terça-feira, 12 de julho de 2011

Eu Sou o Número Quatro, Capítulos 21 ao 25

CAPÍTULO VINTE E UM

TUDO FICA MAIS LENTO. VEJO UMA SEGUNDA PESSOA NO TOPO DA ESCADA. SAM grita, surpreso, e eu me viro para ele, sentindo que minha audição é invadida por aquele silêncio típico que acompanha uma cena em câmera lenta. O homem atrás dele o empurra. O golpe é tão forte que o tira do chão, e noto que Sam vai cair ao pé da escada, no piso de concreto. Eu o vejo cortando o ar, girando os braços com uma expressão desesperada no rosto. Sem pensar em nada, sou impelido pelo instinto e ergo a mão no último segundo, detendo-o quando sua cabeça está a menos de um centímetro do chão do porão. Eu o assento no piso com toda a delicadeza.
  Merda Henri resmunga.
Sam se senta e rasteja para trás como um caranguejo, até suas costas encontrarem a parede de tijolos de concreto. Seus olhos estão arregalados, olhando para a escada, a boca se movendo sem emitir som algum. O homem que o empurrou do alto da escada continua no lugar, tentando entender, como Sam, o que acabou de acontecer. Deve ser o terceiro.
  Sam, eu tentei... digo.
O homem no alto da escada se vira e tenta correr, mas eu o forço a descer dois degraus. Sam olha para o sujeito desconhecido, dominado por uma força invisível, depois olha para meu braço es­tendido na direção dele. O choque é suficiente para deixá-lo sem fala.
Pego a fita adesiva, suspendo o homem no ar e o levo até o se­gundo andar, mantendo-o suspenso por todo o trajeto. Ele grita obs­cenidades enquanto o prendo a uma cadeira usando a fita, mas não escuto nada, porque minha mente está ocupada demais tentando decidir o que vamos dizer a Sam sobre os acontecimentos.
Cale a boca — resmungo.
Ele grita outra sequência de palavrões. Decido que já ouvi o su­ficiente e cubro sua boca com fita adesiva antes de voltar ao porão. Henri está em pé ao lado de Sam, que permanece sentado no mesmo lugar, com a mesma expressão chocada.
Não entendo — ele balbucia. — O que aconteceu? Henri e eu trocamos um olhar. Eu dou de ombros.
Quero saber o que aconteceu — Sam insiste com voz suplican­te, desesperado para saber a verdade, para ter certeza de que não é louco e de que não imaginou o que acabou de ver.
Henri suspira e balança a cabeça. Depois diz:
De que adianta?
O quê? — pergunto.
Ele me ignora, porque está olhando para Sam. Com os lábios com­primidos, ele estuda rapidamente o homem amarrado à cadeira, para ter certeza de que ainda está inconsciente, e depois se volta para Sam.
Não somos quem você está pensando — diz e faz uma pausa.
Sam fica em silêncio, encarando Henri. Não consigo ler sua expres­são, nem imagino o que Henri pretende dizer, se vai inventar mais uma história elaborada ou se, pelo menos uma vez, vai dizer a verdade. Espero sinceramente que ele escolha a verdade. Ele olha para mim, e movo a cabeça em sentido afirmativo, indicando que estou de acordo.
Chegamos à Terra há dez anos, vindos de um planeta chamado Lorien. Viemos para cá porque nosso planeta foi destruído pelos habitantes de outro, chamado Mogadore. Eles destruíram Lorien por seus recursos, porque haviam transformado o planeta deles em um poço de destruição e morte. Viemos nos esconder aqui até podermos voltar a Lorien, o que faremos um dia. Mas fomos seguidos pelos mogadorianos. Eles estão nos caçando. E acredito que estão aqui para dominar a Terra, e foi por isso que vim aqui hoje, para descobrir um pouco mais.
Sam não diz nada. Se eu houvesse contado essa história, ele não teria acreditado em mim, teria ficado nervoso, mas é Henri quem a está contando, e há certa integridade nele que eu sempre senti, e não tenho dúvida de que Sam também a sente. Ele olha para mim.
Eu tinha razão: você é um alienígena. Não estava brincando quando admitiu — diz.
Sim, você estava certo.
Ele olha novamente para Henri.
E aquelas histórias que me contou no dia de Halloween?
Não, aquelas eram só histórias — Henri revela. — Histórias ri­dículas que me fazem rir quando as encontro na Internet, nada mais. Mas o que acabei de lhe dizer é a mais pura verdade.
Bem... — Sam para e respira fundo, como se procurasse as pa­lavras. — O que acabou de acontecer aqui?
Henri move a cabeça em minha direção.
John está desenvolvendo certos poderes: telecinesia, entre ou­tros. Quando você foi empurrado, ele o salvou.
Sam ainda sorri a meu lado, observando-me. Quando o encaro, ele assente.
Sabia que vocês eram diferentes — ele diz.
Nem preciso dizer que vai ter de guardar segredo sobre tudo isso — Henri diz a Sam. Depois, olha para mim. — Precisamos de informação e precisamos sair daqui. Eles já devem estar por perto.
O cara lá em cima ainda pode estar consciente.
Vamos falar com ele.
Henri pega a arma do chão e a examina. Está carregada. Ele remove todas as balas e as deixa sobre uma prateleira, depois guarda o revól­ver no cós da calça. Ajudo Sam a se levantar, e vamos juntos ao se­gundo andar. O homem que levei até ali por meio da telecinesia ainda se debate. O outro está sentado e quieto. Henri se aproxima dele.
Você foi avisado — diz.
O homem concorda com a cabeça.
Agora vai falar — Henri continua, retirando a fita adesiva da boca do cara. — E se não falar... — Ele pega a arma e a aproxima do peito do desconhecido. — Quem veio visitá-lo?
Havia três deles — ele diz.
Bem, nós também somos três. E daí? Continue falando.
Eles me disseram que, se você aparecesse e eu dissesse alguma coisa, me matariam. Não vou lhe dizer mais nada.
Henri pressiona o cano da arma contra a testa do homem. Por alguma razão, isso me incomoda. Estendo a mão e movo a arma, apontando-a para o chão. Henri olha para mim com curiosidade.
Há outras maneiras — digo.
Henri se conforma e abaixa a arma.
O palco é todo seu — diz.
Eu me mantenho afastado do homem. Ele olha para mim com medo. É pesado, mas, depois de amparar Sam no meio do voo esca­da abaixo, acredito que posso levantá-lo. Estendo os braços, e todo o meu corpo se enrijece como resultado da concentração. No início nada acontece, depois, muito lentamente, ele começa a se erguer do chão. O homem se debate, mas está preso à cadeira e não pode es­capar. Eu me concentro com toda a força que possuo, e minha visão periférica registra o sorriso orgulhoso de Henri e depois o de Sam. Ontem não conseguia levantar uma bola de tênis; agora ergo uma ca­deira com um homem de mais de cem quilos sentada nela. O Legado se desenvolveu rápido.
Quando o elevo à altura dos olhos, viro a cadeira, e ele fica pen­durado de cabeça para baixo.
Pare com isso! — o homem grita.
Comece a falar.
Não! Eles disseram que me matariam!
Solto a cadeira e ele despenca. O homem grita, mas eu o detenho antes de atingir o chão. E o levanto e devolvo à posição normal.
Eram três! — ele grita, falando rapidamente. — Apareceram no mesmo dia em que distribuímos as revistas. Naquela noite.
Como eles eram? — Henri pergunta.
Como fantasmas. Quase tão pálidos quanto albinos. E usa­vam óculos de sol, mas, quando nos recusamos a falar, um deles os tirou. Tinha olhos negros e dentes pontiagudos, só que não pa­reciam ser naturalmente afiados, como os de um animal. Tive a impressão de que haviam sido quebrados e lixados. Todos usavam sobretudos e chapéus, como num filme antigo de espionagem. O que mais quer saber?
Por que eles vieram?
Queriam saber qual havia sido nossa fonte para aquela matéria. Nós dissemos. Um homem telefonou afirmando ter um furo para nós e começou a falar sobre um grupo de aliens que queria destruir nossa civilização. Mas ele telefonou no dia em que estávamos imprimindo a revista, por isso, em vez de publicarmos a história toda, adian­tamos apenas uma chamada pequena e prometemos a continuação para o número seguinte. Ele falava tão rápido que mal conseguíamos entender o que dizia. Planejávamos telefonar para ele na noite se­guinte, mas os mogadorianos chegaram antes.
Como soube que eram mogadorianos?
O que mais poderiam ser? Escrevemos uma matéria sobre os mogadorianos, e um grupo de aliens aparece aqui no mesmo dia, querendo saber de onde tiramos a história. Não foi difícil deduzir.
O homem é pesado, e tenho dificuldades para sustentá-lo. Minha testa está coberta de suor e respiro com grande dificuldade. Eu o viro novamente, desviro, começo abaixá-lo, e, quando está bem perto do chão, solto-o, e a cadeira aterrissa com um baque surdo. Curvo-me com as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.
Que diabos, cara? Estou respondendo às suas perguntas — ele reclama.
Desculpe. Você é muito pesado.
E essa foi a única vez que eles vieram? — pergunta Henri.
O homem balança a cabeça.
Eles voltaram.
Por quê?
Para ter certeza de que não publicamos mais nada. Acho que não confiam em nós, mas o homem que ligou não atendeu mais nos­sos telefonemas, então, não tínhamos mais nada para publicar.
O que aconteceu com ele?
O que acha que aconteceu? — o homem devolve a pergunta. Henri concorda, movendo a cabeça.
Eles sabem onde ele mora, então?
Tinham o número do telefone para o qual deveríamos ligar. Não deve ter sido difícil localizá-lo.
Eles ameaçaram você?
—Ah, sim. Reviraram nosso escritório. Confundiram minha men­te. Desde então não sou mais o mesmo.
O que fizeram com sua mente?
Ele fecha os olhos e respira fundo mais uma vez.
Eles nem pareciam reais. Quero dizer, eram três homens falando conosco com voz rouca, grave, todos usando sobretudos, chapéus e ócu­los de sol, embora fosse noite. Era como se estivessem arrumados para uma festa de Halloween ou algo assim. Pareciam engraçados e desloca­dos, por isso ri deles no início... — A voz do homem parece perder força.
Henri permanece imóvel, Sam e eu também.
Ele continua.
Mas no instante em que ri, soube que havia cometido um erro. Os outros dois mogadorianos se aproximaram de mim retirando os óculos. Tentei desviar o olhar, mas não consegui. Aqueles olhos. Eu tinha que olhar, como se algo me atraísse para dentro deles. Era como ver a mor­te. Minha própria morte, e a morte de todas as pessoas que conheço e amo. A situação deixou de ser engraçada. Não só tive que testemunhar as mortes, mas pude senti-las também. A incerteza. A dor. O completo e total terror. Eu não estava mais naquela sala. E depois veio tudo aqui­lo de que eu tinha medo na infância. Imagens de bichinhos de pelúcia que ganhavam vida, com dentes afiados, unhas que eram como lâmi­nas. Aquelas coisas de que todas as crianças têm medo. Lobisomens. Palhaços demoníacos. Aranhas gigantes. Eu via tudo pelos olhos de uma criança, e as coisas me aterrorizavam. E cada vez que um me mor­dia, eu podia sentir os dentes rasgando minha carne, meu corpo. Sentia o sangue jorrando das feridas. Não conseguia conter os gritos.
Tentou reagir, lutar contra isso?
Eles tinham duas daquelas coisas que lembram doninhas, gordas, de pernas curtas. Não eram maiores do que um cachorro. E espumavam pela boca. Um dos homens as segurava por uma coleira, mas era fácil perceber que estavam famintas, e nós éramos a refeição. Eles disseram que as soltariam, se resistíssemos. Estou dizendo, cara, aquelas criaturas não eram da Terra. Se fossem cães, tudo bem, eu os teria enfrentado. Mas acho que aqueles bichos nos teriam devorado vivos, apesar de nos­so tamanho. E eles forçavam a coleira, grunhiam, tentavam nos alcançar.
Então, você falou?
Sim.
E quando eles voltaram?
Na noite anterior à publicação da última revista, há pouco mais de uma semana.
Henri olha para mim, preocupado. Há uma semana os mogadorianos estiveram em um local perto de onde moramos? Podiam estar ali ainda, em algum lugar, talvez monitorando a revista. Talvez por isso Henri sinta a presença deles ultimamente. Sam está a meu lado, atento a tudo.
Por que eles não mataram vocês, como fizeram com sua fonte?
Como posso saber? Talvez por publicarmos um material de respeito.
E como o homem que telefonou para cá sabia dos mogadorianos?
Ele disse ter capturado e torturado um deles.
Onde?
Não sei. O número de telefone dele tinha o código de área de Columbus. Uns noventa, cento e vinte quilômetros ao norte daqui.
Você falou com ele?
Sim. E não tive certeza de se ele era maluco ou não, mas já havíamos escutado boatos parecidos com isso antes. Ele começou a falar sobre os alienígenas desejarem banir a civilização como a conhecemos, e às vezes falava tão depressa que era difícil entender o que dizia. Uma frase que ele repetia muito era que os tais aliens estavam caçando alguma coisa ou alguém. Depois, ele começou a recitar números.
Meus olhos se arregalaram.
Que números? O que significavam?
Não tenho ideia. Como eu disse, ele falava tão depressa que já era difícil conseguir anotar o que dizia.
Você anotou enquanto ele falava? — Henri perguntou.
É claro que nós anotamos tudo. Somos jornalistas — ele reage, incrédulo. — Acha que inventamos as histórias que escrevemos?
Sim, eu acho — diz Henri.
Ainda tem essas anotações? — eu quero saber.
Ele olha para mim e assente.
Estou dizendo, elas são inúteis. A maior parte é só bobagem, rabiscos sobre um plano para destruir a raça humana.
Preciso vê-las — digo aflito. — Onde estão?
Ele aponta uma mesa perto de uma das paredes.
Sobre a mesa. Nos post-its.
Caminho até a mesa, que está coberta de folhas, e começo a pro­curar entre os papéis. Encontro anotações muito vagas sobre a espe­rança dos mogadorianos de conquistar a Terra. Nada concreto, ne­nhum plano ou detalhe, só algumas palavras comuns.
"Superpopulação."
"Recursos da Terra."
"Guerra biológica?"
"Planeta Mogadore."
Chego à anotação que estou procurando. Leio com cuidado, três ou quatro vezes.

