domingo, 10 de julho de 2011

Eu Sou o Número Quatro, Capítulos 11 ao 15

CAPÍTULO ONZE

IMAGENS ME TOMAM DE ASSALTO, EM MOMENTOS ALEATÓRIOS, NORMALMENTE quando menos espero por elas. Às vezes são pequenas e rápidas: minha avó segurando um copo de água e abrindo a boca para dizer alguma coisa; mas nunca sei quais são suas palavras, porque a cena desaparece tão depressa quanto surgiu. Às vezes são mais demo­radas, mais vivas: meu avô me empurrando em um balanço. Posso sentir a força em seus braços quando ele me impulsiona, as borbole­tas no estômago quando vou cada vez mais alto. O vento leva minha risada. Então, a imagem desaparece. Às vezes lembro explicitamen­te as imagens de meu passado, lembro-me de ter feito parte delas. Mas, outras vezes, elas são tão novas para mim que é como se nunca houvessem acontecido.
Na sala de estar, enquanto Henri esfrega o cristal lórico em meus braços e eu mantenho as mãos suspensas sobre o fogo, vejo o seguinte: sou pequeno — tenho uns três anos, talvez quatro — e estou correndo pelo jardim de grama recém-aparada. Do meu lado vejo um animal, uma criatura parecida com um cachorro, mas com o pelo igual ao de um tigre. Sua cabeça ó redonda, seu corpo se equilibra sobre pernas curtas. É diferente de qualquer outro animal que já vi. Ele se abaixa, preparando-se para pular em mim. Não consigo parar de rir. Então ele pula, eu tento pegá-lo, mas sou muito pequeno, e nós dois caímos na grama. Nós lutamos. Ele é mais forte do que eu. Ele salta no ar, e em vez de cair de volta no chão, como é esperado que aconteça, ele se transforma em uma ave e voa em torno de mim, acima de mim, mantendo-se fora de meu alcance. Ele descreve círcu­los, depois mergulha, passa entre minhas pernas, aterrissa uns seis metros distante de mim. Ele se transforma em um animal que parece um macaco sem cauda. E, novamente, abaixa-se e pula sobre mim.
Nesse momento, um homem aparece no jardim. Ele é jovem e veste um traje de borracha azul e prata que se ajusta ao corpo, uma roupa que já vi em mergulhadores. Ele fala comigo em um idioma que não enten­do. Diz o nome "Hadley" e aponta para o animal. Hadley corre para ele, mudando de forma mais uma vez, de macaco para algo maior, uma espécie de urso com juba de leão. Os dois têm agora a mesma altura, e o homem coça a parte inferior do queixo de Hadley. Meu avô sai da casa. Ele parece jovem, mas sei que deve ter cinquenta anos, pelo menos.
Ele troca um aperto de mãos com o homem. Os dois conversam, mas não consigo entender o que estão dizendo. Então o homem olha para mim, sorri, levanta a mão, e de repente estou fora do chão, voando. Hadley me segue em sua forma de pássaro. Tenho total con­trole de meu corpo, mas o homem controla a direção em que sigo, movendo a mão para a direita ou para a esquerda. Hadley e eu brin­camos no ar, ele me cutuca com seu bico, eu tento agarrá-lo. E de repente meus olhos se abrem, e a imagem desaparece.
— Seu avô podia ficar invisível quando decidia — ouço Henri dizer e fecho os olhos novamente. O cristal continua subindo por meu braço, espalhando o repelente ao fogo pelo restante do corpo. — Um dos Le­gados mais raros, um poder que só se desenvolve em um por cento de nosso povo, e ele era uma dessas pessoas. Podia ficar invisível e tornar invisível tudo o que tocasse. Certa vez ele quis fazer uma brincadeira comigo, antes de eu saber quais eram os Legados dele. Você tinha três anos, e eu estava começando a trabalhar com sua família. Havia ido a sua casa pela primeira vez no dia anterior, e quando subi a colina para meu segundo dia de trabalho, a casa não estava lá. Havia uma entrada, e um carro, e a árvore, mas não havia casa. Cheguei a pensar que estava ficando maluco. Continuei andando e passei pelo local. Depois, quando tive certeza de que havia ido muito longe, voltei e vi, a certa distância de onde eu estava, a casa que eu jurava que não estava lá antes. Então caminhei de volta, mas quando cheguei bem perto a casa desapareceu novamente. Fiquei ali parado, olhando para o local onde sabia que ela deveria estar, vendo apenas as árvores que existiam atrás dela. Segui adiante. Só quando passei pela terceira vez diante da casa, seu avô fez a casa reaparecer definitivamente. Ele não conseguia parar de rir. Passa­mos um ano e meio rindo sempre que lembrávamos aquele dia e conti­nuamos rindo disso até o fim.
Quando abro os olhos, estou de volta ao campo de batalha. Mais explosões, fogo, morte.
  Seu avô era um bom homem — Henri diz. — Ele adorava fazer as pessoas rirem, amava contar piadas. Não creio que jamais tenha existido um dia em que eu tenha saído de sua casa sem sentir a bar­riga doendo de tanto rir.
O céu se tingiu de vermelho. Uma árvore ó arrancada do chão e corta o ar, arremessada pelo homem no macacão azul e prata, aquele que vi em nossa casa. Ele derrota dois mogadorianos, e sinto von­tade de vibrar com a vitória. Mas de que adianta comemorar? Por maior que seja o número de mogadorianos que vejo morrer, o desfe­cho do dia ainda será o mesmo. Os lorienos serão derrotados, todos serão mortos. Eu serei enviado à Terra.
  Nunca vi o homem perder a calma. Quando todos ficavam ner­vosos, quando o estresse dominava todo mundo, seu avô mantinha a calma. E era normalmente nesses momentos que ele contava as melhores piadas e, de uma hora para outra, todos voltavam a rir.
As bestas menores atacam as crianças. Elas são indefesas, algu­mas segurando nas mãos as estrelinhas para a celebração. É assim que estamos perdendo — só alguns poucos lorienos lutam contra as feras, e o restante está tentando salvar as crianças.
  Sua avó era diferente. Era quieta e reservada, muito inteligen­te. Seus avós se complementavam dessa maneira, seu avô era o re­laxado e brincalhão, e sua avó trabalhava nos bastidores para tudo transcorrer sempre conforme o planejado.
Ainda posso ver no céu o rastro azul de fumaça da nave que nos leva à Terra, os Nove e seus Guardiões. A presença da nave perturba os mogadorianos.
  E havia Julianne, minha esposa.
Ao longe acontece uma explosão, um som parecido com o de um foguete, como os que são lançados da Terra. Outra nave surge no ar, deixando atrás dela um rastro de fogo. Lentamente no início, depois ganha velocidade. Estou confuso. Nossas naves não usam fogo para o lançamento; não usam gasolina ou óleo. Elas emitem uma peque­na descarga de fumaça azul, que se forma a partir dos cristais usados como combustível. Nunca desprendem fogo como a que acabei de ver. A segunda nave é lenta e desajeitada comparada à primeira, mas con­segue ganhar altitude e velocidade. Henri nunca mencionou uma se­gunda nave. Quem está dentro dela? Para onde ela vai? Os mogadorianos gritam e apontam em sua direção. Novamente, percebo que estão nervosos, e por um momento os lorienos atacam.
  Ela possuía os olhos mais verdes que jamais vi, brilhantes como esmeraldas, e um coração que era tão grande quanto o próprio planeta. Estava sempre ajudando outras pessoas, constantemente adotava animais, que mantinha como bichinhos de estimação. Nun­ca vou entender o que ela viu em mim.
A besta maior voltou, aquela com os olhos vermelhos e os chifres enormes. Baba misturada com sangue pinga de seus dentes afiados, tão grandes que nem cabem na boca. O homem no macacão azul e prata está em pé diante da criatura. Ele tenta erguer a besta com seus poderes, e a levanta alguns metros do chão, mas, mesmo com todo o esforço que faz, não vai além disso. A fera ruge, treme e cai. Ela tenta combater os poderes do homem, mas não é capaz de superá-los. O homem a levanta novamente. Suor e sangue brilham, iluminados pelo luar que banha seu rosto. Ele faz um movimento com as mãos, e a besta cai de lado. O chão treme. Trovões e raios enchem o céu, mas não há chuva.
  Ela dormia tarde, e eu sempre acordava antes dela. Ia me sentar na sala e lia o jornal, fazia o café, saía para caminhar. Algumas vezes quando eu voltava ela ainda estava dormindo. Eu ficava impacien­te, não conseguia esperar para começar o dia juntos. Ela me fazia sentir bem simplesmente por estar por perto. Eu tentava acordá-la. Ela puxava as cobertas sobre a cabeça e resmungava. Quase todas as manhãs, a mesma rotina.
A besta se debate, mas o homem está no controle. Outros Gardes juntam-se a ele, e todos usam seus poderes contra a criatura desco­munal, fogo e raio caindo sobre ela, raios laser vindo de todas as di­reções. Alguns Gardes estão causando danos invisíveis, mantendo-se afastados e de mãos dadas em total concentração. E de repente se forma uma tempestade, uma nuvem imensa que cresce e brilha num céu limpo, e há nela algum tipo de energia. Todos os Gardes se de­dicam a essa tarefa, todos ajudam a criar essa nuvem de cataclismo. E então um último, intenso raio de luz desce do céu e atinge a fera caída no chão. E ali ela morre.
  O que eu poderia fazer? O que alguém poderia fazer?
Éramos dezenove naquela nave. Vocês, nove crianças, nós, os nove Cêpans, escolhidos simplesmente por estarmos em um determinado lugar naquela noite, e o piloto que nos trouxe até aqui. Nós, Cêpans, não podíamos lutar, e não teria feito nenhuma diferença se pudéssemos.
Os Cêpans são burocratas, são treinados para administrar o planeta e mantê-lo funcionando, ensinar, treinar os novos Gardes e capacita­dos para entender e manipular seus poderes. Nunca fomos prepara­dos para a guerra. Teríamos sido inúteis ali. Teríamos morrido como os outros. Tudo o que nos restava fazer era partir. Ir embora com vo­cês e sobreviver para um dia restaurar a glória do mais lindo planeta em todo o universo.
Fecho os olhos, e, quando os abro novamente, a batalha acabou. Fumaça se ergue do chão coberto por mortos e feridos em agonia. Árvores arrancadas, florestas queimadas, tudo destruído. Não há nada em pé, exceto os poucos mogadorianos que viveram para con­tar a história. O sol se ergue ao sul e um brilho pálido começa a ba­nhar a terra mergulhada em sangue. São pilhas de corpos, nem todos intactos, nem todos inteiros. Sobre um dos montes está o homem de prata e azul, morto como os outros. Não há marcas discerníveis em seu corpo, mas ele está morto mesmo assim.
Meus olhos se abrem repentinamente. Não consigo respirar, e mi­nha boca está seca, áspera.
Aqui — diz Henri. Ele me ajuda a levantar da mesinha de cen­tro, leva-me até a cozinha e puxa uma cadeira para mim. Lágrimas inundam meus olhos, embora eu tente piscar para mandá-las em­bora. Henri me dá um copo de água, e eu bebo tudo sem parar para respirar. Devolvo o copo vazio, e ele o enche com mais água. Estou de cabeça baixa, ainda respirando com dificuldade. Bebo o segundo copo de água e só então olho para Henri.
Por que nunca me falou sobre uma segunda nave? — pergunto.
Do que está falando?
Havia uma segunda nave.
Onde?
Em Lorien, no dia em que partimos. Uma segunda nave deco­lou logo depois da nossa.
Impossível — ele diz.
Por que é impossível?
Porque as outras naves foram destruídas. Eu vi com meus próprios olhos. Quando os mogadorianos chegaram, a primeira coisa que fizeram foi atacar nossos portos. Viajamos na única nave que sobreviveu à ofensiva. Foi um milagre termos conseguido sair de lá.
Eu vi uma segunda nave. Estou dizendo que vi. E não era como as outras. O combustível que a movia deixava uma trilha de fogo.
Henri me observa com atenção. Ele está pensativo, com a testa marcada por uma ruga.
Tem certeza, John?
Sim.
Ele se reclina na cadeira, olha pela janela. Bernie Kosar está no chão, olhando para nós dois.
Ela saiu de Lorien — acrescento. — Eu a vi desaparecer no céu.
Isso não faz sentido — Henri comenta. — Não vejo como pode ser possível. Não havia sobrado nada.
Havia restado uma segunda nave.
Ficamos sentados por um bom tempo, os dois em silêncio.
Henri?
Sim?
O que havia naquela nave?
Ele me encara.
Não sei. Realmente não sei.

