quarta-feira, 27 de julho de 2011

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Capítulos 1 ao 5

HARRY POTTER

E O

PRISIONEIRO DE AZKABAN

J. K. ROWLING

CAPÍTULO UM
O Correio-Coruja

Harry Potter era um menino bastante fora do comum em muitas coisas. Para começar, ele detestava as férias de verão mais do que qualquer outra época do ano. Depois, ele realmente queria fazer seus deveres de casa, mas era obrigado a fazê-los escondido, na calada da noite. E, além de tudo, também era bruxo.
Era quase meia-noite e Harry estava deitado de bruços na cama, as cobertas puxadas por cima da cabeça como uma barraca, uma lanterna em uma das mãos e um grande livro encadernado em couro (História da Magia de Batilda Bagshot), aberto e apoiado no travesseiro. Harry correu a ponta da caneta de pena de águia pela página, franzindo a testa, à procura de alguma coisa que o ajudasse a escrever sua redação, "A queima de bruxas no século XIV foi totalmente despropositada — discuta".
A caneta pousou no alto de um parágrafo que pareceu a Harry promissor. Ele empurrou os óculos redondos para a ponta do nariz, aproximou a lanterna do livro e leu:

Os que não são bruxos (mais comumente conhecidos pelo nome de (trouxas) tinham muito medo da magia na época Medieval, mas não tinham muita capacidade para reconhecê-la. Nas raras ocasiões em que apanhavam um bruxo ou uma bruxa de verdade, a sentença de queimá-los na fogueira não produzia o menor efeito. O bruxo, ou bruxa, executava um Feitiço para Congelar Chamas e depois fingia gritar de dor, enquanto sentia uma cocegazinha suave e prazerosa. De fato, Wendelin a Esquisita gostava tanto de ser queimada na fogueira que se deixou apanhar nada menos que quarenta e sete vezes, sob vários disfarces.

Harry prendeu a caneta entre os dentes e passou a mão embaixo do travesseiro à procura do tinteiro e de um rolo de pergaminho.
Devagar e com muito cuidado, retirou a tampa do tinteiro, molhou a pena e começou a escrever, parando de vez em quando para escutar, porque se algum dos Dursley, a caminho do banheiro, ouvisse sua pena arranhando o pergaminho, ele provavelmente ia acabar trancafiado no armário embaixo da escada pelo resto do verão.
A família Dursley, que morava na Rua dos Alfeneiros, 4, era o motivo pelo qual Harry jamais aproveitava as férias de verão. Tio Válter, tia Petúnia e o filho deles, Duda, eram os únicos parentes vivos de Harry. Eram trouxas e tinham uma atitude muito medieval com relação à magia. Os pais de Harry, já falecidos, que tinham sido bruxos, nunca eram mencionados sob o teto dos Dursley. Durante anos, tia Petúnia e tio Válter tinham alimentado esperanças de que, se oprimissem Harry o máximo possível, seriam capazes de acabar com a magia que houvesse nele. Para sua fúria, tinham fracassado. Agora, viviam aterrorizados que alguém pudesse descobrir que Harry passara a maior parte dos últimos dois anos na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. O máximo que podiam fazer, porém, era trancar os livros de feitiços, a varinha, o caldeirão e a vassoura de Harry no início das férias de verão e proibir que o menino falasse com os vizinhos.
A separação dos seus livros de feitiços tinha sido um verdadeiro problema para Harry, porque os professores em Hogwarts tinham passado muitos deveres para as férias. Uma redação, particularmente espinhosa, sobre poções redutoras fora pedida pelo professor de quem Harry menos gostava, o Profº. Snape, que ficaria encantado de ter uma desculpa para castigá-lo com um mês de detenção. Por isso Harry tinha aproveitado uma oportunidade que surgira na primeira semana de férias. Quando tio Válter, tia Petúnia e Duda foram ao jardim admirar o novo carro da companhia a serviço do tio Válter (em altas vozes para que toda a rua o visse), Harry desceu silenciosamente as escadas, arrombou a fechadura do armário sob a escada, apanhou alguns livros e os escondeu em seu quarto. Desde que não deixasse manchas de tinta nos lençóis os Dursley não precisariam saber que ele estava estudando magia à noite.
Harry tomava muito cuidado para evitar problemas com seus tios no momento, pois eles já estavam bastante mal-humorados com o sobrinho, só porque o menino recebera um telefonema de de um coleguinha bruxo uma semana depois de entrar em férias.
Rony Weasley, que era um dos melhores amigos de Harry em Hogwarts, descendia de uma família em que todos eram bruxos.
Isto significava que ele sabia um montão de coisas que Harry desconhecia, mas Rony jamais usara um telefone antes. E, por azar, fora o tio Válter que atendera a ligação.
— Válter Dursley.
Harry que, por acaso, se achava na sala àquela hora, gelou ao ouvir a voz do amigo responder.
— ALÔ! ALÔ! ESTÁ ME OUVINDO? QUERIA... FALAR COM... O... HARRY... POTTER!
Rony gritou com tanta força que tio Válter deu um salto e afastou o fone a mais de um palmo da orelha com uma expressão em que se misturavam a fúria e o susto.
— QUEM É QUE ESTÁ FALANDO? — berrou ele em direção ao bocal. — QUEM É VOCÉ?
— RONY... WEASLEY! — berrou Rony em resposta, como se ele e tio Válter estivessem falando de extremidades opostas de um campo de futebol.
— SOU... UM AMIGO... DE... HARRY... DA ESCOLA...
Os olhinhos de tio Válter se viraram para Harry, que estava pregado no chão.
— NÃO TEM NENHUM HARRY POTTER AQUI! — vociferou ele, agora segurando o fone com o braço esticado, como se receasse que o aparelho pudesse explodir. — NÃO SEI DE QUE ESCOLA VOCÊ ESTÁ FALANDO! NUNCA MAIS TORNE A LIGAR PARA CÁ! FIQUE LONGE DA MINHA FAMÍLIA!
E atirou o fone no gancho como se estivesse se livrando de uma aranha venenosa.
A briga que se seguiu foi uma das piores da vida de Harry.
— COMO É QUE VOCÊ SE ATREVE A DAR ESTE NÚMERO PARA GENTE COMO... GENTE COMO VOCÊ! — berrara tio Válter, salpicando Harry de cuspe.
Rony obviamente percebera que metera Harry em uma encrenca, porque não telefonou mais. A outra grande amiga de Harry em Hogwarts, Hermione Granger, tampouco o procurara. O menino suspeitava que Rony tinha avisado à amiga para não telefonar, o que era uma pena, porque Hermione, a bruxa mais inteligente da turma deles, tinha pais trouxas, sabia usar o telefone perfeitamente bem e provavelmente teria o bom senso de não dizer que freqüentava Hogwarts.
Com isso, Harry não ouvira uma única palavra de nenhum dos seus amigos de bruxaria durante cinco longas semanas, e este verão estava saindo quase tão ruim quanto o anterior. Havia apenas uma coisinha que melhorara — depois de jurar que não iria usar sua coruja para remeter cartas aos amigos, Harry tivera permissão de soltar Edwiges, à noite. Tio Válter concordara com isso diante da barulheira que o bicho aprontava quando ficava preso na gaiola o tempo todo.
Harry terminou de escrever sobre Wendelin a Esquisita e parou mais uma vez para escutar. O silêncio da casa às escuras só era interrompido pelos roncos sonoros e distantes do seu enorme primo, Duda.
Deve ser muito tarde, pensou Harry. Seus olhos comichavam de cansaço. Talvez terminasse a redação na noite seguinte...
Ele repôs a tampa do tinteiro; puxou uma fronha velha debaixo da cama; guardou dentro a lanterna, a História da magia, a redação, a caneta e a tinta; Levantou-se da cama e escondeu tudo sob uma tábua solta do soalho debaixo da cama.
Em seguida, pôs-se em pé, esticou­-se e verificou a hora no despertador luminoso sobre a mesa-de-cabeceira.
Era uma hora da manhã. Harry sentiu uma contração engraçada na barriga. Fizera treze anos de idade havia uma hora e não tinha se dado conta disso.
Mas outra coisa fora do comum em Harry é que ele não ligava nem um pouco para os seus aniversários. Nunca recebera um cartão de aniversário na vida. Os Dursley não tinham dado a mínima atenção aos dois últimos e ele não tinha razão alguma para supor que fossem se lembrar deste agora.
Harry atravessou o quarto escuro, passou pela espaçosa gaiola vazia de Edwiges e foi abrir a janela. Debruçou-se no peitoril, achando gostoso o ar fresco da noite que batia em seu rosto depois de ter passado tanto tempo debaixo das cobertas. Fazia duas noites que Edwiges andava fora. Mas Harry não estava preocupado — a coruja já ficara fora tanto tempo assim antes. Mas o garoto desejou que ela voltasse logo —, era a única criatura na casa que não se esquivava quando o via.
Harry, embora continuasse pequeno e magricela para sua idade, crescera alguns centímetros desde o ano anterior. Seus cabelos muito pretos, porém, continuavam como sempre tinham sido — teimosamente despenteados, por mais que ele fizesse. Os olhos por trás das lentes eram verde vivo, e na testa havia, claramente visível através dos cabelos, uma cicatriz fina, em forma de raio.
De todas as coisas fora do comum em Harry, essa cicatriz era a mais extraordinária de todas. Não era, como tinham fingido os Dursley durante dez anos, uma lembrança do acidente de carro que matara seus pais, porque Lílian e Tiago Potter não tinham morrido em um acidente de carro. Tinham sido assassinados, assassinados pelo bruxo das trevas mais temido do mundo nos últimos cem anos, Lord Voldemort. Harry escapara desse mesmo atentado com uma simples cicatriz na testa, no lugar em que o feitiço do bruxo, em vez de matá-lo, tinha se voltado contra o próprio feiticeiro. Quase morto, Voldemort fugira...
Mas Harry voltara a defrontar com ele outra vez em Hogwarts. Ao se recordar do último encontro, ali parado à janela escura, Harry teve de admitir que era uma sorte ter chegado ao seu décimo terceiro aniversário vivo.
Examinou o céu estrelado à procura de um sinal de Edwiges, voando ao seu encontro talvez com um rato morto pendurado no bico, contando receber elogios. Mas ao olhar distraidamente por cima dos telhados, Harry demorou alguns segundos para perceber o que estava vendo.
Recortado contra a lua dourada, e sempre crescendo, vinha um bicho estranhamente torto voando em sua direção. Harry ficou muito quieto esperando o bicho descer. Por uma fração de segundo ele hesitou, a mão no trinco da janela, pensando se devia fechá-la. Mas, nessa hora o bicho esquisito sobrevoou um lampião da Rua dos Alfeneiros e Harry identificando o que era, saltou para o lado.
Pela janela entraram três corujas, duas delas segurando uma terceira que parecia desmaiada. Pousaram com um ruído fofo na cama do menino e a coruja do meio, que era grande e cinzenta, tombou para o lado, imóvel. Trazia um grande pacote amarrado às pernas.
Harry reconheceu a coruja desmaiada na mesma hora — seu nome era Errol e pertencia à família Weasley. O menino correu para a cama, desamarrou os barbantes que envolviam as pernas de Errol, soltou o pacote e, em seguida, levou a coruja para a gaiola de Edwiges. Errol abriu um olho lacrimejante, deu um pio fraquinho de agradecimento e desatou a beber água em grandes sorvos.
Harry se virou para as corujas restantes. Uma delas, a fêmea grande, branca como a neve, era a sua Edwiges. Ela também trazia um pacote e parecia muito satisfeita consigo mesma. Deu uma bicadinha carinhosa em Harry quando ele soltou sua carga, depois saiu voando pelo quarto para se juntar a Errol.
Harry não reconheceu a terceira coruja, um belo espécime pardo, mas soube imediatamente de onde viera, porque além de trazer o terceiro pacote, ela trazia uma carta com o escudo de Hogwarts.
Quando Harry acabou de aliviá-la de sua carga, ela sacudiu as penas, cheia de si, abriu as asas e saiu voando pelo céu noturno.
O menino sentou-se na cama e apanhou o pacote de Errol, rasgou o papel pardo e encontrou um presente embrulhado em ouro, primeiro cartão de aniversário de sua vida. Com os dedos trêmulos, ele abriu o envelope. Caíram dois papéis — uma carta e um recorte de jornal.
O recorte fora visivelmente tirado do jornal dos bruxos, o Profeta Diário, porque as pessoas nas fotos em preto e branco estavam se mexendo. Harry apanhou o recorte, alisou-o e leu.

FUNCIONÁRIO DO MINISTÉRIO DA MAGIA 
GANHA GRANDE PRÉMIO

 Arthur Weasley chefe da Seção de Controle do Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas no Ministério da Magia, ganhou o Grande Prêmio Anual da Loteria do Profeta Diário.
A Sra. Weasley, encantada, declarou ao Profeta Diário:
"Vamos gastar o ouro em uma viagem de férias ao Egito, onde nosso filho mais velho, Gui, trabalha para o Banco Gringotes como desfazedor de feitiços.”
A família Weasley vai passar um mês no Egito, de onde voltará no início do ano letivo em Hogwarts, escola que cinco dos seus filhos ainda freqüentam.

Harry examinou a foto em movimento, e um sorriso espalhou-se em seu rosto ao ver os nove Weasley acenando freneticamente para ele, diante de uma enorme pirâmide. A Sra. Weasley, pequena e gorducha, o Sr. Weasley, alto e um pouco careca, os seis filhos e filha, todos (embora a foto em preto e branco não mostrasse com flamejantes cabelos vermelhos). Bem no meio da foto se achava Rony, alto e desengonçado com o seu rato de estimação, Perebas, no ombro e o braço passado pelas costas da irmã, Gina. Harry não conseguia pensar em ninguém que merecesse mais ganhar um monte de ouro do que os Weasley, que eram gente muito fina e extremamente pobre. Ele apanhou a carta de Rony e a desdobrou.

Caro Harry,
Feliz aniversário!
Olhe, estou muito arrependido daquele telefonema. Espero que os trouxas não tenham engrossado com você. Perguntei ao papai e ele acha que eu não devia ter gritado.
O Egito é incrível. Gui nos levou para ver os túmulos e você não ia acreditar nos feitiços que os velhos bruxos egípcios lançavam neles. Mamãe não quis deixar a Gina ver o último. Só continha esqueletos mutantes de trouxas que violaram o túmulo e acabaram com duas cabeças e outras esquisitices.
Nem consegui acreditar quando o papai ganhou a Loteria do Profeta Diário. Setecentos galeões! A maior parte foi gasta nesta viagem, mas eles vão me comprar uma varinha nova para o próximo ano letivo.

Harry lembrava-se bem demais do dia em que a velha varinha de Rony se partira. Acontecera quando o carro em que os dois voaram para Hogwarts batera de encontro a uma árvore nos jardins da escola.

Estaremos de volta uma semana antes do ano letivo começar e vamos a Londres comprar minha varinha e os livros da escola.
Alguma chance de nos encontrarmos lá? Não deixe os trouxas arrasarem você!
Faça uma força para ir a Londres, Rony.
 P.S. Percy agora é monitor-chefe. Recebeu a carta de nomeação na semana passada.

Harry tornou a admirar a foto. Percy, que estava no sétimo e último ano em Hogwarts, parecia muito cheio de si. Prendera o distintivo de monitor chefe no fez que usava num ângulo elegante sobre os cabelos bem penteados, seus óculos de aros de tartaruga faiscavam ao sol do Egito.
Harry voltou então sua atenção para o presente e o desembrulhou.
Dentro havia um objeto que parecia um pequenino pião de vidro. Debaixo, mais um bilhete de Rony.

Harry — Isto é um "bisbilhoscópio" de bolso. Dizem que quando tem alguma coisa suspeita por perto, ele acende e gira.
Gui falou que é porcaria que vendem a bruxos turistas e que não é confiável porque ontem, durante o jantar, ficou acendendo o tempo todo. Mas ele não percebeu que Fred e Jorge tinham posto besouros na sopa dele.
Tchau,              
Rony.

 Harry pôs o bisbilhoscópio em cima da mesa-de-cabeceira, onde o pião ficou parado, equilibrado sobre a ponta, refletindo os ponteiros luminosos do despertador. O menino admirou-o feliz por alguns segundos, então apanhou o pacote que Edwiges lhe trouxera.
Dentro deste também havia um presente embrulhado, um cartão e uma carta, desta vez de Hermione.

Caro Harry,
Rony me escreveu contando o telefonema que deu para o seu tio Válter. Espero que você esteja bem.
Estou de férias na França neste momento e não sabia como ia mandar o meu presente para você — e se eles abrissem o pacote na alfândega?—, mas então a Edwiges apareceu! Acho que ela queria garantir que você recebesse alguma coisa no seu aniversário, para variar comprei o seu presente pelo reembolso coruja; vi um anúncio no Profeta Diário (mandei entregar o jornal no meu endereço de férias; é tão bom continuar em dia com o que está acontecendo no mundo dos bruxos).
Você viu a foto de Rony com a família que saiu no jornal na semana passada? Aposto que ele está aprendendo um monte de coisas. Estou com inveja — os bruxos do Egito antigo são fascinantes.
Aqui também tem histórias de bruxaria locais interessantes.
Reescrevi todo o meu trabalho de História da Magia para incluir algumas coisas que descobri.
Espero que não fique grande demais — são dois rolos de pergaminho a mais do que o Profº. Binns pediu. Rony diz que vai a Londres na última semana de férias. Você também vai poder ir? Será que sua tia e seu tio vão deixar? Espero realmente que possa. Se não, a gente se vê no Expresso de Hogwarts no dia 1º de setembro!
Afetuosamente,
Hermione.
P.S. Rony contou que Percy virou monitor-chefe. Aposto como ele está realmente satisfeito. Quem não parece ter gostado é o Rony.

Harry deu risadas enquanto punha a carta de Hermione de lado e apanhava o presente. Era muito pesado. Conhecendo a amiga, ele teve certeza de que seria um livrão cheio de feitiços complicados, mas não era. Seu coração deu um enorme salto quando ele rasgou o papel de embrulho e viu um belo estojo de couro preto, com dizeres em letras prateadas: Estojo para manutenção de vassouras.
— Uau, Hermione! — exclamou Harry baixinho, abrindo o estojo para ver dentro.
Havia um frasco grande de líquido para polir cabos, uma tesoura prateada e reluzente para aparar cerdas, uma pequena bússola para prender na vassoura em viagens longas e um manual “Faça a manutenção da sua vassoura”.
À exceção dos amigos, o que Harry mais sentia falta de Hogwarts era o Quadribol, o esporte mais popular do mundo mágico — extremamente arriscado, muito excitante, que se jogava montado em uma vassoura. Harry, por acaso, era um ótimo jogador de Quadribol: fora o menino mais novo do século a ser escolhido para um time da casa em Hogwarts. Uma das coisas que Harry mais prezava na vida era sua vassoura de corrida, uma Nimbus 2000.
Harry pôs o estojo de couro de lado e apanhou o último embrulho.
Reconheceu os garranchos no papel pardo do embrulho na mesma hora: eram de Hagrid, o guarda-caça de Hogwarts. Ele rasgou o papel de embrulho externo e viu um pedacinho de alguma coisa em couro verde, mas antes que conseguisse desfazê-lo direito, o embrulho estremeceu de um modo estranho e o que havia dentro se fechou com um estalo — como se a coisa tivesse mandíbulas.
Harry congelou. Sabia que Hagrid jamais lhe mandaria uma coisa perigosa de propósito, mas, por outro lado, seu amigo não tinha a visão de uma pessoa normal sobre o que era perigoso. Todos sabiam que Hagrid já fizera amizade com aranhas gigantescas, mas nocivas, com cães de três cabeças dados por gente que ele encontrara em bares, e contrabandeara ovos de dragão, um bicho ilegal, para dentro da cabana em que morava.
Harry cutucou o embrulho, nervoso. A coisa tornou a se fechar com ruído, O garoto apanhou o abajur na mesa-de-cabeceira, agarrou-o com firmeza com uma das mãos e ergueu-o acima da própria cabeça, pronto para desferir uma pancada. Então agarrou o resto do papel de embrulho com a outra mão e puxou.
E a coisa caiu — um livro. Harry só teve tempo de reparar na bela capa, adornada com um título dourado, “O Livro Monstruoso dos Monstros”, antes do livro virar de lombada e começar a correr pela cama como um caranguejo esquisito.
— Ah, ah — gemeu Harry.
O livro caiu da cama com um barulho metálico e arrastou-se rápido pelo quarto. O menino o seguiu furtivamente. O livro foi se esconder no espaço escuro embaixo da escrivaninha. Rezando para os Dursley não terem acordado, Harry ficou de quatro e tentou apanhá-lo.
— Ai!
O livro se fechou sobre sua mão e se afastou do menino se sacudindo e andando adernado sobre as capas.
Harry saiu correndo, ainda agachado, e se atirou para frente conseguindo achatar o livro. Tio Válter soltou um grunhido sonolento e alto no quarto ao lado.
Edwiges e Errol observaram com interesse quando Harry abraçou com força o livro que se debatia, correu até a cômoda e pegou um cinto, com que o amarrou firmemente.
O livro monstruoso estremeceu de raiva, mas não conseguiu mais se agitar e morder, então Harry atirou-o na cama e apanhou o cartão de Hagrid.