Planeta Lorien? O Lorieno?
1-3 mortos
4?
7 Rastreada na Espanha
9 em fuga na AS

(Do que ele está falando? O que esses números têm a ver com invadir a Terra?)

Por que há um ponto de interrogação depois do número 4? — pergunto.
Porque ele falava muito depressa, e não consegui entender.
Você só pode estar brincando!
Ele balança a cabeça. Eu suspiro. Que sorte a minha, penso. O que foi dito a meu respeito é justamente o que não foi anotado.
O que significa AS? — pergunto.
América do Sul.
Ele disse em que lugar da América do Sul?
Não.
Olho para o papel. Gostaria de ter ouvido essa conversa, de ter feito perguntas. Os mogadorianos realmente sabem onde está a Nú­mero Sete? Eles a seguem? Nesse caso, o feitiço lórico ainda pre­valece. Dobro a folha com as anotações e a guardo no bolso de trás da calça.
Sabe o que significam os números? — ele pergunta.
Balanço a cabeça.
Não tenho idéia.
Não acredito em você.
  Cale a boca — Sam se manifesta, cutucando a barriga dele com o taco de beisebol.
  Tem mais alguma informação que possa me dizer? — pergunto.
Ele pensa por um instante, depois diz:
  Acho que luzes brilhantes os incomodam. Parece que sentem dor quando têm que olhar para elas sem os óculos escuros.
Ouvimos um barulho lá embaixo. Como se alguém tentasse abrir uma porta bem lentamente. Nós nos entreolhamos. Fito o homem na cadeira.
Quem é? — pergunto em voz baixa.
São eles.
O quê?
  Eles disseram que ficariam observando. Sabiam que alguém se aproximava.
Ouvimos passos abafados no primeiro andar. Henri e Sam se olham, apavorados.
Por que não nos avisou?
Eles disseram que nos matariam. E matariam minha família.
Corro até a janela, olho para o quintal. Estamos no segundo an­dar. A queda até o chão é de seis metros. Há uma cerca em torno do quintal. São dois metros e meio de estacas de madeira. Volto cor­rendo para a escada e olho para baixo. Vejo três silhuetas grandes usando sobretudos, chapéus e óculos escuros. Eles carregam longas espadas brilhantes. Não podemos descer pela escada. Meus Legados se fortalecem, mas ainda não são suficientes para enfrentar três mogadorianos. A única saída é pular uma das janelas ou escapar pela varanda no fundo do andar. As janelas são menores, mas pelo quin­tal podemos fugir sem sermos vistos. Se sairmos pela frente, eles provavelmente nos verão. Ouço ruído vindo do porão e os mogadorianos conversando num idioma feio, gutural. Dois deles se dirigem ao porão enquanto um terceiro começa a caminhar para a escada, que o trará até onde estamos.
Tenho um ou dois segundos para agir. As janelas se quebrarão se sairmos por elas. Nossa única chance são as portas que levam à va­randa do segundo andar. Eu as abro usando telecinesia. Está escuro lá fora. Ouço passos subindo a escada. Trago Sam e Henri para perto de mim e os jogo sobre os ombros, como se fossem sacos de batatas.
O que está fazendo? — Henri cochicha.
Não faço a menor ideia — respondo. — Mas espero que funcione.
Quando vejo o topo do chapéu do primeiro mogadoriano, corro para a porta e, a um passo do patamar da varanda, eu salto. Voamos pelo céu escuro. Por dois ou três segundos, estamos flutuando. Vejo os carros passando na rua lá embaixo. Vejo pessoas na calçada. Não sei onde vamos aterrissar, ou se meu corpo vai sustentar todo o peso que estou carregando. Quando tocamos o telhado de uma casa do outro lado da rua, caio com Sam e Henri por cima de mim. Fico sem ar e tenho a sensação de que minhas pernas estão quebradas. Sam começa a se levantar, mas Henri o mantém abaixado. Ele me puxa ató a beirada do telhado e pergunta se posso usar telecinesia para levar Sam e ele ao chão. Eu posso e os transporto. Ele me diz que preciso pular. Levanto-me sobre pernas trêmulas e ainda doloridas e, pouco antes de pular, eu me viro e vejo os três mogadorianos na varanda do outro lado da rua, confusos. Suas espadas brilham. Sem um segundo a perder, nós escapamos sem que eles nos vejam.

Chegamos à caminhonete de Sam. Ele e Henri precisam me ajudar a andar. Bernie está lá, esperando por nós. Decidimos deixar a ca­minhonete de Henri, porque eles provavelmente vão reconhecê-la e rastreá-la. Deixamos Athens, e Henri dirige de volta a Paradise, que talvez faça jus ao nome depois da noite que tivemos.
Henri conta tudo a Sam, desde o início. Ele não para até entramos em casa. Ainda está escuro. Sam olha para mim.
Incrível — ele diz e sorri. — Nunca ouvi nada mais legal. — Olho para ele e vejo a confirmação que ele sempre procurou na vida, uma afir­mativa de que o tempo que ele passou com o nariz nas teorias de conspiração, procurando pistas do desaparecimento do pai, não foi em vão.
Você é mesmo resistente ao fogo? — ele pergunta.
Sim — confirmo.
Deus, isso é incrível.
Obrigado, Sam.
Pode voar?
No início penso que a pergunta é uma piada, mas logo percebo que ele não está brincando.
Não. Sou resistente ao fogo e posso acender luzes nas mãos. Tenho a habilidade da telecinesia, que só aprendi a usar ontem. Mais Legados devem se formar em breve. Quero dizer, é o que pensamos. Mas nem imagino quais serão, até que eles se desenvolvam.
Espero que aprenda a ficar invisível — diz Sam.
Meu avô conseguia. E tudo o que ele tocava também ficava invisível.
É sério?
Sim.
Ele começa a rir.
Ainda não acredito que vocês dois foram até Athens sozinhos, dirigindo — diz Henri. — Vocês são inacreditáveis. Quando paramos para abastecer, notei que o licenciamento está vencido há dois anos. Não sei como conseguiram chegar sem serem parados.
Bem, a partir de agora vocês podem contar comigo — diz Sam. — Farei tudo o que puder para ajudar a detê-los. Principalmente porque posso apostar que foram eles que levaram meu pai.
Obrigado, Sam Henri responde. — A coisa mais importante que você pode fazer é guardar nosso segredo. Se mais alguém souber disso, podemos morrer.
Não se preocupem, nunca direi nada a ninguém. Não quero que John use os poderes dele contra mim.
Nós rimos, agradecemos por tudo que Sam fez por nós, e ele vai embora. Henri e eu entramos. Dormi no caminho de volta, mas ain­da estou exausto. Eu me deito no sofá. Henri se senta em uma cadei­ra à minha frente.
Sam não vai contar nada — eu digo.
Ele não responde, apenas olha para o chão.
Eles não sabem que estamos aqui — continuo.
Ele olha para mim.
Não sabem — insisto. — Se soubessem, estariam nos seguin­do agora.
Ele fica em silêncio. Não consigo suportar.
Não vou deixar Ohio por causa de uma mera especulação.
Henri se levanta.
Estou feliz por ter feito um amigo. E acho Sarah ótima. Mas não podemos ficar. Vou começar a arrumar as malas — ele anuncia.
Não.
Quando tudo estiver pronto, irei à cidade para comprar uma caminhonete nova. Precisamos sair daqui. Talvez eles não nos te­nham seguido, mas sabem que estão muito perto de nos pegar e que ainda podemos estar próximos. Acredito que o homem que telefo­nou para a revista tenha realmente capturado um deles. Foi essa a história: ele capturou e torturou um dos mogadorianos até que falas­se e depois o matou. Não sabemos que tipo de tecnologia de rastreamento eles têm, mas não creio que vão levar muito tempo para nos encontrar. E, quando isso acontecer, nós morreremos. Seus Legados estão emergindo, e sua força está crescendo, mas você não chegou nem perto de estar preparado para lutar contra eles.
Ele sai da sala. Eu me sento. Não quero ir embora. Pela primeira vez na vida tenho um amigo de verdade. Um amigo que sabe o que eu sou e não tem medo, e que não pensa que sou maluco. Um amigo que está disposto a lutar por mim, correr perigo por mim. E tenho uma namorada. Alguém que deseja estar comigo, mesmo sem saber quem eu sou. Alguém que me faz feliz, alguém por quem eu luta­ria ou que eu protegeria mesmo se tivesse de me expor ao perigo. Meus Legados ainda não emergiram completamente. Derrubei três homens adultos. Eles não tiveram a menor chance. Foi como lutar contra crianças pequenas. Eu poderia ter feito o que quisesse com eles. Também sabemos agora que os humanos são capazes de enfren­tar, capturar, ferir e matar mogadorianos. Se eles podem, eu também posso, definitivamente. Não quero partir. Tenho um amigo, uma na­morada. Não vou embora.
Henri volta à sala. Ele tem nas mãos a Arca Lórica, que é nosso bem mais precioso.
Henri... — eu começo.
Sim?
Não vamos embora.
Sim, nós vamos.
Você pode ir, se quiser. Eu fico e vou morar com Sam. Não sairei daqui.
Não pode decidir.
Não? Sempre pensei que eu fosse o procurado. Que eu esti­vesse em perigo. Você pode ir agora, e os mogadorianos nunca vão buscá-lo. Pode levar uma vida longa, boa e normal. Pode fazer o que quiser. Eu não posso. Eles sempre estarão atrás de mim. Sempre estarão tentando me encontrar e me matar. Tenho quinze anos. Não sou mais uma criança. A decisão é minha, sim.
Ele me encara por um minuto.
Ótimo discurso, mas não muda nada. Pegue suas coisas. Esta­mos indo embora.
Levanto minha mão, aponto para ele e o ergo do chão. Henri fica tão chocado que nada diz. Eu me levanto e o movo para um canto da sala, perto do teto.
Vamos ficar — insisto.
Ponha-me no chão, John.
Vou pôr, quando você concordar comigo.
É perigoso demais.
Não sabemos. Eles não estão em Paradise. Talvez nem imagi­nem que nós estamos aqui.
Ponha-me no chão.
Não até você concordar em ficar.
ponha-me no chão.
Não respondo. Apenas o mantenho suspenso. Ele se debate, tenta empurrar a parede e o teto, mas não pode se mover. Meu poder o mantém onde eu quero. E eu me sinto forte assim. Mais forte do que jamais me senti em toda a minha vida. Não vou partir. Amo a vida que tenho em Paradise. Amo ter um amigo de verdade e amo minha namorada. Estou preparado para lutar por aquilo que amo, seja con­tra os mogadorianos, seja contra Henri.
Você sabe que não vai descer até eu colocá-lo no chão.
Você está agindo como uma criança.
Não. Estou agindo como alguém que começa a compreender quem é e o que pode fazer.
E vai mesmo me manter aqui em cima?
Até eu dormir ou me cansar, mas depois, quando estiver des­cansado, eu o colocarei de volta aí no alto.
Tudo bem, podemos ficar. Sob certas condições.
Quais?
Ponha-me no chão e vamos conversar.
Eu o deixo descer, coloco-o no chão. Ele me abraça. Estou surpre­so, esperava que ele ficasse zangado. Ele me solta e nós nos senta­mos no sofá.
Estou orgulhoso de seu progresso. Passei muitos anos queren­do e preparando o terreno para tudo o que está acontecendo, para a chegada de seus Legados. Você sabe que toda a minha vida se resume em mantê-lo seguro, em torná-lo forte. Jamais me perdoaria se algo acontecesse a você. Se morresse sob minha vigilância, não sei como eu poderia continuar vivendo. Com o tempo os mogadorianos vão nos encontrar. Quero estar preparado para quando isso acontecer e acho que você ainda não está, embora você se sinta pronto. Ainda tem um longo caminho a percorrer. Podemos ficar aqui, por enquan­to, se aceitar que o treinamento vem em primeiro lugar. Antes de Sarah, antes de Sam, antes de tudo. E, ao primeiro sinal de que eles se aproximam, de que encontraram nosso rastro, nós partimos, sem discussão, sem relutância, sem me fazer levitar.
- Combinado. — Aceito, sorrindo.


