse Klaus, sorrindo. ''A polícia chegou e não deixou o espetáculo prosseguir. Acho que esse caso também não nos ajuda. Foi só uma leitura interessante."
Violet suspirou. "Talvez o conde Olaf não esteja aprontando nada”, disse. "Não estou interessada em atuar na peça dele, mas vai ver que estamos nos preocupando sem razão. Talvez o conde Olaf esteja simplesmente querendo nos acolher na família."
"Como pode dizer uma coisa dessas?", vociferou Klaus. "Ele me bateu no rosto!"
"Mas não há como ele se apoderar de nossa fortuna simplesmente nos botando numa peça”, disse Violet. "Está me cansando a vista ficar lendo estes livros, Klaus, e sem nenhum proveito. Vou lá fora ajudar a juíza Strauss no jardim."
Klaus olhou para a irmã, que deixava a biblioteca, e sentiu um desânimo baixar sobre ele. O dia do espetáculo estava próximo, e ele nem sequer tinha conseguido entender o plano do conde Olaf, muito menos bolar uma forma de impedir que desse certo. Durante toda a sua vida Klaus havia acreditado que bastava uma pessoa ler muitos livros para ser capaz de resolver qualquer problema. Agora, não linha tanta certeza disso.
"Você aí!" Uma voz vinda do umbral da porta tirou Klaus bruscamente de seus pensamentos. "O  conde Olaf mandou que eu viesse chamá-lo. Você tem que voltar já para casa."
Klaus se virou e viu um dos membros da trupe do conde Olaf, aquele que tinha ganchos no lugar das mãos, junto à porta. "Que diabo você está fazendo nesta sala velha com cheiro de mofo?", perguntou com uma voz que era um verdadeiro grasnado, enquanto avançava na direção em que Klaus estava sentado. Apertando seus olhos miúdos e redondos, leu o título de um dos livros. "Aspectos jurídicos da herança e suas implicações?", disse rispidamente. “Por que que esta lendo isso?”
“O que você acha?”, disse Klaus.
"Vou já lhe dizer o que eu acho." O homem apoiou um dos seus terríveis ganchos no ombro de Klaus. "Acho que você deveria ser proibido de entrar de novo nesta biblioteca, pelo menos até sexta-feira. Não queremos ter um garotinho tramando coisas. E me diga: onde estão sua irmã e aquele bebê abominável?"
"Foram para o jardim", disse Klaus, afastando o gancho com um movimento dos ombros. "Por que não vai atrás delas?"
O homem se inclinou até o rosto dele ficar a poucos centímetros do de Klaus, tão perto que seus traços fisionômicos se converteram num borrão aos olhos do menino.                         "Escute aqui, garotinho, preste bem atenção", disse, exalando um hálito pestilento a cada palavra pronunciada. ''A única razão do conde Olaf não o ter rasgado ao meio é que ele ainda não conseguiu pôr as mãos no seu dinheiro. Ele permite que você continue vivo enquanto não leva a cabo seus planos. Mas faça a você mesmo esta pergunta, seu rato de biblioteca: que motivo ele terá para poupar a sua vida depois de haver conseguido o seu dinheiro? O que é que você acha que vai acontecer com você então?"
Klaus sentiu um arrepio gelado perpassar por seu corpo quando aquele sujeito horrível falou. Nunca estivera tão aterrorizado em toda a vida. Seus braços e pernas se achavam numa tremedeira incontrolável, como se ele estivesse tendo um ataque ou coisa parecida. A boca produzia sons estranhos, iguais aos de Sunny, enquanto lutava para encontrar o que dizer. “Ah...”, Klaus soltou, para não sufocar. “Ah...”



"Quando chegar a hora", o homem das mãos de gancho disse, amaciando a voz e ignorando os sons de Klaus, "imagino que o conde Olaf simplesmente o deixará por minha conta. De modo que, se eu fosse você, procuraria começar a ser um pouco mais gentil." O homem se levantou de novo e pôs os dois ganchos diante do rosto de Klaus, fazendo a luz das lâmpadas de leitura se refletir naquelas ferramentas sinistras. ''Agora, me dê licença, que vou buscar os outros pobres órfãos."
Klaus sentiu o corpo se afrouxar quando o homem das mãos de gancho deixou a sala, e teve vontade de sentar ali por um instante e retomar a respiração. Mas o pensamento trabalhava sem parar, não lhe permitindo a pausa. Eram seus últimos momentos na biblioteca, e talvez a última oportunidade de impedir a consumação do plano do conde Olaf. Mas o que fazer? Escutando os sons amortecidos que chegavam da conversa do homem dos ganchos com a juíza Strauss no jardim, Klaus fixou a atenção mais uma vez nos livros ao seu redor e se pôs a buscar freneticamente alguma coisa que pudesse ajudar. Então, assim que ele ouviu os passos do homem que retomava, bateu os olhos num livro, tirou-o da estante com a rapidez de um raio e o escondeu sob a camisa. Já havia enfiado a camisa dentro das calças quando o homem das mãos de gancho transpôs a entrada da biblioteca acompanhando Violet e trazendo no colo Sunny, que tentava sem sucesso morder os ganchos do sujeito.
"Estou pronto para ir", disse Klaus sem demora, e se dirigiu para a porta antes que o homem pudesse observá-lo com mais atenção. Caminhava ligeiro à frente das irmãs, esperando que não desse para ninguém notar o volume por baixo de sua camisa. Podia ser - quem sabe? - que o livro contrabandeado por Klaus significasse a salvação da vida deles.