Estamos sentados na sala de estar, olhando para o fogo na lareira. Bernie Kosar está em meu colo. Um crepitar ocasional da lenha queimando rompe o silêncio.
  Ligar! — eu digo e estalo os dedos. Minha mão direita se acen­de, não tão brilhante quanto antes, mas perto disso. No pouco tem­po desde o início do treinamento, já aprendi a controlar o brilho.
Posso concentrá-lo, torná-lo mais amplo e difuso, como a luz de uma casa, ou torná-lo um feixe dirigido, como a luz de uma lanter­na. Minha capacidade de manipular a luz aumenta mais depressa do que eu esperava. A mão esquerda ainda brilha menos do que a direita, mas a está alcançando. Estalo os dedos e digo "ligar" só para me exibir, mas não preciso de nada disso para controlar ou acender a luz. Acontece dentro de mim, simplesmente, e é tão fácil quanto mover um dedo ou piscar um olho. Não requer esforço.
  Quando acha que os outros Legados vão se desenvolver? — pergunto.
Henri ergue os olhos do jornal.
  Logo — responde. — O próximo deve começar em até um mês, seja qual for. Você precisa ficar atento. Nem todos os poderes serão óbvios como o que surgiu em suas mãos.
  Quanto tempo vai levar para todos aparecerem?
Ele dá de ombros.
  Às vezes tudo se completa em dois meses, às vezes leva até um ano. Varia de Garde para Garde. Mas, leve quanto tempo levar, seu maior Legado será o último a se desenvolver.
Fecho os olhos e me recosto no sofá. Penso em meu maior Legado, aquele que me permitirá lutar. Não tenho certeza de qual quero que seja. Lasers? Controle da mente? Capacidade de controlar o cli­ma, como fazia o homem no macacão azul e prata? Ou eu quero algo mais sombrio, sinistro, como o poder de matar sem tocar?
Deslizo a mão pelas costas de Bernie Kosar. Olho para Henri. Ele está usando uma touca de dormir e um par de óculos que fica pen­durado na ponta de seu nariz, lembrando um rato de livro infantil.
Por que estávamos na pista de pouso naquele dia? — eu quero saber.
Estávamos lá para uma apresentação, um show aéreo. Quando acabou, fomos visitar algumas aeronaves.
  Só por isso?
Ele olha para mim e afirma com um movimento de cabeça. Mas engole em seco, e isso me faz pensar que está escondendo alguma informação de mim.
Bem, como foi decidido que nós partiríamos? — pergunto. — Quero dizer, um plano como esse não pode ter sido criado em pou­cos minutos, não é?
Só decolamos três horas depois do início da invasão. Não lem­bra nada do que aconteceu?
Muito pouco.
Encontramos seu avô na estátua de Pittacus. Ele me entregou você e me disse para levá-lo à pista de pouso, porque lá estava nossa única chance. Havia um espaço subterrâneo à pista. Ele contou que sempre existira um plano de emergência, caso ocorresse alguma si­tuação como a que estava acontecendo, mas o plano nunca fora leva­do a sério, porque a ameaça de um ataque sempre parecera ridícula. Como seria ridículo pensar nisso aqui, na Terra. Se você dissesse a qualquer humano agora que há uma ameaça de ataque alienígena, ele riria de você. Em Lorien não foi diferente. Perguntei como ele sa­bia sobre o plano, e ele não respondeu, apenas sorriu e se despediu. Faz sentido que ninguém soubesse sobre o plano, ou que só alguns poucos soubessem.
Eu movimento a cabeça numa resposta afirmativa.
Então, do nada, vocês criaram um plano para vir à Terra?
É claro que não. Um dos Anciões do planeta nos encontrou na pista de pouso. Foi ele quem fez o feitiço lórico que marcou seus tornozelos e os uniu, e quem deu a cada um de vocês um amuleto. Ele disse que vocês eram crianças especiais, abençoadas, e daí de­duzi que ele queria dizer que vocês tinham uma chance de escapar. Originalmente, planejamos decolar com a nave e esperar no espaço aéreo pela invasão, esperar nosso povo reagir e vencer. Mas isso não aconteceu... — Ele faz uma pausa e suspira. Depois continua: — Fi­camos em órbita durante uma semana. Foi o tempo necessário para os mogadorianos roubarem tudo de Lorien. Depois disso, ficou claro que não havia mais qualquer possibilidade de reverter a situação, e então seguimos para a Terra.
Por que ele não criou um feitiço para nenhum de nós poder ser morto, independentemente dos números?
Há sempre um limite para o que pode ser feito, John. Você está falando sobre invencibilidade. E isso é impossível.
Eu concordo com um movimento de cabeça. O feitiço tem suas limitações. Se um dos mogadorianos tentar nos matar fora da ordem numérica, a lesão será causada nele. Se alguém tentasse me matar com um tiro na cabeça, a bala atingiria a cabeça do próprio atirador. Mas agora tudo mudou. Agora, se me pegarem, eu morro.
Fico em silêncio por um momento, pensando nisso tudo. A pista de pouso. O único Ancião remanescente em Lorien, Loridas, aquele que criou o feitiço que nos protege, agora morto. Os Anciões foram os primeiros habitantes de Lorien, aqueles que fizeram do planeta o que ele foi. Havia dez deles no início, e eles continham todos os Legados no grupo. Tão antigos, há tanto tempo que mais parecem um mito do que algo baseado em realidade. Com exceção de Loridas, ninguém sabe o que aconteceu aos outros, se foram mortos.
Tento lembrar como foi ficar em órbita em torno do planeta, es­perando para ver se poderíamos voltar, mas não me lembro de nada disso. Recordo fragmentos da viagem. O interior da nave em que viajamos era redondo e aberto, exceto pelos dois banheiros, que ti­nham portas. Havia camas em um lado; o outro era reservado para a prática de exercícios e jogos, para não ficarmos muito entediados. Não me lembro de corno eram os outros. Não me lembro de que brincávamos. Lembro-me de sentir enfado, um ano inteiro trancado em uma nave com outros dezessete e o piloto. Havia um bicho de pelúcia com que eu dormia à noite, e, mesmo sabendo que essa lembrança não deve corresponder à realidade, eu me recordo de que o bicho brincava comigo.
Henri?
Sim?
Eu vejo imagens de um homem vestindo um macacão azul e prata. Eu o vejo em nossa casa e no campo de batalha. Ele era capaz de controlar o clima. E depois eu o vi morto.
Henri faz um movimento afirmativo com a cabeça.
Toda vez que você viaja de volta, só vê as cenas que são relevantes para você.
Ele era meu pai, não era?
Sim. Ele não devia ir vê-lo com muita frequência, mas ia. Estava sempre por perto.
Eu suspiro. Meu pai lutou com coragem, matou a besta e muitos soldados. Mas, no final, não foi suficiente.
Temos realmente alguma chance de vencer?
Como assim?
Fomos derrotados com muita facilidade. Que esperança existe para um final diferente, se formos encontrados? Mesmo quando to­dos nós tivermos desenvolvido nossos poderes, e quando finalmen­te estivermos juntos e pudermos lutar, que esperança teremos contra coisas como aquelas?
Esperança? — ele diz. — Sempre há esperança, John. Novos acontecimentos ainda são aguardados. Nem toda informação já foi divulgada. Não. Não perca a esperança, ainda. Ela é a última coisa que se vai. Quando você a perde, já perdeu tudo. E quando você pensa que tudo está perdido, quando tudo é sinistro e sombrio, sem­pre há esperança.