Caro Harry,
Feliz aniversário.
Achei que isto pudesse lhe ser útil no ano que vem.
Não vou dizer mais nada aqui. Conto quando a gente se encontrar.
Espero que os trouxas estejam tratando você bem.
Tudo de bom,
Hagrid.

Pareceu a Harry um mau agouro que Hagrid pudesse achar que um livro que morde tivesse utilidade futura, mas pôs o cartão do amigo ao lado do de Rony e Hermione, sorrindo mais satisfeito do que nunca. Agora só sobrava a carta de Hogwarts.
Reparando que era bem mais grossa do que de costume, Harry abriu o envelope, puxou a primeira página do pergaminho de dentro e leu:

Prezado Sr. Potter,
Queira registrar que o novo ano letivo começará em 1º de setembro. O Expresso de Hogwarts partirá da estação de King's Cross, plataforma 9 e ½, às onze horas.
Os alunos de terceiro ano têm permissão para visitar a aldeia de Hogsmeade em determinados fins de semana. Assim, queira entregar a autorização anexa ao seu pai ou guardião para que a assine.
Estamos anexando, nesta oportunidade, a lista de livros para o próximo ano.
Atenciosamente,
Profª. McGonagall
Vice-Diretora.

Harry tirou do envelope o formulário de autorização para ir a Hogsmeade e leu-o, mas já não sorria. Seria maravilhoso visitar Hogsmeade nos fins de semana; ele sabia que era um povoado só de bruxos, em que nunca estivera. Mas como é que ia convencer o tio Válter ou a tia Petúnia a assinar o formulário?
Ele olhou para o despertador. Eram agora duas horas da manhã.
Decidindo que se preocuparia com o formulário de Hogsmeade quando acordasse, Harry voltou para a cama e se esticou para riscar mais um dia no calendário que fizera para contar o tempo que faltava para regressar a Hogwarts.
Tirou então os óculos e se deitou, de olhos abertos, de frente para os três cartões de aniversário.
Mesmo sendo muito fora do comum, naquele momento Harry Potter se sentiu como todo mundo: feliz, pela primeira vez na vida, porque era o dia do seu aniversário.



CAPÍTULO DOIS
O grande erro de tia Guida

Harry desceu para o café na manhã seguinte e já encontrou os três Dursley sentados à mesa. Estavam assistindo a uma televisão novinha em folha, um presente de boas-vindas para as férias de verão em casa de Duda, que andara se queixando, em várias vozes, sobre a grande distância entre a geladeira e a televisão da sala. Duda passara a maior parte do verão na cozinha, seus miúdos olhinhos de porco fixos na telinha e sua papada em cinco camadas balançando enquanto ele comia sem parar.
Harry sentou-se entre Duda e tio Válter, um homem grande e socado, com pescoço de menos e bigodes de mais. Longe de desejarem a Harry um feliz aniversário, os Dursley não deram qualquer sinal de que tinham reparado em sua entrada na cozinha, mas o menino estava mais do que acostumado com isso para se importar. Serviu-se de uma fatia de torrada e em seguida olhou para o repórter na televisão, que já ia adiantado na transmissão de uma notícia sobre um fugitivo da prisão.
“Alertamos os nossos telespectadores de que Black está armado e é extremamente perigoso. Se alguém o avistar deverá ligar para o número do plantão de emergência imediatamente.”
— Nem precisa dizer quem ele é — riu-se tio Válter, espiando o prisioneiro por cima do jornal. — Olhem só o estado dele, a imundice do desleixado! Olhem o cabelo dele!
E lançou um olhar de esguelha, maldoso, para Harry, cujos cabelos despenteados sempre tinham sido uma fonte de grande aborrecimento para o tio. Comparado ao homem da televisão, porém, cujo rosto ossudo era emoldurado por um emaranhado que lhe chegava aos cotovelos, Harry se sentiu, na verdade, muito bem penteado.
 O repórter reaparecera.
"O Ministério da Agricultura e da Pesca irá anunciar hoje...”
— Espere aí! — berrou tio Válter, olhando furioso para o repórter, — Você não disse de onde esse maníaco fugiu! De que adiantou o alerta? O louco pode estar passando na minha rua neste exato momento!
Tia Petúnia, que era ossuda e tinha cara de cavalo, virou-se depressa e espiou com atenção pela janela da cozinha. Harry sabia que a tia simplesmente adoraria poder ligar para o telefone do plantão de emergência. Era a mulher mais bisbilhoteira do mundo e passava a maior parte da vida espionando os vizinhos sem graça, que nunca faziam nada errado.
— Quando é que eles vão aprender — exclamou tio Válter, batendo na mesa com o punho grande e arroxeado — que a forca é a única solução para gente assim?
— É verdade — concordou tia Petúnia, que ainda procurava ver alguma coisa por entre a trepadeira do vizinho.
Tio Válter terminou de beber a xícara de chá, deu uma olhada no relógio de pulso e acrescentou:
— É melhor eu ir andando, Petúnia. O trem de Guida chega às dez.
Harry, cujos pensamentos andavam no andar de cima com o Estojo para Manutenção de Vassouras, foi trazido de volta à terra com um tranco desagradável.
— Tia Guida? — o garoto deixou escapar. — É... Ela não está vindo para cá, está?
Tia Guida era irmã de tio Válter. Embora não fosse um parente consangüíneo de Harry (cuja mãe fora irmã de tia Petúnia), a vida inteira ele tinha sido obrigado a chamá-la de "tia". Tia Guida morava no campo, em uma casa com um grande jardim, onde ela criava buldogues. Raramente se hospedava na Rua dos Alfeneiros, porque não conseguia suportar a idéia de se separar dos seus preciosos cachorros, mas cada uma de suas visitas permanecia horrivelmente nítida na cabeça de Harry.
Na festa do quinto aniversário de Duda, tia Guida tinha dado umas bengaladas nas canelas de Harry para impedi-lo de vencer o primo em uma brincadeira. Alguns anos mais tarde, ela aparecera no Natal trazendo um robô computadorizado para Duda e uma caixa de biscoitos de cachorro para Harry. Na última visita, um ano antes do garoto entrar para Hogwarts, ele pisara sem querer o rabo do cachorro favorito da tia. Estripador perseguira Harry até o jardim e o acuara em cima de uma árvore, mas tia Guida se recusara a recolher o cachorro até depois da meia-noite. A lembrança desse incidente ainda produzia lágrimas de riso nos olhos de Duda.
— Guida vai passar uma semana aqui — rosnou tio Válter — e enquanto estamos nesse assunto — ele apontou um dedo gordo e ameaçador para Harry — precisamos acertar algumas coisas antes de eu sair para apanhá-la.
Duda fez ar de riso e desviou o olhar da televisão. Assistir a Harry ser maltratado pelo pai era sua diversão favorita.
— Em primeiro lugar — rosnou tio Válter —, você vai falar com bons modos quando se dirigir a Guida.
— Tudo bem — disse Harry com amargura —, se ela fizer o mesmo quando se dirigir a mim.
— Em segundo lugar — continuou o tio, fingindo não ter ouvido a resposta de Harry —, como Guida não sabe nada da sua anormalidade, não quero nenhuma... Nenhuma gracinha enquanto ela estiver aqui. Você vai se comportar, está me entendendo?
— Eu me comporto se ela se comportar — retrucou Harry entre dentes.
— E em terceiro lugar — disse tio Válter, seus olhinhos maldosos agora simples fendas na enorme cara púrpura — dissemos a Guida que você freqüenta o Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis.
— Quê?— berrou Harry.
— E você vai sustentar essa história, moleque, ou vai se dar mal — cuspiu tio Válter.
Harry ficou sentado ali, o rosto branco e furioso, encarando o tio Válter, sem conseguir acreditar no que ouvia. Tia Guida vinha fazer uma visita de uma semana — era o pior presente de aniversário que os Dursley já tinham lhe dado, incluindo nessa conta o par de meias velhas do tio.
— Bom, Petúnia — disse tio Válter, levantando-se com esforço —, vou indo para a estação, então. Quer me acompanhar para dar um passeio, Dudoca?
— Não — respondeu o menino, cuja atenção se voltara para a televisão agora que o pai acabara de ameaçar Harry.
— O Dudinha tem que ficar elegante para receber a titia — disse tia Petúnia, alisando os cabelos louros e espessos do filho. — Mamãe comprou para ele uma linda gravata-borboleta.
Tio Válter deu uma palmadinha no ombrão de porco de Duda.
— Vejo vocês daqui a pouco, então — disse ele, e saiu da cozinha.
Harry que estivera sentado numa espécie de transe de horror, teve uma idéia repentina. Abandonando a torrada, ele se levantou depressa e acompanhou o tio até a saída.
Tio Válter estava vestindo o paletó que usava no carro.
— Eu não vou levar você — rosnou ele ao se virar e ver Harry observando-o.
— Como se eu quisesse ir — disse Harry friamente. — Quero lhe perguntar uma coisa.
O tio mirou-o desconfiado.
— Os alunos do terceiro ano em Hog... Na minha escola às vezes têm permissão para visitar o povoado próximo — disse Harry.
— E daí? — retrucou o tio, tirando as chaves do carro de um gancho próximo à porta.
— Preciso que o senhor assine o formulário de autorização — disse Harry depressa.
— E por que eu iria fazer isso? — falou o tio com desdém.
— Bom — respondeu Harry, escolhendo cuidadosamente as palavras — vai ser duro fingir para tia Guida que eu freqüento o Saint não sei das quantas... E Harry ficou satisfeito de ouvir uma inconfundível nota de pânico em sua voz.
— Centro St. Brutus para Meninos Irrecuperáveis! — berrou.
— Exatamente — disse Harry, encarando com toda a calma o rosto púrpura do tio. — É muita coisa para eu me lembrar. Tenho que parecer convincente, não é mesmo? E se eu, sem querer, deixar escapar alguma coisa?
— Vou fazer picadinho de você, não é mesmo? — rugiu o tio, avançando para o sobrinho com o punho levantado. Mas Harry agüentou firme.
— Fazer picadinho de mim não vai ajudar tia Guida a esquecer o que eu poderia contar a ela — disse em tom de ameaça.
Tio Válter parou, o punho ainda levantado, a cara de uma feia cor marrom-arroxeada.
— Mas se o senhor assinar o meu formulário de autorização — apressou- se Harry a acrescentar —, juro que vou me lembrar da escola que o senhor diz que freqüento, e vou me comportar como um trou... Como se fosse normal e todo o resto.
Harry percebeu que o tio estava considerando a proposta, mesmo que seus dentes estivessem arreganhados e uma veia latejasse em sua têmpora.
— Certo — disse por fim, bruscamente. — Vou vigiar o seu comportamento muito de perto durante a visita de Guida. Se, quando terminar, você tiver andado na linha e sustentado a história, eu assino a droga do formulário.
E, dando meia-volta, abriu a porta e bateu-a com tanta força que uma das vidraças no alto se soltou.
Harry não voltou à cozinha. Subiu as escadas e foi para o quarto.
Se ia se comportar como um trouxa de verdade, era melhor começar já.
Devagar e com tristeza, reuniu seus presentes e cartões de aniversário e escondeu-os debaixo da tábua solta do soalho com os deveres de casa. Depois, foi até a gaiola de Edwiges. Errol parecia ter-se recuperado; ele e Edwiges estavam dormindo, com a cabeça enfiada embaixo da asa. Harry suspirou e cutucou as corujas; para acordá-las.
— Edwiges — disse deprimido —, você vai ter que dar o fora por uma semana. Vá com Errol. Rony cuidará de você. Vou escrever um bilhete para ele explicando.
E não me olhe assim — os grandes olhos âmbar de Edwiges se encheram de censura —, não é minha culpa. É o único jeito que tenho de conseguir uma autorização para visitar Hogsmeade com Rony e Hermione.
Dez minutos depois, Errol e Edwiges (que levava um bilhete para Rony amarrado na perna) saíram voando pela janela e desapareceram de vista. Harry, agora se sentindo completamente infeliz, guardou a gaiola vazia dentro do armário.
Mas não teve muito tempo para se entristecer. Não demorou quase nada e tia Petúnia já estava gritando lá embaixo para Harry descer e se preparar para dar as boas-vindas à hóspede.
— Faça alguma coisa com o seu cabelo! — disse tia Petúnia bruscamente quando o sobrinho chegou embaixo.
Harry não via sentido em tentar fazer seu cabelo ficar penteado.
Tia Guida adorava criticá-lo, por isso, quanto mais desarrumado, mais satisfeita ela iria ficar.
Demasiado cedo, ouviu-se um ruído de pneu triturando areia quando o carro de tio Válter entrou de marcha a ré pelo caminho  da garagem, depois, batidas de portas e passos no jardim.
— Atenda a porta! — sibilou tia Petúnia para Harry.
Com uma sensação de grande tristeza e depressão na boca do estômago, Harry abriu a porta.
Na soleira encontrava-se tia Guida. Era muito parecida com o tio Válter; corpulenta, alta, socada, a cara púrpura, tinha até bigode, embora não tão peludo quanto o do irmão. Em uma das mãos ela trazia uma enorme mala, e, aninhado sob a outra, um buldogue velho e mal-humorado.
— Onde está o meu Dudoca? — bradou tia Guida. — Onde está o meu sobrinho fofo?
Duda veio gingando em direção ao hall, os cabelos louros emplastrados na cabeça gorda, uma gravata-borboleta quase invisível sob a papada quíntupla. Tia Guida largou a mala na barriga de Harry, deixando-o sem ar, agarrou Duda num abraço apertado com o braço livre e plantou-lhe uma beijoca na bochecha.
Harry sabia perfeitamente bem que Duda só agüentava os abraços da tia porque era bem pago para isso, e não deu outra, quando os dois se separaram, Duda levava uma nota novinha de vinte libras apertada na mão gorda.
— Petúnia! — exclamou tia Guida, passando por Harry como se ele fosse um cabide de chapéus. As duas se beijaram, ou melhor, tia Guida deu uma queixada na bochecha ossuda de tia Petúnia.
Tio Válter entrou nesse momento, sorrindo jovialmente e fechou a porta.
— Chá, Guida? — ofereceu. — E o que é que o Estripador vai tomar?
— Estripador pode beber um pouco de chá no meu pires — respondeu tia Guida enquanto seguiam todos para a cozinha, deixando Harry sozinho no hall com a mala.
Mas o menino não ia se queixar; qualquer desculpa para ficar longe da tia era bem-vinda, por isso começou a carregar a pesada mala para o quarto de hóspedes, demorando o máximo que pôde.
No momento em que voltou à cozinha, tia Guida já fora servida de chá e bolo de frutas e Estripador lambia alguma coisa, fazendo muito barulho, a um canto.
Harry viu tia Petúnia fazer uma ligeira careta ao ver gotas de chá e baba pontilharem o seu chão limpo. Ela detestava animais.
— Quem ficou cuidando dos outros cachorros, Guida? — perguntou tio Válter.
— Ah, deixei o coronel Fubster tratando deles — ribombou em resposta Guida. — Ele entrou para a reforma agora e é bom ter alguma coisa para fazer. Mas não pude deixar o coitado do Estripador, tão velho.  Ele fica doente de tristeza quando viajo.
Estripador recomeçou a rosnar quando Harry se sentou. Isto atraiu a atenção de tia Guida para Harry, pela primeira vez.
— Então! — vociferou ela. — Ainda está por aqui?
— Estou — respondeu o menino.
— Não diga "estou" nesse tom ingrato — rosnou tia Guida. — É uma grande bondade Válter e Petúnia acolherem você. Eu não teria feito o mesmo. Eu o teria mandado direto para um orfanato se alguém largasse você na minha porta.
Harry estava doido para responder que preferia viver em um orfanato do que com os Dursley, mas a lembrança do formulário de Hogsmeade fez com que se calasse.
Ele se esforçou para dar um sorriso constrangido.
— Não me venha com sorrisinhos! — trovejou tia Guida. — Estou vendo que não melhorou nada desde a última vez que o vi. Tive esperanças que a escola lhe desse educação à força, se fosse preciso. — Ela tomou um grande gole de chá, limpou o bigode e continuou:
— Aonde mesmo que você o está mandando Válter?
— St. Brutus — respondeu o tio prontamente. — É uma instituição de primeira classe para casos irrecuperáveis.
— Entendo. Eles usam a vara em St. Brutus? — vociferou ela do lado oposto da mesa.
Tio Válter fez um breve aceno de cabeça por trás de tia Guida.
— Usam — respondeu Harry. Depois, sentindo que devia fazer a coisa bem-feita, acrescentou: — o tempo todo.
— Ótimo — aprovou tia Guida. — Eu não aceito essa conversa fiada de não bater em gente que merece. Uma boa surra de vara resolve noventa e nove casos em cem. Você já apanhou muitas vezes?
— Ah, já — respondeu Harry —, um monte de vezes.
Tia Guida apertou os olhos.
— Não gosto do seu tom, moleque. Se você consegue falar das surras que leva com esse tom displicente, obviamente não estão lhe batendo com a força que deviam. Petúnia, se eu fosse você escreveria à escola. Deixaria claro que os tios aprovavam o uso de força extrema no caso desse moleque.
Talvez tio Válter estivesse preocupado que Harry pudesse esquecer o acordo que tinham feito; o caso é que ele mudou o assunto bruscamente.
— Ouviu o noticiário hoje de manhã, Guida? E aquele prisioneiro que fugiu, hein?
Enquanto tia Guida começava a se fazer em casa, Harry se surpreendeu pensando quase com saudade na vida na Rua dos Alfeneiros, nº. 4 sem ela.
Tio Válter e tia Petúnia em geral encorajavam Harry a ficar fora do caminho deles, o que o menino fazia com a maior satisfação. Tia Guida, por outro lado, queria Harry debaixo dos seus olhos o tempo todo, para poder fazer, com aquele vozeirão, sugestões para melhorá-lo. Adorava comparar Harry a Duda, e tinha o maior prazer de comprar presentes caros para Duda enquanto olhava feio para Harry, como se o desafiasse a perguntar por que não recebera um presente também. Além disso, ela não parava de soltar piadas de mau gosto sobre as razões de Harry ser uma pessoa tão deficiente.
— Você não deve se culpar pelo que os meninos são hoje, Válter — comentou ela durante o almoço do terceiro dia. — Se existe alguma coisa podre por dentro, não há nada que ninguém possa fazer.
Harry tentou se concentrar na comida, mas suas mãos tremiam e seu rosto começou a arder de raiva. Lembre-se do formulário, disse a si mesmo. “Pense em Hogsmeade. Não diga nada. Não se levante...”
Tia Guida esticou a mão para a taça de vinho.
— Isso é uma das regras básicas da criação, disse ela. — A gente vê isso o tempo todo com os cachorros. Se tem alguma coisa errada com uma cadela, vai ter alguma coisa errada com o filhote...
Naquele momento, a taça de vinho que tia Guida segurava explodiu em sua mão. Cacos de vidro voaram para todo lado e ela gaguejou e piscou, a caraça vermelha pingando.
— Guida! — guinchou tia Petúnia. — Guida, você está bem?
— Não se preocupe — resmungou tia Guida, enxugando o rosto com o guardanapo. — Devo ter segurado a taça com muita força. Fiz a mesma coisa na casa do coronel Fubster no outro dia. Não precisa se preocupar, Petúnia, tenho a mão pesada...
Mas tia Petúnia e tio Válter olharam desconfiados para Harry. Por isso o menino resolveu que era melhor não comer a sobremesa e se retirar da mesa o mais depressa que pudesse.
No corredor, apoiou-sena parede e respirou profundamente. Fazia muito tempo desde a última vez que se descontrolara e fizera uma coisa explodir. Não podia deixar que isso acontecesse de novo, O formulário de Hogsmeade não era a única coisa em jogo — se ele continuasse a agir assim, ia se encrencar com o Ministério da Magia.
Harry ainda era um bruxo menor de idade, portanto, pela lei dos bruxos, ele era proibido de fazer mágica fora da escola. A ficha dele não era muito limpa. Ainda no verão anterior recebera uma carta oficial em que o avisavam muito claramente que se o Ministério tomasse conhecimento de qualquer magia ocorrida na Rua dos Alfeneiros, ele seria expulso de Hogwarts.
Harry ouviu os Dursley se levantarem da mesa e correu escada acima para sair do caminho.
Harry conseguiu sobreviver os três dias seguintes forçando-se a pensar no manual de Faça a Manutenção da sua Vassoura sempre que tia Guida implicava com ele. A coisa funcionou muito bem, embora seu olhar parecesse vidrado, porque tia Guida começou a ventilar a opinião de que ele era mentalmente deficiente.
Finalmente, um finalmente muito demorado, chegou a última noite da estada de tia Guida. Tia Petúnia preparou um jantar caprichado e tio Válter abriu várias garrafas de vinho. Eles conseguiram terminar a sopa e o salmão sem mencionar nem uma vez os defeitos de Harry; quando comiam a torta merengue de limão, tio Válter deu um cansaço em todo mundo com uma longa conversa sobre Crunnings, sua empresa de brocas; depois tia Petúnia preparou o café e o marido apanhou uma garrafa de conhaque.
— Posso lhe oferecer essa tentação, Guida?
Tia Guida já bebera muito vinho. Sua cara enorme estava muito vermelha.
— Só um pouquinho, então — disse ela rindo. — Um pouquinho mais... Mais... Aí, perfeito.
Duda estava comendo o quarto pedaço de torta. Tia Petúnia bebericava café com o dedo mindinho esticado. Harry realmente queria desaparecer e ir para o quarto, mas deparou com os olhinhos zangados do tio Válter e viu que teria de agüentar até o fim.
— Aah — exclamou tia Guida, estalando os lábios e pousando o cálice de conhaque. — Um senhor jantar, Petúnia. Normalmente só como uma coisinha rápida à noite, com uma dúzia de cachorros para cuidar.. — Ela soltou um gostoso arroto e deu umas palmadinhas na grande barriga coberta de tweed. — Me desculpem. Mas gosto de ver um menino de tamanho saudável — continuou ela, dando uma piscadela para Duda. — Você vai ter tamanho de homem, Dudoca, como seu pai. Sim, senhor, acho que vou querer mais um pouquinho de conhaque, Válter... Agora esse outro ai...
Ela virou a cabeça para indicar Harry que sentiu um aperto no estômago. O manual pensou depressa.
— Esse aí tem um jeito ruim e mirrado. A gente vê isso nos cachorros. Pedi ao coronel Fubster para afogar um no ano passado. Era um ratinho. Fraco. Subnutrido.
Harry tentou se lembrar da página doze do seu livro Feitiço para Reverter Feitiços Persistentes.
— A coisa toda está ligada ao sangue, como eu ia dizendo ainda outro dia. O sangue ruim acaba aflorando. Mas, não estou dizendo nada contra a sua família, Petúnia — ela deu umas pancadinhas na mão ossuda da cunhada com sua mão que mais parecia uma pá —, mas sua irmã não era flor que se cheirasse. Isso acontece nas melhores famílias. Depois, fugiu com aquele imprestável e aí está o resultado bem diante dos olhos da gente.
Harry olhava fixamente para o próprio prato, sentindo uma zoeira engraçada nos ouvidos. “Segure sua vassoura pela cauda com firmeza”, pensou. Mas não conseguiu se lembrar do que vinha depois. A voz de tia Guida parecia perfurá-lo como se fosse uma das brocas do tio Válter.
— Esse Potter — continuou tia Guida bem alto, agarrando a garrafa e derramando mais conhaque no copo e na toalha da mesa —, você nunca me contou o que ele fazia.
Tio Válter e tia Petúnia tinham uma expressão extremamente tensa. Duda chegara a levantar os olhos da torta para olhar os pais, boquiaberto.
— Ele... Não trabalhava — disse tio Válter, sem chegar a olhar de todo para Harry. — Desempregado.
— Era o que eu esperava — disse tia Guida, bebendo um enorme gole de conhaque e limpando o queixo na manga. — Um parasita preguiçoso, imprestável, sem eira nem beira que...
— Não era não — exclamou Harry inesperadamente. Todos à mesa ficaram muito quietos. Harry tremia da cabeça aos pés.
Nunca sentira tanta raiva na vida.
— MAIS CONHAQUE! — bradou tio Válter, que empalidecera sensivelmente. Ele esvaziou a garrafa no cálice de tia Guida. — Você, moleque — rosnou para Harry. — Vá se deitar, ande...
— Não, Válter — soluçou tia Guida, erguendo a mão, os olhinhos injetados e fixos em Harry. — Continue, moleque, continue. Tem orgulho dos seus pais, é? Eles saem por aí e se matam num acidente de carro (imagino que bêbados)...
— Eles não morreram num acidente de carro! — protestou Harry, que percebeu que se levantara.
— Morreram num acidente de carro, sim, seu mentiroso infeliz, e jogaram você nos ombros de parentes decentes e trabalhadores! — gritou tia Guida, inchando de fúria. — Você é um ingrato, insolente e...
Mas repentinamente ela se calou. Por um instante pareceu que tinham-lhe faltado palavras. Parecia estar inchando, engasgada de tanta raiva... Mas não parou de inchar. Sua cara enorme e vermelha começou a crescer, os olhos miúdos saltaram das órbitas, e a boca se esticou tanto que a impedia de falar — no segundo seguinte vários botões simplesmente saltaram do seu paletó de tweed e ricochetearam nas paredes —, ela inflou como um balão monstruoso, a barriga transbordou o cós da saia, os dedos engrossaram como salames...
— GUIDA! — berraram tio Válter e tia Petúnia juntos quando o corpo dela começou a se erguer da cadeira em direção ao teto. Estava completamente redonda agora, como uma enorme bóia com olhinhos porcinos, e as mãos e os pés se projetaram estranhamente do corpo que flutuava no ar, dando estalinhos apopléticos. Estripador entrou derrapando na sala, latindo enlouquecido.
— NÃÃÃÃÃÃÃO!
Tio Válter agarrou Guida por um pé e tentou puxá-la para baixo, mas quase foi erguido do chão também. Um segundo depois, Estripador avançou, e de um salto abocanhou a perna do tio Válter.
Harry se precipitou, para fora da sala de jantar antes que alguém pudesse impedi-lo, e correu para o armário sob a escada. A porta do armário se abriu magicamente quando ele se aproximou. Em segundos, o garoto tinha arrastado o seu malão para a porta da rua. Subiu aos saltos a escada e se atirou embaixo da cama, levantando a tábua solta do soalho, agarrou a fronha cheia de livros e presentes de aniversário. Arrastou-se para fora, passou a mão na gaiola vazia de Edwiges, correu de volta ao lugar em que deixara o malão, na hora em que tio Válter irrompia da sala de jantar, com a perna da calça em tiras ensangüentadas.
— VOLTE AQUI! — urrou. — VOLTE AQUI E FAÇA-A VOLTAR AO NORMAL!
Mas uma raiva que não media conseqüências se apoderara de Harry. Ele deu um chute no malão para abri-lo, puxou a varinha e apontou-a para o tio Válter.
— Ela mereceu — disse ofegante. — Ela mereceu o que aconteceu. E o senhor fique longe de mim.
Depois, tateou às costas à procura do trinco da porta.
— Vou-me embora. Para mim já chega.
E no momento seguinte Harry estava na rua escura e silenciosa, puxando o malão pesado, a gaiola de Edwiges debaixo do braço.












