sábado, 9 de julho de 2011

Eu Sou o Número Quatro, Capítulos 6 ao 10

CAPÍTULO SEIS

ENTRO E ME DEITO NO COLCHÃO DO MEU QUARTO,  SEM LENÇOL. A MANHÃ ME esgotou, e fecho os olhos. Quando volto a abri-los, o sol já está acima da copa das árvores. Saio do quarto. Henri está na cozinha, sentado à mesa, olhando para o laptop aberto, e sei que ele está vasculhando os noticiários, como sempre faz, tentando encontrar histórias ou in­formações que possam nos dizer onde estão os outros.
  Você dormiu? pergunto.
  Não muito. Agora temos Internet, e não verifico as notícias desde que saímos da Flórida. Isso estava me incomodando.
  Alguma coisa importante? quero saber.
Ele dá de ombros.
  Um garoto de quatorze anos caiu de uma janela do quarto an­dar na África e escapou sem arranhão. E outro, de quinze anos, em Bangladesh, está dizendo que é o Messias.
Eu rio.
Sei que o garoto de quinze anos não é um de nós. O que você acha do outro?
Não. Sobreviver a uma queda do quarto andar não é nenhum grande feito. Além do mais, se fosse um de nós, teria sido mais cui­dadoso ele completa, piscando para mim.
Eu sorrio e me sento diante dele. Henri fecha o computador e coloca as mãos na mesa. Seu relógio marca 11h36. Estamos em Ohio há pouco mais da metade de um dia, e já aconteceu tudo isso. Levanto as mãos abertas. Brilham menos do que na última vez que olhei.
Sabe o que tem aí? — Henri me pergunta.
Tenho luzes nas mãos.
Ele ri.
O nome disso é Lúmen. Com o tempo você vai ser capaz de controlar a luz.
Espero que sim, porque nosso disfarce vai ser bem prejudicado se isso não se apagar logo. E ainda não entendo para que serve.
Há mais no Lúmen que simplesmente luz. Garanto.
O que mais?
Ele vai até o quarto e volta com um isqueiro na mão.
  Você se lembra bem de seus avós? — ele me questiona.
Os avós são as pessoas que nos criam. Vemos pouco nossos pais até completarmos vinte e cinco anos, quando temos nossos filhos. A expectativa de vida de um lorieno é de cerca de duzentos anos, mui­to maior que a dos humanos, e quando os filhos nascem, enquanto os adultos têm entre vinte e cinco e trinta e cinco anos, são os mais velhos que os criam, período em que os pais continuam desenvol­vendo seus Legados.
Um pouco? Por quê?
Porque seu avô tinha o mesmo dom.
Não me lembro de ter visto as mãos dele brilhando. Nunca.
Henri dá de ombros.
Talvez ele nunca tenha tido motivo para usar o poder.
  Maravilhoso — reajo. — Parece realmente um grande dom, ter algo que nunca vou usar...
Ele balança a cabeça.
  Dê-me sua mão.
Estendo a mão direita, e ele acende o isqueiro, depois encosta a chama na ponta de meu dedo. Eu puxo meu braço.
O que está fazendo?
Confie em mim — ele diz.
Deixo que ele segure minha mão novamente. Ele acende o isquei­ro outra vez. E olha em meus olhos. Depois sorri. Olho para minha mão e percebo que ele encostou a chama do isqueiro na ponta do meu dedo médio. Não sinto nada. Mesmo assim, o instinto me faz puxar a mão. Esfrego meu dedo. Não parece diferente.
Sentiu isso? — ele pergunta.
Não.
  Deixe-me segurar sua mão — ele pede. — E me avise quando sentir algo.
Ele começa novamente por meu dedo, depois move a chama devagar até o dorso da mão. Há uma sensação leve de formigamento onde o fogo toca a pele, nada mais. Só quando a chama chega ao pulso eu começo a sentir o calor. E recolho o braço.
  Ai.
  Lúmen — ele diz. — Você vai se tornar resistente ao fogo e ao calor. As mãos adquirem essa resistência naturalmente, mas vamos precisar treinar com o restante do corpo.
Um sorriso se espalha em meu rosto.
  Resistente ao fogo e ao calor — digo. — Nunca mais vou me queimar?
Exatamente. E o que vai acontecer com o tempo.
Incrível!
Não é um Legado tão ruim, afinal. É?
Não é nada mau! Mas e essas luzes? Vão se apagar?
  Sim, provavelmente depois de uma boa noite de sono, quando sua mente esquecer que elas se acenderam. Mas você vai ter que tomar cuidado por um tempo. Não pode ficar agitado. O desequilíbrio emocional as trará de volta. Se ficar muito nervoso, bravo, triste...
Por quanto tempo?
Até aprender a controlá-las. — Ele fecha os olhos e esfrega o rosto com as mãos. — Vou tentar dormir novamente. Falaremos so­bre seu treinamento em algumas horas.
Henri vai para o quarto, e eu fico sentado à mesa da cozinha, abrindo e fechando as mãos, respirando fundo e tentando acalmar tudo dentro de mim, fazer as luzes se apagarem.
É claro que não funciona.
Tudo na casa continua uma bagunça, exceto pelo pouco que Hen­ri conseguiu fazer enquanto eu estava na escola. Sei que ele está pensando em partir, mas não a ponto de eu não conseguir fazê-lo mudar de idéia. Se acordar e encontrar a casa limpa e em ordem, talvez ele possa ser persuadido com mais facilidade.
Começo por meu quarto. Tiro o pó, limpo as janelas, varro o chão. Quando tudo está limpo, arrumo a cama com lençóis e cobertores, penduro e dobro minhas roupas. A cômoda é velha e sem firmeza, mas guardo tudo nela e, em cima, arrumo os poucos livros que te­nho. Pronto: um quarto limpo, com todos os meus pertences guar­dados e organizados.
Vou para a cozinha, guardo a louça e limpo as bancadas. Assim me ocupo e paro de pensar em minhas mãos, embora continue re­fletindo sobre Mark James. Pela primeira vez na vida eu enfrentei alguém. Sempre quis fazer isso, mas resistia porque queria seguir o conselho de Henri sobre não chamar a atenção. Tentava adiar ao máximo a próxima mudança. Mas hoje foi diferente. Senti certa sa­tisfação em ser desafiado por alguém e responder à altura. E agora há o problema do celular, que foi roubado. Sim, podemos conseguir outro sem dificuldade, mas onde estaria a justiça?

