sábado, 23 de julho de 2011

As Crônicas de Nárnia 2 - O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, Capítulos 1 ao 5

As Crônicas de Nárnia
O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA

1
UMA ESTRANHA DESCOBERTA

Era uma vez duas meninas e dois meninos: Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a guerra, quando tiveram de sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. Foram os quatro levados para a casa de um velho professor, em pleno campo, a quinze quilômetros de distância da estrada de ferro e a mais de três quilômetros da agência de correios mais próxima.
O professor era solteiro e morava numa casa muito grande, com D. Marta, a governanta, e três criadas, Eva, Margarida e Isabel, que não aparecem muito na história.
O professor era um velho de cabelo desgrenhado e branco, que lhe encobria a maior parte do rosto, além da cabeça.
As crianças gostaram dele quase imediatamente. Mas, na primeira noite, quando ele veio recebê-las, na porta principal, tinha uma aparência tão estranha, que Lúcia, a mais novinha, teve medo dele, e Edmundo (que era o segundo mais novo) quase começou a rir e, para disfarçar, teve de fingir que estava assoando o nariz.
Naquela noite, depois de se despedirem do professor, os meninos foram para o quarto das meninas, onde trocaram impressões:
– Tudo perfeito – disse Pedro. – Vai ser formidável. O velhinho deixa a gente fazer o que quiser.
– É bem simpático – disse Susana.
– Acabem com isso! – falou Edmundo, com muito sono, mas fingindo que não, o que o tornava sempre mal-humorado. – Não fiquem falando desse jeito!

– Que jeito? – perguntou Susana. – Além do mais, já era hora de você estar dormindo.
– Querendo falar feito mamãe – disse Edmundo. — Que direito você tem de me mandar dormir? Vá dormir você, se quiser.
– É melhor irmos todos para a cama – disse Lúcia. – Vai haver confusão, se ouvirem a nossa conversa.
– Não vai, não – disse Pedro. – Este é o tipo de casa em que a gente pode fazer o que quer. E, além do mais, ninguém está nos ouvindo. É preciso andar quase dez minutos daqui até a sala de jantar, e há uma porção de escadas e corredores pelo caminho.
– Que barulho é esse? – perguntou Lúcia de repente.
Era a maior casa que ela já tinha visto. A idéia de corredores compridos e fileiras de portas que vão dar em salas vazias começava agora a lhe dar arrepios.
– Foi um passarinho, sua boba – disse Edmundo.
– Foi uma coruja – disse Pedro. – Este lugar deve ser uma beleza para passarinhos. E agora pra cama! Amanhã vamos explorar tudo. Repararam nas montanhas do caminho? E os bosques?
Aqui deve ter águia. Até veado. E falcão, com certeza.
– E raposas! – disse Edmundo.
– E coelhos! – disse Susana.
Mas, quando amanheceu, caía uma chuva enjoada, tão grossa que, da janela, quase não se viam as montanhas, nem os bosques, nem sequer o riacho do quintal.
– Tinha certeza de que ia chover! – disse Edmundo.
Haviam acabado de tomar café com o professor e estavam na sala que lhes fora destinada, um aposento grande e sombrio, com quatro janelas.
– Não fique reclamando e resmungando o tempo todo – disse Susana para Edmundo. – Aposto que, daqui a uma hora, o tempo melhora. Enquanto isso, temos um rádio e livros à vontade.
– Isso não me interessa – disse Pedro. – Vou é explorar a casa.
Todos concordaram, e foi assim que começaram as aventuras. Era o tipo da casa que parece não ter fim, cheia de lugares surpreendentes. As primeiras portas que entreabriram davam para quartos desabitados, como aliás já esperavam. Mas não demoraram a encontrar um salão cheio de quadros, onde também acharam uma coleção de armaduras. Havia a seguir uma sala forrada de verde, com uma harpa encostada a um canto. Depois de terem descido três degraus e subido cinco, chegaram a um pequeno saguão com uma porta, que dava para uma varanda, e ainda para uma série de salas, todas cobertas de livros de alto a baixo. Os livros eram quase todos muito antigos e enormes.
Pouco depois, espiavam uma sala onde só existia um imenso guarda-roupa, daqueles que têm um espelho na porta. Nada mais na sala, a não ser uma mosca morta no peitoril da janela.
– Aqui não tem nada! – disse Pedro, e saíram todos da sala.
Todos menos Lúcia. Para ela, valia a pena tentar abrir a porta do guarda-roupa, mesmo tendo quase certeza de que estava fechada à chave. Ficou assim muito admirada ao ver que se abriu facilmente, deixando cair duas bolinhas de naftalina.
Lá dentro viu dependurados compridos casacos de peles. Lúcia gostava muito do cheiro e do contato das peles. Pulou para dentro e se meteu entre os casacos, deixando que eles lhe afagassem o rosto. Não fechou a porta, naturalmente: sabia muito bem que seria uma tolice fechar-se dentro de um guarda-roupa. Foi avançando cada vez mais e descobriu que havia uma segunda fila de casacos pendurada atrás da primeira. Ali já estava meio escuro, e ela estendia os braços, para não bater com a cara no fundo do móvel. Deu mais uns passos, esperando sempre tocar no fundo com as pontas dos dedos. Mas nada encontrava.
“Deve ser um guarda-roupa colossal!”, pensou Lúcia, avançando ainda mais. De repente notou que estava pisando qualquer coisa que se desfazia debaixo de seus pés. Seriam outras bolinhas de naftalina? Abaixou-se para examinar com as mãos. Em vez de achar o fundo liso e duro do guarda-roupa, encontrou uma coisa macia e fria, que se esfarelava nos dedos. “É muito estranho”, pensou, e deu mais um ou dois passos.
O que agora lhe roçava o rosto e as mãos não eram mais as peles macias, mas algo duro, áspero e que espetava.
– Ora essa! Parecem ramos de árvores!
Só então viu que havia uma luz em frente, não a dois palmos do nariz, onde deveria estar o fundo do guarda-roupa, mas lá longe. Caía-lhe em cima uma coisa leve e macia. Um minuto depois, percebeu que estava num bosque, à noite, e que havia neve sob os seus pés, enquanto outros flocos tombavam do ar.
