domingo, 17 de julho de 2011

A Megera Domada - Ato I

ATO I
Cena I
(Pádua. Uma praça pública. Entram Lucêncio e Trânio.)
LUCÊNCIO - Trânio, bem sabes que por teus desejos de ver a bela Pádua, ama das artes, vim visitar a
fértil Lombardia, agradável jardim da grande Itália. Com permissão de meu bom pai armado, sua vontade
e tua companhia - fiel servidor, provado bastas vezes - respiremos aqui, e em feliz hora no caminho
ingressemos dos estudos e do saber. Em Pisa tive o berço, muito famosa por seus homens graves. Meu
pai tem lá morada, comerciante com negócios por todo o vasto mundo, Vicêncio, do solar dos
Bentivoglios. O filho de Vicêncio, que educado foi em Florença, às esperanças deve do pai dar
cumprimento, ornamentando sua fortuna com virtuosos feitos. Por isso, Trânio, empregarei o tempo dos
meus estudos com a virtude e a parte dessa filosofia que se esforça para a ventura que a virtude almeja.
Que pensas? Para Pádua vim de Pisa como alguém que deixasse uma lagoa não muito funda, para
projetar-se no mar, sequioso de estancar a sede.
TRÂNIO - Mi perdonate, meu gentil senhor, mas concordo convosco nisso tudo, feliz por ver que
persistis no intento de aspirar as doçuras da fragrante filosofia. Apenas, meu bom mestre, embora
admiradores da virtude, da moral disciplina, não devemos virar estóicos - penso - ou mesmo estacas, nem
ficar tão devotos de Aristóteles que a Ovídio reneguemos como a réprobo. Com vossas relações falai de
lógica mas na prática usual sede retórico. Animai-vos com música e poesia; quanto pedir o estômago,
servi-vos de matemática ou de metafísica. Onde não há prazer não há proveito. Em resumo, senhor: é
aconselhável estudar o que mais vos for do agrado.
LUCÊNCIO - Muito obrigado, Trânio; é bom teu plano. Ah, Biondello! Se em terra já estivesses,
poderíamos tudo já ter pronto numa casa de jeito preparada para os amigos que eu fizer em Pádua. Mas,
paremos. Que gente está chegando?
TRÂNIO - Alguma procissão que vem saudar-nos.
(Entram Batista, Catarina, Bianca, Grêmio e Hortênsio. Lucêncio e Trânio se conservam à parte.)
BATISTA - Deixai de importunar-me, cavalheiros, pois conheceis qual seja o meu propósito, a saber:
não casar minha caçula sem que à mais velha tenha dado esposo. Se vós ambos amais a Catarina, por eu
vos conhecer e estimar muito, permissão tendes de fazer-lhe a corte.
GRÊMIO - Antes cortá-la; para mim é áspera. Então Hortênsio, não quereis esposa?
CATARINA (a Batista) - Por obséquio, senhor, é vosso intento deixar-me encabulada junto destes
candidatos a esposo?
HORTÊNSIO - Oh! candidatos, minha senhora? Que entendeis por isso? Sim, candidatos, quando vos
tornardes mais cândida e gentil.
CATARINA - Não tendes causa, senhor, de tanto medo, que, em verdade, ainda não encontrastes o
caminho para o coração dela. Mas no caso de o achardes, ficai certo, seu primeiro cuidado consistira em
alisar-vos os cabelos com um belo tamborete, pintando-vos o rosto de violete.
HORTÊNSIO - De uma demônia dessas, Deus nos livre!
GRÊMIO - E a mim também, bom Deus!
TRÂNIO - Vede, senhor, que bela brincadeira. É louca a rapariga ou rezingueira.
LUCÊNCIO - Mas no silêncio da outra vejo réstia de branda educação e da modéstia. Silêncio, Trânio!
TRÂNIO - Pois não, senhor. Saciai agora a vista.
BATISTA - Senhores, porque eu possa pôr em prática quanto vos disse... Volta para casa, Bianca. Que
não seja isso, boa Bianca, razão de te agastares. Continuo, minha querida, a te prezar como antes.
CATARINA - Bonequinha mimada! Melhor fora nos olhos dela enfiar os dedos logo. Saberia porquê.
BIANCA - Meu infortúnio, mana, te deixa alegre. Humildemente, senhor, subscrevo quanto decidistes.