CAPÍTULO SETE

ACORDO ANTES DO DESPERTADOR TOCAR. A CASA ESTÁ AREJADA E SILENCIOSA. TIRO minhas mãos de debaixo da coberta. Estão normais, sem luz, sem brilho. Levanto-me da cama e vou até a sala de estar. Henri está na cozinha, sentado à mesa, lendo o jornal local e bebendo café.
Bom dia — ele diz. — Como se sente?
Melhor impossível — respondo.
Sirvo-me de cereal em uma tigela e me sento em frente a ele.
  O que vai fazer hoje? — pergunto.
  Resolver coisas, basicamente. Estamos ficando sem dinheiro. Estou pensando em fazer uma transferência bancária.
Lorien é (ou era, dependendo de como se examina a questão) um planeta rico em recursos naturais. Alguns desses recursos são metais e pedras preciosas. Quando partimos, cada Cêpan recebeu um saco cheio de diamantes, esmeraldas e rubis para vender quando chegasse à Terra.
Henri vendeu tudo e depositou o dinheiro em uma conta bancária no exterior. Não sei e nunca pergunto quanto temos lá. Mas sei que é suficiente para umas dez vidas, se não mais. Henri faz retira­das dessa conta uma vez por ano, mais ou menos.
  Mas não sei... — prossegue ele. — Não quero me afastar muito, caso aconteça alguma coisa hoje.
Não quero supervalorizar o dia de ontem, então faço um gesto de desdém.
  Vá buscar o dinheiro. Eu vou ficar bem.
Olho pela janela. A manhã se aproxima, banhando tudo com uma luz pálida. A caminhonete está coberta de orvalho. Há muito tempo não vivemos um inverno. Eu nem tenho casaco e quase todos os meus suéteres agora estão pequenos.
  Parece que está frio lá fora — comento. — Depois poderíamos ir comprar algumas roupas...
Ele assente.
Estive pensando nisso ontem à noite, por isso preciso ir ao banco.
Então vá — eu digo. — Nada vai acontecer hoje.
Termino de comer meu cereal, deixo a vasilha suja na pia e vou tomar banho. Dez minutos depois estou vestido com jeans e camiseta térmica preta, as mangas arregaçadas até o cotovelo. Eu me olho no espelho, depois confiro minhas mãos. Estou calmo. Preciso continuar calmo.
No caminho para a escola Henri me dá um par de luvas.
Não se esqueça de carregá-las o tempo todo. Nunca se sabe. Eu as guardo no bolso de trás da calça.
Acho que não vou precisar, estou me sentindo muito bem.
Os ônibus estão enfileirados em frente à escola. Henri pára na lateral do prédio.
  Não é bom que fique sem telefone — ele diz. — Muitas coisas podem acontecer.
Não se preocupe. Logo eu o terei de volta.
Ele suspira e balança a cabeça.
Não faça nenhuma burrada. Eu volto no final do dia.
Não vou fazer nada — digo, já saindo da caminhonete.
Ele vai embora.
Lá dentro, os corredores estão movimentados, os alunos abrindo e fechando armários, conversando, rindo. Alguns olham para mim e cochicham. Não sei se é por causa do confronto ou porque me tranquei na sala escura. É bem provável que estejam cochichando sobre os dois fatos. A escola é pequena, e em colégios pequenos todo mundo fica sabendo de quase tudo imediatamente.
Quando chego à entrada principal, viro à direita e encontro meu armário. Está vazio. Tenho quinze minutos antes que a aula de reda­ção para o segundo ano comece. Passo pela sala só para ter certeza de que sei onde fica e depois continuo até a secretaria. A funcionária sorri ao me ver entrar.
  Oi — eu digo. — Perdi meu celular ontem e imaginei que alguém possa tê-lo entregado ao setor de achados e perdidos.
Ela balança a cabeça.
Não. Lamento, mas não recebemos nenhum telefone.
Obrigado.
Saio da secretaria e não vejo Mark em lugar nenhum. Escolho uma direção e começo a andar. As pessoas ainda me olham e cochicham, mas isso não me incomoda. Eu o vejo uns quinze metros à minha frente. A descarga de adrenalina é imediata. Olho para minhas mãos. Estão normais. Fico preocupado com a possibilidade de elas se acenderem, e é justamente essa inquietação que pode causar isso.
Mark está de braços cruzados, encostado em um armário, no meio de um grupo de cinco caras e duas meninas, todos conversando e rindo. Sarah está sentada no parapeito de uma janela a uns cinco metros dali. Hoje, de novo, ela está linda, com os cabelos louros presos num rabo de cavalo, vestida com saia e suéter cinza. Ela está lendo um livro, mas levanta a cabeça quando caminho na direção do grupo.
Paro bem perto da rodinha, olho para Mark e espero. Ele percebe minha presença depois de uns cinco segundos.
  O que você quer? — pergunta.
  Você sabe o que eu quero.
Nós nos encaramos. O grupo à nossa volta aumenta. Agora são dez pessoas, e logo vinte alunos nos observam. Sarah se levanta e se aproxima da roda. Mark veste o agasalho do time, e os cabelos pretos estão ajeitados cuidadosamente para dar a impressão de que ele saiu da cama diretamente para dentro da roupa.
Ele se afasta do armário e caminha em minha direção. Para a pou­cos centímetros de mim. Meu peito e o dele quase se tocam, e o perfume forte de sua colônia invade minhas narinas. Ele deve medir um metro e oitenta e cinco, alguns centímetros a mais do que eu. Te­mos o mesmo porte. Mas ele não sabe que sou feito de uma matéria diferente da dele. Sou mais rápido e muito mais forte. Pensar nisso desenha um sorriso confiante em meu rosto.
  Acha que consegue ficar na escola por mais tempo hoje? Ou vai fugir correndo de novo, como uma mulherzinha?
Os risos se espalham.
Acho que vamos ver, não é?
Sim, vamos ver — ele responde, chegando um pouco mais perto.
Quero meu celular de volta — anuncio.
Não estou com seu celular.
Eu balanço a cabeça sem desviar os olhos dos dele.
  Duas pessoas viram você pegar o telefone — minto.
Ele hesita por uma fração de segundo, o suficiente para eu ter certeza de que deduzi corretamente.
  Ah, é? E se fui eu? O que vai fazer?
Agora deve haver uns trinta alunos à nossa volta. Não tenho dúvida de que dez minutos depois que a primeira aula começar toda a escola já vai estar sabendo do que aconteceu ali.
Estou avisando — eu falo. — Você tem até o final do dia.
Viro as costas e saio.
Ou você vai fazer o quê? — ele grita atrás de mim.
Não me dou o trabalho de aceitar a provocação. Ele que imagine a resposta. Meus punhos estão cerrados, e percebo que confundi adrenalina com nervosismo. Por que eu estava tão nervoso? Pela imprevisibilidade da situação? Por ser a primeira vez que enfrento alguém? Pela possibilidade de minhas mãos começarem a brilhar? Provavelmente, pelos três motivos.
Vou ao banheiro, entro em um reservado vazio e tranco a por­ta. Abro as mãos. Percebo um brilho sutil na palma direita. Fe­cho os olhos, suspiro e me concentro em respirar profundamen­te. Um minuto depois o brilho ainda está ali. Balanço a cabeça. Não pensei que o Legado fosse tão sensível. Continuo no reserva­do. Uma camada fina de suor frio cobre minha testa, minhas mãos estão quentes, mas, felizmente, a esquerda ainda parece normal. As pessoas entram e saem do banheiro, e eu permaneço no reservado, esperando. A luz ainda brilha. Finalmente, ouço o sinal anunciando o início do primeiro tempo de aula, e o banheiro fica vazio.
Balanço a cabeça, chateado, e aceito o inevitável. Estou sem celu­lar e Henri está a caminho do banco. Somos apenas minha estupidez e eu, não posso culpar ninguém. Pego as luvas no bolso de trás da calça e as calço. Luvas de couro para jardinagem. Eu pareceria me­nos idiota se estivesse usando sapatos de palhaço e calça amarela. Vou mesmo passar despercebido... Chego à conclusão de que devo deixar Mark para lá. Ele vence. Pode ficar com o celular. À noite Henri e eu compraremos outro.
Saio do banheiro e percorro o corredor vazio até minha sala de aula. Todos olham para mim quando entro, e depois para as luvas. É inútil tentar escondê-las. Pareço um idiota. Sou um alien, tenho poderes extraordinários, com outros ainda por vir, e posso fazer coisas com que um humano jamais sonharia, e ainda assim pareço um idiota.
Eu me sento no meio da sala. Ninguém fala comigo, e estou agitado demais para ouvir o que o professor está dizendo. Quando o sinal toca, junto minhas coisas, guardo-as na mochila e penduro as alças no ombro. Ainda estou com as luvas. Ao sair da sala, levanto um pouco a luva direita para espiar a palma da mão. Continua brilhando.
Percorro o corredor com passos firmes. Respiro devagar. Tento não pensar em nada, mas não funciona. Quando entro na sala da aula seguinte, Mark está sentado no mesmo lugar de ontem, com Sarah a seu lado. Ele me olha com sarcasmo. Tenta se fazer de valente e nem nota minhas luvas.
  Qual é, fujão? Soube que a equipe de corrida está precisando de gente nova.
  Deixe de ser idiota — diz Sarah.
Olho para ela ao passar, para os olhos azuis que fazem eu me sentir tímido e constrangido, que fazem meu rosto queimar. O lu­gar onde me sentei ontem está ocupado, por isso vou para o fundo da sala. A sala fica lotada, e o garoto da véspera, aquele que me preveniu sobre Mark, senta-se a meu lado. Ele está usando outra camiseta preta com o logotipo da Nasa no meio, calça camuflada e tênis Nike. Tem cabelo louro-claro, despenteado, e os óculos fazem seus olhos castanho-claros parecerem enormes. Ele pega um bloco de anotações cheio de diagramas de constelações e planetas. Olha para mim sem sequer tentar esconder que está me encarando.
E aí? — pergunto.
Ele dá de ombros.
Por que está usando luvas?
Abro a boca para responder, mas a Sra. Burton começa a aula. Durante boa parte dela, o garoto à meu lado desenha imagens que parecem ser sua interpretação da aparência dos marcianos. Corpos pequenos; cabeça, mãos e olhos grandes. As mesmas representações estereotipadas que às vezes são mostradas nos filmes. Abaixo de cada desenho, ele escreve seu nome em letras pequenas: Sam Goode. Ele percebe que estou olhando, e desvio o olhar.
Enquanto a Sra. Burton fala sobre as sessenta e uma luas de Satur­no, eu olho para a nuca de Mark. Ele está debruçado sobre a mesa, escrevendo. Depois levanta os ombros e passa um bilhete para Sarah. Ela o devolve sem ler. Isso me faz sorrir. A Sra. Burton apaga as luzes para exibir um vídeo. Os planetas projetados na tela na frente da sala me levam a pensar em Lorien. Ele é um dos dezoito planetas habita­dos do universo. A Terra é outro. Mogadore, infelizmente, é mais um.
Lorien. Fecho os olhos e me permito lembrar. Um planeta velho, cem vezes mais velho do que a Terra. Cada problema que a Terra en­frenta hoje — poluição, superpopulação, aquecimento global, falta de alimento —, tudo isso Lorien já enfrentou. Em dado momento, vinte e cinco mil anos atrás, o planeta começou a morrer. Isso aconteceu muito antes da habilidade de viajar pelo universo, e o povo de Lorien foi forçado a agir para sobreviver. Lentamente, mas de maneira firme, eles assumiram o compromisso de garantir que o planeta se tornasse para sempre autossustentável, mudando sua maneira de viver, dis­pensando tudo o que era prejudicial — armas e bombas, substâncias químicas tóxicas, poluentes —, e com o tempo o dano começou a ser revertido. Com o benefício da evolução, ao longo de milhares de anos, certos cidadãos — a Garde — desenvolveram poderes a fim de proteger e ajudar o planeta. Era como se Lorien houvesse recompensado meus ancestrais pela previdência, pelo respeito.
A Sra. Burton acende as luzes. Eu abro os olhos e olho para o relógio. A aula está quase acabando. Sinto-me calmo outra vez, e havia esquecido completamente minhas mãos. Respiro fundo e abro o punho da luva da mão direita. A luz se apagou! Eu sorrio e removo as luvas. De volta ao normal. Ainda tenho seis aulas hoje. Preciso permanecer em paz até a última.
A primeira metade do dia transcorre sem qualquer incidente. Continuo calmo e não tenho outros encontros com Mark. No al­moço me sirvo do básico, depois encontro uma mesa vazia no fundo do refeitório. Quando estou na metade de um pedaço de pizza, Sam Goode, o garoto da aula de astronomia, senta-se na minha frente.
Vai mesmo brigar com Mark depois da aula? — ele pergunta.
Eu balanço a cabeça.
Não.
É o que as pessoas estão dizendo.
Estão enganados.
Ele dá de ombros e continua comendo. Um minuto depois, pergunta:
Onde foram parar as luvas?
Tirei. Minhas mãos não estão mais frias.
Ele abre a boca para falar alguma coisa, mas uma almôndega gi­gante, que tenho certeza de que foi arremessada em minha direção, acerta-o na nuca. Seus cabelos e ombros ficam cobertos de pedaços de carne e de molho de espaguete. Um pouco disso tudo respin­ga em mim. Estou começando a me limpar quando uma segunda almôndega voadora me acerta no rosto. Ohs ecoam pelo refeitório.
Eu me levanto e limpo o rosto com um guardanapo, sentindo a raiva tomar conta de mim. Nesse instante eu nem me importo com minhas mãos. Elas podem brilhar como o sol, e Henri e eu pode­mos ir embora antes do final do dia, se for necessário. Mas não vou deixar passar mais essa. Não mesmo! Achei que houvesse acabado depois do confronto do início do dia, mas agora...
  Não — Sam me aconselha. — Se lutar contra eles, nunca mais terá paz.
Começo a andar. O silêncio que domina o refeitório é impressionante. Cem pares de olhos estão fixos em mim. Meu rosto é uma máscara de fúria. Há sete pessoas na mesa de Mark, todos rapazes. Os sete se levantam quando me aproximo.
Algum problema? — um deles me pergunta. O garoto é grande, e tem o porte de um atacante. Tufos de cabelos vermelhos crescem em seu rosto e no queixo, como se ele tentasse cultivar uma barba. O efeito é uma aparência meio suja. Como todos os outros, ele também veste um agasalho do time. De braços cruzados, ele se coloca à minha frente.
Você não tem nada a ver com isso — digo.
Vai ter que passar por cima de mim para chegar nele.
Vou passar, se não sair da minha frente.
Não acredito que consiga — ele me desafia.
Empurro o joelho diretamente entre suas pernas. O ar fica preso na garganta do grandalhão, e ele se dobra para a frente. Todos no refeitório emitem exclamações de choque e pavor.
Eu avisei — digo, passando por cima dele para chegar em Mark. Quando estou quase na frente dele, sou agarrado por trás. Viro-me com a mão fechada para dar o primeiro soco, mas, no último segun­do, reconheço o funcionário do refeitório.
Já chega, garotos.
Veja o que ele fez com Kevin, Sr. Johnson — Mark se queixa. Kevin ainda está no chão, segurando as partes ofendidas. Seu rosto está vermelho como uma beterraba. — Mande-o para a diretoria.
Cale a boca, James. Os quatro, fora daqui. Não pense que não vi quando arremessou aquelas almôndegas. — Ele olha para Kevin no chão. — Levante-se.
Sam aparece do nada. Ele tentou limpar a sujeira dos ombros e do cabelo. Os pedaços maiores de carne desapareceram, mas o mo­lho só se espalhou. Não sei bem o que ele faz ali. Examino minhas mãos, pronto para fugir ao primeiro sinal de luz, mas, para minha surpresa, está apagada. Por causa da urgência da situação, eu me comportei sem o nervosismo prévio? Não sei.
Kevin se levanta e olha para mim. Ele está tremendo, ainda com dificuldades para respirar. E agarra os ombros do garoto ao lado dele para se apoiar.
Você vai se arrepender — ele me ameaça.
Duvido — respondo. Ainda estou carrancudo e continuo coberto de comida. Nem penso em me limpar.
Nós todos nos dirigimos à diretoria. O Sr. Harris está sentado atrás de sua mesa, almoçando alguma comida de micro-ondas, com um guardanapo preso no colarinho para proteger a camisa.
  Lamento interromper, mas tivemos um problema durante o almoço. Tenho certeza de que os rapazes aqui vão gostar de dar as explicações — resume o funcionário do refeitório.
O Sr. Harris suspira, retira o guardanapo do colarinho e o joga na lata de lixo. Com a outra mão, empurra o almoço para um canto da mesa.
  Obrigado, Sr. Johnson.
O Sr. Johnson se retira, fechando a porta da sala ao sair, e nós quatro nos sentamos.
  Então, quem quer começar? — o diretor pergunta em tom irritado.
Eu permaneço em silêncio. Os músculos na mandíbula do Sr.
Harris estão tensos. Olho para minhas mãos. Ainda apagadas. Mes­mo assim, apóio as palmas na calça jeans, só por precaução. Após dez segundos de silêncio, Mark começa.
Alguém atirou uma almôndega nele. Ele pensa que fui eu, por isso deu uma joelhada nas bolas de Kevin.
Modere a linguagem — o Sr. Harris o previne. Depois olha para Kevin. — Está tudo bem?
Kevin move a cabeça em sentido afirmativo, com o rosto ainda vermelho.
  Então, quem jogou a almôndega? — o Sr. Harris me pergunta.
Eu nada digo, ainda furioso, irritado com todo o episódio. Respiro fundo tentando me acalmar.
  Não sei — respondo. Minha raiva atinge novos níveis. Não quero lidar com Mark por intermédio do Sr. Harris. Prefiro resolver a situação sozinho, longe da sala do diretor.
Sam me olha surpreso. O Sr. Harris levanta as mãos num gesto frustrado.
Muito bem, então, por que diabos estão aqui?
Essa é uma boa pergunta — diz Mark. — Estávamos apenas almoçando.
Sam se manifesta.
  Mark jogou a almôndega. Eu vi, e o Sr. Johnson também viu.
Eu olho para Sam. Sei que ele não viu nada, porque estava de costas para os garotos quando a primeira almôndega foi arremessa­da, e na segunda ele estava ocupado, tentando se limpar. Mas fico impressionado com o que ele disse, por tomar partido e ficar à meu lado, mesmo sabendo que isso o põe em risco com Mark e os amigos dele. Mark já o encara com ar ameaçador.
  Por favor, Sr. Harris — Mark suplica. — Amanhã tenho a entre­vista para o Gazette, e o jogo na sexta-feira. Não tenho tempo para me preocupar com essas bobagens. Estou sendo acusado de algo que não fiz. É difícil me manter focado com essa merda toda acontecendo.
Olhe a boca! — grita o Sr. Harris.
É verdade.
  Acredito em você — o diretor declara e suspira profundamen­te. Ele olha para Kevin, que ainda tenta recuperar o fôlego. — Preci­sa ir à enfermaria?
  Eu vou ficar bem — diz Kevin.
O Sr. Harris assente.
  Vocês dois, esqueçam o incidente da hora do almoço, e Mark, foco. Já faz algum tempo que estamos tentando conseguir essa maté­ria. Talvez até nos ponham na primeira página. Imagine, a primeira página do Gazette — ele diz sorridente.
Obrigado — Mark responde. — Estou muito animado com isso.
Ótimo. Agora, vocês dois podem ir.
Eles saem, e o Sr. Harris olha para Sam com ar de reprovação. Sam sustenta seu olhar.
  Diga-me, Sam, e eu quero a verdade: você viu Mark arremessar a almôndega?
Sam estreita os olhos, mas não os desvia.
  Sim.
O Sr. Harris balança a cabeça.
Não acredito em você, Sam. E por isso vou lhe dizer o que farei. — Ele olha para mim. — Então, uma almôndega foi arremessada...
Duas — Sam o interrompe.
O quê? — O Sr. Harris olha para Sam com ar muito irritado.
  Duas almôndegas foram arremessadas, não uma. O Sr. Harris dá um soco na mesa.
  Que diferença faz quantas foram? John, você agrediu Kevin. Olho por olho. Vamos deixar tudo como está. Entende o que eu quero dizer?
Ele está muito vermelho, e sei que neste momento é inútil discutir.
Sim — respondo.
Não quero ver vocês dois aqui de novo — ele avisa. — Podem ir.
Saímos da sala do diretor.
Por que não contou a ele sobre seu telefone? — Sam me pergunta.
  Porque ele não se importa. Só queria voltar para o almoço — respondo. — E tome cuidado. Agora você estará na mira de Mark.