CAPÍTULO VINTE E DOIS

O INVERNO CHEGA CEDO E COM GRANDE RIGOR EM PARADISE, OHIO.  PRIMEIRO o vento, depois o frio, em seguida a neve. No início uma poeira fina e gelada, depois uma nevasca que cobre tudo, e o som das máquinas que removem a neve se torna tão constante quanto o do vento, deixando em tudo uma camada de sal. As aulas são suspensas por dois dias. A neve perto das estradas passa do branco ao marrom e acaba se derretendo em poças pegajosas que nunca secam. Henri e eu nos dedicamos ao treina­mento dentro e fora de casa. Agora já consigo equilibrar no ar três bolas sem tocá-las, o que também significa que sou capaz de erguer mais de um objeto por vez. E os objetos são cada vez maiores, mais pesados. A mesa da cozinha, a máquina de remover neve que Henri comprou há uma semana ou nossa nova caminhonete, que é parecida com a velha e com milhões de outras nos Estados Unidos. Se posso levantar esses objetos fisicamente, usando meu corpo, também posso erguê-los usan­do apenas a mente. Henri acredita que a força de minha mente um dia vai transcender minha força física.
As árvores no quintal são como sentinelas à nossa volta, os galhos congelados lembram peças de vidro oco, com alguns centímetros de fino pó branco sobre cada um deles. A neve acumulada alcança a al­tura do joelho, exceto pelo caminho estreito que Henri abriu. Bernie Kosar está sentado na varanda dos fundos, assistindo a tudo. Nem ele quer sair e enfrentar o cenário gelado.
Tem certeza disso? — pergunto.
Você precisa aprender a lidar com isso — Henri insiste. Atrás dele, observando tudo com curiosidade mórbida, está Sam.
É a primeira vez que ele assiste a nosso treino.
Por quanto tempo isso vai queimar? — pergunto.
Não sei.
Estou vestindo um macacão altamente combustível feito de fibras naturais encharcadas em óleos, alguns de combustão lenta, outros nem tanto. Quero botar fogo logo em tudo só para me livrar do cheiro que me faz lacrimejar. Respiro profundamente.
Pronto? — ele pergunta.
Como nunca.
Não respire. Você não é imune à fumaça ou aos vapores, e seus órgãos internos podem se queimar.
Isso me parece uma tolice — argumento.
Faz parte de seu treinamento. Resistência sob pressão. Precisa aprender a realizar múltiplas tarefas enquanto é consumido pelo fogo.
Mas por quê?
Porque, quando chegar a hora da batalha, estaremos em minoria. O fogo vai ser um de seus grandes aliados na guerra. Precisa aprender a lutar enquanto se queima.
Ai...
Se perceber algum problema, jogue-se na neve e role.
Olho para Sam, que está sorrindo. Ele segura um grande extintor de incêndio, caso eu precise de ajuda.
Eu sei — respondo.
Todos ficam em silêncio enquanto Henri lida com os fósforos.
Você parece o Pé Grande com esse macacão — Sam comenta.
Cale a boca, Sam — respondo.
Lá vamos nós — Henri anuncia.
Inspiro fundo antes de a chama do fósforo tocar o macacão. O fogo envolve meu corpo. Não é natural, para mim, manter os olhos abertos, mas evito fechá-los. Olho para cima. As labaredas ultrapassam minha altura em mais de dois metros. O mundo todo se cobre de tons de laranja, vermelho e amarelo. Posso sentir o calor, mas só moderadamente, como os raios de sol em um dia de verão. Nada além disso.
Agora! — grita Henri.
Abro os braços, mantenho os olhos bem abertos, prendo a respiração. Sinto-me flutuando. Penetro na neve profunda e ela começa a derreter, e meus passos provocam a formação de uma nuvem de vapor. Estendo a mão direita e levanto um tijolo de concreto, mas tenho a sensação de que ele é mais pesado do que o normal. Porque não estou respirando? Pelo estresse de estar em chamas?
Não perca tempo! — Henri grita.
Arremesso o tijolo com toda a força que possuo contra uma árvore morta quinze metros adiante. A força do impacto o destroça em milhões de pequenos pedaços e abre um buraco na madeira. Depois ergo três bolas de tênis ensopadas de gasolina. Eu as equilibro no ar, uma sobre a outra, como um malabarista. E as trago para perto do meu corpo. Elas se incendeiam, e ainda as equilibro — e enquanto isso, ergo um cabo de vassoura fino e comprido. Fecho os olhos. Meu corpo está quente. Talvez eu esteja suando. Se estiver, o suor deve evaporar no segundo em que brota na superfície da pele.
Ranjo os dentes, abro os olhos, impulsiono o corpo e direciono todo o meu poder para o núcleo do cabo de vassoura. Ele explode em pequenos fragmentos. Não os deixo cair no chão: mantenho-os suspensos, como se formassem uma nuvem de poeira pairando no ar. Eu os trago para mim e os deixo queimar. A madeira estala em meio ao zumbido das chamas. Reúno os fragmentos, formando uma massa compacta de fogo que parece ter brotado da profundeza do inferno.
Perfeito! — grita Henri.
Um minuto se passou. Meus pulmões começam a arder por causa do fogo, porque ainda não estou respirando. Concentro toda a minha força na massa incandescente e a arremesso com tanta violência, que ela corta o ar como uma bala e se choca contra a árvore, espalhando centenas de pequeninos pontos de fogo em todas as direções e se extinguindo quase imediatamente. Imaginei que a madeira morta fosse pegar fogo, mas não é o que acontece. E derrubei as bolas de tênis. Elas caem na neve perto de mim, e ouço um chiado.
Esqueça as bolas — Henri me orienta. — A árvore. Concentre-se na árvore.
A madeira morta parece fantasmagórica, com seus galhos retorcidos recortados contra o mundo branco além dela. Fecho os olhos. Não consigo mais ficar sem respirar. Frustração e raiva começam a surgir, alimentadas pelo fogo, pelo desconforto do macacão e pelas tarefas que não consegui cumprir. Escolho um dos galhos maiores e tento quebrado, mas ele continua preso ao tronco. Aperto os dentes e franzo a testa, e finalmente um estalo corta o ar como um tiro, e o galho vem voando em minha direção. Eu o pego com as mãos e o seguro à minha frente. Deixe-o queimar, penso. Deve ter uns seis metros de comprimento. Finalmente, ele se incendeia, e eu o levanto acima da cabeça e, sem tocá-lo, o cravo no chão, como se estabelecesse meu domínio, do mesmo modo que um espadachim do velho mundo se apoderando do topo da colina depois de vencer a guerra. O galho se retorce, fumegante, as chamas dançando sobre sua metade superior. Abro a boca e respiro num ato instintivo, e as chamas invadem meu corpo; um ardor instantâneo se espalha. Fico absolutamente chocado, e aquilo dói tanto que não sei o que fazer.
A neve! A neve! — grita Henri.
Mergulho de cabeça e começo a rolar. O fogo se extingue quase imediatamente, mas continuo rolando, ouvindo o chiado sempre que a neve toca o macacão em frangalhos. Fumaça e vapor se desprendem de mim. Finalmente Sam remove o clipe de segurança do extintor e descarrega em mim o pó branco que torna ainda mais difícil o simples ato de respirar.
Não — eu grito.
Ele para. Fico ali deitado, tentando recuperar o fôlego, mas cada inspiração provoca uma dor nos pulmões que reverbera por todo o meu corpo.
Não devia respirar, John — Henri comenta quando se debruça sobre mim.
Não consegui evitar.
Tudo bem? — Sam pergunta.
Meus pulmões ardem.
Tudo é nebuloso, mas aos poucos o mundo volta ao normal. Permaneço deitado, olhando para o céu cinzento e baixo, e flocos de neve começam a cair sobre nós.
E então, como me saí?
Nada mal para a primeira tentativa.
Vamos fazer isso de novo, não vamos?
Com o tempo, sim.
Foi muito legal — Sam opina.
Eu suspiro, depois respiro profundamente e bem devagar, testando meus pulmões.
Foi horrível.
Você foi muito bem para a primeira vez — Henri repete. — Não pode esperar que tudo seja fácil.
Concordo movendo a cabeça. Continuo ali, deitado, por um ou dois minutos, até Henri estender a mão e me ajudar a levantar, encerrando mais um dia de treinamento.
Acordo no meio da noite dois dias mais tarde. O relógio marca 2:57. Ouço Henri trabalhando na cozinha. Saio da cama e vou até lá. Ele está debruçado sobre um documento, usando os bifocais e segurando uma espécie de selo com uma pinça. Ele ergue os olhos ao perceber minha presença.
O que está fazendo? — pergunto.
Criando documentos para você.
Para quê?
Não consigo parar de pensar em você e Sam dirigindo pela estrada para me buscar. Acho que é tolice seguirmos usando sua verdadeira idade, se podemos simplesmente alterá-la de acordo com nossas necessidades.
Pego uma certidão de nascimento que ele acabou de fazer. O nome escrito no documento é James Hughes. A data de nascimento me faz um ano mais velho. De acordo com essa certidão, tenho dezesseis anos e posso dirigir. Eu me aproximo para estudar a certidão que ele ainda está criando. O nome agora é Jobie Frey, dezoito anos. A maioridade legal.
Por que não pensamos nisso antes? — questiono.
Porque nunca tivemos motivo.
Papéis de diferentes formatos, tamanhos e texturas estão espalhados pela mesa, ao lado de uma grande impressora. Frascos de tinta, carimbos de madeira, selos de cartório, coisas que lembram placas de metal, várias ferramentas que parecem ter saído do consultório de um dentista. O processo da criação de documentos sempre me pareceu estranho.
Vamos mudar minha idade agora?
Henri balança a cabeça.
É tarde demais para trocar sua idade em Paradise. Os documentos são para o futuro. Quem sabe o que pode acontecer, o que tornará necessário usá-los?
A idéia de me mudar no futuro me causa náuseas. Prefiro continuar com quinze anos e nunca poder dirigir a me mudar para um lugar novo.