Sentiu-se um pouco assustada, mas, ao mesmo tempo, excitada e cheia de curiosidade. Olhando para trás, lá no fundo, por entre os troncos sombrios das árvores, viu ainda a porta aberta do guarda-roupa e também distinguiu a sala vazia de onde havia saído. Naturalmente, deixara a porta aberta, porque bem sabia que é uma estupidez uma pessoa fechar-se num guarda-roupa. Lá longe ainda parecia divisar a luz do dia.
– Se alguma coisa não correr bem, posso perfeitamente voltar.
E ela começou a avançar devagar sobre a neve, na direção da luz distante.
Dez minutos depois, chegou lá e viu que se tratava de um lampião. O que estaria fazendo um lampião no meio de um bosque? Lúcia pensava no que deveria fazer, quando ouviu uns pulinhos ligeiros e leves que vinham na sua direção. De repente, à luz do lampião, surgiu um tipo muito estranho.
Era um pouquinho mais alto do que Lúcia e levava uma sombrinha branca. Da cintura para cima parecia um homem, mas as pernas eram de bode (com pêlos pretos e acetinados) e, em vez de pés, tinha cascos de bode. Tinha também cauda, mas a princípio Lúcia não notou, pois aquela descansava elegantemente sobre o braço que segurava a sombrinha, para não se arrastar pela neve.
Trazia um cachecol vermelho de lã enrolado no pescoço. Sua pele também era meio avermelhada. A cara era estranha, mas simpática, com uma barbicha pontuda e cabelos frisados, de onde lhe saíam dois chifres, um de cada lado da testa. Na outra mão carregava vários embrulhos de papel pardo. Com todos aqueles pacotes e coberto de neve, parecia que acabava de fazer suas compras de Natal.
Era um fauno. Quando viu Lúcia, ficou tão espantado que deixou cair os embrulhos.
– Ora bolas! – exclamou o fauno.

2
O QUE LÚCIA ENCONTROU


– Boa noite – disse Lúcia. Mas o fauno estava tão ocupado em apanhar os embrulhos que nem respondeu. Quando terminou, fez-lhe uma ligeira reverência:
– Boa noite, boa noite. Desculpe, não quero bancar o intrometido, mas você é uma Filha de Eva?
Ou estou enganado?
– Meu nome é Lúcia – disse ela, sem entender direito.
– Mas você é, desculpe, o que chamam de menina?
– Claro que sou uma menina – respondeu Lúcia.
– Então é de fato humana?
– Evidente que sou humana! – disse Lúcia, bastante admirada.
– É claro, é claro – disse o fauno. – Que besteira a minha! Mas eu nunca tinha visto um Filho de Adão ou uma Filha de Eva. Estou encantado. Isto é... – e aí parou, como se fosse dizer alguma coisa que não devia. – Encantado, encantado – continuou. – Meu nome é Tumnus.
– Muito prazer, Sr. Tumnus.
– Posso perguntar, Lúcia, Filha de Eva, como é que veio parar aqui em Nárnia?
– Nárnia? Que é isso?
– Aqui é a terra de Nárnia: tudo que está entre o lampião e o grande castelo de Cair Paravel, nos mares orientais. Você veio dos Bosques do Ocidente?
– Eu entrei pelo guarda-roupa da sala vazia.
– Ah! – disse o Sr. Tumnus, numa voz um tanto melancólica. – Se eu tivesse estudado mais geografia quando era um faunozinho, saberia alguma coisa sobre esses países estrangeiros. Agora é tarde.
– Mas não são países coisa nenhuma – disse Lúcia, quase desandando a rir. – É logo ali atrás, acho... não tenho certeza. Lá é verão.
– Mas em Nárnia é sempre inverno, e há muito tempo. Aliás, vamos apanhar um resfriado se ficarmos aqui conversando debaixo da neve. Filha de Eva das terras longínquas de Sala Vazia, onde reina o verão eterno da bela cidade de Guarda-Roupa, que tal se a gente tomasse uma xícara de chá?
– Muito obrigada, Sr. Tumnus, mas eu estava querendo voltar pra casa.
– É ali, virando aquela esquina – disse o fauno –, e lá tem uma lareira acesa, torradas, sardinha, bolo...
– É muita bondade de sua parte. Só que não posso demorar muito.
– Segure no meu braço, Filha de Eva. Assim a sombrinha dá para dois. O caminho é por aqui.
Foi assim que Lúcia começou a andar pelo bosque, de braço dado com aquela estranha criatura, como se fossem velhos amigos.
Ainda não tinham andado muito quando chegaram a um lugar em que o chão era mais áspero, e havia rochas por toda parte e pequenas colinas para subir e descer. Ao chegarem ao fundo de um valezinho, o Sr. Tumnus voltou-se de repente para o lado, indo direto ao encontro de uma rocha colossal. No último instante, Lúcia percebeu que ele a conduzia para a entrada de uma caverna.
Mal se acharam lá dentro, ela começou a piscar à vista de uma bela lareira acesa. O Sr. Tumnus tirou do fogo um tição e acendeu um fogareiro.
– Não demora – disse, pondo a chaleira no fogo.
Lúcia nunca estivera num lugar tão agradável. Era uma caverna quentinha e limpa, aberta numa rocha de tons avermelhados, com um tapete no chão e duas cadeirinhas. (“Uma para mim e outra para um amigo” – disse o Sr. Tumnus.) Havia ainda uma mesa, uma prateleira e uma chaminé por cima da lareira; e, dominando tudo, o retrato de um velho fauno de barba grisalha.
Num canto, uma porta. “O quarto do Sr. Tumnus”, pensou Lúcia. Encostada à parede, uma estante cheia de livros, que ela ficou examinando enquanto ele preparava o chá. Os títulos eram esquisitos: A vida e as cartas de Sileno; As ninfas e as suas artes; Homens, monges e guardas do bosque; Estudo da lenda popular; É o homem um mito?
– Vamos, Filha de Eva.
Foi de fato um chá maravilhoso. Um ovo mal cozido para cada um, sardinhas fritas, torradas com manteiga, torradas com mel em seguida, e depois um bolo todo coberto de açúcar.
Quando Lúcia já não podia comer mais, o fauno começou a falar. Sabia histórias maravilhosas da vida na floresta. Falou das danças da meia-noite; contou como as ninfas, que vivem nas fontes, e as dríades, que vivem nos bosques, aparecem para dançar com os faunos. Falou das intermináveis caçadas ao Veado Branco, branco como leite, que, se for apanhado, permite que a pessoa realize todos os desejos. E dos banquetes, e dos bravos Anões Vermelhos procurando tesouros nas minas profundas e nas grutas. Depois falou do verão, quando os bosques eram verdes e o velho Sileno vinha visitá-los num jumento enorme, e, algumas vezes, até o próprio Baco. Então corria vinho nos riachos, em vez de água, e toda a floresta ficava em festa durante semanas.