CAPÍTULO DOZE

HENRI  E EU VAMOS À CIDADE NO SÁBADO  PARA O DESFILE DE HALLOWEEN, quase duas semanas após termos chegado em Paradise. Acho que a solidão começa a nos incomodar. Não que não estejamos habituados a ela. Estamos. Mas a solidão em Ohio é diferente da solidão na maioria dos outros lugares. Há certo silêncio nela, certo isolamento.
É um dia frio, com o sol espiando intermitentemente por entre nuvens brancas que deslizam no céu. A cidade está muito agitada. Todas as crianças estão fantasiadas. Compramos uma coleira para Bernie Kosar, que está usando uma capa de Super-homem e tem um "S" grande no peito. Ele não parece impressionado com sua fanta­sia. E nem é o único cachorro vestido de super-herói.
Henri e eu paramos na calçada na frente do Hungry Bear, o restaurante que fica bem no centro da cidade, para assistirmos ao desfile. Na janela da frente alguém prendeu um recorte do jornal Gazette com o artigo sobre Mark James. Na foto ele aparece em pé no campo de futebol americano, usando seu agasalho do time, com os braços cruzados, o pé direito apoiado na bola, um sorriso confiante e irônico no rosto. Até eu tenho de admitir que ele é impressionante.
Henri percebe que estou olhando para o retrato.
  É seu amigo, não é? — ele pergunta sorrindo. Henri ago­ra conhece a história, desde a quase briga por causa do armário cheio de esterco, até minha paixão repentina pela ex-namorada de Mark. Desde que soube de tudo isso, ele só se refere a Mark como meu "amigo".
  Meu melhor amigo — ou o corrijo.
A banda começa a tocar. Ela está na frente do desfile, seguida por vários carros com temas de Halloween. Um deles transporta Mark e alguns outros jogadores de futebol. Alguns eu reconheço das aulas, outros, não. Eles jogam punhados de doces para as crianças. Então, Mark me vê e cutuca o garoto ao lado dele — Kevin, aquele que acertei com uma joelhada no refeitório. Mark aponta para mim e diz alguma coisa. Os dois riem.
É ele? — quer saber Henri.
Sim, é ele.
Parece um valentão idiota.
Eu disse.
Atrás deles vêm as líderes de torcida, todas à pé e uniformizadas, com os cabelos presos, sorrindo e acenando para a multidão. Sarah caminha ao lado delas, tira fotos. Ela as captura em ação, enquanto pulam e realizam suas coreografias. Apesar de vestir jeans e não usar maquiagem, ela é muito mais bonita do que qualquer uma delas. Temos conversado cada vez mais na escola, e não consigo parar de pensar nela. Henri percebe que a sigo com os olhos.
É ela, não é?
É ela.
Sarah me vê e acena, depois aponta para a câmera, como se dis­sesse que gostaria de se aproximar, mas que quer tirar fotos. Eu sor­rio e respondo com um movimento afirmativo de cabeça.
  Bem — diz Henri —, eu certamente vejo onde está o encanto. Assistimos ao desfile. O prefeito de Paradise passa por nós sentado no banco traseiro de um conversível vermelho. Ele joga mais doces para as crianças. Acho que hoje elas vão ficar muito agitadas. Sinto um toque em meu ombro e me viro.
Sam Goode. Qual é a nova?
Ele encolhe os ombros.
Não tenho nenhuma novidade. E você?
Também não. Estou aqui assistindo ao desfile. Este é meu pai, Henri.
Eles trocam um aperto de mão. Henri diz:
John me falou muito sobre você.
É mesmo? — Sam sorri, sem muito entusiasmo.
Sim, é verdade. — Henri faz uma pausa breve, e um sorriso surge em seu rosto. — Sabe, estive lendo. Talvez você também tenha lido isso, mas... Sabia que os aliens são o motivo pelo qual temos tempestades? Eles as criam para entrar no planeta sem serem nota­dos. A tempestade é uma distração, e as luzes que vemos, na verda­de, são das espaçonaves que entram na atmosfera da Terra.
Sam sorri e coça a cabeça.
Não brinque — ele responde. Henri dá de ombros.
Bem, foi o que eu ouvi.
É claro — Sam confirma, muito inclinado a concordar com Henri. — Bem, e você, sabia que os dinossauros não foram realmen­te extintos? Os alienígenas ficaram tão fascinados por eles que os reuniram e os levaram para outro planeta.
Henri balança a cabeça.
Eu não sabia disso — responde. — Sabia que o monstro do Lago Ness era, na verdade, um animal do planeta Trafalgra? Eles o puseram no lago para fazer um experimento, ver se ele sobreviveria, e ele conseguiu. Mas quando ele foi descoberto, os aliens tiveram de levá-lo de volta, e por isso ele nunca mais foi visto.
Eu rio, não da teoria, mas do nome Trafalgra. Não existe nenhum planeta chamado Trafalgra, e eu gostaria de saber se Henri inventou o nome na hora.
Sabia que as pirâmides do Egito foram construídas por aliens?
Isso eu ouvi, sim — Henri reconhece sorridente. Ele se diverte, é claro, porque, embora não tenham sido construídas por aliens, as pirâ­mides do Egito foram feitas com a ajuda e o conhecimento de Lorien.
Sabia que o mundo vai acabar em 21 de dezembro de 2012?
Sim, isso eu também ouvi. É o suposto prazo de validade da Terra, o fim do calendário maia.
Prazo de validade? — interfiro. — Como aquele "melhor con­sumir até" impresso nas embalagens de leite? A Terra vai azedar?
Eu rio da minha piada, mas Sam e Henri nem prestam atenção. Então, Sam diz:
Sabia que os círculos nas plantações eram originalmente usa­dos como ferramenta de navegação para a raça alienígena agharian? Mas isso foi há milhares de anos. Hoje eles são só criações de fazendeiros entediados.
Eu rio outra vez. Tenho vontade de perguntar que tipo de pessoa inventa teorias de conspiração alienígena, se não fazendeiros ente­diados que criam os círculos nas plantações, mas me contenho.
E os centuris? — Henri indaga. — Sabe alguma coisa sobre eles? Sam balança a cabeça.
É uma raça de alienígenas que vive no centro da Terra. São be­ligerantes, estão em constante discórdia interna, e quando eles estão em guerra civil a Terra é afetada. É então que ocorrem coisas como terremotos e erupções vulcânicas. O tsunami de 2004? Tudo porque a filha do rei centuri havia desaparecido.
Eles a encontraram? — eu pergunto.
Henri balança a cabeça, olha para mim, depois para Sam, que continua sorrindo com a brincadeira.
Não, nunca. Teóricos acreditam que ela pode mudar de forma, e que está vivendo em algum lugar da América do Sul.
A teoria de Henri é tão boa, que não acredito que ele a inventou em poucos momentos. Fico ali parado, pensando nela, embora eu nunca tenha ouvido falar em aliens chamados centuris, mesmo sa­bendo com certeza que ninguém vive no centro da Terra.
Você sabia... — Sam para.
Acho que Henri o confundiu, e assim que essa ideia aparece do nada em minha cabeça, Sam diz algo tão assustador que uma onda de terror me invade.
Sabia que os mogadorianos buscam o domínio universal. E que eles já destruíram um planeta e planejam destruir a Terra agora? Eles estão aqui, procurando as fraquezas humanas para usá-las contra nós quando a guerra começar.
Estou boquiaberto, e Henri olha para Sam em silêncio, perple­xo. Ele prende a respiração. Sua mão segura a xícara de café com força, e tenho medo de que ele a quebre. Sam olha para Henri, depois para mim.
O que é? Parece que viram um fantasma! Isso significa que eu venci?
Onde você ouviu isso? — pergunto. Henri me olha com tanta intensidade que lamento não ter ficado em silêncio.
Eu li em Eles Estão entre Nós.
Henri ainda não consegue pensar em uma resposta. Ele abre a boca para falar, mas não diz nada. Então, somos interrompidos por uma mulher pequena parada atrás de Sam.
Sam — ela o chama. Ele se vira. — Onde esteve?
Ele responde com descaso.
Estava bem aqui.
A mulher suspira, depois olha para Henri.
Oi, eu sou a mãe de Sam.
Henri — ele se apresenta, apertando a mão dela. — É um pra­zer conhecê-la.
Ela arregala os olhos numa reação surpresa. Alguma coisa na voz ou no sotaque de Henri a entusiasma.
  Ah bon! Vous parlez français? C'est super! J'ai personne avec qui je peux parler français depuis longtemps.
Henri sorri.
Desculpe. Lamento, mas não falo francês. Sei que meu sotaque dá essa impressão.
Não? — Ela fica decepcionada. — Ora, ora, e eu pensando que a cidade finalmente recebia um pouco de dignidade.
Sam olha para mim e revira os olhos.
Muito bem, Sam, agora vamos — ela anuncia.
Ele olha para nós.
Vocês vão ao parque e à corrida de carroças?
Eu olho para Henri, depois para Sam.
Sim, é claro — respondo. — E você?
Ele dá de ombros.
Bem, tente nos encontrar lá, se puder — sugiro.
Ele sorri e assente.
Tudo bem. Legal.
É hora de ir, Sam. E talvez você não possa ir à corrida. Preciso de sua ajuda em casa — diz a mãe.
Sam até ameaça dizer algo, mas ela se vira e começa a se afastar. Sam a segue.
Mulher agradável — Henri comenta com sarcasmo.
— Como inventou tudo aquilo? — quero saber.
A multidão começa a se mover pela rua principal, afastando-se da praça. Henri e eu seguimos para o parque, onde servem cidra e comida.
Quando se mente por muito tempo, a coisa vai ficando natural.
Concordo com a cabeça.
Então, o que você acha?
Ele respira fundo e exala. A temperatura está suficientemente bai­xa para eu poder ver a nuvem formada por seu hálito.
Não tenho idéia. Não sei mais o que pensar. Ele me pegou desprevenido.
Ele nos pegou desprevenido.
Vamos ter de dar uma olhada nesse material de onde ele obtém as informações, descobrir quem o escreve e onde é escrito.
Ele olha para mim com grande expectativa.
O que é?
Você vai ter que conseguir um exemplar — Henri me avisa.
Eu consigo. — Mesmo assim, isso não faz sentido. Como al­guém pode saber disso?
Os dados estão sendo fornecidos por alguém.
Acha que pode ser um de nós?
Não.
Um deles, então?
Pode ser. Nunca pensei em verificar essas porcarias que pu­blicam teorias da conspiração. Talvez eles pensem que lemos tudo isso e acreditem que podem nos fazer aparecer, vazando esse tipo de informação. Quero dizer... — Ele para e pensa por um instante. — Droga, John. Não sei. Mas precisamos dar uma olhada nisso. Não é coincidência, disso eu tenho certeza.
Caminhamos em silêncio, ainda um pouco chocados, pensando em possíveis explicações. Bernie Kosar nos segue num trote anima­do, a língua para fora da boca, sua capa caída para um lado arrastando na calçada. Ele faz sucesso com as crianças, e muitas nos fazem parar para brincar com o cachorro.
O parque fica no extremo sul da cidade. Em sua área mais afas­tada há dois lagos adjacentes separados por uma faixa estreita de terra que leva à floresta além deles. O parque propriamente dito é composto por três campos de beisebol, um parquinho infantil e um grande pavilhão onde voluntários servem cidras e fatias de torta de abóbora. Três carroças de feno estão paradas ao lado da trilha de cas­calho, com uma grande placa onde se lê a inscrição:

MORRA DE MEDO!
CORRIDAS ASSOMBRADAS DE HALLOWEEN
INÍCIO AO PÔR DO SOL
$5 POR PESSOA

A trilha passa de cascalho a terra antes de chegar à floresta, cuja entrada foi decorada com recortes de papelão com formas de fantas­mas e de gnomos. Parece que o trajeto da corrida assombrada inclui a floresta. Olho em volta procurando por Sarah, mas não a vejo ali. Gostaria de saber se ela vai participar da corrida.
Henri e eu entramos no pavilhão. As líderes de torcida estão todas ali, algumas fazendo pinturas com temas de Halloween no rosto das crianças, outras vendendo rifas para o sorteio que será realizado às seis da tarde.
Oi, John — alguém diz atrás de mim. Eu me viro, e lá está Sa­rah segurando sua câmera. — O que achou do desfile?
Sorrio para ela e ponho as mãos nos bolsos. Há um fantasmiriha branco pintado em seu rosto.
Oi — respondo. — Eu gostei. Acho que estou me acostumando com esse charme de cidade pequena de Ohio.
Charme? Você quer dizer tédio, não é? Dou de ombros.
Não sei, não é ruim.
Ei, é o amiguinho da escola. Eu me lembro de você — ela diz, abaixando-se para afagar a cabeça de Bernie Kosar. Ele sacode o rabo freneticamente, pula, tenta lamber o rosto de Sarah. Ela ri. Olho por cima do meu ombro. Henri está uns seis metros afastado, conversando com a mãe de Sarah em uma das mesas de piquenique. Fico curioso para saber sobre o que eles estão falando.
Acho que ele gosta de você. O nome dele é Bernie Kosar.
Bernie Kosar? Isso não é nome para um cachorro adorável. Olhe só para essa capa! Que coisa mais fofa!
Sabe, se não parar com isso, vou acabar sentindo ciúme do meu próprio cachorro — digo.
Ela sorri e se levanta.
Então, vai comprar minha rifa ou não? O dinheiro vai ser usa­do para reconstruir um abrigo de animais. O lugar foi destruído por um incêndio no mês passado. É uma instituição sem fins lucrativos e fica no Colorado.
É mesmo? E como uma garota de Paradise, Ohio, fica sabendo sobre um abrigo de animais no Colorado?
Minha tia cuida do local. Eu convenci todas as garotas da equi­pe de torcida a participar. Vamos viajar até lá e ajudar na construção. Vamos ajudar os animais e ficar longe da escola e de Ohio por uma semana. Todos saímos ganhando.
Imagino Sarah usando um capacete, empunhando um martelo. A imagem me faz sorrir.
Então, está dizendo que vou ter que cuidar da cozinha sozinho por uma semana? — Enceno um suspiro exagerado e balanço a ca­beça. — Não sei se posso apoiar essa viagem agora, mesmo que seja pelos animais.
Ela ri e bate em meu braço. Eu pego a carteira e dou a ela cinco dólares por seis rifas.
Estas seis são as da sorte — ela diz.
São?
É claro. Você as comprou de mim, bobinho.
Neste momento, olhando por cima do ombro de Sarah, vejo Mark e sua turma entrando no pavilhão.
Vai à corrida assombrada? — Sarah pergunta.
Sim, eu estava pensando nisso.
Deveria ir, é divertido. Todo mundo vai. E é bem assustador, mesmo.
Mark nos vê conversando e assume uma expressão carrancuda. Ele vem em nossa direção. A roupa é a mesma de sempre — agasa­lho do time, jeans, cabelo cheio de gel.
Então, você vai? — pergunto a Sarah.
Mark nos interrompe antes que ela possa responder.
O que achou do desfile, Johnny? — ele pergunta.
Sarah se vira e olha para ele com ar reprovador.
Gostei muito — respondo.
Vai participar da corrida assombrada ou tem muito medo? Eu sorrio para ele.
Para dizer a verdade, eu vou participar.
Vai ter um ataque como aquele do primeiro dia de aula e sair correndo da floresta, gritando e chorando como um bebê?
Não seja idiota, Mark — Sarah interfere.
Ele olha para mim furiosamente. Estamos cercados por muita gente, e não há nada que ele possa fazer sem causar uma cena — e nem acredito que ele faria alguma coisa, mesmo que fosse diferente.
Tudo a seu tempo — diz Mark.
Você acha?
O seu está chegando — ele diz.
Pode ser — eu falo. — Mas ele não virá por você.
Chega! — grita Sarah. Ela se coloca entre nós, empurrando-nos para longe um do outro. As pessoas estão observando. Ela olha em volta, como se estivesse constrangida com toda aquela atenção, de­pois olha feio para Mark primeiro, em seguida para mim.
Muito bem, então. Briguem, se é isso que querem fazer. Boa sorte — Sarah diz e se vira para ir embora. Eu a vejo se afastar. Mark nem olha para ela.
Sarah — eu chamo, mas ela continua andando e desaparece no pavilhão.
Em breve — Mark resmunga. Eu o encaro.
Duvido.
Ele volta para perto de seu grupo de amigos. Henri se aproxima de mim.
Não creio que ele tenha vindo perguntar sobre a lição de casa de matemática, não é?
Não exatamente — confirmo.
Eu não me preocuparia com ele — diz Henri. — Ele parece falar mais do que faz.
Mas eu não — retruco, olhando para o lugar onde Sarah desa­pareceu. — Devo ir atrás dela? — pergunto e olho para ele, apelando para aquela sua porção de homem casado e apaixonado, aquela par­te que ainda sente falta da esposa todos os dias, não aquela parte que quer me ver seguro e protegido.
Ele assente.
Sim — ele responde, suspirando. — Por mais que eu odeie admitir, você provavelmente deve ir atrás dela.

CAPÍTULO TREZE

CRIANÇAS CORRENDO,  GRITANDO,   EM ESCORREGADORES  E BALANÇOS.   TODAS com um saco de doces na mão, a boca cheia deles. Crianças vestidas como personagens de desenho animado, monstros, gnomos e fantas­mas. Cada morador de Paradise devia estar no parque neste momen­to. E no meio de toda essa loucura, vejo Sarah sentada sozinha, no balanço, movendo-se suavemente.
Atravesso o mar de crianças gritando e rindo. Quando me vê, Sa­rah sorri, seus grandes olhos azuis cintilantes como faróis.
Precisa de alguém para empurrá-la? pergunto.
Ela aponta para o balanço vago a seu lado, e eu me sento nele.
Tudo bem? pergunto.
Sim, estou bem. Ele só me cansa. Sempre que está com os ami­gos ele tenta parecer durão, cruel.
Ela gira o balanço até a corda ficar tensa, então levanta os pés, e o brinquedo gira para o outro lado, primeiro lentamente, depois ganhando velocidade. Ela ri o tempo todo, o cabelo louro voando atrás dela. Faço igual. Quando o balanço finalmente para, o mundo continua rodando.
Onde está Bernie Kosar?
Eu o deixei com Henri respondo.
Seu pai?
Sim, meu pai. — Sempre cometo esse erro, chamar Henri pelo nome, quando devia chamá-lo de "pai".
A temperatura está caindo rapidamente, e os nódulos de meus de­dos estão brancos na corda do balanço, esfriando cada vez mais. Vemos as crianças correndo como loucas à nossa volta. Sarah olha para mim, e seus olhos parecem mais azuis do que nunca na escuridão que se aproxima. Nós nos olhamos em silêncio, sem nenhum dos dois dizer nada, mas transmitindo muitas coisas. As crianças parecem desapare­cer no fundo da cena. Então, ela sorri de modo tímido e desvia o olhar.
Então, o que vai fazer? — pergunto.
Sobre o quê?
Mark.
Ela encolhe os ombros.
O que posso fazer? Já terminei tudo com ele. E vivo dizendo que não tenho nenhum interesse em voltar.
Eu faço que sim com a cabeça. Não sei bem como responder.
Bem, acho melhor tentar vender as rifas. Falta só uma hora para o sorteio.
Quer ajuda?
Não, tudo bem. Vá se divertir. Bernie Kosar deve estar sentin­do sua falta. Mas não vá embora antes da corrida. Talvez possamos participar juntos?
É claro — respondo. A felicidade cresce dentro de mim como uma flor desabrochando, mas tento escondê-la.
Vejo você daqui a pouco, então.
Boa sorte com as rifas.
Ela segura minha mão por uns três segundos. Depois a solta, pula do balanço e se afasta apressadamente. Fico ali sentando, me balan­çando lentamente, apreciando o vento que não sentia há muito tem­po, porque passamos o último inverno na Flórida, e o anterior no sul do Texas. Quando volto ao pavilhão, Henri está sentado a uma mesa de piquenique, comendo uma fatia de torta, com Bernie Kosar deitado no chão a seus pés.
Como foi?
Bem — respondo, com um sorriso.
De algum lugar surge o brilho alaranjado e azul de fogos de arti­fício, e a luz explode no céu. Isso me faz pensar nos fogos que vi no dia da invasão.
Voltou a pensar naquela segunda nave que eu vi?
Henri olha em volta para ter certeza de que ninguém nos ouve. Temos a mesa de piquenique só para nós, e ela está posicionada em um canto afastado do movimento.
Pensei um pouco nisso, mas ainda não sei o que significa.
Acha que ela pode ter vindo para cá?
Não. Seria impossível. Se a nave era movida a combustível co­mum, como você diz, não poderia ter percorrido essa distância sem parar para abastecer.
Fico sentado e quieto por um momento.
Queria que fosse possível.
O quê?
Queria que a nave tivesse vindo para cá, com a gente.
É uma idéia agradável — Henri concorda.

Uma hora depois eu vejo os jogadores de futebol, Mark na frente do grupo, atravessando o gramado. Eles estão vestidos de múmias, zum­bis, fantasmas, vinte e cinco deles no total. Sentam-se nos bancos do campo de beisebol mais próximo, e as líderes de torcida que estavam pintando o rosto das crianças aplicam a maquiagem para completar a fantasia de Mark e seus amigos. Só então compreendo que o time de futebol é responsável por tornar a corrida de carroças bem assustado­ra. Eles estarão esperando por nós no meio da floresta.
Está vendo aquilo? — pergunto a Henri.
Henri olha para o grupo e movimenta a cabeça em sentido afirma­tivo, depois pega seu café e bebe um grande gole.
Ainda acha que deve participar da corrida? — ele pergunta.
Não — respondo. — Mas vou assim mesmo.
Eu já imaginava.
Mark está vestido como um zumbi, usando roupas pretas e rasga­das, com maquiagem preta e cinza no rosto e manchas vermelhas es­palhadas pelo corpo para simular sangue. Quando a fantasia está com­pleta, Sarah se aproxima dele e diz alguma coisa. Mark ergue a voz ao responder, mas não consigo entender o que ele diz. Seus movimentos são animados, e ele fala tão depressa que percebo que está atropelan­do as palavras. Sarah cruza os braços e balança a cabeça para ele. Seu corpo fica tenso. Eu ameaço me levantar, mas Henri segura meu braço.
Não — ele diz. — Ele só a está afastando ainda mais.
Olho para eles e desejo muito ouvir o que dizem, mas há mui­tas crianças gritando, e é impossível decifrar as palavras. Quando os gritos param, os dois estão frente a frente, olhando-se, e há uma expressão carrancuda e magoada no rosto de Mark, enquanto Sarah dá um meio-sorriso, incrédula. Então ela balança a cabeça e se afasta.
Eu olho para Henri.
O que devo fazer agora?
Nada — ele diz. — Absolutamente nada.
Mark volta para perto dos amigos. Ele está sério, de cabeça baixa. Alguns deles olham em minha direção. Surgem sorrisos sarcásti­cos. Segundos depois eles começam a caminhar para a floresta. Uma marcha metódica, lenta, vinte e cinco garotos fantasiados desapare­cendo entre as árvores.

