quinta-feira, 14 de julho de 2011

Eu Sou o Número Quatro, Capítulos 26 ao 30

CAPÍTULO VINTE E SEIS

NINGUÉM FALA. TODOS ESTÃO DE OLHOS BASTANTE ABERTOS, OLHANDO PARA CIMA, em choque. Sarah e os cachorros devem estar em algum lugar na parte de trás da casa. Fecho os olhos e abaixo a cabeça. Só consigo sentir o cheiro da fumaça. "Só não esqueça o que está em jogo", Henri me disse. Sei bem o que está em jogo, mas a voz dele ainda ecoa em minha cabeça. Minha vida, e agora a de Sarah. Ouço outro grito. Aterrorizado. Desesperado.
Sinto os olhos de Sam em mim. Ele já viu minha resistência ao fogo. Mas ele também sabe que sou caçado. Olho em volta. Mark caiu de joelhos e se balança para a frente e para trás. Ele quer que aquilo acabe. Quer que os cães parem de latir. Mas eles não param, e cada latido é para ele como uma facada no peito.
Sam — digo —, eu vou entrar.
Ele fecha os olhos, respira fundo e depois me encara.
Vá buscá-la — ele me diz.
Entrego a ele meu celular e peço para ligar para Henri, caso eu não consiga sair de lá por algum motivo. Ele assente. Começo a me mover para a parte de trás do grupo, contornando entre as pessoas espremidas. Ninguém presta atenção em mim. Quando finalmente chego lá atrás, dou impulso e corro como um louco contornando o quintal, até os fundos da casa pois assim posso entrar sem ser visto. A cozinha está completamente dominada pelas chamas. Observo o cenário de horror por um momento. Ouço Sarah e os cachorros. Eles soam mais próximos agora. Respiro fundo, e nessa inspiração levo outras coisas para dentro de mim. Raiva. Determinação. Esperança e medo. Eu os deixo entrar, sinto cada um deles. Depois tomo impulso, corro e entro na casa. Sou imediatamente engolido pelas chamas e não escuto mais nada além do crepitar e do zumbido do fogo. Minhas roupas se incendeiam. O mar de chamas não tem fim. Eu sigo para a frente da casa e descubro que metade da escada foi queimada. O que sobrou está em chamas, aparentemente instável, mas não tenho tempo para testar a segurança dos degraus. Corro para cima, mas a escada desaba sob meu peso quando chego na metade do caminho. Eu desmorono com os escombros, e o fogo cresce como se alguém houvesse atiçado as chamas. Alguma coisa parece perfurar minhas costas. Ranjo os dentes, ainda sem respirar. Eu me levanto e escuto um grito de Sarah. Ela está gritando por medo de morrer, por temer uma morte horrível, que será inevitável se eu não encontrá-la logo. O tempo é curto. Vou ter de saltar para o segundo andar.
Eu pulo, agarro-me ao piso e ergo o peso de meu corpo. O fogo se espalhou para o outro lado da casa. Ela e os cachorros estão em algum lugar à minha direita. Percorro apressadamente o corredor e vou verificando o interior dos quartos. Os quadros queimaram em suas molduras, transformados em silhuetas negras coladas às paredes. De repente meu pé atravessa o chão, e a surpresa me faz respirar. Sou invadido por fumaça e fogo. Começo a tossir. Cubro a boca com um braço, mas é inútil. Fumaça e fogo queimam meus pulmões. Caio de joelho, tossindo, ofegante. Uma fúria cega me invade e me levanto, sigo em frente, caminho com o corpo inclinado, rangendo os dentes com determinação.
Finalmente os encontro no último quarto à esquerda. Sarah está gritando "SOCORRO!". Os cachorros estão ganindo e latindo. A porta está fechada, e eu a abro com um chute, arrancando-a das dobradiças. Os três estão juntos, encolhidos no canto oposto à porta. Sarah me vê, grita meu nome e começa a se levantar. Faço um sinal indicando que ela deve ficar onde está, e, quando entro no quarto, uma enorme viga de sustentação cai entre nós. Levanto a mão e a jogo longe, para cima, e a viga atravessa o que resta do telhado. Sarah parece confusa com o que acabou de ver. Eu salto para ela, percorro seis metros com um único pulo, atravessando as chamas sem ser afetado por elas. Os cachorros estão ao lado dela. Ponho o buldogue nos braços de Sarah e pego o retriever. Com meu outro braço, eu a ajudo a permanecer em pé.
Você veio — ela diz.
Enquanto eu estiver vivo, nada, ninguém vai machucar você — digo.
Outra viga cai e destrói parte do piso, indo parar na cozinha, no primeiro andar. Precisamos sair pelos fundos da casa para que ninguém me veja, porque não quero testemunhas para o que vou ter de fazer. Seguro Sarah contra a lateral de meu corpo, e o cachorro contra o peito. Damos dois passos, depois saltamos sobre o abismo de fogo criado pela viga que desabou. Quando começo a percorrer o corredor, uma enorme explosão no andar de baixo destrói a maior parte dele. Não há mais corredor. No lugar dele restam uma parede e uma janela, que também são rapidamente consumidas pelas chamas. Nossa única chance é sair pela janela. Sarah está gritando outra vez, agarrando meu braço, e sinto as unhas do cachorro enterradas em meu peito. Levanto a mão para a janela, olho para ela e me concentro — e ela explode, criando a abertura de que precisamos. Olho para Sarah e a mantenho segura e ancorada ao meu corpo.
Segure-se bem firme — digo.
Dou três passos e salto. As chamas nos engolem, mas estamos voando como uma bala, cortando o ar, seguindo diretamente para a fresta. Receio não conseguir atravessá-la. Passamos por ela com pouco espaço de sobra, tanto que sinto as extremidades da armação destruída rasgando meus braços e parte de minhas pernas. Seguro Sarah e o cachorro da melhor maneira possível e giro o corpo no ar para cair de costas, com todos por cima de mim. Chegamos ao chão com um baque. Dozer rola pela grama. Abby gane alto. Escuto o ar sendo expulso do corpo de Sarah. Estamos uns dez metros atrás da casa. Sinto um corte no topo da cabeça, provavelmente causado pelos vidros quebrados que ficaram presos à moldura da janela. Dozer é o primeiro a se levantar. Ele parece bem. Abby demora um pouco mais. Ela manca, parece ter machucado uma pata dianteira, mas não creio que seja sério. Fico deitado de costas, segurando Sarah. Ela começa a chorar. Sinto o cheiro de cabelo queimado. O sangue escorre por meu rosto e forma uma poça na orelha.
Sento-me na grama para tentar recuperar o fôlego. Sarah está em meus braços. As solas de meus sapatos derreteram. Minha camisa queimou completamente, como boa parte da calça jeans. Pequenos cortes atravessam todo o comprimento dos dois braços. Mas não estou queimado. Dozer se aproxima e lambe minha mão. Eu o afago.
— Bom menino — digo, ouvindo os soluços de Sarah. — Agora vá, leve Abby lá para a frente.
Ouço ao longe as sirenes, que anunciam a aproximação de viaturas. Eles devem estar ali em dois, três minutos, no máximo. A entrada da floresta está a uns cinquenta metros dos fundos da casa. Aponto para a frente enquanto me levanto, e os animais começam a se mover para lá como se me entendessem perfeitamente. Sarah ainda está em meus braços. Eu a giro, para aninhá-la entre eles, e sigo para a floresta carregando-a, enquanto ela chora com o rosto em meu ombro. Quando entro no bosque, a multidão na frente da casa explode em gritos e aplausos. Dozer e Abby foram vistos.
A floresta é densa. A lua cheia ainda brilha, mas a luz que penetra entre as árvores é pouca. Acendo minhas mãos para que possamos enxergar. Começo a tremer. O pânico me invade. Como vou explicar isso a Henri? Estou vestindo o que parece ser uma bermuda queimada. Minha cabeça sangra. Assim como minhas costas e vários cortes nos braços e nas pernas. Meus pulmões parecem estar em chamas cada vez que respiro. E Sarah está em meus braços. Ela agora deve saber o que posso fazer, do que sou capaz, ou pelo menos parte disso. Vou ter de explicar tudo a ela. E vou ter de contar a Henri que ela sabe. Os riscos são cada vez maiores. Ele vai dizer que, em algum momento, alguém pode deixar escapar alguma coisa. Vai insistir para irmos embora. Não vou poder evitar.
Ponho Sarah no chão. Ela parou de chorar. Olha para mim confusa, amedrontada, espantada. Sei que preciso vestir alguma roupa e voltar para perto dos convidados de Mark, ou as pessoas vão desconfiar. Preciso levar Sarah de volta, ou vão pensar que ela está morta.
Você consegue andar? — pergunto.
Acho que sim.
Venha comigo.
Para onde vamos?
Preciso pôr alguma roupa. Espero que um dos jogadores de futebol tenha roupas para vestir depois do treino.
Começamos a andar por entre as árvores. Pretendo espiar dentro dos carros dos convidados para ver se encontro alguma vestimenta.
O que aconteceu, John? O que está acontecendo?
Você estava presa na casa em chamas, e eu tirei você de lá.
O que você fez é impossível.
Não para mim.
O que isso significa?
Olho para ela. Esperava nunca ter de revelar o que vou dizer agora. Sei que minha expectativa provavelmente era irreal, mas pretendia me manter escondido em Paradise. Henri sempre me disse para nunca me aproximar muito de ninguém. Porque se eu me aproximasse, em algum momento as pessoas perceberiam que sou diferente, e isso exigira explicações. E nos obrigaria a partir. Meu coração dispara, minhas mãos tremem, mas não porque estou com frio. Se tenho alguma esperança de ficar, ou de não sofrer as piores consequências pelo que fiz nesta noite, preciso contar a verdade a ela.
Não sou o que você pensa que sou.
Quem é você?
Eu sou o Número Quatro.
E o que isso significa?
Sarah, o que vou dizer vai soar maluco e idiota, no entanto é a mais pura verdade. Você precisa acreditar em mim.
Ela toca meu rosto.
Se vai dizer a verdade, é claro que acredito em você.
É verdade.
Então fale.
Sou um alien. Sou o quarto de nove crianças enviadas à Terra depois de nosso planeta ter sido destruído. Tenho poderes, habilidades diferentes das de qualquer ser humano, poderes que me permitem fazer coisas como as que fiz há pouco, na casa. E há outros aliens aqui na Terra que estão me caçando, os mesmos que atacaram meu planeta. E, se me encontrarem, eles me matarão.
Espero que ela me esbofeteie, ria de mim, grite ou saia correndo. Mas ela fica parada, olhando-me nos olhos.
Está dizendo a verdade — ela afirma.
Sim, estou. — Sustento seu olhar, esperando convencê-la a acreditar em mim.
Ela me encara por mais um instante, depois move a cabeça em sentido afirmativo.
Obrigada por salvar minha vida. Não me interessa de onde você veio. Para mim você é só John, o garoto que eu amo.
O quê?
Eu amo você, John, e você salvou minha vida, e isso é tudo o que importa.
Também amo você. E vou amar sempre.
Eu a abraço e beijo. Depois de um minuto, mais ou menos, ela se afasta.
Vamos ver se encontramos roupas para você. Precisamos voltar, para as pessoas saberem que estamos bem.

