sábado, 16 de julho de 2011

A Megera Domada - Introdução

Personagens
UM NOBRE,
CRISTÓVÃO SLY, caldeireiro,
Hoteleira, pajem, atores, caçadores e criados,
BATISTA, rico gentil-homem de Pádua.
VICÊNCIO, velho gentil-homem de Pisa.
LUCÊNCIO, filho de Vicêncio, apaixonado de Bianca.
PETRUCCHIO, gentil-homem de Verona, pretendente de Catarina.
GRÊMIO,
HORTÊNSIO,
TRÂNIO,
BIONDELLO,
GRÚMIO,
CURTIS,
Um professor, preparado para fazer o papel de Vicêncio.
CATARINA, a megera,
BIANCA,
VIÚVA,
Alfaiate, logista e criados a serviço de Batista e de Petrucchio.

INTRODUÇÃO
Cena I
(Num prado. Defronte de una cervejaria. Entram a Estalajadeira e Sly)
SLY - Hei de vos dar uma tunda, palavra de honra.
ESTALAJADEIRA - Um par de algemas, velhaco!
SLY - Marafona! Os Slys não são velhacos. Lede as crônicas. Chegamos aqui com Ricardo, o
conquistador. Por isso, pauca palabris. Deixai o mundo rodar. Cessa!
ESTALAJADEIRA - Não quereis pagar os copos que quebrastes?
SLY - Não, nem um real. Vai, por São Jerônimo! Vai te aquecer em tua cama fria.
ESTALAJADEIRA - Já sei o que tenho a fazer; vou chamar o inspetor do quarteirão.
(Sai.)
SLY - Quarteirão ou quinteirão, pouco me importa. Hei de responder-lhe de acordo com a lei. Não
cederei uma polegada, rapaz. E ele que venha com jeito.
(Deita-se no chão e dorme. Toque de trompa. Entra um nobre que volta da caçada, com caçadores e
criados.)
NOBRE - Caçador, recomendo-te cuidado com meus cachorros. A cadela Merriman de cansada até
espuma. Atrela Clowder com a de latido forte. Não notaste, rapaz, como o Prateado fez bonito lá na
dobra da sebe, quando o rasto já fora interrompido? Não quisera perdê-lo agora nem por vinte libras.
PRIMEIRO CAÇADOR - Bellman vale, senhor, tanto quanto ele; não deixou de latir, e por duas vezes
voltou a achar a pista, embora o rasto se achasse quase extinto. Acreditai-me: esse é o melhor de todos os
cachorros.
NOBRE - És um bobo; se fosse Eco mais ágil, valeria por doze iguais a Bellman. Mas alimenta-os bem e
não descures de nenhum, que amanhã teremos caça.
PRIMEIRO CAÇADOR - Pois não, milorde.
NOBRE (enxergando Sly) - Que é isso? Morto ou bêbedo? Respira?
SEGUNDO CAÇADOR - Respira, sim, milorde. Se a cerveja não o aquecesse, o leito em que se
encontra por demais frio fora para o sono.
NOBRE - Óh animal monstruoso! Está deitado como um porco. Medonha morte, como tua pintura é feia
e repulsiva! Vamos fazer uma experiência, amigos, com este bêbedo. Que tal a idéia de o pormos numa
cama e de o cobrirmos com lençóis bem macios, colocarmos-lhe anéis nos dedos, um banquete opíparo
junto ao leito lhe pormos e solícitos serventes ao redor, quando ele a ponto estiver de acordar? Não
esquecera sua própria condição este mendigo?
PRIMEIRO CAÇADOR - Não teria outra escolha, podeis crer-me.
SEGUNDO CAÇADOR - Ao despertar, perplexo ficaria.
NOBRE - Como de um sonho adulador, ou mesmo de inócua fantasia. Carregai-o, portanto, e preparai a
brincadeira. Ponde-o com jeito em meu mais belo quarto, que adornareis com quadros mui lascivos; água
cheirosa e quente na vazia cabeça lhe passai, e no aposento queimai lenha aromática, deixando cheiroso
todo o ambiente. Arranjai música logo que ele acordar, para que toadas possa ouvir agradáveis e divinas.