Para passar o tempo, volto ao centro da cidade com Henri, e vamos jantar no Hungry Bear. Quando caminhamos de volta ao pavilhão, o sol se pôs e a primeira carroça cheia de feno é puxada para a floresta por um trator verde. A multidão diminuiu bem, e os que ainda res­tam são, basicamente, colegiais e adultos animados, um total de cem pessoas, mais ou menos. Procuro por Sarah entre elas, mas não a vejo. A segunda carroça parte dez minutos depois. De acordo com o panfleto, a corrida toda leva meia hora, o trator percorre a floresta bem devagar, alimentando a expectativa, e, quando ele para, os par­ticipantes devem saltar das carroças e percorrer trilhas diferentes a pé, e aí é quando começam os sustos.
Henri e eu estamos parados diante do pavilhão, e mais uma vez eu olho para a fila de pessoas que esperam por sua vez. Ainda não vi Sarah. Meu celular vibra no bolso da calça. Não me lembro da última vez em que meu telefone tocou sem que fosse Henri. O identificador de chamadas mostra Sarah Hart. O entusiasmo me invade. Ela deve ter registrado meu número em seu aparelho no mesmo dia em que deixou o dela no meu.
Alô? — atendo.
John?
Sim, sou eu.
Oi, é Sarah. Ainda está no parque? — ela pergunta.
Sua voz soa tranquila, como se ela telefonar para mim fosse nor­mal e eu não devesse estranhar por ela ter meu número, apesar de eu nunca tê-lo divulgado.
Sim.
Ótimo! Chego aí em cinco minutos. A corrida já começou?
Sim, há uns poucos minutos.
Você ainda não foi, não é?
Não.
Ótimo! Então podemos ir juntos.
Sim, com certeza — eu digo. — A segunda carroça está se pre­parando para sair agora.
Perfeito. Eu chego em tempo de ver a terceira saindo.
Estou esperando, então.
Eu desligo com um sorriso largo no rosto.
Tome cuidado nessa corrida — Henri me aconselha.
Serei cuidadoso. — Paro e tento dar alguma leveza à minha voz. — Não precisa esperar. Tenho certeza de que consigo uma caro­na para voltar para casa.
Estou disposto a ficar e morar nesta cidade, John. Mesmo cien­te de que, provavelmente, é mais sensato partirmos, considerando o que já aconteceu aqui. Mas você precisa colaborar comigo, e esta é uma situação em que conto com sua cooperação. Não gostei nada de como aqueles garotos olharam para você agora há pouco.
Eu vou ficar bem — digo.
Eu sei que vai. Mas, só por precaução, prefiro ficar aqui esperando.
Suspiro, resignado.
Tudo bem.
Sarah chega cinco minutos depois com uma amiga muito bonita que já vi antes, mas a quem nunca fui apresentado. Ela agora veste jeans, suéter de lã e jaqueta preta. O fantasma branco desapareceu de sua face direita, e o cabelo está solto, caindo sobre os ombros.
Ei, você — ela diz.
Oi.
Sarah me abraça um pouco hesitante. Sinto o perfume que emana de seu pescoço antes de ela se afastar.
Oi, pai do John — ela cumprimenta Henri. — Esta é minha amiga Emily.
É um prazer conhecer vocês duas — Henri responde. — Então, vão mesmo enfrentar o terror desconhecido?
Pode apostar que sim — diz Sarah. — Acha que o mocinho aqui vai aguentar? Não quero que ele fique muito assustado por mi­nha causa. — Ela aponta para mim, sorrindo.
Henri também sorri, e posso dizer que ele já gosta de Sarah.
É melhor ficar perto dele, só por precaução.
Ela olha por cima do ombro. A terceira carroça já está com um quarto de sua ocupação.
Eu vou cuidar dele — diz. — É melhor nos apressarmos.
Divirtam-se — diz Henri.
Sarah segura minha mão e nós três corremos para a carroça de feno, uns cinquenta metros distante do pavilhão. Há uma fila de cerca de trinta pessoas. Nós entramos no final dela e começamos a conversar, embora eu me sinta um pouco tímido e só escute a conversa das duas garotas. Enquanto esperamos, vejo Sam parado a alguns passos de nós. como se não conseguisse decidir se deve ou não se aproximar.
Sam! — eu grito com entusiasmo maior do que pretendia. Ele tropeça. — Vai participar da corrida conosco?
Ele dá de ombros.
Se não se incomodarem...
É claro que não! — Sarah responde, fazendo um gesto para con­vidá-lo a entrar na fila. Sam fica ao lado de Emily, que sorri para ele. A resposta de Sam é um rubor imediato e intenso, e fico feliz por ele estar ali conosco. De repente, um garoto se aproxima com um rádio comuni­cador. Eu o reconheço do time de futebol.
Oi, Tommy — Sarah o cumprimenta.
Oi — ele responde. — Ainda há quatro lugares nesta carroça. Querem embarcar?
Está falando sério?
Sim.
Passamos na frente da fila e pulamos na carroça, onde nos senta­mos juntos sobre um fardo de feno. Acho estranho Tommy não pe­dir nossos bilhetes. Estou curioso sobre o motivo que o levou a nos passar na frente de todos que já esperavam na fila. Algumas pessoas olham para nós com evidente indignação. Não posso dizer que não entendo a reação delas.
Divirtam-se — Tommy diz com um sorriso gelado, como aque­les que as pessoas exibem quando sabem que algo de ruim aconte­ceu com alguém de quem não gostam.
Isso foi bem esquisito — comento.
Sarah não dá muita importância ao ocorrido.
Ele deve ter algum interesse em Emily.
Meu Deus, espero que não — Emily responde, fingindo ânsia.
Eu olho para Tommy. A carroça parte com metade de sua lotação, outro fato que me intriga, considerando o tamanho da fila de espera.
O trator reboca o veículo, que vai sacudindo pela trilha de casca­lho e terra, aproximando-se da entrada da floresta, onde sons fantas­magóricos são transmitidos por alto-falantes escondidos. A floresta é densa e não há luz alguma ali, exceto a dos faróis do trator. Quan­do forem desligados, eu penso, só haverá a escuridão. Sarah segura minha mão outra vez. Ela é fria ao toque, mas uma onda de calor me invade. Ela se inclina para mim e cochicha:
Estou com um pouco de medo.
Figuras de fantasmas penduradas nos galhos baixos pairam so­bre nós, e fora da trilha recortes de zumbis foram deixados apoia­dos nas árvores. O trator para e apaga os faróis. Então, estrobos­cópios intermitentes piscam por dez segundos. Não há nada de assustador neles, e só quando param eu entendo qual é o efeito: os olhos levam alguns segundos para se ajustar e não conseguimos enxergar nada. Um grito corta a noite, e Sarah fica tensa do meu lado. Figuras passam por nós. Estreito os olhos, para tentar enxer­gar alguma coisa, e noto que Emily se aproximou de Sam, que sorri muito satisfeito. Eu, na verdade, sinto um pouco de medo. Passo um braço cuidadosamente em torno de Sarah. Somos tocados nas costas, e ela se agarra à minha perna. Alguns gritam. Com um sola­vanco, o trator retoma a jornada, e não há nada além de árvores na faixa iluminada pelos faróis.
Seguimos em frente por mais três ou quatro minutos. A expecta­tiva cresce, como o medo do mau presságio de ter de percorrer a pé a distância que até então cobrimos no trator. Então, o veículo entra em uma clareira circular e para.
Fim da linha — grita o condutor.
Quando a última pessoa desce, o trator vai embora. Sua luz desa­parece na distância, deixando-nos na companhia da noite e dos sons que nós mesmos fazemos.
Merda — alguém resmunga, e todos nós rimos.
Somos onze no total. Um caminho de luzes se acende, mos­trando por onde devemos seguir, e depois tudo se apaga. Fecho os olhos e me concentro na sensação dos dedos de Sarah entrelaça­dos nos meus.
Não consigo entender por que faço isso todos os anos — Emily anuncia nervosa, cruzando os braços como se quisesse se proteger.
As outras pessoas começam a percorrer a trilha, e nós as segui­mos. As luzes às vezes se acendem e se apagam em seguida para nos orientar. Os outros estão à nossa frente, a uma distância que não nos possibilita vê-los. Mal consigo ver o chão em que piso. Três ou quatro gritos cortam o ar.
Ah, não — Sarah murmura, apertando minha mão. — Parece que já vamos ter problemas.
Algum objeto pesado cai sobre nós. As duas garotas gritam. Sam também. Eu tropeço e caio, ralo o joelho, me enrosco nessa coisa que não consigo identificar. Segundos depois percebo que é uma rede!
Que diabo é isso! — Sam pergunta.
Rasgo a malha de cordas, mas, no instante em que me liberto, sou empurrado com força por trás. Alguém me agarra e me arrasta para longe das garotas e de Sam. Eu me livro e fico em pó, mas sou imediatamente atingido pelas costas novamente. Isso não faz parte da corrida.
Solte-me! — uma das meninas grita. A resposta é uma garga­lhada masculina. Não consigo enxergar nada. As vozes das garotas se afastam de mim.
John? — Sarah me chama.
Onde você está, John? — É a voz de Sam, gritando.
Levanto-me para ir atrás deles, mas sou atingido novamente. Não, isso não está certo. Sou abordado. Sou jogado no chão, e o impacto me deixa sem ar. Levanto depressa e tento recuperar o fôlego, apoiando a mão em uma árvore para me sustentar. Há terra e folhas em minha boca.
Fico ali parado por alguns segundos e não ouço nada além de minha respiração ofegante. Quando já começo a pensar que estou sozinho, alguém me empurra e me joga contra uma árvore próxima. Bato com a cabeça no tronco e, por um instante, vejo estrelas. Fico surpreso com a força dessa pessoa. Toco minha testa e sinto o san­gue em meus dedos. Olho em volto novamente, mas não consigo ver nada além da silhueta das árvores.
Escuto um grito de uma das garotas, depois o som de uma luta. Ranjo os dentes. Estou tremendo. Tem alguém entre as árvores à mi­nha volta? Não sei. Mas sinto que olhos me espreitam de algum lugar.
Tire as mãos de mim! — Sarah grita.
Percebo que ela está sen­do arrastada para longe.
Tudo bem — digo para a escuridão, para as árvores.
A raiva está me dominando. — Você quer brincar? — pergunto, desta vez mais alto.
Alguém ri perto de mim.
Dou um passo na direção do som. Sou empurrado por trás, mas consigo recuperar o equilíbrio antes de cair. Dou um soco aleatório no ar, e esfolo a mão em um tronco. Não há mais nada a fazer. De que me adianta ter Legados se eles não são usados quando é neces­sário? Mesmo que Henri e eu tenhamos de carregar a caminhonete esta noite e partir para outra cidade, pelo menos terei feito o que tinha de fazer.
— Quer brincar? — grito novamente. — Eu também sei brincar!
Um fio de sangue escorre pela lateral de meu rosto. Sim, eu pen­so, é isso mesmo. Eles podem fazer tudo o que quiserem, mas não vão tocar em um fio de cabelo de Sarah. Ou de Sam ou de Emily.
Respiro profundamente e sinto a descarga de adrenalina. Um sorriso gelado se forma e meu corpo parece ficar maior, mais forte. Minhas mãos se acendem e emitem uma luz intensa que se espalha pela noite, iluminando o mundo repentinamente.
Olho para cima. Uso as mãos como lanternas na direção das árvo­res e corro a toda velocidade pela noite.