Sarah encontra roupas limpas no quarto carro que verificamos. São bastante parecidas com as que eu vestia, jeans e camisa, e acho que ninguém vai notar a diferença. Quando voltamos para perto da casa, nos mantemos o mais longe possível, mas em um ponto de onde podemos ver o que está acontecendo. A casa desabou e agora é só uma pilha de destroços fumegantes e encharcados de água. Colunas de fumaça ainda brotam dos escombros, criando uma imagem fantasmagórica contra o céu escuro. Há três caminhões dos bombeiros. Conto seis viaturas da polícia. Nove conjuntos de luzes que piscam, mas nenhum som para acompanhá-las. Poucas pessoas foram embora, se é que alguém saiu dali. Todas foram forçadas a recuar, e a casa foi isolada com fita amarela. Os policiais estão conversando com alguns dos convidados. Cinco bombeiros estão no meio das ruínas, vasculhando os escombros.
Alguém grita "Lá estão eles!". A voz soa atrás de mim. Todos se viram em minha direção. Preciso de pelo menos cinco segundos para perceber que as pessoas se referem a mim.
Quatro policiais caminham até nós. Atrás deles há um homem segurando um bloco de anotações e um gravador. Enquanto procurávamos pelas roupas, Sarah e eu combinamos uma versão dos fatos. Cheguei à parte de trás da casa e a encontrei lá, observando as chamas. Ela havia pulado pela janela do segundo andar com os cachorros, que conseguiram fugir. Ficamos assistindo a tudo dali, longe dos outros, mas depois de um tempo fomos nos juntar ao grupo. Expliquei a ela que não poderíamos contar a ninguém o que havia realmente acontecido, nem mesmo a Sam e a Henri, porque, se alguém descobrisse a verdade, eu teria de ir embora imediatamente. Combinamos que eu responderia a todas as perguntas, e ela concordaria com tudo que eu dissesse.
Você é John Smith? — pergunta um dos policiais. E ura homem de estatura mediana, e ele para à nossa frente com os ombros meio caídos. Não é gordo, mas está longe do que se pode chamar de estar em boa forma, porque tem uma barriga saliente e uma flacidez generalizada.
Sim, sou eu. Por quê?
Duas pessoas disseram ter visto você entrar correndo naquela casa e depois sair de lá voando como o Super-homem, com os cachorros e a garota nos braços.
Sério? — pergunto, com ar incrédulo.
Sarah está a meu lado.
Foi o que disseram.
Forço um riso.
A casa estava pegando fogo. Pareço ter estado em uma casa em chamas?
Ele me lança um olhar sério, intrigado, e põe as mãos na cintura.
Está me dizendo que não entrou lá?
Fui até o quintal nos fundos para procurar Sarah — digo. — Ela havia desaparecido com os cachorros. Ficamos lá por um tempo, vendo o fogo, e depois viemos para cá.
O policial olha para Sarah.
Isso é verdade?
Sim.
Bem, quem entrou correndo na casa. então? — quer saber um repórter parado ao lado dele.
É a primeira vez que o homem fala, e ele me observa de um jeito mais cético. como se me avaliasse. Percebo que não acredita em minha história.
Como posso saber? — pergunto.
Ele assente e escreve algo no bloco. Não consigo ler a anotação.
O que está dizendo é que essas duas testemunhas são mentirosas? — pergunta o repórter.
Barnes — o policial interfere, balançando a cabeça ao olhar para ele.
Eu não entrei na casa para salvar Sarah e os cachorros — repito. — Eles estavam do lado de fora.
Quem disse alguma coisa sobre salvar a garota e os cachorros? — Baines pergunta.
Dou de ombros.
Pensei que fosse essa a insinuação.
Não fiz nenhuma insinuação.
Sam se aproxima com meu celular. Olho para ele, tentando avisado que o momento não é oportuno, mas ele me entrega o telefone mesmo assim.
Obrigado — digo.
Fico feliz por estar bem — ele me diz.
Os policiais olham para ele com ar duro, e Sam se afasta. Baines observa com interesse. Ele está mascando chiclete, procurando costurar as informações. E assente para si mesmo.
Deixou o celular com seu amigo antes de sair para dar uma volta? — ele pergunta.
Dei o celular a ele durante a festa. Estava incomodando no bolso.
Posso imaginar — Baines responde. — E aonde você foi?
Chega, Baines. Já fez perguntas demais — diz um policial.
Posso ir agora? — pergunto.
O policial concorda com um movimento de cabeça. Eu me afasto com o celular na mão, já discando o número de Henri, com Sarah a meu lado.
Alô — Henri diz ao atender.
Pode vir nos buscar agora?
Sim. Estou indo.
Como explica o corte na cabeça? — Baines pergunta atrás de mim. Ele estava me seguindo e ouviu meu telefonema para Henri.
Eu me cortei em um galho na floresta.
Conveniente — ele comenta e escreve mais no bloco. — Sabe que posso perceber quando alguém mente para mim, não é?
Eu o ignoro e continuo andando de mãos dadas com Sarah. Nós nos aproximamos de Sam.
Vou descobrir a verdade, Sr. Smith. Sempre descubro — Baines grita atrás de mim.
Henri está a caminho — informo Sam e Sarah.
O que foi aquilo? — Sam me pergunta.
Sei lá! Alguém acha que me viu entrar correndo na casa, provavelmente alguém que bebeu demais — digo, mais para Baines do que para Sam.
Ficamos esperando por Henri na entrada do terreno. Quando chega, ele para a caminhonete, desce dela e fica olhando, perplexo, para a casa consumida pelo fogo.
Ah, não. Jure que não tem nada a ver com isso — ele resmunga.
Não tenho — respondo.
Entramos na caminhonete. Ele engata a marcha e olha uma última vez para os escombros fumegantes.
Vocês estão com cheiro de fumaça — Henri comenta.
Ninguém responde. A viagem é feita em silêncio. Sarah está sentada em meu colo. Deixamos Sam primeiro, depois Henri segue na direção da casa de Sarah.
Não quero ficar sem você esta noite — Sarah me diz.
Também não quero me afastar de você.
Quando chegamos à casa dela, eu saio da caminhonete e a acompanho até a porta. Ela não me solta quando a abraço e desejo boa noite.
Vai telefonar para mim quando chegar em casa?
Sim, é claro.
Amo você. Sorrio para ela.
Também amo você.
Ela entra. Eu volto à caminhonete, onde Henri me espera. Tenho de pensar em um jeito de impedi-lo de descobrir a verdade sobre o que aconteceu nesta noite e de nos tirar de Paradise. Henri dirige para casa.
O que aconteceu com sua jaqueta? — ele pergunta.
Estava na casa de Mark.
E com sua cabeça, o que aconteceu?
Bati em algum lugar quando tentava sair da casa no princípio do incêndio.
Ele me olha, desconfiado.
É você que está cheirando a fumaça.
Eu dou de ombros.
Era o que mais havia por lá.
Como o incêndio começou?
Acho que foi um acidente. Todo mundo bebia demais.
Henri assente e entra em nossa garagem.
Bem — ele diz —, vai ser interessante ler o que os jornais vão publicar na segunda-feira. — Ele se vira para estudar minha reação.
Fico em silêncio.
Sim, penso, com certeza vai ser interessante.

CAPÍTULO VINTE E SETE

NÃO CONSIGO DORMIR, FICO DEITADO NA CAMA, OLHANDO PARA A ESCURIDÃO, PARA o teto. Telefono para Sarah e conversamos até as três da manhã; desligo e continuo ali deitado, de olhos abertos. Às quatro saio da cama e do quarto. Henri está sentado à mesa da cozinha, bebendo café. Ele olha para mim com ar cansado, os olhos vermelhos e os cabelos despenteados.
O que está fazendo? — pergunto.
Também não consegui dormir. Estava lendo as notícias.
Encontrou alguma coisa?
Sim, mas ainda não sei ao certo o que significa para nós. Os homens que escreviam e publicavam Eles Estão entre Nós, aqueles que conhecemos, foram torturados e mortos.
Eu me sento diante dele.
O quê?
A polícia os encontrou depois de os vizinhos telefonarem dizendo ter ouvido gritos na casa.
Eles não sabiam onde moramos.
Não, não sabiam. Felizmente. Mas isso significa que os mogadorianos estão ficando mais ousados e que estão próximos. Se ouvirmos ou virmos mais alguma coisa fora do comum, teremos de partir imediatamente, sem perguntas, sem discussão.
Tudo bem.
Como está sua cabeça?
Doendo — respondo. Levei sete pontos para fechar o corte. Henri fez a sutura. Estou vestindo um moletom largo. Tenho certeza de que os ferimentos nas costas também precisam de pontos, mas para isso eu teria de tirar a camisa, e como explicaria todos os outros arranhões e hematomas? Ele saberia o que aconteceu. Meus pulmões ainda ardem. Na verdade, a dor só piorou.
O incêndio começou no porão, então?
Sim.
E você estava na sala de estar?
Sim.
Como sabe que começou no porão?
Porque todo mundo subiu correndo.
E sabia que todos estavam fora da casa quando você saiu?
Sim, sabia.
Como?
Ele está tentando me fazer cair em contradição, não acredita em minha história. Tenho certeza de que Henri não acredita que me limitei a ficar olhando o que acontecia, como todo mundo.
Eu não entrei — digo sem rodeios. É horrível precisar mentir, mas olho nos olhos de Henri e minto.
Acredito em você — ele responde.

É quase meio-dia quando acordo. Os pássaros cantam além da janela, e a luz do sol penetra pelas frestas. Respiro aliviado. O fato de ter conseguido dormir até tão tarde significa que não foi divulgada nenhuma notícia que me incrimine. Caso contrário, eu teria sido arrancado da cama para fazer as malas.
Rolo na cama para me deitar de costas e sinto dor imediatamente. É como se alguém empurrasse meu peito para baixo, me espremesse.
Não consigo respirar direito. Quando tento, sinto uma dor aguda. Isso me assusta.
Bernie Kosar está dormindo a meu lado. Eu o acordo lutando com ele. No início ele parece atordoado, mas depois entra na brincadeira. Nosso dia sempre começa desse jeito. Eu acordo o cachorro que ronca perto de mim. Ele abana a cauda, e sua língua para fora da boca me faz sentir imediatamente melhor. Esqueço a dor no peito. Não penso no que o dia pode trazer.
A caminhonete de Henri desapareceu. Sobre a mesa encontro um bilhete com a mensagem: "Fui ao mercado. Volto logo." Vou até lá fora. Minha cabeça dói, e meus braços estão vermelhos e cheios de manchas, marcados por cortes ligeiramente inchados, como se eu houvesse sido atacado por muitos gatos. Não me incomodo com os cortes, nem com a dor de cabeça, ou com o ardor no peito. O que importa é que ainda estou em Ohio, amanhã voltarei à mesma escola que frequento há três meses e esta noite verei Sarah.

Henri chega em casa à uma da tarde. Noto sua expressão exausta e deduzo que ele ainda não dormiu. Depois de guardar as compras, ele vai para o quarto e fecha a porta. Bernie Kosar e eu saímos para uma caminhada pela floresta. Tento correr e, por algum tempo, até consigo, mas depois de um quilômetro a dor é insuportável e tenho de parar. Caminhamos uns oito quilômetros, mais ou menos. A floresta termina em uma estrada semelhante àquela que leva à nossa casa. Eu me viro e volto. Henri ainda está no quarto, com a porta fechada, quando entro em casa. Eu me sento na varanda. Fico tenso cada vez que um carro passa na estrada. Sempre estou esperando um deles aparecer, mas não vejo ninguém.
A confiança que eu sentia ao acordar vai desaparecendo com o transcorrer do dia. O Paradise Gazette não circula aos domingos. Eles vão publicar alguma coisa amanhã? Suponho que estou esperando por um telefonema, ou pela visita daquele repórter, ou pelas perguntas de outros policiais. Não sei por que estou tão preocupado com um repórter de jornal pequeno de cidade do interior, mas ele foi persistente — persistente demais. E sei que ele não acreditou na história que contei.
Mas ninguém aparece em nossa casa. Ninguém telefona. Espero alguma coisa e, quando nada acontece, começo a sentir medo de estar prestes a ser exposto. "Vou descobrir a verdade, Sr. Smith. Sempre descubro", Baines disse. Considero a ideia de correr até a cidade, procurá-lo e tentar dissuadi-lo de ir atrás dessa verdade, mas sei que isso só vai alimentar suas suspeitas. Tudo o que posso fazer é esperar e torcer pelo melhor.
Eu não estava naquela casa.
Não tenho nada a esconder.

Naquela noite Sarah vai me visitar. Vamos a meu quarto e eu a seguro nos braços, deitado de costas na cama. Sua cabeça está apoiada em meu peito, e uma das pernas repousa sobre as minhas. Ela me faz perguntas sobre quem sou, meu passado, sobre Lorien, sobre os mogadorianos. Ainda estou surpreso com a rapidez e a facilidade com que Sarah acreditou em tudo, e como ela aceitou a realidade. Respondo a todas as perguntas com sinceridade, o que faz eu me sentir muito bem, depois de todas as mentiras que contei nos últimos dias. Mas, quando falamos sobre os mogadorianos, começo a ficar assustado. Estou preocupado com a possibilidade de eles nos encontrarem. Tenho medo de nos ter exposto com minhas últimas atitudes. Faria tudo de novo, porque, se não, Sarah estaria morta, mas tenho medo. Também temo pelo que Henri vai fazer se descobrir tudo. Embora não seja meu pai biológico, para todos os efeitos ele é meu responsável legal. Eu o amo, ele me ama, e não quero desapontá-lo. E, enquanto ficamos ali deitados, meu medo começa a atingir novos níveis. Não suporto não saber o que o novo dia trará. A incerteza está acabando comigo. O quarto está escuro. Uma vela tremula no parapeito da janela. Respiro fundo, ou melhor, tanto quanto é possível em meu estado.
Está tudo bem? — Sarah pergunta.
Eu a abraço com mais força.
Sinto sua falta — digo.
Sente? Mas eu estou aqui.