– Infelizmente agora é sempre inverno – acrescentou o fauno, tristemente.
E, para distrair-se, tirou de uma caixinha uma flauta pequena e esquisita, que parecia feita de palha, e começou a tocar. A melodia dava a Lúcia vontade de rir e chorar, de dançar e dormir, tudo ao mesmo tempo. Passaram-se horas talvez, até que ela deu por si e exclamou, sobressaltada:
– Oh, Sr. Tumnus! Sinto muito ter de interrompê-lo... Além disso, gosto tanto dessa música! Mas, francamente, tenho de ir para casa. Não podia demorar mais do que uns minutinhos.
– Agora já não é possível – disse o fauno, deixando a flauta e abanando tristemente a cabeça.
– Não é possível?! – disse Lúcia dando um salto, toda assustada. – Por quê? Os outros devem estar preocupados. Tenho de ir para casa imediatamente.
Mas no instante seguinte ela perguntou:
– Que aconteceu, Sr. Tumnus? – pois os olhos castanhos do fauno estavam cheios de lágrimas, que começaram a correr-lhe pelo rosto até a ponta do nariz. Depois ele cobriu a cara com as mãos e começou a soluçar.
– Sr. Tumnus, Sr. Tumnus! – disse Lúcia, muito aflita. – Não chore. Que foi que aconteceu? Não se sente bem? Diga o que é.
Mas o fauno continuava a soluçar, como se tivesse o coração partido. E mesmo quando Lúcia lhe deu um abraço e lhe emprestou o lenço, ele não parou de soluçar. Depois, torceu com as mãos o lenço todo encharcado. Em poucos minutos, Lúcia quase que andava dentro d’água.
– Sr. Tumnus! – disse-lhe ao ouvido, fazendo-o estremecer. – Acabe com isso. Logo! Devia ter vergonha de estar fazendo esse papel: um fauno tão grande, tão bonito! Por que está chorando desse jeito?
– Oh! Oh! Estou chorando porque sou um fauno muito ruim.
– Não acho nada disso. Penso até que é um fauno muito bonzinho, o fauno mais simpático que já encontrei.
– Oh! Oh! Você não diria isso, se soubesse de tudo! Não, sou um fauno mau. Acho que nunca existiu um fauno tão ruim desde o começo do mundo.
– Mas, então, que foi que você fez?
– Estou pensando no meu velho pai – disse o Sr. Tumnus. – Aquele do retrato em cima da lareira.
Ele nunca teria feito uma coisas dessas.
– Mas que coisa?
– A coisa que eu fiz! Trabalhar para a Feiticeira Branca. E o que eu faço! Estou a serviço da Feiticeira Branca.
– Mas quem é a Feiticeira Branca?
– Ora, é ela quem manda na terra de Nárnia. Por causa dela, aqui é sempre inverno. Sempre inverno e nunca Natal. Imagine só!
– Que horror! – exclamou Lúcia. – E que serviço você presta a ela?
– Aí é que está o pior de tudo – disse Tumnus, com um profundo suspiro. – Por causa dela, roubo crianças. É o que eu sou: ladrão de crianças! Olhe para mim, Filha de Eva: acredita que eu seja capaz de encontrar no bosque uma pobre criança inocente, que nunca fez mal a ninguém, fingir que sou muito amigo dela, convidá-la para vir à minha gruta, e depois fazer com que ela adormeça, para entregá-la à Feiticeira Branca?
– Não! Tenho a certeza de que o senhor nunca seria capaz de fazer isso.
– Pois eu faço, sim, senhora!
– Bem – disse Lúcia, devagarinho (porque ela queria ser justa, mas, ao mesmo tempo, não queria ferir muito o fauno) –, bem, isso foi muito malfeito. Mas, já que está arrependido, tenho a certeza de que não fará de novo.
– Filha de Eva, não está entendendo? Ainda não fiz! Estou fazendo agora!
– O quê?! – gritou Lúcia, pálida.
– A criança é você. A ordem da Feiticeira Branca foi esta: se alguma vez eu visse um Filho de Adão ou uma Filha de Eva no bosque, deveria atraí-los e entregar para ela. Você foi a primeira que eu encontrei. Fingi que era muito seu amigo, convidei-a para tomar chá, esperando que você adormecesse; aí, eu iria contar para ela...
– Oh, não faça uma coisa dessas, Sr. Tumnus! Não! O senhor nunca deve fazer isso.
– Mas, nesse caso – e ele recomeçou a chorar –, ela vai descobrir tudo. E vai mandar que me cor tem a cauda, serrem meus chifres, arranquem minha barba. Com a vara de condão é capaz de transformar meus bonitos cascos fendidos em horrendos cascos de cavalo. Mas, se estiver zangada mesmo, é capaz de me transformar em estátua de fauno. Vou ficar naquela casa horrível, até que os quatro tronos de Cair Paravel sejam ocupados... Sabe-se lá quando isso vai acontecer.
– Tenho muita pena, Sr. Tumnus, mas, por favor, deixe-me ir pra casa.
– Claro que sim. Tenho mesmo de deixar. Agora percebo. Não sabia como eram os humanos até encontrar você. Não iria entregá-la à feiticeira, principalmente agora, que a conheço. Vou acompanhá-la até o lampião. Você tem de achar o caminho até Sala Vazia e Guarda-Roupa.
– É claro que eu acho!
– Temos de ir bem caladinhos e escondidos. O bosque está cheio de espiões. Existem até árvores do lado dela!
O Sr. Tumnus abriu a sombrinha, deu o braço a Lúcia, e lá se foram pela neve. O caminho de volta não foi o mesmo que os levara à caverna do fauno; deslizaram silenciosamente, o mais depressa possível, sem dizerem nada, enquanto Tumnus escolhia sempre lugares mais escuros. Lúcia sentiu um alívio quando chegaram outra vez ao lampião.
– E agora, Filha de Eva, já sabe o caminho?
Lúcia olhou atentamente entre as árvores e conseguiu distinguir, à distância, um raio de luz que parecia ser a luz do dia.
– Sei; estou vendo o guarda-roupa.
– Então, já para casa. Espero que me perdoe por aquilo que eu desejava fazer...