Os instrumentos e meu livro hão de fazer-me companhia.
LUCÊNCIO - Escuta, Trânio: não parece que estás a ouvir Minerva?
HORTÊNSIO - Signior Batista, quereis revelar-vos tão estranho a esse ponto? Fico triste por ver Bianca
sofrer por nossa causa.
GRÊMIO - Ides encarcerá-la para gáudio de um demônio infernal, signior Batista? Terá de suportar a
língua da outra?
BATISTA - Senhores, calma. Não altero nada. Bianca, vai para dentro.
(Sai Bianca.)
Como eu sei que a maior delícia dela consiste em música, instrumentos, versos, vou chamar professores
que lhe possam instruir a mocidade. Signior Grêmio, ou vós, Hortênsio, caso conheçais algum, mandai
que me procure logo. Sou sempre amigo das pessoas cultas, nada poupando para dar às filhas gentil
educação. E agora, adeus. Catarina, ficai, pois ainda tenho de conversar à parte com Bianca.
(Sai)
CATARINA - Como! Não ficarei. Por que motivo? Quem me impõe hora disto, hora daquilo? Não
saberei orientar-me, acaso?
(Sai.)
GRÊMIO - Ide para junto da mulher do diabo. Tendes tão altas qualidades que ninguém aqui está
disposto a suportar-vos. Nosso amor, Hortênsio, não é tão grande que não nos permita soprar os dedos
juntos e deixá-lo em jejum. Nosso bolo está cru de ambos os lados. Adeus. Mas pelo amor que dedico à
minha doce Bianca, se encontrar em qualquer parte um professor capaz de ensinar-lhe aquilo em que ela
mais se deleita, encaminhá-lo-ei para o pai dela.
HORTÊNSIO - Farei a mesma coisa, signior Grêmio. Mas uma palavrinha, por obséquio. Muito embora
a natureza de nossa rivalidade não nos tenha permitido até agora nenhum entendimento, depois de refletir
sobre o assunto cheguei à conclusão de que para nosso bem comum - no caso de obtermos de novo
acesso à nossa encantadora amada e de voltarmos a ser os felizes rivais no amor a Bianca - devemos
conjugar esforços para alcançar um determinado fim.
GRÊMIO - E qual é esse fim, por obséquio?
HORTÊNSIO - Ora, senhor! Arranjar um marido para a irmã dela.
GRÊMIO - Um marido? Um demônio.
HORTÊNSIO - Repito: um marido.
GRÊMIO - E eu repito: um demônio. Acreditas mesmo, Hortênsio, que embora o pai dela seja muito
rico, haja algum louco que se disponha a desposar o inferno? HORTÊNSIO - Ora, Grêmio! Conquanto,
meu caro amigo, vá além da vossa e da minha paciência suportar as suas gritarias, há muitos rapazes
bons no mundo - a dificuldade está em sabermos encontrá-los - que se disporiam a aceitá-la com todos os
seus defeitos e com bastante dinheiro.
GRÊMIO - Não sei. Enquanto a mim, fora mais fácil aceitar o seu dote, com a condição de ser
chibateado todas as manhãs no pelourinho.
HORTÊN5IO - É certo. Como dizeis, entre batatas podres não há o que escolher. Mas desde que este
obstáculo legal nos fez amigos, continuemos no mesmo tom até conseguirmos um marido para a filha
mais velha de Batista, deixando, assim, a mais nova sem empecilho para casar-se... E recomecemos a
luta! Adorável! Bianca! Feliz de quem se casar com ela. Quem correr mais depressa, obterá o anel. Que
vos parece, signior Grêmio?
GRÊMIO - Concordo. Desejara ter-lhe feito já presente do melhor cavalo de Pádua, para que ele desse
início às suas pretensões, vindo a conquistá-la de todo, a desposá-la, a deitar-se com ela e a livrar a casa
de sua presença. Saiamos juntos.
(Saem Grêmio e Hortênsio.)
TRÂNIO - Será possível, meu senhor, dizei-me, que predomine o amor assim de súbito?
