quarta-feira, 27 de julho de 2011

As Crônicas de Nárnia 2 - O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, Capítulos 6 ao 10

6
NA FLORESTA


– Deus permita que a governanta despache logo aquela gente! – falou Susana. – Estou toda encolhidinha!
– Que cheiro horrível de cânfora! – exclamou Edmundo.
– Deve ser dos bolsos dos casacos, cheios de naftalina, para espantar traças – disse Susana.
– Tem um troço aqui me picando nas costas – disse Pedro.
– Não está ficando frio? – perguntou Susana.
– E muito – disse Pedro. – E que umidade! Que diabo de lugar é este? Estou sentado em cima de uma coisa molhada. E está cada vez mais úmido.
Foi com dificuldade que Pedro conseguiu erguer-se. Edmundo disse:
– Vamos sair, eles já foram embora.
– Oh! Oh! – gritou Susana de repente. Todos perguntaram o que tinha acontecido.
– Estou encostada numa árvore – disse ela. – Olhem! Lá longe está clareando.
– Puxa vida, é mesmo! – disse Pedro. – E olhem pra lá... e pra lá... tudo cheio de árvores! E esta coisa molhada é neve. Agora acredito que esta mos no bosque da Lúcia.
Já não podia haver a menor dúvida. Ficaram os quatro, imóveis, piscando na luz fria da manhã de inverno. Atrás deles, os casacos dependurados nos cabides, e, na frente, as árvores cobertas de neve. Pedro virou-se para Lúcia:
– Desculpe se eu não acreditei. Quer fazer as pazes?
– É claro.
– E agora, que vamos fazer? – perguntou Susana.
– Ora, vamos explorar o bosque – disse Pedro.
– Ufa! – exclamou Susana, batendo com os pés no chão. – Está um frio de doer. E se a gente vestisse estes casacos? Não acham uma boa idéia?
– Não são nossos!... – disse Pedro, temeroso.
– Ninguém vai ligar – replicou Susana. – Além disso, não vamos levar os casacos para fora de casa: eles nem vão sair do guarda-roupa!
– Não pensei nisso – falou Pedro.
– É mesmo, assim não vai haver problema. Ninguém vai dizer que pegamos os casacos se eles continuam no guarda-roupa; pois a minha impressão é que o país fantástico está dentro do guarda-roupa.
E logo puseram em prática a sensata sugestão de Susana. Os casacos eram enormes para eles, chegando aos calcanhares, e pareciam mais imponentes mantos reais do que simples casacos. O importante é que se sentiam mais quentinhos, e cada um achava o outro muito elegante.
– Vamos fazer de conta que somos exploradores polares.
– Nem é preciso – disse Pedro. – Mesmo sem fazer de conta, a coisa vai ser muito divertida.
Foram andando na direção da floresta. No céu juntavam-se nuvens escuras, e tudo levava a crer que cairia mais neve antes do anoitecer.
– Escutem – disse Edmundo –, não acham que devemos cortar um pouco à esquerda, para irmos diretamente ao lampião?
Havia esquecido que o seu papel era continuar fingindo que não conhecia o bosque. Os outros pararam e ficaram olhando para ele. Pedro assobiou.
– Ah, então, você já esteve aqui! Você disse que era mentira da Lu!
Fez-se um silêncio mortal.
– Se há uma coisa que eu odeio... – disse Pedro, mas logo se calou, encolhendo os ombros. De fato, nada mais havia a dizer. E de novo puseram-se a caminho. Edmundo ia resmungando para si mesmo: “Cambada de gente pretensiosa! Um dia, vocês me pagam!”
– Aonde vamos? – perguntou Susana, ansiosa para mudar o rumo da conversa.
– Acho que a Lúcia é quem deve nos guiar – disse Pedro. – E ela merece, depois do que acabamos de ouvir. Para onde, Lu?
– E se fôssemos visitar o Sr. Tumnus? Que acham? É aquele fauno bonito...
Concordaram todos, apertando o passo, batendo os pés no chão. Lúcia saiu-se bem na missão de guia. A princípio, não estava muito certa se encontraria o caminho, mas foi reconhecendo, aqui, uma árvore de jeito estranho, ali, um tronco no chão, até chegarem àquele lugar em que o caminho piorava; por fim, deram com a porta da caverna do Sr. Tumnus. Mas aí esperava-os uma triste surpresa.
A porta fora arrancada e partida em pedaços. Dentro da caverna, estava escuro, frio, úmido, desagradável, como se o local estivesse desabitado havia vários dias. A neve entrava pela porta e amontoava-se no chão, misturando-se com as lenhas mal queimadas e a cinza da lareira. Era como se alguém tivesse espalhado a cinza pelo chão para apagar as chamas das lenhas. A louça estava toda partida, e o retrato do pai do fauno fora esfaqueado e dilacerado.
– Bonito trabalho! – exclamou Edmundo. – Valeu a pena ter vindo aqui!
– Que é isso? – falou Pedro, ao ver um pedacinho de papel pregado no tapete.
– Tem alguma coisa escrita? – perguntou Susana.
– Acho que tem, mas não consigo ler com esta luz. Vamos para fora.
Saíram todos. Pedro leu o seguinte:
O antigo inquilino deste prédio, o fauno Tumnus, está preso, aguardando julgamento, acusado de crime de alta traição contra Sua Majestade Imperial ]adis, Rainha de Nárnia, Castelã de Cair Paravel, Imperatriz das Ilhas Solitárias, etc. É acusado outrossim de auxílio aos inimigos da supracitada Majestade, abrigando espiões e confraternizando-se com humanos.
MAUGRIM, Comandante-Chefe da Polícia Secreta.
VIVA A RAINHA!
Os quatro meninos olharam uns para os outros.
– Esta terra não está me agradando nem um pouquinho – disse Susana.
– Quem é essa rainha, Lu? – perguntou Pedro. – Sabe alguma coisa a respeito dela?
– Não é rainha nada. É uma feiticeira horrorosa, a Feiticeira Branca. É muito odiada no bosque. Foi ela quem encantou as terras de Nárnia, para que aqui seja sempre inverno, e o Natal não chegue nunca.
– Eu... só queria saber uma coisa: de que adianta seguirmos em frente? – disse Susana. – Quer dizer... acho que não é muito seguro... e pode até não ter graça nenhuma. E depois, está ficando cada vez mais frio... e não temos nada para comer. Vamos para casa?
– Ah, isso é que não! Agora não pode ser! – disse Lúcia de repente. – Não podemos voltar de pois do que aconteceu. Foi por minha causa que o fauno se meteu nesta confusão. Foi ele que me escondeu da feiticeira e me ensinou o caminho de casa. E isto que eles querem dizer com o “auxílio aos inimigos da rainha e confraternização com humanos”. Temos de fazer tudo para salvá-lo.
– Grande coisa haveremos de fazer! – disse Edmundo. – Nem temos o que comer!
– Cale a boca – disse Pedro, ainda muito zangado com Edmundo. – Qual a sua opinião, Susana?
– Tem aqui dentro de mim uma coisa horrível dizendo que Lu está certa – disse Susana. – Mas, por mim, não dava nem mais um passo. Ah, se eu não tivesse vindo! Mas temos de fazer alguma coisa pelo fauno. Seja lá o que for.
– Também acho – disse Pedro. – O drama é não termos trazido comida. E se voltássemos para pegar algo na despensa? Mas quem nos garante que, se a gente sair, vai poder entrar de novo neste país mágico? Acho que o melhor é continuar.
– Também acho – disseram as duas meninas ao mesmo tempo.
– Se ao menos a gente soubesse onde é que o coitado está preso! – disse Pedro.