– Está perdoado – disse Lúcia, apertando-lhe a mão com afeto. – Só espero que não lhe aconteça nada de mal por minha causa.
– Adeus, Filha de Eva. Posso ficar com o lenço?
– Pode, é claro.
E Lúcia correu na direção do distante raio de luz. E logo, em vez de ramos ásperos, passou a sentir os casacos e, em vez da neve desfazendo-se debaixo de seus pés, encontrou o chão de madeira. Depois, deu um salto para fora do guarda-roupa e se viu na mesma sala vazia do início de toda aquela aventura. Fechou bem a porta e olhou em redor, toda ofegante. Chovia ainda, e ela ouviu as vozes dos outros no corredor.
– Estou aqui! – gritou ela. – Estou aqui de volta! Tudo bem.

3
EDMUNDO E O GUARDA-ROUPA


Lúcia saiu correndo da sala vazia e achou os três no corredor.
– Tudo bem; já voltei.
– Do que você está falando, Lúcia? – perguntou Susana.
– O quê! – disse Lúcia, admirada. – Mas vocês não ficaram preocupados?
– Então, você andou escondida, hein? – disse Pedro. – Coitada da Lúcia! Ficou escondida e ninguém reparou! Você tem de ficar escondida mais tempo, se quiser que alguém se lembre de ir procurá-la.
– Mas eu estive fora muitas horas – disse Lúcia.
Os outros se entreolharam.
– Sua boba! – disse Edmundo, batendo de leve na cabeça. – Completamente boba!
– O que você está querendo dizer, Lu? – perguntou Pedro.
– Exatamente o que eu disse. Entrei no guarda-roupa logo depois do café. Fiquei fora muito tempo, tomei chá... Aconteceram muitas outras coisas.
– Não fique bancando a boboca, Lúcia – disse Susana. – Saímos da sala agora mesmo e você ainda estava lá.
– Ela não está bancando a boboca – disse Pedro. – Está imaginando uma história para se divertir, não é, Lúcia?
– Não é não, Pedro. É... é um guarda-roupa mágico. Lá dentro tem um bosque e está nevando. Tem um fauno e uma feiticeira. O nome da terra é Nárnia. Se quiserem, vamos ver.
Os outros não sabiam o que pensar, mas Lúcia estava tão agitada que todos a acompanharam à sala. Ela correu à frente, abriu a porta do guarda-roupa e gritou:
– Vamos, entrem, vejam com os seus próprios olhos!
– Mas que pateta! – disse Susana, metendo a cabeça lá dentro e afastando os casacos. – É um guarda-roupa comum. Olhem: lá está o fundo.
Olharam todos, depois de afastarem os casacos, e viram – Lúcia também – um guarda-roupa muito comum. Não havia bosque, nem neve, apenas o interior de um guarda-roupa, com os cabides pendurados. Pedro entrou e bateu com os dedos, certificando-se da solidez da peça.
– Boa brincadeira, Lúcia – disse ao sair. – Você nos pregou uma boa peça. Quase acreditamos.
– Mas não é mentira coisa nenhuma! Palavra de honra! Há um minuto estava tudo diferente. Palavra que estava!
– Vamos, Lu – disse Pedro. – Você está exagerando; já se divertiu muito. É melhor acabar com a brincadeira.
Lúcia ficou vermelha até a raiz dos cabelos. Quis murmurar qualquer coisa e desandou a chorar.
Durante alguns dias, sentiu-se muito infeliz. Podia resolver a questão num instante, bastando declarar que tinha inventado aquela história. Mas Lúcia gostava de falar a verdade, e tinha certeza de que não estava enganada. Os outros, pensando que era tudo mentira, e mentira boba, davam-lhe um grande desgosto. Os dois mais velhos faziam isso sem querer, mas Edmundo costumava bancar o mau, e estava sendo mau daquela vez. Zombava de Lúcia, chateando-a o tempo todo, perguntando se ela não tinha achado outras terras misteriosas nos numerosos armários que existiam por toda a casa.
O pior é que esses dias eram para ter sido esplêndidos. O tempo estava lindo, passeavam lá fora da manhã até a noite, tomavam banho de riacho, pescavam, subiam nas árvores, deitavam-se no bosque... Mas Lúcia não se divertia de verdade. E assim foram correndo as coisas até que chegou um novo dia de chuva.
Naquela tarde, como o tempo continuasse ruim, resolveram brincar de esconder. Susana era o pegador e, mal se dispersaram para se esconder, Lúcia dirigiu-se à sala do guarda-roupa. Não queria esconder-se lá dentro, pois isso certamente faria com que os outros voltassem a se lembrar daquele assunto desagradável. Mas queria pelo menos dar uma espiada, porque, naquela altura, ela própria já começava a se perguntar se Nárnia e o fauno não passavam de um sonho. A casa era tão grande e complicada, tão cheia de esconderijos, que ela pensou que teria tempo de dar uma espiada e se esconder em outro lugar. Mas, mal tinha se aproximado, ouviu passos no corredor, e não teve outro remédio: pulou para dentro do guarda-roupa e segurou a porta, pois sabia muito bem que era uma idiotice alguém fechar-se num guarda-roupa, mesmo num guarda-roupa mágico. Eram os passos de Edmundo, que entrou na sala ainda a tempo de ver Lúcia sumir dentro do móvel. Sem hesitar, resolveu entrar também – não porque o considerasse um bom esconderijo, mas porque tinha vontade de continuar a chateá-la com o seu mundo imaginário. Abriu a porta. Os casacos estavam dependurados como sempre, cheirando a naftalina; tudo era escuridão e silêncio, e não havia vestígios de Lúcia. “Ela pensa que sou a Susana e que vim pegá-la, por isso está quietinha lá no fundo” – pensou Edmundo.
Ele pulou para dentro e fechou a porta, esquecendo-se de que estava fazendo uma grande bobagem. Começou a procurar Lúcia no escuro. Ficou muito admirado quando não a encontrou. Resolveu abrir de novo a porta para deixar entrar luz. Mas também não foi capaz de dar com a porta. Nada satisfeito, começou a andar desnorteado, às apalpadelas, em todas as direções. Chegou a gritar: “Lúcia! Lu! Onde você está? Sei que está aí, sua boba!”
Mas ficou sem resposta. Notou até que a própria voz tinha um som curioso – não o som que é de esperar dentro de um armário, mas um som ao ar livre. Observou também que de repente estava sentindo frio; depois viu uma luz.
