quarta-feira, 20 de julho de 2011

A Megera Domada - Ato IV

ATO IV
Cena I
(Uma sala na casa de campo de Petrucchio. Entra Grúmio.)
GRÚMIO - A peste que carregue todos os cavalos aguados, os patrões loucos e os caminhos
intransitáveis! Já houve quem apanhasse tanto como eu? quem ficasse tão marcado, tão cansado quanto
eu? Mandaram-me na frente, para fazer fogo, vindo eles atrás, para se aquecerem. Mas se eu não fosse
um pote pequeno, que se esquenta com facilidade, poderia ficar com os lábios grudados nos dentes, de
tanto frio; a língua, no céu da boca; o coração, nas costelas, e isso antes de poder chegar para perto de
algum fogo e descongelar-me. Tenciono aquecer-me soprando no fogo. Com um tempo destes, um
homem mais alto do que eu se resfriaria facilmente. Olá! Curtis! Olá!
(Entra Curtis.)
CURTIS - Quem é que me chama com tanto frio assim?
GRÚMIO - Um pedaço de gelo. Se não acreditais no que digo, poderás escorregar do meu ombro ao
calcanhar tão rapidamente como da cabeça ao pescoço. Fogo, bondoso Curtis.
CURTIS - O patrão e a senhora já vêm vindo, Grêmio?
GRÚMIO - Oh! vêm, Curtis; vêm. Por isso mesmo, fogo, fogo, sem nenhuma água por cima.
CURTIS - E ela, é a megera furibunda de que todos falam?
GRÚMIO - Foi, Curtis, antes desta geada. Mas, como sabes, o inverno amansa o homem, a mulher e o
animal, pois assim o fez com meu velho amo, com minha nova patroa e comigo mesmo, camarada
Curtis.
CURTIS - Sai daí, louco de três polegadas! Não sou nenhum animal.
GRÚMIO - Só tenho três polegadas de altura? Pois se teus cornos medem um pé de comprimento,
deveria ser esse, no mínimo, o meu tamanho. Mas não queres acender o fogo? Ou deverei queixar-me de
ti à nossa ama, cuja mão - pois ela já se acha à distância da mão - tu sentirás dentro de pouco, para teu
frio consolo, por seres vagaroso no cumprimento de tuas obrigações?
CURTIS - Por favor, bondoso Grêmio, conta-me como vai passando o mundo.
GRÚMIO - O mundo está frio, Curtis, em todos os ofícios com exceção do teu. Por isso, trata de acender
o fogo. Cumpre o teu dever para alcançares o que te devem, porque o patrão e a patroa estão quase
mortos de frio.
CURTIS - O fogo está preparado. Por isso, bondoso Grêmio, quais são as novidades?
GRÚMIO - Ora, quantas queiras, todas elas na toada da cantiga "Ó Zé menino! Olá, menino!"
CURTIS - Ora, oral estás sempre com brincadeiras.
GRÚMIO - Por isso mesmo, cuida do fogo, pois apanhei um frio extremo. Onde está o cozinheiro? A
ceia está pronta? a casa enfeitada? os juncos espalhados? as teias de aranha retiradas? Todos os criados
estão de casaco novo e meias brancas e os demais serventes com suas fardas de gala? Os odres estão
bonitos por dentro e as jarras bonitas por fora? Os tapetes já foram estendidos, e tudo, enfim, está em
ordem?
CURTIS - Tudo está em ordem. Por isso mesmo, torno a perguntar: que novidades há?
GRÚMIO - Em primeiro lugar fica sabendo que meu cavalo está estrompado; o patrão e a patroa caíram.
CURTIS - Como!
GRÚMIO - Ora, caíram da sela na lama; isso daria uma bela história.
CUIRTIS - Pois vamos ouvi-la, bondoso Grêmio.
GRÚMIO - Então apronta a orelha.
CURTIS - Aqui está ela.
GRÚMIO - (Dando-lhe uma bofetada) - Ei-la!
CURTIS - Isso é o que se chama sentir uma história, não ouvi-la.
GRÚMIO - Por isso mesmo é que tem o nome de história sensível. Esse tapa só serviu para chamar a
atenção de tua orelha. Agora vou começar. Imprimis, descemos por uma coluna sujíssima, vindo meu
amo na garupa da patroa...
CURTIS - Ambos montados no mesmo cavalo?
GRÚMIO - Que tens que ver com isso?
CURTIS - Bem; num cavalo
. GRÚMIO - Nesse caso, conta tu mesmo a história. Se não me tivesses interrompido, terias ouvido como
o cavalo dela caiu, tendo ela ficado por baixo dele, como também terias ficado sabendo em que lamaçal
isso se deu e como ela ficou toda lambuzada de lama; como ele a deixou ficar por baixo do cavalo e me
bateu, porque o cavalo havia tropeçado; como ela se atolou naquela imundície, para vir tirá-lo de cima de
mim, como ele praguejava, como ela suplicava, ela que nunca o havia feito até então; como eu gritava,
como o cavalo escapou e saiu correndo, como a rédea arrebentou, como eu perdi o meu rabicho, além de
muitas outras coisas dignas de memória, que irão cair no esquecimento, enquanto tu voltarás para tua
sepultura, sem conhecimento de nada.
CURTIS - Por essa relação, vê-se que ele é mais intratável do que ela.