Todos ficaram calados, imaginando o que podiam fazer, quando, de repente, Lúcia exclamou:
– Olhem aquele pintarroxo de papo vermelho. É a primeira vez que vejo um passarinho aqui. Prestem atenção! Está com uma cara de quem quer falar alguma coisa! Os passarinhos de Nárnia também serão capazes de falar?
Voltou-se para o pássaro:
– Sr. Pintarroxo, seria capaz de nos dizer para onde levaram Tumnus, o fauno? – E deu um passo na direção da avezinha, que logo levantou vôo, mas para uma árvore ali pertinho. Empoleirada lá, ficou olhando para eles, como se tivesse entendido tudo o que haviam dito. Quase sem querer, os quatro avançaram mais um passo ou dois. O pintarroxo voou de novo para a árvore mais próxima. E ficou olhando. Aliás, não é fácil encontrar um pintarroxo de papo tão vermelho e de olhos tão brilhantes como aquele!
– Sabem de uma coisa? – perguntou Lúcia. – Acho que ele quer que a gente vá atrás dele.
– É o que parece – concordou Susana. – Que acha, Pedro?
– Não se perde nada experimentando.
De fato, o pintarroxo parecia compreender tudo perfeitamente. Saltando de ramo em ramo, ia sempre uns metros à frente, para ser seguido sem dificuldade. E assim foi servindo-lhes de guia pela encosta abaixo. As nuvens se abriram e surgiu um belo sol de inverno; em volta, a neve tomou um brilho deslumbrante. Havia quase meia hora que caminhavam, as duas meninas sempre na frente, quando Edmundo disse para Pedro:
– Se por acaso você puder descer desse pedes tal para falar comigo, tenho uma coisa séria para lhe dizer.
– Que coisa? – perguntou Pedro.
– Psiu! Não fale tão alto; não vale a pena assustar as meninas. Pensou bem no que estamos fazendo?
– O quê? – disse Pedro, baixando a voz num murmúrio.
– Estamos indo atrás de um guia que não sabemos quem é. Como vamos saber de que lado está o passarinho? Quem pode dizer se ele não está levando a gente para alguma armadilha?
– Que idéia boba! Além disso, você está vendo, trata-se de um pintarroxo. Em todas as histórias que li, os pintarroxos são sempre bons sujeitos.
Ele nunca ficaria do lado errado.
– Ah, é assim? E como vamos saber qual é o lado errado? Como é que vamos saber se os faunos estão do lado certo e a rainha (sei, sei, já disseram que ela é feiticeira) está do lado errado?
A gente não conhece os faunos e não conhece a rainha!
– O fauno salvou Lúcia.
– É o que ele disse. Mas podemos mesmo saber? Outra coisa: quem é que sabe qual é o caminho de volta?
– Puxa vida! – exclamou Pedro. – Não me lembrei disso!
– E não há comida à vista! – concluiu Edmundo.

7
UM DIA COM OS CASTORES


Assim conversavam os dois meninos, em voz baixa, quando as meninas gritaram ao mesmo tempo:
– Oh! – E depois pararam.
– O pintarroxo! O pintarroxo sumiu!
– Que vamos fazer agora? – perguntou Edmundo, lançando a Pedro um olhar que significava:
“Que é que eu falei?”
– Psiu! Olhem ali! – disse Susana. – Tem uma coisa ali se mexendo, no meio das árvores. Mais para lá.
Olharam todos com atenção, meio desconfiados.
– Está lá de novo – tornou Susana.
– Ah, agora eu vi – disse Pedro. – Está ali atrás daquela árvore.
– Mas o que é? – perguntou Lúcia, fazendo grande esforço para não parecer medrosa.
– Seja lá o que for – disse Pedro –, está se escondendo de nós. Acho que não quer ser visto.
– Vamos para casa – suplicou Susana. E, embora ninguém se atrevesse a dizê-lo, todos compreenderam de repente aquilo que Edmundo segredava a Pedro no fim do capítulo anterior. Estavam irremediavelmente perdidos.
– Como é ele? – perguntou Lúcia.
– É um bicho qualquer – respondeu Susana. – Olhe, depressa! Lá está ele!
E todos o viram desta vez: focinho peludo, grandes bigodes, parecia espreitá-los por detrás das árvores. Não fugiu logo, pelo contrário, levou a pata à boca, como fazem as pessoas quando põem um dedo nos lábios para nos dizer que devemos ficar em silêncio. E desapareceu de novo. Eles mal respiravam. Um minuto depois, tornou a sair do abrigo atrás das árvores, olhou em volta, com medo de que alguém o visse, e disse:
– Silêncio!
Fez um sinal para que fossem encontrar-se com ele na parte mais cerrada do bosque, e desapareceu novamente.
– Já sei o que é – disse Pedro –, é um castor. Conheço pela cauda.
– E quer que a gente vá lá; avisou para ninguém fazer barulho – disse Susana.
 – Isso eu entendi – falou Pedro. – O problema é este: vamos ou não vamos? Qual a sua opinião, Lu?
– Acho que é um bonito castor – respondeu ela, com simplicidade.
– Bem, mas como é que vamos saber... – começou Edmundo.
– Temos de correr o risco! – afirmou Susana. – Não adianta nada ficarmos aqui parados. Além disso, acho que está na hora do jantar.
Mal disse isso, o castor, atrás das árvores, já acenava para eles com certa aflição.
– Venham! – comandou Pedro. – Vamos ver no que vai dar. Mas todos juntos.
Nós podemos com ele, se for um inimigo.
As crianças seguiram muito juntas, passaram para o outro lado e chegaram perto do castor. Mas o animalzinho, atraindo-os mais para o meio da floresta, só lhes disse num sussurro rouco e gutural:
– Mais para frente, mais para frente! Aqui está bem. Ali na clareira era meio perigoso.
Estavam agora num lugar sombrio, onde cresciam quatro árvores tão juntas que os ramos se tocavam; e o chão estava coberto de agulhinhas de pinheiro, porque ali a neve não entrava. O castor falou:
– Vocês é que são os Filhos de Adão e as Filhas de Eva?
– Somos sim – respondeu Edmundo.
– Psssiu! – fez o castor. – Por favor, não fale tão alto. Nem aqui estamos muitos seguros.
– Mas... de que é que o senhor tem medo? – perguntou Pedro. – Estamos sozinhos aqui.
– E as árvores? – respondeu o castor. – Estão sempre escutando. Quase todas estão do nosso lado, mas há outras que são capazes de contar para ela. Já entenderam de quem estou falando... – E abanou a cabeça várias vezes.
– Se vamos começar a falar em partidos – observou Edmundo –, como é que vou saber se o senhor é amigo ou inimigo?
– Não queremos ofendê-lo, Sr. Castor – acrescentou Pedro. – Mas está vendo que não somos aqui da terra.
– Compreendo, compreendo. Aqui está a prova. – E mostrou-lhes uma coisa branca. Olharam todos admirados, até que Lúcia descobriu:
– Ah, é o meu lenço! O lenço que eu dei ao Sr. Tumnus, coitadinho!
– Perfeito! – confirmou o castor. – O infeliz soube da ordem de prisão com uma certa antecedência e entregou-me isso. Disse-me então que, se por acaso lhe acontecesse alguma coisa, eu deveria encontrar-me aqui com vocês, para levá-los... – e a voz do castor apagou-se de súbito. Fazendo sinais misteriosos, ele juntou as crianças num grupo apertado e acrescentou, num leve sussurro:
– Dizem que Aslam está a caminho; talvez até já tenha chegado.
E aí aconteceu uma coisa muito engraçada. As crianças ainda não tinham ouvido falar de Aslam, mas no momento em que o castor pronunciou esse nome, todos se sentiram diferentes. Talvez isso já tenha acontecido a você em sonho, quando alguém lhe diz qualquer coisa que você não entende mas que, no sonho, parece ter um profundo significado – o qual pode transformar o sonho em pesadelo ou em algo maravilhoso, tão maravilhoso que você gostaria de sonhar sempre o mesmo sonho.