– Graças a Deus! A porta se abriu sozinha.
Esquecendo-se completamente de Lúcia, começou a andar em direção à luz, julgando ser a porta do guarda-roupa. Mas, em vez de dar na sala vazia, ficou espantado ao passar da sombra de umas árvores grossas para uma clareira no meio de um bosque. Sentia sob os pés a neve dura, e havia neve também nos ramos. O céu era azul-pálido, céu de uma bela manhã de inverno. Na frente dele, entre os troncos, o sol nascia, vermelho e brilhante. Pairava uma calma enorme, como se ele fosse o único ser vivo naquela terra desconhecida. Nem sequer um passarinho ou um esquilo por entre as árvores. E o bosque estendia-se a perder de vista em todas as direções. Edmundo tiritava de frio. Lembrou-se então de que andava à procura de Lúcia. Lembrou-se também de que a tratara mal por causa desse país imaginário, que de imaginário nada tinha. Talvez ela estivesse ali por perto. Começou a gritar:
– Lúcia! Lúcia! Estou aqui também, o Edmundo!
Mas ficou sem resposta. “Deve estar zangada comigo” – pensou. E embora não lhe agradasse muito reconhecer que procedera mal, também não lhe agradava nada estar sozinho naquele lugar estranho, deserto e frio. Gritou de novo:
– Lu! Estou arrependido por não ter acreditado. Você tinha razão. Pode aparecer. Vamos fazer as pazes.
Mas para si mesmo dizia: “Isso é mesmo coisa de menina. Embirrada num canto por aí, não querendo aceitar minhas desculpas.” Olhou mais uma vez em volta e concluiu que o lugar não lhe despertava muita simpatia. Quase decidido a voltar, ouviu lá longe, no bosque, um tilintar de sinetas. Escutou com atenção. O som ia se aproximando cada vez mais, até que surgiu um trenó, puxado por duas renas.
As renas eram do tamanho de um cavalinho, de pêlo tão branco quanto a neve. Os chifres eram dourados e brilhavam ao sol. Os arreios, de couro escarlate, estavam cheios de sinetas. Conduzindo as renas, sentado no trenó, ia um anão forte que, em pé, não devia ter nem um metro de altura. Vestia peles de urso polar e trazia um capuz vermelho, de cuja ponta pendia uma grande borla dourada; uma comprida barba cobria-lhe os joelhos, servindo-lhe de manta. Atrás dele, em lugar muito mais importante, no meio do trenó, ia sentada uma criatura muitíssimo diferente: uma grande dama, a maior mulher que Edmundo já vira. Estava também envolta em peles brancas até o pescoço, e trazia, na mão direita, uma longa varinha dourada, e uma coroa de ouro na cabeça. Seu rosto era branco (não apenas claro), branco como a neve, como papel, como açúcar. A boca se destacava, vermelhíssima. Era, apesar de tudo, um belo rosto, mas orgulhoso, frio, duro...
Como era bonito o trenó aproximando-se, as sinetas tilintando, o anão estalando o chicote, a neve saltando dos lados!
– Alto! – disse a dama, e o anão deu um puxão tão forte que as renas quase caíram sentadas. Depois ficaram mordendo os freios, arquejantes. No ar gelado, o bafo que lhes saía das narinas parecia fumaça.
– Ei, você! O que é você? – perguntou a dama, cravando os olhos em Edmundo.
– Eu... eu... meu nome é Edmundo — respondeu ele, meio atrapalhado. Não estava gostando nada do jeito dela. A dama franziu as sobrancelhas:
– É assim que você fala a uma rainha?
– Perdão, Majestade, mas eu não sabia.
– Não conhece a rainha de Nárnia!? – exclamou ela, mais severa. – Pois vai passar a me conhecer daqui por diante. Repito: o que é você?
– Queira desculpar, Majestade. Não estou sabendo o que a senhora quer dizer. Eu ainda estou na escola... pelo menos estava... agora estou de férias.

4
MANJAR TURCO


– Mas o que é você? – tornou a rainha. – Por acaso um anão que cresceu demais e resolveu cortar a barba?
– Não, Majestade; eu nunca tive barba, sou ainda um menino.
– Um menino! Quer dizer, um Filho de Adão?
Edmundo ficou parado, sem dizer nada. Já se sentia todo confuso.
– Seja lá o que for, acho que se trata também de um débil mental. Responda logo, se não quer que eu perca a paciência. Você é humano?
– Sou, sim, Real Senhora.
– E como conseguiu entrar nos meus domínios?
Quero saber!
– Por um guarda-roupa, Majestade.
– Por um guarda-roupa? Que história é essa?
– Abri a porta e de repente estava aqui.
– Ah! – disse a rainha, falando mais para si própria do que para ele. – Uma porta! Uma porta no mundo dos homens! Já ouvi falar de coisas parecidas. Pode ser o princípio do fim. Mas ele é um só, e resolverei isso com facilidade.
Levantou-se e fitou Edmundo com olhos afogueados; no mesmo instante, ergueu a varinha. Edmundo sentiu que ela ia fazer qualquer coisa de terrível, mas não foi capaz de dar um passo. Já se considerava perdido, quando ela pareceu mudar de opinião.
– Meu menininho – disse ela, com uma voz muito diferente. – Está gelado! Sente-se aqui no trenó, perto de mim; cubra-se com a minha manta. Vamos conversar um pouco.
Edmundo não gostou muito do convite, mas não teve coragem de desobedecer. Pulou para o trenó, sentando-se aos pés da rainha, que colocou uma dobra da manta em torno dele.
– Que tal uma bebidinha quente? Seria bom, não seria?
– Seria, Majestade – respondeu Edmundo, batendo o queixo.
Lá de dentro dos agasalhos, a rainha tirou uma garrafinha que parecia de cobre. Levantando o braço, deixou cair uma gota na neve. Edmundo viu a gota brilhar, como um diamante, durante um segundo no ar. Mas, no momento em que tocou na neve, produziu um som sibilante, e logo surgiu um copo cheio de um líquido fumegante. Imediatamente, o anão o apanhou, passando-o a Edmundo com uma reverência e um sorriso afável. Depois de ter começado a beber, Edmundo sentiu-se muito melhor. Era uma bebida que nunca tinha provado, muito doce e espumante, ao mesmo tempo espessa, que o aqueceu da cabeça aos pés.
– Beber sem comer é triste, Filho de Adão – disse a rainha. – Que deseja comer?