Tenho aula de economia doméstica depois do almoço — não necessa­riamente por gostar de cozinhar, mas porque era isso ou coral. E, embo­ra eu tenha muitos poderes e habilidades considerados excepcionais na Terra, cantar não é um deles. Por isso vou para a aula de economia doméstica e me sento. A sala é pequena, e pouco antes do sinal soar, anunciando o início da aula, Sarah entra e se senta a meu lado.
Oi — ela diz.
Oi.
Meu rosto esquenta e meus ombros ficam tensos. Pego uma caneta e começo a girá-la entre os dedos da mão direita, enquanto com a esquerda dobro os cantos de meu caderno. Meu coração dispara. Por favor, mãos, não brilhem. Olho para elas e suspiro aliviado por estarem normais. Mantenha a calma, penso. Ela é só uma garota.
Sarah está olhando para mim. Tenho a sensação de que tudo den­tro de meu corpo começa a derreter. Ela talvez seja a garota mais linda que já conheci.
Lamento por Mark ser tão cretino com você — ela diz.
Eu dou de ombros.
Não é culpa sua.
Vocês não vão brigar, vão?
Eu não quero — digo.
Ela move a cabeça em sentido afirmativo.
  Ele pode ser um cretino, mesmo. Sempre tentando mostrar quem é que manda.
É um sinal de insegurança — respondo.
Ele não é inseguro. É só um cretino.
É claro que ele é. Mas não quero discutir com Sarah. Além do mais, ela fala com tanta certeza, que quase duvido de mim mesmo.
Sarah olha para as manchas de molho de espaguete que secaram em minha camisa, depois estende a mão e tira um pedaço de macar­rão endurecido de meu cabelo.
  Obrigado.
Ela suspira.
  Lamento pelo que aconteceu. — Sarah olha em meus olhos. — Não estamos juntos, sabe?
  Não?
Ela balança a cabeça. Estou intrigado por ela ter sentido necessidade de deixar isso claro para mim. Após dez minutos de instru­ções sobre como fazer panquecas — sem que eu tenha ouvido um minuto sequer —, a professora, Sra. Benshoff, nos põe para traba­lhar juntos, Sarah e eu. Passamos por uma porta no fundo da sala e chegamos a uma cozinha três vezes maior que a sala de aula. Ela contém dez unidades, cada uma delas com refrigerador, armários, pia, fogão. Sarah entra em uma das unidades, pega um avental na gaveta e o coloca.
  Pode amarrar para mim? — ela pede.
Deixo escapar o laço e preciso amarrar de novo. Sinto os contor­nos da parte inferior das costas dela sob meus dedos. Quando termi­no de amarrar o avental de Sarah, coloco o meu e tento amarrá-lo.
É assim, bobo — ela diz e depois pega as tiras e as amarra para mim.
Obrigado.
Tento quebrar o primeiro ovo, mas exagero na força e não consigo salvar nada dele para pôr na tigela. Sarah ri. Ela coloca outro ovo em minha mão e a segura, mostrando-me como quebrar o ovo na borda da vasilha. A mão dela permanece sobre a minha por um segundo além do necessário. Ela me encara e sorri.
  É assim.
Sarah mistura a massa, e mechas de cabelo caem sobre seu ros­to enquanto ela trabalha. Quero muito ajeitá-las atrás da orelha delicada, mas contenho esse desejo. A Sra. Benshoff visita nossa cozinha para verificar nosso progresso. Até então, tudo bem, graças a Sarah, é claro, porque eu não tenho a menor idéia do que estou fazendo.
  O que está achando de Ohio? — Sarah me pergunta.
  Legal. Mas meu primeiro dia na escola podia ter sido melhor.
Ela sorri.
Afinal, o que aconteceu? Fiquei preocupada com você.
Acreditaria se eu dissesse que sou um alien?
Ah, cale a boca — ela responde brincando. — O que aconteceu realmente?
Eu rio.
Tenho asma. Por alguma razão, ontem tive uma crise — digo, lamentando ter de mentir. Não quero que ela veja fraqueza alguma em mim, especialmente fraquezas que nem são reais.
Bem, fico feliz por se sentir melhor.
Fazemos nossas panquecas. Sarah as empilha em um prato. Ela acrescenta uma porção absurda de calda e depois me oferece um garfo. Olho para os outros alunos. A maioria das duplas está comen­do o que preparou, mas em dois pratos. Eu pego um pedaço.
  Nada mau — comento enquanto mastigo.
Não estou com um pingo de fome, mas ajudo Sarah a devorar todas as panquecas. Vamos nos servindo alternadamente até o prato ficar vazio. Quando terminamos, estou com dor de estômago. De­pois, ela lava os pratos e utensílios, e eu os enxugo. Quando o sinal soa no corredor, saímos juntos da sala.
Sabe, você não é ruim para um aluno do segundo ano — ela diz, cutucando-me com o cotovelo. — Não me incomodo com o que dizem.
Obrigado. Você também é legal para uma... seja lá o que for.
Sou caloura.
Caminhamos em silêncio por alguns instantes.
Não vai realmente brigar com Mark no final do dia, vai?
Preciso do meu celular de volta. Além do mais, olhe para mim — digo, apontando para minha camiseta.
Ela dá de ombros. Eu paro na frente do meu armário. Ela registra o número.
  Bem, não deveria brigar — opina.
Não quero brigar. Ela revira os olhos.
Os garotos e suas brigas. Bem, vejo você amanhã.
Tenha um bom restante de dia — respondo.