Sarah volta do Colorado uma semana antes do Natal. Passei oito dias sem vê-la. Tenho a sensação de que foi um mês. A van deixa todas as garotas na escola, e uma delas a deixa de carro em minha casa, em vez de levá-la para a casa dela. Quando ouço o som dos pneus na entrada de cascalho, vou recebê-la com um abraço e um beijo, tirando-a do chão e a girando no ar. Ela acabou de passar dez horas viajando de avião e de carro, veste moletom, não usa maquiagem e tem os cabelos presos num rabo de cavalo, mas é a garota mais linda que eu já vi, e não quero soltá-la. Nós nos olhamos sob a luz da lua e tudo o que conseguimos fazer é sorrir.
Sentiu minha falta? — ela pergunta.
Cada segundo de cada dia.
Ela beija a ponta de meu nariz.
Também senti sua falta.
Então, os animais têm um novo abrigo?
Ah, John, foi maravilhoso! Gostaria que pudesse ter estado lá comigo. Contamos com a ajuda de umas trinta pessoas, o tempo todo. O prédio subiu tão depressa! E ficou muito melhor do que era. Construímos uma árvore para os gatos em um canto, e, durante todo o tempo que passamos lá, havia gatos brincando nela.
Eu sorrio.
Deve ter sido incrível. Queria ter estado lá também. Pego sua mochila e entramos juntos em casa.
Onde está Henri? — ela pergunta.
No supermercado. Ele saiu há uns dez minutos.
Ela atravessa a sala e deixa o casaco nas costas de uma cadeira a caminho de meu quarto. Sarah se senta na beirada de minha cama e tira os sapatos.
O que vamos fazer? — ela me pergunta.
Fico ali parado, olhando para ela. O moletom vermelho tem capuz e zíper na frente, mas está fechado apenas até a metade. Ela sorri e me olha de baixo.
Venha aqui — Sarah diz, estendendo as mãos para mim.
Eu me aproximo e ela segura minhas mãos. Quando me encara, estreita os olhos para protegê-los do brilho da lâmpada no teto. Estalo os dedos da mão livre, e a luz se apaga.
Como fez isso?
Mágica — respondo.
Eu me sento ao lado dela. Sarah ajeita os cabelos atrás da orelha, depois se inclina e me beija no rosto. Em seguida, ela segura meu queixo, aproxima meu rosto do dela e me beija novamente, dessa vez mais devagar, delicadamente. Todo o meu corpo desperta, respondendo ao beijo. Ela se afasta, mas mantém a mão em meu rosto, traçando o dedo de minha sobrancelha com o polegar.
Senti saudades de você, de verdade — ela diz.
Eu também.
Ficamos em silêncio. Sarah morde o lábio.
Mal podia esperar para chegar aqui — ela fala. — Todo o tempo que passei no Colorado, não consegui tirar você da cabeça. Mesmo quando estava brincando com os animais, queria que você estivesse lá comigo. E hoje de manhã, quando finalmente viemos embora, a viagem foi um inferno, mesmo sabendo que cada quilômetro percorrido era um quilômetro a menos separada de você.
Ela sorri, principalmente com os olhos, os lábios formando uma meia-lua fina que esconde os dentes. Sarah me beija outra vez, um beijo que começa lento e suave e progride. Estamos sentados na beirada da cama, as mãos dela tocam meu rosto, as minhas encontram a curva de suas costas. Posso sentir os contornos firmes sob meus dedos, sentir o sabor de frutas do brilho labial. Eu a puxo para mim.
É como se o contato não fosse suficiente, embora nosso corpo esteja pressionado e colado. Minha mão desliza por suas costas, sentindo a textura de porcelana da pele macia. Afago seus cabelos, e nós dois respiramos com dificuldade. Caímos deitados de lado na cama. Estamos de olhos fechados. Eu abro os meus repetidamente para vê-la. O quarto está escuro, exceto pelo luar que penetra as janelas. Ela me surpreende olhando seu rosto, e nós paramos de nos beijar. Sarah encosta a testa na minha e olha para mim.
Ela segura minha nuca e me puxa, e imediatamente voltamos a nos beijar. Abraçados. Enroscados. Colados. Minha mente está livre dos tormentos que costumam visitá-la e de todos os pensamentos sobre outros planetas, livre da caçada dos mogadorianos. Sarah e eu na cama nos beijando, um sobre o outro. Nada mais tem importância. Nada.
Então, a porta da sala se abre. Nós dois pulamos.
Henri chegou — eu digo.
Nós nos levantamos e nos ajeitamos apressadamente as roupas amarrotadas, sorrindo, compartilhando um segredo que nos faz rir quando saímos do quarto de mãos dadas. Henri está colocando a sacola de compras na bancada da cozinha.
Oi, Henri — Sarah o cumprimenta.
Ele sorri para ela. Sarah solta minha mão e vai abraçá-lo, e os dois começam a conversar sobre a viagem dela ao Colorado. Vou lá fora buscar o restante das compras. Respiro o ar frio, tento tirar do corpo a tensão pelo que acabou de acontecer, superar a decepção provocada pela chegada de Henri. Ainda estou ofegante quando volto à cozinha carregando as compras. Sarah está contando a Henri sobre os gatos no abrigo.
Não trouxe nenhum para nós?
Se tivesse falado antes, Henri, eu teria trazido com o maior prazer — ela responde, cruzando os braços sobre o peito e se apoiando com o quadril na bancada.
Henri sorri para ela.
Eu sei que teria.
Ele fica guardando as compras, e Sarah e eu saímos para caminhar um pouco ao ar frio enquanto esperamos pela mãe dela. Bernie Kosar passeia conosco. Ele corre na nossa frente. Sarah e eu atravessamos o quintal de mãos dadas, apesar de a temperatura ser quase zero. A neve está derretendo, o solo molhado é escorregadio. Bernie Kosar desaparece por um tempo no meio das árvores e volta correndo. Sua metade inferior está imunda.
Que horas sua mãe vem? — pergunto.
Ela olha para o relógio.
Em vinte minutos.
Assinto.
Estou muito feliz por ter voltado.
Eu também.
Vamos até a entrada da floresta, mas a escuridão nos impede de seguir adiante. Então, caminhamos pelo perímetro do quintal de casa, de mãos dadas, parando de vez em quando para trocar um beijo sob a lua e as estrelas. Nenhum de nós fala sobre o que acabou de acontecer, mas é óbvio que nós dois pensamos a respeito. A mãe de Sarah chega dez minutos antes do combinado. Sarah corre para abraçá-la. Eu entro para buscar a mochila dela na sala. Nós nos despedimos, e eu fico observando a luz dos faróis do automóvel desaparecer na estrada. Fico ali fora por mais alguns minutos e depois entro na companhia de Bernie Kosar. Henri está preparando o jantar. Vou dar banho no cachorro, e, quando volto, a comida está pronta.
Nós nos sentamos à mesa e comemos sem conversar. Não consigo parar de pensar nela. Olho para meu prato sem realmente vê-lo. Não sinto fome, mas tento comer. Consigo engolir alguma porção, mas logo empurro o prato e fico ali sentado em silêncio.
Vai me contar? — Henri pergunta.
Contar o quê?
Em que está pensando.
Não sei.
Ele assente e volta a comer. Eu fecho os olhos. Ainda posso sentir o cheiro de Sarah na gola da camisa, a pressão da mão dela em meu rosto. Seus lábios nos meus, a textura dos cabelos quando os afaguei. E não consigo parar de pensar nela, no que está fazendo e em como gostaria de que ainda estivesse aqui.
Acha que é possível sermos amados? — pergunto.
Do que está falando?
Humanos. Acha que eles podem sentir amor por nós? Quero dizer, amor de verdade.
Acho que eles podem nos amar como amam uns aos outros, especialmente se não sabem o que somos, mas não creio que seja possível amar uma humana como você amaria uma loriena.
Por quê?
Porque somos diferentes deles. E amamos de maneira diferente. Um dos dons dos seres de nosso planeta é amar completamente. Sem ciúme, insegurança ou medo. Sem mesquinhez. Sem raiva. Você pode ter sentimentos intensos por Sarah, mas não são os mesmos sentimentos que você teria por uma garota loriena.
Não há muitas delas disponíveis no momento.
Mais uma razão para ter cuidado com Sarah. Em algum momento, se continuarmos vivos por tempo suficiente, vamos ter que restaurar nossa raça e repovoar nosso planeta. E óbvio que você ainda está muito longe de precisar se preocupar com isso, mas eu não contaria com Sarah como sua parceira.
O que acontece se tentarmos ter filhos com humanos?
Aconteceu muitas vezes antes. Normalmente, o resultado é um humano excepcionalmente talentoso e com muitas habilidades. Algumas das grandes figuras da história da Terra eram filhos de humanos e lorienos, como Buda, Aristóteles, Júlio César, Alexandre, o Grande, Gêngis Khan, Leonardo da Vinci, Isaac Newton, Thomas Jefferson e Albert Einstein. Muitos dos antigos deuses gregos, que muitas pessoas acreditam serem apenas seres mitológicos, eram, na verdade, filhos de humanos e lorienos, especialmente porque naquela época era muito mais comum a presença de nosso povo neste planeta, e nós ajudávamos no desenvolvimento da civilização humana. Afrodite, Apolo, Hermes e Zeus eram reais, e filhos de lorienos e humanos.
Então é possível.
Era. Em nossa atual situação, é incauto e impraticável. Na verdade, embora não saiba seu número nem sua localização, uma das crianças que veio conosco para a Terra é filha dos melhores amigos de seus pais. Eles costumavam brincar, diziam que vocês dois estavam destinados a ficarem juntos. Talvez seja verdade.
Então, o que eu faço?
Aproveite seu tempo com Sarah, mas não se apegue demais a ela e não permita que ela se apegue demais a você.
Está falando sério?
Confie em mim, John. Se não acredita em mais nada do que eu digo, acredite nisso, pelo menos.
Acredito em tudo o que você diz, mesmo não querendo acreditar.
Henri pisca para mim.
Ótimo — ele diz.
Mais tarde eu ligo para Sarah de meu quarto. Penso no que Henri me disse, mas não consigo me conter. Gosto dela. Acho que estou apaixonado por ela. Conversamos por duas horas. É meia-noite quando desligamos. Eu me deito na cama e fico sorrindo na escuridão.