GRÚMIO - Sim, o de que o mais atrevido dentre vós poderá certificar-se, logo que ele chegar. Mas, para
que tagarelar dessa maneira? Vai chamar Nataniel, José, Nicolau, Filipe, Válter, Biscoitinho e todos os
outros. Que venham com os cabelos bem lisos, as blusas azuis bem escovadas e as ligas uniformes. Que
façam reverência com a perna esquerda, sem terem a ousadia de tocar num só pêlo do rabo do cavalo de
meu amo, antes de beijarem a mão dele e a da patroa. Estão todos prontos?
CURTIS - Estão.
GRÚMIO - Então chama-os.
CURTIS - Olá! Estais ouvindo? Precisamos receber o patrão e apresentar os cumprimentos à patroa.
GRÚMIO - Ora, ora! Cumprimento é o que ela tem bastante.
CURTIS - E quem não sabe disso?
GRÚMIO - Tu, parece, porque estás mandando que lhe dêem cumprimento.
CURTIS - Chamei-os para que eles reforcem o crédito dela.
GRÚMIO - Ora, ela não pretenderá pedir-lhes emprestado coisa nenhuma.
(Entram vários criados.)
NATANIEL - Bem-vindo, Grúmio!
FILIPE - Então, Grúmio?
JOSÉ - Que é que há, Grúmio?
NICOLAU - Camarada Grúmio!
NATANIEL - Como vai isso, meu velho?
GRÚMIO - Bem-vindo, vós; e vós, então? Que foi que houve convosco? E vós, camarada? E assim todos
os outros cumprimentos. Agora, meus guapos companheiros, está tudo pronto? todas as coisas estão nos
eixos?
NATANIEL - Tudo está nos eixos. A que distância se encontra o patrão?
GRÚMIO - A dois passos daqui; provavelmente já está apeando do cavalo. Por isso, não sejas... Santo
Deus! Silêncio! Estou ouvindo a voz do patrão.
(Entram Petrucchio e Catarina.)
PETRUCCHIO - Onde estão esses biltres? Como! A rédea ninguém me veio segurar à porta, nem pegar
o cavalo? Onde se encontram Gregório, Nataniel, José, Filipe?...
TODOS OS CRIADOS - Aqui, senhor!
PETRUCCHIO - Aqui, senhor! Aqui, senhor! Aqui, senhor! Cabeças ocas, moços de estrebaria é o que
sois todos. Deveres ninguém tem? Não há serviço? Atenções ninguém mostra? Onde se encontra aquele
tolo que eu mandei na frente?
GRÚMIO - Aqui, senhor; tão tolo quanto era antes.
PETRUCCHIO - Rústico mandrião, rocim maldito, não mandei que no parque me esperasses e que
levasses estes outros biltres?
GRÚMIO - O casaco, senhor, de Nataniel estava só alinhavado; ainda faltava pôr salto no sapato de
Filipe; não havia morrão para darmos cor ao chapéu de Pedro; falta bainha para a espada de Válter. Só
estão prontos Gregório, Ralph e Adão. Todos os outros estão que nem trapos, velhos e indigentes. Mas,
assim mesmo, vieram receber-vos.
PETRUCCHIO - Ide, mariolas, preparar a sopa.
(Saem alguns criados.)
"Onde está a vida que eu vivia outorga? Onde estão..." Vem, Quetinha; vem sentar-te... Bá, bá, bá!
(Voltam os criados, com sopa.)
Sois bem-vinda, Quetinha. - Quando é isso? - Doce Quetinha, fica mais alegre. Mandriões, tirai-me as
botas! Biltres! Quando? Era um monge da ordem parda, que caminhava sem guarda. Vai para o inferno,
biltre! O pé me torces.
(Bate-lhe.)Toma isto, e na Outra tenhas mais cuidado. Quetinha, fica alegre. Tragam-me água! Para onde
foi meu galgo Tróilo? Chama-me o primo Ferdinando. Aí, maroto!
(Sai um criado.)
Quetinha, é uma pessoa que precisas beijar e conhecer. E meus chinelos? E água, não trazem? Lava-te,
Quetinha, lava-te e fica alegre.
(O criado deixa cair o jarro. Petrucchio bate nele.)
Biltre, estúpido! Ainda o deixas cair?
CATARINA - Tende paciência; foi sem querer.
PETRUCCHIO - Cabeça empedernida, tipo orelhudo, filho da sarjeta!! Vamos, Quetinha, senta-te.
Decerto deves estar com fome. E a ação de graças, quem dirá: eu ou tu? Que é isto: carne de carneiro?
PRIMEIRO CRIADO - Isso mesmo.
PETRUCCCHIO - Quem a trouxe?
PRIMEIRO CRIADO - Eu.
PETRUCCHIO - Pois está queimada e, assim o resto. Sois todos uns cachorros. E essa besta do
cozinheiro, onde se encontra? Biltre! Velhacos, como tendes a ousadia de servir-me de tudo o que eu não
gosto?
(Atira ao chão a mesa, pratos, etc.)
Retirai isso! Copos, pratos, tudo! Mal-educados! Grosseirões! Escravos! Como! Estais resmungando? Já
vos pego.
CATARINA - Marido, por favor, ficai mais calmo.
A comida está boa; bastaria ficardes bem-disposto.
PETRUCCHIO - Não, Quetinha; estava esturricada e ressequida, e eu me acho expressamente proibido
de comidas assim, porque provocam a cólera e me deixam irritado. Será melhor para ambos jejuarmos -
sendo por natureza tão coléricos - do que carne ingerirmos tão assada. Tem paciência; amanhã
repararemos tudo isso; mas por hoje é mais prudente passarmos em jejum. Vem, vem comigo; quero
levar-te para nosso quarto
(Saem Petrucchio, Catarina e Curtis.)