Depois de minha última aula, história americana, caminho lentamente até meu armário. Penso em simplesmente deixar a escola sem chamar a atenção, sem procurar por Mark. Mas percebo que, se agir assim, serei rotulado eternamente como um covarde.
Paro na frente do meu armário e guardo todos os livros de que não vou precisar. Depois, fico ali parado, sentindo o nervosismo que come­ça a me invadir. Minhas mãos ainda estão normais. Penso em calçar as luvas por precaução, mas não é o que faço. Respiro profundamente e fecho a porta do armário.
  Oi.
A voz me assusta. É Sarah, e ela olha para trás antes de me fitar novamente.
Trouxe algo para você.
Não é mais panqueca, é? Ainda estou me sentindo como se fosse explodir.
Ela ri, nervosa.
  Não é panqueca. Mas, se eu lhe der o que tenho aqui, vai ter que me prometer que não vai brigar.
  Tudo bem — concordo.
Ela olha para trás novamente e, depressa, enfia a mão em um compartimento externo da bolsa, de onde tira meu celular. Sarah me entrega o aparelho.
Como conseguiu recuperá-lo?
Ela encolhe os ombros.
Mark sabe?
Não. Ainda vai bancar o valentão? — ela insiste.
Acho que não.
Que bom.
Obrigado. — Não posso acreditar que ela fez algo tão arriscado por mim, eu, alguém que ela nem conhece. Mas não estou reclamando.
Não foi nada — ela responde, antes de se virar e se afastar apressadamente pelo corredor. Eu a observo o tempo todo, sem con­seguir conter um sorriso. Quando estou saindo da escola, Mark Ja­mes e oito de seus amigos estão me esperando na porta.
Ora, ora, ora — diz Mark. — Conseguiu ficar até o fim do dia, então?
Com certeza. E veja só o que eu encontrei — digo, exibindo meu telefone celular. Seu queixo cai. Passo por ele sem pressa e saio do prédio.

CAPÍTULO OITO

HENRI  ME  ESPERA  EXATAMENTE  ONDE  DISSE  QUE  ESTARIA. EU ENTRO NA caminhonete ainda sorrindo.
Dia bom? — ele me pergunta.
Nada mau. Recuperei meu celular.
Sem brigar?
Sem nada muito importante.
Ele me estuda desconfiado.
Acha que vou querer saber o que isso significa?
Provavelmente não.
Suas mãos brilharam alguma vez?
Não — minto. — Como foi seu dia?
Ele segue pelo caminho que contorna a escola.
Foi bom. Depois de deixá-lo na escola, dirigi por uma hora e meia até Columbus.
Por que Columbus?
Porque há bancos grandes lá. Não queria despertar suspeitas com uma solicitação de transferência de um valor maior do que o saldo da cidade inteira.
Eu concordo, movendo a cabeça.
  Sensato.
Ele pega a estrada.
E, então, não vai me dizer o nome dela?
O quê?
Deve haver uma razão para esse seu sorriso ridículo. E a razão mais óbvia é uma garota.
Como sabe?
—John, meu amigo, em Lorien este velho Cêpan era um conquistador.
Está brincando — respondo. — Isso não existe em Lorien.
Ele assente com ar de aprovação.
Ah, esteve prestando atenção.
O povo lórico é monogâmico. Quando nos apaixonamos, é para sempre. O casamento costuma acontecer por volta dos vinte e cinco anos e não tem nada a ver com lei. É mais baseado em promessa e compromisso do que em qualquer outra coisa. Henri era casado ha­via vinte anos quando partiu comigo. Dez anos se passaram, mas sei que ele ainda sente falta da esposa todos os dias.
  Então, quem é ela? — Henri pergunta.
  O nome dela é Sarah Hart. Ela é filha da corretora de imóveis de quem você comprou a casa. Faz duas aulas comigo. É caloura.
Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
Bonita?
Muito. E inteligente.
Sim — ele responde devagar. — Estou esperando por isso há algum tempo. Só não esqueça que podemos ter de partir de uma hora para outra.
Eu sei — digo. E o restante do trajeto até em casa é percorrido em silêncio.

Quando chegamos em casa, a Arca Lórica está sobre a mesa da cozi­nha. Ela tem o tamanho de um micro-ondas, é quase perfeitamente quadrada, meio metro por meio metro. Uma onda de entusiasmo me invade. Eu me aproximo dela e seguro o cadeado.
Acho que estou mais animado com a possibilidade de descobrir como isto é destrancado do que com o que há dentro dela — confesso.
É mesmo? Bem, posso mostrar como abrir o cadeado, e depois voltamos a fechá-lo e esquecemos o que há dentro da arca.
Eu sorrio para ele.
Não seja tão radical. Vamos lá, o que tem aqui dentro?
É sua Herança.
Como assim, minha Herança? O que quer dizer com isso?
Aquilo que é dado a cada Garde na hora de seu nascimento para ser usado por seu Guardião quando o Garde começa a desen­volver seu Legado.
Escuto com grande entusiasmo.
Sim, e o que há dentro dela?
Sua Herança.
A resposta evasiva me deixa frustrado. Pego o cadeado e tento abri-lo à força, como fiz tantas outras vezes. É claro que nada consigo.
Não pode abri-lo sem mim, e eu não posso abri-lo sem você — Henri explica.
Bem, e como vamos abri-lo? Não vejo um buraco para chave.
Usamos a vontade.
  Ah, por favor, Henri. Acabe com o segredinho.
Ele pega o cadeado.
  Ele só se abre quando estamos juntos, e só depois da formação de seu primeiro Legado.
Henri caminha até a porta da frente e olha para fora, depois a fecha e tranca. E volta para perto de mim.
Pressione a palma da mão contra a lateral do cadeado — diz.
Eu sigo a orientação.
É quente — comento.
Ótimo. Isso significa que você está pronto.
  E agora?
Ele pressiona a própria mão contra o outro lado do cadeado e en­trelaça os dedos nos meus. Um segundo depois, ouvimos um estalo. A fechadura se abriu.
  Incrível! — exclamo.
  A arca é protegida por um feitiço lórico, como você. O cadea­do não pode ser quebrado. Pode passar por cima dele com um rolo compressor e não vai conseguir nem amassá-lo. Só nós dois pode­mos abri-lo, e juntos. A menos que eu morra; então você poderá abri-lo sozinho.
  Bem, espero que isso não aconteça — declaro.
Tento levantar a tampa da arca, mas Henri segura minha mão e me impede.
  Ainda não — ele diz. — Há coisas aqui que você não está pre­parado para ver. Vá se sentar no sofá.
Henri, por favor.
Confie em mim — ele diz.
Balanço a cabeça e me sento. Ele abre a arca e pega dali uma pedra que deve ter uns quinze centímetros de comprimento e cinco centí­metros de espessura. Depois, fecha a caixa e a tranca com o cadeado, e só então traz a pedra até mim. Ela é perfeitamente lisa e oblonga, clara na parte externa, mas opaca no centro.
O que é isso? — pergunto.
Um cristal lórico.
Para que serve?
  Segure-o — ele diz, entregando-me a pedra. No segundo em que minhas mãos tocam nela, as luzes se acendem em minhas pal­mas. E agora são ainda mais brilhantes que no dia anterior. A pedra começa a aquecer. Eu a levanto para estudá-la melhor. A massa fosca no centro está girando, movendo-se em torno dela mesma como uma onda. Sinto o pingente em meu pescoço aquecendo também. Estou eufórico com tudo isso. Passei toda a minha vida esperando impa­cientemente pela chegada de meus poderes. Sim, é claro que houve momentos em que tive esperança de que eles nunca aparecessem, principalmente para que pudéssemos enfim nos instalar em algum lugar e levar uma vida normal; mas agora, quando seguro o cristal que contém em seu centro o que parece ser uma bola de fumaça, ciente de que minhas mãos são resistentes ao fogo e ao calor, que mais Legados estão por vir e que serão seguidos por meu maior po­der (o poder que vai me permitir lutar) — bem, agora tudo fica muito legal e excitante. Não consigo parar de sorrir.
  O que está acontecendo com o cristal?
  Ele está ligado ao seu Legado. Seu toque o ativa. Se você não estivesse desenvolvendo o Lúmen, o cristal se acenderia como acon­tece com suas mãos. Mas, em seu caso, é o contrário.
Olho para o cristal e vejo a fumaça girar e cintilar.
  Podemos começar? — Henri pergunta.
Eu movo a cabeça em sentido afirmativo, sem esconder minha ansiedade.
  Sim, sim.