Foi o que aconteceu. Ao ouvirem o nome de Aslam, os meninos sentiram que dentro deles algo vibrava intensamente. Para Edmundo, foi uma sensação de horror e mistério. Pedro sentiu-se de repente cheio de coragem. Para Susana foi como se um aroma delicioso ou uma linda ária musical pairasse no ar. Lúcia sentiu-se como quem acorda na primeira manhã de férias ou no princípio da primavera.
– E o Sr. Tumnus, onde está ele? – perguntou Lúcia.
– Pssssiu! Aqui, não! Vamos para um lugar onde possamos conversar tranqüilamente e comer alguma coisa.
Já todos agora confiavam naturalmente no castor, exceto Edmundo, é claro; e todos também, inclusive Edmundo, ficaram contentíssimos com a palavra “comer”.
Seguiram apressados atrás do novo amigo, que, dando uns passinhos incrivelmente rápidos, foi guiando os quatro durante mais de uma hora, pelos recantos mais densos da floresta. Já se sentiam exaustos e famintos quando, de súbito, as árvores começaram a rarear, e eles a descer por uma encosta íngreme. Minutos depois, já sob um céu sem nuvem, onde o sol brilhava ainda, depararam com uma vista maravilhosa. Estavam num vale estreito, no fundo do qual corria (deveria correr, se não estivesse gelado) um rio razoavelmente grande. Bem debaixo do ponto em que se encontravam haviam construído um dique sobre o rio; e os meninos se lembraram logo de que os castores são fabulosos construtores de diques. Aquela obra – não tiveram dúvida – era do Sr. Castor. Notaram que este tomava um ar modesto... o mesmo ar que as pessoas assumem quando visitamos o jardim que fizeram ou lemos uma história que escreveram. Por isso, era da mais elementar educação que Susana dissesse:
– Que lindo dique!
E desta vez o castor não disse “silêncio!”:
– Ora, ora! Isso não é nada. Não tem a menor importância. E ainda nem está terminado.
Acima do dique havia o que deveria ter sido um lago profundo, mas que agora não passava de uma superfície rasa de gelo esverdeado e escuro. Abaixo do dique, muito mais abaixo, havia mais gelo, mas, em vez de ser liso e plano, tinha as formas ondulantes e espumantes da água, como era no momento em que tudo ficou gelado. Nos lugares em que a água tinha escorrido por cima do dique, via-se agora uma fileira de pingentes brilhantes de gelo, como se fossem flores e grinaldas da mais imaculada brancura. No meio do dique, quase no alto, viram uma linda casinha, que mais parecia uma grande colméia de abelhas. De um buraco que havia no teto subiam nuvens de fumaça, que logo traziam a idéia (sobretudo a quem estivesse com muita fome) de um jantar excelente sendo preparado. E isso aumentou-lhes ainda mais a fome.
Edmundo reparou ainda em outra coisa; um pouco mais longe, lá embaixo, corria outro rio menor por um vale estreito. Olhando pelo vale acima, viu lá adiante duas colinas, que era capaz de jurar serem as mesmas que a feiticeira lhe apontara ao longe, quando dele se separou perto do lampião. Entre as duas colinas devia estar o palácio, a pouco mais de um quilômetro. Lembrou-se do manjar turco e da promessa de vir a ser rei. (“O que ia dizer Pedro, se soubesse!”) Começaram então a brotar-lhe no cérebro umas idéias terríveis.
– Ora, aqui estamos todos – disse o Sr. Castor. – E parece que a Sra. Castor está à nossa espera. Vou na frente para mostrar o caminho. Cuidado para não escorregarem!
A parte alta do dique era bastante larga, mas não era um bom lugar para os humanos caminharem, pois estava coberta de gelo; além disso, embora de um dos lados estivesse o lago gelado, do outro havia um abismo.
O castor conduziu-os em fila indiana até o meio do caminho, de onde podiam contemplar todo o curso do rio, de um lado e do outro. Ao chegarem ao meio, lá estava a casinha.
– Chegamos, Sra. Castor – disse o marido. – Chegaram os Filhos e as Filhas de Adão e Eva.
Logo ao entrar, a atenção de Lúcia foi despertada por um som metálico, e a primeira coisa que viu foi a Sra. Castor, uma velhinha de ar bondoso, sentada de linha na boca, trabalhando a valer na máquina de costura. Era de lá que vinha o som. Parou com o trabalho e levantou-se.
– Ah, chegaram finalmente! – disse ela, juntando as patas enrugadas. – Finalmente! E pensar que eu ainda iria viver para ver este dia! As batatas estão cozinhando! E a chaleira já está cantando! Será que o Sr. Castor poderia arranjar-nos uns peixinhos?
– Já vou – disse o Sr. Castor. Saindo de casa na companhia de Pedro, atravessou o lago até chegar a um buraquinho no gelo, aberto à machadinha.
Levava um balde na mão. Sentou-se com jeito na beira do buraco, sem ligar para o frio; olhou atentamente lá dentro, enfiou de repente a pata e, num instantinho, agarrou uma linda truta. E assim fez várias vezes, até conseguir o que se chama de uma bela pescaria.
Enquanto isso, as meninas ajudavam a Sra. Castor a encher a chaleira, arrumar a mesa, cortar o pão, pôr os pratos. Em um barril que havia num dos cantos da cozinha, encheram uma grande caneca de cerveja para o Sr. Castor e, por fim, puseram a frigideira no fogo para aquecer a gordura. Lúcia achou que os castores tinham uma casinha bem aconchegante, mas não lembrava em nada a caverna do Sr. Tumnus. Ali não existiam livros nem quadros pendurados, e, em vez de camas, havia beliches nas paredes, como nos navios. Do teto pendiam presuntos e réstias de cebola; encostados às paredes viam-se botas de borracha, oleados, machados, tesouras, pás, colheres de pedreiro, vasilhas de argamassa, caniços de pesca, redes e sacos. A toalha da mesa, embora limpa, era meio grosseira.
A frigideira começava a chiar quando Pedro e o Sr. Castor voltaram com os peixes, abertos a canivete e limpos lá fora. Imagine você agora o cheiro bom dos peixes fritando, e como as crianças, azuis de fome, esperavam ansiosamente que ficasse tudo pronto, e a fome aumentando a cada segundo!
– Está quase prontinho! – disse o Sr. Castor.
Susana preparou as batatas, enquanto Lúcia ajudava a Sra. Castor a colocar as trutas na travessa. Cada um puxou o seu banquinho (na casa dos castores só havia banquinhos de três pés, além da cadeira de balanço da Sra. Castor, junto da lareira), prontos para se fartar. Havia um jarro de leite cremoso para as crianças (o Sr. Castor, fiel a seus princípios, preferiu cerveja) e, no centro da mesa, um bom pedaço de manteiga, de que eles se serviam à vontade para passar nas batatas. Aí as crianças chegaram à conclusão – e eu concordo inteiramente com elas – de que não há nada melhor do que um peixinho de rio, que ainda há meia hora estava saltando na água, tirado da frigideira há menos de meio minuto. E, depois do peixe, a Sra. Castor tirou do forno um rocambole muito fofo, ainda fumegando, e pôs no fogo a chaleira. Depois de tomarem o chá, todos inclinaram os banquinhos para trás, para se encostarem à parede, e deram um profundo suspiro de satisfação.
– E agora – disse o Sr. Castor, afastando a caneca de cerveja vazia e puxando a xícara para mais perto –, se não se importam de esperar um momento, até eu acender o cachimbo, vamos às coisas sérias. – E acrescentou, depois de olhar pela janela: – Está nevando outra vez. Melhor! Assim não teremos visitas. E se, por acaso, alguém estiver tentando segui-los, não vai encontrar rasto.