CAPÍTULO TRÊS
O Nôitibus Andante

Harry já estava bem distante quando se largou em cima de um muro baixo na Rua Magnólia, uma rua curva de prédios geminados, ofegante com o esforço de arrastar o malão. Sentou-se muito quieto, ainda espumando de raiva, escutando o galope desenfreado do seu coração.
Mas depois de uns dez minutos sozinho na rua escura, uma nova emoção se apoderou dele: o pânico. De qualquer maneira que considerasse o caso, ele nunca se vira em situação pior. Estava perdido, sozinho, no escuro mundo dos trouxas, absolutamente sem ter aonde ir. E o pior era que acabara de executar um feitiço sério, o que significava que quase certamente seria expulso de Hogwarts. Violara tão flagrantemente o decreto que limitava o uso da magia por menores, que se surpreendeu que os representantes do Ministério da Magia não tivessem caído em cima dele ali mesmo.
Harry estremeceu e olhou para os dois lados da Rua Magnólia. O que ia lhe acontecer? Seria preso ou simplesmente banido do mundo dos bruxos? Ele pensou em Rony e em Hermione, e seu coração ficou ainda mais apertado. Harry tinha certeza de que, fosse criminoso ou não, Rony e Hermione iriam querer ajudá-lo agora, mas os dois estavam no exterior e, com Edwiges ausente, ele não tinha meios de entrar em contato com os amigos.
E tampouco tinha dinheiro dos trouxas. Havia um ourinho na carteira que guardara no fundo do malão, mas o resto da fortuna que seus pais tinham lhe deixado estava depositado em um cofre do banco dos bruxos em Londres, o Gringotes. Ele jamais conseguiria arrastar o malão até Londres. A não ser que...
Ele olhou para a varinha que ainda mantinha segura na mão.
Se já fora expulso (seu coração agora batia dolorosamente depressa), um pouco mais de magia não iria fazer mal algum. Tinha a Capa da Invisibilidade que herdara do pai — e se encantasse o malão para torná-lo leve como uma pena, o amarrasse à vassoura e voasse até Londres? Então poderia retirar o resto do seu dinheiro do cofre e... Começar uma vida de proscrito. Era uma perspectiva terrível, mas não podia ficar sentado naquele muro para sempre, ou ia acabar tendo que explicar à polícia dos trouxas o que estava fazendo ali, na calada da noite, com um malão cheio de livros de bruxaria e uma vassoura.
Harry tornou a abrir o malão e empurrou as coisas para um lado à procura da Capa da Invisibilidade — mas antes de apanhá-la, endireitou o corpo de repente e olhou mais uma vez a toda a volta.
Um formigamento estranho na nuca o fizera sentir que estava sendo observado, mas a rua parecia deserta e não havia luz nos grandes prédios quadrados.
Ele tornou a se curvar para o malão, mas quase imediatamente se endireitou, a mão apertando a varinha. Não ouvira, sentira uma coisa: alguém ou alguma coisa estava parado no estreito vão entre a garagem e a grade atrás dele. Harry apertou os olhos para enxergar melhor a passagem escura. Se ao menos aquilo se mexesse, então ele saberia se era apenas um gato sem dono ou... Outra coisa qualquer.
Lumus — murmurou Harry, e apareceu uma luz na ponta de sua varinha, que quase o cegou. Ele levantou a varinha acima da cabeça e as paredes incrustadas de seixos do nº. 2, de repente, faiscaram; a porta da garagem reluziu e entre as duas Harry viu, com muita clareza, os contornos maciços de alguma coisa muito grande com olhos enormes e brilhantes.
Harry recuou. Suas pernas bateram no malão e ele tropeçou. A varinha voou de sua mão quando ele abriu os braços para amortecer a queda, e aterrissou com toda a força na sarjeta.
Ouviu-se um estampido ensurdecedor e Harry ergueu as mãos para proteger os olhos da luz repentina e ofuscante...
Com um grito, ele rolou para cima da calçada bem em tempo. Um segundo depois, dois faróis altos e dois gigantescos pneus pararam cantando exatamente no lugar em que Harry estivera caído. As duas coisas pertenciam, Harry viu quando ergueu a cabeça, a um ônibus de três andares, roxo berrante, que se materializara do nada.
Letras douradas no pára-brisa informavam: O Nôitibus Andante.
Por uma fração de segundo, Harry ficou imaginando se o tombo o teria deixado abobado. Então, um condutor de uniforme roxo saltou do ônibus para anunciar em altas vozes aos ventos da noite:
— Bem-vindo ao ônibus Nôitibus Andante, o transporte de emergência para bruxos e bruxas perdidos. Basta esticar a mão da varinha, subir a bordo e podemos levá-lo aonde quiser. Meu nome é Stanislau Shunpike, Lalau, e serei seu condutor por esta noi...
Lalau parou abruptamente. Acabara de avistar Harry que continuava sentado no chão. O menino recuperou a varinha e ficou de pé como pôde.
Aproximando-se, viu que Lalau era apenas alguns anos mais velho que ele, tinha dezoito ou dezenove anos no máximo, grandes orelhas de abano e uma grande quantidade de espinhas.
— Que é que você estava fazendo aqui? — perguntou Lalau, pondo de lado sua pose profissional.
— Caí — respondeu Harry 
— E por que foi que você caiu? — caçoou Lalau.
— Não caí de propósito — respondeu Harry, incomodado. Uma perna de seu jeans se rasgara e a mão que ele estendera para aliviar a queda estava sangrando. De repente ele se lembrou por que caíra e se virou depressa para o lado para ver a passagem entre a garagem e a cerca. Os faróis do Nôitibus agora a inundavam de luz e ela estava vazia.
— Que é que você está olhando? — perguntou Lalau.
— Havia uma coisa grande e escura — respondeu Harry, apontando hesitante para a abertura. — Parecia um cachorro... Mas enorme...
Harry olhou para Lalau, cuja boca estava entreaberta. Com um certo constrangimento, Harry viu o seu olhar se deter na cicatriz de sua testa.
— Que é que é isso na sua testa? — perguntou Lalau de repente.
— Nada — apressou-se a dizer Harry, achatando os cabelos em cima da cicatriz. Se os funcionários do Ministério da Magia estivessem à sua procura, ele não ia facilitar a vida deles.
— Qual é o seu nome? — insistiu Lalau.
— Neville Longbottom — respondeu Harry com o primeiro nome que lhe veio à cabeça. — Então... Este ônibus — emendou ele depressa na esperança de desviar a atenção do rapaz —, você disse que vai a qualquer lugar?
— Isso aí — respondeu Lalau orgulhoso —, qualquer lugar que você queira desde que seja em terra. É imprestável debaixo da água. Aqui — disse ele outra vez desconfiado —, você fez sinal para a gente parar, não fez? Esticou a mão da varinha, não esticou?
— Claro — confirmou Harry depressa. — Escuta aqui, quanto custaria me levar até Londres?
— Onze sicles, mas por catorze você ganha chocolate quente e por quinze um saco de água quente e uma escova de dentes da cor que você quiser.
Harry remexeu outra vez no malão, tirou a bolsa de dinheiro, e empurrou um ourinho na mão de Lalau. Ele e o rapaz então ergueram o malão, com a gaiola de Edwiges equilibrada na tampa, e subiram no ônibus.
Não havia lugares para a pessoa sentar; em vez disso havia meia dúzia de estrados de latão ao longo das janelas protegidas por cortinas.
Ao lado de cada cama, ardiam velas em suportes, que iluminavam as paredes revestidas de painéis de madeira. Na traseira do ônibus, uma bruxa miúda usando touca de dormir murmurou:
— Agora não, obrigada, estou fazendo uma conserva de lesmas. — E voltou a adormecer.
— Você fica com essa aí — cochichou Lalau, empurrando o malão de Harry para baixo da cama logo atrás do motorista, que se achava sentado em uma cadeira de braços diante do volante. — Este é o nosso motorista, Ernesto Prang. Este aqui é o Neville Longbottom, Ernesto.
Ernesto Prang, um bruxo idoso que usava óculos de grossas lentes, cumprimentou com um aceno de cabeça o novo passageiro, que tornou a achatar nervosamente a franja contra a testa e se sentou na cama.
— Pode mandar ver, Ernesto — disse Lalau, sentando-se na cadeira ao lado do motorista.
Ouviu-se mais um estampido assustador e, no instante seguinte, Harry se sentiu achatado contra a cama, atirado para trás pela velocidade do Nôitibus. Endireitando-se, o menino espiou pela janela escura e viu que agora deslizavam suavemente por uma rua completamente diferente. Lalau observava o rosto surpreso de Harry achando muita graça.
— Era aqui que a gente estava antes de você fazer sinal para o ônibus parar — disse ele. — Onde é que nós estamos, Ernesto? Em algum lugar do País de Gales?
— Hum-hum — respondeu o motorista 
— Como é que os trouxas não ouvem o ônibus? — perguntou Harry.
— Os trouxas! — exclamou Lalau com desdém. — E eles lá escutam direito? E também não enxergam direito. Nunca reparam em nada, não é mesmo?
— É melhor ir acordar Madame Marsh, Lalau — disse Ernesto. — Vamos entrar em Abergavenny dentro de um minuto.
Lalau passou pela cama de Harry e desapareceu por uma estreita escada de madeira. Harry continuou a espiar pela janela, sentindo-se mais nervoso a cada hora.
Ernesto não parecia ter dominado o uso do volante, O Nôitibus a toda hora subia na calçada, mas não batia em nada; os fios dos lampiões, as caixas de correio e as latas de lixo saltavam fora do caminho quando o ônibus se aproximava e tornavam à posição anterior depois de ele passar Lalau voltou do primeiro andar, seguido de uma bruxa meio esverdeada e embrulhada em uma capa de viagem.
— Chegamos, Madame Marsh — exclamou Lalau alegremente, enquanto Ernesto metia o pé no freio e as camas deslizavam bem uns trinta centímetros para a dianteira do ônibus. Madame Marsh cobriu a boca com um lenço e desceu as escadas, titubeante. Lalau atirou a mala para ela e bateu as portas do ônibus; ouviu-se novo estampido, e o veículo saiu roncando por uma estradinha do interior, fazendo as árvores saltarem de banda.
Harry não teria conseguido dormir mesmo se estivesse viajando em um ônibus que não produzisse tantos estampidos e saltasse um quilômetro e meio de cada vez, seu estômago deu muitas voltas quando ele tornou a refletir no que iria lhe acontecer, e se os Dursley já teriam conseguido tirar tia Guida do teto.
Lalau abrira um exemplar do Profeta Diário e agora o lia mordendo a língua. Um homem de rosto encovado, e cabelos longos e embaraçados piscou devagarinho para Harry em uma grande foto na primeira página. Pareceu-lhe estranhamente familiar.
— Esse homem! — exclamou Harry, esquecendo-se por um momento dos próprios problemas. — Ele apareceu no noticiário dos trouxas!
Lalau virou para a primeira página e deu uma risadinha.
— Sirius Black — disse, confirmando com a cabeça. — Claro que apareceu no noticiário dos trouxas, Neville, por onde você tem andado? — E deu uma risadinha de superioridade ao ver o olhar vidrado no rosto de Harry; rasgou a primeira página e entregou-a ao garoto.
— Você devia ler mais jornal.
Harry ergueu a página diante da luz e leu:

BLACK AINDA FORAGIDO
Sirius Black, provavelmente o condenado de pior fama já preso na fortaleza de Azkaban, continua a escapar da polícia, confirmou hoje o Ministério da Magia.
— Estamos fazendo todo o possível para recapturar Black — disse o Ministro da Magia, Cornélio Fudge. Ouvido esta manhã. — E pedimos à comunidade mágica que se mantenha calma.
Fudge tem sido criticado por alguns membros da Federação Internacional de Bruxos por ter comunicado a crise ao Primeiro-Ministro dos Trouxas.
— Bem, na realidade, eu tinha que fazer isso ou vocês não sabem? — comentou Fudge irritado. — Black é doido. É um perigo para qualquer pessoa que o aborreça, seja bruxo ou trouxa. — O Primeiro-Ministro me garantiu que não revelará a verdadeira identidade de Black. E vamos admitir quem iria acreditar se ele revelasse?”
Enquanto os trouxas foram informados apenas de que Black está armado (com uma espécie de varinha de metal que os bruxos usam para se matar uns aos outros), a comunidade mágica vive no temor de um massacre como o que ocorreu há doze anos, quando Black matou treze pessoas com um único feitiço.