NATANIEL - Pedro, já viste coisa semelhante?
PEDRO - Ele a mata com o próprio gênio dela.
(Volta Curtis.)
GRÚMIO - Em que parte está ele?
CURTIS - No quarto, fazendo-lhe um sermão de continência. Briga, jura, aconselha, de tal forma que
fica sem saber a coitadinha para onde deva olhar, como expressar-se, de que jeito ficar, tendo acabado
por sentar-se, tal como quem desperta de repente de um sonho. Mas, corramos, que ele vem vindo aí.
(Saem.)
(Volta Petrucchio.)
PETRUCCHIO - Comecei desse modo o meu reinado com muita habilidade, tencionando chegar ao fim
com êxito completo. Meu falcão está afiado e com bem fome, e, enquanto não ficar bastante dócil, não
encherá o papo. De outro modo, não obedecerá ao meu aceno. Tenho também outro processo para deixar
manso o gavião, fazer que volte e habituá-lo ao meu grito, isto é, forçá-lo a ficar acordado, como é de
hábito fazer com esses milhanos indomáveis que se debatem muito. Até agora ela não comeu nada, sendo
certo que vai ficar assim o dia todo. Na última noite não dormiu, nem há de dormir na noite entrante. De
igual modo que com a comida fiz, acharei meios de encontrar hipotéticos defeitos na arrumação do leito:
os travesseiros atiro para um lado, as almofadas para outro, jogo longe os cobertores, faço voar os
lençóis. Sim, e em toda essa barulheira infernal direi que faço tudo por causa dela. Em suma: ela há de
vígil passar a noite; e caso os olhos venha a fechar, farei tão grande bulha com ralhos e disputas, que por
força terá de despertar. Essa é a maneira de matar com carícias uma esposa. Dobrarei desse modo o gênio
dela, opinioso e violento. Se alguém sabe como amansar melhor uma megera, venha ensinar-me, que
aqui fico à espera.
(Sai.)

Cena II
(Pádua. Diante da casa de Batista. Entram Trânio e Hortênsio.)
TRÂNIO - Será possível, caro amigo Lício, que outro, que não Lucêncio, possa o afeto vir alcançar da
senhorita Bianca? Sim, meu caro senhor, posso afirmar-vos que ela me tem encorajado muito.
HORTÊNSIO - Para vos convencer do que vos disse, senhor, ficai de lado e tomai nota como ele dá
lições.
(Afastam-se.)
(Entram Bianca e Lucêncio.)
LUCÊNCIO - Aproveitastes, senhora, alguma coisa da leitura?
BIANCA - E vós, mestre, que ledes? Respondei-me primeiro a essa pergunta. LUCÊNCIO - O que
professo: a arte de amar.
BIANCA - Possais, senhor, ser mestre na arte que professais com devoção.
LUCÊNCIO - E vós, a dona de meu coração.
(Afastam-se.)
HORTÊNSIO - Como isso vai depressa! Não juráveis - dizei-me agora - que vossa ama Bianca a
ninguém mais amava em todo o mundo, se não esse Lucêncio?
TRÂNIO - Oh falso amor! Sexo inconstante! Lício, só te digo que é muito extraordinário.
HORTÉNSIO - Basta, basta de enganos. Não sou Lício, nem sou músico, como pareço, mas alguém que
sente repugnância em viver com esta máscara por uma criatura que despreza um cavalheiro e endeusa um
lorpa desses. Senhor, chamo-me Hortênsio, é o que vos digo.
TRÂNIO - Signior Hortênsio, já bastantes vezes ouvira referências lisonjeiras a vosso amor por Bianca.
Mas havendo sido estes olhos testemunhos certos de sua leviandade, juntamente convosco, se de acordo
vos mostrardes, abjurarei de vez o amor de Bianca.
HORTÊNSIO - Vede como se beijam ternamente, signior Lucêncio! Com firmeza juro por esta mão em
como vou abster-me de lhe fazer a corte; renuncio a ela, por ser inteiramente indigna das atenções que
até hoje, com tamanha leviandade, eu lhe vinha concedendo.
TRÂNIO - Quero também fazer o juramento não menos firme de jamais casar-me com ela, embora
suplicar-me viesse para esse fim. Que peste! Vede como bestialmente o corteja!
HORTÊNSIO - Desejara que, tirante ele, todos a deixassem. Quanto a mim, porque mais seguramente
mantenha o juramento, vou casar-me nestes três dias próximos com uma viúva rica que me foi fiel
durante todo o tempo em que eu estava pendido para o lado dessa bruxa altiva e impertinente. E assim,
meu caro signior Lucêncio, adeus. O coração me conquista a bondade feminina, não a bela aparência. E
ora despeço-me, decidido a cumprir o que vos disse.
(Sai Hortênsio.)
(Lucêncio e Bianca vêm para a frente.)
TRÂNIO - Senhora Bianca, caiba-vos a graça dos amantes que têm amor sem jaça. Sim, apanhei-vos de
surpresa, amiga, e a vós renunciamos, eu e Hortênsio.
BIANCA - Trânio, estais gracejando? É então verdade que ambos me renunciastes?
TRÂNIO - Sim senhora.
LUCÊNCIO - Então de Lício já ficamos livres.