– Manjar turco, Majestade, por favor – disse Edmundo.
A rainha deixou cair sobre a neve outra gota da garrafa; no mesmo instante, apareceu uma caixa redonda, atada com uma fita de seda verde, que, ao se abrir, revelou alguns quilos do melhor manjar turco. Edmundo nunca tinha saboreado coisa mais deliciosa, tão gostosa e tão leve. Sentiu-se aquecido e bem disposto.
Enquanto ele comia, a rainha não cessava de fazer-lhe perguntas. A princípio, lembrou-se de que é feio falar com a boca cheia, mas logo se esqueceu, absorto na idéia de devorar a maior quantidade possível de manjar turco. E quanto mais comia, mais tinha vontade de comer. Nem quis saber por que razão a rainha era tão curiosa. Aos poucos, ela foi-lhe arrancando tudo: tinha um irmão e duas irmãs; uma das irmãs já conhecia Nárnia e tinha encontrado um fauno; ninguém mais a não ser ele, o irmão e as irmãs sabiam da existência de Nárnia. Ela parecia especialmente interessada no fato de eles serem quatro, voltando sempre ao assunto.
– Tem certeza de que são só quatro? Dois Filhos de Adão e duas Filhas de Eva, nem mais, nem menos?
Edmundo abriu a boca cheia de manjar turco, repetindo:
– É isso mesmo, já disse – esquecendo-se do “Majestade”.
Por fim, acabou-se o que era doce, e Edmundo olhava fixamente para a caixa vazia, louco para que a rainha lhe perguntasse se ainda queria mais. Sabia ela muito bem o que ele estava pensando. E, melhor ainda, sabia que o manjar turco estava encantado: quem o provasse, ficaria querendo sempre mais e chegaria a comer, a comer, até estourar. Mas a rainha, em vez de oferecer mais, disse:
– Filho de Adão, gostaria muito de conhecer seu irmão e suas irmãs. Você é capaz de trazê-los aqui para uma visita?
– Posso tentar – disse Edmundo, olhando ainda para a caixa vazia.
– Porque, se voltar aqui e trouxer seus irmãos, vou dar-lhe mais manjar turco. Agora é impossível, porque o poder mágico só tem efeito uma vez. Se fosse em minha casa, seria diferente.
– E por que não vamos logo para a sua casa?
A princípio, quando subiu no trenó, ficou apavorado com a idéia de que ela o levasse para algum lugar desconhecido, de onde não pudesse voltar nunca mais; agora já nem se lembrava disso.
– Minha casa? Ah, é um lugar maravilhoso! Você iria gostar muito de lá, tenho certeza. Há salas e salas cheias de manjar turco. E, imagine só, eu não tenho filhos! Quem me dera ter um menino para educar como príncipe, e que fosse, depois da minha morte, rei de Nárnia. Enquanto fosse príncipe, havia de usar uma coroa de ouro e comer manjar turco o dia inteirinho. Nunca vi um menino tão inteligente e bonito como você. Sou capaz de fazê-lo príncipe, um dia, quando conseguir que os outros me façam uma visita.
– E por que não pode ser agora? – perguntou Edmundo.
Estava muito corado, com a boca e os dedos melados, e (fosse qual fosse a opinião da rainha) não parecia nem bonito, nem inteligente.
– Ora, se eu o levasse agora, nunca mais você veria seus irmãos. Tenho grande vontade de conhecer todos. Porque você vai ser príncipe e, mais tarde, rei. Já está resolvido. Mas vou precisar também de nobres. Seu irmão será duque, e suas irmãs, duquesas.
– Mas eles não têm nada de mais! – exclamou Edmundo. – De qualquer maneira, eu poderia buscá-los mais tarde.
– É. Mas, depois de entrar em minha casa, poderia esquecê-los. Gostaria tanto, que não mais se lembraria de buscá-los. Agora, escute: vá para a sua terra e volte outro dia; mas com eles, entendeu? Sem eles, não precisa aparecer mais.
– Mas eu nem sei como voltar!
– É muito fácil. Está vendo aquela luz?
Ela apontou com a varinha, e Edmundo viu o lampião junto ao qual Lúcia havia encontrado o fauno.
– É por ali, em linha reta, o caminho do mundo dos homens. Olhe agora para o outro lado – e apontou na direção oposta – e me diga: está vendo aquelas duas colinas lá longe?
– Acho que estou.
– Pois a minha casa fica entre aquelas duas colinas. Quando voltar aqui e achar o lampião, olhe para as colinas e vá andando pelo bosque, até chegar à minha casa. Mas tem de trazer os outros! Vou ficar muito zangada se você vier sozinho!
– Vou fazer o possível – falou Edmundo.
– E outra coisa: nada de falar de mim. Vai ser muito mais engraçado se for um segredo entre nós dois. Não acha? Vamos fazer uma surpresa para eles. Um rapaz inteligente como você vai achar um jeito de trazê-los até a colina; ao passar em frente da casa, pode dizer: “Vamos ver quem mora aqui”, ou qualquer coisa parecida. Será melhor assim. Se sua irmã encontrou um fauno, é possível que tenha ouvido contar histórias estranhas a meu respeito, histórias desagradáveis; pode ter medo de vir aqui. Os faunos falam o que lhes passa pela cabeça, bem sabe disso, e...
– Por favor, Majestade – interrompeu Edmundo de repente –, por favor, não pode me arranjar nem mais um pouquinho de manjar turco para a viagem de volta?
– Não, não – disse a rainha com uma risada. – Você tem de esperar pela próxima vez.
Fez sinal ao anão para avançar, acenando para Edmundo à medida que o trenó se afastava, e gritando-lhe:
– Na próxima vez! Não se esqueça! Volte logo!
Edmundo estava ainda olhando para o trenó, quando ouviu alguém chamá-lo pelo nome. Lúcia corria para ele, vindo do outro lado do bosque.
– Ó Edmundo, você também entrou aqui? Não é formidável?
– Pois é, vejo que você tinha razão: afinal o guarda-roupa é mesmo mágico. Desculpe. Mas onde esteve esse tempo todo?
– Se eu soubesse que você tinha entrado aqui, teria esperado – disse Lúcia, que estava ainda muito agitada e contente para reparar na aspereza com que Edmundo falava. – Estive almoçando com o meu bom amigo, Sr. Tumnus, o fauno. Está muito bem, e a Feiticeira Branca não lhe fez nenhum mal por me ter deixado partir. Talvez ela não tenha desconfiado de nada; afinal de contas, pode dar tudo certo.