Harry olhou bem dentro dos olhos sombrios de Sirius Black, a única parte do rosto encovado que parecia ter vida. O menino jamais encontrara um vampiro, mas vira fotos nas aulas de Defesa Contra as Artes das Trevas, e Black, com a pele branca como cera, se parecia muito com um.
— Carinha sinistro, não é mesmo? — comentou Lalau, que estivera observando Harry enquanto lia.
— Ele matou treze pessoas? — admirou-se Harry, devolvendo a página a Lalau. — Com um feitiço?
— É isso aí, bem na frente de testemunhas e tudo. Em plena luz do dia. Armou uma confusão do caramba não foi, Ernesto?
— Hum-hum — confirmou Ernesto sombriamente.
Lalau girou a cadeira de braços, cruzou as mãos às costas, a fim de olhar melhor para Harry.
Black foi um grande partidário de Você-Sabe-Quem — disse ele.
— De quem, do Voldemort? — disse Harry sem pensar.
Até as espinhas de Lalau ficaram brancas; Ernesto deu tal golpe de direção que uma casa de fazenda inteira teve que saltar para o lado para fugir do ônibus.
— Você ficou maluco? — gritou Lalau. — Pra que foi que você foi dizer o nome dele?
— Desculpe — apressou-se a dizer Harry. — Desculpe, eu... me esqueci...
— Se esqueceu! — exclamou Lalau com a voz fraca. — Caramba, meu coração até desembestou...
— Então... então Black era partidário de Você-Sabe-Quem? — repetiu Harry como se pedisse desculpas.
— E é — confirmou Lalau, ainda esfregando o peito. – É, é isso aí. Dizem que era muito chegado ao Você-Sabe-Quem... Em todo o caso, quando o pequeno Harry Potter levou a melhor sobre Você-Sabe-Quem...
Harry, nervoso, achatou a franja na testa outra vez.
— ... Todos os partidários de Você-Sabe-Quem foram caçados, não foi assim, Ernesto? A maioria deles sacou que estava tudo acabado, Você-Sabe-Quem tinha desaparecido e o pessoal ficou na moita. Mas o Sirius Black, não. Ouvi dizer que ele achou que ia ser o vice quando Você-Sabe-Quem assumisse o poder. Em todo o caso, eles cercaram Black no meio de uma rua cheia de trouxas e o cara puxou a varinha e explodiu metade da rua, atingiu um bruxo e mais uma dúzia de trouxas que estavam no caminho. Uma coisa horrorosa! E sabe o que foi que o Black fez depois? — Lalau continuou num sussurro teatral.
— Quê? — perguntou Harry.
— Deu uma gargalhada. Ficou ali parado dando gargalhadas. E quando chegaram os reforços do Ministério da Magia, ele acompanhou os caras sem a menor reação, rindo de se acabar. Porque ele é maluco, não é, Ernesto? Ele não é maluco?
— Se ele ainda não era quando foi para Azkaban, agora é — comentou Ernesto com sua voz arrastada. — Eu preferia estourar os miolos a pisar naquele lugar. Mas acho que é bem feito... Depois do que ele aprontou...
— Tiveram uma trabalheira para abafar o caso, não foi, Ernesto? — disse Lalau. — Ele mandou a rua antiga para o espaço e matou todos aqueles trouxas. Que foi mesmo que falaram que tinha acontecido, Ernesto?
— Explosão de gás — resmungou Ernesto.
— E agora ele anda solto por aí — continuou Lalau, examinando mais uma vez a cara encovada de Black na foto do jornal. — Ninguém nunca fugiu de Azkaban antes, não é mesmo, Ernesto? Não sei como foi que ele fez isso. É de apavorar, hein? E olha só, não acho que ele tivesse muita chance contra aqueles guardas de Azkaban, hein, Ernesto? — Ernesto sentiu um arrepio repentino.
— Vamos mudar de assunto, Lalau. Esses guardas de Azkaban me dão até dor de barriga.
Lalau largou o jornal com relutância e Harry se encostou na janela do Nôitibus, sentindo-se pior que nunca. Não podia deixar de imaginar o que Lalau iria contar aos passageiros nas próximas noites... "Você soube o que aconteceu com aquele Harry Potter? Mandou a tia pelos ares! Ele viajou aqui no Nôitibus com a gente, não foi mesmo, Ernesto? Estava tentando se mandar...”
Ele. Harry Potter, tinha infringido as leis dos bruxos igualzinho ao Sirius Black. Fazer tia Guida virar balão seria suficiente para ir parar em Azkaban?
Harry não sabia nada sobre a prisão dos bruxos, embora todo mundo que ele já ouvira falar daquele lugar o fizesse no mesmo tom de medo. Hagrid, o guarda-caça de Hogwarts, passara dois meses lá ainda no ano passado. Harry jamais esqueceria a expressão de terror no rosto do amigo quando lhe disseram aonde ia, e Hagrid era uma das pessoas mais corajosas que Harry conhecia.
O Nôitibus corria pela escuridão, espalhando para todo o lado moitas de plantas, latas de lixo, cabines telefônicas e árvores, e Harry continuava deitado, inquieto e infeliz, em sua cama de penas. Passado algum tempo, Lalau se lembrou de que Harry pagara pelo chocolate quente, mas derramou-o no travesseiro do garoto quando o ônibus passou bruscamente de Anglesca para Aberdeen.
Um a um, bruxos e bruxas de roupa de dormir e chinelos desceram dos andares superiores e desembarcaram do ônibus. Todos pareciam satisfeitos de descer.
Finalmente, Harry foi o único passageiro que restou.
— Muito bem, então, Neville — disse Lalau, batendo palmas —, que lugar de Londres você vai ficar?
— No Beco Diagonal — respondeu Harry.
— É pra já. Segura firme aí...
BANGUE.
E na mesma hora o Nôitibus estava correndo pela Rua Charing Cross como uma trovoada. Harry se sentou e ficou observando os edifícios e bancos se espremerem para sair do caminho do veículo. O céu estava um pouquinho mais claro.
Ele tentaria passar despercebido por umas duas horas, iria ao Gringotes no instante em que o banco abrisse, depois iria embora — para onde, ele não sabia muito bem.
Ernesto fincou o pé no freio e o Nôitibus parou derrapando diante de um bar pequeno e de aparência malcuidada, o Caldeirão Furado, nos fundos do qual havia a porta mágica para o Beco Diagonal.
— Obrigado — disse Harry a Ernesto.
Ele desceu os degraus com um pulo e ajudou Lalau a descer o malão e a gaiola de Edwiges para a calçada.
— Bem — disse Harry. — Então, tchau!
Mas Lalau não estava prestando atenção. Ainda parado à porta do ônibus, arregalava os olhos para a entrada sombria do Caldeirão Furado.
— Ah, aí está você, Harry — exclamou uma voz.
Antes que Harry pudesse se virar, sentiu uma mão segurá-lo pelo ombro. Ao mesmo tempo, Lalau gritou:
— Caramba! Ernesto corre aqui! Corre aqui!
Harry ergueu a cabeça para o dono da mão em seu ombro e teve a sensação de que um balde de gelo estava virando dentro do seu estômago — desembarcara diante de Cornélio Fudge, o Ministro da Magia em pessoa.
Lalau saltou para a calçada, ao lado deles.
— Que nome foi que o senhor chamou Neville, ministro? — perguntou ele excitado.
Fudge, um homenzinho gorducho, vestindo uma longa capa de risca de giz, parecia enregelado e exausto.
— Neville? — repetiu ele, franzindo a testa. — Este é Harry Potter.
— Eu sabia! — gritou Lalau radiante. — Ernesto! Ernesto! É o Harry Potter! Estou olhando para a cicatriz dele!
— Bem — disse Fudge, irritado —, muito bem, fico satisfeito que o Nôitibus tenha apanhado o Harry, mas ele e eu precisamos entrar no Caldeirão Furado agora...
Fudge aumentou a pressão no ombro de Harry, e o menino sentiu que estava sendo conduzido para o interior do bar. Um vulto curvo segurando uma lanterna apareceu à porta atrás do balcão. Era Tom, o dono encarquilhado e sem dentes do bar-hospedaria.
— O senhor o encontrou, ministro! — exclamou Tom. — Quer alguma coisa para beber? Cerveja? Conhaque?
— Talvez um bule de chá — disse Fudge, que continuava segurando Harry.
Ouviram-se passos que arranhavam o chão e gente ofegante atrás deles, e Lalau e Ernesto apareceram, carregando o malão de Harry e a gaiola de Edwiges, olhando para os lados, excitados.
— Por que é que você não nos disse quem era, hein, Neville? — disse Lalau sorrindo, radiante, para Harry, enquanto o cara de coruja do Ernesto espiava muito interessado por cima do ombro do ajudante.
— E uma sala reservada, por favor, Tom — pediu Fudge enfaticamente.
— Tchau — disse Harry, infeliz, a Lalau e Ernesto, enquanto Tom encaminhava Fudge, com um gesto, para um corredor que se abria atrás do bar.
— Tchau, Neville! — disse Lalau se retirando.
Fudge conduziu Harry por um corredor estreito, acompanhando a lanterna de Tom, até uma saleta. Tom estalou os dedos, um fogo se materializou na lareira, e, fazendo uma reverência, ele se retirou do aposento.
— Sente-se, Harry — começou Fudge, indicando a poltrona junto à lareira.
Harry obedeceu, sentindo arrepios percorrerem seus braços apesar da lareira acesa. Fudge despiu a capa de risca de giz, atirou-a a um lado, depois suspendeu as calças do seu terno verde-garrafa e se sentou em frente a Harry.
— Eu sou Cornélio Fudge, Harry.  Ministro da Magia.
Harry já sabia disso, é claro; vira Fudge antes, mas como estava usando a Capa da Invisibilidade do pai na ocasião, Fudge não devia saber disso.
Tom, o dono do bar-hospedaria reapareceu, com um avental por cima do camisão de dormir, trazendo uma bandeja com chá e pãezinhos de minuto. Pousou a bandeja entre Fudge e Harry e saiu, fechando a porta ao passar.
— Muito bem, Harry — disse Fudge, servindo o chá —, não me importo de confessar que você nos deixou preocupadíssimos. Fugir da casa dos seus tios desse jeito! Eu já tinha até começado a pensar... Mas você está são e salvo, e isto é o que importa.
Fudge passou manteiga em um pãozinho e empurrou o prato para Harry.
— Coma, Harry, sua cara é de quem não está se agüentando em pé. Agora... Você vai ficar satisfeito em saber que cuidamos do infeliz acidente com a Srta. Guida Dursley. Dois funcionários do Departamento de Reversão de Feitiços Acidentais foram mandados à Rua dos Alfeneiros há algumas horas. A Srta. Dursley foi esvaziada e sua memória alterada. Ela não lembra mais nada do acidente. E isto é tudo, não houve danos.
Fudge sorriu para Harry por cima da borda da xícara de chá, como faria um tio examinando um sobrinho querido. Harry, que não conseguia acreditar no que estava ouvindo, abriu a boca para falar, não conseguiu pensar em nada para dizer, e tornou a fechá-la.
— Ah, você está preocupado com a reação dos seus tios?  Bom, não vou negar que eles estão muitíssimo aborrecidos, Harry, mas se dispuseram a recebê-lo de volta no próximo verão, desde que você passe em Hogwarts as férias do Natal e da Páscoa.
A língua de Harry se soltou.
— Eu sempre passo em Hogwarts as férias do Natal e da Páscoa, e não quero nunca mais voltar à Rua dos Alfeneiros.
— Vamos, vamos, tenho certeza de que você vai pensar diferente depois que se acalmar — disse Fudge em tom preocupado. — Afinal, eles são sua família, e tenho certeza de que... Bem lá no fundo, vocês se querem bem.
Não ocorreu a Harry corrigir Fudge. Continuava esperando ouvir o que ia lhe acontecer em seguida.
— Então agora só falta — disse Fudge, passando manteiga em um segundo pãozinho — decidir onde é que você vai passar as duas últimas semanas de férias. Sugiro que alugue um quarto aqui no Caldeirão Furado e...
— Espera aí — falou Harry sem pensar. — E o meu castigo?
Fudge piscou os olhos.
— Castigo?
— Eu desobedeci à lei! — disse Harry. — O decreto que proíbe o uso da magia aos menores!
— Ah, meu caro menino, nós não vamos castigá-lo por uma coisinha à toa como essa! — exclamou Fudge, agitando o pãozinho com impaciência. — Foi um acidente! Nós não mandamos ninguém para Azkaban por fazer a tia virar um balão!
Mas isto não batia com os contatos que Harry tivera anteriormente com o Ministério da Magia.
— No ano passado, recebi uma notificação oficial só porque um elfo doméstico largou um pudim no chão da casa do meu tio! — disse ele a Fudge, franzindo a testa. — O Ministério da Magia disse que eu seria expulso de Hogwarts se acontecesse mais um caso de magia por lá!
A não ser que os olhos de Harry o enganassem, Fudge de repente parecia pouco à vontade.
— As circunstâncias mudam, Harry... Temos que levar em consideração... No clima atual... Com certeza você não quer ser expulso?
— Claro que não — disse Harry.
— Bom, então, por que toda essa agitação? — riu-se Fudge. — Agora coma mais um pãozinho, enquanto vou ver se tem um quarto para você.
Fudge saiu da saleta e Harry ficou observando-o se retirar.
Havia alguma coisa muito estranha acontecendo ali. Por que Fudge viera esperá-lo no Caldeirão Furado, se não ia castigá-lo pelo que fizera? E agora, pensando bem, com certeza não era normal um Ministro da Magia se envolver pessoalmente com casos de magia praticada por menores!
Fudge voltou acompanhado de Tom, o dono do bar-hospedaria.
— O quarto onze está livre, Harry — anunciou Fudge. — Acho que você vai ficar muito bem instalado nele. Mas tem uma coisa, e estou certo de que vai compreender... Não quero você passeando pela Londres dos trouxas, certo? Fique no Beco Diagonal. E tem que voltar todos os dias antes do escurecer. Tenho certeza de que vai compreender. Tom vai ficar de olho em você por mim.
— Tudo bem — disse Harry lentamente —, mas por quê...?
— Não queremos perdê-lo outra vez, não é mesmo? — disse Fudge com uma risada calorosa. — Não, não... É melhor sabermos onde é que você anda... Quero dizer...
Fudge pigarreou alto e apanhou a capa de risca de giz.
— Bom, vou andando, muito que fazer, sabe...
— Já teve alguma sorte com o Black? — perguntou Harry.
Os dedos de Fudge escorregaram no fecho de prata da capa.
— Que foi que disse? Ah, você ouviu falar... Bem, não, ainda não, mas é só uma questão de tempo. Os guardas de Azkaban até hoje não falharam... E nunca os vi tão furiosos. Fudge estremeceu ligeiramente. — Então, vou dizendo até logo.
Ele estendeu a mão, e Harry, ao apertá-la, teve uma idéia repentina.
— Ah... Ministro? Posso perguntar uma coisa?
— Com toda certeza — disse Fudge com um sorriso.
— Bom, em Hogwarts os alunos do terceiro ano podem visitar Hogsmeade, mas os meus tios não assinaram o formulário de autorização. O senhor acha que poderia?
Fudge pareceu constrangido.
— Ah — respondeu. — Não, não, sinto muito, Harry, mas não sou seu pai nem seu guardião...
— Mas o senhor é o Ministro da Magia — disse Harry, ansioso. — Se o senhor me desse autorização...
— Não, sinto muito, Harry, mas regras são regras — disse Fudge sem entusiasmo. — Talvez você possa visitar Hogsmeade no ano que vem. De fato, acho melhor você nem ir... É... Bem, vou andando. Aproveite a sua estada aqui, Harry.
E com um último sorriso e um aperto de mão; Fudge deixou a saleta. Tom, então, adiantou-se sorridente para Harry.
— Se o senhor quiser me acompanhar, Sr. Potter. Já levei suas coisas para cima...
Harry o seguiu por uma bela escada de madeira até uma porta com uma placa de latão de número onze, que Tom destrancou e abriu para ele.
Dentro havia uma cama muito confortável, uma mobília de carvalho muito lustroso, uma lareira em que o fogo crepirava alegremente e, encarrapitada no alto do armário...
— Edwiges! — exclamou Harry.
A coruja muito branca deu estalinhos com o bico e voou para o braço de Harry.
— Coruja muito inteligente a sua — disse Tom rindo. — Chegou uns cinco minutos depois do senhor. Se precisar de alguma coisa, Sr. Potter, por favor, é só pedir.
Ele fez outra reverência e saiu.
Harry ficou sentado na cama durante muito tempo, acariciando, distraído, as penas de Edwiges. O céu visto pela janela foi mudando rapidamente de um azul escuro e aveludado para um cinzento metálico e frio, depois, lentamente, para um rosa salpicado de ouro. Harry mal conseguia acreditar que abandonara a Rua dos Alfeneiros havia apenas algumas horas, que não fora expulso e que, agora, tinha diante de si duas semanas inteiras sem os Dursley.
— Foi uma noite muito estranha, Edwiges — bocejou ele.
E sem nem ao menos tirar os óculos, ele se largou em cima do travesseiro e adormeceu.