TRÂNIO - Escolheu uma viúva frescalhona que noiva e esposa vai ficar num dia.
BIANCA - Deus lhe dê alegria.
TRÂNIO - Vai domá-la.
BIANCA - É o que ele diz, amigo.
TRÂNIO - Não há dúvida; foi tomar aulas de domar, é certo.
BIANCA - Como! Aulas de domar? Há escola disso?
TRÂNIO - Sim, senhor; e Petrucchio é o professor. Meios conhece de amansar a bruxa, deixando-a mui
discreta e não perluxa.
(Entra Biondello, a correr.)
BIONDELLO - Ó meu caro patrão! Fiquei de espreita por tanto tempo, que esfalfado me acho. Mas,
afinal, descer vi da colina um angélico velho que nos serve muito bem aos intentos.
TRÂNIO -.Quem é ele, Biondello?
BIONDELLO - Um mercador, patrão, ou mesmo pedagogo, não sei. Porém de vestes muito formais e de
aparência e porte de um verdadeiro pai.
LUCÊNCIO - E agora, Trânio, que faremos com ele?
TRÂNIO - Se for crédulo e acreditar em minha história, alegre fará o papel paterno de Vicêncio, dando
as cauções que forem necessárias a Batista Minola, como se ele fosse mesmo Vicêncio. Retirai-vos com
vossa noiva; quero estar sozinho
(Saem Lucêncio e Bianca. Entra o professor.)
PROFESSOR - Deus vos guarde, senhor.
TRÂNIO - E a vós, senhor. Muito bem-vindo sois. Estais de viagem para mais longe, ou à meta já
chegastes?
PROFESSOR - Aqui me deterei por uma ou duas semanas, nada mais. Depois, em Roma ficarei, para a
Trípoli, em seguida, me dirigir, se Deus me der saúde
TRÂNIO - De que cidade sois?
PROFESSOR - De Mântua.
TRÂNIO - Mântua, meu senhor? Oh! não queira Deus tal coisa! E a Pádua vindes, sem vos importardes
com vossa vida?
PROFESSOR - Minha vida! Como senhor? A coisa me parece séria.
TRÂNIO - Muito séria; é fatal para os mantuanos que a Pádua venham. Não sabeis a causa? Vossos
navios acham-se detidos no porto de Veneza, tendo o doge, por questão singular com o vosso duque,
mandado proclamar o que ora digo. É de admirar. Porém se aqui tivésseis chegado um pouquinho antes,
quase nada, ainda teríeis alcançado o arauto.
PROFESSOR - Oh! para mim é muito pior a coisa do que parece, pois comigo trago ordens de
pagamento de Florença, que devo apresentar.
TRÂNIO - Para servir-vos, meu senhor, farei isso, ao mesmo tempo que vos dou um conselho. Porém
antes informai-me se em Pisa já estivestes.
PROFESSOR - Sim, meu senhor; estive várias vezes; Pisa, famosa por seus homens graves.
TRÂNIO - E entre eles conheceis um tal Vicêncio?
PROFESSOR - Não, mas ouvi falar bastante nele, um mercador de bens incalculáveis.
TRÂNIO - Pois é meu pai, senhor; e, sob palavra, parece-se convosco alguma coisa.
BIONDELLO (à parte) - Tal qual uma ostra e uma maçã madura.
TRÂNIO - Por que a vida vos salve neste aperto, vou ser-vos útil só por amor dele. Assim, considerai
que é muita sorte terdes os traços do senhor Vicêncio. Assumireis o nome e o aspecto dele e em minha
casa muito cordialmente ficareis alojado. E agora, muito cuidado para que ninguém suspeite de vossa
identidade. Compreendeis-me. Em casa ficareis até poderdes liquidar os negócios da cidade. Aceitai de
bom grado esse serviço.
PROFESSOR - Ó meu senhor! Aceito-o, e para sempre passo a considerar-vos o patrono de minha
liberdade e minha vida.
TRÂNIO - Vamos então concretizar a coisa. De passagem vos digo apenas isto: meu pai é aqui esperado
a cada instante para em contrato assegurar o dote que eu devo dar à filha de Batista. A par hei de vos pôr
de quanto importa. Vamos, senhor, vestir-vos como importa.
(Saem)

Cena III
(Um quarto em casa de Petrucchio. Entram Catarina e Grúmio.)
GRÚMIO - Não, não me atrevo. Não; por minha vida.
CATARINA - Quanto mais me maltrata, mais me humilha. Como! Casou comigo, para à fome fazer-me
perecer? Os mendicantes que à casa chegam de meu pai recebem a esmola desejada; e se negada lhes for,
mui facilmente noutras portas encontrarão piedade. Eu, no entretanto, que nunca soube o que pedir se
chama, nem a pedir me vi forçada nunca, de fome estou morrendo, desfaleço de tão vígil estar. Fico
acordada com pragas; alimento-me de gritos. E o que mais me magoa nisso tudo é fazer ele tudo sob a
capa do amor mais atencioso, parecendo que, se eu viesse a dormir ou a alimentar-me cairia logo doente,
ou perecera sem maiores delongas. Por obséquio, vai buscar-me alimento; a qualidade não importa; é
bastante ser saudável.
GRÚMIO - Que dizeis de uma perna de vitela?
CATARINA - Ótimo! Não demores; vai buscá-la.
GRÚMIO - Pode ser irritante. E que diríeis de tripas gordas muito bem assadas?
