quarta-feira, 27 de julho de 2011

As Crônicas de Nárnia 2 - O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, Capítulos 11 ao 15

11
A APROXIMAÇÃO DE ASLAM


Enquanto isso, Edmundo estava cada vez mais descontente da vida. Quando o anão desapareceu para aprontar o trenó, esperava que enfim a feiticeira voltasse a ser boazinha, como no primeiro encontro. Mas nem abriu a boca, a malvada. Edmundo juntou todas as suas energias para dizer:
– Majestade, não poderia dar-me um pouquinho de manjar turco? A senhora... a senhora disse...
Foi logo interrompido:
– Silêncio, debilóide humano!
Depois pareceu mudar de idéia e, como se falasse para si mesma, disse:
– Mas não me convém que este fedelho tenha um chilique no caminho. – E bateu palmas.
Apareceu um outro anão.
– Dê de comer e beber ao debilóide humano.
O anão voltou daí a pouco com uma tigela de ferro contendo água e um pedaço de pão seco num prato também de ferro. Exibiu um repelente sorriso de escárnio ao colocar as coisas no chão:
– Manjar turco para o principezinho! Ah! Ah! Ah!
– Tire esse troço daí! – ordenou Edmundo mal-humorado. – Nunca comi pão seco em minha vida.
Mas a feiticeira voltou-se para ele com uma cara tão terrível que o menino pediu desculpas e começou a mordiscar o pão, tão duro que mal lhe descia pela garganta.
– E fique contente com isso, por enquanto – disse a feiticeira.
Edmundo não tinha acabado de mastigar, quando o primeiro anão veio avisar que o trenó estava pronto. A feiticeira ordenou a Edmundo que a seguisse. A neve caía de novo quando chegaram ao pátio, mas ela nem notou, obrigando Edmundo a sentar-se a seu lado no trenó. Antes da partida, chamou Maugrim, que se aproximou aos saltos, como um cão gigante.
– Escolha o mais rápido dos seus lobos e parta imediatamente com ele para a casa dos castores. Mate tudo o que encontrar por lá. Se já tiverem partido, siga para a Mesa de Pedra a toda a velocidade, sempre sem ser visto. Depois esconda-se e espere por mim. Tenho de andar muitas léguas para o poente até encontrar um lugar onde atravessar o rio. Pode ser que você encontre criaturas humanas antes de chegar à Mesa de Pedra. Nesse caso, já sabe o que fazer!
– Ouvir é obedecer, ó rainha – rosnou o lobo, desaparecendo imediatamente na escuridão, veloz como um cavalo em disparada.
Dentro de dez minutos, acompanhado de outro lobo, chegava ao dique, farejando a casa dos castores. Nada encontraram, naturalmente. Teria sido horrível para os castores e as crianças se não tivesse começado a nevar, pois os rastos estariam visíveis... e quase certamente teriam sido apanhados antes de chegar à caverna.
Enquanto isso, o anão castigava as renas. A feiticeira e Edmundo, passando por debaixo do arco, penetraram na escuridão gelada. Para Edmundo, que nem tinha casaco, foi uma viagem horrorosa. Quinze minutos depois, já estava todo coberto de neve. Desistiu até de sacudi-la, pois não adiantava nada. E sentia-se tão cansado! Estava molhado até os ossos. Como se sentia desgraçado! A feiticeira não tinha a intenção de torná-lo rei. Via agora a burrice que fora tentar convencer a si mesmo de que ela era boa pessoa e que tinha razão. Naquele momento, daria tudo para estar com os outros... até com Pedro! Só tinha um consolo: pensar que tudo não passava de um sonho, e que podia acordar de um momento para outro. A medida que as horas corriam, tudo acabou mesmo por lhe parecer um sonho.
Seria preciso muitas páginas para descrever essa viagem. Mas vou dar um grande salto e passar para o momento em que a neve cessou de cair e eles deslizavam com a luz do dia. Foram seguindo sempre, sempre, num silêncio apenas cortado pelo chiar da neve e pelo estalar dos arreios. De repente, a feiticeira exclamou:
– O que é aquilo? Parem!
Pararam.
Edmundo aguardou ansioso que ela falasse em almoço. Mas era outra coisa. A pouca distância, debaixo de uma árvore, estava um grupinho alegre, do qual faziam parte um esquilo, com a mulher e os filhos, dois sátiros, um anão e uma velha raposa. Todos sentados em banquinhos em volta de uma mesa. Edmundo não conseguiu distinguir a comida, mas o cheiro era uma delícia e pareceu-lhe ver decorações próprias da época de Natal. E não chegou a ter muita certeza se viu ou não algo parecido com um pudim de passas. Quando o trenó parou, a raposa, que era a mais velha entre os presentes, tinha acabado de levantar-se e erguia uma taça na pata dianteira, preparando-se para dizer algumas palavras. Mas, logo que os membros do grupo viram o trenó parar e compreenderam quem ia nele, a alegria sumiu. O esquilo pai deteve o garfo a meio caminho da boca; um dos sátiros parou o garfo já dentro da boca; e os esquilinhos começaram a berrar de medo.
– Que audácia é essa? – perguntou a Feiticeira Branca sem obter resposta. – Falem, seus vermes! Ou preferem que o meu anão lhes abra o bico na ponta do chicote? Que esganação é essa? Onde é que foram arranjar esses enfeites? E esse pudim de passas?
– Perdão, Majestade – disse a raposa. – São presentes que recebemos. Se Vossa Majestade permite, bebo à saúde...
– Quem deu tudo isso?
– Foi o Pa... foi o Pa... foi o Pa-pai No-el – gaguejou a raposa.
– Quem?! – rugiu a feiticeira, saltando do trenó e chegando perto dos pobres animais apavorados. – Mas ele não esteve aqui! Não pode ter estado aqui! Como se atreve... Mas, se for mentira, está perdoada...
Um dos esquilinhos perdeu então a cabeça, inteiramente:
Teve aqui... teve aqui... teve aqui, sim, senhora! – E tascava a colher de madeira na mesa.
Edmundo viu a feiticeira morder os lábios com tanta força que uma manchinha de sangue pintou sua face pálida. Depois, ela levantou a vara mágica.
– Oh, não! Não! Por favor! – implorou Edmundo.
Mal disse e, onde pouco antes estivera aquela turminha alegre, viam-se agora estátuas de bichos (um deles com o garfo de pedra a meio caminho da boca de pedra), todos sentados em torno de uma mesa de pedra, sobre a qual estavam colocados pratos de pedra e um pudim feito da mesmíssima pedra.
– E você – disse a feiticeira, dando em Edmundo uma bofetada que o deixou tonto – aprenda a não pedir misericórdia para espiões e traidores. Vamos!
Edmundo, pela primeira vez desde que esta história começou, sentiu pena de alguém que não fosse ele mesmo. Pareceram-lhe tão dignas de dó aquelas figurinhas de pedra, sentadas ali, entra ano sai ano, dias de silêncio, noites de escuridão, até que o musgo as cobrisse e os séculos as desfizessem em pó!