CAPÍTULO QUATORZE

KEVIN SAI  DO MEIO DAS ÁRVORES  FANTASIADO DE MÚMIA.   ERA ELE QUEM estava me atacando. A luz o ofusca e ele parece atordoado, tentan­do identificar de onde ela vem. Ele usa óculos de visão noturna. Então, é assim que eles conseguem nos enxergar, eu penso. Onde os conseguiram?
Ele me ataca, e no último instante me esquivo e o derrubo.
— Solte-me! — A voz vem da trilha. Olho para cima e direciono minha luz para as árvores, mas nada se move. Não consigo determinar se a voz é de Emily ou de Sarah. Ouço uma risada masculina.
Kevin tenta se levantar, mas eu chuto suas costelas antes de ele ficar em pé. Ele cai com um gemido abafado. Arranco os óculos de seu rosto e os jogo o mais longe possível, sabendo que vão cair pelo menos dois quilômetros e meio longe de nós, talvez quatro ou cinco, porque estou com tanta raiva que perco o controle de minha força. Então, corro pela floresta antes que Kevin consiga se levantar.
A trilha segue pela esquerda, depois vai para a direita. Minhas mãos brilham somente quando preciso enxergar. Sinto que estou perto. Então, vejo Sam na minha frente, imobilizado pelos braços de um zumbi. Há outros três por perto.
O zumbi o solta.
Calma, é só uma brincadeira. Se não resistir, não vai se machu­car — ele diz a Sam. — Sente-se e fique quieto.
Acendo minhas mãos e direciono as luzes para os olhos dele. A pessoa mais próxima tenta me atacar, e eu a derrubo com um soco. Ela fica imóvel no chão. Seus óculos voam para o meio dos arbustos e desaparecem. O segundo sujeito tenta me imobilizar com os bra­ços, mas eu escapo e o levanto do chão.
Que diabo é isso? — ele pergunta, confuso.
Eu o arremesso, e ele se choca contra o tronco de uma árvore uns seis metros adiante. O terceiro deles vê e foge. Agora resta o quarto, o que estava segurando Sam. Ele levanta as mãos diante do rosto, como se eu tivesse uma arma apontada em sua direção.
A ideia não foi minha — diz.
O que ele planejava fazer?
Nada, cara. Só queríamos fazer uma brincadeira com vocês, dar um susto.
Onde eles estão?
Já soltaram Emily. Sarah está lá na frente.
Quero seus óculos — aviso.
De jeito nenhum, cara. São da polícia, só pegamos empresta­dos. Vai me complicar.
Dou um passo em sua direção.
Tudo bem — o garoto diz e me entrega os óculos. Eu os jogo ainda mais longe do que arremessei o último par. Espero que caiam na cidade vizinha. Eles que se expliquem perante a polícia.
Agarro a camisa de Sam com a mão direita. Não consigo ver nada sem acender minha luz, e só então percebo que devia ter mantido os dois pares de óculos para enxergarmos na escuridão. Mas não os tenho, então respiro fundo e faço minha mão esquerda brilhar, e começo a nos guiar pelo caminho. Se Sam acha tudo isso estranho, ele nada diz.
Eu paro para ouvir. Nada. Seguimos adiante, caminhando por entre as árvores. Apago a luz.
  Sarah! — eu grito.
Paro de novo para ouvir, mas só identifico o vento passando por entre os galhos e a respiração ofegante de Sam.
Quantas pessoas estão com Mark? — pergunto.
Cinco, mais ou menos.
Sabe para onde eles foram?
Não vi.
Continuamos andando, mesmo sem saber em que direção seguimos. Ouço ao longe o ruído do motor do trator. A quarta turma está chegando. Estou agitado, quero correr, mas sei que Sam não pode me acompanhar. Ele já está arfante, e até eu estou suando, apesar de a temperatura ser de somente sete graus. Ou talvez eu esteja confun­dindo sangue com suor. Não posso dizer.
Passamos por uma árvore de tronco grosso e cheio de nós, e eu sou atacado pelas costas. Sam grita quando um punho acerta a parte de trás de minha cabeça, deixando-me momentaneamente atordoado, mas me recupero depressa, viro e agarro o garoto pelo pescoço e acendo a luz em seu rosto. Ele tenta remover meus dedos, mas não consegue.
O que Mark está planejando?
Nada — ele diz.
Resposta errada.
Eu o jogo contra a árvore mais próxima, cinco metros adiante, depois o levanto do chão, segurando-o novamente pelo pescoço. Ele esperneia, tentando me acertar com as pernas, mas enrijeço os mús­culos, e os chutes não me machucam.
  O que ele está planejando?
Eu o abaixo até seus pés tocarem o chão e afrouxo os dedos para deixá-lo falar. Sinto Sam me observando, registrando tudo o que vê, mas não há nada que eu possa fazer a respeito.
Só queríamos assustar vocês — diz o garoto, apavorado.
Juro que vou quebrar você ao meio se não me disser a verdade.
Ele pensa que os outros estão arrastando vocês dois para Shepherd Falis. E levou Sarah para lá. Mark queria que ela o visse es­pancando você, e depois ia soltá-los.
Você vai me levar até lá — digo.
Ele começa a caminhar, e eu apago minha luz. Sam agarra mi­nha camisa e me segue. Quando atravessamos uma pequena cla­reira iluminada pelo luar, percebo que ele está olhando para mi­nhas mãos.
São luvas — digo. — Kevin Miller estava com elas. Deviam fazer parte da fantasia de Halloween.
Ele assente, mas noto que está assustado. Caminhamos por quase um minuto até ouvirmos o som de água corrente à nossa frente.
Dê-me seus óculos — eu digo para o garoto que está nos guiando. Ele hesita, e eu torço seu braço. O cara estremece, com dor, e rapi­damente arranca os óculos do rosto.
Pode ficar, pode ficar — ele grita.
Quando os ponho, o mundo se pinta de verde. Eu o empurro com força, e ele cai.
Vamos — digo para Sam, e nós continuamos andando, deixan­do-o para trás.
Há um grupo adiante. Conto oito garotos e Sarah.
Agora posso vê-los. Quer esperar aqui ou vem comigo? Isso pode ficar feio.
Quero ir — diz Sam. E evidente que ele está com medo, mas não sei se é pelo que me viu fazer ou por causa dos jogadores de futebol à nossa frente.
Percorro o restante do caminho tão silencioso quanto posso, e Sam me segue, andando na ponta dos pés. Quando estamos a pou­cos metros de distância, um galho se parte sob o pé de Sam.
John? — Sarah pergunta. Ela está sentada em uma pedra, abra­çando os joelhos. Não usa os óculos de visão noturna, por isso es­treita os olhos e se vira em nossa direção, tentando nos identificar.
Sim — respondo. — E Sam. Ela sorri.
Eu disse.
Presumo que ela esteja falando com Mark.
O barulho da água vem de um córrego muito estreito. Mark dá um passo à frente.
Ora, ora, ora — ele diz.
Cale a boca, Mark — reajo. — Encher meu armário de esterco foi ridículo, mas agora você foi longe demais.
Você acha? São oito contra dois.
Sam não tem nada a ver com isso. Tem medo de me enfrentar sozinho? O que espera que aconteça? Você tentou raptar duas pes­soas. Acha mesmo que elas vão ficar caladas?
Sim, eu acho. Depois que me virem acabando com você.
Não se iluda — aviso, antes de me virar para os outros. — Os que não quiserem dar um mergulho no rio, sugiro que saiam agora. Mark vai mergulhar, querendo ou não. Ele perdeu a chance de sair dessa inteiro. Agora vocês estão diante da última oportunidade.
Todos continuam onde estão.
Muito bem, vocês escolheram.
Uma excitação nervosa provoca um efeito estranho em meu es­tômago. Dou um passo à frente. Mark recua um passo e tropeça no próprio pé, caindo sozinho. Dois amigos dele me atacam, ambos maiores do que eu. Um deles tenta me acertar um soco, mas eu me esquivo e acerto um murro bem no meio de sua barriga. Ele se dobra ao meio, segurando o local com as mãos. O segundo garoto sai do chão quando meu soco encontra seu queixo. Ele aterrissa com um baque surdo quase dois metros adiante, e o impulso o joga dentro da água. Ele se debate e fica em pé. Os outros estão paralisados, chocados. Sinto Sam se aproximando de Sarah. Agarro o garoto que está mais perto de mim e o arrasto pelo chão. Seus chutes aleatórios cortam o ar sem acertar nada. Quando estamos na margem do ria­cho, eu o levanto pela cintura do jeans e o jogo na água. Outro deles me ataca. Eu só me esquivo, e ele vai sozinho para dentro do riacho. Três já foram, faltam quatro. Fico me perguntando quanto do que está acontecendo Sarah e Sam conseguem ver sem os óculos.
Estão facilitando as coisas para mim — provoco. — Quem é o próximo?
O maior do grupo solta um soco que não passa nem perto de me atingir, e eu reajo tão depressa que o cotovelo dele acerta meu rosto, quebrando a armação dos óculos. Os óculos caem no chão. Agora só vejo sombras. Mesmo assim, meu soco encontra o queixo dele, que cai como um saco de batatas. Ele parece inerte, e sinto medo de ter exa­gerado na força. Arranco os óculos de seu rosto e os ponho no meu.
Algum voluntário?
Dois deles levantam as mãos num gesto de rendição; o terceiro fica parado e com a boca aberta, como um idiota.
Bem, só resta você, Mark.
Mark se vira, como se tivesse a intenção de fugir, mas eu sou mais rápido e o agarro antes que ele consiga escapar, puxo seus braços para trás e o imobilizo. Ele geme de dor.
Isso acaba aqui, entendeu?
Aperto seus braços com mais força, e ele geme.
Não sei o que tem contra mim, mas vai parar de me perseguir agora. E também não vai mais incomodar Sam e Sarah. Entendeu?
Aperto um pouco mais. Receio que, se aplicar um pouco mais de força, seus braços se desprendam dos ombros.
Perguntei se você entendeu!
Sim!
Eu o arrasto para perto de Sarah. Agora Sam está sentado na pe­dra ao lado dela.
Peça desculpas.
Vamos lá, cara. Já expressou seu ponto de vista.
Eu aperto.
Desculpe — ele grita.
Fale com mais sinceridade. Como se realmente lamentasse.
Ele respira fundo.
Eu sinto muito — diz.
Você é um idiota, Mark! Sarah finalmente se manifesta, esbofeteando-o no rosto com toda a sua força. Ele fica tenso, mas eu ainda o seguro, e não há nada que Mark possa fazer.
Eu o arrasto para a água. Os outros ficam parados, assistindo à cena, em choque. O que eu derrubei com um soco está agora senta­do, coçando a cabeça como se tentasse entender o que aconteceu. Suspiro aliviado por ele não estar gravemente ferido.
Você não vai dizer nada a ninguém sobre isso, ouviu bem? — aviso, falando tão baixo que só Mark pode me ouvir. — Tudo o que aconteceu nesta noite vai morrer aqui. Juro, se ouvir uma palavra sobre isso na escola na semana que vem, o que você está vivendo agora nada será comparado ao que vai acontecer. Entendeu? Nem uma palavra.
Acha mesmo que eu diria alguma coisa? — ele pergunta.
Avise seus amigos. Se eles contarem para alguém, eu vou atrás de você.
Não vamos dizer nada.
Eu o solto, planto meu pé em seu traseiro e o empurro para o ria­cho. Sarah está em pé sobre a pedra, ao lado de Sam. Ela me abraça com força quando me aproximo.
Você luta kung fu ou algo parecido? — pergunta.
Minha risada é nervosa.
Você viu muita coisa?
Não muito, mas deu para perceber o que estava acontecendo. Passou a vida toda treinando nas montanhas? Não entendo como fez aquilo.
Só tive medo de que acontecesse alguma coisa com você, acho. E sim, conto com os últimos doze anos de treinamento em artes mar­ciais no topo do Himalaia.
Você é incrível. — Sarah ri. — Vamos sair daqui.
Nenhum dos amigos de Mark diz nada. Depois de uns três me­tros, percebo que não tenho a menor ideia de que direção tomar e entrego os óculos a Sarah, para que ela nos guie.
Não consigo acreditar nisso — ela comenta. — Que idiota! Es­perem só até ele ter que explicar isso para a polícia. Não vou deixar isso barato.
Tem certeza de que vai até a polícia? O pai de Mark é o xerife! — eu lembro.
E por que eu não iria, depois do que ele fez? Foi ridículo. E o trabalho do pai de Mark é aplicar a lei, mesmo quando o filho dele é o infrator.
Eu dou de ombros na escuridão.
Acho que eles já tiveram o castigo que mereciam.
Mordo o lábio, morrendo de medo de que a polícia se envolva. Se isso acontecer, terei de ir embora, não haverá outra saída. Estaremos de malas prontas e saindo da cidade uma hora depois de Henri to­mar conhecimento da história. Eu suspiro.
Não acha...? — começo. — Quero dizer, eles já perderam vários óculos de visão noturna. Vão ter que se explicar por isso. Isso sem mencionar a água fria.
Sarah não diz nada. Caminhamos em silêncio, e eu torço para que ela esteja refletindo sobre as vantagens de deixar a história acabar aqui.
Finalmente saímos da floresta. Vemos as luzes do parque. Quando eu paro, Sarah e Sam olham para mim. Sam passou todo o tempo em silêncio, e espero que tenha sido por ele não ter conseguido enxer­gar o que aconteceu, o que faria da escuridão uma ajuda inesperada, ou por estar um tanto abalado por tudo o que acabou de vivenciar.
Vocês decidem — eu digo —, mas acho mesmo que devemos encerrar isso tudo aqui. Não quero ter que ir à polícia falar sobre o que aconteceu.
A luz ilumina o rosto cético de Sarah. Ela balança a cabeça.
Acho que ele está certo — Sam se manifesta. — Não quero ter que passar a próxima meia hora prestando depoimento. Vou acabar me metendo em confusão; minha mãe acha que fui para cama há uma hora.
Você mora perto daqui? — pergunto.
Ele assente.
Sim, e preciso ir para casa antes que ela vá ao meu quarto. A gente se vê.
Sem dizer mais nada, Sam se afasta correndo. Ele está visivelmente abalado. É bem provável que nunca tenha estado numa briga, e com certeza nunca foi sequestrado e atacado na floresta. Amanhã vou tentar conversar com ele. Se ele viu algo que não devia ter visto, eu o conven­cerei de que se enganou, ou de que seus olhos o iludiram na escuridão.
Sarah segura meu rosto e traça a linha do corte com o polegar, deslizando-o suavemente até minha testa. Depois ela acompanha o desenho das duas sobrancelhas, olhando em meus olhos.
Obrigada por esta noite. Eu sabia que você viria.
Não ia deixar que ele amedrontasse você.
Ela sorri, e eu vejo seus olhos brilhando ao luar. Ela se aproxi­ma, e, quando percebo o que vai acontecer, sinto que o ar fica preso em minha garganta. Ela pressiona os lábios contra os meus, e tudo dentro de mim parece derreter. É um beijo suave, demorado. Meu primeiro. Ela se afasta, e seus olhos mergulham nos meus. Não sei o que dizer. Um milhão de pensamentos invadem minha cabeça. Mi­nhas pernas tremem, e eu mal consigo me manter em pé.
Soube que você era especial na primeira vez que o vi — ela diz.
Senti o mesmo quando vi você.
Ela me beija outra vez, pousando a mão em meu rosto. Nos pri­meiros segundos eu me perco na sensação de seus lábios sobre os meus, na ideia de estar com esta garota linda.
Ela se afasta e nós sorrimos um para o outro sem dizer nada, tro­cando um olhar intenso e cheio de significados.
Bem, acho melhor ir ver se Emily ainda está no parque — ela diz depois de uns dez segundos. — Ou não terei como ir embora.
Tenho certeza de que ela está por aí — respondo.
Voltamos ao pavilhão de mãos dadas. Não consigo parar de pen­sar em nosso beijo. O quinto trator se dirige à floresta pela trilha de cascalho. Ele está lotado, e ainda há uma fila de mais ou menos dez pessoas esperando a vez. E depois de tudo o que aconteceu na flores­ta, com a mão quente de Sarah na minha, não consigo parar de sorrir.