CAPÍTULO QUATRO
O Caldeirão Furado

Harry levou vários dias para se acostumar àquela estranha liberdade nova.
Nunca antes ele pudera se levantar quando quisesse nem comer o que lhe desse vontade. Podia até ir aonde desejasse, desde que não saísse do Beco Diagonal, e como essa longa rua de pedras era repleta das lojas de magia mais fascinantes do mundo, Harry não sentia desejo algum de romper a palavra dada a Fudge e voltar ao mundo dos trouxas.
Todas as manhãs ele tomava o café no Caldeirão Furado, onde gostava de observar os outros hóspedes: bruxas do interior, franzinas e engraçadas, que vinham passar o dia fazendo compras; bruxos de aspecto venerável discutindo o último artigo do Transfiguração Hoje; bruxos de ar amalucado; anões de voz roufenha; e, uma vez, alguém, que tinha a aparência suspeita de uma bruxa malvada, pedira um prato de fígado cru, o rosto semi-escondido por uma carapuça de lã.
Depois do café Harry saía para o pátio dos fundos, puxava a varinha, batia no terceiro tijolo a contar da esquerda, acima do latão de lixo, e se afastava enquanto se abria na parede o arco para o Beco Diagonal.
O garoto passou os dias longos e ensolarados explorando as lojas e comendo à sombra dos guarda-sóis de cores vivas à porta dos cafés, em que os seus companheiros de refeição mostravam uns aos outros as compras que tinham feito ("é um lunascópio, meu amigo — é o fim dessa história de mexer com tabelas lunares, me entende?") ou então discutiam o caso de Sirius Black ("pessoalmente, não vou deixar nenhum dos meus filhos sair sozinho até que ele esteja outra vez em Azkaban").
Harry não precisava mais fazer os deveres de casa debaixo das cobertas, à luz de uma lanterna; agora podia se sentar à luz do sol, na calçada da Sorveteria Florean Fortescue, terminar suas redações e até contar com a ajuda ocasional do próprio Florean, que, além de conhecer a fundo as queimas de bruxas em fogueiras, ainda oferecia a Harry, a cada meia hora, sundaes de graça.
Depois de ter reabastecido a carteira com galeões de ouro, sicles de prata e nuques de bronze retirados do seu cofre no Gringotes, Harry precisava se controlar muito para não gastar tudo de uma vez. Precisava se lembrar o tempo todo de que ainda lhe faltavam cinco anos de escola e que se sentiria mal em pedir dinheiro aos Dursley para comprar livros de bruxaria, e se segurou para não comprar um belo conjunto de bexigas de ouro maciço (um jogo de bruxos parecido com o de bolas de gude, em que as bolas espirram um líquido fedorento na cara do outro jogador quando ele perde um ponto). Harry se sentiu tentadíssimo, também, por um modelo perfeito de uma galáxia em movimento, dentro de um grande globo de vidro, e que teria significado que ele jamais precisaria assistir a uma aula de astronomia na vida. Mas a coisa que mais testou a força de vontade de Harry apareceu em sua loja preferida, a Artigos de Qualidade para Quadribol, uma semana depois do menino ter chegado ao Caldeirão Furado.
Curioso para saber a razão do ajuntamento diante da loja, Harry foi entrando com jeitinho e se espremendo entre as bruxas e bruxos até conseguir ver um tablado recentemente erguido, em que haviam montado a vassoura mais deslumbrante que ele já vira na vida.
— Acabou de ser lançada... Um protótipo — comentava um bruxo de queixo quadrado para o companheiro.
— É a vassoura mais rápida do mundo, não é, papai? — perguntou a vozinha aguda de um menino mais novo do que Harry, que se pendurava no braço do pai.
— O time internacional da Irlanda acabou de mandar um pedido para sete desses vassourões! — informou o proprietário da loja aos presentes. — E o time é o favorito para a Copa Mundial!
Uma bruxa corpulenta, na frente de Harry, se mexeu e o menino pôde ler o cartaz ao lado da vassoura:

FIREBOLT
 Fabricada com tecnologia de ponta, a Firebolt possui um cabo de freixo, superfino e aerodinâmico, acabamento com resistência de diamante e número de registro entalhado na madeira. As cerdas da cauda, em lascas de bétula selecionadas à mão, foram afiladas até atingirem a perfeição aerodinâmica, dotando a Firebolt de equilíbrio insuperável e precisão absoluta. A Firebolt atinge 240km/Hora em dez segundos e possui um freio encantado de irrefreável ação. Cotação a pedido.

Cotação a pedido... Harry nem queria pensar quanto ouro a Firebolt custaria. Jamais desejara tanto alguma coisa em toda a sua vida — mas jamais perdera uma partida de Quadribol com a sua Nimbus 2000, e qual era a vantagem de esvaziar seu cofre no Gringotes para comprar uma Firebolt, quando já possuía uma excelente vassoura?
Harry não pediu a cotação, mas voltou, quase todos os dias depois disso, só para admirar a Firebolt.
Havia, no entanto, coisas que Harry precisava comprar.
Ele foi à Botica para reabastecer seu estoque de ingredientes para poções e, como agora suas vestes escolares estavam vários centímetros mais curtas nos braços e nas pernas, ele visitou a Madame Malkin — Roupas para Todas as Ocasiões e comprou novos uniformes.
E, o mais importante, tinha que comprar os novos livros para o ano letivo, que incluiriam duas novas matérias: Trato das Criaturas Mágicas e Adivinhação.
Harry teve uma surpresa quando parou para olhar a vitrine da livraria. Em vez da decoração habitual com livros de feitiçaria gravados a ouro, do tamanho de lajotas, havia uma grande gaiola de ferro com uns cem exemplares de O Livro Monstruoso dos Monstros. Páginas arrancadas voavam para todo o lado, enquanto os livros se agrediam e se atracavam em furiosas lutas livres e mordidas agressivas.
Harry puxou a lista de livros do bolso e consultou-a pela primeira vez.
O Livro Monstruoso dos Monstros estava arrolado como o livro-texto para a matéria Trato das Criaturas Mágicas.
Agora ele compreendia por que Hagrid dissera que o livro futuramente seria útil. Sentiu alívio; andara imaginando se o amigo ia querer ajuda para cuidar de um novo bicho de estimação apavorante.
Quando Harry entrou na Floreios e Borrões, o gerente veio correndo ao seu encontro.
— Hogwarts? — perguntou o homem sem rodeios. — Veio comprar os seus livros?
— Vim. Preciso...
— Saia do caminho — disse o gerente empurrando Harry para o lado com impaciência. Em seguida, puxou um par de luvas muito grossas, apanhou um bengalão nodoso e rumou para a porta da gaiola em que estavam os exemplares de O Livro Monstruoso dos Monstros.
— Espere aí — disse Harry depressa —, já tenho um desses.
— Já? — Uma expressão de imenso alívio espalhou-se pelo rosto do gerente. — Graças a Deus. Já fui mordido cinco vezes esta manhã...
Um barulho alto de papel rasgado cortou o ar; dois livros monstruosos tinham agarrado um terceiro e começavam a destruí-lo.
— Parem com isso! Parem com isso! — exclamou o gerente, enfiando a bengala pelas grades e separando os livros à força. — Nunca mais vou ter essas coisas em estoque, nunca mais! Tem sido uma loucura! Pensei que já tínhamos visto o pior quando compramos duzentos exemplares de O livro Invisível da Invisibilidade, custaram uma fortuna e nunca achamos os livros... Bem... Tem mais alguma coisa em que possa lhe servir?
— Tem — disse Harry, consultando a lista de livros —, preciso de Esclarecendo o Futuro, de Cassandra Vablatsky.
— Ah, vai começar a estudar Adivinhação? — perguntou o gerente descalçando as luvas e conduzindo Harry ao fundo da loja, onde havia um canto reservado para esse assunto. Em uma mesinha estavam empilhados livros como Prevendo o imprevisível; Proteja-se Contra Choques e Bolas rachadas; Quando a Sorte se Transforma em Azar.
— Aqui está — disse o gerente, que subira em um escadote para apanhar um livro grosso, encadernado de preto. — Esclarecendo o Futuro. Um bom guia para todos os métodos básicos de adivinhação do futuro, quiromancia, bolas de cristal, tripas de aves...
Mas Harry não estava escutando. Seu olhar havia pousado em outro livro, que fazia parte de um arranjo em outra mesinha: Presságios de morte: O que fazer quando se sabe que vai acontecer o pior.
— Ah, eu não leria isso se fosse você — disse o gerente de passagem, procurando ver o que Harry estava olhando. — Você vai começar a ver presságios de morte por todo lado. Só isso já é suficiente para matar a pessoa de medo.
Mas Harry continuou a encarar a capa do livro; tinha um cão preto do tamanho de um urso, com olhos brilhantes, que lhe parecia estranhamente familiar...
O gerente pôs nas mãos de Harry o livro Esclarecendo o Futuro.
— Mais alguma coisa? — perguntou.
— Sim — respondeu Harry, desviando o olhar dos olhos do cão e consultando, meio atordoado, a lista. — Ah... Preciso de Transfiguração para o Curso Médio e de O Livro Padrão de Feitiços, 3º série.
Harry saiu da Floreios e Borrões dez minutos depois, com os livros debaixo do braço, e tomou o rumo do Caldeirão Furado sem reparar aonde ia, esbarrando em várias pessoas.
Subiu as escadas fazendo barulho, entrou em seu quarto e despejou os livros em cima da cama. Alguém estivera ali limpando o quarto; as janelas abertas deixavam entrar o sol. Harry ouviu os ônibus passarem lá embaixo, na rua dos trouxas que ele não via, e o som dos transeuntes invisíveis no Beco Diagonal. Viu de relance o seu reflexo no espelho acima da pia.
— Não pode ter sido um presságio de morte — disse à sua imagem em tom de desafio. — Eu estava entrando em pânico quando vi aquela coisa na Rua Magnólia... Provavelmente era apenas um cão sem dono...
Ele ergueu a mão automaticamente e tentou achatar os cabelos.
— Você está empenhado em uma batalha perdida, meu querido — disse sua imagem com a voz rouca.
À medida que os dias se passavam, Harry começou a procurar por todo lugar aonde ia um sinal de Rony ou de Hermione. Muitos alunos de Hogwarts vinham ao Beco Diagonal agora, com a proximidade do ano letivo. Harry encontrou Simas Finnigan e Dino Thomas, companheiros da Grifinória, na Artigos de Qualidade para Quadribol, onde eles também haviam parado para namorar a Firebolt; encontrou também o verdadeiro Neville Longbottom, um menino de rosto redondo e muito desmemoriado, à porta da Floreios e Borrões. Harry não parou para conversar; Neville parecia ter extraviado a lista de livros e estava levando um carão da avó, uma senhora de aparência colossal.
Harry desejou que a senhora jamais descobrisse que ele fingira ser Neville quando estava fugindo do Ministério da Magia.
Harry acordou no último dia de férias, com o pensamento de que finalmente iria se encontrar com Rony e Hermione no dia seguinte, no Expresso de Hogwarts. Levantou-se, se vestiu e saiu para dar uma última espiada na Firebolt, e estava pensando onde iria almoçar, quando alguém gritou seu nome e ele se virou.
— Harry! HARRY!
E ali estavam eles, os dois, sentados na calçada da Sorveteria Florean Fortescue. Rony parecendo incrivelmente sardento, Hermione muito bronzeada, os dois acenando para ele freneticamente.
— Finalmente! — exclamou Rony, rindo-se enquanto o amigo se sentava. — Fomos ao Caldeirão Furado, mas disseram que você tinha saído, fomos à Floreios e Borrões, à Madame Malkin e...
— Comprei todo o meu material escolar na semana passada — explicou Harry. — E como é que vocês sabiam que eu estava hospedado no Caldeirão Furado?
— Papai — disse Rony com simplicidade.
O Sr Weasley, que trabalhava no Ministério da Magia, é claro que soubera da história toda que acontecera com a tia Guida.
— É verdade que você transformou a sua tia em um balão? — perguntou Hermione num tom muito sério.
— Eu não tive intenção — respondeu Harry, enquanto Rony rolava de rir.— Simplesmente... Perdi o controle.
— Não tem a menor graça, Rony. — disse Hermione rispidamente. — Francamente, fico admirada que Harry não tenha sido expulso.
— Eu também — admitiu Harry. — E nem expulso, pensei que ia ser preso. — E olhou para Rony. — Seu pai não sabe por que Fudge não me castigou, sabe?
— Provavelmente porque era você, não é? — Rony sacudiu os ombros ainda rindo. — O famoso Harry Potter e tudo o mais. Eu nem gostaria de ver o que o Ministério faria comigo se eu transformasse minha tia em balão. Mas não se esqueça, eles teriam que me desenterrar primeiro, porque mamãe já teria me matado antes.  Em todo o caso, pode perguntar ao papai hoje à noite. Estamos hospedados no Caldeirão Furado, também! Assim você pode ir para a estação de King"s Cross conosco amanhã!  Hermione também está lá!
A garota confirmou com a cabeça, radiante.
-Mamãe e papai me deixaram lá hoje de manhã com todas as minhas coisas de Hogwarts.
— Fantástico! — exclamou Harry feliz. — Então você já comprou os livros e todo o resto?
— Olhe só para isso — disse Rony, tirando uma caixa comprida e fina de uma sacola e abrindo-a. — Uma varinha nova em folha. Trinta e cinco centímetros e meio, salgueiro, contendo um fio de cauda de unicórnio. E compramos todos os nossos livros... — Ele apontou para uma grande saca embaixo da cadeira. — E aqueles livros monstruosos, hein? O balconista quase chorou quando dissemos que queríamos dois.
— E isso tudo o que é, Mione? — perguntou Harry, apontando não para uma, mas para três sacas estufadas na cadeira junto à amiga.
— Bem, é que vou fazer mais matérias novas do que vocês, não é? Comprei os livros de Aritmancia, de Trato das Criaturas Mágicas, de Adivinhação, de Estudo das Runas Antigas, de Estudo dos Trouxas...
— Para que é que você vai fazer Estudo dos Trouxas? — perguntou Rony, revirando os olhos para Harry. — Você nasceu trouxa! Sua mãe e seu pai são trouxas! Você já sabe tudo sobre trouxas!
— Mas vai ser fascinante estudar os trouxas do ponto de vista dos bruxos — disse Hermione muito séria.
— Você está planejando comer ou dormir este ano, Mione? — perguntou Harry, enquanto Rony dava risadinhas abafadas. A garota não ligou para os dois.
— Ainda tenho dez galeões — disse ela examinando a bolsa.
— É meu aniversário em setembro, e mamãe e papai me deram um dinheiro para eu comprar um presente de aniversário antecipado.
— Que tal um bom livro? — perguntou Rony inocentemente.
— Não, acho que não — disse Hermione controlando-se. — O que eu quero mesmo é uma coruja. Quero dizer, Harry tem a Edwiges e você tem o Errol...
— Não tenho, não — respondeu Rony. — Errol é uma coruja de família. Meu mesmo só tenho o Perebas. — E tirou o rato de estimação do bolso. — Quero mandar examinar ele — acrescentou, pousando Perebas na mesa a que estavam sentados. — Acho que o Egito não fez bem a ele.
Perebas estava mais magro do que de costume, e seus bigodes pareciam decididamente caídos.
— Tem uma loja para criaturas mágicas ali. — disse Harry, que agora conhecia o Beco Diagonal como a palma da mão. — Você podia ver se eles têm algum produto para o Perebas, e Mione podia comprar a coruja.
Assim dizendo, eles pagaram os sorvetes e atravessaram a rua para ir a Animais Mágicos.
Não havia muito espaço dentro da loja. Cada centímetro das paredes estava escondido por gaiolas. Era malcheirosa e barulhenta porque os ocupantes das gaiolas guinchavam, gritavam, palravam, sibilavam. A bruxa ao balcão estava ocupada ensinando a um bruxo como cuidar de um tritão com dois rabos, por isso Harry, Rony e Hermione aguardaram, examinando as gaiolas.
Havia dois enormes sapos roxos que engoliam, com um ruído aquoso, um banquete de moscas-varejeiras mortas. Uma tartaruga gigante, o casco incrustado de pedras preciosas, cintilava junto à janela. Lesmas venenosas, cor de laranja, subiam lentamente pela parede do seu aquário, e um coelho branco e gordo não parava de se transformar em cartola de cetim e novamente em coelho, com um grande estalo. Havia ainda gatos de todas as cores, uma gaiola barulhenta de corvos, uma cesta de engraçadas bolas de pêlo creme que zuniam alto, e, em cima do balcão, um galoião de ratos negros e luzidios que brincavam de dar saltos se apoiando nos longos rabos lisos.
O bruxo do tritão de dois rabos saiu e Rony se aproximou do balcão.
— É o meu rato — disse à bruxa. — Ele tem andado meio indisposto desde que voltamos do Egito.