Puseram-se a correr novamente, e então Edmundo reparou que a neve era muito mais úmida que na noite anterior. Reparou também que sentia muito menos frio e que um pouco de nevoeiro ia-se formando. E o trenó já não deslizava com tanta rapidez. Pensou a princípio que as renas estivessem cansadas, mas logo compreendeu que a verdadeira razão não era essa. O trenó balançava, sacudido por solavancos, como se estivesse batendo em pedras. E por mais que o anão as chicoteasse, as renas avançavam cada vez mais lentamente. Ao mesmo tempo, havia um ruído estranho em torno, mas o barulho da corrida e os tropeções e os gritos do anão não permitiam a Edmundo perceber o que era. Até que, de repente, o trenó ficou enterrado e não mais andou. Um momento de silêncio. E, no silêncio, o menino pôde prestar atenção ao ruído: era um som estranho, agradável, cantante, sussurrante... No fim das contas, não era assim tão estranho: tinha ouvido aquilo antes... mas não sabia dizer onde. Lembrou-se de repente. Era barulho de água corrente. Por toda parte, invisíveis, corriam fios de água – cochichando, conversando, cantando, borbulhando e até rugindo, distante. E o coração de Edmundo deu um pulo (mesmo sem saber o motivo) quando ele verificou que não havia mais geada. Gotejava dos ramos. Ao examinar atentamente uma árvore, viu desprender-se dela uma pesada crosta de neve: era a primeira vez, desde que entrara em Nárnia, que via o tronco de um abeto. Já não teve tempo de observar, porque a feiticeira gritou:
– Não fique aí de boca aberta, seu paspalhão! Ajude-me!
Edmundo teve de obedecer. Pulou para a neve – que era uma lama líquida – e começou a ajudar o anão a puxar o trenó do buraco lamacento. Conseguiram, por fim. O anão, tratando cruelmente as renas, fez com que avançassem um pouco mais. A neve agora derretia-se pra valer; tapetes de relva começavam a surgir em todas as direções. Se você nunca viu um mundo de neve por tanto tempo, como Edmundo, não poderá compreender o alívio que eram aquelas manchas verdes, depois das grandes e brancas solidões. Mas o trenó parou de novo.
– Não há nada a fazer! – exclamou o anão. – Não podemos continuar de trenó com a neve se derretendo.
– Então vamos a pé – declarou a feiticeira.
– Não conseguiremos apanhá-los – resmungou o anão. – Estão muito na frente.
– É meu conselheiro ou meu escravo? É uma ordem: amarre as mãos do debilóide humano nas costas e segure a ponta da corda. Pegue o chicote e solte as renas, que elas hão de achar o caminho.
O anão obedeceu. Edmundo foi forçado a andar com a rapidez que as pernas lhe permitiam, com as mãos amarradas para trás. Escorregava na neve derretida, na lama, na relva úmida, e, cada vez que isso acontecia, o anão soltava uma imprecação, às vezes acompanhada de uma chicotada. Atrás, a feiticeira ia repetindo:
– Mais depressa! Mais depressa!
Os tapetes relvados iam aumentando e as extensões nevadas diminuíam. De minuto a minuto, outras árvores decidiam sacudir os mantos alvos de neve. Não tardou que, para onde quer que se olhasse, em vez de vultos brancos, surgissem o verde-escuro dos abetos e os ramos negros e espinhosos dos carvalhos, das faias, dos olmos. Depois, o nevoeiro de branco passou a dourado, até desaparecer por completo. Deliciosos raios de sol projetavam-se sobre a floresta, enquanto, lá no alto, o céu azul olhava entre as copas das árvores. Outras coisas maravilhosas foram acontecendo. Numa clareira de plátanos prateados, o chão estava todo coberto de florzinhas amarelas; o ruído das águas, cada vez mais forte. Ali perto passava um riacho; do outro lado desabrochavam narcisos.
– Deixe as flores de lado! – repreendeu o anão, vendo que Edmundo virava a cabeça a toda hora, e deu um puxão perverso na corda.
Mas Edmundo continuava vendo. Botões de açafrão cresciam em torno de uma velha árvore, em tons de ouro, púrpura e branco. E chegou uma música ainda mais deliciosa que o murmúrio das águas. Empoleirado num ramo, um passarinho começou a chilrear. Um outro respondeu mais adiante. Como se fosse um sinal, ouviram-se trinos e gorjeios por toda parte e todos começaram a cantar ao mesmo tempo. Em poucos minutos, o bosque ressoava com a música da passarada. Eram passarinhos por todos os recantos, pousando nas margens, levantando vôo para o céu, perseguindo uns aos outros, discutindo, alisando as penas com o bico.
– Mais depressa! Mais depressa!
O céu estava todo azul; só de vez em quando umas nuvens brancas passavam, apressadas. Nas grandes clareiras havia malmequeres. A brisa leve atirava gotas de orvalho dos ramos oscilantes no rosto de Edmundo. As árvores voltavam à vida, algumas vestidas de verde, outras cobertas de dourado. Uma abelha atravessou o caminho zumbindo.
– Isso não é degelo – disse o anão, parando de repente. – É a própria primavera! E agora, que vamos fazer? O seu inverno está sendo destruído, Majestade! Não há dúvida alguma! Só pode ser obra de Aslam!
– Se alguém mencionar de novo esse nome, morre imediatamente! – esbravejou a feiticeira.

12
A PRIMEIRA BATALHA DE PEDRO


A dez quilômetros de distância da feiticeira, os castores e as três crianças caminhavam no que lhes parecia o melhor dos sonhos. Havia muito que tinham abandonado os casacos. Tinham deixado até de dizer uns aos outros:
– Um pica-pau! Que lindas campânulas! Que perfume maravilhoso! Como canta bem aquele passarinho!
Caminhavam em silêncio, passando de clareiras inundadas de sol para bosques frescos e verdejantes, voltando para planuras cheias de musgos e olmos gigantescos.
A surpresa tinha sido tão grande para eles como para Edmundo, ao verem o inverno sumir e o bosque mudar, como se o tempo tivesse dado um grande salto. Nem mesmo sabiam ao certo (ao contrário da feiticeira) que era isso mesmo que devia acontecer quando Aslam chegasse a Nárnia. Mas sabiam todos que, por encantamento dela, surgira o inverno sem fim. Quando a primavera mágica começou, todos concluíram que alguma coisa estava falhando, desastrosamente falhando, nos planos da feiticeira. Chegaram a compreender com alegria que a feiticeira já não poderia usar o trenó. Deixaram de andar tão depressa e se deram ao luxo de descansos mais freqüentes e demorados. Também já estavam cansados, exaustos não, mas cansados, meio molengas e distraídos, mas muito calmos por dentro, como acontece quando se chega ao fim de um longo dia ao ar livre. Susana tinha uma pequena bolha no pé.
Tinham deixado de seguir o rio e viraram um pouco para o sul, onde ficava a Mesa de Pedra. Mesmo que não fosse o caminho certo, teria sido impossível continuar pelo vale durante o degelo, porque, com toda a neve que derretia não demorou para que o rio transbordasse e a corrente caudalosa inundasse a vereda por onde seguiam. O sol declinava, a luz ficava mais vermelha, as sombras alongavam-se e as flores já começavam a pensar em dormir.
– Falta pouco – disse o Sr. Castor, guiando-os encosta acima sobre o musgo macio da primavera (tão fofinho sob os pés cansados) para um lugar onde só existiam árvores muito altas e espaçadas. Estavam ofegantes quando chegaram ao topo. Eis o que viram.