8
DEPOIS DO JANTAR


– E agora quer nos contar o que aconteceu ao Sr. Tumnus? – pediu Lu.
– Ah, é uma triste história – respondeu o Sr. Castor. – Muito triste mesmo. Mas não há dúvida de que foi levado pela polícia. Quem me contou foi um passarinho, que assistiu à cena.
– Mas para onde é que o levaram?
– Bem, iam em direção ao norte, quando os viram pela última vez; e, infelizmente, todos sabem o que isso significa.
– Nós não sabemos – disse Susana, enquanto a Sra. Castor balançava a cabeça com uma expressão sombria.
– Infelizmente significa que o levaram para a casa dela.
– E o que vão fazer com ele, Sr. Castor? – perguntou Lúcia, aflita.
– Bem – disse o castor –, nunca se sabe exatamente. Mas poucos podem dizer que lá entraram e de lá conseguiram sair. Estátuas! Dizem que está tudo cheio de estátuas de pedra: o pátio, a escadaria, o saguão. Seres que ela transformou... – Fez uma pausa e estremeceu. – Que transformou em estátuas de pedra.
– Mas, Sr. Castor, não podemos... quero dizer, temos de fazer tudo para salvá-lo. É terrível... por minha causa!
– Tenho a certeza de que você iria salvá-lo, se pudesse, minha menina – disse a Sra. Castor. – Mas como vai fazer para entrar naquela casa, contra a vontade dela, e sair de lá com vida?
– Mas a gente não pode dar um jeito? – perguntou Pedro. – Quer dizer, se a gente for disfarçado de... sei lá... de vendedores ambulantes ou de qual quer outra coisa... esperar que ela saia de casa... ou... Puxa vida! A gente tem de achar um jeito. O fauno arriscou-se para salvar minha irmã, Sr. Castor! Não podemos abandoná-lo assim, deixar que façam com ele uma coisa dessas!
– Não vale a pena, Filho de Adão! – disse o castor. – Nem vale a pena experimentar. Agora que Aslam está a caminho...
– Ah, é, fale de Aslam! – disseram as crianças em coro. Pois, mais uma vez, tinham sido envolvidas por aquela estranha sensação que lembrava os primeiros sinais da primavera, e que parecia trazer notícias maravilhosas.
– Aslam?! – exclamou o Sr. Castor. – Então não sabem? Aslam é o rei. É o verdadeiro Senhor dos Bosques, embora já há muito esteja ausente. Desde o tempo do meu pai e do meu avô. Agora chegou a notícia de que vai voltar. Neste momento mesmo está em Nárnia. Ele dará um jeito na Feiticeira Branca, não se preocupem. Ele, e não vocês, meus filhos, há de salvar o Sr. Tumnus.
– E se ela transformar também ele numa estátua de pedra? – perguntou Edmundo.
– Deixe com ele, Filho de Adão. Não é tão fácil assim! – respondeu o Sr. Castor, caindo na gargalhada. – Transformar ASLAM em pedra? Se ela conseguir manter-se em pé diante dele, olhá-lo cara a cara, já é caso para dar-lhe os parabéns. Não, não. Ele vem botar tudo nos eixos. Assim diz um velho poema que costumamos cantar:
O mal será bem quando Aslam chegar,
Ao seu rugido, a dor fugirá,
Nos seus dentes, o inverno morrerá,
Na sua juba, a flor há de voltar.
– Quando vocês virem Aslam, hão de entender tudo.
– E chegaremos a vê-lo, um dia? – perguntou Susana.
– Mas é claro, Filha de Eva; foi para isso que eu os trouxe até aqui. Vou guiá-los até ele.
– E ele é um homem? – perguntou Lúcia.
– Aslam, um homem! – disse o Sr. Castor, muito sério. – Não, não. Não lhes disse eu que ele é o Rei dos Bosques, filho do grande Imperador de Além-Mar? Então não sabem quem é o rei dos animais? Aslam é um leão... o Leão, o grande Leão!
– Ah! – exclamou Susana. – Estava achando que era um homem. E ele... é de confiança? Vou morrer de medo de ser apresentada a um leão.
– Ah, isso vai, meu anjo, sem dúvida – disse a Sra. Castor. – Porque, se alguém chegar na frente de Aslam sem sentir medo, ou é o mais valente de todos ou então é um completo tolo.
– Mas ele é tão perigoso assim? – perguntou Lúcia.
– Perigoso? – disse o Sr. Castor. – Então não ou viu o que Sra. Castor acabou de dizer? Quem foi que disse que ele não era perigoso? Claro que é, perigosíssimo. Mas acontece que é bom. Ele é REI, disse e repito.
– Estou louco para ver o rei – disse Pedro –, mesmo que tenha muito medo.
– Muito bem, Filho de Adão! – aplaudiu o Sr. Castor, batendo com a pata em cima da mesa com tal força que os pires e as xícaras tilintaram. – Vai vê-lo, pode estar certo. Recebi há pouco uma mensagem anunciando que vocês devem encontrar-se com ele amanhã, na Mesa de Pedra.
– Onde é isso? – indagou Lúcia.
– Eu lhes mostro o caminho – disse o Sr. Castor. – Ainda é uma boa jornada daqui até lá, seguindo pela margem rio abaixo. Mas eu os levo lá.
– Mas e o coitado do Sr. Tumnus? – perguntou Lúcia.
– O melhor meio para salvá-lo é procurar Aslam – disse o castor. – Enquanto ele não chegar, não podemos agir. Não é que não precisemos de vocês, longe disso. Aí vai outra das nossas velhas canções:
Quando a carne de Adão,
Quando o osso de Adão,
Em Cair Paravel,
No trono sentar,
Então há de chegar
Ao fim a aflição.
Por isso, agora que ele já chegou, e que vocês também chegaram, tudo se encaminha para o fim. Sabemos que Aslam já veio outrora a esta região, mas há muito, muito tempo, ninguém sabe bem quando. Mas os seus, os da sua raça, estes não há lembrança de terem estado aqui.
– Mas é isso que eu não entendo, Sr. Castor – disse Pedro. – Então a feiticeira não é humana?
– É o que ela nos queria fazer crer! – respondeu o castor. – É por isso que ela se diz com direito ao trono. Mas Filha de Eva é que ela não é. Sim, descende por um lado da primeira mulher do seu pai Adão (e a este nome, o Sr. Castor fez uma peque na reverência), a que se chamava Lilith, e era da raça dos gênios. Isso, por um lado. Por outro, descende dos gigantes. Não, na feiticeira não há nem uma gota de sangue humano.
– Por isso é que ela é ruim até a raiz do cabelo – disse a Sra. Castor.
– É pura verdade – disse o marido. – Pode haver duas opiniões sobre os humanos (sem qualquer ofensa para os presentes), mas não pode haver a menor dúvida acerca de seres que parecem humanos mas não o são.
– Pois eu já encontrei anões bons – disse a Sra. Castor.
– Já que fala nisso, eu também – concordou o marido. – Mas pouquíssimos, e os melhores são até os que menos se parecem com os homens.
Porque em geral, podem acreditar, quando encontramos um ser que vai ser humano, mas ainda não é, ou que o foi no passado, e depois deixou de ser, ou que devia ser humano, mas na verdade não o é, o melhor é ter cuidado e ficar de pé atrás. E por isso que a feiticeira anda sempre à procura de humanos em Nárnia. Há muitos anos que ela procura vocês, sem parar; e se soubesse que vocês são quatro, seria então muito mais perigosa.
– Mas que tem isso de especial? – perguntou Pedro.