LUCÊNCIO - Ó Trânio, enquanto eu mesmo o não sentira, não julgara possível nem provável. Mas vê:
estando aqui, sem fazer nada, os efeitos do amor encontrei no ócio, confessando-te agora, lisamente - a ti
que és para mim o que foi Ana para a rainha de Cartago - ó Trânio! abraso-me, definho, morro, Trânio,
se não casar com esta meiga jovem. Aconselha-me, Trânio; sei que o podes. Trânio, ajuda-me; sei que
queres isso.
TRÂNIO - Tempo não é, senhor, de censurar-vos. Não é com ralhos que a afeição se expulsa. Se estais
amando, só vos resta agora Redime te captum, quam queas minimo.
LUCÊNCIO - Obrigado, rapaz. Quanto disseste já me conforta um pouco. O resto me há de deixar
contente, pois dás bons conselhos.
TRÂNIO - Ficastes na contemplação da moça, senhor, tão absorvido, que decerto não observastes o que
mais importa.
LUCÊNCIO - Oh! vi suave beleza no seu rosto, como a da filha de Antenor que outrora Júpiter obrigou a
ser humilde, quando em Creta o levou, na frente dela, com os joelhos a beijar a areia bela.
TRÂNIO - Não vistes nada mais? Não observastes como a irmã dela começou de súbito a soltar
invectivas, levantando tal tempestade que impossível for a ouvido humano suportar o estrondo?
LUCÊNCIO - Vi que ela os lábios de coral movia o ambiente perfumando com seu hálito. Celeste era e
inefável tudo nela.
TRÂNIO - É tempo de tirá-lo de tal êxtase. Acordai, meu caro amo! Se em verdade gostais da rapariga,
pensai logo nos meios de alcançá-la. O caso é este: a irmã mais velha é tão maligna e bruta que enquanto
o pai não se vir livre dela, mestre, solteira vossa amada fica. Por isso ele a trancou a sete chaves, porque
dos importunos se livrasse.
LUCÊNCIO - Trânio, que pai cruel! Mas não notaste que se ocupava em alcançar para ela professores
capazes?
TRÂNIO - Sim, com a breca! notei, e agora já formei meu plano.
LUCÊNCIO - Eu também, Trânio.
TRANIO - Mestre, vou jurar-vos que nossos planos se completam, mesmo.
LUCÊNCIO - Conta-me o teu, primeiro
. TRÂNIO - Disfarçais-vos de professor, para ensinar a moça. Eis vossa idéia.
LUCÊNCIO - Certo. É realizável?
TRÂNIO - Não; quem representara vossa parte de filho de Vicêncio, em Pádua, e em casa ficará
dedicado só a estudos? Quem há de receber os compatriotas, os amigos, e festas aprestar-lhes?
LUCÊNCIO - Basta. Fica tranqüilo; tenho um plano. Não fomos vistos em nenhuma casa; pelo rosto
ninguém nos reconhece como patrão e criado. Assim faremos: vais ter criados e casa, como eu próprio;
vou ser outra pessoa, um florentino, napolitano ou cidadão de Pisa. Já está chocado o plano, vai ser isso.
Não percas tempo, Trânio: tira a roupa, toma meu manto e meu chapéu de cores. Quando Biondello vier,
irá servir-te, sendo que antes preciso industriá-lo para nos dentes não bater com a língua.
(Trocam as respectivas roupas.)
TRÂNIO - Assim terá de ser. Em resumo, senhor: sendo ordens vossas, e estando eu obrigado a
obedecer-vos, pois vosso pai me disse ao nos partirmos: "Fica sempre a serviço de meu filho" embora
outra intenção ele tivesse, tenho certeza - apraz-me ser Lucêncio, por amor de Lucêncio.
LUCÊNCIO - Sê Lucêncio, Trânio, para lhes seres agradável. Quanto a mim, passarei a ser escravo, para
vir a alcançar essa donzela que me feriu os olhos extasiados. Eis o tratante. (Entra Biondello.) Onde
estivestes, biltre?
BIONDELLO - Onde é que estive? Não; dizei, primeiro, onde é que estais. Acaso, mestre, as vestes vos
roubou Trânio? Ou vós as dele? Ou ambos? Que se passou? Dizei-me.