Encontravam-se numa grande clareira verde, abraçada por uma floresta que se estendia a perder de vista em todas as direções, menos em frente. Porque aí, longe, no oriente, alguma coisa cintilava e fazia ondas.
– O mar! Puxa! – murmurou Pedro para Susana.
No centro da clareira estava a Mesa de Pedra. Era uma grande pedra cinzenta, bem tosca, sustentada por outras quatro. Parecia muito antiga e estava toda gravada com linhas e figuras esquisitas, caracteres talvez de uma língua desconhecida. Dava uma sensação estranha olhar para ela. Em seguida viram, a um canto, uma barraca armada, um pavilhão magnífico, sobretudo quando os raios do sol incidiam sobre ele. Estava revestido de alguma coisa que parecia seda amarela, cordões vermelhos e cavilhas de marfim; flutuando no alto de uma haste, uma flâmula com um leão rubro, agitada pela brisa do mar. Ouviram música, que vinha da direita. Voltaram-se e viram enfim o que desejavam ver.
Aslam estava em pé, cercado por uma multidão de seres, que o rodeavam em semicírculos. Havia espíritos que moram nas árvores e espíritos dos bosques e fontes (dríades e náiades, como são chamados em nosso mundo). Levavam nas mãos instrumentos de corda. Eram eles que tocavam. Viam-se também quatro grandes centauros: uma das metades lembrava um cavalo grande, enquanto a metade humana parecia um gigante de expressão séria, mas bonita. Havia ainda um unicórnio e um touro com cabeça de homem, um pelicano, uma águia e um cachorro enorme. E, ladeando Aslam, dois leopardos seguravam, um, a coroa, e outro, a insígnia.
Quanto ao próprio Aslam, nem as crianças, nem os castores souberam o que fazer ou dizer ao vê-lo. Quem nunca esteve em Nárnia há de achar que uma coisa não pode ser boa e aterrorizante ao mesmo tempo. Os meninos entenderam logo. Pois, quando tentaram olhar para Aslam de frente, só conseguiram ver de relance a juba de ouro e uns grandes olhos, régios, soleníssimos, esmagadores. Depois, já não tiveram forças para olhar e começaram a tremer como varas verdes.
– Avante! – disse bem baixinho o Sr. Castor.
– Não! – murmurou Pedro. – Vá primeiro.
– Não! Os Filhos de Adão devem ir antes dos bichos – disse o castor, sempre baixinho.
– Susana... – sussurrou Pedro. – Que tal você?
As damas primeiro.
– Não! Você é o mais velho.
Quanto mais demoravam, mais perturbados se sentiam. Pedro acabou compreendendo que lhe cabia ser o primeiro. Levantou a espada em saudação, dizendo apressadamente aos outros:
– Venham! Não tenham medo!
Avançou para o Leão e disse:
– Estamos aqui, Aslam!
– Seja bem-vindo, Pedro, Filho de Adão – respondeu Aslam. – Bem-vindas, Susana e Lúcia, Filhas de Eva. Bem-vindos, Sr. e Sra. Castor.
A voz, profunda e generosa, teve o efeito de um calmante. Ficaram alegres e animados, não mais perturbados por estarem ali sem dizer uma palavra.
– Mas por onde anda o quarto humano? – perguntou Aslam.
– Quis traí-los e aderiu à Feiticeira Branca, Aslam – respondeu o Sr. Castor.
Num impulso, Pedro disse:
– Em parte, foi culpa minha, Aslam. Fiquei zangado com ele...
Aslam nada disse; ficou simplesmente olhando para Pedro com os seus olhos enormes.
– Por favor... Aslam – disse Lúcia –, não podemos fazer algo para salvar Edmundo?
– Faremos o que for preciso. Mas pode ser mais difícil do que você pensa.
O Leão guardou silêncio por certo tempo. Lúcia então reparou que sua expressão (apesar de imponente, régia e calma) também era triste. Mas a tristeza não demorou muito. Ele sacudiu a juba, bateu as patas (“Que terríveis patas seriam” – pensou Lúcia – “se ele não soubesse como torná-las macias!”) e disse:
– Enquanto isso, preparem o festim! Senhoras, levem para a barraca real estas Filhas de Eva e tomem conta delas.
Afastadas as meninas, Aslam pousou a pata (apesar de aveludada, muito pesada) em cima do ombro de Pedro:
– Venha, Filho de Adão; vou mostrar-lhe o palácio onde um dia será rei.
Ainda empunhando a espada desembainhada, Pedro acompanhou o Leão ao extremo leste do topo da colina. O Sol se punha por detrás deles: embaixo, estendiam-se a floresta, montanhas, vales e o rio a colear como uma serpente de prata. Além, muito além, ficava o mar; além do mar, o céu, coberto de nuvens avermelhadas pelo pôr-do-sol.
Onde o país de Nárnia se encontra com o mar – na foz do grande rio – brilhava alguma coisa no alto de uma colina. Era um castelo com todas as janelas voltadas para Pedro e para o poente, refletindo a luz do Sol. Parecia uma estrela imensa a descansar na praia.
– Aquilo, ó humano, é Cair Paravel, dos quatro tronos, num dos quais você há de sentar-se como rei. É o primeiro a vê-lo por ser o primogênito; e será o Grande Rei, acima de todos os outros.
Pedro não chegou a falar: um ruído estranho feriu o silêncio. Era como um som de clarim, só que mais impressionante.
– É sua irmã que faz soar a trompa – disse Aslam a Pedro, falando baixinho, tão baixo que parecia um rosnado, se não é falta de respeito falar assim.
Por um momento, Pedro não entendeu o que se passava. Aslam, no entanto, disse, acenando com a pata para as criaturas que avançavam:
– Para trás! Deixem que o príncipe conquiste o seu reino!
Aí compreendeu tudo e partiu correndo para o pavilhão, onde assistiu a um horroroso espetáculo.
As náiades e as dríades fugiam em todas as direções. Pálida como a neve, Lúcia corria para ele com suas perninhas curtas. Susana também corria e tentava subir a uma árvore, perseguida por um monstruoso bicho pardo. A princípio, Pedro julgou que fosse um urso; achou depois que era um pastor-alemão, se bem que fosse grande demais para ser um cachorro. Só então viu que era um lobo, que empinava, rosnava, golpeava com as patas no tronco da árvore, o pêlo todo eriçado. Susana não conseguia passar do segundo galho, com uma perna suspensa, o pé a uns dez centímetros dos dentes ferozes do polícia secreta da Feiticeira Branca. “Por que ela não sobe mais?” – pensava Pedro. – “Pelo menos, por que não se segura com mais firmeza?” Só então reparou que a pobre garota estava quase desmaiando. Se desmaiasse...
Pedro não estava sentindo uma coragem extraordinária. Verdade seja dita, estava até começando a sentir-se mal... Mas isso não o impediu de fazer o que tinha de ser feito. Correu direto ao monstro e fez menção de vibrar-lhe um golpe com a espada. O golpe não chegou ao alvo. Como um relâmpago, a fera voltou-se, os olhos em fogo, boca escancarada, uivando de raiva. Teria despedaçado o menino, se não estivesse tão raivoso. Mas foi assim. Com toda a força, Pedro enterrou a espada entre as patas do lobo, bem no coração. Seguiu-se um momento pavoroso, de tremenda confusão, como num pesadelo. Pedro lutava desesperadamente. O lobo não parecia nem vivo nem morto. Os dentes do animal bateram em sua testa. Era tudo sangue, calor, pêlos e cabelos... Um momento depois, percebeu que o monstro estava morto; desenterrou a espada, endireitou-se, limpou o suor que lhe cobria o rosto e os olhos. Estava exausto o herói!