CAPÍTULO
VINTE E TRÊS

O DIA FICOU ESCURO. A NOITE QUENTE TRAZ UM VENTO SUAVE E O CÉU ESTÁ salpicado por luzes que piscam sem parar, nuvens que se tornam azuis, vermelhas e verdes. Fogos de artifício. Fogos que se transformam em algo mais, algo mais estrondoso, mais ameaçador, os ohs e ahs se transformando em gritos e choro. Eu, no meio de tudo aquilo, observo sem poder fazer algo para ajudar. Soldados e bestas entram em cena e se espalham em todas as direções, como já vi antes, bombas caem e explodem continuamente com um estrondo que fere os ouvidos, e eu sinto as reverberações no estômago. O barulho é tão ensurdecedor, que meus dentes rangem. Os lorienos reagem com tanta intensidade, tanta coragem, que me orgulho de estar entre eles, de ser um deles.
Então desapareço, sou transportado pelo ar numa velocidade que faz o mundo lá embaixo passar por mim como um raio, impedindo-me de focar qualquer coisa. Quando paro, estou em pé na pista de um aeroporto. Há uma aeronave prateada adiante, e cerca de qua¬renta pessoas se preparam para embarcar nela. Duas já entraram e estão na porta com os olhos voltados para o céu, uma menina muito nova e uma mulher da idade de Henri. Então eu me vejo, aos quatro anos, chorando, com os ombros caídos. A meu lado noto uma versão muito mais jovem de Henri. Ele também está olhando para o céu. Ajoelhada à minha frente está minha avó, segurando-me pelos ombros. Meu avô está em pé atrás dela, o rosto endurecido, distraído, as lentes de seus óculos refletindo a luz do céu.
Volte para nós, está ouvindo? Volte para nós — diz minha avó. Queria ter ouvido as palavras que ela falou antes dessas. Até agora, não tinha lembrado de nada do que haviam me dito naquela noite. Mas agora recordo parte. Meu eu de quatro anos de idade não responde. Está assustado demais. Ele não entende o que está acontecendo, por que tanta urgência e tanto medo nos olhos de todos que o cercam. Minha avó me abraça rapidamente e depois me solta, levanta-se, e se vira para não me deixar ver que está chorando. Meu eu de quatro anos sabe que ela chora, mas não sabe por quê.
Depois é a vez de meu avô, que está coberto de suor, cinzas e sangue. Ele esteve lutando, e seu rosto tenso dá a impressão de que continua compenetrado, pronto para lutar mais, pronto para fazer tudo o que puder no esforço pela sobrevivência. Dele e do planeta. Ele se ajoelha à minha frente como minha avó fez. Pela primeira vez eu olho em volta. Pedaços de metal retorcido, blocos de concreto, grandes buracos no chão, onde as bombas caíram. Fogo em vários pontos, vidro quebrado, sujeira, árvores derrubadas. E, no meio de tudo isso, uma pista de pouso, inteira, aquela de onde vamos partir.
Devemos ir! — alguém grita. Um homem de olhos e cabelos escuros. Não sei quem ele é. Henri o encara e move a cabeça em sentido afirmativo. As crianças sobem a rampa. Meu avô olha para mim com ar muito sério. Ele abre a boca para falar. Mas, antes que as palavras saiam de sua boca, sou novamente levado para longe, arremessado no ar, e mais uma vez o mundo lá embaixo passa por mim como um filme acelerado. Tento decifrá-lo, mas estou viajando depressa demais. As únicas imagens discerníveis são as das bombas caindo continuamente, grandes explosões de fogo e cores inundando o céu noturno.
Paro novamente.
Estou dentro de um edifício muito grande e aberto, um lugar que nunca vi. Silêncio. O teto é arredondado. O piso é uma grande placa de concreto do tamanho de um campo de futebol. Não há janelas, mas os sons das bombas ainda penetram no local, ecoando nas paredes que me cercam. Parado no meio deste espaço, altivo e orgulhoso, vejo um foguete branco cuja altura se iguala à do ponto mais alto do teto.
Uma porta se abre com estrondo no canto mais afastado. Eu me viro na direção do som. Dois homens entram, apressados, nervosos, falando alto e rápido. Imediatamente, um rebanho de animais os segue. Quinze, mais ou menos, mudando de forma continuamente. Alguns voam, outros correm sobre duas patas, depois sobre quatro. Atrás do rebanho, um terceiro homem aparece e fecha a porta. O primeiro cara chega à espaçonave, abre um pequeno alçapão no fundo do foguete e começa a tocar os animais para dentro.
— Vão! Vão! Para dentro e para cima — ele grita.
Os animais obedecem, todos eles mudando de forma para entrar no foguete. Depois que o último passa pelo alçapão, um dos homens os segue. Os outros dois começam a jogar caixas e sacolas para ele. São necessários cerca de dez minutos para embarcar toda a bagagem. Todos estão suados, movendo-se freneticamente até que tudo fique pronto. Pouco antes de os três embarcarem ali, alguém aparece correndo com um embrulho que parece ser um bebê, embora eu não possa enxergar de onde estou. Eles pegam o pacote, seja o que for, e o levam para dentro. Em seguida as portas se fecham atrás deles e são lacradas. Minutos passam sem que nada aconteça. As bombas agora devem explodir bem ao lado das paredes. E, de repente, do nada, uma explosão acontece dentro do prédio, e eu vejo o fogo sob a aeronave, chamas que crescem rapidamente e consomem tudo no edifício. Um fogo que consome inclusive a mim.
Meus olhos se abrem. Estou em casa, em Ohio, deitado na cama. O quarto está escuro, mas sinto que não estou sozinho. Uma figura se move, uma sombra passa por cima da cama. Fico tenso, preparo-me para acender minhas luzes e arremessar o intruso contra a parede.
Estava falando — diz Henri. — Você falou enquanto dormia.
Acendo minhas luzes. Ele está em pé ao lado da cama, vestindo calça de pijama e camiseta branca. Seu cabelo está desalinhado, os olhos estão vermelhos de sono.
O que eu disse?
Alguma coisa como "para dentro e para cima". O que aconteceu?
Estive em Lorien.
Sonhou que esteve lá?
Acho que não. Estive lá, como antes.
E o que você viu?
Eu me sento e apóio as costas na parede.
Os animais — conto.
Que animais?
No foguete que vi decolar. O velho, aquele do museu. O foguete que partiu logo depois de nós. Vi animais sendo levados para dentro dele. Não muitos. Quinze, talvez. Com três outros lorienos. Não creio que fossem Gardes. E mais alguma coisa, um... pacote. Parecia um bebê, mas não posso afirmar.
Por que acha que não eram Gardes?
Eles carregaram o foguete com suprimentos, cerca de cinquenta caixas e sacolas. Não usaram telecinesia.
Tudo isso no foguete dentro do museu?
Acho que era o museu. Estive no interior de um edifício amplo e aberto, com teto arredondado, sem nada lá dentro além do foguete. Presumi que fosse o museu.
Henri move a cabeça em sentido afirmativo.
Se trabalhavam no museu, deviam ser Cêpans.
Eles transportavam animais — repito. — Animais que podiam mudar de forma.
Chimsera. Animais em Lorien que podiam mudar de forma. O nome deles era Chimaera.
Hadley era isso? — pergunto, lembrando a visão que tive há semanas, quando me vi brincando no quintal da casa de meus avós e fui levantado no ar por um homem vestindo macacão azul e prata.
Henri sorri.
Você se lembra de Hadley?
Respondo com um movimento afirmativo de cabeça.
Eu o vi do exato modo que vejo todas as outras coisas.
Tem tido as visões mesmo quando não está treinando?
As vezes.
Com que frequência?
Henri, quem liga para as visões? Por que eles estavam levando animais para dentro do foguete? E o que um bebê fazia com eles, se é que era mesmo um bebê? Para onde eles foram? Qual era o propósito deles?
Henri pensa em tudo isso por um momento. Ele apóia o peso do corpo na perna direita.
Provavelmente, o mesmo propósito que nós. Pense nisto, John. De que outra forma os animais poderiam repovoar Lorien? Eles devem ter sido levados para algum tipo de santuário. Tudo foi dizimado. Não só o povo, mas também os animais e toda a vida vegetal. O embrulho a que você se refere podia ser mais um animal. Alguma criatura frágil ou muito jovem.
Bem, e para onde eles foram? Que outro santuário existe além da Terra?
Creio que eles foram para uma das estações espaciais. Um foguete com combustível lórico pode ter percorrido uma distância bem grande. Talvez pensassem que a invasão seria breve e pretendiam esperar pelo fim dela para voltar. Quero dizer, eles poderiam viver na estação espacial pelo tempo que durassem seus suprimentos.
Existem estações espaciais perto de Lorien?
Sim, duas delas. Bem, havia duas. Sei, com certeza, que a maior foi destruída no mesmo momento da invasão. Perdemos contato com ela menos de dois minutos depois da primeira bomba cair.
Por que não mencionou isso antes, quando falei sobre o foguete pela primeira vez?
Presumi que estivesse vazio, que houvesse decolado como um chamariz. E acho que, se uma estação espacial foi destruída, a outra também deve ter sido. A viagem desse grupo, infelizmente, foi em vão, qualquer que tenha sido o objetivo.
Mas e se eles voltaram quando os suprimentos acabaram? Acha que poderiam sobreviver em Lorien? — pergunto, desesperado. Já conheço a resposta, sei o que Henri vai dizer, mas pergunto para me apegar a algum tipo de esperança de que não estamos sozinhos nisso. De que talvez, em algum lugar distante, haja outros como nós, esperando, monitorando o planeta para que também possam voltar um dia, e não estaremos sozinhos quando retornarmos.
Não. Não há mais água por lá. Você mesmo viu. Nada além de terra estéril e deserta. E nada sobrevive sem água.
Suspiro e me deito novamente na cama. De que adianta discutir? Henri está certo, e eu sei disso. Vi com meus próprios olhos. Se os globos que ele tirou da arca merecem credibilidade, Lorien nada mais é que um lugar deserto, uma vasta extensão de nada. O planeta ainda vive, mas nada há na superfície. Não há água. Não há plantas. Não há vida. Nada além de terra e pedras e os destroços da civilização que um dia existiu.
Viu mais alguma coisa? — Henri me pergunta.
Eu nos vi no dia em que partimos. Todos estávamos na pista pouco antes da decolagem.
Foi um dia triste.
Eu assinto. Henri cruza os braços e olha pela janela, perdido em pensamentos. Respiro fundo.
Onde estava sua família durante isso tudo? — pergunto. Minhas luzes se apagaram há cerca de dois ou três minutos, mas
noto que os olhos de Henri agora estão fixos em mim.
Não estavam comigo. Não naquele dia — ele responde. Ficamos em silêncio por um tempo, até Henri se mexer.
Bem, vou voltar para cama — ele anuncia, encerrando nossa conversa. — Tente dormir.
Ele sai, e eu fico ali, deitado, pensando nos animais, no foguete, na família de Henri, e em como tenho certeza de que ele não teve sequer a oportunidade de se despedir dela. Sei que não vou conseguir voltar a dormir. Nunca consigo quando essas imagens me visitam, ou quando sinto a tristeza de Henri. Deve ser um pensamento constante para ele, como seria para qualquer um que partisse nas mesmas circunstâncias, deixando para trás a única casa que conheceu e sabendo que nunca mais veria as pessoas que ama.
Pego meu celular e mando uma mensagem para Sarah. Sempre envio torpedos para ela quando não consigo dormir, ou ela escreve para mim quando é ela a vítima da insônia. Falamos pelo tempo necessário para que o insone fique cansado. Ela me liga vinte segundos depois de eu enviar a mensagem.
Oi — atendo.
Não consegue dormir?
Não.
O que houve? — ela pergunta, bocejando do outro lado da linha.
Acho que foi só saudades de você. Passei pelo menos uma hora deitado, olhando para o teto.
Bobo. Você me viu há menos de seis horas.
Queria que você estivesse aqui — digo.