Essa é a pior maneira de sentir falta de alguém. Quando a pessoa está a seu lado e ainda assim você sente falta dela.
Não faz sentido. — Ela segura meu rosto, puxa-me para perto e beija meus lábios. Não quero que ela pare. Não quero que ela pare nunca mais de me beijar. Enquanto Sarah me beija, tudo está bem. Eu ficaria neste quarto para sempre, se pudesse. O mundo pode seguir sem mim, sem nós. Desde que possamos ficar ali juntos, nos braços um do outro.
Amanhã — eu digo.
Ela olha para mim.
Amanhã o quê?
Balanço a cabeça.
Não sei realmente. Acho que só estou com medo. Ela me estuda com ar confuso.
Medo do quê?
Não sei. Estou com medo. Só isso.

Quando Henri e eu voltamos para casa depois de levá-la, vou para o quarto e me deito no mesmo lugar onde Sarah esteve. Ainda posso sentir seu cheiro na cama. Esta noite não vou dormir. Não vou nem tentar. Ando pelo quarto. Quando Henri vai para cama, eu saio e vou até a cozinha e escrevo à luz de uma vela. Escrevo sobre Lorien, sobre a Flórida, sobre aquilo que vi quando nosso treinamento começou — a guerra, os animais, imagens da infância. Espero por algum tipo de catarse, algum alívio, mas não sinto nada. Tudo isso só me deixa ainda mais triste.
Minha mão começa a doer, e eu saio e vou até a varanda. O ar frio ajuda a amenizar a dor ao respirar. A lua está quase cheia, com uma pequena porção ainda oculta. Em duas horas o sol vai nascer, e com ele virá um novo dia e as notícias do fim de semana. Os jornais são deixados em nossa porta às seis da manhã, às vezes às seis e meia. Já terei saído para a escola quando chegarem, e, se houver alguma notícia sobre mim, eu me recusarei a partir antes de ver Sarah mais uma vez, antes de me despedir de Sam.
Eu entro em casa, mudo de roupa e preparo minha mochila. Saio na ponta dos pés e em silêncio e fecho a porta com cuidado. Dei apenas três passos na varanda quando escuto alguma coisa arranhando a porta. Eu me viro para abri-la, e Bernie Kosar sai trotando satisfeito. Tudo bem, vamos juntos, eu penso.
Caminhamos e paramos frequentemente, ouvindo o silêncio. A noite ainda é escura, mas depois de um tempo uma luminosidade começa a ganhar força no céu, ao leste. Estamos chegando à escola. Não há carros no estacionamento e todas as luzes lá dentro estão apagadas. Na frente do prédio, diante do mural do pirata, há uma grande pedra que foi pintada pelas turmas anteriores de formandos. Eu me sento nela. Bernie Kosar se deita na grama alguns metros afastado de mim. Fico ali sentado por meia hora antes de o primeiro veículo aparecer, uma van, e presumo que seja Hobbs, o zelador, chegando cedo para deixar tudo em ordem na escola. Mas estou enganado. A van é parada bem à frente da porta. O motorista desce e deixa o motor ligado. Ele está carregando uma pilha de jornais presos por um arame. Nós nos cumprimentamos com um aceno, e ele deixa os jornais ao lado da porta. Depois vai embora. Continuo sentado na pedra. Olho com aparente desinteresse para os jornais.
Mentalmente, eu estou praguejando-os, desafiando-os a divulgar as más notícias das quais tenho tanto medo.
Eu não entrei naquela casa sábado — digo em voz alta e me sinto estúpido por isso.
Depois desvio o olhar, suspiro e pulo de cima da pedra.
Bem — digo a Bernie Kosar. — Chegou a hora da verdade. Ele abre os olhos por um instante, depois os fecha e volta a cochilar no gramado frio.
Removo o arame que prende os jornais e pego o primeiro da pilha. A história está na primeira página. No alto há uma foto dos escombros, um retrato feito na manhã seguinte ao incêndio. Traz uma impressão lúgubre, de mau presságio. Cinzas negras recobrem as árvores sem folhas e a grama coberta de espuma. Eu leio a manchete:

QUEIMANDO TUDO NA CASA DOS JAMES

Prendo a respiração, tomado por um sentimento horrível que se concentra no meio de minhas entranhas, como se estivesse a um passo de uma notícia horrenda. Passo os olhos pelo artigo. Não leio realmente, apenas procuro meu nome. Chego ao final. Pisco e balanço a cabeça para livrá-la da confusão. Um sorriso cauteloso se forma. Depois eu leio tudo de novo.
Não acredito — digo. — Bernie Kosar, meu nome não está aqui!
Ele não presta atenção em mim. Corro pelo gramado e pulo sobre a rocha.
Meu nome não está aqui! — grito novamente, desta vez com toda a força que tenho.
Eu me sento e leio a história. A manchete é um trocadilho com o nome do filme de Cheech e Chong, Queimando Tudo, cujo tema principal parece ser uso de drogas. A polícia acredita que o incêndio foi provocado por um baseado fumado no porão. Nem imagino como essa informação chegou ao jornal, especialmente porque é errada. O artigo é cruel e pejorativo, quase um ataque à família James. Não gostei daquele repórter. Fica claro que ele não gosta dos James. Por quê?
Continuo sentado na pedra e leio o artigo três vezes antes de a primeira pessoa chegar e destrancar as portas. Não consigo parar de sorrir. Vou ficar em Ohio, em Paradise. O nome da cidade não me parece mais tolo. Em meu entusiasmo, tenho a sensação de estar esquecendo alguma coisa, um componente fundamental. Mas estou tão feliz que não me importo. Que mal pode me atingir agora? Meu nome não está no artigo. Eu não corri para dentro daquela casa. A prova está bem ali, em minhas mãos. Ninguém pode dizer o contrário.
— Por que está tão feliz? — Sam me pergunta na aula de astronomia.
Eu ainda não parei de sorrir.
Leu o jornal de hoje?
Ele assente.
Sam, eu não fui citado! Não preciso ir embora.
E por que eles o mencionariam no jornal?
Fico aturdido. Abro a boca para explicar, argumentar, mas vejo Sarah entrando na sala. Ela se aproxima de nós, sorridente.
Oi, gatão — diz.
Ela se inclina e me beija no rosto, situação que nunca deixa de me afetar.
Parece que alguém está feliz hoje — diz.
Feliz por ver você — eu digo. — Nervosa com o exame de motorista?
Um pouco. Na verdade, estou ansiosa para acabar logo.
Ela se senta a meu lado. Hoje é meu dia, penso. Este é o lugar onde quero estar, e é onde estou. Sarah de um lado, Sam do outro.
Assisto às aulas como faço todos os dias. Almoço com Sam. Não falamos sobre o incêndio. Devemos ser os únicos na escola que não comentam sobre o fogo. A mesma história, muitas e muitas vezes. Nunca ouço meu nome. Em nenhuma das versões. Como eu já esperava, Mark não está na escola. Espalha-se um boato de que ele e muitos outros serão suspensos por causa da teoria publicada pelo jornal local. Não sei se é verdade ou não. Não sei se estou interessado em saber.
Quando Sarah e eu entramos na cozinha, na aula de economia doméstica, sinto-me completamente seguro e confiante. É uma certeza tão forte que penso novamente que devo estar enganado, que deixei escapar algum detalhe. A dúvida me acompanha durante o dia todo, mas eu sempre a reprimo no fundo da mente.
Preparamos pudim de tapioca. É um dia fácil. No meio da aula, a porta da cozinha é aberta. É o monitor do corredor. Olho para ele e sei imediatamente o que faz ali. Ele é o mensageiro da má notícia. O mensageiro da morte. Ele se aproxima de mim e me entrega um pedaço de papel.
O Sr. Harris deseja vê-lo — diz.
Agora?
Ele assente.
Olho para Sarah e dou de ombros. Não quero que ela perceba meu medo. Sorrio para ela antes de me dirigir à porta. E, antes de sair, eu me viro e olho para ela mais uma vez. Sarah está inclinada sobre a mesa, misturando nossos ingredientes, usando aquele mesmo avental verde que amarrei para ela em meu primeiro dia de aula, quando preparamos panquecas e as comemos no mesmo prato. Seu cabelo está preso num rabo de cavalo, e algumas mechas se soltam, emoldurando o rosto. Ela as prende atrás da orelha, e é então que me vê parado na porta. Continuo olhando para ela, tentando registrar cada detalhe deste momento, a maneira como ela segura a colher de pau, a aparência de marfim da pele iluminada pela luz que entra pelas janelas, a ternura nos olhos. Sua camisa tem um botão aberto no colarinho. Será que ela percebeu? O monitor fala alguma coisa atrás de mim. Eu aceno para Sarah, fecho a porta e sigo pelo corredor. Caminho devagar, tentando me convencer de que é só uma formalidade, algum documento que esqueci de assinar, alguma pergunta sobre a transferência. Mas sei que não é só isso.
O Sr. Harris está sentado atrás da mesa quando entro em sua sala. Ele sorri de um jeito que me aterroriza, aquele mesmo sorriso orgulhoso que exibia no dia em que tirou Mark da sala para ir dar a entrevista.
Sente-se — ele diz. — Então ó verdade? — Ele olha para a tela do computador e depois para mim.
O quê?
Na mesa dele há um envelope com meu nome escrito com caneta preta. O Sr. Harris percebe que já notei o envelope.
Ah, sim, isso chegou para você por fax há cerca de meia hora.
Ele pega o envelope e o joga em minha direção. Eu o seguro.
O que é? — pergunto.
Não sei. Minha secretária lacrou o envelope assim que recebeu o documento.
Várias coisas acontecem ao mesmo tempo. Abro o envelope e removo seu conteúdo. Duas folhas de papel. A de cima é uma capa com meu nome e a palavra CONFIDENCIAL em grandes letras negras. Eu a coloco atrás da segunda folha, na qual leio uma única frase escrita em letras maiúsculas. Nenhum nome. Apenas cinco palavras pretas em fundo branco.
Então, Sr. Smith, é verdade? Entrou correndo naquela casa em chamas para salvar Sarah Hart e os cachorros? — o Sr. Harris pergunta.
O sangue invade meu rosto. Ergo o olhar. Ele vira o monitor do computador para mim, a fim de que eu possa ler o que está na tela. É o blog afiliado ao Paradise Gazette. Não preciso ver o nome do autor para saber quem escreveu o texto. O título é mais do que suficiente.

O INCÊNDIO NA CASA DOS JAMES: A HISTÓRIA NÃO CONTADA

Sinto que o ar fica preso na garganta. Meu coração dispara. O mundo para, ou pelo menos parece parar. Eu me sinto morto por dentro. Olho para a folha de papel que estou segurando. Papel branco, liso, suave entre meus dedos. Lá está escrito:

VOCÊ É O NÚMERO QUATRO?

As duas folhas caem de minhas mãos, flutuam até o chão, onde ficam imóveis. Não entendo, eu penso. Como é possível?
— Então é isso? — insiste o Sr. Harris.
Estou boquiaberto. Sr. Harris sorri orgulhoso, feliz. Mas não é ele que vejo. É o que está atrás dele, além das janelas da sala da diretoria. Um lampejo vermelho vindo da esquina, movendo-se mais rápido do que pode ser normal, do que é seguro. Os pneus cantam no asfalto do estacionamento. A caminhonete espalha o cascalho do calçamento ao fazer uma segunda curva. Henri está debruçado sobre o volante como um doido. Ele freia com tanta violência que seu corpo é impulsionado para a frente. A caminhonete estanca com um barulho assustador.
Eu fecho os olhos.
Apóio a cabeça nas mãos.
Ouço a porta da caminhonete se abrir lá fora. Ouço quando ela é fechada.
Mais um minuto e Henri estará na sala.