E, se acaso falar, sede solícitos E com profunda e humilde reverência lhe perguntai: "Vossa Honra que
deseja?" Um se apresente com bacia argêntea cheia de água de rosas em que pétalas donosas
sobrenadem; o jarro outro sustente; o guardanapo, enfim, terceiro, que lhe perguntará: "Vossa Grandeza
não quer lavar as mãos?" Vestes custosas tenha alguém prestes, para perguntar-lhe que muda ele prefere;
outro lhe fale de seus cavalos e dos cães de caça, e lhe diga que a esposa ainda lastima sua infelicidade,
convencendo-o de que esteve lunático. E se acaso declarar seu estado verdadeiro, dizei que está
sonhando, pois, de fato, ele é um nobre importante. Fazei isso, gentis senhores, sim, porém, com jeito.
Passatempo será muito agradável, se discrição souberdes ter em tudo.
PRIMEIRO CAÇADOR - Garanto-vos, milorde, que sairemos bem do nosso papel, sendo certeza vir ele
a convencer-se, tão-somente por nossa diligência, de que é tudo quanto lhe sugerirmos.
NOBRE - Levantai-o com bem jeito e na cama o ponde logo. E quando despertar, todos a postos
(Sly é carregado. Toque de trombeta.)
Rapaz, vai logo ver o que esse toque de trombeta anuncia.
(Sai um criado.)
Com certeza é algum fidalgo que se encontra em viagem e se deteve aqui para descanso.
(Volta o criado.)
Então, que é que há?
CRIADO - Com permissão de Vossa Senhoria, os atores, que oferecem a Vossa Honra os serviços.
NOBRE - Manda-os vir.
(Entram comediantes.)
Amigos, sois bem-vindos.
COMEDIANTES - Obrigados ficamos a Vossa Honra.
NOBRE - É intenção vossa passar a noite aqui?
UM COMEDIANTE - Caso Vossa Honra se digne de aceitar nossos serviços.
NOBRE - De todo o coração. Ainda me lembro deste rapaz, quando representava de filho de rendeiro.
Era na peça em que a corte fazíeis gentilmente a uma senhora nobre. Vosso nome já me esqueceu; mas é
certeza: dita foi vossa parte com bastante engenho e naturalidade.
UM COMEDIANTE - Vossa Graça decerto pensa no papel de Soto.
NOBRE - Perfeitamente! E tu o representaste por maneira admirável. Bem; chegaste na hora precisa,
tanto mais que tenho já iniciado um desporto em que vossa arte muito útil me será. Há aqui um nobre que
esta noite deseja ver alguma peça do vosso elenco. Mas receio que não possais guardar a compostura à
vista da atitude extravagante de Sua Senhoria, por ser certo que Sua Honra jamais foi ao teatro, o que
explosão de riso vos causara, podendo isso ofendê-lo. Pois vos digo, senhores, que se rirdes, ele torna-se
impaciente a valer.
UM COMEDIANTE - Nenhum receio vos cause isso, milorde; saberíamos conter-nos, muito embora se
tratasse do mais risível ser que acaso exista.
NOBRE - Recolhe-os tu à copa, dando a todos bom tratamento, sem que lhes faleça coisa nenhuma do
que houver em casa.
(Sai um criado com os comediantes.)
Rapaz, vai logo procurar meu pajem Bartolomeu e manda que se vista como uma dama. Depois disso,
leva-o para o quarto do bêbedo, obedece-lhe e dá-lhe sempre o nome de senhora. De minha parte dize-lhe
que adote uma atitude nobre - se lhe importa minha afeição - tal como tenha visto fazerem damas finas
em presença do marido. Do mesmo modo deve proceder com esse bêbedo, falando-lhe com voz suave,
fazendo-lhe mesuras e lhe dizendo: "Que me ordena agora Vossa Grandeza, para que revele vossa esposa
fiel e muito humilde seu dever e vos prove amor sincero?" Depois, com beijos provocantes, ternos
abraços, a cabeça assim pendida sobre o peito do esposo, ledas lágrimas deverá derramar, por ver a volta
da saúde de seu senhor querido, que durante sete anos se julgara mendigo repulsivo e miserável. Para que
chovam lágrimas de jeito, uma cebola ensejará os meios; se ele a trouxer num lenço disfarçada queira ou
não queira, há de ficar com os olhos sempre a lacrimejar. Arranja tudo com a maior pressa que te for
possível. Dentro de pouco darei novas ordens.
(Sai o criado.)