— Põe ele aqui no balcão — pediu a bruxa, tirando do bolso um par de pesados óculos de armação preta.
Rony catou Perebas do bolso interno e depositou-o ao lado da gaiola dos seus companheiros de espécie, que pararam os saltitos e correram para as grades para ver melhor.
Como todo o resto que Rony possuía, Perebas, o rato, era de segunda mão (pertencera ao irmão de Rony, Percy) e era um pouco maltratado. Ao lado dos reluzentes ratos na gaiola, ele parecia particularmente lastimável.
— Hum — fez a bruxa, levantando Perebas. — Que idade tem esse rato?
— Não sei — respondeu Rony. — Ele é bem velho. Foi do meu irmão.
— Que poderes ele tem? — perguntou a bruxa, examinando Perebas atentamente.
— Ah... — A verdade é que Perebas jamais revelara o menor vestígio de poderes interessantes, o olhar da bruxa se deslocou da orelha esquerda e esfiapada de Perebas para a pata dianteira, que tinha um dedinho a menos, e deu um muxoxo alto.
— Este aqui já sofreu muito na vida — disse ela.
— Já estava assim quando Percy me deu — respondeu Rony se defendendo.
— Não se pode esperar que um rato comum ou rato de jardim como esse viva mais do que uns três anos — disse a bruxa. — Agora se o senhor estiver procurando alguma coisa mais resistente, talvez goste de um desses...
Ela indicou os ratos negros, que imediatamente recomeçaram a saltar. Rony resmungou:
— Exibidos.
— Bem, se o senhor não quiser outro, pode experimentar um tônico para ratos — disse a bruxa, levando a mão embaixo do balcão e apanhando um frasquinho vermelho.
— Está bem. Quanto...
Rony se encolheu quando uma coisa enorme e laranja saiu voando do teto da gaiola mais alta e aterrissou na cabeça dele, e em seguida avançou e bufou com violência para Perebas.
— NÃO BICHENTO, NÃO! — gritou a bruxa, mas Perebas escapuliu entre as suas mãos como uma barra de sabão molhado, aterrissou de pernas abertas no chão e disparou para a porta.
— Perebas! — berrou Rony, correndo atrás do rato; Harry seguiu-o.
Os dois levaram quase dez minutos para recuperar Perebas, que se refugiara embaixo de um latão de lixo à porta da Artigos de Qualidade para Quadribol. Rony tornou a enfiar o rato trêmulo no bolso e se endireitou, massageando os cabelos.
— Que foi aquilo?
— Ou um gato muito grande ou um tigre muito pequeno — disse Harry.
— Aonde foi a Mione?
— Provavelmente comprando a coruja.
Eles refizeram o caminho pela rua apinhada de gente até a Animais Mágicos. Quando iam chegando, viram Hermione sair, mas ela não trazia coruja alguma. Seus braços envolviam com firmeza um enorme gato laranja.
— Você comprou aquele monstro? — perguntou Rony, boquiaberto.
— Ele é lindo, não é? — disse Hermione radiante.
Era uma questão de opinião, pensou Harry. A pelagem do gato era espessa e fofa, mas ele decididamente tinha pernas arqueadas e uma cara de poucos amigos, estranhamente amassada, como se tivesse batido de frente numa parede de tijolos. Agora que Perebas não estava à vista, porém, o gato ronronava satisfeito nos braços de Hermione.
— Mione, essa coisa quase me escalpelou! — reclamou Rony.
— Foi sem querer, não foi, Bichento? — perguntou Hermione.
— E o que vai ser do Perebas? — disse o menino apontando para o calombo no bolso do peito. — Ele precisa de descanso e sossego! Como é que vai ter isso com esse bicho por perto?
— Isto me lembra que você esqueceu o seu tônico para ratos — disse Hermione, batendo o frasco vermelho na mão de Rony. — E pare de se preocupar, Bichento vai dormir no meu dormitório e Perebas no seu, qual é o problema? Coitado do Bichento, a bruxa disse que ele está na loja há séculos; ninguém quis o gato.
— Por que será? — perguntou Rony com sarcasmo, a caminho do Caldeirão Furado.
Encontraram o Sr. Weasley sentado no bar, lendo o Profeta Diário.
— Harry! — exclamou ele, erguendo a cabeça e sorrindo. — Como vai?
— Bem, obrigado — respondeu o garoto enquanto ele, Rony e Hermione se reuniam ao Sr. Weasley com todas as compras que tinham feito.
O Sr. Weasley pôs o jornal de lado e Harry viu a foto de Sirius Black, agora muito sua conhecida, encarando-o.
— Então eles ainda não pegaram o homem? — perguntou.
— Não — respondeu o Sr. Weasley, parecendo muito sério. — O Ministério nos tirou do nosso trabalho normal para tentar encontrá-lo, mas até agora não tivemos sorte.
— Nós receberíamos uma recompensa se o apanhássemos? — perguntou Rony. — Seria bom ganhar mais um dinheirinho...
— Não seja ridículo, Rony — disse o Sr. Weasley, que a um olhar mais atento parecia muito tenso. — Black não vai ser apanhado por um bruxo de treze anos. Os guardas de Azkaban é que vão levá-lo de volta, escreva o que digo.
Naquele momento a Sra. Weasley entrou no bar, carregada de sacas e acompanhada pelos gêmeos, Fred e Jorge, que iam começar o quinto ano em Hogwarts; Percy, o recém eleito monitor-chefe; e Gina, a caçula e única menina da família.
Gina, que sempre teve um xodó por Harry, pareceu ainda mais constrangida do que de costume, talvez porque o menino lhe salvara a vida no ano anterior, em Hogwarts. Ela ficou muito corada e murmurou um "olá", sem olhar para Harry. Percy, porém, estendeu a mão solenemente como se ele e o colega jamais tivessem se encontrado e disse:
— Harry. Que prazer em vê-lo.
— Olá, Percy — respondeu Harry, tentando conter o riso.
— Você está bem, espero? — continuou Percy pomposo, durante o aperto de mãos. Parecia até que estava sendo apresentado ao prefeito.
— Muito bem, obrigado...
— Harry! — exclamou Fred, empurrando Percy com os cotovelos e fazendo uma grande reverência. — É simplesmente esplêndido encontrá-lo, meu caro...
— Maravilhoso — disse Jorge, empurrando Fred para o lado e, por sua vez, apertando a mão de Harry. — Absolutamente maravilhoso.
— Agora chega — interrompeu-os a Sra. Weasley.
— Mãe! — exclamou Fred como se tivesse acabado de avistá-la, apertando-lhe a mão também: — É realmente formidável encontrá-la...
— Eu já disse que chega — disse a Sra. Weasley, descansando as compras em uma cadeira vazia. — Olá, Harry, querido. Suponho que tenha sabido das nossas eletrizantes novidades? — Ela apontou para o distintivo de prata novinho em folha no peito de Percy. — É o segundo monitor-chefe na família! -exclamou, inchada de orgulho.
— E o último — resmungou Fred para si mesmo.
— Não duvido nada — disse a Sra. Weasley, franzindo a testa de repente. — Estou reparando que até hoje vocês dois não foram promovidos a monitores.
— E para que é que nós queremos ser monitores? — perguntou Jorge, parecendo se indignar até com a própria idéia. — Isso tiraria toda a graça da vida.
Gina abafou o riso.
— Vocês deviam dar um exemplo melhor para sua irmã! — ralhou a Sra. Weasley.
— Gina tem outros irmãos para lhe dar exemplo, mãe — disse Percy com altivez. — Vou mudar de roupa para o jantar...
Ele desapareceu e Jorge deixou escapar um suspiro.
— Bem que a gente tentou trancar ele numa pirâmide — disse a Harry. — Mas a mamãe flagrou a gente no ato.
O jantar àquela noite foi muito agradável. Tom, o dono do bar-hospedaria, juntou três mesas na sala, e os sete Weasley, Harry e Hermione traçaram cinco pratos maravilhosos.
— Como vamos para a estação de King"s Cross amanhã, papai? — perguntou Fred quando enfiavam a colher em um suntuoso pudim de chocolate.
— O Ministério vai mandar dois carros — disse o Sr. Weasley. Todos ergueram os olhos para ele.
— Por quê? — perguntou Percy, curioso.
— Por sua causa, Percy — disse Jorge, sério. — E vão botar bandeirinhas em cima dos capôs, com as letras TC...
— ... Significando Tremendo Chefão — completou Fred.
Todos, à exceção de Percy e da Sra. Weasley, deram risadinhas baixando o rosto para os pudins.
— Por que é que o Ministério vai mandar carros, pai? — Percy repetiu a pergunta, num tom muito digno.
— Bem, como não temos mais nenhum — disse o Sr. Weasley —, e como trabalho lá, eles vão me fazer esse favor...
Sua voz era displicente, mas Harry não pôde deixar de notar que as orelhas do Sr. Weasley tinham ficado vermelhas, iguais às de Rony quando o pressionavam.
— E ainda bem — disse a Sra. Weasley, animada. — Vocês fazem idéia de quanta bagagem têm juntos? Que bela figura vocês fariam no metrô dos trouxas... Todo mundo já está de mala pronta ou não?
— Rony ainda não guardou todas as coisas novas no malão — disse Percy, com voz de sofredor. — Largou tudo em cima da minha cama.
— É melhor você subir e guardar tudo direito, Rony porque não vamos ter tempo amanhã cedo — disse a Sra. Weasley alto, para o filho sentado mais longe. Rony amarrou a cara para Percy.
Depois do jantar todos se sentiram satisfeitos e cheios de sono.
Um a um foram subindo para os quartos para verificar as coisas para o dia seguinte. Rony e Percy estavam hospedados no quarto ao lado de Harry. Ele acabara de fechar e trancar seu malão quando ouviu vozes zangadas através da parede, e foi ver o que estava acontecendo.
A porta do quarto doze estava entreaberta e Percy gritava:
— Estava aqui, em cima da mesa-de-cabeceira, eu o tirei para polir...
— Eu não peguei, está bem? — berrava Rony em resposta.
— Que está acontecendo? — perguntou Harry.
— Meu distintivo de monitor-chefe sumiu — respondeu Percy virando-se irritado para Harry.
— E o tônico para ratos de Perebas também — falou Rony, jogando as coisas para fora do malão para procurá-lo. — Acho que deixei o frasco no bar...
— Você não vai a lugar nenhum até achar o meu distintivo — berrou Percy.
— Eu vou buscar o remédio do Perebas. Já fiz a mala — disse Harry a Rony, e desceu.
Harry estava no corredor a meio caminho do bar, agora mal iluminado, quando ouviu outras duas vozes zangadas que vinham da sala. Um segundo depois, ele as reconheceu como sendo as do Sr. e da Sra. Weasley. Hesitou, sem querer que eles soubessem que os ouvira discutindo, mas a menção do seu nome o fez parar, e, num segundo momento, se aproximar da porta da sala.
— ... Não faz sentido não contar a ele — o Sr. Weasley dizia, veemente. — O garoto tem o direito de saber. Tentei dizer isso a Fudge, mas ele insiste em tratar Harry como criança. O menino já tem treze anos e...
— Arthur, a verdade iria aterrorizar Harry! — disse a Sra. Weasley com a voz esganiçada. — Você quer mesmo mandar Harry de volta à escola com essa ameaça pairando sobre a cabeça dele? Pelo amor de Deus, ele está feliz sem saber de nada!
— Não quero fazê-lo infeliz, quero deixá-lo de sobreaviso! — retrucou o Sr. Weasley. — Você sabe como são o Harry e o Rony andando por aí sozinhos, já foram parar na Floresta Proibida duas vezes! Mas Harry não pode fazer isto este ano! Quando penso o que poderia ter acontecido a ele na noite em que fugiu de casa! Se o Nôitibus não o tivesse apanhado, aposto que ele estaria morto antes do Ministério encontrá-lo.
— Mas ele não está morto, está são e salvo, então qual é o sentido...
— Molly, dizem que Sirius Black é doido, e talvez seja, mas ele foi suficientemente esperto para fugir de Azkaban, e isto é uma coisa que todos supõem que seja impossível. Já faz três semanas e nem sinal dele, e não dou a mínima para o que Fudge vive declarando ao Profeta Diário, estamos tão próximos de apanhar Black quanto estamos de inventar uma varinha que funcione sozinha. A única coisa de que temos certeza é que Black está atrás de...
— Mas Harry está perfeitamente seguro em Hogwarts.
— Achávamos que Azkaban era perfeitamente segura. Se Black foi capaz de sair de Azkaban, então é capaz de entrar em Hogwarts.
— Mas ninguém tem realmente certeza de que Black esteja atrás de Harry...
Ouviu-se um baque seco na mesa e Harry não teve dúvida de que o Sr. Weasley tinha dado um soco na mesa.
— Molly, quantas vezes preciso lhe dizer a mesma coisa? A imprensa não noticiou porque Fudge não queria que houvesse escândalo, mas Fudge foi até Azkaban na noite em que Black fugiu. Os guardas lhe disseram que Black andava falando durante o sono havia algum tempo. Sempre as mesmas palavras: "Ele está em Hogwarts... Ele está em Hogwarts." Black é desequilibrado, Molly, e quer ver Harry morto. Se você quer saber, ele acha que se matar Harry vai trazer Você-Sabe-Quem de volta ao poder. Black perdeu tudo naquela noite em que Harry deteve Você-Sabe-Quem, e passou doze anos sozinho em Azkaban pensando nisso..
Fez-se silêncio. Harry chegou mais perto da porta, desesperado para ouvir mais.
— Bem, Arthur, você deve fazer o que acha que é certo. Mas está se esquecendo de Alvo Dumbledore. Acho que nada poderá fazer mal a Harry em Hogwarts enquanto Dumbledore for o diretor. Suponho que ele esteja sabendo de tudo isso.
— Claro que sabe. Tivemos que lhe perguntar se se importava que os guardas de Azkaban tomassem posição junto às entradas da escola. Ele não ficou muito satisfeito, mas concordou.
— Não ficou satisfeito? Por que não ficaria satisfeito, se os guardas estão lá para agarrar o Black?
— Dumbledore não gosta dos guardas de Azkaban — disse o Sr. Weasley deprimido. — Nem eu, se você quer saber... Mas estar lidando com um bruxo como Black, por vezes a gente tem que se aliar com gente que se prefere evitar. Se eles salvarem Harry... Então nunca mais direi uma palavra contra eles — disse o Sr. Weasley cansado. — Já está tarde, Molly, é melhor subirmos...
Harry ouviu as cadeiras serem mexidas. O mais silenciosamente que pôde, correu pelo corredor até o bar e desapareceu de vista. A porta da sala se abriu, e alguns segundos depois o ruído de passos lhe informou que o Sr. e a Sra. Weasley estavam subindo as escadas.
O frasco de tônico para ratos estava debaixo da mesa à qual o grupo se sentara mais cedo. Harry esperou até a porta do quarto do Sr. e da Sra. Weasley se fechar, depois tornou a subir levando o vidro.
Encontrou Fred e Jorge agachados nas sombras do patamar, rindo a mais não poder de ouvir Percy desmontar o quarto que ocupava com Rony, à procura do distintivo.
— Está conosco — sussurrou Fred a Harry — Andamos dando uma melhorada nele.
No distintivo agora se lia Tremendo Chefão.
Harry forçou uma risada, foi entregar a Rony o frasco de tônico para ratos, depois se trancou em seu quarto e foi se deitar.
Então Sirius Black estava atrás dele. Isto explicava tudo. Fudge ter sido indulgente porque ficara aliviadíssimo de encontrá-lo vivo.
Fizera Harry prometer não sair do Beco Diagonal onde havia um grande número de bruxos para vigiá-lo. E ia mandar dois carros do Ministério para levá-los à estação no dia seguinte, de modo que os Weasley pudessem cuidar de Harry até ele embarcar no trem.
Harry ficou deitado ouvindo a gritaria abafada no quarto vizinho e imaginando por que não se sentia mais apavorado. Sirius Black matara treze pessoas com uma maldição;
O Sr. e a Sra. Weasley obviamente pensavam que Harry entraria em pânico se soubesse da verdade. Mas, por acaso, Harry concordava inteiramente com o Sr, Weasley que o lugar mais seguro da terra era aquele em que Alvo Dumbledore acontecesse de estar. As pessoas não diziam sempre que Dumbledore era a única pessoa de quem Lord Voldemort já tivera medo? Com certeza Black, sendo o braço direito de Voldemort, não teria também igual medo do diretor?
E agora havia os guardas de Azkaban de quem todos não paravam de falar. Eles pareciam deixar as pessoas paralisadas de pavor e, se estavam de prontidão a toda volta da escola, as chances de Black entrar lá pareciam muito remotas.
Não, considerando tudo, a coisa que mais incomodava Harry era o fato de que suas chances de visitar Hogsmeade agora eram zero.
Ninguém iria querer que Harry deixasse a segurança do castelo até Black ser apanhado; aliás, Harry suspeitava que todos os seus movimentos seriam atentamente vigiados até que o perigo passasse.
Olhou zangado para o teto escuro. Será que achavam que ele não sabia se cuidar? Já escapara de Lord Voldermort três vezes; não era um completo inútil...
Sem que ele quisesse, a imagem do animal nas sombras da Rua Magnólia perpassou sua mente. Que é que se faz quando se sabe que o pior está por vir...
— Eu não vou ser morto — disse Harry em voz alta.
— É assim que se fala, querido — disse seu espelho, cheio de sono.