CAPÍTULO VINTE E OITO

— SENTE-SE BEM, SR. SMITH? — O DIRETOR PERGUNTA. OLHO PARA ELE. VEJO em seu rosto o esforço que faz para parecer preocupado, um olhar que só dura um segundo antes de o sorriso largo voltar.
Não, Sr. Harris — respondo. — Não me sinto bem.
Pego do chão a folha e a leio novamente. De onde veio isto? Agora eles só mexem com nosso equilíbrio? Não há número de telefone ou endereço, nenhum nome. Nada além de cinco palavras e um ponto de interrogação. Olho pela janela. A caminhonete de Henri está estacionada, e o escapamento ainda libera uma fumaça clara. Ele vai entrar e sair tão rápido quanto puder. Olho novamente para a tela do computador. O artigo foi postado às 11h59 da manhã, quase duas horas atrás. Surpreendo-me por Henri ter demorado todo esse tempo para chegar. Uma vertigem se apodera de mim. Sinto que estou oscilando.
Precisa da enfermeira? — o Sr. Harris pergunta.
A enfermeira, eu penso. Não, eu não preciso da enfermeira. O ambulatório fica ao lado da cozinha onde temos aula de economia doméstica. Preciso voltar lá, Sr. Harris, voltar no tempo quinze minutos, antes de ser chamado pelo monitor do meu corredor. Sarah já deve estar assando o pudim. Talvez já esteja borbulhando. Ela está olhando para a porta, esperando eu voltar?
O eco distante das portas das salas se abrindo e fechando alcança a sala da diretoria. Quinze segundos até Henri chegar. Depois para a caminhonete. Para casa. E depois, para onde? Maine? Missouri? Canadá? Uma escola diferente, outro começo, outro nome.
Não durmo há quase trinta horas, e só agora sinto a exaustão. Mas há algo mais, outro sentimento, e nessa fração de segundo entre instinto e ação, a realidade de que vou embora para sempre sem ter sequer a chance de me despedir se torna intolerável. Meus olhos se estreitam, meu rosto se contorce em agonia, e — sem pensar, sem realmente saber o que estou fazendo — salto por cima do Sr. Harris e atravesso a vidraça da janela, que se parte em milhões de pedaços pequeninos. Ouço um grito chocado.
Meus pés aterrissam na grama do lado de fora. Viro para a direita e atravesso correndo o pátio da escola, as salas passando num lampejo à minha direita. Corro para o bosque atrás da quadra de futebol. Tenho cortes na testa e no cotovelo esquerdo, resultado do contato com os cacos de vidro da janela. Meus pulmões queimam. Para o inferno com a dor. Sigo em frente, o papel ainda em minha mão direita. Eu o enfio no bolso. Por que os mogadorianos enviariam um fax? Eles não apareceriam ali, simplesmente? Essa era a principal vantagem que tinham, chegar de forma inesperada, sem aviso prévio. O benefício da surpresa.
Viro à esquerda no meio da floresta, correndo entre as árvores até sair do outro lado, em um campo. As vacas mastigam o capim e me olham inexpressivas, e eu continuo correndo. Chego em casa antes de Henri. Bernie Kosar não está ali. Passo pela porta e paro de repente. A respiração parece ficar presa no peito. Na cozinha, sentada à mesa diante do laptop de Henri, vejo uma pessoa que penso ser um deles. Eles me venceram, agiram de forma a garantir que eu estivesse sozinho, sem Henri. A pessoa se vira, e eu cerro os punhos me preparando para lutar.
Mas é Mark James.
O que está fazendo aqui? — pergunto.
Tentando entender o que significa tudo isso que está acontecendo — ele responde com um ar apavorado. — O que diabos é você?
Do que está falando?
Veja — ele diz, apontando para o computador.
Eu me aproximo, mas não olho para a tela, porque antes meu olhar para na folha sobre a mesa, ao lado do laptop. É uma réplica daquela que tenho no bolso, exceto pelo papel em que foi impressa a mensagem, um tipo mais encorpado do que aquele utilizado para fax. Então eu noto algo mais. No pé da página enviada para Henri, numa letra bem pequena, há um número de telefone. Eles não podem estar pensando que vamos telefonar! "Alô? Ah, sim, sou eu, o Número Quatro, estou aqui esperando por vocês. Passamos dez anos fugindo, mas, por favor, podem vir nos pegar agora; não vamos resistir." Isso não faz sentido algum.
Isso é seu? — pergunto.
Não — Mark responde. — Mas foi entregue por um portador quando cheguei aqui. Seu pai leu enquanto eu mostrava a ele o vídeo e depois saiu correndo.
Que vídeo?
Veja — ele diz.
Olho para a tela e vejo que ele acessou o YouTube. Ele clica em play. É um vídeo de imagem pouco nítida, com qualidade ruim, como se houvesse sido feito a partir de um celular. Reconheço imediatamente a casa, cuja fachada está em chamas. A câmera treme, mas é possível ouvir os cães latindo e as exclamações de terror e choque da multidão. A pessoa que está gravando começa a recuar, afasta-se, vai para a lateral da casa e depois para os fundos. A câmera focaliza uma janela de trás, de onde vêm os latidos. Os latidos cessam, e eu fecho os olhos porque sei o quo está por vir. Vinte segundos depois, eu apareço voando pela janela com Sarah e os cachorros nos braços, e Mark clica no botão de pausa do vídeo. Quem está filmando aciona o zoom da câmera, e meu rosto e o de Sarah surgem, inconfundíveis.
Quem é você? — Mark pergunta.
Ignoro a pergunta e faço outra:
Quem fez esse filme?
Não sei.
O cascalho range sob os pneus da caminhonete na frente da casa. Henri voltou. Ergo o corpo, e meu primeiro instinto é correr, sair da casa e voltar à escola, onde sei que Sarah vai ficar até tarde revelando fotos — até o horário de seu exame de motorista, às quatro e meia da tarde. O rosto dela é tão nítido quanto o meu naquele vídeo, o que a coloca em igual perigo. Mas alguma coisa me impede de fugir e fico esperando ali mesmo, na cozinha, ao lado da mesa. Ouço a porta da caminhonete se fechando. Henri entra em casa cinco segundos depois, com Bernie Kosar correndo na frente dele.
Mentiu para mim — ele fala da porta, o rosto dominado pela tensão.
Eu minto para todo mundo — respondo. — Você me ensinou.
Não mentimos um para o outro! — ele grita.
Nós trocamos um olhar demorado.
O que está acontecendo? — Mark pergunta.
Não vou sair daqui sem falar com Sarah — aviso. — Ela corre perigo, Henri!
Ele balança a cabeça para mim.
Este não é momento para sentimentalismo, John. Não vê o que está acontecendo? — ele pergunta e atravessa a cozinha brandindo a folha de papel. — De onde acha que veio isto?
Que diabo está acontecendo aqui? — Mark praticamente berra.
Ignoro a folha e Mark, mantendo os olhos fixos em Henri.
Também já vi isso e, por esse motivo, preciso voltar à escola. Eles a verão e irão atrás dela.
Henri começa a se aproximar de mim. Depois do segundo passo, ergo a mão e o detenho onde está, alguns metros longe. Ele tenta prosseguir, mas não consegue.
Precisamos sair daqui. John — ele avisa com um tom suplicante, magoado.
Enquanto o mantenho afastado, começo a andar de costas na direção da porta, para meu quarto. Henri desiste de tentar se mover. Ele não diz nada, fica ali parado me observando com ar sofrido, um olhar que faz eu me sentir pior do que já me sentia. Tenho de desviar os olhos dos dele. Quando chego à porta, volto a encará-lo. Seus ombros estão caídos, os braços ao longo do corpo, como se ele não soubesse o que fazer com as mãos. Henri simplesmente olha para mim, e de repente tenho a impressão de que ele talvez comece a chorar.
Sinto muito — digo, usando a vantagem da distância para conseguir escapar. Eu me viro e corro para o quarto, pego na gaveta da cômoda uma faca que usava para tirar escamas de peixe quando ainda vivíamos na Flórida e pulo pela janela. Corro para a floresta. Os latidos de Bernie Kosar me seguem, mas é só isso. Mais nada. Corro por pouco mais de um quilômetro e paro na grande clareira onde Sarah e eu fizemos anjos na neve. Nossa clareira, ela a havia chamado. A clareira onde faríamos nossos piqueniques de verão. Sinto dor no peito quando penso que não estarei ali no verão, uma dor tão forte que me curvo e ranjo os dentes. Se ao menos pudesse ligar para ela e preveni-la, dizer para sair da escola. Mas meu telefone está no armário, junto com tudo o que levo na mochila da escola. Vou protegê-la do perigo iminente, depois voltarei para ir embora com Henri.
Eu me viro e corro para a escola, corro tanto quanto meus pulmões permitem. Chego quando os ônibus já começam a deixar o estacionamento. Eu os vejo de onde estou, na entrada da floresta. Hobbs está na porta, do lado de fora, medindo um grande painel de madeira para cobrir a janela que quebrei. Controlo a respiração, faço o possível para limpar a mente de todos os pensamentos. Vejo os carros deixarem o local até restarem só alguns poucos. Hobbs cobre o buraco, depois desaparece no interior do prédio. Gostaria de saber se ele foi prevenido sobre mim, se foi orientado a chamar a polícia caso me visse. Olho para o relógio no pulso. São apenas 15h30, mas a penumbra parece estar mais intensa, tornando-se uma escuridão pesada e envolvente. As luzes no estacionamento foram acesas, mas elas também parecem pálidas e insuficientes.
Saio da floresta, atravesso o campo de beisebol e me aproximo do prédio. Ainda há cerca de dez carros no estacionamento. A porta da escola já foi trancada. Eu seguro a maçaneta, fecho os olhos, concentro-me, e a tranca estala. Entro no edifício e não vejo ninguém. As luzes no corredor estão acesas. O ar é quieto, como se não se movesse. Em algum lugar, a enceradeira já foi ligada para polir o chão. Caminho pelo corredor até ver a porta da sala de revelação. Sarah. Ela planejava revelar algumas fotos hoje, antes do exame de motorista. Vou até meu armário e abro a porta. Meu telefone não está lá; o armário está completamente vazio. Alguém, Henri, espero, o pegou. Chego à sala de revelação sem ver ninguém pelo caminho. Onde estão os atletas, os membros da banda, os professores que sempre ficam até mais tarde corrigindo trabalhos e preparando aulas? Um mau pressentimento me invade, e tenho medo de que algo terrível tenha acontecido a Sarah. Pressiono a orelha contra a porta da sala de revelação, tentando ouvir algum som do outro lado, mas tudo o que consigo identificar é o ronco abafado da enceradeira em algum ponto do corredor. Respiro fundo e tento abrir a porta. Está trancada. Colo a orelha nela novamente e bato com delicadeza. Não há resposta, mas ouço algum ruído do outro lado. Respiro fundo, preparo-me para o que posso encontrar e destranco a porta.