Sei que o rapaz usurpará os gestos, a voz, o porte e a graça de uma dama. Já quero ver o instante em que
ele o nome der de esposo ao borracho, e em que os criados procurarem conter-se, por não rirem, quando
mostrarem reverência ao rústico. Vou entrar e mostrar-lhes como se há de fazer a encenação. Minha
presença pode servir para conter-lhes o ânimo por demais galhofeiro, que, sem isso, promete ultrapassar
os lindes próprios.
(Saem.)

Cena II
(Quarto de dormir em casa do nobre. Aparece Sly com um rico camisolão de dormir, cercado de
criados; uns sustentam peças de vestuário; outros, bacia, jarros e utensílios variados. Entra o nobre,
vestido de lacaio.)
SLY - Pelo amor de Deus, uma caneca de cerveja fina.
PRIMEIRO CRIADO - Não quererá Vossa Grandeza agora um copo de xerez?
SEGUNDO CRIADO - Não apetece a Vossa Honra provar estas conservas?
TERCEIRO CRIADO - Que roupa vai Vossa Honra vestir hoje?
SLY - Sou Cristóvão Sly; não me deis o nome de grandeza nem de honra. Nunca na minha vida bebi
xerez, e se quereis oferecer-me conserva, que seja de carne de vaca. Não me pergunteis que roupa desejo
vestir, pois nunca tive mais gibão do que dorso, nem mais meias do que pernas, nem mais sapatos do que
os pés. Sim, algumas vezes chego a ter mais pés do que sapatos, ou apenas desses sapatos que deixam ver
os dedos pelos furos do couro.
NOBRE - Oh! possa o céu curar Vossa Honra dessa ociosa fantasia! Que um fidalgo tão poderoso, de tão
alto berço, tão rico e conceituado, ora se encontre dominado por um tão baixo espírito!
SLY - Como! Quereis dizer-me louco? Então não sou Cristóvão Sly, filho do velho Sly de Turtonheath,
bufarinheiro de nascimento, por educação fabrícador de cartas, por mutação condutor de urso, e,
presentemente, com a profissão de latoeiro? Bastará perguntardes a Mariana Hacket, a gorda cervejeira
de Wincot, se ela não me conhece. Se não disser que eu estou apontado no livro dela por quatorze pences
de cerveja pura, podeis ter-me na conta do velhaco mais mentiroso de toda a cristandade. Como! Estarei
delirando? Aqui...
PRIMEIRO CRIADO - Isso é que deixa triste vossa esposa.
SEGUNDO CRIADO - Isso é que abate vossos servidores.
NOBRE - Eis a razão de todos os parentes se afastarem de casa, como expulsos por loucura tão rara. Ó
nobre lorde! pensa em teu berço, faze que retornem do exílio teus antigos pensamentos e bane o sonho
degradante e baixo. Vê como estão solícitos os criados, desejosos somente de servirem-te, ao teu
primeiro gesto. Queres música? (Música.) Então escuta: Apolo toca, e logo dez rouxinóis consonam nas
gaiolas. Ou quererás dormir? Vamos deitar-te num colchão mais macio do que o leito voluptuoso
arranjado de propósito para Semíramis. Se exteriorares desejo de passear, espalharemos flores pelo
caminho; se desejas montar num dos ginetes, prontamente mandarei prepará-lo com os arreios recamados
de pérolas e de ouro. Gostas da falcoaria? Teus falcões mais alto pairam do que as cotovias
madrugadoras. Ou caçar preferes? Teus cães farão que lhes responda a abóbada celeste, despertando das
cavernas os ecos estridentes.
PRIMEIRO CRIADO - Dize apenas que cavalgar desejas, pois teus galgos como os veados de fôlego são
rápidos, mais velozes que a corça.
SEGUNDO CRIADO - Se preferes quadros, arranjaremos sem demora o retrato de Adônis repousando
nas margens de um regato, ou Citeréia velada pelos juncos, parecendo que brinca com o próprio hálito e
se move como os juncos que os ventos embalançam. NOBRE - lo te vamos mostrar, quando donzela,
como foi surpreendida e arrebatada, tão vivo o quadro como a própria coisa.
TERCEIRO CRIADO - Ou Dafne a errar por entre os espinheiros, as pernas a arranhar de fazer sangue, a
cuja vista o triste Apolo chora, tal o primor com que pintadas foram as lágrimas e o sangue.
NOBRE - És um fidalgo, nada mais que um fidalgo; por consorte possuis uma mulher de mais beleza que
todas as de nossa idade escura.