CAPÍTULO CINCO
O Dementador

No dia seguinte, Tom acordou Harry, com o seu habitual sorriso banguela e uma xícara de chá. O garoto se vestiu, e tentava convencer uma mal disposta Edwiges a entrar na gaiola quando Rony irrompeu no quarto, vestindo um suéter pela cabeça e parecendo irritado.
— Quanto mais cedo embarcarmos no trem melhor — disse. — Pelo menos posso fugir do Percy em Hogwarts. Agora ele está me acusando de pingar chá na foto da Penelope Clearwater. Sabe — disse Rony com uma careta —, aquela namoradinha dele. Ela escondeu a cara na moldura porque ficou com o nariz todo borrado...
— Tenho uma coisa para lhe dizer — começou Harry, mas foram interrompidos por Fred e Jorge, que meteram a cara no quarto para cumprimentar Rony por ter enfurecido Percy novamente.
Eles desceram para tomar café, e encontraram o Sr. Weasley lendo a primeira página do Profeta Diário com a testa franzida e a Sra. Weasley descrevendo para Hermione e Gina a poção de amor que preparara quando era moça. As três não paravam de rir.
— Que é que você ia me dizer? — perguntou Rony a Harry quando se sentaram.
— Depois — murmurou Harry na hora em que Percy irrompeu pela sala.
Harry não teve mais oportunidade de falar com Rony nem com Hermione no caos da partida ficaram demasiado ocupados, descendo as malas pela estreita escada do Caldeirão Furado e empilhando-as perto da porta, com Edwiges e Hermes, a coruja de Percy, encarapitadas no alto das gaiolas. Uma cestinha de vime fora deixada ao lado da pilha de malas, de onde alguma coisa bufava ruidosamente.
— Tudo bem, Bichento — tranqüilizou-o Hermione pelas frestas do vime. — Vou soltar você no trem.
— Não vai, não — retorquiu Rony. — O que vai ser do coitado do Perebas, hein?
O menino apontou para o próprio peito, onde um grande calombo indicava que Perebas estava enroscado no bolso interno da veste.
O Sr. Weasley, que estivera à porta aguardando os carros do Ministério, meteu a cabeça na entrada do Caldeirão.
— Eles chegaram — anunciou. — Harry, vamos.
O Sr. Weasley cruzou atrás de Harry o trechinho de calçada entre a hospedaria e o primeiro dos dois carros verde-escuros e antiquados, cada um dirigido por um bruxo de aparência furtiva, vestido de veludo verde-vivo.
— Para dentro, Harry — disse o Sr. Weasley, verificando um lado e outro da rua movimentada.
Harry entrou no banco traseiro do carro e se reuniram a ele Hermione, Rony e, para desgosto de Rony, Percy.
A viagem até King"s Cross foi muito tranqüila se comparada à de Harry no Nôitibus Andante. Os carros do Ministério da Magia pareciam quase comuns, embora Harry reparasse que eram capazes de deslizar por espaços apertados que o novo carro da companhia do tio Válter certamente não teria podido. O grupo chegou à estação de King"s Cross com vinte minutos de antecedência; os motoristas do Ministério apanharam carrinhos, descarregaram a bagagem, cumprimentaram o Sr. Weasley, levando a mão ao chapéu, e partiram, conseguindo, sabe-se lá como, tomar a dianteira de uma fila de carros parados no sinal luminoso.
O Sr. Weasley manteve-se colado no cotovelo de Harry todo o percurso até a estação.
— Certo então — disse ele olhando para todos os lados. — Vamos fazer isso aos pares, porque somos muitos. Eu passo primeiro com Harry.
O Sr. Weasley dirigiu-se à barreira entre as plataformas nove e dez, empurrando o carrinho de malas e aparentemente muito interessado no Interurbano que acabara de parar na plataforma nove. Com um olhar expressivo para Harry, ele se encostou displicentemente na barreira. O garoto imitou-o.
Num segundo, os dois atravessaram de lado a sólida parede de metal e saíram na plataforma 9 e ½, quando ergueram a cabeça, viram o Expresso de Hogwarts, um trem vermelho a vapor, que soltava baforadas de fumaça na plataforma apinhada de bruxas e bruxos que foram levar os filhos ao embarque.
Percy e Gina apareceram de repente atrás de Harry. Ofegavam e pelo jeito tinham corrido para atravessar a barreira.
— Ah, olha lá a Penelope! — falou Percy, alisando os cabelos e corando de novo. O olhar de Gina surpreendeu o de Harry, e os dois se viraram para esconder o riso, enquanto Percy ia ao encontro da menina de cabelos longos e cacheados, com o peito estufado para que ela não deixasse de reparar no seu distintivo reluzente.
Depois que os outros Weasley e Hermione se reuniram a eles, Harry e o Sr. Weasley saíram andando até os últimos carros do trem, passando por cabines cheias, até uma que lhes pareceu bem vazia. Embarcaram as malas na cabine, guardaram Edwiges e Bichento no bagageiro, depois tornaram a sair para que todos pudessem se despedir do Sr. e da Sra. Weasley.
A Sra. Weasley beijou os filhos, depois Hermione e, por fim, Harry. O menino ficou encabulado, mas gostou bastante quando ela lhe deu mais um abraço.
— Você vai se cuidar, não vai, Harry? — recomendou a senhora, se endireitando, com um brilho estranho nos olhos. Depois, abriu uma enorme bolsa e disse:
— Fiz sanduíches para todos... Tome aqui, Rony... Não, não são de carne enlatada... Fred? Onde se meteu o Fred? Tome aqui, querido...
— Harry — disse o Sr. Weasley discretamente —, venha até aqui um instante.
Indicou com a cabeça uma coluna, e Harry acompanhou-o até detrás dela, deixando os outros amontoados em volta da Sra. Weasley.
— Há uma coisa que preciso dizer antes de você embarcar... — começou o Sr. Weasley com a voz tensa.
— Tudo bem, Sr. Weasley. Eu já sei.
— Você sabe? Como poderia saber?
— Eu... Ah... Ouvi o senhor e a Sra. Weasley conversando ontem à noite. Não pude deixar de ouvir — Harry acrescentou rapidamente. — Me desculpe...
— Não era assim que eu queria que você tivesse sabido — disse o  Sr. Weasley, parecendo aflito.
— Não... Sinceramente, tudo bem. Assim o senhor não faltou com a palavra que deu ao Fudge e eu sei o que está acontecendo.
— Harry, você deve estar apavorado...
— Não estou — disse Harry honestamente. — Verdade — acrescentou, porque o Sr. Weasley fazia cara de descrença. — Não estou tentando bancar o herói, mas, sério, o Sirius Black não pode ser pior do que o Voldemort, pode?
O Sr. Weasley se perturbou ao som daquele nome, mas conseguiu disfarçar.
— Harry, eu sabia que você tinha mais fibra do que Fudge parece imaginar, e é óbvio que fico feliz em constatar que você não se sente apavorado, mas...
— Arthur! — chamou a Sra. Weasley, que agora tocava os garotos para embarcar no trem. — Arthur, que é que você está fazendo? O trem já vai sair!
— Ele já está indo, Molly! — respondeu o Sr. Weasley, mas voltou sua atenção para Harry e continuou a falar em tom mais baixo e mais apressado.
— Ouça, eu quero que você me dê sua palavra...
— ... De que serei um bom menino e não sairei do castelo? — disse Harry com tristeza.
— Não é bem isso — disse o Sr. Weasley, que parecia mais sério do que Harry jamais o vira. — Harry, jure que você não vai sair procurando o Black.
Harry arregalou os olhos.
— Quê?
Ouviu-se um apito forte. Guardas caminhavam ao lado do trem, batendo as portas para fechá-las.
— Prometa, Harry — disse o Sr. Weasley, falando ainda mais depressa —, que aconteça o que acontecer...
— Por que eu iria sair procurando alguém que eu sei que quer me matar? — perguntou Harry sem entender.
— Prometa que ouça o que ouvir...
— Arthur, vamos rápido! — chamou a Sra. Weasley.
O vapor saia da chaminé da locomotiva em gordas nuvens; o trem começara a se mexer. Harry correu para a porta da cabine e Rony abriu-a e se afastou para o amigo embarcar. Os dois se debruçaram na janela e acenaram para o Sr. e a Sra. Weasley até o trem fazer uma curva e o casal desaparecer de vista.
— Preciso falar com vocês em particular — murmurou Harry para Rony e Hermione quando o trem ganhou velocidade.
— Vai saindo, Gina — disse Rony.
— Ah, quanta gentileza — respondeu a garota aborrecida, mas se afastando sem pressa.
Harry, Rony e Hermione saíram pelo corredor à procura de uma cabine vazia, mas todas estavam cheias exceto uma bem no finalzinho do trem.
Esta tinha apenas um ocupante, um homem que estava ferrado no sono ao lado da janela. Os garotos pararam à porta. O Expresso de Hogwarts era em geral reservado aos estudantes e, até então, eles nunca tinham visto um adulto a bordo, exceto a bruxa que passava com a carrocinha de comida.
O estranho usava um conjunto de vestes de bruxo extremamente surradas e cerzidas em vários lugares. Parecia doente e cansado. Embora fosse jovem, seus cabelos castanho-claros estavam salpicados de fios brancos.
— Quem vocês acham que ele é? — sibilou Rony quando se sentaram e fecharam a porta, ocupando os assentos mais afastados da janela.
— O Profº. R. J. Lupin — cochichou Hermione na mesma hora.
— Como é que você sabe?
— Está na maleta — respondeu a menina, apontando para o bagageiro acima da cabeça do homem, onde havia uma maleta gasta e amarrada com vários fios de barbante caprichosamente trançados. O nome Profº. R. J. Lupin estava estampado a um canto em letras descascadas.
— Que será que ele ensina? — perguntou Rony, amarrando a cara para o perfil pálido do homem.
— É óbvio — sussurrou Hermione. — Só existe uma vaga, não é? Defesa contra as Artes das Trevas.
Harry, Rony e Hermione já tinham tido dois professores nessa matéria, e ambos só duraram um ano letivo. Corriam boatos de que o cargo estava enfeitiçado.
— Bem, espero que ele esteja à altura — disse Rony em tom de dúvida. — Dá a impressão de que um bom feitiço acabaria com ele de vez, não acham? Em todo o caso... — Rony virou-se para Harry.
— Que é que você ia nos dizer?
Harry contou toda a conversa entre o Sr. e a Sra. Weasley e o alerta que aquele senhor acabara de lhe dar. Quando terminou, Rony olhava abobado e Hermione cobrira a boca com as mãos. Finalmente a menina baixou as mãos e disse:
— Sirius Black fugiu para vir atrás de você? Ah, Harry... Você vai ter que tomar muito, mas muito cuidado. Não vai sair por aí procurando encrenca, Harry...
— Eu não saio por aí procurando encrenca — respondeu Harry, irritado. — Em geral as encrencas é que vêm ao meu encontro.
— Harry teria que ser um bocado obtuso para sair procurando um biruta que quer matá-lo, não acha?— falou Rony com a voz tremula.
Eles estavam reagindo às noticias pior do que Harry esperara.
Tanto Rony quanto Hermione pareciam ter muito mais medo de Black do que ele próprio.
— Ninguém sabe como foi que o homem fugiu de Azkaban — disse Rony embaraçado. — Ninguém jamais tinha feito isso antes. E ainda por cima, ele era um prisioneiro de segurança máxima.
— Mas vão pegá-lo, não vão? — perguntou Hermione muito séria. — Quero dizer, todos os trouxas estão procurando Black também...
— Que barulho foi esse? — perguntou Rony de repente. Uma espécie de apitinho fraco vinha de algum lugar. Os garotos procuraram por toda a cabine.
— Está vindo do seu malão, Harry — disse Rony se levantando e esticando os braços para o bagageiro. Pouco depois retirava o bisbilhoscópio de bolso, que fora guardado entre as vestes de Harry.
O objeto girava muito rápido na palma da mão de Rony e emitia um brilho intenso.
— Isso é um bisbilhoscópio? — perguntou Hermione, interessada, levantando-se para ver melhor.
— É... E veja bem, é dos baratinhos — disse Rony. — Endoidou quando o amarrei na perna de Errol para mandar para Harry.
— Você estava fazendo alguma coisa suspeita na hora? — perguntou Hermione astutamente.
— Não! Bem... Eu não devia estar usando o Errol. Você sabe, ele não pode realmente fazer viagens longas... Mas como é que eu ia mandar o presente do Harry?
— Ponha-o de volta no malão — aconselhou Harry enquanto o bisbilhoscópio continuava a apitar baixinho —, senão vamos acordar o homem.
O menino indicou o Profº. Lupin com a cabeça. Rony enfiou o bisbilhoscópio dentro de um par de meias velhas do tio Válter particularmente horrendas, o que abafou o som, depois fechou a tampa do malão.
— Poderíamos mandar verificar esse bisbilhoscopio em Hogsmeade — disse Rony, sentando-se outra vez. — Vendem essas coisas na Dervixes e Bangues, instrumentos mágicos e artigos sortidos. Foi o que Fred e Jorge me contaram.
— Você conhece muita coisa de Hogsmeade? — perguntou Hermione interessada. — Li que é o único povoado inteiramente bruxo da Grã-Bretanha...
— É, acho que é — disse Rony meio sem pensar —, mas não é por isso que quero ir lá. Só quero conhecer a Dedosdemel!
— E o que é a Dedosdemel? — perguntou Hermione.
— É uma loja de doces — disse Rony, com uma expressão sonhadora assomando em seu rosto —, que tem de tudo.. Diabinhos de Pimenta... Que fazem a boca fumegar... E enormes Chocobolas recheadas de musse de morango e creme cozido, e Canetas de açúcar realmente ótimas, que a gente pode chupar em classe e fazer de conta que está pensando no que se vai escrever...
— Mas Hogsmeade é um lugar muito interessante, não é? — insistiu Hermione, pressurosa. O livro Sítios Históricos da Bruxaria diz que a estalagem foi o quartel-general da Revolta dos Duendes de 1612, e diz que a Casa dos Gritos é o prédio mais mal-assombrado da Grã-Bretanha...
— E bolas maciças de sorvete de frutas que fazem a gente levitar uns centímetros acima do chão enquanto está comendo — continuou Rony, que decididamente não estava ouvindo uma palavra do que Hermione dizia.
A garota virou-se para Harry.
— Não vai ser ótimo sair um pouco da escola e explorar Hogsmeade?
— Imagino que sim — respondeu Harry deprimido. — Você vai ter que me contar quando descobrir.
— Como assim? — perguntou Rony.
— Não posso ir. Os Dursley não assinaram o meu formulário de autorização e o Fudge também não quis assinar.
Rony fez uma cara de horror.
— Você não tem autorização para ir? Mas... Nem pensar... McGonagall ou alguém vai ter que lhe dar essa autorização...
Harry deu uma risada forçada. A Profª. McGonagall, diretora da Grifinória, era muito rigorosa.
— ... Ou podemos apelar para o Fred e o Jorge, eles conhecem todas as passagens secretas para sair do castelo...
— Rony! — ralhou Hermione com severidade. — Acho que o Harry não devia sair escondido da escola com o Black solto por aí...
— É, imagino que é o que McGonagall vai dizer quando eu pedir autorização — disse Harry amargurado.
— Mas se nós estivermos com ele — disse Rony, animado, a Hermione — Black não ousaria...
— Ah, Rony, não diz besteira — retrucou Hermione. — Black já matou um monte de gente bem no meio de uma rua movimentada. Você acha mesmo que ele vai se preocupar se vai ou não atacar Harry só porque nós estamos presentes?
Hermione mexia com as alças da cesta de Bichento enquanto falava.
— Não solta essa coisa! — exclamou Rony, mas tarde demais;
Bichento saltou com leveza da cesta, espreguiçou-se, bocejou e pulou nos joelhos de Rony;
O calombo no peito do menino estremeceu e ele empurrou Bichento com raiva.
— Dê o fora daqui!
— Rony, não! — disse Hermione, zangada.
O menino ia responder quando o Profº. Lupin se mexeu. Eles o miraram com apreensão, mas ele simplesmente virou a cabeça para o outro lado, a boca ligeiramente entreaberta, e continuou a dormir.
O Expresso de Hogwarts rodava numa velocidade constante para o norte e o cenário à janela ia se tornando cada vez mais bravio e escuro enquanto as nuvens, no alto, se avolumavam. Estudantes passavam pela porta da cabine correndo para cima e para baixo. Bichento agora se acomodara num assento vazio, a cara amassada virada para Rony, os olhos amarelos cravados no bolso do peito dele.
Á uma hora, a bruxa gorducha com o carrinho de comida chegou à porta da cabine.
— Vocês acham que a gente devia acordar o professor? — perguntou Rony sem graça, indicando Lupin com a cabeça. — Ele está com cara de quem podia comer alguma coisa.
Hermione se aproximou cautelosamente do homem.
— Hum... Professor? Com licença, professor?
O homem não se mexeu.
— Não se preocupe, querida — disse a bruxa entregando a Harry uma montanha de bolos de caldeirão. — Se ele tiver fome quando acordar, vou estar lá na frente com o maquinista.
— Suponho que ele esteja dormindo — disse Rony baixinho quando a bruxa fechou a porta da cabine. — Quero dizer: ele não morreu, não é?
— Não, está respirando — sussurrou Hermione, pegando o bolo de caldeirão que Harry lhe passava.
Talvez o Profº. Lupin não fosse uma ótima companhia, mas sua presença na cabine dos garotos tinha suas vantagens. No meio da tarde, bem na hora em que a chuva começou a cair, embaçando os contornos das colinas ondulantes por que passavam, os meninos ouviram novamente passos no corredor, e surgiram à porta as três pessoas que eles menos gostavam no mundo: Draco Malfoy, ladeado pelos seus asseclas, Vicente Crabbe e Gregório Goyle.
Draco Malfoy e Harry eram inimigos desde que se encontraram na primeira viagem de trem para Hogwarts. Malfoy, que tinha uma cara desdenhosa, pálida e pontuda, era aluno da Sonserina; jogava como apanhador no time de sua casa, a mesma posição de Harry no time da Grifinória. Crabbe e Goyle pareciam existir para fazer o que Draco mandava. Eram grandes e musculosos; Crabbe, mais alto, tinha um pescoço muito grosso e um corte de cabelos de cuia; os cabelos de Goyle eram curtos e espetados, e seus braços compridos como os de um gorila.
— Ora! vejam só quem está aqui — disse Draco naquela sua voz arrastada, abrindo a porta da cabina , Potinha e Fuinha.
Crabbe e Goyle riram feito trasgos.
— Ouvi dizer que seu pai finalmente pôs as mãos no ouro neste verão — disse Malfoy. — Sua mãe não morreu do choque?
Rony se levantou tão depressa que derrubou a cesta de Bichento no chão. O Profº. Lupin soltou um pequeno ronco.
— Quem é esse ai? — perguntou Draco, dando automaticamente um passo atrás, ao ver Lupin.
— Professor novo — disse Harry que se levantou também, caso precisasse segurar Rony. — Que é que você ia dizendo mesmo, Draco?
Os olhos muito claros do menino se estreitaram; ele não era bobo de puxar uma briga bem debaixo do nariz de um professor.
— Vamos — murmurou Draco, contrariado, para Crabbe e Coyle, e os três sumiram.
Harry e Rony tornaram a se sentar, Rony massageando os nós dos dedos.
— Não vou aturar nenhum desaforo de Draco este ano — disse cheio de raiva. — Estou falando sério. Se ele disser mais uma piadinha sobre a minha família, vou agarrar a cabeça dele e...
Rony fez um gesto violento no ar.
— Rony — sibilou Hermione, apontando para o Profº. Lupin —, cuidado...
Mas o Profº. Lupin continuava ferrado no sono.
A chuva engrossava à medida que o trem avançava mais para o norte; as janelas agora iam se tornando um cinza sólido e tremeluzente, que gradualmente escureceu até as lanternas se acenderem nos corredores e por cima dos bagageiros. O trem sacolejava, a chuva fustigava, o vento rugia, mas, ainda assim, o Profº. Lupin continuava adormecido.
— Devemos estar quase chegando — disse Rony, curvando-se para frente para olhar, além do professor, a janela agora completamente escura.
Nem bem essas palavras tinham saído de sua boca e o trem começou a reduzir a velocidade.
— Legal — exclamou Rony, levantando-se e passando com todo o cuidado pelo Profº. Lupin para tentar ver lá fora. — Estou morrendo de fome. Quero chegar logo para o banquete...
— Nós ainda não chegamos — disse Hermione, consultando o relógio. — Então por que estamos parando?
O trem foi rodando cada vez mais lentamente. Quando o ronco dos pistôes parou, o barulho do vento e da chuva de encontro às janelas pareceu mais forte que nunca.
Harry, que estava mais próximo da porta, levantou-se para espiar o corredor. Por todo o carro, cabeças, curiosas, surgiram à porta das cabines.
O trem parou completamente com um tranco, e baques e pancadas distantes sinalizaram que as malas tinham despencado dos bagageiros. Em seguida, sem aviso, todas as luzes se apagaram e eles mergulharam em total escuridão.
— Que é que está acontecendo? — ouviu-se a voz de Rony às costas de Harry.
— Ai! — exclamou Hermione. — Rony, isto é o meu pé!
Harry voltou ao seu lugar, às apalpadelas.
— Vocês acham que o trem enguiçou?
— Não sei...
Ouviu-se um barulho de pano esfregando vidro e Harry viu os contornos difusos de Rony desembaçando um pedaço da vidraça da janela para espiar.
— Tem uma coisa se mexendo lá fora — disse ele. — Acho que está embarcando gente no trem...
A porta da cabine se abriu repentinamente e alguém caiu por cima das pernas de Harry, machucando-o.
— Desculpe... Você sabe o que está acontecendo?... Ai... Desculpe...
— Ai, Neville — disse Harry tateando no escuro e levantando o colega pela capa.
— Harry? É você? Que é que está acontecendo?
— Não tenho idéia... Senta...
Ouviu-se um sibilo forte e um ganido de dor; Neville tentara se sentar em cima do Bichento.
— Vou perguntar ao maquinista o que está acontecendo — ouviu-se a voz de Hermione. Harry sentiu a amiga passar por ele, ouviu a porta deslizar, e em seguida um baque e dois berros de dor.