A sala está escura. Acendo minhas mãos e faço uma varredura. Não vejo nada e penso que o lugar está vazio, mas percebo um leve movimento em um canto. Eu me abaixo para olhar, e ali, encolhida sob o balcão, tentando se esconder, encontro Sarah. Reduzo a intensidade das luzes para que ela possa ver que sou eu. Ela olha para mim, sorri e respira aliviadamente.
Eles estão aqui, não é?
Se não estiverem, logo estarão.
Eu a ajudo a se levantar, e Sarah me abraça com força, tanto que tenho a impressão de que nunca mais me soltará.
Vim para cá logo depois da oitava aula, e assim que a última aula terminou, comecei a ouvir barulhos estranhos nos corredores. Ficou muito escuro, por isso me tranquei aqui e fiquei embaixo do balcão, apavorada demais para me mover. Sabia que algo estava errado, especialmente depois que ouvi os boatos sobre como você pulou pela janela. E você não atendia ao telefone.
Você foi muito esperta, mas agora devemos sair daqui, e depressa.
Deixamos a sala de mãos dadas. As luzes do corredor se apagam, e toda a escola está neste instante mergulhada na escuridão, embora o anoitecer ainda seja daqui a pelo menos uma hora. Dez segundos depois, as luzes se acendem novamente.
O que está acontecendo? — Sarah sussurra.
Não sei.
Seguimos em frente sem fazer barulho, e os menores ruídos que fazemos parecem abafados, amortecidos. A saída mais próxima é a porta dos fundos, que se abre para o estacionamento dos professores, e, enquanto caminhamos para lá, o som da enceradeira vai se tornando mais próximo. Deduzo que encontraremos Hobbs. Presumo que ele saiba que quebrei a janela. Ele vai me atacar com um cabo de vassoura e chamar a polícia? Acho que, a esta altura, isso não importa.
Quando chegamos ao corredor no fundo do prédio, as luzes se apagam mais uma vez. Paramos e esperamos que voltem a se acender, mas nada muda. A enceradeira continua, um som contínuo e abafado. Não posso veda, mas sei que está a uns cinco ou seis metros de nós na escuridão impenetrável. Acho estranho que a máquina continue funcionando, que Hobbs continue polindo o chão no escuro. Acendo minhas luzes. Sarah solta minhas mãos e fica atrás de mim, segurando minha cintura. Encontro a tomada na parede, depois o fio, depois a máquina. Ela está parada, batendo na parede, sem ninguém para manejá-la, funcionando sozinha. O pânico me invade. Sarah e eu temos de sair logo da escola.
Arranco o fio da tomada e a enceradeira para. No lugar do ronco anterior, resta agora apenas o silêncio. Apago minhas luzes. Em algum lugar, uma porta se abre com cuidado, apenas uma fresta. Eu me abaixo, mantenho as costas voltadas para a parede, Sarah segurando meu braço. Estamos ambos apavorados demais para falar. O instinto me fez puxar o fio para deter a enceradeira, e tenho um impulso de ligá-la novamente, mas sei que isso vai nos delatar, se eles realmente estiverem ali. Fecho os olhos e tento ouvir algo. A porta não faz mais nenhum ruído. Um vento suave parece surgir do nada. Certamente, não há janela alguma aberta. Penso que talvez o vento esteja entrando pela janela que quebrei. Então, a porta é batida com violência, e vidros se quebram e caem no chão.
Sarah grita. Alguma coisa passa por nós, mas não sei o que é e nem tento descobrir. Seguro a mão de Sarah e corro, abro a porta com o ombro e continuo correndo para o estacionamento. Sarah sufoca um grito, e nós paramos. Minha respiração fica presa na garganta, e um arrepio gelado sobe pelas costas. As luzes estão acesas, mas fracas, fantasmagóricas na escuridão densa. Sob a lâmpada mais próxima, nós dois vemos a figura no sobretudo e com um chapéu afundado que nos impede de ver seus olhos. Ela levanta a cabeça e ri para mim.
Sarah aperta minha mão. Nós dois recuamos um passo e, na pressa de fugir, tropeçamos. Nós nos deslocamos de volta como caranguejos, até esbarrarmos na porta.
Vamos — eu grito enquanto me levanto. Sar ah também fica em pé. Experimento a maçaneta, mas a porta se trancou automaticamente quando saímos. — Merda!
Vejo outra figura pelo canto dos olhos, e no início ela fica parada, imóvel. Percebo quando dá o primeiro passo em minha direção. Há outra atrás dela. Os mogadorianos. Depois de tantos anos, eles finalmente estão ali. Tento me concentrar, mas minhas mãos tremem demais para que eu consiga abrir a porta. Percebo que eles se aproximam. Sarah cola o corpo ao meu e sinto que ela está tremendo.
Não consigo me concentrar para destrancar a porta. O que aconteceu com minha capacidade de funcionar sob pressão, com todos aqueles dias de treinamento no quintal de casa? Não quero morrer, eu penso. Não quero morrer.
John — Sarah murmura, e há tanto medo na voz dela que meus olhos se abrem. Sou tomado por uma determinação renovada.
A fechadura estala. A porta se abre. Sarah e eu entramos e a fechamos. Ouvimos um baque do outro lado, como se alguém houvesse chutado a porta. Aceleramos pelo corredor adentro. Os barulhos nos seguem. Não sei se há algum mogadoriano dentro do edifício. Outra janela se quebra em algum lugar, e Sarah grita.
Precisamos ficar quietos — digo.
Tentamos abrir as portas das salas de aula, mas todas estão trancadas. Não creio que haja tempo suficiente para destrancar uma delas. Em algum lugar uma porta bate, e não consigo dizer se é na frente ou atrás de nós. Os barulhos nos seguem de perto, aproximam-se, invadem nossa audição. Sarah segura minha mão e corremos ainda mais. e eu tento lembrar a planta do prédio para poder manter minhas luzes apagadas, impedir que nos vejam. Finalmente, uma porta se abre, e passamos por ela caindo do outro lado. É a sala de história, à esquerda do corredor. Pela janela dali é possível ver uma encosta suave lá fora, e, por causa da altura de cinco ou seis metros, há grades nas janelas. A escuridão é total do outro lado da vidraça. Nenhuma luz penetra por ela. Fecho a porta silenciosamente e espero que eles não tenham nos visto. Direciono minhas luzes por toda a área da sala e as apago depressa. Estamos sozinhos e vamos nos esconder sob a mesa do professor. Tento respirar. O suor escorre pelas laterais de meu rosto e arde em meus olhos. Quantos deles estão ali? Vi três, pelo menos. E eles não eram os únicos lá fora, é claro. Será que trouxeram as bestas, os bichos dos quais os redatores em Athens tinham tanto medo? Queria que Henri estivesse ali. Ou Bernie Kosar.
A porta se abre lentamente. Prendo a respiração e escuto. Sarah se apoia em mim e nós nos abraçamos. A porta se fecha e ouvimos o estalo da maçaneta. Não escuto passos. Eles só abriram a porta e espiaram pela fresta para ver se havia alguém ali? Foram embora sem entrar? Eles me encontraram depois de muito tempo, não podem ser tão relaxados.
O que vamos fazer? — Sarah pergunta depois de trinta segundos.
Não sei — cochicho de volta.
A sala está silenciosa. Não imagino quem ou o que abriu a porta, mas, seja o que for, deve ter ido embora ou está esperando por nós no corredor. Mas sei que, quanto mais tempo ficarmos ali esperando, mais deles chegarão. Vamos ter de correr o risco. Respiro fundo.
Precisamos ir — eu digo. — Não estamos seguros aqui.
Mas eles estão lá fora.
Eu compreendo, e não vão desistir. Henri está em casa, correndo o mesmo perigo que nós.
Mas como vamos sair?
Não faço ideia, não sei o que dizer. Só existe uma saída, e o caminho é o mesmo por onde entramos. Os braços de Sarah ainda me enlaçam.
Somos alvos fáceis aqui, Sarah. Eles nos encontrarão e, quando isso acontecer, todos virão nos pegar. Se sairmos agora, ainda teremos a nosso lado o elemento surpresa. Se conseguirmos sair do prédio, acho que podemos ligar um carro. Se não, vamos ter que lutar para fugir. Ela assente.
Respiro profundamente e saio de baixo da mesa. Estendo a mão, e Sarah também se levanta. Juntos, vamos caminhando passo a passo, em silêncio. Levamos um minuto inteiro para atravessar a sala e não encontramos nada na escuridão. Um brilho muito brando brota de minhas mãos, emitindo uma luz muito fraca, o suficiente apenas para não tropeçarmos em nada. Olho para a porta. Abro. Depois, faço Sarah pular em minhas costas e corro, corro com todas as minhas forças, com as luzes acesas, percorro o corredor, para sair da escola e atravessar o estacionamento, planejando correr para a floresta, caso não consiga ligar um carro. Conheço a floresta e o caminho para casa. Há mais deles, mas Sarah e eu temos a vantagem de conhecer o terreno.
Quando nos aproximamos da porta, meu coração está batendo tão forte e acelerado, que os mogadorianos devem poder ouvi-lo. Fecho os olhos e estendo a mão para a maçaneta bem devagar. Sarah fica tensa. Quando minha mão está suficientemente próxima da maçaneta, tanto que posso sentir o frio que emana do metal, somos agarrados por trás e puxados para o chão.
Tento gritar, mas a mão cobre minha boca. O medo me invade. Sinto Sarah se debatendo sob os braços que a imobilizam e faço o mesmo, mas o adversário é muito mais forte. Nunca pensei que os mogadorianos seriam mais fortes do que eu. Eu os subestimei. Agora não há mais esperança. Fracassei. Falhei com Sarah, com Henri, e sinto muito por isso. Henri, espero que lute melhor do que eu.
Sarah está ofegante, e concentro todas as minhas forças na tentativa de me libertar, mas não consigo.
— Shhhh, pare de se debater — a voz sussurra em meu ouvido. Uma voz feminina. — Eles estão esperando lá fora. Vocês dois precisam ficar quietos.
É uma garota, mas ela é tão forte quanto eu. Talvez mais forte do que eu. Nós nos estudamos. Uso a luz de minhas mãos para iluminar o rosto que, descubro, é pouco mais velho do que o meu. Olhos castanhos, faces elevadas, cabelos escuros e longos presos num rabo de cavalo, boca larga e nariz forte, pele azeitonada.
Quem é você? — pergunto.
Ela olha para a porta e permanece em silêncio. Uma aliada, penso. Alguém além dos mogadorianos sabe de minha existência. Alguém está ali para ajudar.
Eu sou a Número Seis — ela diz. — Tentei chegar aqui antes deles.