Susana, daí a pouco, desceu da árvore. Ficaram, ela e Pedro, muito comovidos quando se encontraram. Não posso negar que houve beijos e choradeira, de parte a parte. Mas em Nárnia isso não causa má impressão em ninguém.
– Depressa! – gritou Aslam – Centauros! Águias! Há um outro lobo no bosque. Ali... bem atrás de vocês. Vão atrás dele. Deve estar à procura da dona. E a oportunidade de descobrir a feiticeira e de salvar o quarto Filho de Adão.
Num instante, com um bater de cascos e um tatalar de asas, um grupo de velozes criaturas desapareceu nas trevas.
Pedro, ainda respirando mal, viu que estava junto de Aslam.
– Esqueceu de limpar a espada – disse o Leão.
Verdade. Pedro corou ao ver a lâmina brilhante manchada de sangue e de pêlos do polícia secreta. Esfregou a espada na relva, enxugando-a depois no casaco.
– Dê-me a espada. Ajoelhe-se, Filho de Adão! – disse Aslam.
Tocou-o com a lâmina da espada e disse:
– Levante-se, rei Pedro! E, aconteça o que acontecer, nunca se esqueça de limpar a espada!

13
MAGIA PROFUNDA NA AURORA DO TEMPO


Depois de andar mais do que imaginava que alguém fosse capaz de andar, Edmundo parou; parou por ordem da feiticeira, num vale escuro. Deixou-se cair sem forças e ficou imóvel, cara no chão, nem se importando com o que pudesse acontecer, contanto que o deixassem ali deitado. Tão cansado estava que não sentia nem fome nem sede.
– Agora, Majestade, não adianta. Já devem estar na Mesa de Pedra – disse o anão desanimado.
– Talvez o lobo fareje onde estamos e nos traga notícias.
– Boas não podem ser.
– Quatro tronos em Cair Paravel. E se só três forem ocupados? A profecia não se cumprirá.
– Que importância tem isso, agora que Ele chegou? – O anão não tinha coragem de pronunciar o nome de Aslam na presença de sua senhora.
– Pode ser que não fique aqui muito tempo. E então... cairíamos em cima dos três em Cair Paravel.
– Seria melhor conservar este como refém – disse o anão, chutando Edmundo.
– Para que os outros venham salvá-lo? – replicou a feiticeira, com ar desdenhoso.
– Então o melhor é fazer logo o que se tem a fazer.
– Gostaria que fosse na Mesa de Pedra e não aqui. É o lugar adequado. Essas coisas sempre foram feitas lá.
– Longe ainda está o dia em que a Mesa de Pedra voltará a servir para o fim que lhe convém – disse o anão.
– É verdade – concordou a feiticeira. – Assim sendo, vamos à coisa...
Nesse momento, um lobo precipitou-se ao encontro deles, rosnando:
– Estão na Mesa de Pedra com Ele. Mataram o capitão Maugrim. Vi tudo, escondido. Foi um Filho de Adão. Fuja! Fuja!
– Fugir, isso nunca! Convoque todo o meu povo aqui. Chame os gigantes, os velhos lobos e os espíritos das árvores que estão ao nosso lado. Reúna os vampiros, os duendes, os ogres, os minotauros. Chame os vulpinos, as bruxas, os espectros, as almas dos cogumelos bravos. Vamos lutar. Ah! Não tenho ainda a minha vara? Com ela não transformei as hostes deles em estátuas de pedra? Agora vá. Tenho um trabalhinho a fazer na sua ausência.
O bruto fez um sinal com a cabeça, deu meia-volta e se foi.
– Ora, mesa não temos... Espere aí... O mais prático é atá-lo ao tronco de uma árvore.
Edmundo sentiu-se agarrado brutalmente e forçado a manter-se de pé. O anão amarrou-o fortemente a uma árvore. A vista de Edmundo, a feiticeira abriu o manto, deixando aparecer dois braços nus, aflitivamente brancos. E só os viu porque eram mesmo muito brancos, mas não distinguiu quase mais nada, tal era a escuridão que reinava.
– Prepare a vítima.
O anão desabotoou a camisa de Edmundo. Pegando o menino pelos cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás, forçando-o a levantar o queixo. Edmundo ouviu um ruído esquisito ...zzz...zzz...zzz... A princípio não conseguiu perceber o que era, mas depois compreendeu que alguém estava afiando uma faca.
E ouviu gritos que vinham de todas as direções... um repicar de cascos, um tatalar de asas... e um grito agudo da feiticeira... Reinava em torno a maior confusão. Alguém o desatava da árvore. Vozes vibrantes e bondosas falavam com ele...
– Deitem-no... Dêem-lhe um pouco de vinho... Beba isso... Coragem!... Não é nada...
E havia outras vozes: “Quem agarrou a feiticeira?” “Pensei que você a tivesse agarrado”... “Sumiu depois que soltou o facão”... “Corri mas foi atrás do anão”... “Quer dizer que ela fugiu?”... “Ei, o que é aquilo? Ah, não é nada, apenas um tronco caído”. Foi quando Edmundo perdeu os sentidos.
Os centauros, os unicórnios, os veados e os pássaros (que formavam o batalhão enviado por Aslam no capítulo anterior) puseram-se a caminho, de regresso à Mesa de Pedra, levando consigo o menino. Mas teriam ficado se pudessem ter visto o que aconteceu em seguida naquele vale.
O silêncio era absoluto. A lua começava a brilhar. Se você estivesse lá, teria visto o luar banhar um velho tronco de árvore e uma rocha arredondada. E, se continuasse a olhar, teria pouco a pouco notado qualquer coisa de estranho no tronco e na rocha. O tronco era parecidíssimo com um homem baixo e gordo, agachado no chão. Veria o tronco caminhar ao encontro da pedra e a pedra sentar-se e começar a conversar com o tronco. Porque eram, muito simplesmente, a feiticeira e o anão. Fazia parte dos poderes da feiticeira dar às coisas a aparência daquilo que não eram. Tivera bastante presença de espírito para fazer uso desse dom no instante em que o facão lhe saltou das mãos.
Quando as crianças acordaram na manhã seguinte, tendo dormido na barraca sobre boas almofadas, ouviram a Sra. Castor dizer que Edmundo estava salvo e fora trazido ao acampamento altas horas da noite. Conversava agora com Aslam. Tomaram café e saíram todos, e viram Aslam e Edmundo passeando, lado a lado, sobre a relva úmida. Não é preciso dizer para você (e o fato é que ninguém ouviu) o que Aslam dizia. Fique sabendo que foi uma conversa da qual Edmundo jamais se esqueceu. Quando os outros se aproximaram, Aslam voltou-se e, acompanhado por Edmundo, foi ao encontro deles.
– Aqui está o quarto Filho de Adão. E... bem... não vale a pena falar do que aconteceu. O que passou, passou.
Edmundo apertou a mão de todos, repetindo: – Desculpe...
E cada um respondia:
– Deixe isso pra lá!