O dia ficou frio. A casa está silenciosa, exceto por uma ou outra rajada de vento estremecendo as janelas. Estou deitado de costas sobre a mesinha de madeira. Minhas mãos pendem das laterais da mesa. Em algum momento, Henri vai acender um fogo embaixo de­las. Mantenho minha respiração estável e lenta, conforme as instru­ções de Henri.
  Precisa manter os olhos fechados — ele diz. — Ouça o vento. Talvez sinta alguma queimação nos braços quando eu passar o cris­tal por eles. Ignore a sensação tanto quanto puder.
Escuto o vento soprando entre as árvores lá fora. De alguma forma, consigo senti-las se dobrando, balançando.
Henri começa por minha mão direita. Ele pressiona o cristal contra o dorso, depois o desliza até meu pulso e sobe pelo braço. Sinto certo ardor, como ele previu, mas não é suficiente para tentar afastar o braço.
— Deixe sua mente vagar, John. Vá para onde precisa ir.
Não sei do que ele está falando, mas tento esvaziar a mente e res­pirar bem devagar. Imediatamente, sinto que estou me afastando. O sol surge de algum lugar e aquece meu rosto, e o vento agora é bem mais quente do que aquele que sopra além das paredes de nossa casa. Quando abro os olhos, não estou mais em Ohio.
Estou sobre uma vasta área arborizada, acima das copas, e nada posso ver além de uma imensa floresta. Céu azul, sol forte, um sol cujo tamanho é quase o dobro daquele que aquece a Terra. Um ven­to suave e morno brinca com meu cabelo. Lá embaixo, rios cavam sulcos que cortam a vegetação. Flutuo sobre um deles. Animais de todas as formas e tamanhos — alguns longos e finos, outros com braços curtos e corpos roliços, alguns com pelos e outros com pele escura que parece ser áspera ao toque —, todos bebem a água fresca à margem do rio. Há uma curva na linha do horizonte muito longe dali, e sei que estou em Lorien. É um planeta dez vezes menor que a Terra, e é possível ver a curva de sua superfície quando se olha para ela de uma distância suficientemente grande.
De alguma forma, posso voar. Movimento-me e giro no ar, depois mergulho e deslizo velozmente em sentido paralelo ao curso do rio, bem perto dele. Os animais levantam a cabeça e olham para mim, curiosos, mas sem medo. Lorien em seu auge, coberto de vegetação, habitado por animais. De certo modo, é parecido com o que imagino que tenha sido a Terra milhões de anos atrás, quando o planeta rei­nava soberano sobre a vida de suas criaturas, antes de os humanos chegarem e dominarem tudo. Lorien em seu apogeu; sei que hoje não é mais assim. Devo estar vivendo uma lembrança. Mas não é minha, certamente.
O dia se adianta até mergulhar na escuridão. Começa ao longe uma grande exibição de fogos de artifício, com luzes que se erguem para o céu e explodem na forma de animais e de árvores, com o céu escuro, as luas e um milhão de estrelas como um radiante cenário.
  Posso sentir o desespero deles — ouço em algum lugar. Eu me viro e olho em volta. Não há ninguém perto de mim. — Eles sabem onde está um dos outros, mas o feitiço se mantém. Não podem toca­da, a menos que matem você antes. Mas continuam atrás dela.
Eu vôo alto, depois mergulho, procurando pela origem da voz. De onde ela vem?
Sigo adiante, na direção dos fogos de artifício. A voz me enerva. Talvez as explosões poderosas soem mais altas que a voz.
  Eles tinham esperança de matar todos nós antes de seus Lega­dos se desenvolverem. Mas nos mantivemos escondidos. Precisa­mos manter a calma. Os três primeiros entraram em pânico. Os três primeiros estão mortos. Precisamos ser cautelosos e astutos. Quan­do entramos em pânico, cometemos erros. Eles sabem que o desen­volvimento de vocês dificulta tudo para eles, e, quando todos vocês estiverem plenamente desenvolvidos, a guerra será travada. Vamos reagir e nos vingar, e eles sabem disso.
Vejo bombas caindo de algum lugar muitos quilômetros acima da superfície de Lorien. Explosões sacodem o chão e o ar, gritos viajam no vento, labaredas lambem a terra e as árvores. A floresta queima. Deve haver mil aeronaves diferentes, todas descendo e aterrissando em solo lórico. Soldados mogadorianos brotam delas, portando armas e granadas cujo poder é muito maior do que aquele utilizado na guerra ali. Eles são mais altos que nós, mas ainda se parecem conosco, exceto pelo rosto. Eles não têm pupilas, e as íris são cor de maravilha, magenta. Alguns têm as íris pretas. Círcu­los escuros e pesados emolduram seus olhos, e há uma palidez na pele — quase como se fosse descolorida. Seus dentes brilham entre lábios que nunca se aproximam e são tão pontiagudos que parecem ter sido lixados.
As bestas de Mogadore saem dos aviões logo depois, e há em seus olhos a mesma expressão fria. Alguns são grandes como casas, exibem os dentes afiados e rugem tão alto que chegam a ferir meus ouvidos.
  Fomos descuidados, John. Por isso nos derrotaram com tanta facilidade — ele diz. Agora sei que a voz que estou ouvindo é de Henri. Mas não posso vê-lo, e não consigo desviar os olhos da ma­tança e da destruição que acontece lá embaixo, por isso não posso procurá-lo. As pessoas estão correndo em todas as direções, lutan­do. Mogadorianos e lorienos são mortos na mesma medida. Mas os lorienos estão perdendo a batalha contra as bestas, que matam nosso povo às dúzias: sopram fogo, rasgam com os dentes, atacam ferozmente com braços e caudas. O tempo passa depressa, muito mais do que o normal. Quanto já passou? Uma hora? Duas?
A Garde lidera a luta, exibindo claramente seus Legados. Alguns voam, outros correm com tal velocidade que mais parecem borrões, e outros desaparecem completamente. Raios brotam de suas mãos, corpos são envolvidos em chamas, nuvens de tempestade se formam associadas a ventos fortes sobre aqueles que conseguem controlar o clima. Mas, mesmo assim, eles estão perdendo. Estão em menor número, e a proporção é de quinhentos para um. Seus poderes não são suficientes.
  Nossa guarda relaxou. Os mogadorianos planejaram bem, esco­lhendo o momento exato em que sabiam que estávamos mais vulne­ráveis, quando os Anciões do planeta não estavam mais presentes. Pittacus Lore, o maior deles, o líder, os havia reunido antes do ata­que. Ninguém sabe o que aconteceu a eles, ou para onde foram, ou se ainda estão vivos. Talvez os mogadorianos os tenham destruído primeiro e atacado somente depois de terem tirado os Anciões do caminho. Tudo o que sabemos realmente é que havia uma coluna de luz branca e cintilante que subia ao céu, até onde os olhos podiam al­cançar, naquele dia em que os Anciões se reuniram. Essa luz brilhou o dia todo, depois desapareceu. Como um povo, nós deveríamos ter reconhecido a manifestação como um sinal de que havia algo errado, mas não percebemos nada. Não podemos culpar ninguém além de nós mesmos pelo que aconteceu. Tivemos sorte de tirar alguns do planeta, especialmente por serem nove jovens Gardes que um dia podem continuar a luta e manter viva nossa raça.
Ao longe, uma nave corta o céu muito alto e em velocidade espan­tosa, deixando atrás dela um rastro azul. Do meu ponto de observação, acompanho-a até que ela desaparece. Há algo familiar naquela nave. Então compreendo: eu estou nela, e Henri também. É a nave que nos leva para a Terra. Os lorienos deviam ter percebido que haviam sido vencidos. Por que mais nos mandariam para longe?
Matança desnecessária. É essa a impressão que tenho do que vejo. Piso no chão e caminho através de uma bola de fogo. Estou furioso. Homens e mulheres estão morrendo. Gardes e Cêpans, e também crianças indefesas. Como isso pode ser tolerado? Como o coração dos mogadorianos pode ser tão duro? E por que eu fui poupado?
Atiro-me contra um soldado próximo, mas passo através dele e caio. Tudo o que estou testemunhando já aconteceu. Sou espectador de nossa extinção, e não há nada que eu possa fazer.
Eu me viro e vejo uma besta que deve ter uns doze metros de altura, com ombros muito largos, olhos vermelhos, e chifres de seis metros de comprimento. Vejo a baba pingando de seus dentes longos e afiados. Ele ruge e em seguida ataca.
Ele passa direto através de mim, mas dizima uma dúzia de lorienos à minha volta. Devora-os. Em um segundo, todos desaparecem. E a besta segue seu caminho engolindo mais lorienos.
Enquanto vejo a cena de destruição, escuto um ruído estridente, algo não relacionado com a carnificina em Lorien. Estou me afastan­do dali, voltando. Duas mãos seguram meus ombros, pressionando-os para baixo. Meus olhos se abrem e estou novamente em casa, em Ohio. Meus braços continuam pendendo da mesa de café. Centíme­tros abaixo há dois fogareiros, e minhas mãos e meus pulsos estão completamente mergulhados nas chamas. Não sinto nada. Nenhum efeito. Henri se debruça sobre mim. O ruído que ouvi um minuto atrás vem da varanda.
O que é isso? — sussurro, sentando-me na mesa.
Não sei — ele diz.
Ficamos em silêncio, tentando ouvir. O barulho se repete mais três vezes, como se alguma coisa arranhasse a porta. Henri olha para mim.
  Tem alguém lá fora — ele diz.
Olho para o relógio na parede. Quase uma hora se passou. Estou suando, ofegante, perturbado com as cenas de morte que acabei de testemunhar. Pela primeira vez, entendo realmente o que aconteceu em Lorien. Antes desta noite os eventos eram apenas parte de mais uma história, não muito diferente de tantas outras que li nos livros. Mas agora vi o sangue, as lágrimas, os mortos. Vi a destruição. Ela é parte de quem eu sou.
Lá fora, a escuridão já envolveu o mundo. A porta é arranhada mais três vezes, e depois ouvimos um gemido baixo. Nós dois pula­mos. Penso imediatamente nos rugidos baixos que ouvi das bestas.
Henri corre até a cozinha e pega uma faca na gaveta sob a pia.
Vá para trás do sofá.
O que, por quê?
Porque estou mandando.
Acha que essa faquinha vai derrubar um mogadoriano?
Sim, se eu acertar o coração. Agora, faça o que eu mandei.
Eu desço da mesinha e rastejo até o sofá, encolhendo-me atrás dele. Os dois fogareiros continuam acesos, e visões fracas de Lorien ainda circulam por minha cabeça. Um grunhido impaciente soa do outro lado da porta. Não há como negar: alguém ou alguma coisa está parado ali, em frente à entrada. Meu coração dispara. — Fique abaixado — diz Henri.
Levanto a cabeça para poder espiar por cima do encosto do sofá. Todo aquele sangue, eu penso. Com certeza eles sabiam que esta­vam em menor número, derrotados, mas lutaram até o fim, morre­ram para salvar uns aos outros, morreram para salvar Lorien. Henri segura a faca com força. Devagar, ele aproxima a mão da maçaneta metálica. A raiva cresce dentro de mim. Espero que seja um deles. Queria que um mogadoriano passasse por aquela porta. Ele encon­traria alguém à sua altura.
Não vou ficar atrás do sofá. Não mesmo. Estendo o braço e agarro um dos fogareiros, enfio a mão nele e retiro de lá um pedaço de ma­deira incandescente com uma ponta afiada. Ela é fria ao toque, mas o fogo continua ardendo, envolvendo minha mão. Seguro o pedaço de madeira como uma lança. Que venham, eu penso. Ninguém aqui vai fugir. Henri olha para mim, respira fundo e abre a porta.