CATARINA - Oh! Gosto muito. Meu bondoso Grúmio, Arranja-me isso logo.
GRÚMIO - Estou indeciso; temo que seja por demais colérico. Que diríeis de bife com mostarda?
CATARINA - Meu prato predileto.
GRÚMIO - Hum! Mas mostarda é um poucochinho quente.
CATARINA - Então, o bife; põe de lado a mostarda.
GRÚMIO - Isso eu não faço; de Grúmio não tereis mais que mostarda.
CATARINA - Os dois, então; ou um; como quiseres.
GRÚMIO - Nesse caso, a mostarda, sem o bife.
CATARINA - Retira-te daqui, maldoso escravo!
(Bate-lhe.)
Só com o nome dos pratos me alimentas? Sejas maldito, e assim toda essa súcia que com meu sofrimento
se empavona. Sai! Sai logo, já disse.
(Entram Petrucchio, com um prato de comida, e Hortênsio.)
PETRUCCHIO - Como passa minha Quetinha? Como! Tão tristonha, meu coração?
HORTÊNSIO - Como passais, senhora?
CATARINA - Fria a mais não poder.
PETRUCCHIO - Eleva o espírito; olha-me alegremente, queridinha. Bem vês quão cuidadoso eu sou
contigo; eu mesmo preparei tua comida, não permitindo que outrem a trouxesse.
(Coloca o prato sobre a mesa.)
Acho, doce Quetinha, que esta minha delicadeza é digna de elogios. Que é isso! Assim calada? É que
decerto não gostas do que eu trouxe, tendo sido em pura perda todo o meu trabalho.- Retirai esse prato!
CATARINA - Não; deixai-o aí mesmo, por favor.
PETRUCCHIO - Todo serviço deve ser sempre recebido, sempre, com agradecimentos. Neste caso tereis
de agradecer-me, antes de haverdes tocado na comida.
CATARINA - Obrigada, senhor.
HORTÊNSIO - Signior Petrucchio, ora! ora! Sois passível de censura. Minha senhora Catarina, quero
fazer-vos companhia.
PETRUCCHIO (à parte) - Caso me ames, Hortênsio, come tudo. (Alto.) Que esse prato te faça bem ao
coração bondoso. Quetinha, come devagar. E agora, meu doce amor, preciso é que voltemos à casa de teu
pai, para fazermos um barulhão com todas estas sedas, canhões, golilhas, anéis de ouro, capas,
casaquinhos e mantas muito guapas, ventarolas e fitas mui vistosas, pulseiras de âmbar pérolas e rosas.
Oh! já acabaste? Espera-te o alfaiate, que vai vestir-te com capricho e arte.
(Entra o alfaiate.)
Entra, alfaiate; mostra-me o que trazes. Põe aqui o vestido.
(Entra o modista.)
Novidades, senhor? Que nos trouxestes?
MODISTA - Esta touca por Vossa Senhoria encomendada.
PETRUCCHIO - Como! O molde para isso foi alguma sopeira? Ora, ora! Um prato de veludo! Banal e
sujo. É mais um caramujo, uma casca de noz, um brinquedinho, gorrozinho de criança, bugiaria... Quero
um maior, já disse! Levai esse.
CATARINA - Não, não quero maior; está na moda; é assim que as damas elegantes usam.
PETRUCCHIO - Quando fores gentil, terás um desses; antes, não.
HORTÊNSIO (à parte) - Nesse caso, ainda demora.
CATARINA - Penso, senhor, que devo ter licença para falar, conforme vou fazê-lo. Não sou nenhuma
criança; muita gente melhor que vós já ouviu o que eu dizia. Se não vos agradar, tapai o ouvido. Mas
expressão terei de dar com a língua a quanto o coração me traz opresso, para que ao cabo ele a estourar
não venha. Antes que isso aconteça, liberdade completa quero ter para expandir-me.
PETRUCCHIO - Tens razão; é uma touca abominável; parece mais cascão de torta, ou antes, pastel de
seda. Tenho-te amizade muito maior por não gostardes dela.
CATARINA - Tenhais ou não, mais é bonita a touca; só ficarei com essa; mais nenhuma.
(Sai o modista.)
PETRUCCHIO - Referes-te ao vestido? Vamos, vamos, alfaiate: vejamo-lo. Que coisa, santo Deus! Isto
é pura palhaçada Que será isto? Manga? Até parece peça de artilharia. De alto a baixo cortado como torta
de maçã, todo cheio de furos, coitadinho tal como aquecedor de barbearia. Arre! Em nome do diabo,
como chamas a isto, alfaiate?
HORTÊNSIO (à parte) - Pelo que estou vendo, não pegará nem touca nem vestido.
ALFAIATE - Recomendaste-me o mais novo corte, mandando que eu seguisse em tudo a moda.
PETRUCCHIO - É certo, é certo; mas se estais lembrado, não vos mandei pôr a perder o pano, seguindo
em tudo a moda. Tratai logo de voltar para casa, a toda pressa, saltando pelos regos do caminho, porque
freguês, senhor, já não sou vosso. Não ficarei com ele; fazei disto o uso que bem quiserdes. Fora! fora!
CATARINA - Nunca tive um vestido tão bem feito, tão na moda, elegante e bem talhado. Quereis fazer
de mim uma boneca?
PETRUCCHIO - Uma boneca, justamente; é isso que ele pretende.
ALFAIATE - Vossa Senhoria - foi o que ela afirmou - é que pretende transformá-la em boneca.