CAPÍTULO QUINZE

A NEVE CAI PELA PRIMEIRA VEZ DUAS SEMANAS MAIS TARDE, UMA NEVE FINA e leve, apenas o suficiente para cobrir a caminhonete com uma cama­da delicada. Logo depois do Halloween, quando o cristal espalhou o Lúmen por todo o meu corpo, Henri começou realmente meu treina­mento. Temos trabalhado todos os dias, sem exceção, com frio, com chuva, e agora com neve. Embora ele não diga isso, acredito que Henri está impaciente para me ver pronto. Tudo começou com olhares desconcertados, com uma ruga em sua testa enquanto ele mordia o lábio inferior, e depois foram os suspiros profundos e algumas noites de insónia, quando as tábuas rangiam sob os pés dele enquanto eu ficava acordado em meu quarto, e progrediu até o ponto em que es­tamos agora, quando há aquele desespero inerente na voz de Henri.
Estamos no quintal, afastados por uns cinco metros, de frente um para o outro.
Hoje não estou disposto, realmente — digo.
Eu sei que não, mas temos que praticar assim mesmo. Eu suspiro e olho para o relógio. São quatro horas da tarde.
Sarah vai chegar às seis.
Eu sei — Henri responde. — Por isso precisamos nos apressar. Ele segura uma bola de tênis em cada mão.
- Está pronto? — pergunta.
Nunca estive mais.
Ele arremessa a primeira bola no ar, e, quando ela alcança seu ponto mais alto, tento conjurar dentro de mim um poder que a im­peça de cair. Não sei como fazer, só sei que com o tempo e prática devo ser capaz de conseguir, diz Henri. Todo Garde desenvolve a capacidade de mover objetos com a mente. Telecinesia. E em vez de me deixar descobrir sozinho essa habilidade — como aconteceu com o brilho em minhas mãos —, Henri está determinado a arrancar esse poder do esconderijo onde ele hiberna dentro de mim.
A bola cai, como caíram outras milhares antes dela, sem uma única interrupção, quica duas vezes, depois para na grama coberta de neve.
Eu deixo escapar um suspiro.
Hoje não estou sentindo minha força
Mais uma vez — Henri insiste.
Ele joga a segunda bola. Tento movê-la, ou pará-la, enfim, tudo em mim se esforça para movimentá-la um único milímetro para a direita ou para a esquerda, mas é inútil. Ela também cai. Bernie Kosar, que nos observava, aproxima-se, pega a bola entre os dentes e se afasta.
Vai acontecer quando for a hora — digo.
Henri balança a cabeça. Os músculos em sua mandíbula estão ten­sos. Sua impaciência e seu mau humor me incomodam. Ele observa Bernie Kosar se afastando com a bola e suspira.
O que é? — pergunto.
Ele balança a cabeça novamente.
Vamos continuar tentando.
Henri pega outra bola. Ele a joga bem alto, eu tento detê-la, mas, é claro, a bola simplesmente cai.
Talvez amanhã — sugiro.
Henri assente e olha para o chão.
— Talvez amanhã.

Estou coberto de suor, lama e neve derretida depois da prática. Hoje Henri exigiu mais de mim do que habitualmente, e me tratou com uma agressividade que só pode ser atribuída ao pânico. Além da prática de telecinesia, a maior parte do tempo foi dedicada ao aperfeiçoamento da técnica de luta — combate direto, imobiliza­ção, artes marciais — e de elementos de autocontrole — elegância sob pressão, controle da mente, como identificar medo no olhar de um oponente, e como o expor da melhor maneira. Não foi a rigidez do treinamento de Henri que me abalou, mas a expressão em seus olhos. Um olhar perturbado, cheio de medo, desespero, decepção. Não sei se ele está preocupado apenas com o progresso ou se existe algum motivo mais profundo, mas essas sessões têm se tornado mui­to exaustivas — emocional e fisicamente.