CAPÍTULO VINTE E NOVE

- COMO SOUBE QUEM EU ERA? - PERGUNTO.
Ela olha para a porta.
Estou tentando encontrado desde que Três foi morto. Mas eu explico tudo mais tarde. Primeiro, temos que sair daqui.
Como entrou sem ser vista por eles?
Posso me tornar invisível.
Eu sorrio. O mesmo Legado que meu avô tinha. Invisibilidade. E a capacidade de tornar invisível tudo aquilo em que ele tocava, como a casa no segundo dia de trabalho de Henri.
Mora muito longe daqui? — ela pergunta.
Cinco quilômetros.
Sinto que ela move a cabeça em sentido afirmativo na escuridão.
Você tem um Cêpan? — ela pergunta.
Sim, é claro. Você não tem?
Ela transfere o peso do corpo de uma perna para a outra e faz uma pausa antes de responder, como se buscasse forças em alguma entidade invisível.
Eu tinha — ela revela. — Ela morreu há três anos. Desde então, tenho estado sozinha.
Sinto muito — eu digo.
É uma guerra, as pessoas vão morrer. E neste momento nós devemos sair daqui, ou morreremos também. Eles estão na área, então já sabem onde você mora, o que significa que já estão lá, por isso é inútil tentar ser discreto para sairmos daqui. Os que estão lá fora são só mensageiros. Os soldados estão a caminho. Eles têm espadas. As bestas não demorarão a segui-los. O tempo é curto. Um dia, no máximo. Se eles já não estiverem por aqui.
Meu primeiro pensamento: Eles já sabem onde eu moro. Entro em pânico. Henri está em casa, com Bemie Kosar, e os soldados e as bestas podem estar com eles. Meu segundo pensamento: a Cêpan da Número Seis morreu há três anos. Desde então. Seis tem estado sozinha em um planeta estranho. Desde os treze, quatorze anos.
Ele está em casa — digo.
Quem?
Henri. Meu Cêpan.
Tenho certeza de que ele está bem. Não tocarão nele enquanto você estiver livre. É você que eles querem, e vão usá-lo para atraí-lo — diz Seis. Depois, ela olha para a janela com grades. Nós também olhamos para lá. As luzes fracas dos faróis de um carro aproximam-se da escola, passam pela saída, fazem uma curva e desaparecem rapidamente. Seis olha para nós.
Todas as portas estão bloqueadas. Como vamos sair?
Eu penso um pouco e imagino que uma das janelas sem grades em outra sala de aula seja nossa melhor chance.
Podemos sair pelo ginásio — diz Sarah. — Há uma passagem sob o palco que se abre como um alçapão e leva à parte de trás do prédio.
— É mesmo? — pergunto.
Ela assente, e sinto orgulho dela.
Segurem minhas mãos — diz Seis. Eu pego a direita, Sarah segura a esquerda. — Fiquem quietos. Enquanto segurarem minhas mãos. vocês estarão invisíveis. Eles não poderão nos ver, mas conseguem nos ouvir. Quando estivermos do lado de fora, vamos correr como loucos. Depois que nos virem não poderemos escapar deles. Nossa única chance é matados, matar cada um deles, antes de os outros chegarem.
Tudo bem — concordo.
Sabe o que isso significa? — Seis me pergunta.
Balanço a cabeça. Não sei nem o que ela está me perguntando.
Não há como fugir deles agora — ela diz. — Significa que você vai ter que lutar.
Pretendo responder, mas o ruído abafado que ouvi antes para do outro lado da porta. Silêncio. Alguém gira a maçaneta. Número Seis respira fundo e solta minha mão.
Esqueça a fuga — ela avisa. — A guerra começa agora.
Ela corre com as mãos estendidas para a frente, e a porta é repentinamente arrancada das dobradiças e jogada longe. O corredor fica coberto de fragmentos de madeira e cacos de vidro.
Acenda suas luzes! — ela grita.
Eu obedeço. Há um mogadoriano parado no meio dos destroços da porta. Ele sorri, e percebo um fio de sangue escorrendo pelo canto de sua boca, onde a porta o atingiu. Olhos negros, pele pálida como se nunca tivesse sido tocada pelo sol. Uma espécie de criatura das cavernas, um ser das sombras que se ergueu dos mortos. Ele arremessa algum objeto que não consigo ver, e ouço Seis gemer a meu lado. Fito os olhos dele e uma dor me toma de assalto, paralisando-me. Não consigo me mover. A escuridão cai. Tristeza. Meu corpo está enrijecido. Imagens do dia da invasão desfilam por minha mente: a morte de mulheres e de crianças, de meus avós; lágrimas, gritos, sangue, pilhas de corpos queimando. Seis quebra o encanto quando ergue o mogadoriano no ar e o arremessa contra a parede. Ele tenta ficar de pé, e Seis o levanta novamente, desta vez jogando-o com toda a força contra uma parede, em seguida contra outra. O mensageiro cai retorcido e quebrado, seu peito se eleva, depois fica paralisado. Um ou dois segundos passam. Todo o corpo desmorona numa pilha de cinzas, e o som é parecido com o de areia caindo no chão.
Que diabos? — pergunto, imaginando como é possível o corpo se desintegrar completamente, como acabei de ver.
Não olhe nos olhos dele! — ela grita, ignorando minha confusão.
Penso no redator de Eles Estão entre Nós. Agora entendo o que ele passou quando olhou nos olhos deles. Talvez tenha recebido a morte com alívio e alegria quando ela finalmente chegou, feliz por poder se livrar das imagens que desfilavam constantemente por seus pensamentos. Só posso imaginar a intensidade com que eles teriam surgido para mim se Seis não houvesse quebrado o encanto.
Dois outros mensageiros surgem no final do corredor e caminham em nossa direção. Um manto de escuridão os cerca, como se consumissem tudo em torno deles, pintando o mundo de preto. Seis está à minha frente, firme, de queixo erguido. Ela é cinco centímetros menor do que eu, mas sua atitude a faz parecer cinco centímetros mais alta. Sarah está atrás de mim. Os dois mogadorianos param no cruzamento de dois corredores, seus dentes visíveis numa careta. Meu corpo fica tenso, os músculos queimam de exaustão. Eles respiram fundo, de um jeito ruidoso, e percebo que era esse ruído que ouvíamos do outro lado da porta. A respiração deles, não os passos. Eles nos observam. Um barulho diferente soa no corredor, e os mogadorianos se voltam na direção dele. Uma porta treme, como se alguém tentasse arrombá-la. Do nada, ouvimos o som de tiros, uma rajada deles, e a porta da escola é aberta com um chute. Os dois parecem surpresos, e, quando se viram para fugir, mais duas rajadas ecoam, e eles são jogados para trás. Ouvimos passos se aproximando, dois pares de pés, e o barulhinho de unhas de cachorro no chão. Seis fica tensa a meu lado, pronta para o que se aproxima de nós. Henri! Foram as luzes dos faróis da caminhonete dele que vimos passar. Ele deve ter entrado pelos fundos. Nunca antes eu havia visto a arma de cano duplo que agora está em suas mãos. Bemie Kosar caminha ao lado dele e corre para mim ao me ver. Eu me abaixo e o pego nos braços. Ele lambe meu rosto, e fico tão feliz por vedo que quase me esqueço de dizer a Seis quem é o homem com a arma.
Henri — digo apressado. — Meu Cêpan.
Ele se aproxima de nós com olhar atento, examinando as portas das salas ao passar por elas, e atrás dele, carregando a Arca Lórica, eu vejo Mark. Não sei por que Henri o trouxe. Percebo uma expressão transtornada no olhar de Henri, uma exaustão que se mistura a terror e preocupação. Espero o pior, depois de ter saído de casa daquele modo, algum tipo de reprimenda, talvez até um tapa no rosto, mas, em vez disso, ele passa a arma para a mão esquerda e me abraça com força. Eu o abraço de volta.
Sinto muito, Henri. Eu não sabia que isso ia acontecer.
Eu sei que não. Estou feliz por você estar bem — ele responde. — Vamos, temos que sair daqui. A escola está cercada.
Sarah nos leva à sala mais segura que ela consegue lembrar, que é a cozinha das aulas de economia doméstica no final do corredor. Trancamos a porta atrás de nós. Seis empurra as geladeiras para a frente dela, de forma a impedir que alguém entre, e Henri corre até as janelas e baixa as persianas. Sarah se dirige à cozinha que normalmente usamos, abre a gaveta e retira dela a maior faca que encontra. Mark a observa. Quando vê o que ela fez, ele deixa a arca no chão e vai buscar uma faca também. Mark vasculha outras gavetas e encontra um martelo de bater carne, e o prende na cintura da calça.
Todos estão bem? — Henri pergunta.
Sim — respondo.
Com exceção da faca em meu braço, sim, tudo bem — diz Seis.
Acendo as luzes das mãos, tomando o cuidado de mantê-las bem fracas, só o suficiente para examinar o braço dela. Seis não está brincando. No local onde o bíceps encontra o ombro, vejo uma pequena adaga cravada na carne. Por isso eu a ouvi gemer antes de matar o mensageiro. Ele havia arremessado uma faca contra ela. Henri estende a mão e remove a faca. Ela grunhe.
Felizmente é só uma adaga — Seis comenta, olhando para mim. — Os soldados virão com espadas brilhantes que têm poderes variados.
Quero perguntar que tipo de poderes, mas Henri interrompe.
Pegue — ele diz, oferecendo a arma a Mark.
Ele a aceita com a mão livre sem protestar, olhando espantado para tudo o que está acontecendo à sua volta. Não sei o quanto Henri contou a ele. Gostaria de saber por que Henri o trouxe. Olho para Seis. Henri pressiona um pedaço de pano contra o braço dela, e Seis o segura. Ele pega a arca do chão e a coloca na mesa mais próxima.
Aqui, John — ele diz.
Sem nenhuma explicação ou pergunta, eu o ajudo a abrir a arca. Ele levanta a tampa, enfia a mão lá dentro e retira dali uma pedra plana tão escura quanto a aura que cerca os mogadorianos. Seis parece saber para que serve a pedra. Ela tira a camisa. Por baixo, Seis veste um macacão de borracha preto e cinza muito semelhante àquele azul e prata que vi meu pai vestindo nos flashbacks. Ela respira fundo e mostra o braço a Henri. Ele aperta a pedra contra o corte, e Seis, rangendo os dentes, grunhe e se retorce de dor. O suor recobre sua testa, seu rosto se tinge de vermelho pelo esforço, tendões saltam em seu pescoço. Henri mantém a pedra no lugar por um minuto, aproximadamente. Ele a retira, e Seis se dobra para a frente, respirando fundo para se recuperar. Olho para o braço dela. Além de um pouco de sangue ainda brilhando, o corte está completamente cicatrizado, e tudo o que resta é o pequeno rasgo no macacão.
O que é isso? — pergunto, olhando para a pedra.
É uma pedra de cura.
Isso existe mesmo?
Sim, em Lorien. Mas a dor da cura é duas vezes pior do que a dor no instante do ferimento, e a pedra só funciona quando a lesão foi causada com a intenção de ferir ou de matar. E a pedra de cura precisa ser usada corretamente.
Intenção? — pergunto. — Então, a pedra não funcionaria se eu caísse e abrisse a cabeça acidentalmente?
Não — responde Henri. — Essa é a razão essencial dos Legados: defesa e pureza.
A pedra funcionaria em Mark ou em Sarah?
Não sei. E espero que não tenhamos que descobrir.
Seis se recupera. Ela ergue o corpo e continua segurando o braço. O vermelho em seu rosto começa a desaparecer. Atrás dela, Bernie Kosar está correndo de um lado para o outro, entre a porta trancada e as janelas, que são muito altas para que ele possa enxergar por elas. Mesmo assim, ele se levanta nas patas traseiras e tenta, rosnando para o que sente que estará lá fora. Talvez nada, eu penso. De vez em quando ele morde o ar.
Pegou meu celular hoje quando esteve na escola? — pergunto a Henri.
Não. Eu não peguei nada.
Não estava no armário quando voltei.
Bem, o celular não funcionaria aqui, mesmo. Eles fizeram alguma coisa com nossa casa e a escola. A energia está desligada, e nenhum tipo de sinal penetra essa espécie de escudo que eles criaram. Todos os relógios pararam. Até o ar parece morto.
Não temos muito tempo — Seis interrompe.
Henri concorda, movendo a cabeça. Um sorriso suave surge em seus lábios quando ele olha para a garota, uma expressão de orgulho, talvez até de alívio.
Eu me lembro de você — ele diz.
Eu também me lembro de você.
Henri estende a mão, e Seis a aperta.
É muito bom vê-la outra vez.
Estou procurando por vocês há um tempo — conta Seis.
Onde está Katarina? — quer saber Henri.
Seis balança a cabeça. Uma expressão de pesar passa por seu rosto.
Ela não conseguiu. Morreu há três anos. Desde então tenho procurado pelos outros, inclusive por vocês.
Sinto muito — diz Henri.
Seis assente. Ela olha para o outro lado da sala, onde Bernie Kosar começou a rosnar de um jeito feroz e parece ter crescido — agora sua cabeça ultrapassa um pouco a parte inferior da moldura da janela. Henri pega a arma do chão e caminha até perto da janela, mas não muito. Ele pára cerca de um metro e meio antes de poder tocá-la.
John, apague as luzes — ele diz. Eu obedeço. — Agora, quando eu disser, puxe as persianas.
Eu me aproximo da janela, paro ao lado dela e seguro o cordão, enrolando-o duas vezes em torno da mão. Faço um sinal com a cabeça indicando a Henri que estou pronto, e por cima de seu ombro vejo que Sarah tampou as orelhas com as mãos, antecipando o estampido. Ele engatilha a arma e aponta.
É hora de dar o troco — murmura. Em seguida: — Agora! Puxo o cordão e a persiana sobe de uma vez só. Henri dispara. O som é ensurdecedor e ecoa em meus ouvidos por alguns segundos depois do estrondo. Ele engatilha a arma novamente, mantendo-a apontada. Eu me viro para olhar para fora. Vejo dois mensageiros caídos na grama, imóveis. Um deles é reduzido a cinzas com o mesmo ruído abafado que ouvi no corredor. Henri atira contra o outro mais uma vez, e ele também se desintegra. Sombras parecem pairar em torno deles.
Seis, traga uma geladeira — Henri diz a ela.
Mark e Sarah observam, atônitos, a geladeira ser arremessada e colocada diante da janela para impedir que os mogadorianos entrem ou vejam o interior da sala.
Melhor do que nada — Henri aprova. Ele se vira para Seis. — Quanto tempo temos?
Pouco — ela diz. — Eles têm um esconderijo a três horas daqui, na caverna de uma montanha em West Virgínia.
Henri abre a arma, introduz dois cartuchos no cano e a fecha com um estalo.
Quantas balas ela carrega? — pergunto.
Dez.
Sarah e Mark cochicham. Eu me aproximo dos dois.
Tudo bem? — pergunto.
Sarah assente, Mark dá de ombros. Nenhum dos dois sabe bem o que dizer diante do horror da situação. Beijo o rosto de Sarah e seguro a mão dela.
Não se preocupe — digo. — Vamos sair desta. Eu me viro para Seis e Henri.
Por que eles estão lá fora, apenas esperando? — questiono. — Por que não quebram uma janela e entram? Eles sabem que estamos em menor número.
Eles só querem nos manter aqui dentro — explica Seis. — Conseguiram nos encurralar exatamente onde queriam, todos juntos, confinados em um único espaço. Agora estão esperando pela chegada dos outros, os soldados com as armas, aqueles que são mais habilidosos para matar. Estão desesperados, porque sabem que estamos desenvolvendo nossos Legados. Não podem correr o risco de errar e permitir que nos tornemos mais fortes. Eles estão cientes de que atualmente já podem lutar.
Temos de sair daqui, então — Sarah se manifesta com aflição, a voz baixa e trêmula.
Seis assente, tentando acalmá-la. Então me lembro de um elemento que havia esquecido no meio de toda a agitação.
Espere um instante! Sua presença aqui, o fato de estarmos juntos... Isso quebra o feitiço! Agora todos os outros podem ser mortos. Eles podem nos matar sem considerar a ordem.
Pela expressão horrorizada no rosto de Henri, compreendo que ele também não havia pensado nisso.
Seis concorda com um movimento de cabeça.
Eu tinha que arriscar — ela diz. — Não podemos continuar fugindo, e estou farta de esperar. Estamos nos desenvolvendo, todos nós, e agora estamos preparados para reagir. Não podemos esquecer o que eles fizeram contra nós naquele dia, e eu nunca vou perdoar o que fizeram com Katarina. Todos que conhecemos estão mortos, nossas famílias, nossos amigos. Acho que eles planejam fazer o mesmo com a Terra, o mesmo que fizeram com Lorien. e estão quase prontos. Ficar parada sem fazer nada é permitir a mesma destruição, aquela mesma morte e aniquilação. Por que esperar e deixar acontecer de novo? Se este planeta morrer, nós morreremos com ele.
Bernie Kosar ainda está latindo para a janela. Chego a pensar em deixá-lo sair, ver o que ele pode fazer. Sua boca parece espumar, os dentes estão à mostra, os pelos estão eriçados no meio das costas. O cão está pronto, penso. A questão é: e nós?
Bem, agora você está aqui — diz Henri. — Vamos esperar que os outros estejam salvos e que possam se cuidar. Vocês dois saberão imediatamente se algo acontecer a um deles. Quanto a nós. bem, a guerra começou em nossa porta. Não a provocamos, mas, agora que começou, só nos resta lutar, e com todas as nossas forças, de frente. — Ele levanta a cabeça e olha para nós, o branco de seus olhos brilhando na sala escura. — Concordo com você, Seis — Henri continua. — O momento chegou.