PETRUCCHIO - Que arrogância monstruosa! Estás mentindo, dedal! Mentes, cordel, jarda, três quartos,
um quarto, meia jarda, unha, mosquito, lêndea, grilo do inverno! Desafiar-me em minha própria casa,
com uma meada de linha! Fora, trapo! Fora, resto! Fora, aviamentos! Do contrário, meço-te com tua
própria jarda, por que tenhas uma lembrança para toda a vida, por seres linguarudo. Pois afirmo-te que
puseste a perder a roupa dela.
ALFAIATE - Não; Vossa Senhoria está enganado; o vestido foi feito sob as vistas do mestre da oficina;
ordens deu Grúmio sobre a maneira como deveríamos confeccioná-lo.
PETRUCCHIO - Não lhe dei essa ordem; dei-lhe apenas o pano. ALFAIATE - Mas acaso não lhe
dissestes nada sobre o modo como queríeis que ele fosse feito?
GRÚMIO - Sim, com agulha e linha.
ALFAIATE - Porventura cortar não poderíamos o pano?
GRÚMIO - Já encrespaste muita gente?
ALFAIATE - Já.
GRÚMIO - Então não te encrespes para o meu lado. Já enfeitaste muita gente; então não me venhas
enfeitar, que eu não gosto de encrespados nem de enfeites. Repito que disse ao teu oficial que cortasse o
vestido, mas não lhe disse que o cortasse em pedacinhos: ergo, estás mentindo.
ALFAIATE - Para confirmar o que eu disse, aqui está a nota da encomenda. PETRUCCHIO - Lê-a.
GRÚMIO - Enfiarei essa nota pela garganta dele, se ele continuar a afirmar que eu disse semelhante
coisa.
ALFAIATE - "Imprimis, um vestido bem folgado."
GRÚMIO - Mestre, se algum dia eu falei em vestido folgado, podeis costurar-me na aba dele e matar-me
de pancada com um novelo de fio escuro. O que eu disse foi: um vestido.
PETRUCCHIO - Prossegui.
ALFAIATE - "Com uma gola pequena e arredondada."
GRÚMIO - A gola eu confesso.
ALFAIATE - "De mangas largas..."
GRÚMIO - Confesso duas mangas.
ALFAIATE - "... cortadas com bastante engenho."
PETRUCCHIO - Nisso é que está a velhacaria.
GRÚMIO - A nota é mentirosa, senhor; a nota é mentirosa. O que eu recomendei foi que as mangas
fossem cortadas e depois recosturadas, o que poderei provar-te, ainda que me venhas de dedal no dedo
minguinho.
ALFAIATE - O que eu disse é a verdade; e isso mesmo te provaria, se te apanhasse num local de jeito.
GRÚMIO - Pois desde este momento ponho-me à tua disposição. Fica com tua nota, entrega-me essa
jarda e não me poupes.
HORTÊNSIO - Ora, Grêmio! Assim, ele ficaria com desvantagem.
PETRUCCHIO - Em resumo, senhor: esse vestido não é para mim.
GRÚMIO - Falastes bem, senhor: é para a patroa.
PETRUCCHIO - Vamos, leva-o logo daqui, para teu mestre usá-lo como bem entender.
GRÚMIO - Toma cuidado, maroto, se tens amor à vida! Levar o vestido de minha ama, para teu mestre
usá-lo como bem entender!
PETRUCCHIO - Qual é o sentido de vossas palavras, senhor?
GRÚMIO - Ora, senhor! O sentido é mais profundo do que poderíeis imaginar. Levar o vestido de minha
ama, para o patrão dele usar! Ora! Ora!
PETRUCCHIO (à parte) - Hortênsio, cuida de pagar a nota.(Ao alfaiate.)
Retira-te; já basta de conversa.
HORTÊNSIO (à parte, ao alfaiate) - Amanhã pagarei, amigo, a conta. Não te molestas com seu modo
brusco. Podes ir; recomenda-me ao teu amo. (Sai o alfaiate.)
PETRUCCHIO - Vem, querida Quetinha; assim faremos uma visita a vosso pai com estas vestes pobres
e honestas. Nossas bolsas serão vaidosas; nossa roupa, pobre. É o espírito que deixa o corpo rico. E assim
como através das mais espessas nuvens o sol penetra, de igual modo nas vestes mais humildes a honra
brilha. Mais nobre é o gaio do que a cotovia, por ter plumagem muito mais bonita? Ou mais do que a
enguia vale a serpe, porque os olhos sua pele nos alegra? Não, querida Quetinha; nada perdes com essa
roupa humilde e desornada. Se a teus olhos é opróbrio, toda a culpa põe sobre mim. Por isso, fica alegre,
pois partiremos já, para festarmos em casa de teu pai, despreocupados.(A Grúmio.) Chama meus homens;
montaremos logo; põe os cavalos na alameda grande. a pé iremos até lá. Vejamos: são sete horas, quero
crer, agora; chegaremos com tempo de jantar.
CATARINA - Senhor, posso afiançar-vos: são duas horas; nem a ceia, é certeza, alcançaremos.
PETRUCCHIO - Serão sete horas antes de montarmos. Vede bem: quanto eu diga, ou faça, ou tenha
idéia de fazer, contrariais sempre. Deixai, amigos; hoje já não saio. Quando vier a sair, dagora em diante,
a hora que eu disser é que está certa.
HORTÊNSIO - Até no sol este galante manda.
(Saem.)