Ela geme baixinho. Posso vislumbrar seu sorriso na escuridão. Deito de lado e prendo o telefone entre a orelha e o travesseiro. — Eu também queria estar aí.
Conversamos por vinte minutos. Na última metade da chamada simplesmente ficamos ouvindo a respiração um do outro. Eu me sinto melhor depois de falar com Sarah, mas descubro que tenho uma dificuldade ainda maior para dormir.




CAPÍTULO VINTE E QUATRO

PELA PRIMEIRA VEZ DESDE QUE CHEGAMOS A OHIO, AS COISAS PARECEM MAIS calmas por um tempo. O semestre termina tranquilamente, vamos ter onze dias de folga no intervalo de inverno. Sam e a mãe passam a maior parte desse tempo visitando a tia dele em Illinois. Sarah fica em casa. Passamos o Natal juntos. E nos beijamos na meia-noite do ano-novo. Apesar da neve e do frio, ou talvez em retaliação a eles, saímos para longas caminhadas pela floresta atrás de casa, sempre de mãos dadas, nos beijando, inspirando o ar gelado sob o céu cinzento e baixo do inverno. Passamos cada vez mais tempo juntos. Não há um único dia desse período de férias em que não nos vejamos pelo menos uma vez.
Andamos de mãos dadas sob o toldo branco da neve nos galhos das árvores. Ela traz sua câmera fotográfica, e às vezes para e tira algumas fotos. Boa parte da neve no chão é intocada, exceto pelas pegadas que deixamos. Nós as seguimos de volta, Bernie Kosar corre na frente, de um lado para o outro, perseguindo coelhos escondidos nos pequenos arbustos, tentando subir nas árvores para importunar os esquilos. Sarah tem um par de protetores de orelhas. Seu nariz e bochechas ficam rosados por causa do frio, acentuando o azul de seus olhos. Eu olho para ela.
O que é? — ela me pergunta, sorrindo.
Nada. Estou só admirando a paisagem.
Ela revira os olhos. A floresta é densa, exceto pelas clareiras esporádicas que encontramos regularmente. Não sei qual é a distância que a floresta se estende, mas nunca conseguimos chegar à extremidade oposta daquela por onde entramos.
Aposto que isto aqui é lindo no verão — Sarah comenta. — Vamos fazer piqueniques nas clareiras.
Uma dor surge em meu peito. Faltam ainda cinco meses para o verão, e, se Henri e eu ainda estivermos aqui em maio, estaremos somando sete meses em Ohio. Isso é bem perto do maior período de tempo que já passamos em um lugar.
Sim — concordo. Sarah olha para mim.
O que é?
Eu a encaro sem entender.
O que é... o quê?
Não foi muito convincente — ela diz. Um bando de corvos barulhentos levanta vôo.
Só queria que já fosse verão.
Eu também. Não acredito que já temos de voltar à escola amanhã.
Ah, nem me lembre disso.
Entramos em outra clareira, maior do que as outras, um círculo quase perfeito de uns trinta metros de diâmetro. Sarah solta minha mão, corre para o meio do espaço e se joga na neve, rindo. Ela deita de costas e começa a mover braços e pernas, fazendo um anjo na neve. Eu me deito ao lado dela e faço o mesmo. As pontas de nossos dedos mal se tocam enquanto fazemos as asas. Nós nos levantamos.
É como se tivéssemos asas imóveis — ela diz.
Isso é possível? Quero dizer, como voaríamos, se as asas fossem imóveis?
É claro que é possível. Anjos podem fazer tudo.
Ela se vira e se aninha em meus braços. Seu rosto frio em meu pescoço me faz recuar.
Ahhh! Seu rosto parece uma pedra de gelo!
Ela ri.
Venha me esquentar.
Eu a abraço e beijo sob o céu aberto, com as árvores à nossa volta. Não há sons, exceto pelos pássaros e um outro baque abafado de neve caindo dos galhos mais próximos. Dois rostos frios colados. Bernie Kosar se aproxima de nós com a língua para fora, ofegante, balançando a cauda. Ele late e se senta na neve olhando para nós, a cabeça inclinada para o lado.
Bernie Kosar! Estava perseguindo coelhos? — Sarah pergunta.
Ele late duas vezes e corre para ela, pulando, como se quisesse se aninhar em seus braços. Depois late novamente e espera, sentado no chão com um ar cheio de expectativa. Sarah pega um pedaço de galho no chão, sacode a neve acumulada nele e o arremessa no meio das árvores. Ele corre para procurá-lo e desaparece de vista. Dez segundos mais tarde Bernie retorna, mas, em vez de voltar à clareira pelo mesmo caminho, ele aparece do outro lado. Sarah e eu nos viramos para vê-lo.
Como ele faz isso? — Sarah pergunta.
Não sei — confesso. — Ele é um cachorro peculiar.
Ouviu isso, Bernie Kosar? Ele acabou de dizer que você é peculiar! Ele solta o galho aos pés dela. Voltamos para casa de mãos dadas,
e o dia começa a se despedir, mudando de cores. Bernie Kosar trota a nosso lado durante todo o caminho, a cabeça erguida como se quisesse nos guiar, protegendo-nos do que podia ou não estar escondido na penumbra crescente além de nosso campo de visão.

Há cinco jornais empilhados na mesa da cozinha. Henri está diante do laptop, e a luz está acesa.
Alguma novidade? — pergunto por força do hábito, mas sem esperança. Não há uma história promissora há meses, o que é bom, mas nem por isso deixo de esperar alguma notícia cada vez que repito essa pergunta.
Na verdade, sim, acho que sim.
Eu me aproximo da mesa e olho por cima do ombro dele para a tela do computador.
O que é?
Ontem à noite houve um terremoto na Argentina. Uma menina de dezesseis anos salvou um homem dos escombros em uma cidadezinha perto do litoral.
Número Nove?
Bem, penso que ela é certamente uma de nós. Se é ou não a Número Nove, isso não posso afirmar.
Por quê? Não há nada de realmente extraordinário em retirar um homem dos escombros.
Veja — Henri me convida, rolando a tela até determinado trecho do artigo. Há uma foto de uma placa de concreto de pelo menos trinta centímetros de espessura e dois metros e meio de largura e de altura. — A placa que ela levantou para salvar o homem. Deve pesar umas cinco toneladas. E veja isso — ele continua, rolando novamente para a parte inferior da página, destacando a última frase: — "Sofia Garcia não foi encontrada para comentar seu gesto".
Leio a frase três vezes.
Ela não foi encontrada — digo.
Exatamente. Ela não se negou a dar entrevista; simplesmente não foi encontrada.
E como sabem que é esse o nome dela?
A cidade é pequena, tem menos de um terço do tamanho de Paradise. Quase todos devem saber o nome dela por lá.
E ela partiu, não é?
Henri assente.
Acho que sim. Provavelmente, antes mesmo de o jornal ser publicado. Esse é o aspecto negativo das cidades pequenas; é impossível não ser notado.
Eu suspiro.
Também é difícil para os mogadorianos passarem despercebidos.
Exatamente.
Lamento por ela — digo, erguendo os ombros. — Quem sabe o que teve que deixar para trás?
Henri olha para mim de um jeito cético, abre a boca para dizer algo, mas pensa melhor e volta ao computador. Eu vou para meu quarto. Arrumo a mochila com roupas limpas e os livros de que vou precisar naquele dia. Hora de voltar às aulas. Não estou ansioso por isso, mas vai ser bom rever Sam. Não o vejo há quase duas semanas.
Estou saindo — digo.
Tenha um bom dia. E tome cuidado.
Até mais tarde.
Bernie Kosar sai de casa correndo na minha frente. Ele é uma verdadeira bola de energia nesta manhã. Acho que passou a apreciar nossas corridas matinais, e o fato de não termos corrido na última semana e meia o deixou aflito para voltar à rotina. Ele me acompanha na maior parte do trajeto. Quando nos despedimos, eu afago sua cabeça e coço suas orelhas.
Muito bem, garoto, agora vá para casa — digo. Ele se vira e começa a trotar de volta.
Não tenho pressa no chuveiro. Quando termino, outros alunos estão começando a chegar. Vou ao corredor, passo por meu armário e caminho até o de Sam. Bato nas costas dele. Ele se assusta, mas sorri ao se virar e me ver.
Por um minuto pensei que teria que socar a cara de alguém — diz.
Sou só eu, amigo. Como foi em Illinois?
Nem me pergunte — ele responde, revirando os olhos. — Minha tia me fez beber chá e assistir às reprises de Os Pioneiros quase todos os dias.
Eu rio.
Deve ter sido horrível.
Foi, acredite — ele responde e enfia a mão na mochila. — Isso estava no meio da correspondência quando voltamos para casa.
Ele me entrega o último exemplar de Eles Estão entre Nós, e eu começo a folhear a revista.
Nada sobre nós ou os mogadorianos — ele comenta.
Ótimo. Eles devem ter ficado com medo depois de nossa visita.
Sim, é claro.
Sarah se aproxima de nós. Mark James a aborda no meio do corredor e lhe entrega um maço de folhas de papel de cor laranja. Ela continua caminhando em nossa direção.
Oi, gatona — eu digo quando ela nos alcança.
Sarah fica na ponta dos pés para me beijar. Seus lábios têm sabor de brilho sabor morango.
Oi, Sam. Como vai?
Bem. E você? — ele pergunta.
Ele agora parece se sentir à vontade com ela. Antes do incidente com Henri, que aconteceu há um mês e meio, estar na presença de Sarah causava nele evidente desconforto, e ele não conseguia encará-la e não sabia o que fazer com as mãos. Mas agora ele a encara e sorri, e fala com confiança.
Muito bem — ela diz. — Tenho que dar uma cópia para cada um de vocês.
Ela nos passa uma folha de papel daquelas que Mark acabou de entregar a ela. É um convite para uma festa na casa dele no próximo sábado.
Eu fui convidado? — Sam pergunta.
Sim, nós três fomos — Sarah confirma.
Você quer ir? — eu pergunto.
Bem, acho que deveríamos tentar. Concordo, movendo a cabeça.
E você, Sam? Quer ir também?
Ele fita além de mim e de Sarah. Eu me viro e vejo para onde ele está olhando, ou melhor, para quem. Emily está parada diante de um armário do outro lado do corredor. É a garota que participou da corrida de carroça conosco no dia de Halloween, e desde então Sam tem suspirado por ela. Quando passa por nós, ela percebe que Sam a observa e sorri com educação.
Emily? — eu pergunto a Sam.
Emily o quê? — ele reage, olhando para mim. Eu olho para Sarah.
Acho que Sam gosta de Emily Knapp.
Não gosto — ele diz.
Posso convidada para ir à festa conosco — Sarah sugere.
Acha que ela iria? — Sam duvida.
Sarah olha para mim.
Bem, talvez eu não deva convidá-la, já que Sam nem gosta dela.
Sam sorri.
Ah, tudo bem, é que... Sei lá, eu não sei.
Ela sempre me pergunta por que você não telefonou para ela depois da corrida. Emily gosta de você.
É verdade — confirmo. — Eu já ouvi Emily dizendo isso.
Por que não me contou? — Sam quer saber.
Você nunca questionou. Sam olha para o convite.
Então, a festa é no sábado?
Sim.
Ele olha para mim.
Eu acho que devemos ir.
Encolho os ombros.
Por mim, podemos ir.