CAPÍTULO NOVE

TODOS OS MÚSCULOS DO MEU CORPO ESTÃO FLEXIONADOS, TENSOS. HENRI SALTA através do batente e eu estou pronto para segui-lo. Posso sentir o tum-tum-tum no peito. As articulações de meus dedos estão brancas pela força com que seguro a estaca em chamas. Uma rajada de vento entra pela porta e o fogo dança em minha mão, subindo até o pulso. Não há ninguém ali. Henri relaxa e ri, olhando para o chão perto de seus pés. Lá, fitando Henri com ar suplicante, vejo o mesmo beagle que vi ontem na escola. O cachorro balança a cauda e bate com uma das patas no chão. Henri se abaixa e o afaga; então, o cão passa por ele e entra em casa com a língua pendendo da boca.
O que ele está fazendo aqui? pergunto.
Conhece esse cachorro?
  Eu o vi na escola. Ele me seguiu por um bom tempo ontem, depois de você ter me deixado lá.
Solto a estaca e limpo a mão na calça jeans, deixando nela um ras­tro de fuligem e cinzas. O cachorro se senta aos meus pés e olha para mim cheio de expectativa, o rabo batendo barulhento no piso de madeira. Eu me sento no sofá e olho para os dois fogareiros. Agora que o excitamento da situação passou, minha mente retorna à visão e às cenas que testemunhei. Ainda posso ouvir os gritos, ainda vejo como o sangue brilhava sobre a relva banhada pelo luar, ainda vejo os corpos e as árvores caídas, o brilho vermelho nos olhos das bestas de Mogadore, o terror nos olhos dos lorienos. Olho para Henri.
Eu vi o que aconteceu. Pelo menos o início de tudo.
Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
Pensei que poderia ver.
E ouvi sua voz. Estava falando comigo?
Sim.
  Não entendo — eu disse. — Foi um massacre. Era muito ódio que justificasse interesse apenas em nossos recursos. Devia haver mais do que isso.
Henri suspira e se senta na mesinha de centro, à minha frente. O cachorro pula em meu colo. Eu o afago. Ele está imundo, com o pelo engordurado e duro. Há uma medalha em forma de bola de futebol americano presa à sua coleira, mas boa parte da tinta marrom des­botou. Eu a seguro entre os dedos e consigo ler o número 19 de um lado, o nome Bernie Kosar do outro.
  Bernie Kosar — digo, e o cão abana a cauda com mais vigor. — Acho que é esse o nome dele, como aquele cara do pôster na minha parede. Deve ser alguém popular por aqui, acho. — Deslizo a mão pelas costas do animal. — Ele não parece ter casa — digo. — E está com fome. — Consigo perceber de algum jeito.
Henri assente. Ele olha para Bernie Kosar. O cachorro se estica, apóia o queixo nas patas e fecha os olhos. Eu abro o isqueiro, acen­do a chama e a seguro sob meus dedos, depois sob a palma, depois a deslizo pela parte inferior do braço. Só sinto o ardor quando a chama está a dois ou três centímetros do cotovelo. Não sei o que Henri fez, mas funcionou. Minha resistência aumentou. Fico me perguntando quanto tempo vai levar até eu me tornar inteiramente resistente.
Então, o que aconteceu? — pergunto.
Henri inspira profundamente.
Tive aquelas visões também. Tão reais quanto se eu estivesse lá.
Nunca havia me dado conta de quanto tudo foi terrível. Quero dizer, sei que você me contou, mas não entendia realmente a exten­são dos acontecimentos, até vê-los com meus próprios olhos.
Os mogadorianos são diferentes de nós, sigilosos e manipuladores, desconfiados de quase tudo. Eles têm certos poderes, mas não são como os nossos. Eles são sociáveis e vivem bem nas cidades movimentadas. Quanto maior a população, melhor. Por isso você e eu ficamos longe das grandes cidades agora, mesmo que viver em uma delas possa ser melhor para quem quer se perder na multidão. Eles também se perderiam e desapareceriam na multidão com gran­de facilidade.
Eu escuto com interesse e atenção.
Henri continua falando:
  Há cerca de um século, Mogadore começou a morrer, como aconteceu com Lorien vinte e cinco mil anos antes. Eles não reagiram como nós, porém, não entenderam o que acontecia, como a população humana começa a entender agora. Eles ignoraram o processo. Mataram seus oceanos e encheram rios e lagos com lixo, aterrando-os para aumentar a área de suas cidades. A vegetação co­meçou a morrer, o que causou a morte dos herbívoros, e depois dos carnívoros. Eles sabiam que precisavam tomar uma medida drástica.
Henri fechou os olhos, mantendo-se em silêncio por um minuto.
  Sabe qual é o planeta habitado mais próximo de Mogadore? — ele pergunta finalmente.
  Sim, é Lorien. Ou era, pelo menos.
Henri assente.
  Sim, é Lorien. E tenho certeza de que agora você sabe que eram nossos recursos que eles queriam.
Eu concordo movendo a cabeça. Bernie Kosar levanta a dele e boceja, preguiçoso. Henri aquece no micro-ondas um peito de fran­go cozido, corta-o em tiras e leva o prato para o sofá, colocando-o à frente do cachorro. O animal come com ferocidade, como se não comesse há dias.
  Há um grande número de mogadorianos na Terra — Henri con­tinua. — Não sei quantos são, mas posso senti-los quando durmo. Às vezes posso vê-los em meus sonhos. Nunca sei dizer onde estão ou o que estão dizendo. Mas eu os vejo. E não acredito que seis de vocês sejam a única razão que os traga aqui em tão grande número.
  O que quer dizer? Que outro motivo haveria para estarem aqui?
Henri me encara.
Sabe qual é o segundo planeta habitado mais próximo de Mogadore?
É a Terra, não é?
Mogadore tem o dobro do tamanho de Lorien, mas a Terra é cinco vezes maior que Mogadore. Em termos de defesa, a Terra é mais bem preparada para uma ofensiva por causa de seu tamanho. Os mo­gadorianos precisam entender melhor o planeta antes de poderem atacá-lo. Não posso lhe dizer como exatamente fomos derrotados com tanta facilidade, porque ainda há muito que não consigo en­tender nisso tudo. Mas posso dizer, com certeza, que parte disso foi uma combinação do conhecimento deles sobre nosso planeta e nosso povo, e de não termos outra defesa além de nossa inteligência e dos Legados da Garde. Você pode dizer o que quiser sobre os mogadoria­nos, mas eles são estrategistas brilhantes em uma guerra.
Continuamos sentados em silêncio por alguns instantes, ouvindo o vento lá fora.
  Não creio que eles estejam interessados nos recursos da Terra — Henri opina.
Eu suspiro e olho para ele.
  Por que não?
  Mogadore ainda está morrendo. Embora eles tenham resolvido os problemas mais prementes, a morte do planeta é inevitável, e eles sabem disso. Acho que planejam matar os humanos. Eles querem fazer da Terra seu lar permanente.

Depois do jantar, dou um banho em Bernie Kosar usando xampu e condicionador. Eu o penteio com uma escova velha que encontrei em uma das gavetas, provavelmente esquecida pelo inquilino ante­rior. Ele tem aparência e cheiro muito melhores agora, mas a coleira ainda tem odor horroroso. Eu a removo e jogo fora. Antes de ir para cama, abro a porta da frente para ele, mas o cachorro não está inte­ressado em sair. Em vez disso, ele se deita no chão e apóia o queixo nas patas dianteiras. Posso sentir seu desejo de ficar em casa conos­co. Gostaria de saber se ele pode sentir o mesmo desejo em mim.
  Acho que temos um novo bichinho de estimação — Henri diz.
Eu sorrio. Assim que o vi, tive esperança de que Henri me deixas­se ficar com ele.
  É, parece que sim — respondo.
Meia hora mais tarde, quando vou para cama, Bernie Kosar pula em cima dela e se deita encolhido aos meus pés. Em poucos minu­tos ele começa a roncar. Eu passo algum tempo deitado de costas, olhando para a escuridão, com a cabeça ocupada com um milhão de pensamentos. Imagens da guerra: a expressão de ganância e fúria dos mogadorianos; o olhar furioso e duro das bestas; a morte e o sangue. Penso na beleza de Lorien. Haverá novamente vida naquele planeta, ou Henri e eu ficaremos esperando para sempre aqui na Terra?
Tento banir pensamentos e imagens de minha cabeça, mas eles não ficam longe por muito tempo. Eu me levanto e ando pelo quarto por alguns minutos. Bernie Kosar levanta a cabeça e olha para mim, mas logo volta a dormir. Eu suspiro, pego meu celular no criado-mudo e o examino para ter certeza de que Mark James não mexeu em nada. O número de Henri ainda está na agenda, mas não é mais o único. Outro foi adicionado. O de Sarah Hart. Depois do final da última aula, e antes de ir me encontrar na frente dos armários, Sarah salvou o número dela em meu celular.
Fecho o telefone, deixo-o sobre o criado-mudo e sorrio. Dois mi­nutos depois, pego-o outra vez e verifico a agenda, para ter certeza de que não estava enxergando coisas que não existem. Eu não es­tava. Fecho o aparelho e o deixo no mesmo lugar, só para pegá-lo cinco minutos depois e olhar novamente para o número dela. Não sei quanto tempo levo para dormir, mas, finalmente, consigo pegar no sono. Quando acordo de manhã, o telefone ainda está em minha mão, apoiado no peito.