Cena IV
(Pádua. Diante da casa de Batista. Entram Trânio e o professor, vestido como Vicêncio.)
TRÂNIO - Esta é a casa, senhor. Posso bater?
PROFESSOR - E por que não? Se não me trai o engenho, de mim ainda deve estar lembrado meu amigo
Batista. Foi em Gênova, há vinte anos; nós dois nos hospedamos na estalagem do Pégaso.
TRÂNIO - Isso mesmo. Em qualquer circunstância, agora cumpre-vos austeridade revelar paterna.
PROFESSOR - Tranqüilizai-vos. Mas aí vem o pajem. Bom seria instruí-lo nesse ponto.
(Entra Biondello.)
TRÂNIO - Podeis ficai tranqüilo. Olá, Biondello! vede lá como andais daqui por diante, é o que vos
digo. E tende bem presente que este amigo é o legítimo Vicêncio.
BIONDELLO - Ora! não tenhais medo.
TRÂNIO - Mas já deste meu recado a Batista?
BIONDELLO - Sim; contei-lhe que vosso pai se achava ora em Veneza e que com ele em Pádua hoje
contáveis.
TRÂNIO - És um rapaz esperto; recebe isto para a bebida. Mas aí vem Batista. Assumi, meu senhor,
vossa aparência.
(Entram Batista e Lucêncio.)
Signior Batista, mui feliz encontro.
(Ao professor.)
Este é o senhor sobre que já falamos. Revelai-vos agora um pai bondoso, dando-me Bianca para minha
herança.
PROFESSOR - Mais devagar, meu filho. Com vossa permissão, senhor; mas tendo vindo até Pádua por
algumas dívidas, fui informado por Lucêncio duma causa de amor de grande relevância entre ele e vossa
filha. Assim, em parte pelas informações que de vós tenho, em parte pelo amor que ele lhe vota, por ela
retribuído, para que ele não espere demais concordo, em minha solicitude paternal, em que esse
casamento se faça. E se pensardes do mesmo modo que eu, haveis de achar-me disposto - após sobre isso
conversarmos - para firmar as cláusulas de nosso contrato para o dote. Pois convosco não posso
revelar-me desconfiado, signior Batista, tendo em vista as boas referências que sobre vós obtive.
BATISTA - Desculpai-me, senhor, no que vos digo; muito me impressionou vossa franqueza e vossa
concisão. É bem verdade: vosso filho Lucêncio, aqui presente, gosta de minha filha, e Bianca, dele, se
ambos não forem por demais fingidos. Por isso, caso não tivésseis nada mais a dizer senão que como
filho vai ser ele tratado e que adequado dote dareis a Bianca, o casamento já está concluído e arrematado
tudo: com meu consentimento vosso filho desposa minha filha. TRÂNIO - Agradecido, senhor, vos fico.
Em que lugar, agora, assentaremos o noivado e o pacto recíproco assinamos?
BATISTA - Não em minha casa, signior Lucêncio, que as paredes ouvem, como o sabeis, e eu tenho um
grande número de criados, sem contarmos que o velho Grêmio ainda está de espreita, podendo vir, assim,
a interromper-nos.
TRÂNIO - Em meus alojamentos, nesse caso. Meu pai vai ficar lá; e ainda esta noite poderemos concluir
nosso negócio com bastante sigilo e segurança. Mandareis vosso criado chamar Bianca, enquanto este
meu pajem vai correndo buscar-nos o escrivão. O pior que pode dar-se por fim é que com tanta pressa
venhais a ter pitança mui delgada.
BATISTA - Estou de acordo. Câmbio, ide até casa dizer a Bianca que se tenha prestes. Sim, podereis
contar-lhe o que se passa: como o pai de Lucêncio se acha em Pádua e que ela vai casar-se com
Lucêncio.
LUCÊNCIO - Que isso aconteça é o que eu suplico aos deuses, de todo o coração.
TRÂNIO - Não percas tempo com os deuses; corre logo e não demores. Poderei indicar-vos o caminho,
Signior Batista? Sois bem-vindo. Todo vosso jantar consistirá num prato. Entrai, senhor; em Pisa
arranjaremos melhor as coisas.
BATISTA - Ide; já vos sigo.
(Saem Trânio, o professor e Batista.)
BIONDELLO - Câmbio!
LUCÊNCIO - Que disseste, Biondello?
BIONDELLO - Não vistes quando o meu amo piscou para o vosso lado e sorriu?
LUCÊNCIO - E que significará isso, Biondello?
BIONDELLO - Nada, por minha fé; mas ele me deixou atrás, para que explique o sentido ou a moral de
seus gestos e sinais.
LUCENCIO - Então explica-me a moral do caso.
BIONDELLO - Ei-la: Batista está em lugar seguro, conversando com o falso pai de um filho embusteiro.
LUCÊNCIO - E dai?
BIONDELLO - Tereis de levar a filha dele para a ceia.
LUCÉNCIO - E depois?
BIONDELLO - O velho padre da igreja de São Lucas ficará todo esse tempo à vossa disposição.
LUCÊNCIO - E no fim de tudo isso?
BIONDELLO - Não saberei dizê-lo, a não ser que eles se encontram atarefados com um falso contrato.
Assegurai-vos, portanto, dela, cum privilegio ad imprimendum solum. À igreja! Levai o padre, o
sacristão e algumas testemunhas suficientemente honestas. Se esta não for a ocasião que esperáveis com
tanta alegria, dizei adeus à formosa Bianca, sem perda de um dia.