— Quem é?
— Quem é?
— Gina?
— Mione?
— Que é que você está fazendo?
— Estava procurando o Rony!
— Entra aqui e senta...
— Aqui não! — disse Harry depressa. — Eu estou aqui!
— Ai! — disse Neville.
— Silêncio! — ordenou uma voz rouca, de repente.
O Profº. Lupin parecia ter finalmente acordado. Harry ouviu movimentos no canto em que ele estava. Ninguém disse nada.
Seguiu-se um estalinho e uma luz trêmula inundou a cabine. Pelo que viam, o professor estava empunhando um feixe de chamas. Elas iluminavam um rosto cansado e cinzento, mas seus olhos tinham uma expressão alerta e cautelosa.
— Fiquem onde estão — disse com a mesma voz rouca, e começou a se levantar lentamente segurando as chamas à sua frente.
Mas a porta se abriu antes que Lupin pudesse alcançá-la.
Parado à porta, iluminado pelas chamas trêmulas na mão do professor, havia um vulto de capa que alcançava o teto. Seu rosto estava completamente oculto por um capuz. Harry baixou os olhos depressa, e o que ele viu provocou uma contração em seu estômago. Havia uma mão saindo da capa e ela brilhava, um brilho cinzento, de aparência viscosa e coberta de feridas, como uma coisa morta que se decompusera na água...
Mas foi visível apenas por uma fração de segundo. Como se a criatura sob a capa percebesse o olhar de Harry, a mão foi repentinamente ocultada nas dobras da capa preta.
E então a coisa encapuzada, fosse o que fosse, inspirou longa e lentamente, uma inspiração ruidosa, como se estivesse tentando inspirar mais do que o ar à sua volta.
Um frio intenso atingiu todos os presentes. Harry sentiu a própria respiração entalar no peito. O frio penetrou mais fundo em sua pele. Chegou ao fundo do peito, ao seu próprio coração...
Os olhos de Harry giraram nas órbitas. Ele não conseguiu ver mais nada. Estava se afogando no frio. Sentia um farfalhar nos ouvidos que lembrava água correndo. Estava sendo puxado para o fundo, o farfalhar aumentou para um ronco que aumentava...
Então, vindos de muito longe, ouviu gritos, terríveis, apavorados, suplicantes. Ele queria ajudar quem gritava, tentou mexer os braços, mas não conseguiu... Um nevoeiro claro e denso rodopiava à volta dele, dentro dele...
— Harry! Harry! Você está bem?
Alguém batia no seu rosto.
-Q... Quê?
Harry abriu os olhos; havia lanternas no alto e o chão sacudia.
— O Expresso de Hogwarts recomeçara a andar e as luzes tinham voltado. Aparentemente ele escorregara do assento para o chão.
Rony e Hermione estavam ajoelhados ao seu lado, e acima dos seus amigos ele viu que Neville e o professor o observavam. Harry se sentiu muito doente; quando ergueu a mão para ajeitar os óculos no nariz, sentiu um suor frio no rosto.
Rony e Hermione puxaram-no para cima do assento.
— Você está bem? — perguntou Rony, nervoso.
— Estou — disse Harry, olhando depressa para a porta. A criatura encapuzada desaparecera. — Que aconteceu? Onde está aquela... Aquela coisa? Quem gritou?
— Ninguém gritou — disse Rony, ainda mais nervoso.
Harry olhou para todos os lados da cabine iluminada. Gina e Neville retribuíram seu olhar, ambos muito pálidos.
— Mas eu ouvi gritos...
Um forte estalo assustou os meninos. O Profº. Lupin partia em pedaços uma enorme barra de chocolate.
— Tome — disse a Harry, oferecendo-lhe um pedaço particularmente avantajado. — Coma. Vai fazer você se sentir melhor.
Harry apanhou o chocolate, mas não o comeu.
— Que era aquela coisa? — perguntou a Lupin.
— Um dementador — respondeu Lupin, que agora distribuía o chocolate para todos. — Um dos dementadores de Azkaban.
Todos o olharam espantados. O professor amassou a embalagem vazia de chocolate e meteu-a no bolso.
— Coma — insistiu. — Vai lhe fazer bem. Preciso falar com o maquinista, me dêem licença...
Ele passou por Harry e desapareceu no corredor.
— Você tem certeza de que está bem? — perguntou Hermione, observando-o com ansiedade.
— Não entendo... Que foi que aconteceu? — perguntou Harry, enxugando mais suor do rosto.
— Bem... Aquela coisa... O dementador... Ficou parado ali olhando, quero dizer, acho que foi, não pude ver o rosto dele... E você...
— Pensei que você estava tendo um acesso ou coisa parecida — disse Rony, que conservava no rosto uma expressão de pavor — Você ficou todo duro, escorregou do assento e começou a se contorcer...
— E o Profº. Lupin saltou por cima de você, foi ao encontro do dementador, puxou a varinha — contou Hermione — e disse: "Nenhum de nós está escondendo Sirius Black dentro da capa. Vá." — Mas o dementador não se mexeu, então Lupin murmurou alguma coisa e da varinha saiu um raio prateado contra a coisa, e ela deu as costas e se afastou como se deslizasse...
— Foi horrível — disse Neville numa voz mais alta do que de costume. — Vocês sentiram como ficou frio quando ele entrou?
— Eu me senti esquisito — disse Rony, sacudindo os ombros, desconfortável. — Como se eu nunca mais fosse sentir alegria na vida...
Gina, que se encolhera a um canto parecendo quase tão mal quanto Harry, deu um solucinho; Hermione aproximou-se e passou um braço pelas costas da menina para consolá-la.
— Mas nenhum de vocês caiu do assento? — perguntou Harry sem graça.
— Não — disse Rony, olhando para Harry, ansioso, outra vez. — Mas Gina tremia feito louca...
Harry não entendeu. Sentia-se fraco e cheio de arrepios, como se estivesse se recuperando de uma gripe muito forte; começava também a sentir um início de vergonha. Por que desmaiara daquele jeito, quando mais ninguém desmaiara?
O Profº. Lupin voltou. Parou ao entrar, olhando para todos e disse, com um leve sorriso:
— Eu não envenenei o chocolate, sabem...
Harry deu uma dentada e, para sua grande surpresa, sentiu de repente um calor se espalhar até as pontas dos dedos dos pés e das mãos.
— Vamos chegar a Hogwarts dentro de dez minutos — disse o Profº. Lupin. — Você está bem, Harry?
O menino não perguntou como é que o professor sabia seu nome.
— Muito bem — murmurou ele, constrangido.
Ninguém falou muito durante o resto da viagem. Por fim, o trem parou na estação de Hogsmeade e houve uma grande correria para desembarcar; corujas piavam, gatos miavam e o sapo de estimação de Neville coaxou alto debaixo do chapéu do seu dono. Estava frio demais na minúscula plataforma; a chuva descia em cortinas geladas.
— Alunos do primeiro ano por aqui! — chamou uma voz conhecida. Harry, Rony e Hermione se viraram e depararam com o vulto gigantesco de Hagrid, no outro extremo da plataforma, fazendo sinal para os novos alunos, aterrorizados, se aproximarem para a tradicional travessia do lago.
— Tudo bem, vocês três? — gritou Hagrid sobre as cabeças dos alunos aglomerados. Eles acenaram para o guarda-caça, mas não tiveram chance de lhe falar porque a massa de alunos em volta deles os empurrava na direção oposta.
Harry, Rony e Hermione acompanharam o resto da escola pela plataforma e desceram para uma trilha enlameada, cheia de altos e baixos, onde no mínimo uns cem coches os aguardavam, cada qual, Harry só podia supor, puxado por um cavalo invisível, porque os garotos embarcaram em um, fecharam a porta e o veículo saiu andando, aos trancos e balanços, formando um cortejo.
O coche cheirava levemente a mofo e palha. Harry se sentia melhor desde o chocolate, mas continuava fraco. Rony e Hermione não paravam de lhe lançar olhares de esguelha, como se temessem que ele pudesse desmaiar outra vez.
Quando o coche foi se aproximando de um magnífico portão de ferro forjado, ladeado por colunas de pedra com javalis alados no alto, Harry viu mais dois dementadores encapuzados montando guarda dos lados do portão. Uma onda de náusea e frio tornou a invadi-lo; ele se recostou no banco encalombado e fechou os olhos até atravessarem a entrada. O coche ganhou velocidade no caminho longo e inclinado até o castelo; Hermione se debruçou pela janelinha, espiando as muitas torrinhas e torres que se aproximavam. Por fim, o coche parou balançando, e Hermione e Rony desembarcaram.
Quando Harry ia descendo, uma voz arrastada e satisfeita chegou aos seus ouvidos.
— Você desmaiou, Potter? Longbottom está falando a verdade? Desmaiou mesmo, é?
Draco passou por Hermione acotovelando-a, para impedir Harry de subir as escadas de pedra do castelo, o rosto jubilante e os olhos claros brilhando de malícia.
— Se manda, Malfoy — disse Rony, cujos maxilares estavam cerrados.
— Você também desmaiou, Weasley? — perguntou Draco em voz alta. — O velho dementador apavorante também o assustou, Weasley?
— Algum problema? — perguntou uma voz suave, O Profº. Lupin acabara de desembarcar do coche seguinte.
Malfoy lançou ao Profº. Lupin um olhar insolente, que registrou os remendos em suas vestes e a mala surrada. Com uma sugestão de sarcasmo na voz, ele respondeu:
— Ah, não... Hum... Professor — depois fez cara de riso para Crabbe e Goyle, e subiu com os dois as escadas do castelo.
Hermione bateu nas costas de Rony para apressá-lo, e os três se reuniram aos muitos alunos que enchiam as escadas, cruzavam a soleira das enormes portas de carvalho e penetravam no saguão cavernoso iluminado com tochas ardentes, onde havia uma magnífica escadaria de mármore para os andares superiores.
A porta que levava ao Salão Principal, à direita, estava aberta;
Harry seguiu o grande número de alunos que se deslocava naquela direção, mas apenas vislumbrara o teto encantado, que àquela noite se mostrava escuro e anuviado, quando uma voz o chamou:
— Potter! Granger! Quero falar com os dois! Os garotos se viraram surpresos. A Profª. McGonagall, que ensinava Transformação e dirigia a Casa da Grifinória, os chamava por cima das cabeças dos demais. Era uma bruxa de aspecto severo, que usava os cabelos presos em um coque apertado; seus olhos penetrantes eram emoldurados por óculos quadrados. Harry abriu caminho até ela com esforço e um mau pressentimento: a Profª. McGonagall tinha o condão de fazê-lo sentir que fizera alguma coisa errada.
— Não precisa ficar tão preocupado, só quero dar uma palavrinha com vocês na minha sala — disse ela. — Pode continuar o seu caminho, Weasley.
Rony ficou olhando a professora se afastar, com Harry e Hermione, da aglomeração de alunos que falavam sem parar; os três atravessaram o saguão, subiram a escadaria de mármore e seguiram por um corredor.
Já na sala, um pequeno aposento com uma grande e acolhedora lareira, a professora fez sinal a Harry e Hermione para que se sentassem.
Ela própria se sentou à escrivaninha e disse sem rodeios:
— O Profº. Lupin mandou à frente uma coruja para avisar que você tinha passado mal no trem, Potter.
Antes que o garoto pudesse responder, ouviu-se uma leve batida na porta e Madame Pomfrey, a enfermeira, entrou com seu ar eficiente.
Harry sentiu o rosto corar. Já era bastante ruim que tivesse desmaiado, ou o que fosse, sem todo mundo ficar fazendo aquele alvoroço.
— Eu estou bem — disse. — Não preciso de nada...
— Ah, então foi você? — exclamou Madame Pomfrey, ignorando o comentário de Harry e se curvando para examiná-lo mais de perto. — Suponho que tenha feito outra vez alguma coisa perigosa.
— Foi um dementador, Papoula. — informou McGonagall.
As duas, trocaram olhares misteriosos e Madame Pomfrey deu um muxoxo de desaprovação.
— Postar dementadores em volta da escola — murmurou, afastando os cabelos de Harry e sentindo a temperatura na testa dele.
— O menino não vai ser o último a desmaiar. É, está úmido de suor. Eles são terríveis e o efeito que produzem nas pessoas que já são delicadas...
— Eu não sou delicado! — exclamou Harry aborrecido.
— Claro que não é — disse Madame Pomfrey distraída, agora tomando o seu pulso.
— Do que é que ele precisa? — perguntou a Profª. McGonagall, decidida. — Repouso? Quem sabe não fosse bom passar a noite na ala hospitalar?
— Eu estou ótimo! — disse Harry, levantando-se de um salto. A idéia do que Draco iria dizer se ele tivesse que ir para a ala hospitalar foi uma tortura.
— Bem, ele devia, no mínimo, tomar um chocolate — disse Madame Pomfrey, que agora tentava examinar os olhos de Harry.
— Já comi chocolate — disse ele. — O Profº. Lupin me deu. Deu a todos nós.
— Deu, foi? — exclamou a bruxa-enfermeira em tom de aprovação. — Então finalmente conseguimos um professor de Defesa contra as Artes das Trevas que sabe o que faz!
— Você tem certeza de que está se sentindo bem, Potter? — perguntou a Profª. McGonagall bruscamente.
— Estou — respondeu Harry.
— Muito bem. Por favor esperem aí fora enquanto dou uma palavrinha com a Srta. Granger sobre sua programação para o ano letivo, depois podemos descer juntos para a festa.
Harry saiu para o corredor com Madame Pomfrey, que seguiu para a ala hospitalar, resmungando sozinha. Ele só precisou esperar uns minutinhos; Hermione apareceu com um ar muito feliz, acompanhada pela professora, e todos desceram a escadaria de mármore para o Salão Principal.
Havia um mar de chapéus cônicos e pretos; cada uma das compridas mesas das casas estava lotada de estudantes, os rostos iluminados por milhares de velas que flutuavam no ar, acima das mesas.
O Profº. Flitwick, que era um bruxo franzino de cabeleira branca, carregava um chapéu antigo e um banquinho de três pernas para fora da sala.
— Ah — comentou Hermione em voz baixa —, perdemos a cerimônia da seleção!
Os novos alunos de Hogwarts eram distribuídos pelas quatro casas do colégio, pondo na cabeça o Chapéu Seletor, que anunciava a casa (Grifinória, Corvinal, Lufa-Lufa ou Sonserina) que melhor convinha ao recém-chegado. A Profª. McGonagall dirigiu-se ao seu lugar, que estava vazio à mesa dos professores e funcionários e Harry e Hermione seguiram na direção oposta, o mais silenciosamente possível para se sentarem à mesa da Grifinória. As pessoas viraram a cabeça para olhá-los passar pelo fundo do salão, e alguns apontaram para Harry. Será que a história do seu desmaio ao topar com o dementador se espalhara com tanta rapidez?
Ele e Hermione se sentaram um de cada lado de Rony, que guardara seus lugares.
— Que história foi essa? — murmurou Rony para Harry.
O amigo começou a lhe explicar aos cochichos, mas naquele momento, o diretor se ergueu para falar e ele se calou.
O Profº. Dumbledore, embora muito velho, sempre dava uma impressão de grande energia. Tinha alguns palmos de cabelos e barbas prateados, óculos de meia-lua e um nariz muito torto. Em geral era descrito como o maior bruxo da era atual, mas não era esta a razão por que Harry o respeitava. Não era possível deixar de confiar em Alvo Dumbledore, e quando Harry o contemplou sorrindo radiante para os alunos à sua volta, sentiu-se calmo, pela primeira vez, desde que o dementador entrara na cabine do trem.
— Sejam bem-vindos! — começou Dumbledore, a luz das velas tremeluzindo em suas barbas. — Sejam bem-vindos para mais um ano em Hogwarts! Tenho algumas coisas a dizer a todos, e uma delas é muito séria. Acho que é melhor tirá-la do caminho antes que vocês fiquem tontos com esse excelente banquete...
O diretor pigarreou e prosseguiu:
— Como vocês todos perceberam, depois da busca que houve no Expresso de Hogwarts, a nossa escola passou a hospedar alguns dementadores de Azkaban, que vieram cumprir ordens do Ministério da Magia.
Ele fez uma pausa e Harry se lembrou do que o Sr. Weasley comentara sobre a insatisfação de Dumbledore quanto ao fato de os dementadores estarem montando guarda na escola.
— Eles estão postados em cada entrada da propriedade e, enquanto estiverem conosco, é preciso deixar muito claro que ninguém deve sair da escola sem permissão. Os dementadores não se deixam enganar por truques nem disfarces, nem mesmo por capas de invisibilidade — acrescentou ele brandamente, e Harry e Rony se entreolharam. — Não faz parte da natureza deles entender súplicas nem desculpas. Portanto, aviso a todos e a cada um em particular, para não darem a esses guardas razão para lhes fazerem mal. Apelo aos monitores, e ao nosso monitor e monitora chefes, para que se certifiquem de que nenhum aluno entre em conflito com os dementadores.
Percy, que estava sentado a algumas cadeiras de distância de Harry, estufou o peito outra vez e olhou à volta cheio de importância.
Dumbledore fez nova pausa; percorreu o salão com um olhar muito sério mas ninguém se mexeu nem emitiu som algum.
— Agora, falando de coisas mais agradáveis — continuou ele —, tenho o prazer de dar as boas-vindas a dois novos professores este ano.  Primeiro, o Profº. Lupin, que teve a bondade de aceitar ocupar a vaga de professor de Defesa contra as Artes das Trevas.
Ouviram-se algumas palmas dispersas e pouco entusiásticas.
Somente os que tinham estado na cabine de trem com o novo professor bateram palmas animados, Harry entre eles. Lupin parecia particularmente mal vestido ao lado dos outros professores que trajavam suas melhores vestes.
— Olha a cara do Snape! — sibilou Rony ao ouvido de Harry.
O olhar do Profº. Snape, mestre de Poções, passou pelos professores que ocupavam a mesa e se deteve em Lupin. Era fato sabido que Snape queria o cargo de professor de Defesa contra as Artes das Trevas, mas até Harry, que o detestava, se surpreendeu com a expressão que deformou o seu rosto macilento. Era mais do que raiva: era desprezo. Harry conhecia aquela expressão bem demais; era a que Snape usava sempre que o avistava.
— Quanto ao nosso segundo contratado — continuou Dumbledore quando cessavam as palmas mornas para o Profº. Lupin. — Bem, lamento informar que o Profº. Ketrleburn, que ensinava Trato das Criaturas Mágicas, aposentou-se no fim do ano passado para poder aproveitar melhor os membros que ainda lhe restam. Contudo, tenho o prazer de informar que o seu cargo será preenchido por ninguém menos que Rúbeo Hagrid, que concordou em acrescentar essa responsabilidade docente às suas tarefas de guarda-caça.
Harry, Rony e Hermione se entreolharam, estupefatos. Em seguida acompanharam os aplausos, que foram tumultuosos principalmente à mesa da Grifinória. Harry se esticou para frente para ver Hagrid, que tinha o rosto vermelho-rubi, os olhos postos nas mãos enormes, e o sorriso largo escondido no emaranhado de sua barba escura.
— Nós devíamos ter adivinhado! — berrou Rony, dando socos na mesa. — Quem mais teria nos mandado comprar um livro que morde?
Os três garotos foram os últimos a parar de aplaudir e quando o Profº. Dumbledore recomeçou a falar, eles viram que Hagrid estava enxugando os olhos na toalha da mesa.
— Bem, acho que, de importante, é só o que tenho a dizer. Vamos à festa!
As travessas e taças de ouro diante das pessoas se encheram inesperadamente de comida e bebida. Harry, de repente faminto, se serviu de tudo que conseguiu alcançar e começou a comer.
Foi um banquete delicioso; o salão ecoava as conversas, os risos e o tilintar de talheres. Harry, Rony e Hermione, porém, estavam ansiosos para a festa terminar para poderem conversar com Hagrid.
Sabiam o quanto significava para ele ser nomeado professor. O guarda-caça não era um bruxo diplomado; fora expulso de Hogwarts no terceiro ano por um crime que não cometera. Harry, Rony e Hermione é que tinham limpado o seu nome no ano anterior.
Finalmente, quando os últimos pedaços deliciosos de torta de abóbora tinham desaparecido das travessas de ouro, Dumbledore anunciou que era hora de todos se recolherem e os meninos tiveram a oportunidade que aguardavam.
— Hagrid! — exclamou Hermione quando se aproximaram da mesa dos professores.
— Graças a vocês — disse Hagrid, enxugando o rosto brilhante de lágrimas no guardanapo e erguendo os olhos para os garotos. — Nem consigo acreditar... Grande homem, o Dumbledore... Veio direto à minha cabana quando o Profº. Kettleburn disse que para ele já chegava... É o que eu sempre quis... .
Dominado pela emoção, ele escondeu o rosto no guardanapo e a Profª. McGonagall tocou os meninos para fora.
Harry, Rony e Hermione se reuniram aos outros colegas da Grifinória que ocupavam toda a escadaria de mármore e agora, muito cansados, caminharam por mais corredores e mais escadas até a entrada secreta para a torre da Grifinória. Uma grande pintura a óleo de uma mulher gorda vestida de rosa perguntou-lhes:
— A senha?
— Já estou indo, já estou indo! — gritou Percy lá do fim do ajuntamento. — A nova senha? Fortuna Major!
— Ah, não! — exclamou Neville Longbottom com tristeza. Ele sempre tinha dificuldade para se lembrar das senhas.
Depois de atravessar o buraco do retrato e a sala comunal, as garotas e garotos tomaram escadas separadas. Harry subiu a escada circular sem pensar em nada exceto na sua felicidade por estar de volta. Quando chegaram ao dormitório redondo com as camas de colunas que já conheciam, Harry, olhando a toda volta, se sentiu finalmente em casa.

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