– É que existe uma outra profecia. Lá embaixo, em Cair Paravel, no castelo que dá para o mar, junto da foz do rio, e que devia ser a capital se tudo corresse como devia... Lá, em Cair Paravel, há quatro tronos. Uma velhíssima tradição de Nárnia já anunciava que, quando dois Filhos de Adão e duas Filhas de Eva se sentarem nos quatro tronos, então será o fim, não só do reinado da feiticeira, mas da própria feiticeira. Foi por isso que usei de tanta cautela quando viemos para cá; por que, se ela suspeitasse da chegada de vocês, eu não daria uma truta pela vida dos quatro...
Os meninos estavam tão amarrados nos lábios do Sr. Castor, que por muito tempo não prestaram atenção a mais nada. Mas, no silêncio que se seguiu às suas últimas palavras, Lúcia, de repente, perguntou:
– Onde está Edmundo?
Foi um silêncio terrível; depois começaram a indagar:
– Quem foi o último a vê-lo?
– Há quanto tempo desapareceu?
– Terá ido lá fora?
Correram todos para a porta. Lá fora, a neve caía lenta e firme, e o gelo esverdeado do lago já estava coberto de um espesso lençol branco. Mesmo no meio do dique, mal conseguiam avistar as margens do rio. Enterrando os tornozelos na neve recente, deram voltas em todas as direções.
– Edmundo! Edmundo! – ficaram roucos de gritar. A neve, caindo silenciosamente, parecia abafar-lhes as vozes, e nem o eco respondia.
– Que coisa pavorosa! – disse Susana, quando, por fim, resolveram voltar, já sem nenhuma esperança. – Quem me dera que eu nunca tivesse vindo!
– E que vamos fazer agora, Sr. Castor? – indagou Pedro.
– Que vamos fazer? – disse o castor, já enfiando as botas de neve. – Que vamos fazer? Precisa mos partir imediatamente. Não temos um minuto a perder.
– Não era melhor a gente seguir em quatro grupos – sugeriu Pedro –, cada um numa direção? Quem encontrar Edmundo, retorna logo à base...
– Quatro grupos, Filhos de Adão? – perguntou o Sr. Castor. – Para quê?
– Para procurar!
– Não vai adiantar nada! – disse o castor.
– Que quer dizer com isso? Ele não pode estar longe. Temos de encontrá-lo. Por que diz que não vai adiantar? – perguntou Susana.
– Não vale a pena procurá-lo, pois eu sei perfeitamente para onde ele foi! – Todos arregalaram os olhos, espantados. – Não estão entendendo? Foi encontrar-se com ela, a Feiticeira Branca. Traiu-nos a todos.
– Oh, francamente, essa não! – exclamou Susana. – Ele não faria uma coisa dessas.
– Acham que não? – perguntou o castor, olhando tão fixamente para os três, que eles perderam a vontade de falar, certos, no íntimo, de que Edmundo não tinha feito outra coisa.
– Mas como é que ele sabe o caminho? – perguntou Pedro.
– Ele já esteve alguma vez em Nárnia? Já esteve aqui sozinho?
– Já – respondeu Lúcia, quase num murmúrio. – Infelizmente, já.
– E contou o que fez aqui? Quem encontrou?
– Não, nunca! – respondeu Lúcia.
– Então, prestem atenção: ele já esteve com a Feiticeira Branca; está do lado dela; sabe muito bem onde ela mora. É triste dizer-lhes isso, porque, afinal de contas, é irmão de vocês, mas foi só olhar para ele e disse cá comigo: “Este é um traidor.” Tinha todo o ar de já ter encontrado a feiticeira e comido dos seus manjares encantados. Quem vive há muito tempo em Nárnia não se engana: dá logo com eles. Nós os conhecemos pelos olhos.
– Seja lá como for – disse Pedro, numa voz um tanto sufocada –, temos de ir atrás dele. Afinal, é nosso irmão, um pouco imbecil e mau, mas irmão. E, pensando bem, não passa de uma criança.
– E querem ir à casa da feiticeira? – perguntou a Sra. Castor. – Mas a única possibilidade de salvação, dele e de vocês, é fugirem dela, de qualquer forma.
– Não entendi – disse Lúcia.
– E isso mesmo, menina. O que ela quer é apanhar os quatro: está sempre pensando nos quatro tronos de Cair Paravel. Se insistem em ir procurá-la, só vão ajudá-la a conseguir o que quer. É chegar lá e, antes de abrirem a boca, são mais quatro estátuas de pedra acrescentadas à coleção. Mas, pelo contrário, enquanto Edmundo for o único, ela há de querê-lo vivo, para servir-se dele como isca.
– Mas não há ninguém que possa ajudar a gente?
– Só Aslam – sentenciou o Sr. Castor. – Vamos procurá-lo. É a nossa única esperança.
– Meus filhos – disse a Sra. Castor –, o importante, para mim, é saber em que momento o irmão de vocês escapuliu. Conforme o que ouviu, podemos saber o que foi contar. Vejamos: já tínhamos falado de Aslam quando ele saiu? Se não, podemos ficar tranqüilos, uma vez que ela não sabe que Aslam já está em Nárnia, ou que nós vamos encontrá-lo...
– Acho que já não estava aqui quando falamos de Aslam... – disse Pedro, logo interrompido por Lúcia.
– Estava, sim – contrariou ela, tristemente. – Não se lembra? Foi ele quem perguntou se a feiticeira não podia transformar Aslam em estátua.
– É verdade! – disse Pedro. – E é mesmo o tipo de pergunta que ele costuma fazer.
– Então estamos fritos – disse o Sr. Castor. – Mas, vejamos: ele ainda estava presente quando eu disse que o ponto de encontro com Aslam era a Mesa de Pedra?
Ninguém soube responder.
– O negócio é o seguinte: se ele estava aqui e foi contar à feiticeira – continuou o castor –, ela imediatamente vai disparar com seu trenó na direção da Mesa de Pedra e colocar-se em nosso caminho. E o que ela quer: impedir o nosso contato com Aslam.
– Está certo, mas, se a conheço bem – disse a Sra. Castor –, não é isso que ela vai fazer primeiro. Quando Edmundo disser que estamos aqui, é capaz de sair em disparada para agarrar a gente ainda esta noite; como ele já saiu há meia hora, é bem provável que ela esteja aqui dentro de uns vinte minutos.
– Tem toda a razão, Sra. Castor – disse o marido. – Temos de cair fora imediatamente. Não há tempo a perder.

9
NA CASA DA FEITICEIRA


E agora você, naturalmente, quer saber o que aconteceu a Edmundo. Jantou como os outros, mas sem gosto, pensando o tempo todo no manjar turco... E não há nada que tire tanto o gosto da boa comida caseira do que a lembrança de um mau alimento enfeitiçado. Ouviu a conversa dos outros, também sem satisfação, pois continuava pensando que não lhe davam a devida importância e que o estavam colocando à margem. Ninguém pensava assim, só ele.
Desse modo, ouvira tudo o que o Sr. Castor contara acerca de Aslam, até o momento em que tinham combinado encontrar-se com ele na Mesa de Pedra. Foi aí que, muito sorrateiramente, começou a esgueirar-se por debaixo do reposteiro que cobria a porta. Bastava o nome de Aslam para dar-lhe uma sensação misteriosa e horrível, assim como aos outros dava uma misteriosa sensação de encantamento.
No momento exato em que o Sr. Castor dizia o poema sobre a “carne de Adão e o osso de Adão”, Edmundo saiu de mansinho, fazendo girar mais de mansinho ainda a maçaneta da porta. Antes que o Sr. Castor dissesse que a Feiticeira Branca não era de fato humana, mas da raça dos gênios e dos gigantes, Edmundo estava lá fora.