Sarah chega pontualmente na hora combinada. Vou recebê-la lá fora e a beijo quando ela está subindo a escada da varanda. Quando en­tramos, ela tira o casaco e eu o penduro. Nossa prova de econo­mia doméstica vai acontecer em uma semana, e é dela a idéia de tentarmos preparar a refeição antes de termos de fazê-la na escola. Assim que começamos a cozinhar, Henri pega sua jaqueta e sai para caminhar. Ele leva Bernie Kosar, e eu me sinto grato pela privaci­dade. Preparamos peito de frango assado com batatas e legumes no vapor, e o resultado é melhor do que eu esperava. Quando a refeição fica pronta, nós três nos sentamos e comemos juntos. Henri fica em silêncio na maior parte do tempo. Sarah e eu quebramos esse silên­cio desconfortável falando sobre amenidades, sobre a escola, sobre irmos ao cinema no próximo sábado. Henri raramente levanta os olhos do prato, exceto para elogiar a refeição maravilhosa.
Terminamos de comer, Sarah e eu lavamos os pratos e nos sen­tamos no sofá. Sarah trouxe um filme, e nós o assistimos em nossa pequena tevê, mas Henri olha com frequência para a janela. Depois de um tempo, ele suspira, levanta-se e vai lá para fora. Sarah e eu o vemos sair. Ficamos de mãos dadas, e ela apóia a cabeça em meu ombro. Bernie Kosar se deita ao lado dela, com a cabeça em seu colo, os dois cobertos pela mesma manta.
Lá fora o frio é intenso e o clima é inóspito, mas ali na sala a atmos­fera é quente e aconchegante.
Seu pai está bem? — Sarah pergunta.
Não sei. Ele tem agido de um jeito estranho.
Ele ficou muito quieto durante o jantar.
Sim, vou ver como ele está. Já volto — eu digo e vou atrás de Henri lá fora. Ele está em pé na varanda, olhando para a escuridão.
O que está havendo? — pergunto.
Ele contempla as estrelas.
Alguma coisa não está bem — diz.
Como assim?
Você não vai gostar disso.
Tudo bem, fale de uma vez.
Não sei quanto tempo podemos permanecer aqui. Não sinto segurança.
Meu coração fica apertado e eu me calo.
Eles estão agitados, e acho que se aproximam. Posso sentir. Não acho que estejamos seguros aqui.
Não quero ir embora.
Eu sabia que não ia querer.
Temos nos escondido.
Henri olha para mim com uma sobrancelha erguida.
Sem ofensa, John, mas não acho que tenha se mantido nas sombras.
Eu me mantenho, quando realmente é importante. Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
Bem, vamos ver.
Ele caminha até a entrada da varanda e apóia as mãos na balaus­trada. Eu me coloco ao lado dele. Mais flocos de neve começam a cair, girando no ar, centelhas brancas brilhando em uma noite escura.
Não é só isso — diz Henri.
Não achei que fosse. Ele suspira.
Você já devia ter desenvolvido a telecinesia. Quase sempre ela chega com o primeiro Legado. Muito raramente aparece depois, e quando isso acontece, nunca demora mais de uma semana.
Eu olho para ele. Seus olhos estão cheios de preocupação, e rugas apreensivas marcam sua testa.
Seus Legados vêm de Lorien. Sempre vieram.
O que está me dizendo?
Não sei quanto podemos esperar de agora em diante — ele diz e faz uma pausa. — Como não estamos mais no planeta, não sei se seus demais Legados vão se desenvolver. E se isso acontecer, não teremos nenhuma chance de lutar contra os mogadorianos, muito menos de derrotá-los. E, se não pudermos derrotá-los, nunca poderemos voltar.
Vejo a neve cair, incapaz de decidir se devo me sentir preocupado ou aliviado, já que isso porá um fim em nossas mudanças e finalmente poderemos nos instalar em algum lugar. Henri aponta para as estrelas.
Bem ali — ele diz. — É onde está Lorien.
É claro que sei muito bem onde está Lorien sem que me digam. Há certa atração, um jeito pelo qual meus olhos gravitam para o local onde, milhões de quilômetros distante, está Lorien. Tento pegar um floco de neve com a ponta da língua, depois fecho os olhos e respiro o ar frio. Quando os abro, eu me viro e olho para Sarah através da janela. Ela está sentada sobre as pernas, ainda com a cabeça de Bernie Kosar em seu colo.
Já pensou em simplesmente ficar aqui, mandar para o inferno tudo o que se relaciona a Lorien e construir uma vida aqui na Terra? — pergunto a Henri.
Partimos quando você era muito pequeno. Imagino que não lembre muita coisa, não é?
Não — respondo. — De vez em quando surgem recordações fragmentadas. Porém, não posso dizer se são realmente lembranças ou visões que tive durante nosso treinamento.
Não teria essa sensação se você conseguisse lembrar.
Mas eu não lembro. É esse o ponto?
Talvez — ele diz. — Mas queira você voltar ou não, isso não significa que os mogadorianos vão parar de procurá-lo. E, se deixar­mos de ser cuidadosos e nos acomodarmos, pode ter certeza de que eles nos encontrarão. E assim que nos encontrarem, eles nos mata­rão. Não há como mudar tudo isso. De jeito nenhum.
Eu sei que ele está certo. De alguma forma, como Henri, tenho a mesma sensação, sinto tudo isso na calada da noite, quando os pe­los de meu braço se eriçam e um arrepio leve percorre minha pele, embora eu não sinta frio.
Você lamenta ter ficado comigo tanto tempo?
Lamento? Por que acha que eu lamentaria?
Porque não temos para onde voltar. Sua família está morta. A minha também. Em Lorien só há uma vida de reconstrução. Se não fosse por mim, você poderia criar facilmente uma identidade aqui e passar o restante da vida fazendo parte de algum lugar. Poderia ter amigos, talvez até se apaixonar outra vez.
Henri ri.
Já estou apaixonado. E estarei até o dia de minha morte. Não espero que entenda isso. Lorien é diferente da Terra.
Eu suspiro, irritado.
Mesmo assim, você poderia fazer parte de algum lugar.
Já sou parte de algum lugar. Sou parte de Paradise, em Ohio, neste momento, com você.
Balanço a cabeça.
Você sabe o que quero dizer, Henri.
O que acha que estou perdendo?
Uma vida.
Você é minha vida, garoto. Você e minhas lembranças são meus únicos laços com o passado. Sem você, nada tenho. Essa é a verdade.
A porta se abre atrás de nós. Bernie Kosar sai trotando na frente de Sarah, que está parada na soleira, nem para dentro, nem para fora.
Vão mesmo me fazer assistir ao filme sozinha? — ela pergunta.
Henri sorri para ela.
Eu nem pensaria nisso — ele diz.
Depois do filme, Henri e eu levamos Sarah para casa. Quando che­gamos lá, eu a acompanho até a porta da frente e nós ficamos frente a frente, sorrindo um para o outro. Seguro as mãos dela e a beijo, um beijo demorado de boa-noite.
Até amanhã — ela diz, afagando minhas mãos.
Bons sonhos.
Volto para a caminhonete. Henri segue para casa. Não consigo deixar de sentir certo medo quando lembro as palavras de Henri no dia em que ele foi me buscar na escola, depois de meu primeiro dia inteiro de aula: "Não esqueça que podemos ter de partir de uma hora para outra." Ele está certo, e eu sei disso, mas nunca senti nada parecido por ninguém antes. Quando estamos juntos é como se eu flutuasse no ar, e detesto os momentos em que estamos separados, como agora, apesar de ter passado as últimas duas horas com ela. Sarah dá certo propósito à nossa fuga, uma razão que transcende a mera sobrevivência. Uma razão para vencer. E saber que posso estar colocando a vida dela em perigo simplesmente por estar com ela — bem, isso me aterroriza.
Quando voltamos, Henri entra no quarto dele e sai de lá carregan­do a arca. Ele a deposita sobre a mesa da cozinha.
É sério? — pergunto. Ele assente.
Há algo aqui que quero lhe mostrar há anos.
Mal posso esperar para ver o que mais há na arca. Abrimos o ca­deado juntos, e ele levanta a tampa de um jeito que não me permite espiar lá dentro. Henri remove dali uma bolsa de veludo, fecha a arca e a tranca novamente.
Não é parte de seu Legado, mas na última vez que a abrimos eu guardei isto lá dentro por causa desse mau pressentimento que tem me atormentado. Se os mogadorianos nos pegarem, nunca poderão abrir a arca — ele explica.
O que há na bolsa?
O sistema solar.
Se não é parte de meu Legado, porque não me mostrou isso antes?
Porque você precisava desenvolver um Legado para ativá-los.
Ele limpa a mesa da cozinha e se senta à minha frente com a bolsa entre as mãos. Henri sorri para mim, sentindo meu entusiasmo. De­pois, pega da bolsa sete globos de vidro de tamanhos variados. Ele os segura entre as mãos diante do rosto e sopra as esferas. Pequenas fagulhas de luz brotam delas, ele as joga para cima, no ar, e os globos ganham vida imediatamente, suspensos sobre a mesa da cozinha. As bolas de vidro são réplicas de nosso sistema solar. A maior delas tem o tamanho de uma laranja — o sol de Lorien — e paira no meio do conjunto, emitindo a mesma quantidade de luz que uma lâmpada, com uma aparência que lembra uma esfera de lava. As outras bolas giram em torno dela. Aquelas que estão mais próximas do sol se movem em velocidade maior, enquanto as mais afastadas parecem se arrastar lentamente. Todas elas giram, e dias e noites começam e terminam numa velocidade incrível. O quarto globo a partir do sol é Lorien. Nós observamos seu movimento, vemos sua superfície começando a se formar. Ele tem o tamanho de uma bola de tênis. A réplica não respeita a escala, porque, na verdade, Lorien é muito menor do que nosso sol.
O que está acontecendo? — pergunto.
A bola está tomando a forma exata que Lorien tem neste momento.
Como isso é possível?
É um lugar especial, John. E a magia existe em sua essência. É de lá que vêm seus Legados. É o que dá vida e realidade aos objeti­vos contidos em sua Herança.
Mas você acabou de dizer que isso não faz parte de meu Legado.
Não, mas tudo vem do mesmo lugar.
Surgem depressões, montanhas crescem, brechas profundas ris­cam a superfície onde sei que rios correram um dia. E então tudo para. Procuro cores, movimento, um vento que possa cortar a terra. Mas não há nada. Toda a paisagem é uma pintura em preto e cinza. Não sei o que esperava ver. Algum tipo de movimento, um indício de fertilidade. Sou tomado pelo desânimo. A superfície se torna tão fina, que podemos enxergar através dela e ver o centro do globo, onde um brilho pálido começa a surgir. Ele ganha força, em seguida perde intensidade, depois brilha novamente, como se replicasse os batimentos do coração de um animal adormecido.
O que é isso? — pergunto.
O planeta ainda vive e respira. Ele se recolheu para a parte mais profunda de si mesmo, ganhando tempo. Hibernando, se pre­ferir. Mas um dia desses, ele vai acordar.
O que o faz ter tanta certeza?
Aquele brilho pálido bem ali — ele diz. — Aquilo é esperança, John.
Eu olho para o brilho. Sinto um prazer estranho em vê-lo. Ten­taram banir nossa civilização, o próprio planeta, mas ele ainda respira. Sim, eu penso, sempre há esperança, como Henri afirmou o tempo todo.
Não é só isso.
Henri se levanta e estala os dedos, e o planeta para de se mover. Ele aproxima o rosto de Lorien, une as mãos em torno da boca e sopra o globo. Tonalidades de verde e azul percorrem a bola e come­çam a desaparecer quase imediatamente quando o vapor formado pelo sopro de Henri desaparece.
O que você fez?
Acenda as luzes de suas mãos sobre o globo — ele diz.
Eu faço cintilarem as luzes em minhas palmas, e, quando as man­tenho sobre a bola, o verde e o azul retornam, mas dessa vez perma­necem enquanto minhas mãos brilham sobre a esfera.
Essa era a aparência de Lorien um dia antes da invasão. Não é lindo? Às vezes até eu esqueço.
É lindo. Tudo verde e azul, fértil e próspero. A vegetação é exube­rante sob as rajadas de vento que, de alguma forma, consigo sentir. Ondas suaves surgem na água. O planeta está realmente vivo, flores­cendo. Mas quando apago as luzes em minhas mãos tudo desaparece, tudo mergulha novamente nos tons de cinza.
Henri aponta um ponto na superfície do globo.
Aqui — ele diz. — Foi daqui que partimos no dia da invasão. — Ele move o dedo meio centímetro para longe do ponto. — E bem aqui ficava o Museu Lórico de Exploração.
Assinto e olho para o lugar que ele está indicando. Mais cinza.
O que o museu tem a ver com isso? — pergunto. Sento-me novamente na cadeira. É difícil olhar para tudo aquilo sem sen­tir tristeza.
Ele me encara.
Tenho pensado muito no que você viu.
E...? — tento incentivá-lo a prosseguir.
Era um grande museu, totalmente dedicado à evolução da via­gem espacial. Uma das alas do edifício expunha foguetes de milhares de anos. Foguetes movidos por um tipo de combustível conhecido apenas em Lorien — ele fala, fazendo uma pausa para olhar para o pequeno globo de vidro pairando meio metro acima da mesa da cozi­nha. — Agora, se o que você viu realmente aconteceu, se uma segun­da nave conseguiu escapar de Lorien no auge da batalha, ela só pode ter partido do museu. Não há outra explicação para isso. Ainda tenho dificuldade para acreditar que pode ter acontecido, e, mesmo que seja verdade, é difícil imaginar que o foguete conseguiu ir tão longe.
Se o foguete não pode ter ido tão longe, por que ainda está pensando nele?
Henri balança a cabeça.
Não sei bem. Talvez por já ter me enganado antes. Talvez por ter esperança de estar errado agora. E, bem, se o foguete chegou em algum lugar, só pode ter sido aqui, o planeta habitado mais próximo, exceto Mogadore. E isso presumindo que houvesse alguém nele, que não tenha sido apenas uma nave cheia de artefatos, ou vazia, um truque para confundir os mogadorianos. Mas acho que devia haver pelo menos um lorieno tripulando a aeronave, porque, bem, você deve saber que veículos desse tipo não se dirigem sozinhos.

Outra noite de insônia. Fico parado diante do espelho, sem camisa, olhando para as luzes brilhando nas mãos. "Não sei quanto pode­mos esperar de agora em diante", Henri disse hoje. A luz no cen­tro de Lorien ainda brilha, e os objetos que trouxemos de lá ainda funcionam, então, por que a magia terminaria por lá? E os outros? Estão enfrentando os mesmos problemas agora? Também ficaram sem seus Legados?
Flexiono os braços na frente do espelho, depois soco o ar, espe­rando ver o espelho se quebrando ou ouvir um baque na porta. Mas nada acontece. Sou só eu parecendo um idiota ali em pé, sem ca­misa, lutando boxe com o nada enquanto Bernie Kosar me olha da cama. É quase meia-noite e não estou cansado. Bernie Kosar pula da cama, senta-se a meu lado e observa meu reflexo. Sorrio para ele e o vejo abanar a cauda.
E você? — pergunto a Bernie Kosar. — Tem poderes especiais? É um super cachorro? Devo vesti-lo novamente com sua capa para que você possa sair voando?
Ele continua balançando a cauda, batendo a pata no chão como se quisesse cavar um buraco e levantando os olhos para me olhar. Eu o levanto e o faço voar pelo quarto, segurando-o sobre minha cabeça.
Veja! É Bernie Kosar, o magnífico super cachorro!
Ele se contorce em minhas mãos, por isso o ponho no chão. Ele se joga de lado com o rabo balançando.
Bem, amigão, um de nós deve ter super poderes. E parece que não serei eu. A menos que voltemos à Idade das Trevas e eu possa iluminar o mundo com as mãos. Caso contrário, receio ser inútil.
Bernie Kosar rola de costas e olha para mim com seus olhos gran­des, esperando que eu coce sua barriga.

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