LUCÊNCIO - Não há tempo para gracejos. Vem aqui, maroto. Precisas ajeitar-te às circunstâncias. Para
salvar-me a vida, Trânio assume minha aparência e veste minha roupa, como eu, para escapar, vesti a
dele. Matei um homem mal saltei em terra, e tenho medo de ter sido visto. Ficareis a serviço dele, como
convém, é o que vos digo; e eu daqui logo me afastarei, para salvar a vida. Compreendestes-me bem?
BIONDELLO - Eu, senhor? Nada.
LUCÊNCIO - E nessa boca, nada sobre Trânio. Trânio agora é Lucêncio.
BIONDELLO - Tanto melhor para ele. Desejara também ser ele.
TRÂNIO - O mesmo eu desejara, rapaz, com a condição de que Lucêncio desposasse a caçula de Batista.
Mas não por mim, maroto, por vosso amo, em qualquer sociedade usai comigo de muita discrição.
Sozinho estando, volto a ser Trânio; mas com gente estranha, sou vosso amo Lucêncio.
LUCÊNCIO - Vamos logo, Trânio. Só nos falta pôr em prática uma coisa, que terá de ser feita por ti, que
é apresentares-te também como um dos pretendentes. Se me perguntares porquê, bastará que te diga que
tenho para isso razões boas e de peso.
(Saem. Falam as personagens do prólogo.)
PRIMEIRO CRIADO - Estais cochilando, senhor; não estais prestando atenção à peça.
SLY - Estou prestando, sim, por Santa Ana. É uma bonita história. Ainda vai demorar muito?
PAJEM - Começou agora, senhor.
SLY - É uma excelente obra-prima, madame senhora. Quem dera que já tivesse acabado!
(Sentam-se e continuam a olhar.)

Cena II
(Diante da casa de Hortênsio. Entram Petrucchio e Grúmio.)
PETRUCCHIO - Verona, adeus por uns momentos; quero ver em Pádua uns amigos, e entre todos o mui
querido e dedicado Hortênsio. Sua casa é esta aqui, se não me engano. Grúmio, maroto, bate! Estou
mandando.
GRÚMIO - Bater, senhor? Bater em quem? Alguém ofendeu Vossa Senhoria?
PETRUCCHIO - Maroto, digo: bate-me com força.
GRÚMIO - Bater em vós, senhor? Oh, senhor! Quem sou eu para bater em vós?
PETRUCCHIO - Vamos, maroto; bate-me na porta, se essa cabeça estúpida te importa.
GRÚMIO - Meu amo arruaceiro agora se revela. Mas se eu der nele, farei uso da canela.
PETRUCCHIO - Então, maroto: bates ou não bates? Não? Nesse caso, bato eu sem dó, para ouvir-te
cantar sol, mi, lá, dó.
(Puxa as orelhas de Grúmio.)
GRÚMIO - Socorro, gente! Enlouqueceu meu amo.
(Entra Hortênsio.)
HORTÊNSIO - Que é isso? Que aconteceu? Oh! o meu velho amigo Grúmio e o meu bom amigo
Petrucchio! Como vão todos em Verona?
PETRUCCHIO - Viestes nos separar, Hortênsio amigo? Con tutto il cuore ben trovato, digo.
HORTÊNSIO - Alla nostra casa ben venuto, molto honorato signior mio Petrucchio. Vamos, Grúmio,
levanta-te; acalmai-vos.
GRÚMIO - Não; pouco importa tudo quanto ele possa dizer em latim. Se isso não for um motivo legal
para eu deixar o serviço dele... Ora vede, senhor, ele mandou que eu batesse nele, que o surrasse com
força. E agora dizei-me se fica bem para um criado proceder dessa maneira com o patrão, uma pessoa
que, pelos meus cálculos, já terá seus trinta e dois anos? Mas se com força assim tivesse feito, saíra
Grúmio alegre deste pleito.
PETRUCCHIO - Estúpido maroto. Caro Hortênsio, mandei que ele batesse em vossa porta, sem poder
conseguir o que almejava.
GRÚMIO - Bater na porta? Oh céus! Pois não me ordenastes claramente: "Bate-me aqui, maroto; bate
em mim com bem força, bate sem piedade?" E agora vos saís com esse "bater na porta?"
PETRUCCHIO - Saí logo, maroto, é o que vos digo.
HORTÊNSIO - Calma, Petrucchio; sou penhor de Grúmio. Oh! que pendência séria entre vós e ele,
vosso bom Grúmio criado antigo e sério! Mas, caro amigo, que suave brisa vos trouxe a Pádua, de
Verona antiga?