Todos queriam dizer alguma coisa, para que não ficasse a menor dúvida de que tudo estava bem outra vez – alguma coisa muito natural e trivial –, mas ninguém conseguiu lembrar-se de nada para dizer. Mas não tiveram tempo de se sentir embaraçados: um dos leopardos chegou e disse para Aslam:
– Senhor, está aí um emissário inimigo que implora audiência.
– Mande-o aqui.
Daí a pouco o leopardo voltou com o anão da feiticeira.
– A que vens, Filho da Terra? – perguntou Aslam.
– A Rainha de Nárnia e Imperatriz das Ilhas Desertas deseja salvo-conduto para vos falar sobre um assunto que tanto interessa a vós como a ela – disse o anão, na ponta da língua.
– Ah! Rainha de Nárnia! – comentou o Sr. Castor. – Mas é muito cara-de-pau!...
– Calma, Castor – disse Aslam. – Todos os títulos serão restituídos a quem de direito. Não vale a pena discutir por enquanto. – E, voltando-se para o anão: – Diga a sua senhora que o salvo-conduto está concedido, sob a condição de ela deixar a vara mágica debaixo daquele grande carvalho.
Aceita a condição, dois leopardos acompanharam o anão, para ver se tudo seria feito conforme o combinado.
– E se ela transformar os leopardos em estátua de pedra? – murmurou Lúcia para Pedro.
Acho que os leopardos tiveram a mesma idéia. Estavam completamente arrepiados, de rabo em pé, como um gato na presença de um cão estranho.
– Não tenha medo – cochichou Pedro. – Ele sabe o que faz.
Pouco depois, era a própria feiticeira que aparecia no alto da colina, dirigindo-se sem hesitar para junto de Aslam. Os três, que nunca a tinham visto, sentiram um frio na barriga quando a olharam de frente. Alguns animais começaram a rosnar. Embora fizesse um sol magnífico, todos se sentiram gelados de repente. As únicas pessoas que pareciam estar absolutamente à vontade eram Aslam e a própria feiticeira. Estranho espetáculo: um rosto dourado e um rosto nevado... tão perto um do outro. Não que a feiticeira olhasse Aslam bem de frente. A Sra. Castor não deixou de reparar nisso.
– Há um traidor aqui, Aslam! – declarou a feiticeira.
Todos os presentes entenderam. Mas Edmundo, depois da conversa pela manhã e de tudo o mais, não deu bola. Continuou simplesmente a olhar para Aslam. Estava esnobando a feiticeira, e com razão.
– Não foi bem a você que ele ofendeu – disse Aslam.
– Já se esqueceu da Magia Profunda? – perguntou a feiticeira.
– Digamos que sim – replicou Aslam, solenemente. – Fale-nos da Magia Profunda.
– Falar-lhe da Magia Profunda?! Eu?! – disse a feiticeira, numa voz ainda mais aguda. – Falar-lhe do que está escrito nessa Mesa de Pedra aí ao lado? Falar-lhe do que está escrito em letras do tamanho de uma espada, cravadas nas pedras de fogo da Montanha Secreta? Falar-lhe do que está gravado no cetro do Imperador de Além-Mar? Se alguém conhece tão bem quanto eu o poder mágico a que o Imperador sujeitou Nárnia desde o princípio dos tempos, esse alguém é você. Sabe que todo traidor, pela lei, é presa minha, e que tenho direito de matá-lo!
– Ah! – disse o Sr. Castor. – Já estou entendendo por que foi que você se arvorou em rainha... Você era o carrasco-mor do Imperador!
– Calma, Castor, calma – disse Aslam, em voz baixa e arrastada.
– Portanto – continuou a feiticeira, – essa criatura humana me pertence. A vida dela me pertence. Tenho direito ao seu sangue.
– Então venha bebê-lo, se for capaz – disse o Touro que tinha cabeça de homem.
– Débil mental! – disse a feiticeira, com um riso de fúria que era quase um grunhido. – Está tão convencido assim de que o seu senhor me pode privar dos meus direitos pela força? Ele conhece bem demais a Magia Profunda para atrever-se a isso. Sabe que, a não ser que eu receba o sangue a que a lei me dá direito, toda a terra de Nárnia será subvertida e perecerá em água e fogo.
– É verdade! – disse Aslam. – Não posso negá-lo.
– Oh! Aslam! – sussurrou Susana, ao ouvido do Leão. – Não podemos nós... quer dizer, isto é, não vai acontecer nada, não é? Não se pode dar um jeito nessa Magia Profunda?
– Enfrentar o poder mágico do Imperador?
Aslam voltou-se para ela, com o rosto ligeiramente carregado. E ninguém mais tocou naquele assunto.
Edmundo fitou Aslam o tempo todo. Sentia-se sufocado e perguntava a si mesmo se devia dizer alguma coisa: compreendeu que não devia dizer coisa nenhuma, só esperar e cumprir o que lhe fosse ordenado.
– Afastem-se – disse Aslam. – Preciso falar a sós com a feiticeira.
Foram momentos terríveis de longa espera. Que estaria o Leão a combinar? Lúcia disse apenas “Oh, Edmundo!”, e começou a chorar. Pedro, de costas para os outros, olhava o mar distante. Cabisbaixos, os castores davam a mão um ao outro. Os centauros, nervosos, batiam com os cascos no chão. Por fim todos se acalmaram e foi um silêncio daqueles de ouvir zumbido de abelha, esvoaçar de passarinho e sussurrar de brisa na folhagem. E a conversa continuava.
Finalmente ouviu-se a voz de Aslam.
– Venham todos. Tudo resolvido. Ela renunciou ao direito que tinha ao sangue de Edmundo.
Pela encosta, ouviu-se um ruído, como se todos tivessem começado a respirar ao mesmo tempo. Foi um pipocar de opiniões.
A feiticeira, com uma expressão de feroz alegria, já estava se afastando quando parou e disse:
– Mas quem me garante que a promessa será cumprida?
– Raaaa-a-aarrgh! – rugiu Aslam, erguendo-se do trono. E suas fauces ficaram escancaradas. O rugido rimbombou. A feiticeira, atônita, agarrou a saia e fugiu como se tivesse a vida em perigo.

14
O TRIUNFO DA FEITICEIRA


Logo que a feiticeira desapareceu, Aslam disse:
– Temos de abandonar este lugar imediatamente, porque vai ser utilizado para outra coisa. Acamparemos esta noite na margem do Beruna.
Todos estavam ansiosos, é claro, para conhecer os termos do acordo. Mas a expressão de Aslam era tão severa, e o rugido que soltara ressoava ainda de tal modo nos ouvidos de todos, que ninguém teve coragem de interrogá-lo.
Depois de uma refeição ao ar livre, no cimo da encosta, ajudaram a desarmar a barraca real e a arrumar as coisas. Antes de duas horas estavam a caminho, rumo ao nordeste, avançando a passo moderado, pois o lugar para onde iam não era longe.
Aslam explicou a Pedro seu plano de campanha:
– Logo que termine suas tarefas por aqui, a feiticeira deve voltar para o seu castelo e preparar-se para resistir a um cerco. Talvez você possa cortar-lhe o caminho, impedindo que ela chegue lá, mas também pode ser que não.
Aslam continuou a expor dois planos diferentes de batalha: um para atacar a feiticeira e sua gente no bosque; outro para assaltar o castelo. Aconselhou Pedro sobre a melhor maneira de conduzir as operações, dizendo coisas assim: “Deve colocar os centauros em tal parte”, ou “Não esqueça suas sentinelas”.