CAPÍTULO TRINTA

O VENTO PENETRA PELA JANELA QUEBRADA DA SALA DE ECONOMIA DOMÉSTICA, E O refrigerador na frente do vão não é suficiente para conter o ar frio. A escola já está gelada por causa da falta de energia elétrica. Seis agora veste apenas o macacão de borracha, que é preto com uma faixa cinza cortando o peito na diagonal. Ela está em pé no meio de nosso grupo e demonstra tal equilíbrio e confiança que chego a desejar ter também um traje lórico. Ela abre a boca para falar, mas é interrompida por um estrondo lá fora. Todos nós corremos para as janelas, mas não podemos ver nada que está acontecendo. A explosão é seguida por vários estrondos, e pelo som de tecido rasgado, esgarçado, enfim, de alguma coisa sendo destruída.
O que está acontecendo? — pergunto.
Suas luzes — Henri me diz, erguendo a voz acima do som de destruição.
Acendo minhas luzes e as direciono para o pátio lá fora. Henri recua e inclina a cabeça, ouvindo tudo com extrema concentração, e depois move a cabeça numa aceitação resignada.
Estão destruindo todos os carros lá fora, inclusive minha caminhonete — ele conta. — Se sobrevivermos a isso e conseguirmos sair da escola, vamos ter que fugir a pé.
O terror domina a expressão de Mark e de Sarah.
Não podemos perder mais tempo — Seis decide. — Com ou sem estratégia, temos que sair daqui antes da chegada dos soldados e das bestas. Ela disse que podemos fugir pelo ginásio — Seis acena com a cabeça para Sarah. — Essa é nossa única esperança.
O nome dela é Sarah — eu digo.
Sento-me em uma cadeira próxima, nervoso com a urgência de Seis. Ela parece ser a mais firme ali, a que se manteve calma sob a pressão dos horrores que vimos até então. Bernie Kosar está atrás da porta, arranhando as geladeiras que a bloqueiam, rosnando e ganindo impacientemente. Como minhas luzes estão acesas, Seis pode dar uma boa olhada nele pela primeira vez. Ela o estuda com atenção, estreita os olhos, depois se inclina, tentando vê-lo de perto. Ela se aproxima e se abaixa para afagá-lo. Olho para ela e acho estranho que esteja rindo.
O que é? — pergunto.
Ela olha para mim.
Você não sabe?
Não sei o quê?
Seu sorriso fica ainda mais largo. Seis olha novamente para Bernie Kosar, que corre para longe dela e para perto da janela, arranhando, rosnando, latindo ocasionalmente para expressar sua frustração. A escola está cercada, a morte é iminente, quase certa, e Seis está rindo. Isso me irrita.
Seu cachorro — diz Seis. — Você não sabe mesmo?
Não — Henri responde por mim e balança a cabeça para ela.
Que diabo está acontecendo? — pergunto. — O que é?
Seis olha para mim, depois para Henri. Ela ri e abre a boca para falar. Mas antes de a primeira palavra se formar, sua atenção é atraída e ela corre para a janela. Nós a seguimos e, como antes, o brilho sutil dos faróis de um veículo surge na curva da estrada e entra no estacionamento. Outro automóvel, talvez um professor ou treinador. Fecho os olhos e respiro fundo.
Talvez não seja nada — digo.
Apague suas luzes — Henri me lembra.
Eu obedeço, cerro os punhos. Alguma coisa no carro lá fora provoca em mim uma raiva intensa. Para o inferno com a exaustão, com os tremores que têm se repetido desde que pulei a janela da sala do diretor. Não suporto mais ficar confinado naquela sala, sabendo que os mogadorianos estão lá fora, esperando, tramando nosso fim. O carro lá fora pode ser o primeiro dos soldados chegando ao local. Mas, quando esse pensamento surge em minha cabeça, vemos as luzes deixando o estacionamento rapidamente, afastando-se em alta velocidade, voltando pela mesma estrada por onde chegaram.
Temos que sair desta maldita escola — diz Henri.