– Quem é a Feiticeira Branca?
– Uma pessoa horrorosa. Diz que é a rainha de Nárnia, embora não tenha o direito de ser rainha. E odiada por todos os faunos e dríades e náiades e anões e animais... Pelo menos, pelos que são bons. É capaz de transformar as pessoas em pedra e de fazer mil coisas horríveis. É por causa de um encantamento dela que é sempre inverno em Nárnia, sempre inverno, mas o Natal nunca chega. Ela anda num trenó puxado por duas renas, tem uma varinha na mão e uma coroa na cabeça.
Edmundo, já meio incomodado por ter comido tanto manjar turco, sentiu-se ainda pior ao ouvir dizer que a dama da qual se tornara amigo era uma perigosa feiticeira. Mas, lá no fundo, o que mais desejava era voltar para fartar-se daquele maravilhoso manjar.
– Mas quem é que lhe contou essa história toda?
– O Sr. Tumnus, o fauno.
– Fique sabendo que a gente não deve acreditar em tudo o que dizem os faunos – falou Edmundo, querendo mostrar que sabia muito mais do que Lúcia a respeito de faunos.
– Quem foi que disse?
– Todo o mundo sabe disso; pergunte a quem quiser. Mas o que não está nada bom é este frio. Vamos pra casa.
– Pois vamos. Estou feliz por você ter vindo. Agora eles têm de acreditar. Vai ser engraçado...
Edmundo achou que não seria tão engraçado para ele. Teria de confessar, perante os outros, que Lúcia estava certa, e é claro que Pedro e Susana tomariam logo o partido dos faunos e dos animais. E ele estava quase inteiramente do lado da feiticeira. Além disso, não sabia o que havia de dizer ou como guardar segredo, quando todos estivessem falando de Nárnia.
Já tinham andado muito. De repente sentiram-se rodeados de casacos, em vez de ramos de árvores. Daí a pouco estavam na sala vazia.
– Você está com uma cara horrível, Edmundo – disse Lúcia. – Está passando mal?
– Estou me sentindo muito bem.
Não era verdade. Estava mesmo passando mal. – Vamos ver onde estão Pedro e Susana. Temos muita coisa para contar...

5
OUTRA VEZ DO LADO DE CÁ


Como estivessem ainda brincando de esconder, levou tempo para que Edmundo e Lúcia encontrassem Pedro e Susana. Depois de reunidos todos na sala das armaduras, Lúcia falou:
– Pedro! Susana! É tudo verdade! Edmundo também viu. Há um país fantástico que a gente alcança pelo guarda-roupa. Edmundo e eu estivemos lá. Demos um com o outro no meio do bosque. Conte, Edmundo, conte tudo para eles.
– Que história é essa, Edmundo? – perguntou Pedro.
E agora chegamos a um dos pontos mais terríveis desta história. Até aquele instante, Edmundo tinha-se sentido mal disposto, mal-humorado, aborrecido com Lúcia, porque ela estava certa: mas não tinha resolvido o que fazer. Porém, diante da pergunta de Pedro, decidiu fazer a coisa mais mesquinha e mais ordinária de que se poderia ter lembrado. Decidiu humilhar Lúcia.
– Conta, Edmundo – disse Susana.
Edmundo tomou um ar de grande superioridade, como se fosse muito mais velho do que Lúcia (a diferença era só de um ano), e disse com um risinho de deboche:
– Ah, é mesmo! Eu e Lúcia estivemos brincando, imaginando que era verdade tudo aquilo do país maravilhoso dentro do guarda-roupa. Mas só de brincadeira, é claro. Não existe nada lá.
A coitada da Lúcia olhou para Edmundo e saiu correndo para fora da sala. Ele, que a cada momento se tornava mais maldoso, achou que tinha conseguido uma grande vitória.
– Lá vai ela outra vez. Que há com essa garota? Este é o problema com as crianças pequenas... estão sempre a...
– Cale o bico! – disse Pedro, furioso. – Você está sendo muito malvado com a Lu, desde que ela apareceu com a loucura do guarda-roupa. Você está abusando, querendo humilhá-la por causa disso. E por pura maldade.
– Mas tudo isso é um absurdo! – exclamou Edmundo, um pouco ressentido.
– Pois é isso que está me preocupando. Lu estava muito bem quando saiu de casa. Desde que chegou aqui, parece que não anda muito boa da cabeça. Ou, então, está virando uma grande mentirosa. Seja lá o que for, não adianta você estar sempre zombando dela, chateando-a num dia, para dizer no outro que ela tinha razão.
– Eu acho... eu acho – disse Edmundo, mas não lhe saiu mais nada da boca.
– Não acha nada – disse Pedro. – É maldade sua. Você sempre gostou de portar-se como um cavalo com os mais novos: no colégio você já era impossível.
– Vamos parar com isso – disse Susana. – Não resolve nada ficar discutindo. Vamos procurar a Lúcia.
Estava na cara que Lúcia andara chorando. Nada conseguia consolá-la. Estava absolutamente convencida da verdade da história:
– Não me interessa o que vocês pensam, nem o que vocês dizem. Podem contar tudo ao professor ou escrever para a mamãe. Façam o que quiserem. Tenho a certeza de que encontrei um fauno, e de via ter ficado lá para sempre, porque vocês são uns bestas...
Não foi uma noite nada agradável: Lúcia infeliz; Edmundo sentindo que o seu plano não estava saindo tão bem quanto imaginara. Os dois mais velhos começavam a convencer-se de que Lúcia não estava em seu perfeito juízo. Depois que a irmã foi dormir, ficaram os dois durante muito tempo no corredor, falando em segredo sobre o caso.
Na manhã seguinte, resolveram contar tudo ao professor.
– Depois escreveremos a papai, se o professor achar que Lúcia não está boa da cabeça; não podemos fazer mais do que isso.
– Entrem – disse o professor, ao ouvir as pancadas na porta.
Ofereceu-lhes cadeiras e disse que estava às ordens. Escutou-os com toda a atenção, dedos cruzados, sem interrompê-los até o fim da história. Ficou calado durante muito tempo. Tossiu para limpar a garganta. E disse a coisa que eles menos podiam esperar:
– E quem disse que a história não é verdadeira?