Por fim, disse Pedro:
– Mas você ficará comigo, Aslam.
– Nada posso prometer – retrucou Aslam, e continuou a dar suas instruções.
Na segunda etapa da viagem, foram Susana e Lúcia que lhe fizeram companhia. Aslam, entretanto, quase nada falou, dando-lhes a impressão de estar muito triste.
Chegaram a um ponto onde o vale se alargava e o rio corria num leito amplo e pouco fundo. Era o Passo do Beruna. Aslam deu ordem para que acampassem do lado de cá. Pedro observou:
– Não seria melhor o lado de lá? Ela pode atacar-nos à noite.
Aslam, que parecia preocupado com outra coisa, levantou a cabeça, sacudiu a juba soberba e disse:
– Hum! Que foi?
Pedro repetiu a pergunta.
– Não! – disse Aslam, com voz indiferente, como se aquilo não tivesse a mínima importância.
– Ela não ataca esta noite. – E soltou um profundo suspiro, acrescentando em seguida:
– De qualquer modo, foi bem pensado. Só que não vale a pena.
E continuaram a armar as tendas.
Nessa noite, a tristeza de Aslam projetou-se em todos os outros. Pedro não se sentia bem ao lembrar que ia assumir sozinho a responsabilidade da batalha. Fora um grande choque o fato de Aslam não prometer estar presente. A ceia foi silenciosa, muito diferente da refeição da noite passada ou daquela mesma manhã. Era como se os dias felizes, que mal tinham começado, já chegassem ao fim.
Susana nem conseguiu dormir, inquieta. Depois de muito tempo acordada, virou-se e ouviu Lúcia suspirar.
– Você também não consegue dormir, Lu?
– Não. Achei que você estava dormindo. Tenho um pressentimento horrível, Susana, como se qual quer coisa estivesse para acontecer com a gente.
– É mesmo? Eu também.
– É alguma coisa com Aslam. Ou algo pavoroso está para acontecer com ele, ou é ele que vai fazer algo assim.
– Esteve preocupado o dia inteiro, Lúcia! Ele disse que não poderá estar conosco na batalha.
Será que está pensando em ir embora esta noite?
– Onde ele está agora? Na barraca?
– Acho que não.
– Susana! Vamos procurá-lo.
– Está bem, vamos. É melhor do que ficar acordada.
Muito de mansinho, as duas meninas foram abrindo caminho entre os que dormiam e saíram da tenda. O luar estava claro e reinava silêncio. Susana agarrou-se ao braço de Lúcia de repente:
-Lá!
No extremo oposto do acampamento, onde começavam as primeiras árvores, o Leão dirigia-se lentamente para o bosque. Sem trocar palavra, elas foram atrás.
Aslam afastou-se do vale e continuou a andar. Parecia seguir o mesmo caminho que tinham percorrido durante o dia, quando vieram da Mesa de Pedra. Foi seguindo sempre, levando-as ora para lugares escuros, ora para outros banhados de luar. Os pés das meninas estavam úmidos de orvalho. Aslam tinha uma aparência diferente. Cabeça baixa, cauda caída, caminhava devagar, como se estivesse muito cansado. Ao atravessarem uma clareira, onde não havia sombras nas quais pudessem esconder-se, as meninas viram-no parar e olhar em volta. Não adiantava fugir, então elas foram ao seu encontro.
– Crianças, por que estão me seguindo?
– Não conseguimos dormir – disse Lúcia, sentindo que não era preciso dizer mais nada.
– Por favor, deixe-nos ir com você, a qualquer lugar... – implorou Susana.
– Bem... – E Aslam pareceu refletir. – Vou gostar de ter amigos esta noite. Podem vir... desde que me prometam parar quando eu lhes disser, e me deixem depois continuar sozinho.
– Obrigada, muito... Prometemos!
A marcha prosseguiu: o Leão entre as duas meninas. Como andava devagar! A grande cabeça real ia tão baixa que o nariz quase roçava a relva. A certa altura tropeçou e deixou escapar um gemido.
– Aslam! Aslam querido! – disse Lúcia. – O que há? Por que não nos diz o que tem?
– Está doente, Aslam querido? – perguntou Susana.
– Não. Estou triste. Estou só. Ponham as mãos na minha juba, para que eu sinta que vocês estão aqui, e caminhemos assim.
Foi assim que as meninas fizeram o que, sem licença dele, jamais teriam tido a coragem de fazer; ainda que o desejassem ardentemente, desde o primeiro instante em que o viram... Enfiaram as mãos frias na juba farta, acariciando-a, e foram andando ao lado dele.
Repararam que subiam a encosta do monte sobre o qual estava a Mesa de Pedra. Chegaram à última árvore antes da clareira. Aslam parou e disse:
– Crianças, vocês ficam aqui. Aconteça o que acontecer, fiquem bem escondidas. Adeus!
As duas meninas choraram copiosamente (embora mal soubessem o motivo), agarraram-se ao Leão, deram-lhe beijos na juba, no nariz, nas patas, nos grandes olhos tristes. Depois, ele se afastou e foi sozinho para o alto da colina. Escondidas nas últimas moitas, Susana e Lúcia ficaram espiando.
Vou lhe contar o que elas viram.
Uma imensa multidão estava reunida em torno da Mesa de Pedra. Embora o luar clareasse tudo, muitos traziam tochas, que ardiam com sinistras chamas vermelhas e fumo negro.
Que bicharada! Ogres de dentes monstruosos! Lobos! Homens com cabeça de touro! Espíritos de árvores más e de plantas venenosas! Não falo de outros seres porque, se fizesse isso, as pessoas adultas não o deixariam ler este livro: vulpinos, bruxas, íncubos, fúrias, horrores, espectros, sátiros, lobisomens... Estavam ali todos os que eram do partido da feiticeira, convocados pelo lobo. No centro, em pé junto da mesa, estava a própria feiticeira.
No momento em que viram o enorme Leão dirigir-se para elas, aquelas criaturas soltaram uivos e grunhidos de terror. Até a feiticeira pareceu por um instante paralisada de medo. Mas dominou-se e deu uma selvagem gargalhada.
– O louco! O louco está chegando! Amarrem bem o louco!
Lúcia e Susana pararam de respirar, aguardando o rugido de Aslam e o ataque ao inimigo. Mas nada! Quatro bruxas, rindo zombeteiras (a princípio, a uma certa distância, receosas de cumprir sua missão), aproximaram-se dele.
– Amarrem o louco, já disse!
As bruxas correram para ele com um uivo de triunfo, ao verem que não oferecia resistência. Anões e macacos malignos chegaram de todos os lados para ajudá-las. Deitaram o Leão de costas. Amarraram-lhe as quatro patas, gritando e dando vivas, como se tivessem cometido um ato de bravura. Claro que, se o Leão quisesse, uma patada seria a morte para eles. Mas ficou quieto, mesmo quando os inimigos rasgaram a sua carne de tanto esticarem as cordas. Depois, começaram a arrastá-lo para o centro da mesa.
– Alto! – disse a feiticeira. – Primeiro, cortem-lhe a juba!