PETRUCCHIO - A que os mancebos pelo mundo espalha em busca de fortuna, pois em casa não há
oportunidade. Resumindo, signior Hortênsio, a coisa é como segue: morreu meu pai, Antônio, tendo
agora saído eu sem destino, tencionando casar bem e vencer do melhor modo. Ouro tenho na bolsa; bens,
na pátria. Assim, viajo para ver o mundo.
HORTÊNSIO - Petrucchio, deverei, sem mais rodeios, apresentai-te a uma mulher ferina? Não me
agradecerias o conselho. Mas posso asseverar-te que ela é rica; sim, muito rica. Mas és meu amigo; não
convém que a desposes.
PETRUCCHIO - Entre amigos, signior Hortênsio, não se fala muito. Se conheces alguém bastante rica
para que esposa de Petrucchio seja - pois o ouro tilintar na dança deve do casamento dele - embora seja
tão feia como a amada de Florêncio, velha como a Sibila, tão maligna e impertinente como a própria
esposa de Sócrates, Xantipa, ou mesmo pior: não poderá deixar-me transformado nem embotar de meu
afeto o gume, embora seja como o mar Adriático, quando se altera. Vim para casar-me, para uma noiva
rica achar em Pádua; sendo rica, feliz serei em Pádua.
GRÚMIO - Ora vede, senhor; ele vos diz francamente o que pensa. Sendo assim, dai-lhe ouro bastante e
casai-o com uma boneca, ou com um figurino, ou com uma velha que não tenha um só dente na boca,
muito embora tenha tantas doenças como cinqüenta e dois cavalos reunidos. Tendo dinheiro, para ele
tudo estará bem.
HORTÊNSIO - Bom Petrucchio, uma vez que andamos tanto, vou prosseguir no que era, de começo,
somente brincadeira. Tenho meios, Petrucchio, de ensejar-te uma consorte bastante rica, mui formosa e
jovem, e educada no jeito de fidalga. Seu único defeito - e que defeito! - é ser intoleravelmente brava,
teimosa e cabeçuda sem medida, a tal ponto que, embora meus haveres fossem menores, não a desposara
por uma mina de ouro.
PETRUCCHIO - Basta, Hortênsio! Não conheces o efeito do dinheiro. Dize-me o nome do pai dela, e
pronto. Vou abordá-la, muito embora alterque mais alto que o trovão, quando rebenta no outono a
tempestade.
HORTÊNSIO - O pai da jovem é Batista Minola, gentil-homem cortês e afável sendo o nome dela
Catarina Minola, em toda Pádua famosa pela língua ralhadora.
PETRUCCHIO - Conheço o pai, embora a não conheça; foi muito amigo de meu pai defunto. Não
durmo, Hortênsio, sem a ver primeiro. Ireis perdoar-me, assim, a liberdade, logo ao primeiro encontro, de
deixar-vos, salvo se fordes até lá comigo.
GRÚMIO - Peço-vos, senhor, deixai-o ir, enquanto ele está com essa disposição. Por minha alma, se ela
o conhecesse tão bem quanto eu, saberia que no caso dele de nada valem as recriminações. Ela poderá,
tal vez, chamá-lo umas dez vezes de biltre ou coisa assim. Não lhe fará mossa nenhuma. Uma vez
entrado na dança, ele recorrerá ao vocabulário próprio. Vou dizer-vos uma coisa, senhor: por pouco que
ela lhe resista, ele lhe marcará o rosto com uma figura que a deixará tão desfigurada como um gato sem
olhos. Não o conheceis, senhor.
HORTÊNSIO - Petrucchio, espera um pouco; iremos juntos, pois com Batista se acha meu tesouro; de
minha vida a jóia está com ele: sua filha mais nova, a bela Bianca, que de mim ele afasta e de outros
muitos pretendentes, rivais no meu afeto. Por julgar impossível - em virtude dos defeitos há pouco
relatados - que a Catarina alguém escolher possa, determinou Batista deste modo: que ninguém tenha
acesso à bela Bianca sem que venha a casar-se Catarina.
GRÚMIO - Catarina goela: o pior nome para uma donzela.