Não pense que Edmundo era tão ruim a ponto de desejar ver o irmão e as irmãs transformados em estátuas de pedra. O que ele queria simplesmente era comer manjar turco, ser príncipe (e mais tarde rei) e vingar-se de Pedro, que o chamara de “cavalo”. Quanto ao que a feiticeira pudesse fazer aos irmãos, não queria que fosse coisa muito boa (sobretudo que ela não os colocasse no mesmo nível dele). Mas estava convencido (ou tentava convencer-se) de que ela não poderia ser tão má como diziam. “Porque” – pensava ele – “os que falam mal dela são os inimigos, e é provável que metade do que dizem não seja verdade. Aliás, comigo foi bastante amável, muito mais do que qualquer um deles. Que bom se ela for a verdadeira rainha! É melhor do que aquele pavoroso Aslam!” Foi essa, pelo menos, a desculpa que Edmundo arranjou para justificar o próprio comportamento. Mas a desculpa não era lá essas coisas, pois no fundo sabia que a feiticeira era cruel.
Lá fora, a primeira coisa que percebeu quando viu a neve foi que havia esquecido o casaco na casa dos castores. Mas nem podia pensar em voltar. Viu também que o dia estava no fim. Eram três horas quando começaram a comer, e os dias de inverno são muito curtos. Não contava com isso: agora tinha de aproveitar a pouca luz que restava. Levantou a gola e lá se foi, arrastando-se sobre o dique na direção da outra margem (felizmente o dique estava muito menos escorregadio).
A coisa estava feia. Escurecia depressa e a neve dançava em flocos em torno dele. Não via um palmo adiante do nariz. Ainda por cima, não havia estrada. Afundava-se a todo instante em enormes fendas abertas na neve, patinhava em charcos gelados, tropeçava em troncos caídos, escorregando por encostas íngremes, esfolando as pernas nas pedras, até que ficou encharcado até os ossos, morto de frio e cheio de arranhões. Tinha medo do silêncio e da solidão. Estou certo de que teria abandonado o projeto e voltado para contar tudo e fazer as pazes com os outros, se, a certa altura, não dissesse com seus botões: “Quando eu for o rei, minha primeira medida vai ser mandar construir estradas decentes!” Daí, passou naturalmente a imaginar-se rei, a pensar nas mil e uma coisas que haveria de fazer. Sentiu-se até mais animado. Escolheu o tipo de palácio que mandaria construir; decidiu de quantos carros precisava; imaginou todos os pormenores de seu cinema particular; estabeleceu por onde deviam passar as principais linhas de estrada de ferro; pensou nas leis que enviaria ao Parlamento contra os castores e as drogas de seus diques... Dava os últimos retoques a algumas medidas indispensáveis para enquadrar Pedro, quando, de súbito, o tempo mudou. Primeiro, foi a neve que deixou de cair. Em seguida, veio um vento forte, acompanhado de intenso frio. Finalmente, as nuvens se afastaram, mostrando uma lua cheia, redondíssima, que, brilhando sobre a neve, deixou tudo tão claro como se fosse dia. Só as sombras faziam certa confusão.
Edmundo nunca teria dado com o caminho se a lua não tivesse surgido no momento em que ele chegou ao outro rio – você se lembra que ele viu (quando chegaram à casa dos castores pela primeira vez) um rio menor, afluente do rio grande mais abaixo. Agora, tendo chegado ao rio menor, virou-se decidido a segui-lo. Mas o vale ao qual levava o rio era muito mais íngreme e escarpado que o primeiro, e todo coberto de arbustos. Às escuras, era difícil orientar-se nele. Mesmo assim, Edmundo ficou encharcado até os ossos, pois a todo instante tinha de abaixar-se e esgueirar-se sob os ramos, caindo-lhe sobre as costas montões de neve. Cada vez que isso acontecia, sentia redobrar nele o ódio a Pedro, como se o irmão fosse o culpado de tudo.
Ao fim de muito tempo, conseguiu chegar a um lugar mais plano, onde o vale se alargava. Do outro lado do rio, bem perto, no meio de uma planície, entre duas colinas, viu o que devia ser a casa da feiticeira. O luar estava mais belo do que nunca. A casa era de fato um pequeno castelo e parecia ser toda feita de torres de longas espirais pontiagudas, afiadas como agulhas. Faziam lembrar aqueles chapéus bicudos dos feiticeiros ou os gorros que os meninos usavam de castigo na escola. E as torres brilhavam ao luar, alongando sombras sinistras sobre a neve. Edmundo começou a sentir medo.
Mas era tarde demais para voltar. Atravessou o rio gelado, em direção ao castelo. Tudo imóvel, um silêncio absoluto. O som de seus passos morria na neve funda. Foi andando,andando,rodeou o castelo, passando por várias torres até dar com uma porta. Foi preciso dar uma volta inteira. A entrada era um arco enorme, mas os pesados portões de ferro estavam abertos.
Aproximou-se cautelosamente e olhou o pátio, onde um espetáculo inesperado quase lhe fez parar o coração. Junto dos portões, batido de luar, viu um leão imenso, agachado como se fosse pular. Com os joelhos trêmulos, Edmundo permaneceu na sombra, sem poder avançar ou recuar. Ficou tanto tempo imóvel, que seus dentes teriam começado a bater de frio, se já não batessem de medo. Não sei dizer realmente quanto tempo passou; para Edmundo pareceram horas.
A certa altura, começou a imaginar por que motivo o leão estaria tão quieto: não se mexera um centímetro desde que o vira. Chegou um pouco mais perto, tendo o cuidado, tanto quanto possível, de conservar-se na sombra. Foi aí que, pela posição do leão, concluiu que não podia ter sido visto. “E se ele virar a cabeça?” – pensou. Na realidade, o leão olhava atento para outra pessoa, nada mais, nada menos que um anãozinho, de costas, a pouca distância.
– Ah! Quando se lançar para cima do anãozinho, eu saio correndo!
Mas o tempo passava, e o leão e o anãozinho continuavam imóveis. Até que, finalmente, Edmundo se lembrou do que ouvira dizer sobre a Feiticeira Branca, que transformava os seres vivos em estátuas de pedra. Aquele leão talvez fosse de pedra... Reparou também que o dorso e a cabeça do leão estavam cobertos de neve. Sem dúvida: era uma estátua. Nenhum ser vivo deixaria que a neve o cobrisse daquela maneira. Muito devagar, com o coração a saltar do peito, encaminhou-se para o leão, mas não ousou tocá-lo. Só depois de muito tempo, num movimento rápido, estendeu a mão e viu que era pedra fria. Tinha sentido medo de uma estátua!
Foi um alívio imenso, tanto que, apesar do frio, se sentiu envolvido por uma onda de calor, ao mesmo tempo que teve uma idéia que lhe pareceu maravilhosa: “Provavelmente... é o grande Aslam, de quem todos falam. Já foi apanhado e virou pedra. Aqui está o fim de todos os belos sonhos daqueles lá. Bacana! E ainda há quem tenha medo de Aslam!”
Ficou gozando do leão de pedra, até que fez uma grande criancice: tirou do bolso um toco de lápis, cobrindo com um bigodão preto o beiço superior do leão e desenhando-lhe um par de óculos.
– Taí, Aslam, seu grande boboca! Está gostando de ser estátua? Pensava que era muito esperto, hein?
Apesar dos rabiscos, a expressão do gigantesco animal era ainda tão terrível, tão triste, tão digna, com os olhos perdidos no luar, que Edmundo não conseguiu divertir-se com a brincadeira. Passou pelo leão e foi andando pelo pátio.
Ao chegar no centro, viu que havia dezenas de estátuas espalhadas por todos os lados, como peças num tabuleiro de xadrez, durante a partida. Havia sátiros de pedra, lobos, raposas, gatos selvagens. Havia também lindas figuras, que pareciam mulheres e que eram na verdade os espíritos que vivem nas árvores. Havia ainda a estátua enorme de um centauro, um cavalo alado e uma figura, alongada e frágil, que tomou por um dragão. Tinham todos um ar tão estranho de coisas vivas, mas imóveis, no luar branco e frio, que ele atravessou o pátio com a sensação de quem vive um conto de fadas. Exatamente no centro, elevava-se a figura de um homem da altura de uma árvore, de expressão severa, barba em profusão, com um varapau enorme na mão direita. Mesmo sabendo que se tratava apenas de um gigante de pedra, e não de carne e osso, Edmundo estremeceu ao passar por ele.