CAPÍTULO DEZ

BERNIE KOSAR ESTÁ ARRANHANDO A PORTA DE MEU QUARTO QUANDO ACORDO. Eu o deixo sair. Ele ronda o quintal, correndo com o focinho bem perto do chão. Satisfeito depois de cobrir os quatro cantos do espa­ço cercado, ele corre para o meio das árvores e desaparece. Fecho a porta e vou tomar banho. Saio dez minutos mais tarde, e ele está novamente dentro de casa, sentado no sofá. O cachorro balança o rabo ao me ver.
  Você o deixou entrar? — pergunto a Henri, que está sentado à mesa da cozinha com seu laptop aberto e quatro jornais empilhados diante dele.
  Sim.
Saímos depois de um café da manhã rápido. Bernie Kosar corre à nossa frente, depois para e se senta, olhando para a porta da cami­nhonete no lado do passageiro.
Isso é meio esquisito, não acha? — eu comento.
Henri dá de ombros.
Parece que ele está acostumado a andar de carro. Deixe-o entrar.
Abro a porta, e o cão salta para dentro da caminhonete. Ele se
senta no meio do banco da frente, com a língua para fora da boca. Quando passamos pelo portão, ele se muda para meu colo e bate com a pata na janela. Eu a abro, e ele inclina metade do corpo para fora, ainda de boca aberta, com o vento balançando suas orelhas. Cinco quilômetros depois, Henri pára na frente da escola. Eu abro a porta e Bernie Kosar salta para fora na minha frente. Eu o coloco de volta na caminhonete, mas ele sai novamente. Devolvo-o ao interior da caminhonete e preciso segurá-lo para impedir que saia antes que eu consiga fechar a porta. Ele fica equilibrado nas patas traseiras, com as dianteiras apoiadas na janela aberta, e eu afago sua cabeça.
Trouxe as luvas? — Henri pergunta.
Sim.
O celular?
Sim.
Como se sente?
Bem — respondo.
Tudo bem. Telefone para mim se tiver algum problema.
Ele vai embora, e Bernie Kosar me observa pela janela até a cami­nhonete desaparecer além de uma curva.
Sinto um nervosismo semelhante ao que experimentei ontem, mas por motivos diferentes. Em parte, quero ver Sarah imediatamente, mas, em parte, espero não vê-la. Não sei o que vou dizer a ela. E se não conseguir pensar em nada e ficar parado com cara de idiota? E se ela estiver com Mark quando eu a vir? Devo cumprimen­tá-la e correr o risco de provocar outro confronto ou simplesmente passar direto e fingir que não vi nenhum dos dois? E eu sei que os verei na segunda aula. Não há como evitar.
Caminho para meu armário. Minha mochila está cheia de livros que eu devia ter lido na noite passada, mas que nem abri. Havia muitos pensamentos e imagens ocupando minha cabeça. Eles não foram embora, e é difícil imaginar que algum dia irão. Tudo é muito diferente do que eu imaginava. A morte não é como mostram os fil­mes. Os sons, as imagens, os cheiros... Tudo é muito diferente.
Quando paro diante de meu armário, percebo imediatamente que há algo errado. O puxador de metal está coberto de terra, ou algo que parece terra. Não sei ao certo se devo abri-lo, mas respiro fundo e abro. O armário está cheio de esterco, e, quando puxo a porta, boa parte dele cai, uma porção em meus sapatos. O cheiro é horrível. Eu fecho a porta com força. Sam Goode está parado atrás dela, e sua apa­rição repentina me assusta. Ele parece desamparado, e está vestindo uma camiseta da Nasa pouco diferente daquela que usava ontem.
  Oi, Sam — cumprimento.
Ele olha para a pilha de esterco no chão, depois para mim.
Você também?
Ele assente.
Vou à diretoria. Quer vir comigo?
Ele balança a cabeça, depois se vira e vai embora sem dizer nada. Eu vou até a sala do Sr. Harris, bato na porta e entro sem esperar por uma autorização. Ele está sentado atrás de sua mesa, usando uma gravata com a estampa da mascote da escola, nada menos que vinte pequenas cabe­ças de pirata espalhadas por ela. O diretor sorri orgulhoso ao me ver.
  Hoje é um grande dia, John — diz. Não sei do que ele está fa­lando. — Os repórteres do Gazette devem chegar aqui em até uma hora. Primeira página!
Então eu lembro, a grande entrevista de Mark para o jornal local.
  Deve estar muito orgulhoso — digo.
Estou orgulhoso de todos e de cada um dos alunos de Paradise. — O sorriso não desaparece de seu rosto. Ele se reclina na cadeira, entrela­ça os dedos e apóia a mão sobre a barriga. — O que posso fazer por você?
Só queria informar que meu armário estava cheio de esterco esta manhã.
Como assim, "cheio"?
Cheio, Sr. Harris. Alguém encheu o armário de esterco.
Esterco? — ele repetiu, confuso.
  Sim.
Ele ri. Fico chocado com sua falta de consideração e sou tomado pela raiva. Meu rosto fica quente.
  Vim até aqui informá-lo para que o armário seja limpo. O armá­rio de Sam Goode também foi recheado de esterco.
Ele suspira e balança a cabeça.
  Vou mandar o Sr. Hobbs, o zelador, limpar seu armário agora mesmo. E farei uma investigação completa.
Nós dois sabemos quem foi, Sr. Harris.
Ele olha para mim com um sorriso paternal.
Eu vou cuidar da investigação, Sr. Smith.
É inútil argumentar, por isso saio da diretoria e vou ao banheiro lavar as mãos e o rosto com água fria. Preciso me acalmar. Não quero usar as luvas hoje de novo. Talvez eu não deva fazer nada a respeito, simplesmente esquecer o episódio. Isso vai pôr fim à provocação? Além do mais, que alternativas eu tenho? Estou em minoria, e meu único aliado é um aluno do segundo ano que tem quarenta e cinco quilos e obsessão por extraterrestres. Bem, talvez não seja verdade... Talvez eu tenha outra aliada em Sarah Hart.
Olho para baixo. Minhas mãos estão normais, não brilham. Saio do banheiro. O zelador já está removendo o esterco de meu armário, retiran­do os livros e os jogando no lixo. Passo por ele, entro na sala e espero pelo começo da aula. A professora discute regras gramaticais, sendo o princi­pal tópico a diferença entre tempos verbais e o uso do gerúndio. Presto mais atenção do que ontem, mas com a aproximação do final da aula vou ficando nervoso com a seguinte. Não porque posso encontrar Mark... Mas porque posso ver Sarah. Ela vai sorrir para mim hoje, outra vez? Acho que vai ser melhor chegar antes dela, de forma que eu possa me sentar e observá-la entrando. Assim saberei se ela vai dizer "oi" para mim antes.
Quando ouço o sinal, saio da sala apressadamente e ando depres­sa pelo corredor. Sou o primeiro a entrar para a aula de astronomia.
A sala se enche e Sam se senta ao meu lado outra vez. Pouco antes de o sinal soar, Sarah e Mark entram juntos. Ela veste camisa branca e calça preta. E sorri para mim antes de se sentar. Eu sorrio para ela. Mark nem olha em minha direção. Ainda posso sentir o cheiro de esterco em meus sapatos, ou talvez o odor venha de Sam.
Ele retira da mochila um panfleto com o título Eles Estão entre Nós na capa. Parece que foi impresso no porão da casa de alguém. Sam abre o panfleto na página central e começa a ler atentamente.
Olho para Sarah quatro carteiras à minha frente, para seus cabelos presos num rabo de cavalo. Posso ver o formato de seu pescoço delgado. Ela cruza as pernas e se senta ereta na cadeira. Gostaria de estar sentado à seu lado, de poder segurar sua mão. Gostaria de estar na oitava aula. Fico pensando se serei parceiro dela novamente na aula de economia doméstica.
A Sra. Burton começa a falar. Ela ainda está desenvolvendo o tópico sobre Saturno. Sam pega uma folha de papel e começa a escrever frene­ticamente, parando de vez em quando para consultar um artigo na re­vista que mantém aberta a seu lado. Olho por cima de seu ombro e leio o título da matéria: "Cidade inteira de Montana abduzida por alien".
Antes da noite passada eu nunca teria considerado tal teoria. Mas Henri acredita que os mogadorianos tramam para dominar a Terra, e devo admitir que, embora a matéria na revista de Sam seja ridícula, deve haver algum fundo de verdade nela. Sei que os lorienos visitaram a Terra muitas vezes ao longo da vida deste planeta. Vimos a Terra se desenvolver, a observamos em tempos de crescimento e abundância, quando tudo se movia, e em tempos de gelo e neve quando nada se mexia. Ajudamos os humanos, os ensinamos a fazer fogo, demos a eles as ferramentas para o desenvolvimento da fala e da linguagem, por isso nossa linguagem é tão semelhante à da Terra. E, embora nunca tenhamos abduzido humanos, não significa que isso nunca tenha sido feito. Olho para Sam. Nunca conheci ninguém com uma fascinação tão grande por extraterrestres a ponto de fazer anotações e estudar teo­rias de conspiração.
A porta da sala se abre e o rosto sorridente do Sr. Harris aparece.
  Desculpe interromper, Sra. Burton, mas vou ter de tirar Mark da sala. Os repórteres do Gazette chegaram para entrevistá-lo — ele avisa em tom suficientemente alto para todos na sala ouvirem.
Mark se levanta, pega a mochila e sai da sala com passos tranquilos, casuais. Vejo o Sr. Harris dar uns tapinhas nas costas dele quan­do os dois saem juntos. Depois olho para Sarah, desejando poder me sentar na cadeira vazia ao lado dela.

A quarta aula é educação física. Sam está em minha turma. Troca­mos de roupa e nos sentamos lado a lado no chão do ginásio. Ele calça tênis e veste short e uma camiseta dois ou três números maior que o dele. Sam parece uma cegonha, todo joelhos e cotovelos, de certa forma esguio, embora seja baixo.
O professor de ginástica, Sr. Wallace, está em pé na frente do grupo, os pés afastados na largura dos ombros, as mãos cerradas e apoiadas nos quadris.
  Tudo bem, rapazes, escutem. Esta é provavelmente a última chance que teremos de trabalhar ao ar livre, por isso façam valer a pena. Corrida de um quilômetro e meio, dando o máximo possível. Seus tempos serão anotados e guardados para quando voltarmos a correr a mesma distância na primavera. Por isso, tratem de se esforçar!
A pista do lado de fora é feita de borracha sintética. Ela contorna o campo de futebol, e, além dela, há um bosque por onde, imagino, é possível chegar a nossa casa, mas não tenho certeza. O vento é frio, e noto que o braço de Sam está arrepiado. Ele tenta se aquecer esfregando a pele.
  Já fez essa corrida antes? — pergunto.
Sam move a cabeça em sentido afirmativo.
Corremos um quilômetro e meio na segunda semana de aula.
Qual foi seu tempo?
Nove minutos e cinquenta e quatro segundos.
Olho para ele.
Sempre pensei que pessoas magras fossem muito rápidas.
Cale a boca — ele diz.
Corro ao lado de Sam para o fundo do grupo. Quatro voltas. É esse o número de vezes que temos de percorrer a pista para completar um quilômetro e meio. Na metade do caminho eu começo a me distan­ciar de Sam. Em que velocidade eu poderia percorrer um quilômetro e meio se realmente me esforçasse? Dois minutos, talvez? Ou menos?
O exercício me anima e, sem prestar muita atenção, eu passo o líder do grupo. Depois reduzo a velocidade, fingindo exaustão. E é então que vejo uma mancha marrom e branca saindo do meio dos arbustos, transpondo a entrada da arquibancada e correndo em mi­nha direção. Minha mente está me pregando peças, eu penso. Desvio o olhar e continuo correndo. Passo pelo professor. Ele está seguran­do um cronômetro. Ele grita palavras de incentivo, mas está olhando para algum ponto atrás de mim, fora da pista. Sigo a direção de seu olhar. Estão fixos na mancha marrom e branca. E a mancha continua correndo em minha direção, e imediatamente as imagens do dia an­terior voltam. As bestas mogadorianas. Havia as pequenas, também, com dentes que brilhavam como lâminas afiadas, criaturas rápidas cuja principal intenção era matar. Aumento a velocidade.
Percorro metade da pista num tiro de velocidade antes de olhar para trás. Não há nada atrás de mim. Deixei para trás o que me perse­guia. Vinte segundos se passam. Eu me viro para olhar para a frente, e a coisa está bem ali, diante de mim. Deve ter atravessado o campo. Eu paro de repente, e minha visão se corrige. É Bernie Kosar! Ele está sentado no meio da pista com a língua para fora, a cauda balançando.
  Bernie Kosar! — eu grito. — Você quase me matou de susto!
Volto a correr em velocidade baixa, e o cachorro corre comigo. Es­pero que ninguém tenha notado como fui veloz. Eu paro e me dobro ao meio, como se tivesse cãibras e dificuldade em respirar. Caminho durante algum tempo. Depois corro sem me esforçar. Antes de ter­minar a segunda volta, duas pessoas me ultrapassaram.
  Smith! O que aconteceu? Estava na frente de todo mundo! — o Sr. Wallace grita quando passo por ele.
Respiro com dificuldade, dando credibilidade à encenação.
  Eu... tenho... asma... — digo.
Ele balança a cabeça num gesto desaprovador.
  E eu pensando que tinha o campeão estadual deste ano na minha turma!
Dou de ombros e continuo correndo, parando de vez em quando para caminhar. Bernie Kosar continua comigo, às vezes andando, às vezes trotando. Quando começo a última volta, Sam me alcança e nós corremos juntos. Seu rosto está muito vermelho.
  Então, o que estava lendo hoje na aula de astronomia? — per­gunto. — Uma cidade inteira de Montana abduzida por aliens?
Ele sorri para mim.
  Sim, essa é a teoria — responde com certa timidez, como se estivesse constrangido.
E por que uma cidade inteira seria abduzida?
Sam encolhe os ombros, não responde.
Não, é sério — insisto.
Quer mesmo saber?
Sim, é claro!
  Bem, a teoria é que o governo vem permitindo as abduções em troca de tecnologia.
  É mesmo? Que tipo de tecnologia?
  Coisas como chips para supercomputadores, fórmulas para mais bombas e tecnologia verde.
  Tecnologia verde para espécies vivas? Estranho. E por que os alienígenas querem abduzir humanos?
Para nos estudar.      
Sim, mas para quê? Quero dizer, que motivo eles poderiam ter?
  Quando o Armagedon chegar, eles conhecerão nossas fraquezas e poderão nos derrotar com facilidade, expondo-as.
Fico um pouco surpreso com a resposta, mas só por causa das cenas que ainda desfilam por minha cabeça desde a noite passada, da lem­brança das armas usadas pelos mogadorianos e das bestas gigantescas.
Não seria fácil para eles, se já têm bombas e tecnologias tão superiores às nossas?
Bem, algumas pessoas parecem acreditar que eles esperam que nós nos matemos antes.
Olho para Sam. Ele está sorrindo para mim, tentando decidir se estou levando a conversa a sério ou não.
  E por que eles iam querer que nos matássemos antes? Qual é o estímulo deles?
  Inveja.
Inveja de nós? Da nossa beleza rústica?
Sam ri.
É mais ou menos isso.
Eu concordo movendo a cabeça. Corremos em silêncio por um minuto e percebo que Sam está enfrentando dificuldades, porque sua respiração é pesada.
  Como se interessou por tudo isso? Ele dá de ombros.
  É só um hobby — diz, embora eu tenha a nítida sensação de que ele está escondendo alguma informação de mim.
Completamos o percurso em oito minutos e cinquenta e nove segun­dos, melhor que o último tempo de Sam. Bernie Kosar segue a turma de volta à escola. Todos o acariciam, e quando voltamos ao prédio ele tenta entrar conosco. Não sei como me encontrou. É possível que ele tenha decorado o caminho até a escola hoje cedo? A ideia me parece ridícula.
Ele fica na porta. Caminho até o armário com Sam, que, assim que recupera o fôlego, começa a recitar uma tonelada de outras teorias de conspiração, uma depois da outra, a maioria delas hilárias. Gosto dele, o acho divertido, mas às vezes quero que ele pare de falar.

Quando começa a aula de economia doméstica, Sarah não está na sala. A Sra. Benshoff dá instruções para os primeiros dez minutos e nós vamos para a cozinha. Entro sozinho na unidade, conformado com a ideia de cozinhar sem companhia hoje, e, assim que conside­ro essa possibilidade, Sarah aparece.
Perdi alguma coisa interessante? — ela pergunta.
Uns dez minutos de tempo valioso comigo — respondo sorrindo.
Ela ri.
—Já soube o que aconteceu com seu armário hoje cedo. Sinto muito.
  Foi você que encheu o armário de esterco? — pergunto.
Ela ri novamente.
Não, é claro que não. Mas sei que está sendo perseguido por minha causa.
Eles têm sorte em eu não ter usado meus super poderes para jogá-los em outro país.
Ela aperta meu bíceps com ar brincalhão.
  É claro, com esses músculos todos, e ainda com super poderes... Cara, eles têm sorte.
Nosso projeto do dia é fazer cupcakes de blueberry. Começamos a misturar a massa, e, enquanto trabalhamos, Sarah me conta sua his­tória com Mark. Eles namoraram por dois anos, porém, quanto mais tempo passava com ele, mais ela se afastava da família e dos amigos. Ela era a namorada de Mark, mais nada. Sabia que havia começa­do a mudar, adotando algumas das atitudes dele com as pessoas: era cruel e crítica, julgava-se melhor do que os outros. Ela também começou a beber e suas notas caíram. No final do último ano leti­vo, os pais a mandaram passar o verão na casa da tia no Colorado. Quando chegou lá, Sarah começou a fazer longas caminhadas pelas montanhas, fotografando as paisagens com a câmera da tia. Ela se apaixonou pela fotografia e viveu o melhor verão de sua vida, então percebeu que a vida era muito mais que ser líder de torcida e namo­rar o quarterback do time de futebol. Sarah voltou para casa, rompeu com Mark, deixou a equipe de torcida e prometeu a si mesma ser boa e gentil com todas as pessoas. Mark não superou o rompimento. Ela relata que ele ainda a considera sua garota e acredita que um dia ela vai voltar para ele. Sarah diz que só sente falta dos cachorros de Mark, com quem ela se divertia sempre que ia visitá-lo. Conto a ela sobre Bernie Kosar, e como ele apareceu na porta de nossa casa ines­peradamente depois daquela primeira manhã na escola.
Trabalhamos enquanto conversamos. Em um dado momento eu abro o forno e retiro dali as formas de bolinho sem usar luvas térmi­cas. Ela percebe e pergunta se estou bem, e finjo ter me queimado, sa­cudindo as mãos como se ardessem, embora não sinta absolutamente nada. Vamos até a pia, e Sarah coloca minhas mãos em água mor­na, para ajudar a aliviar o ardor da queimadura inexistente. Quando ela olha minha mão, eu me limito a encolher os ombros. Enquanto estamos confeitando os bolinhos, ela me pergunta sobre o celular e comenta que notou que só havia um número na agenda. Digo que é o número de Henri, que perdi meu telefone antigo com todos os meus contatos. Ela me questiona se deixei uma namorada no lugar de onde vim. Respondo que não, e ela sorri, o que praticamente acaba comigo. Antes do final da aula, ela me fala sobre o festival que vai acontecer na cidade no dia do Halloween e diz que espera me ver lá, que talvez possamos nos encontrar e passar algum tempo juntos. Eu digo que sim, seria ótimo, e finjo estar tranquilo, mesmo flutuando por dentro.

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