HORTÊNSIO - Fazei-me ora um favor, caro Petrucchio: ireis apresentar-me, tendo eu posto vestes
sóbrias, ao velho pai de Bianca, como perito professor de música, para lhe dar lições. Com esse plano,
terei vagar e liberdade, ao menos, de, sem suspeita, lhe fazer a corte.
GRÚMIO - Não há nenhuma velhacaria nisso. Vede como os moços sabem juntar as cabeças para
enganarem os velhos. Patrão, patrão, olhai para trás! Quem é que vem chegando?
(Entram Grêmio e Lucêncio, disfarçados, sobraçando livros.)
HORTÊNSIO - Silêncio, Grúmio. Meu rival é este. Petrucchio, fica à parte.
GRÚMIO - Um belo mancebo, e, ainda por cima, apaixonado.
GRÊMIO - Oh, muito bem! Já examinei a conta. Ora me ouvi, senhor: quero que todos sejam
encadernados ricamente; livros de amor, somente, tomai nota; não deveis ler-lhe nenhum outro assunto.
Compreendestes-me? Além dos que obtiverdes da liberalidade de Batista, vos farei donativos generosos.
Tomai vossos papéis; é necessário que perfumados sejam suavemente, pois mais suave ela é do que os
perfumes a que são destinados. Que ireis ler-lhe?
LUCÊNCIO - Seja o que for, podeis estar certíssimo de que defenderei a vossa causa como se fôsseis
vós; sim, talvez mesmo com palavras de muito mais efeito, salvo se fôsseis, meu senhor, um sábio.
GRÊMIO - Oh! que coisa é a ciência!
GRÚMIO - Oh! que animal é esta galinhola!
PETRUCCHIO - Silêncio, maroto.
HORTÊNSIO - Grúmio, caluda. Signior Grêmio, salve!
GRÊMIO - Feliz encontro, meu signior Hortênsio. Não suspeitais para onde vou? A casa de Batista
Minola. Prometi-lhe que havia de esforçar-me na procura de um professor para a formosa Bianca. E tive
sorte; achei este mancebo que, pelo seu saber e competência, muito se recomenda. Lê poesia e outros
livros; só bons, posso afiançar-vos.
HORTÊNSIO - Muito bem; e eu achei um gentil-homem que ficou certo de arranjar-me um outro,
músico, próprio para nossa amada. Assim, não fico atrás no que me cumpre fazer à bela Bianca tão
querida.
GRÊMIO - Por mim querida, como vou prová-lo.
GRÚMIO (à parte) - Quem vai prová-lo é a bolsa dele.
HORTÊNSIO - Ocasião não é de ventilarmos, Grêmio, nossa afeição. Se me escutardes e usardes de
franqueza, vou contar-vos algo que para os dois é de importância. Por acaso encontrei este mancebo que
conosco concorda mui de grado em cortejar a fera Catarina, em desposá-la, mesmo, caso o dote dela for
conveniente.
GRÊMIO - Dito e feito; muito bem. Revelaste-lhe os defeitos, Hortênsio, da donzela?
PETRUCCHIO - Sei que é brusca, rilhenta a conta inteira. Se é só isso, meus senhores, não vejo
inconveniente.
GRÊMIO - Nenhum, amigo? De que terra sois?
PETRUCCHIO - De Verona; do velho Antônio, filho. Morreu meu pai; mas vive meu dinheiro; viver
pretendo agora prazenteiro.
GRÊMIO - Prazenteiro, com uma fúria dessas? Fora estranho. Porém se assim quiserdes, seja, em nome
de Deus. Haveis de ter-me como auxiliar em tudo. Mas é certo: namorareis aquela gata brava?
GRÚMIO - Se ele lhe fará a corte? Caso contrário, a enforcarei.
PETRUCCHIO - Por que vim cá, senão para isso mesmo? Pensais que um ruidozinho me ensurdece? Já
não ouvi rugirem leões há tempos? Já não ouvi o mar, que o vento empola, bramir como javardo
enfurecido, suando de espumar? As baterias já não ouvi, acaso, na campanha, e a artilharia arrebentar das
nuvens? Nos grandes prélios já não tenho ouvido nitrir cavalos, ressoar trombetas, não cessar nunca o
alarma, para virdes da língua me falar de uma donzela, que não chega a fazer tanto barulho como a
castanha no fogão do rústico? Ora! Espantalho é só para criança.