Henri está esperando por mim quando o sinal anuncia o final da última aula. Como sempre, Bernie Kosar está no banco do passageiro, e, quando me vê, abana a cauda com entusiasmo. Entro na caminhonete, e nós partimos imediatamente.
Saiu outra matéria sobre a menina na Argentina — Henri conta.
E?
Só um artigo breve, dizendo que ela desapareceu. O prefeito da cidade está oferecendo uma modesta recompensa por qualquer informação sobre o paradeiro dela. Parece que eles acreditam que ela foi sequestrada.
Tem medo de que os mogadorianos a tenham pegado antes?
Se ela é a Nove, como sugerem as anotações que encontramos, e se eles a estavam seguindo, é bom que ela tenha desaparecido. E, se foi capturada, eles não podem matá-la — não podem nem machucá-la. Isso nos dá esperança. A parte boa, exceto pela notícia propriamente dita, é que imagino que todos os mogadorianos da Terra tenham ido para a Argentina.
Falando nisso, Sam levou à escola o último número de Eles Estão entre Nós.
Havia alguma coisa nela?
Nada.
Não esperava que houvesse. Seu truque de levitação causou profunda impressão naquele sujeito.
Quando chegamos em casa, mudo de roupa e encontro Henri no quintal para mais uma sessão de treinamento. Trabalhar enquanto sou consumido pelo fogo agora é mais fácil. Não fico tão agitado quanto naquele primeiro dia. Posso prender a respiração por mais tempo, quase quatro minutos. Tenho mais controle sobre os objetos que faço levitar e posso erguer vários deles ao mesmo tempo. Pouco a pouco, a preocupação que vi nos olhos de Henri durante aqueles primeiros dias vai desaparecendo. Ele me elogia mais. Sorri mais. Nos dias em que o resultado é realmente bom, vejo em seu rosto uma expressão meio maluca, e ele levanta os braços e grita um "Sim!" satisfeito. Assim vou ganhando confiança em meus Legados. O restante ainda está por vir, mas não creio que vá demorar. E o maior de todos, seja ele qual for, também virá. A ansiedade me mantém acordado várias noites. Quero lutar. Sonho com um mogadoriano aparecendo no quintal para que eu possa finalmente me vingar.
O dia hoje é fácil. Não há fogo. Apenas levanto coisas e as manipulo enquanto as mantenho suspensas. Os últimos vinte minutos passam com Henri arremessando objetos em minha direção — às vezes os deixo simplesmente cair, outras vezes os arremesso como bumerangues, de volta para Henri. Em dado momento, um pedaço de pau retorna com tanta força que Henri se joga no chão, com o rosto na neve, para não ser atingido por ele. Bernie Kosar passa o tempo todo deitado, olhando o treinamento, como se nos incentivasse com o olhar. Quando terminamos, eu tomo um banho, faço os deveres de casa e me sento à mesa da cozinha para jantar.
Vai haver uma festa no próximo sábado, e eu fui convidado. Ele olha para mim e para de mastigar.
Festa de quem?
Mark James. Henri parece surpreso.
Aquilo tudo acabou — eu digo antes que ele possa protestar.
Bem, você é quem sabe, eu acho. Só não esqueça o que está em jogo.