Uma gargalhada mesquinha ressoou quando um ogre, de tesoura na mão, avançou e se pôs de cócoras junto da cabeça do leão. Zip, zip, zip – a tesoura rangia, e montes de caracóis dourados tombavam ao chão. O ogre afastou-se, e, do esconderijo, as meninas puderam ver o rosto de Aslam, pequenino e tão diferente sem a juba! Os inimigos também notaram isso:
– Vejam: não passa de um gatão!
– E é disso que a gente tinha medo?
Rodearam Aslam, zombando dele a valer:
– Miau! Miau! Coitadinho do bichano! Quantos camundongos você papou hoje? Quer um pires de leite, bichinho?
– Que audácia! – disse Lúcia, com lágrimas correndo pelo rosto. – Perversos! Malvados!
Passada a primeira impressão, a cara tosquiada de Aslam parecia-lhe ainda mais valente, mais bela e mais resignada do que nunca.
– Amordacem-no! – gritou a feiticeira. Mesmo agora, quando lhe punham a focinheira, uma dentada dele bastaria para decepar, pelo menos, as mãos de dois ou três. Ao vê-lo amordaçado e amarrado, os mais covardes ganharam ânimo. Por instantes, as meninas nem sequer conseguiram vê-lo, rodeado como estava por aquela horda infernal, que lhe batia, dava pontapés, cuspia-lhe em cima, insultava-o.
Por fim a turba ficou cansada. E o Leão, amarrado e amordaçado, foi arrastado para a Mesa de Pedra, puxado por uns, empurrado por outros. Era tão grande que, mesmo depois de o terem arrastado até lá, só com o esforço de todos foi possível içá-lo e colocá-lo em cima da mesa. Depois, amarraram-no e apertaram-lhe outra vez as cordas.
– Covardes! Covardões! – soluçava Susana. – Será possível que ainda tenham medo dele?
Logo que acabaram de amarrar Aslam à Mesa de Pedra (mas tão amarrado que mais parecia um novelo), fez-se silêncio. Quatro bruxas, aos quatro cantos da mesa, erguiam seus fachos. A feiticeira desnudou os braços, como fizera na noite anterior com Edmundo. Depois, começou a afiar o facão. Quando o brilho do facho caiu sobre ele, Susana e Lúcia acharam que o facão era de pedra e não de aço, e tinha uma forma esquisita e nada agradável.
Por fim a feiticeira aproximou-se. Parou junto da cabeça do Leão. Seu rosto vibrava e contorcia-se de ódio. O dele, sempre calmo, olhava para o céu, com uma expressão que não era nem de ira, nem de medo, um pouco triste apenas. Um momento antes de desferir o golpe, a feiticeira inclinou-se e disse, vibrando com a voz:
– Quem venceu, afinal? Louco! Pensava com isso poder redimir a traição da criatura humana?!
Vou matá-lo, no lugar do humano, como combinamos, para sossegar a Magia Profunda. Mas, quando estiver morto, poderei matá-lo também.
Quem me impedirá? Quem poderá arrancá-lo de minhas mãos? Compreenda que você me entregou Nárnia para sempre, que perdeu a própria vida sem ter salvo a vida da criatura humana. Consciente disso, desespere e morra.
As meninas não chegaram a ver exatamente este último momento. Tinham tapado os olhos.

15
MAGIA AINDA MAIS PROFUNDA DE ANTES DA AURORA DO TEMPO


Ainda cobrindo o rosto com as mãos, as meninas ouviram a voz da feiticeira:
– Sigam-me todos e acabemos com o que resta da batalha. Não será difícil esmagar o verme humano e os traidores, agora que o grande louco, o gatão, está morto.
As meninas passaram por grande perigo. Pois, com gritos selvagens e som de trombetas, aquele restolho da criação partiu em disparada do alto da colina para a encosta, passando rente ao esconderijo. Os espectros foram como um vento gelado; o chão tremeu com o galope dos minotauros. Esvoaçou sobre as cabeças das duas garotas uma grande mancha imunda de abutres e morcegos gigantes. Em outra situação, teriam tremido de medo, mas agora tinham a alma tão cheia de tristeza, vergonha e horror pela morte de Aslam que nem tempo tiveram de ter medo.
Quando tudo se acalmou, Susana e Lúcia foram para o alto descoberto da colina. Ainda era possível distinguir, apesar das nuvens delicadas que ocultavam a lua, o vulto do Leão, que jazia morto nos grilhões. Ambas se ajoelharam na relva molhada, beijaram o rosto frio de Aslam, acariciaram seu bonito pêlo – o que ainda restava dele – e choraram amargamente, até que não puderam mais. Olhando uma para a outra, deram-se as mãos, porque se sentiam sós, e choraram de novo. Depois voltaram a calar-se. Lúcia disse, por fim:
– Não suporto vê-lo com esta horrível mordaça. Conseguiremos arrancá-la?
Tentaram. Depois de muito esforço (tinham os dedos gelados e estava muito escuro) conseguiram. E ao verem o rosto de Aslam sem a focinheira, desandaram a chorar outra vez. E beijos. E carícias. Limparam-lhe o melhor que puderam o sangue e a espuma. Não tenho nem palavras para lhe contar a solidão, o desespero, a desolação daquele momento.
– Será que conseguimos também desamarrá-lo? – perguntou Susana. Mas os inimigos, só de maldade, tinham apertado tanto as cordas, que as meninas não puderam desfazer os nós.
Espero que ninguém que esteja lendo esta história alguma vez na vida tenha sido tão infeliz quanto Susana e Lúcia naquela noite. Mas se você sabe o que é isso, se já passou a noite toda acordado e chorou até acabarem as lágrimas... Então sabe que, no fim, desce sobre a gente uma grande calma. Chegamos até a ter a sensação de que nada mais nos poderá acontecer.
Pelo menos, foi isso o que as duas meninas sentiram. Passaram horas naquela calma absoluta, e nem notaram que estavam ficando regeladas. Mas Lúcia reparou em duas coisas: uma era que o céu sobre a colina estava muito mais claro do que antes, e a outra era que um movimento quase imperceptível percorria a relva a seus pés. A princípio não se importou: já nada importava agora. Mas viu que algo começava a subir pelas pedras verticais que sustentavam a Mesa de Pedra. Qualquer coisa andava agora de um lado para outro sobre o corpo de Aslam. Chegou um pouquinho mais perto. Eram umas coisinhas cinzentas.
– Que horror! – exclamou Susana. – Só faltavam estes ratos horrendos! Monstros! Sumam daqui! – E ergueu as mãos para assustá-los.
– Espere! – disse Lúcia, que os observara com mais atenção. – Repare no que estão fazendo.
Ficaram olhando, inclinadas.
– Parece que... Mas que coisa estranha! Estão roendo as cordas!
– Exatamente! Estes ratinhos são boa gente, coitadinhos... não percebem que ele está morto.
Acham que ainda podem fazer alguma coisa.
Estava bem mais claro agora, e cada uma reparou na palidez da outra, enquanto continuavam a observar os ratos a roer as cordas, dezenas, centenas mesmo, de ratinhos do campo. Por fim, uma a uma, as cordas todas estavam roídas.
O céu estava esbranquiçado no oriente e as estrelas empalideciam também. Menos uma muito grande, perto da linha do horizonte. O frio era mais intenso do que nunca. E os ratinhos desapareceram.