LUCÊNCIO - Escuta, Biondello.
BIONDELLO - Não posso ficar mais tempo. Conheço uma rapariga que se casou numa tarde, ao ir à
horta apanhar salsa para encher um coelho. O mesmo podereis fazer, meu senhor. E com isto, adeus. Meu
amo mandou que eu fosse à igreja de São Lucas, a fim de dizer ao padre que se aprontasse para quando
chegásseis com vosso apêndice.
(Sai.)
LUCÊNCIO - Posso-o, e fá-lo-ei, se ela ficar alegre. Há de ficar; por que duvidar tanto?
Eis o momento de me declarar; mal ficarei, se Câmbio a não pegar.
(Sai.)
Cena V
(Uma estrada pública. Entram Petrucchio, Catarina, Hortênsio e criados.)
PETRUCCHIO - Depressa, pelo céu! Vamos à casa de vosso pai, de novo. Oh Deus bondoso! como
brilha no céu a lua amiga!
CATARINA - Lua? Isto é sol; não há luar ainda.
PETRUCCHIO - Digo que é a lua que tão claro brilha.
CATARINA - É o sol, bem vejo, que tão claro brilha.
PETRUCCHIO - Pois pelo filho de meu pai, eu mesmo, tem de ser lua ou estrela, ou o que eu quiser,
antes de à casa de teu pai nós irmos. Recolhei os cavalos! Contrariado de novo! Contrariado sempre e
sempre!
HORTÊNSIO - Oh! concordai com ele; do contrário, não partiremos nunca.
CATARINA - Por obséquio, já que chegamos até aqui, sigamos até o fim, seja lua, ou sol, ou quanto bem
entenderdes. Caso resolvais dar-lhe o nome de vela, doravante para mim será isso.
PETRUCCHIO - É lua, disse.
CATARINA - Vejo que é lua, mesmo.
PETRUCCHIO - Estás mentindo pois é o sol abençoado.
CATARINA - Deus bendito! pois é o sol abençoado! Mas já deixa de ser o sol, quando negardes isso.
Muda-se a lua como vosso espírito; será o que quiserdes, e isso mesmo ficará sendo para Catarina.
HORTÊNSIO - Petrucchio, segue o teu caminho; ganha foi a batalha.
PETRUCCHIO - Bem; avante! avante! Assim a bola correrá depressa, sem desviar-se da meta. Mas
cautela! Quem é que vem chegando?
(Entra Vicêncio, em trajes de viagem.)
(A Vicêncio,) Gentil dama bom dia. Qual é o vosso itinerário? Doce Quetinha, com franqueza fala-me: já
viste uma senhora assim tão fresca? Como em suas faces o vermelho e o branco dura guerra mantêm!
Jamais os astros o céu tão belamente tachonaram como estes olhos o seu rosto angélico. Adorável
menina, novamente muito bom dia para ti. Abraça-o, doce Quetinha, por ser tão formosa.
HORTÊNSIO - Vai deixar o homem louco, pretendendo transformá-lo em mulher.
CATARINA - Botão formoso, fragrante e virginal, para que ponto te diriges agora? Onde resides?
Felizes pais de tão galante filha! Mas mais feliz o moço a quem os astros propícios te destinam para sua
companheira tão meiga!
PETRUCCHIO - Ora, Quetinha! Não estás louca, penso. É um homem velho, cheio de rugas, murcho,
enfraquecido, como estás vendo.
CATARINA - Velho pai, perdoa o engano de meus olhos. Ofuscados tanto o sol os deixou, que quanto
eu veja só verde me parece. Agora noto que és um pai venerando. Novamente peço que me perdoes esse
engano.
PETRUCCHIO - Perdoa-lhe, bom velho; e, ao mesmo tempo, conta-nos teu caminho. Sendo o mesmo
que o nosso, muito alegres ficaremos com tua companhia.
VICÉNCIO - Belo moço, e vós, alegre dama, que bastante me espantastes com vosso cumprimento tão
esquisito: chamo-me Vicêncio; moro em Pisa, e em caminho estou de Pádua, fazer visita a um filho que
há muito não revejo.
PETRUCCIO - O nome dele?
VICÊNCIO - Lucêncio, meu senhor.
PETRUCCIO - Feliz encontro para nós e teu filho. E agora posso dizer que assim por lei como por tua
veneranda aparência, autorizado me acho para chamar-te pai querido. A irmã de minha esposa, esta
senhora, já desposou teu filho. Não te espantes nem te aborreças, que é de bom conceito, de rico dote e
de família digna. Além do mais, tem tantas qualidades, que digna a deixam de tornar-se esposa do mais
nobre mancebo. Assim, permite que no velho Vicêncio eu dê um abraço, e vamos juntos ver teu belo
filho que tua vinda vai deixar alegre.
VICÊNCIO - Mas tudo isso é verdade, ou simplesmente vos divertis, por terdes gênio alegre, com as
pessoas que encontrais na estrada?
HORTÊNSIO - Não, pai; é certo; posso assegurar-vos.
PETRUCCHIO - Vem, vem conosco, para convencer-te da verdade de tudo o que dissemos. Deixou-te
desconfiado a brincadeira.
(Saem todos, com exceção de Hortênsio.)
HORTÊNSIO - Petrucchio, muito bem; coragem deste-me. Procuremos a viúva; por mais que ela se
mostre rezingueira, quanto baste para domá-la a Hortênsio já ensinaste.
(Sai.)

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