GRÚMIO (à parte) - Disso ele não tem medo.
GRÊMIO - Hortênsio, escuta! Este senhor chegou em feliz hora. Tenho o pressentimento de que veio
para o bem dele e nosso.
HORTÊNSIO - Assegurei-lhe nossa ajuda nisso, com lhe pagarmos todas as despesas.
GRÊMIO - Pois não, contanto que ele a alcance mesmo.
GRÚMIO (à parte) - Quisera ter tanta certeza disso como de um bom jantar.
(Entram Trânio, ricamente trajado, e Biondello.)
TRÂNIO - Deus vos guarde, senhores. Informai-me, por obséquio, o caminho mais direto para ir à casa
do signior Minola.
BIONDELLO - O que tem duas filhas mui formosas?
TRÂNIO - Justamente, Biondello.
GRÊMIO - Um momentinho, senhor. Decerto não falais da filha...
TRANIO - Filha ou filho, quem sabe? E vós com isso?
PETRUCCHIO - Não a briguenta, quero crer, amigo.
LUCÊNCIO (à parte)- Bem começado, Trânio!
HORTÊNSIO - Outro momento: sobre essa jovem, qual é o vosso intento?
TRÂNIO - E vós com isso?
GRÊMIO - Nada, certamente, se sairdes calado incontinenti.
TRÂNIO - Não é livre esta rua, ou esta viela, para nós ambos?
GRÊMIO - Certo; mas não ela.
TRÂNIO - E a razão, por obséquio? GRÊMIO - É muito simples: foi esc
olhida pelo signior Grêmio.
HORTÊNSIO - Também o foi pelo signior Hortênsio.
TRÂNIO - Devagar, meus senhores. Se fidalgos sois, em verdade, ouvi-me com paciência, fazendo-me
justiça. Cavalheiro muito nobre é Batista, a quem de todo meu pai não é estranho; e embora a filha dele
fosse mil vezes mais bonita, podia ter bastantes namorados, e, entre eles, eu. A filha da formosa Leda
teve um milhão de pretendentes. Logo, mais um vai ter a bela Bianca. Assim será. Lucêncio não desiste,
mesmo que venha Páris, lança em riste.
GRÊMIO - Como! Este cavalheiro vai meter-nos a todos no chinelo.
LUCÊNCIO - Dai-lhe corda, senhor, que acabará por enroscar-se.
PETRUCCHIO - Hortênsio, a que vem tanto palavrório?
HORTÊNSIO - Permiti-me a ousadia da pergunta: vistes já acaso a filha de Batista?
TRÂNIO - Jamais, senhor; mas soube que tem duas: uma, formosa pela língua afiada; a outra, pela
modéstia, encantadora.
PETRUCCHIO - A primeira, senhor, soltai; é minha.
GRÊMIO - Pois não; deixo o trabalho para esse Hércules; que lhe seja maior que os outros doze.
PETRUCCHIO - Permiti que vos fale com franqueza. Das duas filhas a mais moça, aquela que desejais
pescar, foi excluída pelo pai do convívio dos rapazes, afirmando ele que a nenhum a entrega sem que a
filha mais velha a casar venha. Livre será então; não antes disso.
TRÂNIO - Se for assim, senhor, sendo vós o homem que nos irá favorecer a todos, eu inclusive, quebrai
logo o gelo, realizai logo a proeza de a mais velha conquistar, e a mais moça deixai livre por que todos
possamos cortejá-la. O que a alcançar não há de ser, decerto, tão desgracioso que se mostre ingrato com
relação a vós.
HORTÊNSIO - É mui sensato quanto dizeis, senhor. E já que vindes também como aspirante à mão da
jovem, deveis gratificar, como nós outros, esse senhor, de quem nos confessamos devedores eternos.
TRÂNIO - Cavalheiro, sovina não serei; e como prova vos convido a passar comigo a tarde, para brindes
à moça levantarmos. Como advogados procedamos nisso, os quais, embora com calor discutam, depois
comem e bebem como amigos.
GRÚMIO E BIONDELLO - Oh! que excelente idéia! Amigos, vamos.
HORTÊNSIO - Petrucchio, a idéia pode dar bom fruto. Serei agora vosso ben venuto.
(Saem.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário