quinta-feira, 14 de julho de 2011

Eu Sou o Número Quatro, Capítulos 31 ao 34 (Últimos Capítulos)

CAPÍTULO TRINTA E UM

OUTRO RUGIDO ATRAVESSA AS PAREDES DA ESCOLA E FAZ MEU SANGUE GELAR. O chão começa a tremer sob os passos da besta que agora deve estar solta. Balanço a cabeça. Já vi como são grandes durante aqueles flashbacks da guerra em Lorien.
Pelo bem de seus amigos e por nós mesmos, é melhor sairmos desta escola enquanto ainda há tempo — diz Seis. — Eles vão destruir o prédio tentando nos pegar.
Nós concordamos em silêncio.
Nossa única esperança é chegar à floresta — Henri anuncia. — Seja o que for aquela coisa, talvez possamos escapar se nos mantivermos invisíveis.
Seis move a cabeça em sentido afirmativo.
Agarrem minhas mãos e não soltem.
Henri e eu obedecemos imediatamente.
Em silêncio — diz Henri.
O corredor está escuro e silencioso. Caminhamos com uma urgência silenciosa, progredindo com toda a velocidade que é possível sem fazer barulho. Outro rugido, e, no meio dele, outro começa. Nós paramos. Não é uma besta, são duas. Seguimos adiante e entramos no ginásio. Nenhum sinal dos mensageiros. Quando chegamos ao centro da quadra, Henri para. Olho em sua direção, mas não consigo vedo.
Por que paramos? — cochicho.
Shhh — ele faz. — Escute.
Eu me esforço para ouvir, mas não há nada além do pulsar do sangue em meus ouvidos.
As bestas pararam de se mover — Henri diz.
E daí?
Shhh — ele murmura. — Tem mais alguma coisa.
Então eu também escuto, um som agudo e repetitivo que pare¬ce ser produzido por um animal pequeno. É um som abafado que ganha intensidade aos poucos.
O que é isso? — pergunto.
Algo começa a bater no alçapão. O alçapão por onde planejamos escapar.
Acenda suas luzes — ele diz.
Solto a mão de Seis, acendo minha mão e direciono o foco para o palco. Henri olha para a ponta do cano da arma. O alçapão se move como se alguma coisa tentasse erguê-lo, mas não tivesse força para abri-lo. São as doninhas, imagino. Aquelas criaturinhas com corpo roliço e pernas curtas que amedrontaram os caras em Athens. Uma delas bate com tanta força no alçapão, que a porta se solta das dobradiças e voa longe. As criaturas têm muita força. Duas delas nos vêem e correm em nossa direção numa velocidade tão espantosa que mal consigo vê-las. Henri está em pé com a arma apontada, um sorriso divertido no rosto. A poucos metros de nós elas se separaram: uma salta sobre Henri, a outra corre em minha direção. Henri dispara uma vez. O animal explode, cobrindo-o de sangue e entranhas; e, quando estou pronto para desviar a outra usando telecinesia, ela é agarrada no ar pela mão invisível de Seis e jogada com força descomunal contra o chão, morrendo instantaneamente.
Henri engatilha a arma.
Bem, até que não foi ruim — ele diz, e, antes que eu possa responder, toda a parede ao longo do palco é destruída pelo punho de uma besta. Ela recua e ataca novamente, esmagando o palco e expondo o céu da noite. O impacto joga Henri e a mim alguns metros para trás.
Corra! — grita Henri, descarregando a arma contra a besta. As balas não afetam a criatura. Ela se inclina para a frente e ruge tão alto que sinto minhas roupas tremulando. A mão agarra a minha e me torna invisível. A fera se adianta, caminhando na direção de Henri, e sou tomado por um intenso terror.
Não! — eu grito. — Henri! Vamos pegar Henri! — Eu me contorço e puxo a mão de Seis, até que finalmente consigo levá-la na direção que pretendo. Estamos os dois invisíveis. A besta investe contra Henri, que continua firme e atento enquanto ela se aproxima. Sem munição. Sem opções.
Vamos pegá-lo! — grito novamente. — Vamos buscá-lo, Seis!
Vá para a floresta! — ela grita.
Nada posso fazer além de observar. A besta deve ter entre nove e doze metros de altura e se aproxima de Henri. Ela ruge, seus olhos tomados pela violência. O braço musculoso e imenso está erguido, tão alto que ultrapassa o telhado do ginásio. E então o punho fechado cai, descendo com tanta velocidade que mal consigo vê-lo, desenhando um traço como as pás de um ventilador desenham um círculo. Eu grito horrorizado, ciente de que Henri está prestes a ser esmagado. Não consigo desviar o olhar dele, que parece pequenino com a arma pendendo inutilmente de sua mão. Quando o punho está a uma fração de segundo dele, Henri desaparece. O primeiro golpe atinge o chão do ginásio, a madeira se parte, e a força do choque me joga a uns seis metros. A fera olha para mim, impedindo-me de ver o lugar onde Henri agora está.
— Henri! — eu grito.
A besta ruge, abafando uma possível resposta dele. Ela dá um passo em minha direção. "Para a floresta", Seis disse. Eu me levanto e corro para o fundo do ginásio, por onde a besta entrou. Eu me viro para ver se ela está me seguindo. Não está. Talvez Seis tenha feito alguma coisa para distraí-la. Tudo o que sei é que agora estou sozinho.
Pulo a pilha de escombros e avanço depressa para longe da escola, dando o máximo de mim para chegar logo à floresta. As sombras me cercam, envolvem-me como mantos maléficos. Sei que posso superá-las em velocidade. A besta ruge, e ouço outra parede desmoronando. Alcanço as árvores, e as sombras sinistras parecem desaparecer. Paro e ouço. As árvores balançam sob a brisa suave. Há vento ali! Escapei da redoma criada pelos mogadorianos. Sinto uma quentura se acumulando no cós de minha calça. O corte nas costas que sofri na casa de Mark James se abriu.
De onde estou o contorno da escola é apagado. Todo o ginásio desabou, transformando-se em uma pilha de tijolos. A sombra da besta se eleva sobre os destroços da cantina. Por que ela não me perseguiu? E onde está a segunda besta que todos nós ouvimos? Os punhos da criatura descem novamente, outro cômodo destruído. Mark e Sarah estão em algum lugar por ali. Disse a eles para voltar, e agora percebo que foi tolice. Não previ que a fera destruiria a escola se soubesse que eu não estava lá. Preciso tomar alguma atitude para afastar a criatura dali. Respiro fundo para reunir minhas forças, e, assim que dou o primeiro passo, alguma coisa dura me acerta na parte de trás da cabeça. Caio com o rosto na lama. Levo a mão ao local onde fui atingido e, quando olho para ela, vejo meus dedos cobertos de sangue. Viro-me e no início não vejo nada. Mas logo o agressor surge das sombras com seu sorriso maléfico.
Um soldado. É o que ele parece ser. Mais alto do que os mensageiros — três metros de altura, provavelmente —, com os músculos poderosos destacados sob um sobretudo preto rasgado. Veias grandes, saltadas, atravessam o comprimento de cada braço. Botas pretas. Nada cobre sua cabeça, e os cabelos descem até os ombros. A mesma pele pálida e sem brilho dos mensageiros. Um sorriso confiante, decisivo. Em uma de suas mãos há uma espada. Longa e brilhante, feita de algum tipo de metal que já vi aqui na Terra, ou em minhas visões de Lorien. Parece pulsar, como se de algum modo tivesse vida.
Começo a me arrastar para longe, sentindo o sangue escorrer pela nuca. A besta na escola ruge mais uma vez, e eu me agarro aos galhos de uma árvore e ergo o corpo. O soldado está uns três metros de mim. Eu cerro os punhos. Ele move a espada em minha direção, e alguma coisa se desprende de sua extremidade, algo que parece uma pequena adaga. Vejo essa adaga se curvar num arco, deixando atrás dela uma trilha como um avião deixa um rastro de fumaça. A luz cria um encantamento, e não consigo desviar os olhos dela.
Um lampejo brilhante devora tudo, e o mundo desaparece num vácuo silencioso. Não há paredes. Não há sons. Não há piso ou teto. Devagar, as coisas retomam a forma, as árvores eretas como efígies muito antigas sussurram sobre o mundo que um dia existiu, um reino alternativo onde só há sombras.
Estendo a mão para tocar a árvore mais próxima, único toque de cinza em um mundo completamente branco. Minha mão a atravessa, e por um momento a árvore brilha como se fosse líquida. Respiro fundo. Quando expiro, sinto de novo dor nos ferimentos da cabeça, dos braços, e das costas, todos sofridos no incêndio na casa de Mark James. Ouço barulho de água pingando em algum lugar. Lentamente, o soldado toma forma alguns metros longe de mim. Ele é gigantesco. Nós nos observamos. Sua espada tem um brilho ainda mais intenso neste novo mundo. Seus olhos se estreitam e minhas mãos se fecham novamente. Já levantei objetos mais pesados que ele; rachei árvores e causei destruição. Certamente, posso igualar minha força à dele.
Reúno tudo o que sinto no âmago de meu ser, tudo o que sou e tudo o que serei, até ter a sensação de que vou explodir.
— Iááááhhh! — grito, lançando meus braços para a frente, para empurrar o ar. A força brutal deixa meu corpo e é projetada contra o soldado. Ao mesmo tempo, ele brande a espada à frente do próprio corpo como se espantasse uma mosca. O poder se desvia para as árvores, que por um momento dançam como o trigo tocado por um vento leve, e depois tudo fica parado. Ele ri para mim, uma gargalhada gutural, profunda, uma risada que tem o objetivo de provocar. Seus olhos vermelhos começam a brilhar, girando como poços de lava. Ele levanta a mão livre, e eu me preparo novamente para o desconhecido. E sem que eu perceba o que está acontecendo, meu pescoço é apertado por ele, o espaço que nos separa deixa de existir num piscar de olhos. Ele me levanta usando apenas uma das mãos, respirando com a boca aberta e exalando o cheiro fétido de seu hálito, cheiro de podridão. Eu me debato, tento tirar os dedos de meu pescoço, mas eles são como faixas de aço.
E de repente ele me arremessa.
Caio de costas uns doze metros adiante. Eu me levanto e ele ataca, apontando a espada para minha cabeça. Abaixo e reajo empurrando-a com toda a força que tenho. O soldado cambaleia para trás, mas continua em pé. Tento erguê-lo com telecinesia, mas nada acontece. Neste mundo alternativo meus poderes são reduzidos, quase nulos. Aqui a vantagem é do mogadoriano.
Ele ri de minha impotência e levanta a espada com as duas mãos. A espada ganha vida, o brilho cintilante da lâmina se toma azul. Chamas azuis lambem a lâmina. Uma espada que cintila de acordo com a intensidade de sua força, exatamente como Seis falou. Ele balança a espada em minha direção e outra adaga brota de sua extremidade, voando até mim. Isso eu consigo fazer, penso. Foram muitas horas de treinamento no quintal, com Henri, justamente para isso. Sempre as facas, mais ou menos esse tipo de adaga. Henri sabia que eles as usariam? Com certeza, embora eu jamais as tenha visto nos flashbacks da invasão. Mas eu também nunca vi essas criaturas. Agora elas são diferentes daquelas em Lorien, menos sinistras. No dia da invasão elas pareciam doentias e famintas. A Terra havia propiciado a convalescença delas, fornecido os recursos para elas se tornarem mais fortes e saudáveis?
A adaga literalmente grita quando corta o ar e vem rumo a mim. Ela cresce e é consumida por chamas. No momento em que me preparo para desviá-la, ela explode numa bola de fogo, e as chamas saltam sobre mim. Sou envolvido, cercado por uma bola de fogo perfeita. Qualquer outro teria queimado, mas não eu, e de alguma forma isso me devolve a força. Consigo respirar. Sem que o soldado saiba, ele me fortalece. Agora é minha vez de sorrir.
— Isso é tudo o que você tem? — grito.
Seu rosto se contorce com a fúria. Ele estende de forma provocante uma das mãos até o ombro, e, quando a traz para a frente, ela segura uma arma que lembra um canhão e que começa a se fundir com seu corpo, enroscando-se no braço. Braço e arma se tornam um só. Pego a faca no bolso de trás da calça, aquela que peguei em casa antes de voltar para a escola. Pequena, ineficiente, mas melhor do que nada. Aponto a lâmina e ataco. A bola de fogo me acompanha. O soldado ergue os ombros e baixa a espada com força. Eu a desvio com a faca, mas o peso da espada quebra a lâmina em duas partes. Deixo cair os pedaços e ataco com os punhos. Acerto o centro do corpo do soldado, que se dobra, mas se recupera depressa e volta a atacar, brandindo sua espada mais uma vez. Eu me abaixo no último segundo. A lâmina corta os cabelos do topo de minha cabeça. Atrás da espada vem o canhão. Não tenho tempo para reagir. Ele me acerta no ombro, e caio para trás com um gemido de dor. O soldado se recupera e aponta o canhão para o ar. No início fico confuso. O cinza das árvores é arrancado e sugado para dentro da arma. Então entendo. A arma. Ela precisa ser carregada para poder ser disparada, precisa roubar a essência da Terra a fim de ter alguma utilidade. O cinza das árvores não é composto por sombras; o cinza é a vida das árvores num nível quase elementar. E agora essa vida é roubada, consumida pelos mogadorianos. Uma raça de aliens que esgotou os recursos do próprio planeta na busca pelo progresso e agora faz a mesma coisa neste planeta. Por essa razão eles atacaram Lorien. E pela mesma razão atacarão a Terra. Uma a uma as árvores caem e se desmancham em pilhas de cinzas. A arma brilha com intensidade cada vez maior, tanto que olhar para ela faz doer os olhos. Não há tempo a perder.
Eu ataco. O soldado mantém a arma apontada para o céu e move a espada. Eu me esquivo e corro na direção dele. Seu corpo se enrije e contorce em agonia. O fogo que me cerca o queima ali mesmo, onde ele está. Mas deixei a guarda aberta. Ele balança a espada sem força suficiente para me ferir de fato, mas não tenho como evitar o golpe. Ela me acerta, e sou jogado longe, como se fosse atingido por um raio. Fico caído, meu corpo tremendo com os reflexos que seguem um choque elétrico violento. Levanto a cabeça. Trinta pilhas de cinzas das árvores destruídas nos cercam. Essa energia vai possibilitar que ele dispare quantas vezes? Um vento suave sopra, e as cinzas começam a se espalhar pelo espaço vazio a nosso redor. A luz volta a brilhar. O mundo para o qual o soldado me trouxe começa a se desfazer. Ele sabe disso. A arma está preparada. Eu me levanto. No chão, a alguns metros de mim, ainda brilhando, vejo uma das adagas que o mogadoriano arremessou contra mim. Eu a pego.
Ele aponta o canhão. O branco que nos cerca começa a perder intensidade, as cores retornam. Então ele dispara um raio brilhante de luz contendo as formas macabras de todos que conheço — Henri, Sam, Bernie Kosar, Sarah —, todos mortos neste reino alternativo, e a luz é tão intensa que eles são tudo o que consigo ver, tentando me levar com eles, lançados numa bola de energia que cresce na medida em que se aproxima. Tento desviar essa bola de energia, mas ela é forte demais. A luz branca se aproxima do fogo, e, quando as duas esferas se tocam, ocorre uma explosão que me joga para trás. Aterrisso com um baque. Eu me examino e descubro que não estou ferido. A bola de fogo se extinguiu. De alguma forma ela absorveu a explosão, salvou-me do que certamente teria sido a morte. Certamente é assim que o canhão funciona, a morte de uma coisa pela morte de outra. O poder do controle da mente, a manipulação do medo, possível por meio da destruição dos elementos do mundo. Os mensageiros aprenderam a realizar tudo isso com a mente, embora de maneira fraca. Os soldados contam com armas que produzem um efeito muito maior.
Eu me levanto com a faca ainda brilhando na mão. O soldado puxa uma espécie de alavanca na lateral do canhão, como se o recarregasse. Eu corro para ele. Quando estou suficientemente perto, arremesso a faca com toda a minha força, mirando seu coração. Ele dispara um segundo tiro. Um torpedo de luz laranja voa na direção dele, a certeza da morte branca vem em minha direção. As duas bolas de energia se cruzam no ar sem se tocar. Quando eu espero que esse segundo disparo me atinja, cause minha morte, outra coisa acontece.
Minha faca o atinge primeiro.
O mundo desaparece. As sombras se apagam e o frio e a escuridão retornam, como se nunca houvessem desaparecido. Uma transição vertiginosa. Dou um passo para trás e caio. Meus olhos se ajustam à ausência da luz. Eu foco na figura sombria do soldado debruçado sobre mim. O estrondo do canhão não viaja conosco. A faca cintilante, sim, e a lâmina se crava fundo em seu coração, o cabo alaranjado pulsando sob o luar. O soldado cambaleia, a faca mergulha mais fundo e desaparece. Ele grunhe. Jatos de sangue negro brotam da ferida aberta. Seus olhos se esvaziam, depois recuam para dentro da cabeça. Ele cai e fica imóvel por um instante, depois explode numa nuvem de cinzas que cobrem meus sapatos. Um soldado. Matei meu primeiro. Que não tenha sido o último.
Estar no reino alternativo me enfraqueceu de alguma forma. Apóio a mão em uma árvore próxima para me manter em pé e recuperar o fôlego, mas a árvore não está mais ali. Olho em volta. Todas as árvores que nos cercavam caíram, formando pilhas de cinzas, como no outro reino, como acontece com os mogadorianos quando morrem.
Ouço o rugido da besta e olho para a escola, tentando determinar quanto sobrou dela. Mas, em vez da escola, há outra coisa no lugar, uma criatura de uns quatro metros e meio e forte, com uma espada em uma das mãos e um canhão na outra. O canhão está apontado diretamente para meu coração, e ele já foi carregado, porque brilha intensamente, revelando seu poder. Outro soldado. Não creio ter forças para lutar contra esse como lutei contra o outro.
Não há nada que eu possa arremessar, e a distância entre nós é grande demais para que eu consiga atacar antes que ele atire. Mas, de repente, o braço dele se retorce e o som de um tiro ecoa no ar. Meu corpo fica instintivamente tenso, esperando a bala que vai me rasgar ao meio. Mas eu estou bem, inteiro. Ergo o olhar, confuso, e lá, na testa do soldado, vejo um buraco do tamanho de uma moeda pequena jorrando sangue. A criatura cai e se desintegra.
Essa foi por meu pai — eu ouço atrás de mim. E me viro. Sam está segurando uma pistola prateada na mão direita. Sorrio para ele, e Sam abaixa a arma. — Eles passaram pelo centro da cidade — diz. — Eu soube que eram eles assim que vi o trailer.
Tento recuperar o fôlego enquanto olho, espantado, para Sam. Momento antes, quando o primeiro soldado deu o tiro, Sam era um cadáver em decomposição se erguendo do inferno para me levar. E agora ele acabou de me salvar.
Tudo bem? — ele pergunta. Movo a cabeça em sentido afirmativo.
De onde você surgiu?
Eu os segui na caminhonete de meu pai quando os vi passando lá por casa. Cheguei há quinze minutos e fui cercado pelos que já estavam aqui. Por isso segui adiante e estacionei em um campo a um quilômetro daqui e voltei a pé.
O segundo par de faróis que vimos da janela da escola era da caminhonete de Sam. Abro a boca para responder, mas um trovão sacode o céu. Outra tempestade começa a se formar, e sinto um forte alívio por saber que Seis está viva. Um raio de luz corta o céu e nuvens chegam de todas as direções, unindo-se numa massa gigantesca. Uma escuridão ainda maior nos envolve, seguida por uma chuva tão pesada que tenho de estreitar os olhos para ver Sam a um metro de mim. A escola desapareceu. Mas um grande raio corta o céu e tudo se ilumina por um segundo, e vejo que a besta foi atingida. Ouço um rugido terrível.
Preciso ir à escola! — grito. — Mark e Sarah estão lá dentro.
Se você vai, eu também vou — ele responde berrando para ser ouvido entre os trovões.
Não damos mais de cinco passos antes de o vento uivar, empurrando-nos de volta, a chuva torrencial batendo com força em nosso rosto. Estamos encharcados, tremendo, com frio. Mas se eu estou tremendo, sei que estou vivo. Sam cai sobre um joelho, depois se deita de bruços para não ser levado pelo vento. Eu faço o mesmo. Fito as nuvens com os olhos semicerrados — nuvens pesadas, escuras, ameaçadoras — e as vejo girar em pequenos círculos concêntricos e, no centro, o centro que tento desesperadamente alcançar, um rosto começa a tomar forma.
É um rosto velho, enrugado, com uma barba, um rosto que parece tranquilo, como se estivesse adormecido. Uma face que parece mais velha do que a própria Terra. As nuvens começam a perder velocidade, aproximando-se lentamente da superfície e consumindo tudo, escurecendo tudo, uma escuridão tão profunda e impenetrável que é difícil imaginar que em algum lugar, qualquer lugar, ainda exista um sol. Ouço outro rugido, esse de raiva e morte. Tento me levantar, mas sou jogado no chão pela força do vento. O rosto. Está ganhando vida. Um despertar. Os olhos se abrem, o rosto voltado para cima. É uma criação de Seis? O rosto se torna a própria expressão de fúria, uma expressão de vingança. Tudo acontece muito depressa. Tudo parece estar por um fio. Então a boca se abre, faminta, os lábios se retraem para exibir os dentes e os olhos brilham com o que só pode ser descrito como pura maldade. Uma ira total e completa.
O rosto se vira, e um estrondo fenomenal sacode o chão, uma explosão que se estende até a escola, iluminando tudo de vermelho, laranja e amarelo. Sou jogado para trás. Árvores se partem ao meio. A terra treme. Caio com um baque surdo, galhos e lama caindo em cima de mim. Meus ouvidos apitam como nunca fizeram antes. Um estouro tão forte que deve ter sido ouvido mais de setenta quilômetros longe dali. E de repente a chuva para e tudo fica silencioso.
Estou deitado na lama, ouvindo as batidas de meu coração. As nuvens desaparecem, revelando uma lua crescente. Não há vento. Olho em volta, mas não vejo Sam. Grito seu nome, mas não obtenho resposta. Quero ouvir alguma coisa, qualquer coisa, outro rugido, os tiros de Henri, mas não há nada.
Eu me levanto do solo da floresta, limpo a lama e os gravetos da melhor maneira possível. Saio da floresta pela segunda vez. As estrelas reapareceram, um milhão delas cintilam no céu. Acabou? Nós vencemos? Ou ó só uma trégua? A escola, eu penso. Preciso ir à escola. Dou um passo à frente e então ouço.
Outro rugido, desta vez na floresta, atrás de mim.
O som retorna. Três tiros sucessivos soam na noite e ecoam de forma que eu não tenha idéia de onde partiram. Espero que sejam tiros da arma de Henri, que ele ainda esteja vivo, ainda esteja lutando.
O chão começa a tremer. A besta corre, procura por mim, não há como errar agora, porque árvores são quebradas e arrancadas atrás de mim. Elas parecem nem reduzir a velocidade da fera. Essa é ainda maior do que a outra? Não quero descobrir. Corro para a escola, mas percebo imediatamente que é o pior lugar para onde ir. Sarah e Mark ainda estão lá, ainda estão escondidos. Ou eu espero que estejam, pelo menos.
Tudo volta a ser como antes da tempestade, as sombras me seguindo, pairando. Mensageiros. Soldados. Viro à direita e corro pela pista de três raias que leva ao campo de futebol, a besta me seguindo. Posso realmente ter esperança de despistá-la, de ser mais rápido do que ela? Se puder chegar à floresta atrás do campo, talvez eu tenha alguma chance. Conheço a floresta, porque é por ali que se chega à nossa casa. Lá eu terei a vantagem de conhecer o terreno. Olho em volta e vejo as silhuetas dos mogadorianos no pátio da escola. Há muitos deles. Estamos em minoria. Em algum momento acreditamos que poderíamos realmente vencer?
Uma adaga voa em minha direção, um lampejo vermelho que não acerta meu rosto por poucos centímetros. Ela se crava no tronco de uma árvore a meu lado e incendeia a madeira. Outro rugido. A besta mantém o ritmo. Qual de nós é mais resistente? Entro no campo, atravesso correndo a linha de cinquenta jardas e avanço pelo lado do time visitante. Outra faca passa por mim assobiando, desta vez um lampejo azul. A floresta está próxima, e, quando finalmente a penetro correndo, um sorriso surge em meu rosto. Atraí a besta para longe dos outros. Se todos estão seguros, então cumpri minha missão. Quando o sentimento de triunfo já começa a desabrochar em mim, a terceira faca me atinge.
Eu grito e caio com o rosto na lama. Posso sentir a lâmina cravada na escápula. Uma dor tão aguda que me paralisa. Tento alcançá-la e removê-la, mas ela está muito alta. Tenho a sensação de que a lâmina se move, enterrando-se cada vez mais fundo, a dor se espalhando como se eu tivesse sido envenenado. Estou deitado de bruços, sofrendo terrível agonia. Não consigo remover a adaga com telecinesia. Meus poderes parecem falhar. Começo a me arrastar para a frente. Um dos soldados — ou talvez seja um mensageiro, não sei — coloca um pé em minhas costas, abaixa-se e puxa a adaga. Não contenho um grunhido. A adaga não está mais em mim, mas a dor permanece. Ele, remove o pé de minhas costas, mas ainda posso sentir sua presença e tento me virar para vê-lo.
Outro soldado, e ele sorri com ódio. A mesma expressão daquele que o antecedeu, o mesmo tipo de espada. A adaga que estava em minhas costas ainda brilha em sua mão, girando entre os dedos. Foi exatamente isso que eu senti, a lâmina enterrada girando em minha carne. Levanto a mão para tentar mover o soldado, mas sei que o esforço é inútil. Não consigo me concentrar, tudo está nebuloso. O soldado levanta sua espada no ar. A lâmina tem gosto de morte e começa a brilhar contra o céu noturno atrás dela.
Estou morto, penso. Não há nada que eu possa fazer. Olho nos olhos dele. Dez anos fugindo, e é assim que tudo termina, silenciosamente. Mas atrás dele outra coisa se esconde. Alguma coisa muito mais ameaçadora que um milhão de soldados com um milhão de espadas. Os dentes são tão longos quanto o soldado é alto e brilham muito brancos em uma boca pequena demais para acomodá-los. A besta com olhos maléficos se debruça sobre nós.
O ar fica preso em minha garganta, e meus olhos se abrem, aterrorizados. Seremos destruídos os dois, eu penso. O soldado está alheio ao animal. Ele se enrijece e faz uma careta para mim e começa a abaixar sua espada para me rasgar em dois. Mas é muito lento, e a besta o ataca primeiro, suas mandíbulas se fecham como as partes de uma armadilha para ursos. A mordida não cessa até os dentes da fera se unirem, o corpo do soldado dividido logo abaixo do quadril, deixando para trás apenas as duas pernas ainda em pé. A besta mastiga duas vezes e engole. As pernas do soldado caem, uma para a direita, a outra para a esquerda, e se desintegram rapidamente.
Preciso de toda a força que tenho para estender o braço e pegar a adaga que caiu a meus pés. Eu a prendo no cós da calça e começo a me afastar, rastejando. Sinto a besta debruçada sobre mim, sinto seu hálito em minha nuca. O cheiro da morte e de carne podre. Entro em uma pequena clareira. Espero sentir a ira da fera a qualquer minuto, espero sentir seus dentes e suas garras me rasgando em tiras. Continuo rastejando até não poder mais me mover, porque minhas costas estão coladas a um tronco de árvore.
A besta está no centro da clareira, dez metros longe de mim. Olho para ela realmente pela primeira vez. Uma figura gigantesca, uma sombra na escuridão e no frio da noite. Mais alto e maior do que a besta na escola, uns treze metros de altura, ereta sobre as patas traseiras. Pele cinza e espessa esticada sobre os músculos impressionantes. Não há pescoço, e sua cabeça pende de forma que a mandíbula inferior é muito mais proeminente do que a superior. As presas inferiores apontam para o alto, para o céu, enquanto as superiores apontam para baixo, para o chão, pingando sangue e saliva. Braços longos e grossos pendem trinta ou cinquenta centímetros acima do chão mesmo quando a besta está ereta, fazendo-a parecer que está sempre ligeiramente inclinada para a frente. Olhos amarelos. Discos redondos nas laterais da cabeça que pulsam conforme os batimentos cardíacos, único sinal de que há um coração naquela criatura.
Ela se inclina e leva a mão esquerda ao chão. A mão tem dedos curtos e grossos e garras como as de uma ave de rapina, garras que servem para rasgar o que quer que seja tocado. A criatura me fareja e ruge. É um rugido ensurdecedor, que teria me empurrado para trás se eu já não estivesse encostado a uma árvore. Sua boca se abre, mostrando pelo menos uns cinquenta dentes, todos muito afiados.
 A mão livre se afasta do corpo e parte ao meio todas as árvores que atinge, dez, quinze delas.
A fuga termina aqui. A luta chegou ao fim. O sangue do ferimento aberto pela adaga escorre por minhas costas; minhas mãos e pernas tremem. A adaga ainda está presa ao cós de meu jeans, mas de que adianta empunhá-la? Que chance eu teria com uma faca de dez centímetros contra uma besta de treze metros? Seria o equivalente a uma farpa. E só a deixaria mais furiosa. Minha única esperança é sangrar até a morte antes de ser morto e devorado.
Fecho os olhos e aceito a morte. Minhas luzes estão apagadas. Não quero ver o que está prestes a acontecer. Escuto um movimento atrás de mim. Abro os olhos. Um dos mogadorianos deve estar se aproximando para me examinar de perto, eu penso, mas sei imediatamente que estou enganado. Há algo familiar no andar, algo que reconheço no som de sua respiração. A criatura surge na clareira.
Bernie Kosar.
Sorrio, mas o sorriso desaparece rapidamente. Se estou condenado, de nada vai adiantar Bernie Kosar morrer também. Não, Bernie Kosar. Você não pode ficar aqui. Precisa ir embora, e deve correr como o vento, afastar-se tanto quanto puder. Finja que acabamos de encerrar nossa corrida matinal para a escola e que é hora de correr para casa.
Ele olha para mim enquanto se aproxima. Estou aqui, parece dizer. Estou aqui e vou ficar com você. — Não — falo em voz alta.
Ele para por tempo suficiente para dar uma lambida em minha mão. Depois olha para mim com aqueles grandes olhos castanhos. Saia daqui, John, eu ouço em meus pensamentos. Rasteje se for necessário, mas saia daqui agora. Perdi sangue demais e estou delirando. Bernie parece estar se comunicando comigo. Ele está realmente ali ou também imagino sua presença?
O cachorro se posiciona à minha frente, como se quisesse me proteger. Ele começa a rosnar, baixo no início, mas o som cresce até se igualar em ferocidade ao rugido da besta. A besta se concentra em Bernie Kosar. Olha fixamente para ele. Bernie Kosar tem os pelos das costas eriçados, as orelhas coladas à cabeça. Sua lealdade, sua coragem quase me fazem chorar. Ele é cem vezes menor do que a besta, mas se mantém ereto, prometendo lutar. Um golpe rápido dela, e tudo estará terminado.
Estendo a mão para Bernie Kosar. Gostaria de poder me levantar, pegá-lo e sair dali. Seus rugidos são tão fortes que todo o seu corpo se agita, tremores o percorrem sucessivamente.
E então algo começa a acontecer.
Bernie Kosar começa a crescer.

CAPÍTULO TRINTA E DOIS

DEPOIS DE TODO  ESSE TEMPO,   SÓ AGORA ENTENDO. A CORRIDA MATINAL, quando eu atingia uma velocidade alta demais para ele me acompanhar. Bernie Kosar desaparecia na floresta e reaparecia segundos depois à minha frente. Seis tentou me dizer. Seis olhou para ele e percebeu imediatamente. Naquelas corridas Bernie Kosar ia à floresta para se transformar em ave. A maneira como ele corria para fora todas as manhãs, farejava o quintal, patrulhava o terreno. Ele me protegia, protegia Henri. Procurava sinais dos mogadorianos. A lagartixa na Flórida. Aquela que costumava me olhar da parede enquanto eu tomava café da manhã. Há quanto tempo ele está conosco? Os Chimaera que foram levados para o foguete — eles haviam conseguido chegar à Terra, afinal?
Bernie Kosar continua crescendo. E me diz para correr. Posso me comunicar com ele. Não, não é só isso. Posso me comunicar com todos os animais. Outro Legado. Começou com o cervo na Flórida, no dia em que partimos. O arrepio que percorreu minhas costas me transmitiu alguma coisa, algum sentimento. Pensei que fosse tristeza pela partida, mas estava enganado. Os cães de Mark James. As vacas pelas quais eu passava nas corridas matinais. A mesma coisa. Eu me sinto tolo por só descobrir isso agora. E tão evidente, tão óbvio! Outro ditado de Henri: Aquelas coisas que são mais evidentes são as que menos enxergamos. Mas Henri sabia. Foi por isso que ele disse "não" a Seis quando ela tentou falar comigo.
Bernie Kosar parou de crescer: seus pelos foram substituídos por escamas alongadas. Ele parece um dragão, mas sem asas. Seu corpo é musculoso. Dentes e garras afiados, chifres enrolados como os de um carneiro. Mais espessos que os da besta, porém muito mais curtos. Igualmente ameaçadores. Dois gigantes em lados opostos da clareira, rugindo um para o outro.
Corra, ele me diz. Tento dizer a ele que não posso. Não sei se ele consegue me entender. Você pode, ele diz. Você deve.
A besta ataca. O golpe é como uma marreta que desce das nuvens com brutalidade. Bernie Kosar a bloqueia com os chifres e depois ataca antes que ela possa desferir o segundo golpe. Uma colisão colossal no centro da clareira. Bernie Kosar se levanta, enterra os dentes no corpo da fera. A fera o joga no chão. Os dois são tão rápidos que o confronto desafia a lógica. Já é possível ver nos dois cortes sangrando. Eu os observo com as costas voltadas para uma árvore. Tento ajudar. Mas minha telecinesia ainda falha. Sinto sangue escorrendo por minhas costas. Meus membros pesam, como se meu sangue agora fosse chumbo. Tenho a sensação de que vou desmaiar.
A besta ainda se sustenta sobre duas patas, enquanto Bernie Kosar precisa lutar sobre as quatro. A besta ataca. Bernie Kosar abaixa a cabeça. E eles se chocam, colidindo contra as árvores em meu lado direito. A fera está por cima. Ela enterra os dentes bem fundo no pescoço de Bernie Kosar. Ele se contorce, mas não consegue se libertar da mordida. Ele rasga a pele do adversário usando as garras, mas a besta não o solta.
Então, sinto a mão que me agarra por trás, segura meu braço. Tento empurrá-la, mas nem isso consigo fazer. Os olhos de Bernie Kosar estão fechados. Ele se debate sob a mordida da besta, e a pressão em sua garganta o impede de respirar.
Não! — eu berro.
Venha! — grita a voz atrás de mim. — Você tem que sair daqui!
O cachorro — argumento, sem identificar o dono daquela voz. — O cachorro!
Bernie Kosar é sufocado pela mordida, vai morrer, e não há nada que eu possa fazer. Logo será minha vez. Eu sacrificaria minha vida pela dele. Grito. Bernie Kosar vira a cabeça e olha para mim, sua expressão distorcida pela dor e pela agonia da morte iminente.
Temos que ir! — insiste a voz atrás de mim, a mão me puxando para dentro da floresta.
Os olhos de Bernie Kosar permanecem fixos nos meus. Vá, ele me diz. Saia daqui agora, enquanto você pode. Não há muito tempo.
De alguma forma, consigo ficar de pé. Estou tonto, vendo o mundo girar à minha volta. Só os olhos de Bernie Kosar permanecem em foco. Olhos que clamam por ajuda, embora seus pensamentos afirmem o contrário.
Temos que ir! — a voz grita novamente. Não me viro, mas agora sei a quem ela pertence. Mark James, que não está mais escondido na escola, tenta me salvar desse confronto. Se ele está aqui, Sarah deve estar bem, e por um breve momento me permito sentir alívio, mas o sentimento desaparece tão depressa quanto surgiu. Neste exato momento só uma coisa importa. Bernie Kosar me olhando com aquela expressão suplicante, vidrada. Ele me salvou. É minha vez de tentar ajudá-lo.
Mark apoia a mão em meu peito, tenta me puxar, me tirar da clareira, me afastar da luta. Eu me liberto. Os olhos de Bernie Kosar começam a se fechar lentamente. Ele está desaparecendo, penso. Não vou ficar vendo você morrer, digo a ele. Estou disposto a ver muitas coisas neste mundo, mas sua morte não é uma delas. Não há resposta. A besta intensifica a pressão da mordida. Ela pode sentir a morte próxima.
Dou um passo cambaleante e tiro a adaga do cós da calça. Seguro a arma com força, e ela ganha vida e começa a brilhar. Nunca poderei abater a besta arremessando a adaga, e todos os meus Legados praticamente desapareceram. A decisão é fácil. Não há alternativas. Só me resta atacar.
Respiro profundamente. Balanço o corpo para trás, sinto todos os músculos tensos com a dor da exaustão, não há um centímetro de meu corpo que não esteja doído.
— Não! — Mark grita atrás de mim.
Eu me lanço no ar e corro até a besta. Ela está de olhos fechados, concentrando toda a força na mordida. A luz da lua faz brilhar o sangue no pescoço de Bernie Kosar. Poucos metros. Os olhos da besta se abrem no exato momento em que eu salto. Olhos amarelos que são tomados pela fúria no segundo em que me encontram, voando no ar com a adaga na mão, as duas mãos erguidas sobre a cabeça, como se vivesse um sonho heróico do qual não quero acordar. A fera solta o pescoço de Bernie Kosar e tenta me morder, mas percebe que me avistou tarde demais. A lâmina brilha com ansiedade, e eu a enterro profundamente no olho da besta. Um líquido jorra imediatamente da ferida aberta. A besta deixa escapar um grito aterrorizante, tão alto que é difícil imaginar que os mortos não despertaram.
Eu caio de costas. Levanto a cabeça e vejo a besta se aproximando de mim. Ela tenta em vão arrancar a adaga do olho, mas suas mãos são grandes demais para o instrumento. As armas mogadorianos funcionam de alguma forma que eu nunca vou conseguir entender, por causa dos portais sobrenaturais entre os reinos. A adaga não é diferente, o negro da noite inundando o olho da fera numa espécie de funil de nuvens giratórias, um tornado de morte.
A besta cai, silenciosa, quando a última nuvem negra penetra em seu cérebro, a adaga cravada nele. Seus braços estão imóveis. As mãos começam a tremer. Um tremor violento que reverbera por todo o seu corpo gigantesco. Quando as convulsões terminam a besta se contorce e cai no chão, com as costas voltadas para as árvores. Apesar de sentada, é maior do que eu. Tudo fica em silêncio, na ansiedade pelo que está por vir. Um disparo, um tiro tão próximo que o estrondo ecoa em meus ouvidos e me deixa momentaneamente surdo. A besta inspira e prende o ar como se meditasse, e de repente sua cabeça explode, espalhando pedaços de cérebro, crânio e carne em todas as direções. Os fragmentos transformam-se imediatamente em cinzas e pó.
A floresta fica em silêncio. Viro a cabeça e olho para Bernie Kosar, que continua imóvel no chão, deitado de lado, os olhos fechados. Não consigo saber se está vivo. Diante de meus olhos, ele começa a se transformar mais uma vez, encolhendo e voltando ao tamanho normal, embora permaneça inerte, sem vida. Ouço o som de folhas sendo esmagadas e gravetos se partindo perto de mim.
Preciso de toda a força que tenho só para levantar a cabeça do chão. Abro os olhos e espio o véu escuro da noite, esperando ver Mark James. Mas não é ele que se debruça sobre mim. Perco o ar ao me deparar com a figura indefinida recortada contra a luz da lua. Então, ele dá um passo à frente e bloqueia o luar, e meus olhos se abrem com ansiedade e medo.

CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

A IMAGEM NEBULOSA GANHA NITIDEZ. APESAR DA EXAUSTÃO, DA DOR E DO MEDO, um sorriso se forma em meu rosto, junto à sensação de alívio. Henri. Ele joga a arma entre os arbustos e cai de joelhos a meu lado. Seu rosto está ensanguentado, camisa e jeans estão rasgados, há cortes nos braços e no pescoço, e percebo em seus olhos o medo provocado pelo que ele vê nos meus.
Acabou? — pergunto.
Shhh — ele murmura. — Foi ferido por uma das adagas deles?
Nas costas — respondo.
Ele fecha os olhos e balança a cabeça. Uma das mãos extrai de seu bolso uma daquelas pedrinhas que o vi pegar na Arca Lórica antes de deixarmos a sala de economia doméstica. Suas mãos tremem.
Abra a boca — ele diz. E insere nela uma das pedras. — Mantenha-a sob sua língua. Não a engula.
Ele me levanta com as mãos sob meus braços. Fico em pé e ele me sustenta com um braço enquanto recupero o equilíbrio. Ele me vira para examinar o corte nas costas. Meu rosto está quente. Sinto que me revigoro enquanto mantenho a pedra na boca. Meus membros ainda doem pela exaustão, mas tenho novamente força suficiente para funcionar.
O que é isto?
Sal lórico. Ele vai retardar e anular o efeito da adaga. Você vai sentir uma onda de energia, mas não vai durar muito, por isso temos que voltar à escola o mais depressa possível.
A pedra em minha boca é fria, não tem sabor de sal algum — na verdade não tem gosto de nada. Olho para baixo e faço um rápido inventário, e depois me limpo dos resíduos de cinzas deixados pela besta morta.
Todos estão bem? — quero saber.
Seis sofreu ferimentos graves. Sam está levando ela para a caminhonete; e depois vai dirigir até a escola para nos pegar. Por isso precisamos voltar para lá.
Viu Sarah?
Não.
Mark James esteve aqui agora há pouco. Pensei que estivesse com ele.
Não o vi.
Olho para o cachorro, além de Henri.
Bernie Kosar — digo. Ele ainda encolhia, as escamas desapareciam, o pelo retornava, e ele recuperava a forma que tinha quando o conheci, um corpo longo e roliço, pernas curtas, orelhas longas. Um beagle de focinho úmido sempre disposto a correr. — Ele salvou minha vida. Você sabia, não sabia?
É claro que sim.
Por que não me contou?
Porque ele cuidava de você quando eu não podia.
Mas como ele veio parar aqui?
Estava na nave conosco.
Eu me lembro do bicho de pelúcia com que costumava brincar. Era Bernie Kosar, embora seu nome anterior fosse Hadley.
Caminhamos juntos até onde está o cachorro. Eu me abaixo e deslizo a mão pelo corpo dele.
Temos que nos apressar — Henri repete.
Bemie Kosar não se move. A floresta ainda está repleta de sombras vivas que só podem ter um significado, mas não me importo. Aproximo a cabeça do peito do animal. Ouço o som bem fraco das batidas de seu coração. Ainda resta um fio de vida. Ele está repleto de cortes profundos e arranhões, e o sangue parece jorrar de todos os lugares. Sua pata dianteira está retorcida num ângulo que não é natural, fraturada. Mas ele ainda vive. Eu o pego nos braços com toda a gentileza de que sou capaz, aninhando-o como uma criança. Henri me ajuda a ficar em pé, depois leva a mão ao bolso, pega outra pedra de sal e a coloca na própria boca. Isso me faz pensar se ele falava sobre si mesmo quando mencionou que tínhamos pouco tempo. Nós dois cambaleamos. Algo na coxa de Henri chama minha atenção. Uma ferida que pulsa azulada por causa do sangue coagulado no entorno. Ele também foi atingido pela adaga de um soldado. Pergunto-me se a pedra de sal é a única coisa que o mantém em pé, assim como acontece comigo.
E quanto à arma? — pergunto.
Estou sem munição.
Saímos da clareira sem pressa. Bernie Kosar não se move em meus braços, mas posso sentir que a vida ainda pulsa em seu corpo. Ele ainda não morreu. Partimos da floresta, deixando para trás os galhos baixos, as folhas caídas, o cheiro de umidade e terra.
Acha que consegue correr? — Henri me pergunta.
Não. Mas vou correr assim mesmo.
Ouvimos à nossa frente uma grande comoção, vários grunhidos seguidos pelo som de correntes.
Depois ouvimos um rugido, nem tão sinistro quanto os anteriores, mas alto o suficiente para sabermos que há outra besta por perto.
Deve ser brincadeira comigo — diz Henri.
Galhos se partem atrás de nós, na floresta. Henri e eu nos viramos, mas as árvores bloqueiam nossa visão. Acendo a luz de minha mão esquerda e direciono o foco para a mata, tentando enxergar. Deve haver sete ou oito soldados na entrada do bosque, e, quando minha luz os ilumina, todos empunham suas espadas, armas que ganham vida com cores variadas e cintilantes no momento em que são erguidas.
Não — grita Henri. — Não use seus Legados, isso o enfraquecerá.
Mas é tarde demais. Apago a luz. Vertigem e fraqueza retornam, depois vem a dor. Prendo o fôlego e espero os soldados nos atacarem. Mas eles não o fazem. Não há som algum, exceto o da luta que se desenrola bem à nossa frente. Depois, gritos atrás de nós. Eu me viro para olhar. As espadas brilhantes se movem. Uma risada confiante brota do peito de um dos soldados. Nove deles, todos armados e cheios de força, contra três de nós, e estamos fracos e desarmados, sem nada além de coragem. A besta de um lado, os soldados do outro. Essa é a escolha que agora encaramos.
Henri parece não se abalar. Ele remove mais duas pedras do bolso e me dá uma delas.
As últimas — diz, a voz trêmula, como se fizesse um grande esforço para falar.
Jogo a pedra de sal na boca e a prendo sob a língua, apesar de ainda haver ali uma pequena porção da anterior. Uma força renovada me invade.
O que você acha? — ele me pergunta.
Estamos cercados. Henri e Bernie Kosar e eu. Os únicos três remanescentes. Seis foi ferida e levada por Sam. Mark esteve ali há pouco, mas agora desapareceu. E Sarah, que espero que esteja bem e segura na escola. Respiro fundo e aceito o inevitável.
Acho que não importa, Henri — digo e olho para ele. — Mas a escola está à nossa frente, e é lá que Sam vai estar daqui a pouco.
O que ele faz em seguida me surpreende: Henri sorri. Ele estende a mão e toca meu ombro. Seus olhos estão cansados e vermelhos, mas vejo neles alívio, um sentimento de serenidade, como se soubesse que tudo acabaria em breve.
Fizemos tudo o que podíamos. E o que está feito não pode ser mudado. Mas eu me orgulho de você — ele diz. — Hoje você foi incrível. Eu sempre soube que seria. Nunca duvidei disso.
Abaixo a cabeça. Não quero que ele me veja chorar. Afago o cachorro. Pela primeira vez desde que o peguei nos braços, ele mostra sinal de vida, erguendo a cabeça apenas o suficiente para lamber meu rosto uma vez. Ele me transmite uma única palavra, como se sua força fosse suficiente apenas para isso. Coragem, ele diz.
Levanto a cabeça. Henri se aproxima e me abraça. Fecho os olhos e enterro o rosto em seu pescoço. Ele ainda está tremendo, seu corpo fraco em meus braços. Tenho certeza de que o meu não está mais forte. Então é isso, penso. De cabeça erguida, vamos caminhar para o campo de batalha e enfrentar o que nos espera do outro lado. Pelo menos há dignidade nisso.
Você foi muito bem — ele diz.
Abro os olhos. Por cima de seu ombro, vejo que os soldados estão próximos, a poucos metros de nós. Eles pararam de marchar. Um deles segura uma adaga que pulsa em tons de cinza e prata. O soldado a joga para cima, a pega no ar e a arremessa contra as costas de Henri. Levanto a mão e a desvio, e a adaga erra o alvo por menos de dez centímetros. Minha força me abandona quase imediatamente, embora o sal ainda se dissolva em minha boca.
Henri apóia meu braço livre em seus ombros e passa o braço direito em torno de minha cintura. Cambaleamos para a frente. A besta aparece, em pé no centro do campo de futebol. Os mogadorianos nos seguem. Talvez estejam curiosos para ver a besta em ação, para ver a besta matar. Cada passo que dou exige um esforço maior do que o anterior. Meu coração bate forte no peito. A morte é iminente, e estou apavorado. Mas Henri está ali. E Bernie Kosar também. Fico feliz por não ter de enfrentar tudo sozinho. Há vários soldados em pé atrás da besta. Mesmo que pudéssemos passar por ela, precisaríamos enfrentar os soldados, que nos esperam com as espadas em punho.
Não temos alternativas. Chegamos ao campo, e eu espero a fera atacar a qualquer momento. Mas nada acontece. Quando estamos a quatro ou cinco metros dela, nós paramos. Ficamos apoiados um no outro, tentando permanecer em pé.
A besta tem a metade do tamanho da outra, mas ainda é grande o bastante para nos matar sem qualquer esforço. Pele pálida, quase transparente, revela articulações salientes e costelas protuberantes. Tem várias cicatrizes rosadas nos braços e no corpo. Olhos brancos, aparentemente cegos. Ela se abaixa, aproximando o focinho do chão para farejar o que os olhos não conseguem enxergar. A besta sente nossa presença. Ela deixa escapar um grunhido baixo. Não sinto a raiva e a ferocidade que as outras feras emanavam, nem o desejo de sangue e morte. Há uma sensação de medo, uma espécie de tristeza. Eu me torno perceptivo ao animal. Vejo imagens de tortura e de fome. Vejo a besta trancafiada por toda a vida na Terra, numa caverna úmida onde a luz não penetra. Tremendo à noite por não conseguir se manter aquecida, sempre com frio e molhada. Vejo como os mogadorianos jogam as bestas umas contra as outras, forçando-as a lutar para treinarem, usando essa tática para endurecê-las, torná-las mais cruéis.
Henri me solta. Não consigo mais segurar Bernie Kosar. Eu o coloco na relva com delicadeza. Não sinto seus movimentos há alguns minutos, por isso não posso dizer se está vivo. Dou um passo à frente e caio de joelhos. Os soldados ainda nos cercam. Não entendo sua linguagem, mas posso identificar a impaciência em seu tom. Um deles brande a espada e a adaga quase me acerta, um lampejo branco que rasga a frente de minha camisa. Fico de joelhos e olho para cima, para a besta que se debruça sobre mim. Uma arma é disparada em algum lugar, mas o projétil passa por cima de nós. Um tiro de alerta, um disparo cujo propósito é impelir a besta a agir. Ela treme. Uma segunda adaga corta o ar e atinge seu cotovelo esquerdo. Ela ergue a cabeça e ruge de dor.
Sinto muito, tento dizer a ela. Lamento pela vida que vocês têm sido forçadas a viver. Foram enganadas. Nenhuma criatura viva merece esse tratamento. Foram obrigadas a enfrentar o inferno, arrancadas de seu planeta para lutar em uma guerra que não é de vocês. Espancadas, torturadas, submetidas à fome. A culpa de todo o sofrimento, de toda a agonia que vocês têm suportado é deles. Vocês e nós temos algo em comum. Fomos ambos enganados por esses monstros.
Tento de toda forma transmitir minhas imagens, aquilo que vi e senti. A besta não desvia o olhar. Meus pensamentos a alcançam em algum nível. Mostro a ela Lorien, o vasto oceano e as florestas densas, as colinas verdejantes onde havia vida e energia. Animais bebendo a água limpa e fresca. Um povo orgulhoso e satisfeito por viver seus dias em harmonia. Mostro o inferno que veio a seguir, a morte de homens, mulheres e crianças. Os mogadorianos. Assassinos de sangue frio. Matadores perversos destruindo tudo o que existia em seu caminho devido a crenças patéticas e inconsequentes. Destruindo até o próprio planeta. Onde isso vai acabar? Mostro a ela Sarah, mostro cada emoção que experimentei com ela. Felicidade e glória, é isso que sinto com Sarah. E mostro a dor que experimento por ter de deixá-la, tudo por causa deles. Ajude-me, eu peço. Ajude-me a pôr um ponto final nessa mortandade. Vamos lutar juntos. Não me resta muita coisa, mas, se ficar a meu lado, eu ficarei ao seu.
A besta ergue a cabeça para o céu e ruge. Um rugido longo e profundo. Os mogadorianos podem perceber o que está acontecendo e já viram o suficiente. Eles começam a disparar. Um dos canhões está apontado para mim. O mogadoriano atira, e a morte branca vem em minha direção. Mas a besta abaixa a cabeça e absorve o impacto em meu lugar. Seu rosto se contorce de dor, seus olhos se fecham por um instante, mas se abrem em seguida, e vejo a fúria neles.
Caio com o rosto na grama. Sou atingido por algo, mas não vejo o que é. Henri grita de dor atrás de mim e é arremessado longe, mais de dez metros distante de onde estou. Seu corpo fica caído na terra, o rosto para cima, a carne fumegando. Não sei o que o atingiu. Alguma coisa grande e mortal. Pânico e medo me invadem. Não Henri, eu penso. Por favor, não Henri.
A besta desfere um golpe certeiro que derruba vários soldados e elimina muitas de suas armas. Outro rugido. Olho para cima e vejo os olhos da besta agora vermelhos, iluminados com ira. Retribuição. Motim. Ela olha para mim uma vez, depois corre atrás daqueles que a mantiveram em cativeiro. Armas são disparadas, mas logo são silenciadas. Mate todos eles, eu penso. Lute com nobreza e honra e vai poder eliminar todos eles.
Levanto a cabeça. Bernie Kosar está imóvel na grama. Henri, metros longe de mim, também está inerte. Apóio a mão sobre a relva e me arrasto pelo campo, pouco a pouco, aproximando-me de Henri. Quando o alcanço, noto que ele mantém os olhos ligeiramente abertos; cada respiração é um grande esforço. O sangue escorre de sua boca e do nariz. Eu o tomo em meus braços e aninho contra o peito. Seu corpo é frágil, fraco, e posso senti-lo morrendo. Suas pálpebras tremulam. Ele olha para mim, ergue a mão, e toca meu rosto. No segundo em que sinto seus dedos, eu começo a chorar.
Estou aqui — digo.
Ele tenta sorrir.
Sinto muito, Henri — murmuro. — Sinto muito mesmo. Devíamos ter ido embora quando você quis partir.
Shhh — ele murmura. — Não é sua culpa.
Eu sinto muito — repito, soluçando.
Você foi muito bem — ele murmura. — Foi incrível. Como sempre soube que seria.
Temos que chegar na escola. Sam pode estar lá.
Escute, John. Tudo... tudo o que você precisa saber está na arca. A carta.
Não acabou. Ainda podemos conseguir.
Sinto que ele começa a me deixar. Eu o sacudo. Seus olhos se abrem novamente, com relutância. Um fio de sangue escorre da boca.
Não foi por acaso que viemos para cá, para Paradise.
Não sei o que ele quer dizer.
Leia a carta.
Henri — eu o chamo, limpando o sangue de seu queixo. Ele me encara.
Você é Legado de Lorien, John. Você e os outros. A única esperança que restou ao planeta. Os segredos — ele diz, e é interrompido por um ataque de tosse. Mais sangue. Seus olhos se fecham novamente. — A arca, John.
Eu o aperto contra o peito, tento mantê-lo preso à vida. Seu corpo está ficando mole. A respiração é superficial, não chega aos pulmões.
Vamos voltar juntos, Henri. Você e eu, prometo — digo e fecho os olhos.
Seja forte — ele diz, e é novamente interrompido por um ataque de tosse, embora tente falar: — Essa guerra... Pode vencer... Encontre os outros... Seis... O poder dos... — E ele se cala.
Tento me levantar com ele nos braços, mas não me resta mais nada, mal tenho força para respirar. Ouço ao longe o rugido da besta. Canhões ainda são disparados, e os sons e as luzes dos tiros ecoam além da arquibancada do estádio, mas a cada minuto há menos tiros, até que ouço o último. E depois o silêncio. Henri ainda está em meus braços. Toco seu rosto, e ele abre os olhos e me vê pela última vez. Depois inspira, solta o ar e os fecha.
— Eu não teria perdido um único minuto de tudo isso, garoto. Nem por Lorien. Nem pelo mundo todo — diz.
E quando a última palavra sai de sua boca, sei que ele se foi. Aperto-o em meus braços, tremendo, chorando, sentindo o desespero e a impotência se apossarem de mim. A mão dele cai sobre a relva, inerte. Seguro sua cabeça de encontro a meu peito e o balanço para a frente e para trás, chorando como nunca antes. O pingente em meu pescoço brilha com uma luz azul, pesa por um segundo, depois retorna ao normal.
Fico sentado na grama, segurando o corpo sem vida de Henri, ouvindo o silêncio. A dor deixa meu corpo, e com o frio da noite eu sinto que também começo a desaparecer. Lua e estrelas brilham no céu. Ouço uma risada transportada pelo vento. Meus ouvidos tentam capturar mais sons, identificá-los. Viro a cabeça. Tonto, vejo um mensageiro parado não muito longe de mim. Sobretudo negro, chapéu preto sobre os olhos. Ele despe o casaco e tira o chapéu, revelando uma cabeça pálida e calva. Da parte de trás do cinturão, ele pega uma faca curva, uma lâmina que não tem mais de trinta centímetros. Fecho os olhos. Não me importo com mais nada. A respiração ruidosa do mensageiro se aproxima de mim. E de repente os passos param. O mensageiro geme de dor, e ouço um gorgolejar.
Abro os olhos. Ele está tão perto que posso sentir seu cheiro. A faca caiu de sua mão, e vejo em seu peito, onde deve ficar o coração, uma faca de açougueiro. A faca é arrancada. O mensageiro cai de joelhos, depois de lado e explode numa nuvem de cinzas. Atrás dele, segurando a faca na mão direita e trêmula, vejo Sarah. Ela a deixa cair e corre para mim, abraçando-me e envolvendo também o corpo de Henri. Eu ainda o seguro quando minha cabeça pende para trás e o mundo todo mergulha no nada.
O resultado da tragédia: a escola destruída, as árvores mortas e pilhas de cinzas espalhadas pela grama do campo de futebol americano; e eu ainda seguro Henri nos braços, e Sarah me segura.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

IMAGENS TREMULAM, CADA UMA TRAZ UMA DOR OU UM SORRISO. ÀS VEZES, OS dois. Na pior delas uma escuridão impenetrável, e na melhor uma luz tão brilhante que fere os olhos, oscilando a partir de um projetor ligado perpetuamente por mão invisível. Uma, depois outra. O clique vazio do interruptor. Agora pare. Congele essa imagem. Aproxime-a, aumente-a e fique surpreso com o que vê. Henri sempre disse: o preço de uma lembrança é a lembrança da dor que ela traz.
Um dia quente de verão na grama fresca, com o sol brilhando em um céu sem nuvens. O sopro que vem da água, trazendo o frescor do mar. Um homem se aproxima da casa, carregando uma valise. Jovem, de cabelos castanhos e curtos, barba feita, roupas casuais. Há um nervosismo em como ele passa a maleta de uma das mãos para a outra e em como uma fina camada de suor cobre sua testa. Ele bate à porta. Meu avô vai abrir, o homem entra, e meu avô fecha a porta. Volto a brincar no quintal. Hadley muda de forma, voa, depois pousa e muda novamente. Lutamos, rolamos na relva, eu rio até ficar sem ar. O dia passa devagar, o tempo transcorrendo tranquilamente como só é possível no abandono incauto da infância, na invencibilidade de sua inocência.
Quinze minutos se passam. Talvez menos. Nessa idade, um dia pode durar para sempre. A porta se abre e fecha. Olho para cima. Meu avô está ali com o homem que vi chegar pouco antes, e os dois olham para mim.
Quero que conheça alguém — diz meu avô.
Fico em pé e bato as mãos uma na outra, para livrá-las da terra.
Esse é Brandon — meu avô o apresenta. — Ele é seu Cêpan. Sabe o que isso significa?
Balanço a cabeça. Brandon. Esse é o nome dele. Todos esses anos, e só agora recordo o nome.
Quer dizer que ele vai passar muito tempo com você de agora em diante. Significa que vocês dois estão ligados. Estão presos um ao outro. Entende o que eu digo?
Eu assinto e me aproximo do homem estendendo a mão, como vi tantos adultos fazerem antes. O homem sorri e se abaixa, apoiando o corpo sobre um joelho. Ele segura minha mão e a envolve com os dedos longos e firmes.
É um prazer conhecê-lo, senhor — digo.
Olhos brilhantes, gentis, cheios de vida fitam os meus, como se transmitissem uma promessa, como se forjassem um laço, mas sou jovem demais para saber o que realmente significa essa promessa, esse elo.
Ele assente e pousa a mão esquerda sobre a direita, e minha mão pequenina desaparece entre elas. Ele me encara sorrindo.
Meu querido menino — diz. — O prazer é todo meu.

Acordo sobressaltado. Estou deitado de costas, com o coração aos saltos, respirando com dificuldade, como se tivesse corrido. Meus olhos permanecem fechados, mas posso afirmar, pelas sombras alongadas e pelo ar que circula no quarto, que o sol já se ergueu. A dor retorna, meus membros ainda pesam. Com a dor física vem outra, maior do que qualquer sofrimento do corpo pode me afligir: a lembrança das horas anteriores.
Respiro fundo. Uma única lágrima rola pela lateral do rosto. Mantenho os olhos fechados. Uma esperança irracional se apodera de mim, a de que se eu não reconhecer o dia, o dia não me encontrará, e assim se tornarão nulas todas as coisas da noite. Meu corpo estremece, um grito silencioso ganha som. Balanço a cabeça e me entrego ao sofrimento. Sei que Henri está morto e que nem toda esperança do mundo vai mudar esse fato.
Sinto um movimento a meu lado. Fico tenso, tentando me manter imóvel para não ser detectado. Sinto a mão que toca meu rosto. Um toque delicado, cheio de amor. Meus olhos se abrem, ajustando-se à luminosidade do amanhecer, e espero até o teto do quarto desconhecido ganhar foco. Não sei onde estou. Nem como cheguei ali. Sarah está sentada junto a mim. Ela toca meu rosto novamente, desenhando o contorno de minha sobrancelha com o polegar. Depois se inclina e me beija, um beijo suave e prolongado, que gostaria de poder engarrafar e guardar para sempre. Ela se afasta e eu respiro fundo, fecho os olhos e a beijo na testa.
Onde estamos? — pergunto.
Em um hotel a cinquenta quilômetros de Paradise.
Como cheguei aqui?
Sam nos trouxe na caminhonete — ela diz.
Da escola? O que aconteceu? Lembro-me de você comigo na noite passada, mas não me recordo de mais nada depois disso. É quase como se fosse tudo um sonho.
Fiquei com você no campo até Mark chegar para carregá-lo até a caminhonete de Sam. Não podia continuar escondida. Ficar na escola sem saber o que acontecia do lado de fora estava me matando. E eu tinha a sensação de que podia ajudar de algum modo.
Você certamente ajudou — digo. — Salvou minha vida.
Matei um alien — ela me conta, como se ainda não pudesse entender o fato.
Ela me abraça, sua mão apoiada na parte de trás de minha cabeça. Tento me sentar. Consigo erguer o corpo até a metade do caminho, e depois Sarah me ajuda, apoiando minhas costas e tomando cuidado para não tocar no ferimento deixado pela adaga. Apoio os pés no chão e me abaixo, tentando sentir as cicatrizes em torno do tornozelo, contando-as com a ponta dos dedos. Ainda são apenas três, e é assim que concluo que Seis sobreviveu. Já havia me conformado com o destino de passar o restante de meus dias sozinho, um andarilho sem lugar aonde ir. Mas não vou ficar sozinho. Seis ainda está por aí em algum lugar, minha ligação com um mundo do passado.
Seis está bem?
Sim — Sarah responde. — Ela foi ferida por uma faca e levou um tiro, mas parece estar se recuperando bem. Não pensei que ela conseguiria sobreviver, e acho que não teria resistido, não fosse Sam tê-la levado para a caminhonete.
Onde ela está?
No quarto ao lado, com Sam e Mark.
Eu me levanto. Músculos e articulações protestam, tudo está dolorido e pesado. Estou vestindo uma camiseta limpa e short. Minha pele exala o aroma fresco de sabonete. Os cortes foram limpos e receberam curativos, alguns deles foram suturados.
Você fez tudo isso? — pergunto.
A maior parte. Os pontos foram minha maior dificuldade. Tínhamos apenas aqueles que Henri deu em sua cabeça como exemplo. Sam ajudou.
Olho para Sarah sentada na cama, as pernas sob o corpo. Alguma coisa chama minha atenção, um pequeno volume que se move sob o cobertor ao pé da cama. Fico tenso e me lembro imediatamente dos animais estranhos que correram pelo ginásio. Sarah percebe minha reação e sorri. Ela engatinha até o pé da cama.
Tem alguém aqui que quer lhe dar um oi — diz, levantando a ponta do cobertor para revelar Bernie Kosar, que dorme tranquilamente. Há uma tala de metal em sua pata dianteira, e todo o corpo está coberto de cortes e arranhões que, como os meus, foram limpos e já começam a cicatrizar. Seus olhos se abrem lentamente e se ajustam à luz, olhos vermelhos, exaustos. Ele mantém a cabeça na cama, mas balança a cauda uma vez, fraco.
Bernie — digo, caindo de joelhos diante dele. Toco sua cabeça com delicadeza. Não consigo deixar de sorrir, e lágrimas de alegria surgem em meus olhos. Seu corpo pequenino está encolhido numa bola, a cabeça apoiada sobre as patas dianteiras, os olhos fixos em mim. Ele está ferido e tem marcas da batalha, mas sobreviveu para contar sua história.
Bernie Kosar, você está vivo. Devo minha vida a você — digo, beijando o topo de sua cabeça.
Sarah o afaga.
Eu o levei para a caminhonete enquanto Mark carregava você.
Mark. Lamento ter duvidado dele um dia — digo.
Ela levanta uma das orelhas de Bernie Kosar. Ele se vira e fareja sua mão. Depois a lambe.
Então, é verdade o que Mark disse sobre Bernie Kosar ter crescido uns quinze metros e ter matado uma besta com o dobro do tamanho dele?
Eu sorrio.
O triplo do tamanho dele.
Bernie Kosar olha para mim. Mentiroso, diz. Olho para ele e pisco. Depois olho para Sarah.
Tudo isso — digo. — Tudo isso aconteceu depressa demais. Como está lidando com essas coisas todas?
Ela move a cabeça em sentido afirmativo.
Lidando com o quê? Com o fato de ter me apaixonado por um alien, o que só descobri há três dias, e de ter parado bem no meio de uma guerra? Ah, bem, acho que estou lidando bem.
Sorrio para ela.
Você é um anjo.
Que nada — ela diz. — Sou apenas uma garota loucamente apaixonada.
Ela se levanta da cama e me abraça, e ficamos abraçados no centro do quarto.
Você tem mesmo que ir, não é?
Eu confirmo, movendo a cabeça.
Ela inspira e solta o ar bem devagar, tentando não chorar. Foram mais lágrimas nas últimas vinte e quatro horas do que testemunhei em todos os anos de minha vida.
Não sei aonde tem que ir ou o que precisa fazer, mas vou esperar por você, John. Meu coração é seu, mesmo que você não o tenha pedido.
Eu a aperto entre os braços.
E o meu pertence a você — respondo.
Atravesso o quarto. A Arca Lórica está na cômoda, com três maletas, o computador de Henri e todo o dinheiro da última retirada que fizemos no banco. Sarah deve ter resgatado a arca da sala de economia doméstica. Eu ponho minha mão sobre ela. Todos os segredos, Henri disse. Tudo contido nela. Com o tempo eu a abrirei e os descobrirei, mas este não é o momento, com certeza. E o que ele disse sobre Paradise, sobre não termos vindo por acaso?
Fez minhas malas? — pergunto a Sarah, que está em pé atrás de mim.
Sim, e não me lembro de já ter feito algo mais difícil ou doloroso.
Pego uma das valises. Embaixo dela há um envelope pardo com meu nome escrito na parte da frente.
O que é isso? — pergunto.
Não sei. Encontrei o envelope no quarto de Henri. Fomos até lá assim que saímos da escola e tentamos pegar tudo o que era possível. Então viemos para cá.
Abro o envelope e estudo seu conteúdo. Todos os documentos que Henri criou para mim: certidões de nascimento, cartões do seguro social, vistos, tudo. Dezessete identidades diferentes, dezessete idades distintas. Na página da frente há um bilhete de Henri preso com um clipe: "Só por precaução." Depois da última folha há outro envelope lacrado, e nele Henri escreveu meu nome. Uma carta, aquela sobre a qual ele falou no dia em que morreu, provavelmente. Não tenho coragem para abri-la.
Olho pela janela do quarto do hotel. Uma neve fina cai das nuvens baixas e cinzentas. O chão está quente demais para que ela resista. O carro de Sarah e a caminhonete azul de Sam estão lado a lado no estacionamento. Ainda estou ali parado, olhando para eles, quando ouço as batidas à porta. Sarah a abre e Sam e Mark entram no quarto; Seis manca atrás dele. Sam me abraça e diz que lamenta muito.
Eu sei, obrigado — respondo.
Como se sente? — Seis me pergunta. Ela não usa mais o macacão. Agora veste a calça jeans que usava na primeira vez que a vi e um moletom de Henri.
Bem. — Dou de ombros. — Dolorido. Meu corpo está pesado.
É o peso deixado pela adaga. Vai desaparecer com o tempo.
Seus ferimentos foram muito graves?
Ela levanta o moletom e me mostra o corte na lateral do corpo e outro nas costas. Seis foi ferida três vezes na noite de ontem, sem mencionar os diversos cortes espalhados pelo corpo e o tiro, que deixou um ferimento profundo na coxa direita, agora envolta em gaze e esparadrapo, e que a faz mancar. Ela me conta que, quando voltamos, era tarde demais para usar a pedra de cura. Surpreendo-me por ainda vê-la com vida.
Sam e Mark usam as mesmas roupas do dia anterior, ambos imundos, cobertos de terra e de sangue. Os dois têm aquela aparência cansada de quem não dorme há muito tempo. Mark está atrás de Sam, movendo o peso de um lado para o outro com evidente desconforto.
Sam, eu sempre soube que você era uma máquina de destruição — eu digo.
Ele ri com evidente fraqueza.
Está tudo bem?
Sim, estou bem — respondo. — E você?
Tudo bem.
Olho para Mark.
Sarah me contou que você me carregou ontem à noite.
Ele dá de ombros.
Foi um prazer ajudar.
Você salvou minha vida, Mark.
Ele me encara.
Acho que todos nós salvamos alguém em algum momento da noite passada. Seis me salvou três vezes. E você salvou meus cachorros no sábado. Considero que estamos quites.
Eu consigo sorrir.
É, acredito que sim. E fico feliz por descobrir que não é o valentão idiota que pensei que fosse.
Ele ri.
Vamos dizer que se eu soubesse que você era um alien e que podia acabar comigo, talvez eu tivesse sido um pouco mais simpático naquele primeiro dia.
Seis atravessa o quarto e olha para as maletas sobre a cômoda.
Temos que ir — ela diz e depois olha para mim com preocupação, seu rosto mais suave. — Só há uma coisa a fazer ainda. Não sabíamos o que preferia que fizéssemos.
Eu assinto. Não preciso perguntar sobre o que ela está falando. Eu sei. Olho para Sarah. Vai acontecer muito antes do que eu imaginava. Meu estômago se embrulha. Tenho a impressão de que vou vomitar. Sarah segura minha mão.
Onde ele está?

O chão está úmido com a neve derretida. Seguro a mão de Sarah e atravessamos o bosque em silêncio, um quilômetro longe do hotel. Sam e Mark caminham à frente, seguindo as pegadas que eles próprios deixaram na terra molhada algumas horas antes. Vejo uma pequena clareira adiante, e, no centro dela, o corpo de Henri repousa em uma placa de madeira. Ele está envolto pelo cobertor cinza que foi retirado de sua cama. Eu me aproximo. Sarah me segue e toca meu ombro. Os outros estão atrás de mim. Levanto a ponta do cobertor para vê-lo. Seus olhos estão fechados, o rosto tem uma coloração acinzentada e os lábios estão azuis e frios. Eu a beijo na testa.
O que quer fazer, John? — Seis me pergunta. — Podemos enterrá-lo, se quiser. Também podemos cremá-lo.
Como podemos cremá-lo?
Posso acender um fogo.
Pensei que só pudesse controlar o clima.
Não o clima. Os elementos.
Olho para seu rosto suave e vejo a preocupação nele, a tensão por saber que precisamos partir antes da chegada dos reforços. Não respondo. Desvio os olhos e afago Henri uma última vez com meu rosto próximo ao dele, depois me entrego à dor.
Sinto muito, Henri — sussurro em seu ouvido e fecho os olhos —, amo você. Também não teria perdido um segundo disso.
Por nada. E ainda vou levar você de volta. De algum jeito, vou levá-lo para Lorien. Sempre brincamos sobre isso, mas você foi meu pai, o melhor pai que eu podia ter desejado. Jamais o esquecerei, nem por um minuto enquanto eu viver. Amo você, Henri. Sempre amei.
Eu recuo um passo, puxo o cobertor sobre seu rosto e me viro para abraçar Sarah. Ela me abraça até eu parar de chorar. Limpo minhas lágrimas com o dorso da mão e faço um sinal afirmativo para Seis.
Sam me ajuda a afastar os gravetos e as folhas, e nós depositamos o corpo de Henri no chão limpo, para evitar misturar suas cinzas com outras quaisquer. Seis acende o fogo na ponta do cobertor. Nós o vemos arder. Todos choramos. Até Mark está chorando. Ninguém diz nada. Quando as chamas se extinguem, eu recolho as cinzas em uma lata de café que Mark foi astuto o bastante para trazer do hotel. Encontrarei algum recipiente melhor quando pararmos em algum lugar. Voltamos, e eu deixo a lata sobre o painel da caminhonete do pai de Sam. Sinto-me confortado por saber que Henri ainda viajará conosco, que vai estar olhando para a estrada quando deixarmos mais uma cidade como ele e eu fizemos tantas vezes.
Colocamos nossos pertences na parte de trás da caminhonete. Junto às coisas de Seis e às minhas, Sam coloca duas maletas dele. No início fico confuso, mas depois compreendo que ele e Seis combinaram que Sam vai viajar conosco. E eu fico feliz com isso. Sarah e eu voltamos ao quarto de hotel. No instante em que fechamos a porta, ela segura minhas mãos e me olha nos olhos.
Meu coração está partido — diz. — Quero ser forte por você agora, mas a idéia de vê-lo partir está me matando por dentro.
Eu a beijo na testa.
Meu coração já se partiu — digo. — Assim que me instalar em algum lugar, eu escrevo. E farei o possível para telefonar quando tiver certeza de que é seguro.
Seis abre a porta e espia pela fresta.
Temos que ir — ela diz.
Eu assinto. Ela fecha a porta. Sarah ergue o rosto e nós nos beijamos ali, no quarto de hotel. A idéia de que os mogadorianos podem chegar antes de partirmos, colocando-a novamente em perigo, é só o que me dá força. Não fosse por isso, eu já teria desmoronado. Eu ficaria para sempre.
Bernie Kosar continua deitado ao pé da cama. Ele balança a cauda quando o tomo nos braços e levo para a caminhonete. Seis liga o motor. Eu me viro, olho para o hotel e sinto uma profunda tristeza por não ser a casa, e por saber que nunca mais a verei. Suas janelas de madeira escura e descascada, o acabamento desbotado pelo sol e pela chuva. Parece o Paraíso, certa vez eu disse a Henri. Mas agora isso não é mais verdade. Paraíso perdido.
Eu me viro e aceno a cabeça para Seis. Ela entra na caminhonete, fecha a porta e espera.
Sam e Mark apertam as mãos, mas não escuto o que dizem um ao outro. Sam entra na caminhonete para esperar com Seis. Eu aperto a mão de Mark.
Devo a você mais do que jamais poderei pagar — digo.
Você não me deve nada — Mark responde.
Não é verdade. Um dia...
Desvio o olhar. Sinto que estou prestes a cair de tristeza. Minha determinação está ameaçada. Posso desistir a qualquer momento.
Um dia voltaremos a nos encontrar — digo.
Cuide-se — ele recomenda.
Abraço Sarah com força, temendo não conseguir deixá-la.
Eu vou voltar — digo. — Prometo. Nem que seja a última coisa que eu faça, venho buscá-la.
Ela assente com o rosto enterrado em meu pescoço.
Vou ficar contando os minutos — diz.
Um último beijo. Eu a ponho no chão e abro a porta da caminhonete. Meus olhos não deixam os dela. Ela cobre a boca e o nariz com uma das mãos, apertando-os. Nenhum de nós consegue desviar o olhar. Fecho a porta. Seis engata a ré e sai do estacionamento, para, engata a primeira. Mark e Sarah caminham até a saída do estacionamento para nos ver partir, e percebo que Sarah está chorando. Eu me viro no assento e olho pela janela de trás. Levanto a mão e aceno. Mark acena de volta, mas Sarah fica apenas olhando, imóvel. Eu a observo até ela ficar menor, até que desapareça como um ponto distante. Então olho para a frente e vejo os campos passando pela janela. Fecho os olhos, imagino o rosto de Sarah e sorrio. Ainda vamos ficar juntos, digo a ela. E até lá você vai estar em meu coração e em todos os meus pensamentos.
Bernie Kosar apóia a cabeça em meu colo, e eu repouso a mão em suas costas. A caminhonete segue pela estrada, para o sul. Nós quatro juntos, indo para a próxima cidade. Seja lá qual for.

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