PRIMEIRO CRIADO - Até o momento em que ela, por tua causa, derramou tantas lágrimas, que o rosto
lhe inundaram gracioso, de invejosas, era a criatura mais encantadora deste mundo; mas ainda se
conserva sem confronto possível.
SLY - Sou fidalgo? Tenho uma esposa assim, ou sonho, acaso? Ou sonhei até agora? Não; dormindo não
estou: vejo, escuto, falar posso, sinto perfumes suaves, toco em coisas agradáveis. Por minha vida, é
certo: sou nobre de verdade, não latoeiro; não sou Cristóvão Sly. Trazei-nos logo nossa nobre consorte e,
novamente, uma caneca de cerveja fina.
SEGUNDO CRIADO - Não quer lavar as mãos Vossa Grandeza
(Os criados apresentam-lhe jarro, bacia e toalha.)
Oh! que felicidade para todos vermos que o juízo já recuperastes! Se quem sois compreendêsseis
finalmente! Nestes quinze anos a sonhar vivestes. Andáveis como mergulhado em sono.
SLY - Nestes quinze anos? Raspa! Que tirada! E não falei durante tanto tempo?
PRIMEIRO CRIADO - Oh! falastes, senhor, mas sem sentido. Pois embora estivésseis neste quarto
luxuoso, asseveráveis que vos tinham jogado porta fora; dirigíeis insultos contra a dona da taberna,
prometendo chamá-la ante a justiça, porque em jarros de barro vos servia, sem trazer a medida
verdadeira. Também chamáveis por Cecília Hacket.
SLY - É o nome da servente da taberna.
TERCEIRO CRIADO - Não conheceis, senhor, essa taberna, nem criada nenhuma desse nome, como
não conheceis ninguém chamado Estêvão Sly, Henrique Pimpernell, Pedro Turf e João Naps, o velho
grego e Outros vinte sujeitos desse tipo
SLY - Graças a Deus, agora estou curado.
TODOS - Amém.
SLY - Muito obrigado; hei de premiar-te.
(Volta o pajem, vestido como uma senhora, com séqüito.)
PAJEM - Como se sente meu senhor e mestre? SLY - Muito bem. Isto aqui é divertido. Onde está minha
esposa?
PAJEM - Aqui presente, nobre senhor. Que é que desejas dela?
SLY - Como! Sois minha esposa e de marido não me chamais? Os criados é que devem tratar-me de
senhor. Sou vosso esposo.
PAJEM - Meu marido e senhor, senhor e esposo, sou vossa esposa, em tudo obediente.
SLY - Sei disso. De que modo hei de chamá-la?
NOBRE - Madame, meu senhor.
SLY - Madame Alice ou Joaninha madame?
NOBRE - Não; madame, nada mais. Desse modo é que os fidalgos chamam suas esposas.
SLY - Madame esposa, acabam de contar-me que eu dormi e sonhei mais de quinze anos.
PAJEM - É certo; e pareceram-me trinta anos, porque de vosso leito eu fora excluída.
SLY - É muito tempo. Criados, retirai-vos; deixai-nos sós. Madame, vamos logo: tirai a roupa e vinde
para a cama.
PAJEM - Três vezes nobre esposo, instantemente vos concito a esperar uma ou duas noites, ou, pelo
menos, até vir o ocaso, pois me recomendaram vossos médicos que do tálamo vosso me afastasse. Penso
que essa razão me justifica.
SLY - Sim, uma vez que há isso... Para mim é muito difícil esperar tanto tempo. Mas não desejo voltar a
ter aqueles sonhos. Assim, será forçoso esperar, apesar da carne e do sangue.
(Entra um criado.)
CRIADO - Tendo sabido vossos comediantes que Vossa Honra está bem, determinaram representar uma
comédia alegre, o que acham proveitoso vossos médicos, por terem visto que a tristeza o sangue vos
tinha congelado. Da loucura sendo a melancolia a nutridora, acharam bom que ouvísseis uma peça que a
dor expulsa e a vida deixa longa.
SLY - Com a breca! Pois que venha. Essa comedísia não será uma farsa de Natal ou peça de
saltimbancos?
PAJEM - Não, senhor; é de estofo mais alegre.
SLY - Como! Estofo de mobília?
PAJEM - É uma espécie de história.
SLY - Vamos vê-la. Madame esposa, vinde para o meu lado. O mundo que escorregue, que com isso
mais moços nós ficamos.
(Fanfarras.)

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