Henri está sentado em uma cadeira uns três metros longe da porta, com a arma apontada para ela. Ele respira lentamente, embora esteja tenso, e posso ver os músculos enrijecidos em sua mandíbula. Ninguém diz nada. Seis fica invisível e sai para explorar o ambiente. Nós ficamos esperando, e finalmente acontece. Três batidas leves na porta. Seis está avisando que é ela, não um mensageiro tentando entrar. Henri abaixa a arma e ela entra, e eu empurro de volta um dos refrigeradores para bloquear a porta atrás dela. Ela ficou fora por dez minutos.
Você tinha razão — Seis diz a Henri. — Eles destruíram todos os carros no estacionamento e empurraram os destroços para bloquear as saídas. E Sarah está certa; o alçapão sob o palco está livre. Contei sete mensageiros lá fora e cinco aqui dentro, atravessando os corredores. Havia um aqui na frente da porta, mas já foi removido. Parece que estão ficando agitados. Acho que isso significa que os outros já devem estar aqui, ou não estão longe.
Henri se levanta e pega a arca, depois faz um sinal para mim. Eu o ajudo a abrida. Ele retira dali algumas pedrinhas redondas que enfia no bolso. Não sei o que são. Depois ele fecha e tranca a arca e a guarda dentro de um forno. Empurro uma geladeira para a frente do forno, para impedir que seja aberto. Não há realmente outra escolha. A arca é pesada, seria impossível carregada e lutar, e precisamos de todas as mãos disponíveis para sair desta confusão.
Odeio deixá-la para trás — Henri confessa, balançando a cabeça. Seis concorda com um movimento de cabeça. A idéia de os mogadorianos se apoderarem da arca os apavora.
Ela vai ficar bem aqui — eu digo.
Henri levanta a arma e olha para Sarah e Mark.
Esta luta não é de vocês — ele avisa. — Não sei o que esperar lá fora, mas, se as coisas complicarem muito, quero que vocês voltem para dentro da escola e fiquem escondidos. Eles não estão atrás de vocês, e não acredito que virão procurá-los, se já nos tiverem.
Sarah e Mark parecem dominados pelo medo, os dois segurando suas facas com força, os dedos da mão direita brancos pelo esforço. Mark pegou tudo o que conseguiu encontrar nas gavetas e que poderia ter algum uso — mais facas, o martelo de carne, ralador de queijo, tesoura.
Vamos sair daqui, e, no final do corredor, o ginásio fica atrás de uma porta dupla à direita — digo a Henri.
O alçapão fica bem no meio do palco — Seis se manifesta. — Está coberto com um tapete azul. Não havia mensageiros no local, mas isso não significa que não estejam lá quando chegarmos.
Então, vamos simplesmente sair e tentar correr mais do que eles? — Sarah pergunta. Sua voz está cheia de pânico. Sua respiração está pesada.
É nossa única opção — diz Henri.
Agarro a mão dela. Sarah está tremendo muito.
Vai dar tudo certo — digo.
Como sabe disso? — ela me pergunta, mais exigindo do que questionando.
Não sei — confesso.
Seis afasta a geladeira da porta. Bernie Kosar começa imediatamente a arranhá-la, tentando sair, uivando.
Não posso torná-los todos invisíveis — diz Seis. — Se eu desaparecer, ainda estarei por perto.
Seis segura a maçaneta e Sarah respira fundo a meu lado, visivelmente abalada e trêmula, apertando minha mão com toda a força que tem. Vejo a faca tremendo em sua mão direita.
Fique perto de mim — digo.
Não vou sair de seu lado.
A porta é aberta e Seis é a primeira a sair. Henri a segue de perto. Eu os sigo, e Bernie Kosar corre à nossa frente, uma bola de pelos se movendo em alta velocidade. Henri aponta a arma para um lado, depois para o outro. O corredor está vazio. Bernie Kosar já chegou na interseção. Ele desaparece. Seis se torna invisível, e nós todos corremos para o ginásio, atrás de Henri. Ponho Sarah e Mark em minha frente. Nenhum de nós consegue ver nada, mas nos guiamos pelo som dos passos uns dos outros. Acendo minhas luzes para ajudar a guiar o grupo, e esse é meu primeiro erro.
A porta de uma sala de aula à minha direita se abre. Tudo acontece em uma fração de segundo, e, antes que eu tenha chance de reagir, sou atingido no ombro por algum objeto pesado. Minhas luzes se apagam. Caio para a frente e quebro uma divisória de vidro. Sofro um corte no topo da cabeça e o sangue escorre por meu rosto quase imediatamente. Sarah grita. O que me atingiu antes me acerta novamente, um baque em minhas costelas que me deixa sem ar.
Acenda suas luzes! — grita Henri. Eu obedeço. Um mensageiro está em pé sobre mim, segurando um pedaço de madeira de uns dois metros que ele deve ter encontrado na sala de artes industriais. Ele o levanta para me acertar novamente, mas Henri atira primeiro. A cabeça do mensageiro desaparece, explodida em pedaços. O restante do corpo se transforma em cinzas antes de chegar ao chão. Henri abaixa a arma.
Merda — ele diz ao ver o sangue.
Ele dá um passo em minha direção, e pelo canto do olho vejo outro mensageiro, na mesma porta, com uma marreta erguida sobre a cabeça. Ele vem a meu encontro e, com a telecinesia, arremesso contra ele o que está mais perto de mim, um objeto dourado e brilhante que nem me preocupo em identificar e que corta o ar com violência. O mensageiro é atingido com tanta força que seu crânio é fraturado pelo impacto, e ele fica imóvel no chão. Henri, Mark e Sarah correm. O mensageiro ainda está vivo, e Henri pega a faca da mão de Sarah e a enterra no peito do mogadoriano, reduzindo-o a uma pilha de cinzas. Em seguida ele devolve a faca a Sarah. Ela a segura na frente do corpo, com o polegar e o indicador, como se houvesse recebido uma peça de roupa íntima suja. Mark se abaixa e pega o objeto que arremessei, ou melhor, recolhe os três pedaços em que se partiu.
Meu troféu — ele diz, rindo de si mesmo. — Recebi no mês passado.
Foi a estante dos troféus que eu arremessei contra o mogadoriano.
Você está bem? — Henri pergunta, olhando para o corte em minha cabeça.
Sim, estou. Vamos em frente.
Continuamos pelo corredor para o ginásio, atravessamos o espaço amplo correndo, saltamos para o palco. Eu acendo minhas luzes e vejo o tapete azul ser removido como se tivesse vontade própria. Depois, o alçapão é aberto. Só então Seis se torna visível novamente.
O que aconteceu? — ela pergunta.
Tivemos um pequeno problema — Henri responde, descendo a escada na frente para se certificar de que não há ninguém lá embaixo.
Sarah e Mark o seguem.
Cadê o cachorro? — pergunto.
Seis balança a cabeça.
Vá você — eu digo.
Ela desce na minha frente, e eu fico sozinho no palco. Assobio tão alto quanto posso, sabendo muito bem que com isso estou delatando minha localização. Aguardo.
Vamos, John — Henri chama do fundo do alçapão.
Eu desço a escada, mas paro com metade do corpo ainda fora da abertura e de lá observo o ginásio.
Ah, vamos lá! Onde você está? — Nesta fração de segundo em que não me resta alternativa se não desistir, Bernie Kosar aparece na entrada do ginásio e corre em minha direção, as orelhas abaixadas, quase coladas à cabeça. Eu rio.
Vamos! — Henri grita.
Estou indo! — grito de volta.
Bernie Kosar pula para cima do palco e para meus braços
Aqui — eu digo e entrego o cachorro a Seis. Eu desço depressa, fecho o alçapão e acendo minhas luzes com intensidade máxima.
Paredes e chão são feitos de concreto, e predomina ali um forte cheiro de mofo. Temos de caminhar abaixados para não bater a cabeça. Seis vai à frente. O túnel deve ter uns trinta metros de comprimento, e não sei para que pode ter servido, ou se teve alguma utilidade em algum momento. Chegamos ao final; uma escada curta nos leva a portas duplas de metal rentes ao chão. Seis espera até todos estarem juntos.
Para onde elas abrem? — pergunta.
Para os fundos do terreno — diz Sarah. — Não muito longe do campo de futebol.
Seis pressiona a orelha contra a brecha estreita entre as duas portas fechadas. Tudo o que se ouve é o vento. Todos nós estamos suados, empoeirados e com medo. Seis olha para Henri e move a cabeça num gesto de afirmação. Eu apago minhas luzes.
Muito bem — ela diz antes de ficar invisível.
Seis abre a porta apenas o suficiente para olhar para fora. Nós a observamos, atentos, nervosos. Ela olha para um lado, depois para o outro. Satisfeita por não termos sido pegos, empurra a porta e nós saímos um a um.
Tudo está escuro e silencioso, sem vento. As árvores da floresta à nossa direita não se movem. Olho em volta e consigo ver as silhuetas dos carros destruídos e empilhados na frente da escola. Não há estrelas ou lua. Nem céu, na verdade, é quase como se estivéssemos sob uma bolha de escuridão, algum tipo de abóbada onde só as sombras permanecem. Bernie Kosar começa a rosnar, no início bem baixo, o que me faz pensar que ele está apenas agitado, nervoso; mas o rosnado se torna mais feroz, mais ameaçador, e sei que ele sente alguma coisa ali fora. Todos olhamos em volta para ver a causa dessa reação, mas nada se move. Dou um passo adiante, para deixar Sarah atrás de mim. Penso em acender minhas luzes, mas sei que isso vai nos delatar ainda mais do que o rosnado do cachorro. De repente, Bernie Kosar avança.
Ele se lança para a frente uns quinze metros e salta, cravando os dentes em um dos mensageiros invisíveis, que se materializa do nada, como se um encantamento de invisibilidade houvesse sido quebrado. Em um instante, podemos ver todos eles, nos cercando, não menos do que vinte deles, que começam a se aproximar.
Era uma armadilha — Henri grita e atira duas vezes, acertando dois mensageiros.
Voltem para o túnel — eu berro para Mark e Sarah.
Um dos mensageiros corre em nossa direção. Eu o levanto no ar e o arremesso com toda a minha força contra uma árvore. Ele cai no chão com um baque, levanta-se rapidamente e joga uma faca contra mim. Eu a desvio e suspendo novamente o mensageiro, lançando-o com mais força. Ele se transforma em cinzas na base da árvore. Henri descarrega mais tiros, e o barulho é ensurdecedor. Duas mãos me agarram por trás. Quase as flexiono, mas percebo antes que são de Sarah. Não vejo Seis em lugar nenhum. Bernie Kosar derrubou um mogadoriano e mantém os dentes enterrados na garganta dele, os olhos brilhando, furiosos.
Voltem para a escola! — grito.
Sarah não me larga. Um trovão rompe o silêncio e uma tempestade começa a se formar, com nuvens negras surgindo lá no alto e raios e trovões cortando o céu da noite, seguidos por trovões tão retumbantes que Sarah se sobressalta cada vez que um deles ecoa. Seis reapareceu alguns metros à frente do grupo, seus olhos no céu e o rosto contorcido numa máscara de concentração. Ela mantém os braços erguidos. É ela que está criando a tempestade, controlando o clima. Raios de luz caem sobre nós, acertando os mensageiros e matando-os instantaneamente, criando pequenas explosões que formam nuvens de cinzas que vão se espalhando pelo pátio. Henri está recarregando a arma. O mensageiro que Bernie Kosar derrubou finalmente morre e explode numa montanha de cinzas que cobrem o focinho do animal. Ele espirra uma vez, sacode as cinzas do pelo e depois se afasta correndo, perseguindo outro mensageiro e empurrando-o para a floresta densa, onde os dois desaparecem. Tenho um medo horrível de que essa seja a última vez que o vejo.
Você precisa voltar para a escola — digo a Sarah. — Vocês precisam ir agora e devem se esconder, Mark! — eu grito. Ergo os olhos e não o vejo. Olho em volta. Ele está correndo na direção de Henri, que ainda carrega a arma. De início não entendo o que Mark pretende fazer, mas logo noto o que está acontecendo: um mogadoriano se aproxima de Henri sem que ele o tenha visto. — Henri!
Ergo a mão para deter o inimigo com sua faca já levantada, mas Mark chega primeiro. Ele o ataca e luta. Henri levanta a arma, e Mark chuta para longe a faca do mensageiro. Henri dispara e o mogadoriano explode. Henri fala com Mark. Eu grito novamente chamando por Mark, e ele corre até nós. Está ofegante.
Você precisa levar Sarah para dentro da escola.
Posso ajudar aqui — ele argumenta.
Essa luta não é sua. Vá se esconder. Entre na escola e se esconda com Sarah!
Tudo bem.
Fiquem escondidos, independentemente do que acontecer! — grito mais alto do que a tempestade. — Eles não vão procurá-los. Eu sou o alvo. Prometa, Mark! Prometa que vai ficar escondido com Sarah!
Mark assente rapidamente.
Prometo!
Sarah está chorando, e não há tempo para confortá-la. Outro estouro, mais um trovão, mais uma rajada de tiros. Ela me beija nos lábios uma última vez, as mãos segurando meu rosto, e sei que ela ficaria ali para sempre, se pudesse. Mas Mark a segura pelos ombros e começa a levá-la dali.
Amo você — Sarah me diz, e noto que ela olha para mim de um jeito que conheço bem, como eu já olhei para ela certa vez, quando saí da aula de economia doméstica ao ser chamado na diretoria, como se temesse nunca mais vê-la e quisesse gravar na memória todos os detalhes.
Também amo você — respondo quando os dois já desaparecem na escada para o túnel.
Assim que as palavras deixam minha boca, ouço Henri gritar de dor e me viro. Um dos mensageiros conseguiu acertá-lo com uma faca. O terror me domina. O mensageiro arranca a faca do corpo de Henri, a lâmina brilha recoberta com seu sangue. Ele esfaqueia Henri novamente. Estendo a mão e arremesso a faca longe do mensageiro, impedindo outro ferimento. O oponente acerta Henri com sua mão vazia. Henri geme de dor, mas levanta a arma, encosta o cano no queixo do mogadoriano e dispara. O inimigo cai sem cabeça.
Começa a chover. É uma chuva fria, pesada. Em pouco tempo estou ensopado até os ossos. Henri está perdendo sangue. Ele aponta a arma para a escuridão, mas todos os mensageiros se retiraram para as sombras, para longe de nós, e Henri não consegue uma boa mira. Não estão mais interessados em atacar, pois sabem que dois de nosso grupo bateram em retirada e um terceiro está ferido. Seis mantém os braços erguidos. A tempestade agora é mais forte; o vento começa a uivar. Ela parece ter problemas para controlar o tempo. Tudo termina com a mesma velocidade com que começou — os trovões, os raios, a chuva. O vento cessa e um longo gemido começa a soar longe dali. Seis abaixa os braços, e todos nós ouvimos com atenção. Até os mogadorianos se viram. O barulho aumenta, inconfundivelmente vindo em nossa direção uma espécie de intenso grunhido mecânico. Os mensageiros brotam das sombras e começam a rir. Apesar de termos matado pelo menos dez deles, agora estão em número muito maior do que antes. Uma nuvem de fumaça se ergue sobre as árvores mais afastadas, como se houvesse ali uma máquina movida a vapor. Os mensageiros assentem entre eles e dão um sorriso maldoso, formando novamente um círculo à nossa volta. Tenho a impressão de que eles pretendem nos fazer voltar para a escola. E é óbvio que essa é nossa única chance. Seis se aproxima.
O que é isso? — pergunto.
Henri se mantém em pé com dificuldade, e a arma pende de sua mão como se fosse pesada demais para ele. Sua respiração é pesada, tem um corte sob o olho direito e uma mancha de sangue no suéter cinza, sobre o ferimento causado pela faca.
São os outros, o restante deles — ele diz. — Não é isso, Seis? Seis o encara, perplexa, com os cabelos longos encharcados e colados à cabeça e em torno do rosto.
As bestas — ela responde. — E os soldados. Estão aqui.
Henri engatilha a arma e respira fundo.
Vai começar a verdadeira guerra — ele diz. — Não sei o que vocês dois acham, mas, em minha opinião, se é isso... é isso. Não vou cair antes de lutar muito.
Seis concorda, movendo a cabeça.
Nosso povo resistiu até o final. E nós também resistiremos — ela diz.
A fumaça ainda se ergue um ou dois quilômetros longe dali. Carga viva, eu penso. É assim que eles são transportados, em caminhões. Seis e eu seguimos Henri escada abaixo. Grito chamando por Bernie Kosar, mas não o vejo em lugar algum.
Não podemos esperado outra vez — Henri me avisa. — Não temos tempo.
Olho em volta uma última vez e fecho o alçapão com um baque surdo. Voltamos correndo pelo túnel, subimos para o palco, atravessamos o ginásio. Não vemos um único mensageiro, nem Mark e Sarah, e eu me sinto aliviado por isso. Espero que eles estejam escondidos e que Mark cumpra a promessa de permanecerem assim. Quando retornamos à sala de economia doméstica, afasto a geladeira que bloqueia a porta do forno e pego a arca. Henri e eu a abrimos. Seis pega a pedra de cura e a pressiona contra o ferimento de Henri. Ele fica em silêncio, de olhos fechados, quase sem respirar. Seu rosto está vermelho pelo esforço, mas ele não emite som algum. Um minuto depois, Seis retira a pedra. O corte cicatrizou. Henri suspira profundamente, a testa recoberta com suor. Então é minha vez. Ela pressiona a pedra contra o corte em minha cabeça, e sinto uma dor maior do que tudo, pior do que todas as dores que já senti. Não consigo conter um gemido, e todos os músculos do corpo ficam tensos. Não respiro até acabar e, quando finalmente termina, eu me dobro e ainda continuo sem ar por mais um minuto.
Do lado de fora, aquele ruído mecânico parou. O caminhão está escondido. Enquanto Henri fecha a arca e a coloca de volta no forno, eu olho pela janela na esperança de ver Bernie Kosar. Não o vejo. Outro par de faróis passa pela escola. Como antes, não consigo compreender se é um carro ou um caminhão, e ele reduz a velocidade quando passa pela entrada, depois segue adiante sem entrar. Henri abaixa a camisa, depois pega a arma. Quando nos dirigimos à porta, um som nos faz parar de repente.
Um rugido do lado de fora, um grunhido poderoso como o de um animal, um som sinistro como nunca ouvi outro antes, seguido pelo som dos cliques metálicos de um portão sendo destrancado e aberto. Um baque chama nossa atenção. Respiro fundo. Henri suspira e balança a cabeça num gesto que é quase de impotência, um movimento que sugere que a luta está perdida.
Sempre há esperança, Henri — eu digo.
Ele olha para mim. — Novos acontecimentos estão por vir. Nem toda informação foi exposta. Não desista. Ainda não.
Ele assente, e vejo em seus lábios o esboço de um sorriso. Henri olha para Seis, e ela é uma novidade que nenhum de nós poderia ter imaginado. Quem poderia dizer que não surgiriam outras surpresas? Ele continua o discurso de onde parei, repetindo as mesmas palavras que disse quando era eu o desanimado, no dia em que perguntei como poderíamos ter esperança de vencer essa luta, sozinhos e em minoria, longe de casa — contra os mogadorianos, que parecem sentir grande alegria na guerra e na morte.
E a última coisa que se vai — diz Henri. — Quando você perde a esperança, já perdeu tudo. E quando você pensa que tudo está perdido, quando tudo é sombrio e sinistro, sempre há esperança.
Exatamente — digo.

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