– Oh, mas acontece... – começou Susana; e parou por aí. Via-se pela cara do velho que ele estava mesmo falando sério. Susana tomou coragem e disse:
– Mas Edmundo confessou que eles estavam fingindo.
– Ora, aí está uma coisa – tornou o professor – que precisa ser considerada: e com muitíssima atenção. Por exemplo, se me desculpam a pergunta: qual deles, pela experiência de vocês, é mais digno de crédito, o irmão ou a irmã? Isto é, quem fala sempre a verdade?
– Isto é que é gozado, professor – respondeu Pedro. – Até agora, eu só posso dizer que é a Lúcia.
– E que acha você, minha querida Susana?
– Bem, em casos comuns, penso igual ao Pedro, mas aquela história do bosque e do fauno não pode ser verdade.
– É o que a gente nunca sabe – disse o professor. – Não se deve acusar de mentirosa uma pessoa que sempre falou a verdade; é mesmo uma coisa séria, muito séria.
– Mas o nosso medo não é que ela esteja mentindo – replicou Susana. – Chegamos a pensar se ela não está doente da cabeça...
– Acham que ela está louca? – perguntou, calmamente, o professor. – Podem ficar descansados: basta olhar para ela, ouvi-la um instante para ver que não está louca.
– Mas, então... – disse Susana, e calou-se. Nunca tinha pensado que uma pessoa grande falasse como o professor, e não sabia bem o que havia de pensar de tudo aquilo.
– Lógica! – disse o professor para si mesmo. – Por que não ensinam mais lógica nas escolas? – E dirigindo-se aos meninos declarou: – Só há três possibilidades: ou Lúcia está mentindo; ou está louca; ou está falando a verdade. Ora, vocês sabem que ela não costuma mentir, e é evidente que não está louca. Por isso, enquanto não houver provas em contrário, temos de admitir que está falando a verdade.
Susana olhou para ele muito séria: o professor não estava brincando.
– Mas como é que pode ser verdade, professor?
– E por que você duvida?
– Bem – disse Pedro –, então, se é verdade, por que não encontramos sempre o tal país fantástico ao abrir a porta do guarda-roupa? Não havia nada lá quando olhamos; nem Lúcia teve coragem de fingir que havia.
 – E isso prova o quê? – perguntou o professor.
– Ora, ora, se as coisas são verdadeiras, estão sempre onde devem estar.
– Tem certeza, Pedro?
Ele não foi capaz de responder.
– Mas ela não teve tempo! – disse Susana. – Mesmo que esse país existisse, Lúcia não teve tempo de ir lá. Veio correndo atrás de nós, logo que saímos da sala. Demorou menos de um minuto, e ela diz que passou horas lá.
– Pois é exatamente isso que me faz acreditar na história – disse o professor. – Se, de fato, existe nesta casa uma porta aberta para um outro mundo (e devo dizer que esta casa é muito estranha, e eu mesmo mal a conheço), e se Lúcia conseguiu chegar a esse mundo, não ficaria nada admirado se ela houvesse encontrado lá um tempo diferente; assim, podia muito bem acontecer que, embora ela ficasse muito tempo lá, a gente não percebesse isso no tempo do nosso mundo. Lúcia, na idade dela, não deve saber disso. Logo, se estivesse fingindo, deveria ficar escondida durante mais tempo, para depois contar a mentira.
– Mas, professor, acha mesmo que pode existir outro mundo, em qualquer lugar, tão pertinho?
Será possível?
– É muito possível – disse o professor, tirando os óculos para limpá-los. – Eu gostaria de saber o que estas crianças aprendem na escola! – murmurou para si mesmo.
– Mas o que devemos fazer no momento? – perguntou Susana, que sentia a conversa sair dos eixos.
– Minha querida Susana – disse o professor, fitando ambos com um olhar penetrante –, há um plano ainda não sugerido por ninguém, e que talvez valha a pena experimentar.
– Qual?
– Cada um trate de sua própria vida.
E assim terminou a conversa. Daí por diante, Lúcia sentiu que o ambiente melhorava. Pedro via-se na obrigação de impedir as zombarias de Edmundo. E ninguém tinha vontade de tocar no assunto do guarda-roupa.
Durante algum tempo foi como se as aventuras tivessem chegado a um fim. Mas não foi o que aconteceu.
A casa do professor – da qual ele mesmo tão pouco sabia – era tão antiga e famosa que vinha gente de toda parte para visitá-la. Era dessas que estão indicadas nos guias turísticos e até nos livros de História. E havia motivo para isso, pois corriam sobre ela muitas lendas, algumas mais estranhas do que o caso que estou contando. Quando apareciam turistas, o professor dava licença para verem a casa, e D. Marta, a governanta, servia-lhes de guia, contando o que sabia dos quadros, das armaduras e dos livros raros da biblioteca. A governanta não gostava de crianças, e não admitia que a interrompessem enquanto falava como um papagaio aos visitantes. Logo no primeiro dia (juntamente com muitas outras instruções), tinha dito para Susana e Pedro:
– ...E lembrem-se bem: saiam do caminho quando eu estiver mostrando a casa!
– Como se a gente fosse perder tempo andando atrás dum bando de gente grande! – resmungou Edmundo.
Foi assim que as aventuras começaram outra vez.
Alguns dias depois, estavam Pedro e Edmundo contemplando as armaduras, doidos para desmontá-las, quando as duas meninas entraram na sala como um vendaval:
– Atenção! Aí vem a governanta com um batalhão atrás dela!
– Ordinário, marche! – comandou Pedro. E fugiram pela porta do fundo. Mal tinham penetra do na sala verde, e depois na biblioteca, ouviram vozes mais adiante, pois a governanta havia conduzido os turistas pela escada dos fundos. Assim, ou porque já estivessem meio avoados, ou porque D. Marta estivesse de pé atrás deles, ou ainda por alguma força mágica que os impelia para Nárnia – o certo é que se sentiram perseguidos em toda parte, e Susana exclamou:
– Ora! Vamos para a sala do guarda-roupa até eles passarem. Lá não vai ninguém.
Mal tinham acabado de entrar, ouviram vozes no corredor, e viram a maçaneta da porta mover-se.
– Depressa! – disse Pedro. – Não temos outro lugar. – E abriu de repente o guarda-roupa. Amontoaram-se os quatro lá dentro, sentando-se ofegantes no escuro. Pedro segurou a porta encostada, mas não a fechou completamente: como todas as pessoas de juízo, sabia muito bem que nunca devemos nos fechar dentro de um guarda-roupa.

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