As meninas afastaram o que restava das cordas roídas. Sem elas, Aslam parecia outro. Seu rosto, com a luz progressiva, assumia expressão mais nobre.
No bosque, atrás delas, um passarinho fez um ensaio de gorjeio. Durante horas a fio, o silêncio tinha sido tão completo que elas se assustaram. Depois, outro pássaro respondeu. Daí a pouco as aves cantavam em toda parte.
Já era a madrugada.
– Estou morrendo de frio, Susana.
– Eu também. E se a gente andasse um pouquinho?
Foram ao extremo da colina e olharam para baixo. A grande estrela solitária desaparecera. Toda a paisagem da terra tinha um ar cinzento-escuro; mas, para além, muito longe, lá no fim do mundo, o mar brilhava, pálido. Havia tons róseos no céu. Andaram para lá e para cá, inúmeras vezes, do corpo morto de Aslam ao sopé da colina. Em certo momento, ficaram imóveis olhando para o mar e para o castelo de Cair Paravel, que só agora começaram a distinguir. E enquanto ali estavam, no lugar em que a terra se acaba e o mar começa, o vermelho tornou-se dourado, e o sol começou a surgir devagarinho. Foi quando ouviram um grande barulho, um barulho ensurdecedor de uma coisa que estala, como se um gigante acabasse de quebrar um prato gigantesco.
– Que barulho foi esse? – disse Lúcia, agarrando-se ao braço de Susana.
– Não sei. Estou com medo... estou com medo de olhar...
– Devem ter voltado... Vamos olhar! – E Lúcia virou-se, obrigando Susana a fazer o mesmo.
O sol dera a tudo uma aparência tão diferente, alterando de tal maneira as cores e as sombras, que por um momento não repararam na coisa de fato importante. Até que viram. A Mesa de Pedra estava partida em duas por uma grande fenda, que ia de lado a lado. E de Aslam, nem sombra.
– Oh! Oh! Oh! – gritaram as meninas, correndo para a mesa.
– Isso é demais! Podiam ao menos ter deixado o corpo em paz.
– Mas que coisa é essa? Ainda será magia?
– Magia, sim! – disse uma voz forte, pertinho delas. – Ainda é magia.
Olharam. Iluminado pelo sol nascente, maior do que antes, Aslam sacudia a juba (pelo visto, tinha voltado a crescer).
– Aslam! Aslam! – exclamaram as meninas, espantadas, olhando para ele, ao mesmo tempo as sustadas e felizes.
– Você não está morto?
– Agora, não.
– Mas você não é... um... um...? – Susana, trêmula, não teve a coragem de usar a palavra “fantasma”.
Aslam abaixou a cabeça dourada e lambeu-lhe a testa. O calor de seu bafo era de criatura viva.
– Pareço um fantasma?
– Não! Você está vivo! Oh, Aslam! – gritou Lúcia, e as duas meninas atiraram-se sobre ele com mil beijos.
– Mas explique tudo isso, por favor – disse Susana, ao recuperar um pouco da calma.
– Explico: a feiticeira pode conhecer a Magia Profunda, mas não sabe que há outra magia ainda mais profunda. O que ela sabe não vai além da aurora do tempo. Mas, se tivesse sido capaz de ver um pouco mais longe, de penetrar na escuridão e no silêncio que reinam antes da aurora do tempo, teria aprendido outro sortilégio. Saberia que, se uma vítima voluntária, inocente de traição, fosse executada no lugar de um traidor, a mesa estalaria e a própria morte começaria a andar para trás... E agora...
– E agora? – disse Lúcia, pulando de alegria, batendo palmas.
– Ah, crianças... Já me sinto mais forte. Vamos ver uma coisa: se vocês são capazes de me pegar!
Ficou quieto por um instante, com os olhos brilhando muito, as pernas fremindo de excitação, fustigando-se com a cauda. De um salto, passou-lhes por cima da cabeça e foi cair do outro lado da mesa. Rindo, sem saber de quê, Lúcia subiu à mesa para pegá-lo. Aslam escapou com um pulo. E começou uma corrida louca. Fugia, obrigando-as a correr pela colina, às vezes deixando que elas quase o agarrassem pela cauda. Mergulhava entre as duas, atirava-as ao ar com as patas enormes e aveludadas, para voltar a apanhá-las. Parava de repente, fazendo com que elas se amontoassem no chão, rindo alegremente, numa confusão de braços, pernas e pêlos. Foi uma algazarra daquelas, como não existe fora de Nárnia. Lúcia não sabia bem se estava brincando com um gatinho ou com um furacão. O mais engraçado é que, quando por fim se deitaram ao sol, ofegantes, as duas já não estavam nada cansadas, nem com fome, nem com sede.
– Agora – disse Aslam – vamos ao trabalho.
Acho que vou dar um rugido. Melhor taparem os ouvidos.
Foi o que fizeram. Quando Aslam abriu a boca, seu rosto ficou tão apavorante que não tiveram coragem de olhar para ele. As árvores em frente curvaram-se ao sopro do rugido, como o capim se curva ao vento.
– Temos de andar muito. O melhor é vocês subirem nas minhas costas.
O Leão abaixou-se e as crianças subiram no seu dorso morno e dourado: Susana primeiro, agarrando-se na juba com toda a força; Lúcia depois, agarrando-se firmemente em Susana. O Leão ergueu-se e partiu em disparada, descendo a colina e entrando pela floresta.
Foi talvez a coisa mais fabulosa que lhes aconteceu em Nárnia. Você já galopou num cavalo? Então, faça de conta que vai a cavalo. Elimine o barulho dos cascos, o ranger do freio; imagine as passadas quase silenciosas do Leão. Agora, em vez do dorso preto, cinza ou castanho do cavalo, imagine o pêlo macio e dourado, e a juba esvoaçando ao vento. Imagine também que está galopando duas vezes mais depressa que o mais rápido cavalo de corrida. E não se esqueça de que esta montaria não precisa ser guiada e que nunca se cansa. Galopa, galopa, sem tropeçar, sem hesitações, abrindo caminho com grande habilidade entre as árvores, saltando arbustos, moitas e riachos, atravessando os mais largos a vau, e a nado os rios maiores. Mas não é cavalgar por uma estrada, nem num parque, nem sequer por uma encosta gramada, mas através de Nárnia, na primavera, ao longo de bosques lindíssimos inundados de sol, entre brancos pomares de cerejeiras em flor, passando por barulhentas cachoeiras, percorrendo gargantas perigosas, descendo, descendo de novo para os vales agrestes e os campos enfeitados de flores azuladas.
Era quase meio-dia quando, do alto de uma vertente escarpada, viram um castelo – parecia um castelinho de brinquedo – todo espetado de torres. Mas o Leão descia a tal velocidade que ele crescia a cada momento. E, antes de qualquer pergunta, já estavam ao pé do castelo. Já não era de brinquedo. Nenhum rosto surgiu nas ameias e os portões estavam fechados. Aslam, sem diminuir a corrida, precipitou-se para ele como uma flecha.
– E a casa da feiticeira! – gritou. – Segurem firme!
E foi como se o mundo virasse de cabeça para baixo. Foi aquele frio gelado na barriga. Pois o Leão tomava distância para o maior salto da história, galgando – voando, posso dizer, por cima da muralha do castelo. Ofegantes, mas sem um arranhão, as duas se viram no centro de um grande pátio cheio de estátuas de pedra.

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