Depois reparou na luz mortiça que vinha de uma porta, no lado mais afastado do pátio. Dirigiu-se para lá e encontrou uma escada que conduzia a uma porta aberta. Subiu. Deitado, à entrada, estava um lobo enorme.
– Não há perigo! Não há perigo! – repetia, tentando tranqüilizar-se. – É um lobo de pedra. Não pode fazer nada.
Levantou a perna para passar por cima do lobo. A criatura, monstruosamente grande, levantou-se, de pêlo eriçado, escancarou a boca rubra e rosnou:
– Quem está aí? Pare, intruso. Quem é você?
– Com licença, Sr. Lobo – começou Edmundo, tremendo tanto, que mal podia falar. – Meu nome é Edmundo, e sou o Filho de Adão que Sua Majestade a Rainha encontrou há poucos dias no bosque. Venho para contar que meu irmão e minhas irmãs estão neste momento em Nárnia... aqui pertinho, na casa dos castores. Ela... ela quer vê-los.
– Vou informar Sua Majestade – falou o lobo. – Espere aqui e não se mexa, se gosta de viver.
Desapareceu dentro da casa. Edmundo esperou em pé. Os dedos gelados doíam-lhe, o coração batia descompassadamente. Por fim, o lobo cinzento, Maugrim, chefe da polícia secreta, voltou aos saltos:
– Entre, entre, ditoso favorito da Rainha. Ditoso ou desditoso, quem sabe?
Entrou, tendo o cuidado de não pisar nas patas do chefe da polícia secreta. Viu-se logo num saguão comprido e sombrio, com muitos pilares e, como o pátio, cheio de estátuas. A que estava mais perto da porta era a de um pequeno fauno, com uma expressão muito triste. Seria o amigo de Lúcia? A pouca claridade que havia chegava de um único lampião, junto do qual estava sentada a Feiticeira Branca.
– Aqui estou, Majestade – disse Edmundo, avançando, aflito.
– Como se atreve a vir sozinho? – perguntou a feiticeira em tom de ameaça. – Não dei ordem para que trouxesse seus irmãos?
– Perdão, Majestade. Fiz o que pude. Eles estão aqui perto... na casinha que fica sobre o dique, no rio, onde vive o casal de castores.
Um sorriso cruel desenhou-se lentamente no rosto da feiticeira.
– É tudo quanto tem a dizer?
– Não, Majestade – respondeu Edmundo, apressando-se a contar tudo o que ouvira na casa dos castores.
– O quê!? Aslam! Aslam! Será possível? Se descubro que é mentira sua...
– Perdão. Estou só repetindo o que ouvi – gaguejou Edmundo.
Mas a rainha já deixara de preocupar-se com ele e batia palmas. E logo apareceu o anão que antes a acompanhava na floresta.
– Prepare o trenó – ordenou a Feiticeira Branca. – E tire os guizos dos arreios.


10
O ENCANTAMENTO COMEÇA A QUEBRAR-SE


Logo que o Sr. Castor declarou que não havia tempo a perder, começaram todos a enfiar os casacos, menos a Sra. Castor, que se pôs a apanhar sacos e a colocá-los em cima da mesa.
– Sr. Castor, passe-me aquele presunto – disse ela. – Aqui também está um pacote de chá, açúcar e fósforos. Um de vocês apanhe dois ou três pães, na arca daquele canto.
– O que a senhora está fazendo? – perguntou Susana.
– Arranjando merenda para todos, minha filha. É bom levar alguma coisa para comer, não é?
– Mas é que não temos tempo! – protestou Susana, abotoando o casaco até em cima. – Ela pode aparecer a qualquer minuto.
– É o que eu digo! – concordou o castor.
– Não sejam bobos! Ela demora uns bons quinze minutos até chegar aqui.
– Mas precisamos ganhar tempo para ver se chegamos à Mesa de Pedra antes dela – disse Pedro.
– É isso – insistiu Susana. – Quando vir que não estamos aqui, sairá atrás de nosso rasto como um foguete.
– Ah, isso vai – concordou a Sra. Castor. – Ela vai de trenó, e nós vamos a pé: nunca chegaremos antes.
– Tudo está perdido, então? – perguntou Susana.
– Deixe de aflições, minha filha, e vá buscar naquela gaveta meia dúzia de lenços. Claro que não está tudo perdido. Não chegaremos antes dela, mas poderemos escolher um caminho diferente daquele que ela pensa. Assim talvez a gente escape.
– Muito bem, muito bem – disse o marido. – Mas a esta hora já devíamos estar a caminho.
– Ai, vida minha, não comece o senhor também a me atrapalhar. Vamos... assim... não, assim.
Aqui estão quatro saquinhos: o menorzinho para a menorzinha; é para você, minha querida! – acrescentou, voltando-se para Lúcia.
– Pelo amor de Deus, vamos – disse Lúcia.
– Estou quase pronta. – A Sra. Castor permitiu que o marido a ajudasse a calçar as botas de andar na neve. – A máquina de costura deve ser um pouco pesada para levar, não é?
– Pesada? – disse o marido. – Pesadíssima! Ou será que a senhora acha que vai ter tempo de costurar pelo caminho?
– A idéia de que aquela bruxa é capaz de mexer nela... quebrar... até roubar...
– Por favor, vamos logo? – disseram em coro os três.
Saíram finalmente. O Sr. Castor fechou a porta a chave (“Isto vai atrasá-la um pouco mais”, explicou), e começaram a andar, cada um com seu farnel às costas.
A neve cessara e a lua aparecera. Iam em fila indiana: primeiro, o Sr. Castor, depois Lúcia, Pedro, Susana e, por fim, a Sra. Castor. Atravessado o dique, seguiram ao longo do rio por uma vereda estreita, que se alongava entre as árvores. As encostas do vale alteavam-se sobre as cabeças dos viajantes, banhadas de luar.
– Ê melhor ir aqui por baixo – propôs o Sr. Castor –, pois não há trenó que desça aqui; ela terá de ir por cima.
Teria sido muito agradável estar sentado numa boa poltrona, apreciando a paisagem pela janela. Mesmo assim, Lúcia não deixou de se divertir, a princípio. Mas, pouco a pouco, com o saco pesando-lhe nas costas cada vez mais, ela imaginava se teria forças para chegar até o fim. Não reparou na superfície gelada do rio, nas quedas d’água transformadas em cascatas de gelo, nos montões de neve branca que se acumulavam no alto das árvores, na grande lua resplandecente, no céu crivado de estrelas. Só conseguia olhar para as perninhas curtas do Sr. Castor, tope-tope, tope-tope, como se aquela caminhada pela neve não fosse terminar nunca. Lúcia estava tão cansada que quase dormiu andando. De repente percebeu que o Sr. Castor virara para a direita, afastando-se da margem do rio, levando-os por uma encosta íngreme, onde o mato era mais espesso. Despertou completamente quando o Sr. Castor desapareceu num buraco que os arbustos ocultavam. Quando deu pelo que estava acontecendo, só pôde ver a pontinha da cauda desaparecer pelo buraco.
Ela abaixou-se e começou a rastejar atrás do castor. Ouviu às costas o ruído de quem se arrasta, ofegante. Daí a pouco estavam os cinco dentro da caverna.
– Por que isso? – perguntou Pedro, numa voz que na escuridão soou cansada e pálida. (Espero que você saiba o que é uma voz pálida.)