CAPÍTULO VINTE E CINCO

E O TEMPO ESQUENTA. VENTOS  FORTES,   GELADOS  E NEVE CONSTANTE SÃO substituídos por céu azul e temperaturas amenas. A neve derrete. No início há poças na entrada de casa e no quintal, a estrada fica molhada, mas depois de um dia tudo seca e evapora, e os carros passam normalmente como em outro dia qualquer. Um intervalo, um breve descanso antes de o velho inverno assumir o comando novamente.
Eu me sento à varanda e espero por Sarah, olhando para o céu cheio de estrelas cintilantes e com lua cheia. Uma nuvem muito fina corta a lua ao meio e desaparece rapidamente. Ouço o ruído dos pneus no cascalho, vejo as luzes dos faróis se aproximando e segundos depois enxergo o automóvel. Sarah desce pelo lado do motorista. Ela veste calça de flanela cinza e cardigã azul-marinho sob uma jaqueta bege. Seus olhos são acentuados pelo azul que se pode ver sob as extremidades da jaqueta. O cabelo louro cai sobre os ombros. Ela sorri e olha para mim, piscando ao se aproximar. Parece que tenho borboletas no estômago. Quase três meses juntos, e ainda fico nervoso quando a vejo. Um nervosismo que não acredito que o tempo poderá diminuir.
Você está linda — digo.
Ah, obrigada — ela responde, curvando-se. — Você não está nada mal.
Beijo Sarah no rosto. Henri sai de casa e acena para a mãe dela, que está sentada no banco do passageiro do automóvel.
Então, vai telefonar quando for hora de ir buscá-lo, não é? — Henri me pergunta.
Sim — confirmo.
Vamos para o carro, e Sarah se senta ao volante. Eu me sento no banco traseiro. Ela tem sua licença de aprendiz há alguns meses, o que significa que pode dirigir desde que um motorista licenciado esteja sentado no banco do passageiro, ao lado dela. O exame de direção está marcado para segunda-feira, em dois dias. Ela está ansiosa com isso desde que marcou a data, durante as férias de inverno. Sarah põe o carro em movimento e vamos para a estrada. Depois de um tempo ela ajeita o retrovisor para sorrir para mim. Eu sorrio de volta.
Como foi seu dia, John? — A mãe dela se vira para mim.
Nós conversamos. Ela me fala sobre a ida delas duas ao shopping à tarde, e de como Sarah foi dirigindo até lá. Conto que brinquei com Bernie Kosar no quintal, e como corremos um atrás do outro. Não falo sobre a sessão de treinamento que durou três horas e aconteceu no quintal depois da corrida. Não digo a ela que rachei o tronco da árvore morta usando apenas telecinesia, ou que Henri arremessou facas em minha direção e eu as desviei para um saco de areia a quinze metros. Não falo sobre ficar em chamas, nem sobre os objetos que levantei, esmaguei e quebrei. Outro segredo. Outra meia verdade que eu sinto como mentira. Gostaria de dizer a Sarah. Sinto que de alguma forma a estou traindo ao manter escondida minha identidade, e, ao longo das últimas semanas, esse fardo começou a realmente pesar sobre mim. Mas também sei que não tenho alternativa. Não neste momento, pelo menos.
É aqui? — Sarah pergunta.
Sim — confirmo.
Ela para o carro na entrada da garagem de Sam. Ele está esperando na porta e veste jeans e suéter de lã. Quando levanta a cabeça, seu olhar para nós me lembra o de um cervo ofuscado pelos faróis de um carro. Ele tem gel no cabelo. Juro que nunca o vi usar gel antes. Sam se aproxima, abre a porta do carro e se senta ao meu lado.
Oi, Sam — Sarah o cumprimenta e depois o apresenta à mãe.
Voltamos para a estrada. As duas mãos de Sam estão plantadas no assento com firmeza, sinal evidente de nervosismo. Sarah segue por um caminho que nunca percorri antes e vira à direita para subir uma alameda sinuosa que já faz parte da casa de Mark. Há cerca de trinta carros estacionados ali. No final da rua, cercada por árvores, vejo um imóvel grande de dois andares. Podemos ouvir a música muito antes de chegarmos à residência.
Caramba, que casa! — Sam comenta.
Comportem-se — diz a mãe de Sarah. — E tomem cuidado. Telefonem se precisarem de algo, ou se não conseguirem falar com seu pai, John — ela diz olhando para mim.
Sim, Sra. Hart — respondo.
Descemos do carro e começamos a caminhar para a porta da frente. Dois cachorros surgem da lateral da casa e correm em nossa direção, um golden retriever e um buldogue. Eles abanam a cauda e farejam minha calça, certamente sentindo o cheiro de Bernie Ko-sar. O buldogue carrega na boca um graveto. Eu pego a vareta, jogo do outro lado do gramado do jardim, e os dois cães saem correndo para ir buscá-la.
Dozer e Abby — diz Sarah.
Imagino que Dolzer seja o buldogue — arrisco.
Ela assente e sorri para mim como se pedisse desculpas. Sou obrigado a lembrar que ela conhece bem aquela casa. E me pergunto se não é estranho para ela voltar agora comigo.
Essa foi uma péssima ideia — Sam resmunga a meu lado. — Só agora estou percebendo.
Por quê?
Porque há três meses o cara que mora aqui encheu seu armário e o meu de esterco e jogou uma almôndega em minha cabeça na hora do almoço. E nós estamos aqui.
Aposto que Emily já chegou — comento, dando uma leve cotovelada em suas costelas.
A porta da frente se abre para um hall. Os cães se aproximam correndo, passam por nós e desaparecem na cozinha, que fica bem em frente à entrada. Percebo que agora é Abby que segura o graveto entre os dentes. A música é tão alta que temos de gritar para sermos ouvidos. Pessoas dançam na sala. Há latas de cerveja em quase todas as mãos, mas alguns poucos bebem água mineral ou refrigerante. Aparentemente, os pais de Mark viajaram. Todo o time de futebol está na cozinha, metade deles usando aqueles agasalhos do uniforme. Mark se aproxima e abraça Sarah. Depois ele aperta minha mão. Ele me encara por um segundo e desvia o olhar. Mark não aperta a mão de Sam. Na verdade, nem olha para ele. Talvez Sam tenha razão. Aceitar o convite para a festa pode ter sido um engano.
Que bom que puderam vir. Venham, entrem. A cerveja está na cozinha.
Emily está em um canto da sala conversando com algumas pessoas. Sam olha para lá e pergunta a Mark onde fica o banheiro. Ele aponta o caminho.
Volto já — Sam me avisa.
A maioria dos garotos está em pé em torno da bancada que forma uma ilha no meio da cozinha. Eles olham para mim quando entro com Sarah. Encaro cada um deles e depois pego uma garrafa de água mineral de um balde com gelo. Mark abre uma lata de cerveja e a coloca na mão de Sarah. A maneira como ele a encara me faz perceber mais uma vez que não confio nele. Nem um pouco. E percebo também o quanto toda essa situação é bizarra. Estou na casa de Mark com Sarah, ex-namorada dele. Fico feliz por Sam ter vindo comigo.
Abaixo-me para brincar com os cachorros até Sam sair do banheiro. Quando isso acontece, Sarah está falando com Emily do outro lado da sala. Sam fica tenso quando percebe que não nos resta nada a fazer além de ir até lá e cumprimentá-la. Ele respira fundo. Na cozinha, dois garotos puseram fogo na beirada de uma folha de jornal por nenhuma outra razão se não ver o papel queimar.
Cumprimente Emily — digo a Sam enquanto caminhamos até lá. Ele responde com um movimento afirmativo de cabeça.
Aí estão vocês — diz Sarah. — Pensei que tivessem me abandonado.
Eu nem sonharia com isso — digo. — Oi, Emily. Como vai?
Bem — ela diz. E para Sam: — Gostei de seu cabelo. Sam a encara. Eu o acerto com uma cotovelada. Ele sorri.
Obrigado — diz. — Você está ótima.
Sarah olha para mim e sorri. Eu dou de ombros e a beijo no rosto. A música está ainda mais alta. Sam conversa com Emily e aparenta um pouco de nervosismo, mas ela ri, e depois de um tempo ele relaxa.
Então, está tudo bem? — Sarah me pergunta.
E claro. Estou com a garota mais linda da festa. Como poderia estar melhor?
Ah, por favor. — Ela ri e bate de leve em minha barriga.
Nós quatro dançamos por cerca de uma hora. Os jogadores de futebol continuam bebendo. Alguém aparece com uma garrafa de vodca, e não muito depois disso um deles — não sei qual — vomita no banheiro, e o cheiro se espalha por todo o primeiro andar da casa. Outro desmaia no sofá da sala de estar e alguns desenham em seu rosto com caneta hidrocor. As pessoas continuam indo e voltando, passando pela porta do porão. Não sei o que está acontecendo lá embaixo. Não vejo Sarah há dez minutos. Deixo Sam na sala, vou até a cozinha e depois subo a escada. O carpete é branco e espesso, e há fotos de família e quadros adornando as paredes. Algumas portas dos quartos estão abertas, outras fechadas. Não vejo Sarah em nenhum lugar. Sam está sozinho em um canto da sala, e eu me aproximo dele.
Por que o desânimo? — pergunto.
Ele balança a cabeça.
Não me faça suspendê-lo no ar e virá-lo de cabeça para baixo como fiz com o cara em Athens.
Eu sorrio. Sam continua emburrado.
Acabei de ser abordado por Alex Davis — ele conta.
Alex Davis é do grupo de Mark James e também faz parte do time de futebol. Ele é calouro, alto e magro. Nunca conversei com ele e, por isso, não sei muito sobre sua vida.
Como assim, "abordado"?
Ele veio falar comigo. Acho que me viu com Emily, e parece que eles saíram no verão passado.
E daí? Por que está incomodado com isso?
Porque estou. Não é legal, está bem?
Sam, sabe por quanto tempo Sarah e Mark namoraram?
Muito tempo.
Dois anos — eu digo.
Isso o incomoda?
Não, nem um pouco. Quem liga para o passado? Além do mais, olhe para Alex — digo, mostrando o garoto no canto da cozinha. Ele está desmoronando em cima da bancada, com os olhos quase fechados, suor cobrindo a testa dele. — Acha mesmo que ela sente falta daquilo?
Sam olha para o rapaz e dá de ombros.
Você é um cara legal, Sam Goode. Não se subestime.
Não estou me subestimando.
Então, não se preocupe com o passado de Emily. Não precisamos ser definidos pelas ações que fizemos ou que deixamos de fazer no passado. Algumas pessoas se deixam controlar pelo arrependimento. Talvez seja um arrependimento justo, talvez não. É só alguma coisa que aconteceu. Supere. Sam suspira. Ele ainda está aborrecido.
Ah, pare com isso. Ela gosta de você. Não tem com que se preocupar — insisto.
Mas estou preocupado.
A melhor maneira de lidar com o medo é enfrentá-lo. Aproxime-se dela e a beije. Aposto que ela vai corresponder.
Sam olha para mim e assente, depois vai até o porão, onde sabe que encontrará Emily. Os dois cachorros entram correndo na sala. Ambos estão com a língua de fora e abanam os rabos. Dozer deita no chão e espera que Abby se aproxime, para saltar sobre ela. Abby se esquiva. Eu os observo até desaparecerem no alto da escada, para onde levam o brinquedo de borracha que é alvo da disputa. Faltam quinze minutos para meia-noite. Um casal troca carícias no sofá do outro lado da sala. Os jogadores de futebol continuam bebendo na cozinha. Começo a sentir sono, mas não consigo encontrar Sarah.
Neste momento, um jogador de futebol sobe correndo a escada do porão, e há em seu rosto uma expressão transtornada, frenética. Ele corre até a pia da cozinha, abre a torneira no máximo e começa a abrir todas as portas dos armários.
Fogo — ele diz para os rapazes que estão perto. — Lá embaixo!
Todos começam a encher panelas e vasilhas com água e, um a um, eles correm para a escada.
Emily e Sam sobem. Sam parece abalado.
O que aconteceu? — pergunto.
A casa está pegando fogo!
É grave?
Algum incêndio não é grave? E acho que nós o provocamos. Nós... Bem, derrubamos uma vela perto de uma cortina.
Sam e Emily parecem agitados, desarrumados. Percebo que eles estavam namorando. Digo a mim mesmo que não posso me esquecer de dar os parabéns a Sam mais tarde.
Vocês viram Sarah? — pergunto a Emily. Ela balança a cabeça.
Mais garotos sobem a escada, e Mark James está com eles. Vejo o medo em seus olhos. Pela primeira vez sinto o cheiro de fumaça. Olho para Sam.
Vá lá para fora — digo.
Ele concorda com um movimento de cabeça, segura a mão de Emily, e os dois saem juntos. Outros os seguem, mas alguns permanecem onde estão, assistindo a tudo com curiosidade embriagada. Algumas pessoas permanecem paradas e batem nas costas dos jogadores de futebol, que correm ao porão com as vasilhas com água, incentivando-os como se tudo fosse uma brincadeira.
Vou até a cozinha e pego o maior recipiente que encontro, uma panela de tamanho médio. Encho a panela com água e desço. Todos já deixaram o local, exceto nós, enfrentando o incêndio, que é maior do que eu imaginava. Metade do porão é consumida pelas chamas. Apagar o fogo com a quantidade de água que tenho é impossível. Nem tento. Em vez disso, abandono a panela e recuo. Mark desce a escada correndo. Eu o detenho no meio dos degraus. Seus olhos estão vermelhos pelo excesso de álcool, mas posso ver o terror e o desespero em sua expressão.
Esqueça — digo. — O incêndio é grande demais. Precisamos tirar todo mundo daqui.
Ele olha para o fogo no porão. Sabe que o que eu disse é verdade. A fachada do garoto valentão desapareceu. A farsa acabou.
Mark! — eu grito.
Ele solta a panela com água, assente, e nós voltamos juntos.
Todos para fora! Agora! — eu grito do alto da escada.
Os que estão mais bêbados nem se movem. Alguns riem. Uma pessoa diz:
Onde estão os marshmallows?
Mark responde com um tapa no rosto do colega.
Saia! — ele grita.
Arranco o telefone sem fio da base na parede e o coloco na mão de Mark.
Ligue para os bombeiros — grito, temendo não ser ouvido com toda aquela gritaria e a música alta que ainda vem de algum lugar. É como uma trilha sonora para o pandemônio que se forma. O chão está ficando quente. A fumaça começa a subir do porão para o primeiro andar. Só então as pessoas percebem que o assunto é sério. Começo a empurrar todo mundo para a porta.
Passo depressa por Mark quando ele está ligando para os bombeiros e continuo correndo pela casa. Subo a escada principal saltando os degraus, três de cada vez, e vou abrindo as portas com chutes violentos. Um casal está namorando em um dos quartos, na cama. Eu grito, mandando os dois saírem. Não encontro Sarah. Desço novamente a escada e saio para a noite escura, fria. Há muita gente do lado de fora olhando para a casa. Percebo que algumas estão agitadas com a possibilidade de a casa queimar até virar cinzas. Outras riem. Eu começo a sentir os primeiros sinais de pânico em mim. Onde está Sarah? Sam está atrás do grupo, que deve ter umas cem pessoas. Corro até ele.
Você viu Sarah? — pergunto.
Não — ele diz.
Olho para a casa. As pessoas continuam saindo. As janelas do porão brilham com uma tonalidade forte de vermelho, as chamas lambem as vidraças. Uma das janelas está aberta. Por ali sai uma fumaça escura que sobe rapidamente colorindo o ar, tornando-o mais denso. Eu me movimento por entre as pessoas. De repente, uma explosão sacode a casa. Todas as janelas do porão se quebram. Algumas pessoas aplaudem. As chamas atingiram o primeiro andar e estão se movendo depressa. Mark James está em pé na frente do grupo, sem conseguir desviar os olhos da casa em chamas. Seu rosto é iluminado pelo brilho alaranjado. Há lágrimas em seus olhos, um ar de desespero, a mesma expressão que vi nos olhos dos lorienos no dia da invasão. Deve ser estranho assistir a tudo o que você tinha sendo destruído. O fogo se espalha com hostilidade, de maneira irregular. E Mark nada pode fazer além de olhar. As chamas começam a ultrapassar as janelas do primeiro andar. De onde estamos já é possível sentir o calor do fogo no rosto.
Onde está Sarah? — pergunto a ele.
Ele não me ouve. Eu o sacudo, segurando seus ombros. Ele se vira e olha para mim aturdido, como se ainda não acreditasse no que seus olhos estão vendo.
Onde está Sarah? — pergunto novamente.
Não sei — ele diz.
Começo a me mover pelo grupo, procurando por ela, cada vez mais desesperado. Todos olham para o fogo. A cobertura de vinil começa a borbulhar e derreter. As cortinas das janelas já foram queimadas. A porta da frente está aberta, e a fumaça que brota dela lembra uma cachoeira de cabeça para baixo. É possível enxergar até a cozinha, que se transformou em um inferno. No lado esquerdo da casa o fogo já atingiu o segundo andar. E é então que escuto.
Um grito longo, terrível. E cachorros latindo. Meu coração para. Todas as pessoas ali tentam identificar o que ouviram, ao mesmo tempo em que esperam não ter ouvido o que todos sabem que escutaram. O grito se repete. Inconfundível. Uma sequência ininterrupta de gritos. As pessoas reagem, desesperadas.
Oh, não — Emily geme. — Não, meu Deus, por favor, não!

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