– É um velho esconderijo dos castores, para situações de grande perigo – explicou o Sr. Castor. – É um segredo nosso. Não é muito confortável, mas aqui poderemos dormir um pouco
– Se vocês não estivessem com tanta pressa, tinha trazido umas almofadas – disse a Sra. Castor, em tom de censura.
Para Lúcia, a caverna não era tão agradável quanto a do Sr. Tumnus – na verdade, era um simples buraco –, mas pelo menos estava seca. No pequeno espaço, eles pareciam um monte de roupas. Mas se sentiam bem aconchegados. Se pelo menos o chão fosse um pouquinho mais liso! Foi aí que a Sra. Castor passou a todos, no escuro, um frasco de onde beberam qualquer coisa que fazia tossir e engasgar. Mas, uma vez bebida, a coisa dava um calor delicioso... e adormeceram instantaneamente.
Lúcia teve a impressão de que tinham passado uns poucos minutos. Na realidade, foram horas. Acordou com frio, o corpo doído, sonhando com um banho quente. Depois sentiu uns compridos bigodes que lhe faziam cócegas no rosto e viu que a luz fria da manhã já entrava pela boca da caverna. Mas estava totalmente acordada, e os outros também. Todos estavam sentados, boquiabertos e de olhos arregalados, dando toda a atenção a um som – aquele mesmo som que estavam imaginando (e que quase chegaram a escutar) durante o passeio da noite anterior. Era o tilintar de muitas sinetas.
O Sr. Castor saiu do esconderijo, rápido como uma flecha. Você pode achar, como Lúcia achou, que foi uma bobagem da parte dele. Pelo contrário, foi uma coisa muito ajuizada. Ele sabia que podia rastejar entre as moitas, sem ser visto, até o alto da montanha. Queria saber, antes de tudo, que rumo tomava o trenó da feiticeira. Os outros ficaram à espera, imaginando o que poderia ter acontecido. Esperaram cinco minutos, até que ouviram algo que os fez estremecer de pavor. Eram vozes!
– Só pode ter sido apanhado! – pensou Lúcia.
Foi grande o espanto geral quando ouviram a voz do Sr. Castor, do lado de fora da caverna:
– Não há perigo. Pode vir, Sra. Castor. Venham todos, Filhos de Adão. Tudo bem! Não é dela!
A gramática estava errada, mas é assim que os castores falam quando estão excitados, isto é, em Nárnia, porque em nosso mundo não abrem o bico, geralmente.
A Sra. Castor e as crianças correram para fora, piscando por causa da luz, sujas de terra, descabeladas, muito desarrumadas, esfregando os olhos de sono.
– Venham! – repetia o castor, quase dançando de alegria. – Venham só ver! Que surpresa para a feiticeira! O poder dela já está balançando.
– Que se passa, Sr. Castor? – perguntou Pedro, ofegante, subindo pela encosta íngreme.
– Não disse a vocês que, por artes dela, era sempre inverno e o Natal nunca chegava? Não disse?
Pois vejam agora!
E, de fato, lá em cima todos puderam ver.
Era um trenó puxado por duas renas, com sinetas tilintando nos arreios. Renas muito maiores que as da feiticeira, mas eram castanhas, e não brancas. No trenó estava alguém que todos reconheceram à primeira vista. Era um homem alto, vestido de vermelho-vivo como as bagas do azevinho, com um capuz forrado de pele, uma barba branca, tão comprida que lhe cobria o peito como uma queda d’água espumante. Todos o reconheceram porque, embora essas pessoas só existam em Nárnia, podemos vê-las em gravuras e ouvir a respeito delas, mesmo em nosso mundo – o mundo que fica do lado de cá da porta do guarda-roupa. Oh! Mas quando se tem a sorte de ver essa gente em Nárnia é muito diferente! Alguns dos postais coloridos de Papai Noel que podemos ver em nosso mundo mostram um velho engraçado e bonachão. Não era bem assim para as crianças. Era tão grande, tão alegre e tão real, que ficaram paralisadas de espanto. E, apesar de todo o contentamento, sentiam também que era um momento solene.
– Aqui estou, afinal! – disse ele. – Ela me impediu de vir durante muito tempo, mas acabei chegando. Aslam está a caminho. O poder mágico da feiticeira já começou a declinar.
Lúcia sentiu-se percorrida por aquele calafrio de alegria que só sentimos nas solenidades imponentes e tranqüilas,
– E agora – prosseguiu Papai Noel – vamos aos presentes! Aqui está uma máquina de costura nova, último modelo, para a Sra. Castor. Vou deixá-la na casa, quando passar por lá.
– Queira desculpar – disse ela, fazendo uma reverência –, mas a casa está fechada.
– Fechaduras e chaves não têm a menor importância para mim – respondeu Papai Noel. – Quanto ao seu presente, Sr. Castor, quando voltar, vai encontrar o seu dique terminado, consertado em todos os pontos onde vazava água e, além disso, uma comporta novinha em folha.
O Sr. Castor ficou tão alegre que sua boca se abriu totalmente, mas então ele descobriu que não conseguia dizer uma palavra.
– Pedro, Filho de Adão – continuou Papai Noel.
– Presente! – disse Pedro.
– Presentes para você. São ferramentas, e não brinquedos. Talvez não esteja longe o dia em que precisará usá-las. Com honra!
E entregou a Pedro um escudo e uma espada. O escudo era cor de prata, com um leão rubro no centro, lustroso como um morango pronto para ser colhido. A espada tinha punho de ouro, bainha, cinto, tudo, e parecia feita sob medida. Pedro recebeu os presentes em grave silêncio, sentindo que se tratava de uma coisa muito séria.
– Susana, Filha de Eva! Isto é para você. – E Papai Noel entregou-lhe um arco, uma aljava cheia de setas e uma trompazinha de marfim. – Só deve usar o arco em grande risco, pois não quero que você tome parte ativa na luta. Raras vezes falha o alvo. Quanto à trompa, é só levá-la aos lábios e tocar: auxílio lhe virá de alguma parte.
– Lúcia, Filha de Eva! – Papai Noel estendeu-lhe uma garrafinha, que parecia de vidro (houve mais tarde quem dissesse que era de diamante) e um punhal muito pequeno. – Esta garrafa contém um tônico feito do suco de uma flor de fogo que cresce nas montanhas do sol. Se um amigo estiver ferido, bastam algumas gotas para curá-lo. O punhal é para a sua defesa, em caso de extrema necessidade. Porque você também não deve entrar na luta.
– Por que não, meu senhor? – disse Lúcia. – Acho que... bem, não sei... mas acho que eu era capaz de não ter medo!
– O problema não é esse. E que as batalhas são mais feias quando as mulheres tomam parte nelas. E agora – continuou, com uma expressão muito me nos solene –, agora aqui está para vocês todos!...
E Papai Noel apresentou-lhes (deve ter tirado do grande saco, mas a verdade é que ninguém deu por isso) uma enorme bandeja, com cinco taças de chá, com os respectivos pires, um açucareiro, uma tigelinha de creme de leite e uma grande chaleira ainda a chiar. E gritou em seguida:
– Feliz Natal! Viva o Verdadeiro Rei! – Estalou o chicote e desapareceram, ele, as renas, o trenó, tudo, antes que os outros se dessem conta de que tinham ido embora.
Pedro mostrava a espada desembainhada ao Sr. Castor quando ouviu a voz da Sra. Castor:
– Vamos deixar de conversa, que o chá esfria. Os homens, vocês sabem, são um caso sério. Vamos, ajudem-me a levar a bandeja lá para baixo e vamos ao chá. Ainda bem que não me esqueci de trazer a faca de pão.
Desceram a encosta íngreme de volta à caverna, onde o Sr. Castor, em meio ao contentamento geral, cortou o pão e o presunto para fazer sanduíches. A festa ainda estava animada quando Sr. Castor anunciou:
– Está na hora, pessoal. Vamos em frente.

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