domingo, 27 de março de 2011

Terra das Sombras - Capítulos 7 ao 9

Capítulo 7


Mas no fim das contas eu fiz amigos sim. Não que eu fizesse força. Eu nem queria mes­mo. Já tenho amigos suficientes lá no Brooklyn. Tenho a Gina, a melhor amiga que alguém poderia ter. Não precisava de mais amigos.
E não achava realmente que alguém aqui fosse gostar de mim - muito menos depois de terem sido obrigados a fa­zer uma redação de mil palavras por causa do que aconte­ceu depois que eu cheguei. E muito menos ainda depois do que aconteceu quando fomos informados de que tinha chegado a hora do segundo período - a Academia da Missão não tinha sirene, nós trocávamos de sala de hora em hora o tínhamos cinco minutos para chegar ao destino. Mal o professor Walden nos dispensou a menina albina virou-se na cadeira e me perguntou, com os olhos brilhando de rai­va por trás das lentes de cor dos óculos:
E agora por acaso espera que te agradeça pelo que você disse para a Debbie?
Por mim você não tem que agradecer coisa nenhuma - respondi, levantando-me.
Ela também se levantou:
Mas foi por isto que você fez aquilo, não foi? Defen­dendo a albina... Por acaso sentiu pena de mim?
Eu fiz aquilo porque a Debbie é uma mala - disse eu, dobrando a capa no braço.
Vi que os cantos dos seus lábios se repuxavam. Debbie agarrara os livros e praticamente correra em direção à por­ta no exato instante em que o professor Walden nos dis­pensara. Ela e um bando de outras garotas, entre as quais a bonitinha bronzeada que também tinha um assento vazio ao lado, estavam cochichando e me lançando olhares ful­minantes por cima de seus suéteres Ralph Lauren.
Dava para ver que a garota albina ficou com vontade de rir quando eu chamei a Debbie de mala, mas ficou firme. Disse então, toda cheia de orgulho:
- Posso perfeitamente me defender sozinha, viu? Não preciso da sua ajuda, Nova York.
Eu dei de ombros.
- Tudo bem por mim, Carmel.
Desta vez ela não conseguiu deixar de sorrir. Ao fazê-lo, mostrou uma fieira de aparelhos dentários que reluziam tanto quanto o mar lá fora.
Cee Cee - disse ela.
O que é Cee Cee?
- Meu nome. Sou a Cee Cee - completou, estendendo a mão branca feito neve, com as unhas pintadas de laranja chocante. - Bem-vinda à Academia da Missão.
Às 9 horas, o professor Walden já nos havia dispensado. Dois minutos depois, Cee Cee já tinha me apresentando a vinte outras pessoas, e quase todas vieram trotando atrás de mim a caminho da aula seguinte, querendo saber como era morar em Nova York.
-Lá é mesmo tão, tão... - quis saber uma garota sem-graçona, toda ansiosa na busca da palavra exata para expri­mir o que desejava - tão metrópole como dizem?
Essas garotas, talvez nem precise dizer, não eram as tipi­camente classudas. Não demorou para eu ver que não se davam com a lindinha bronzeada e com a garota cujos de­dos eu ameaçara quebrar, que eram as arrumadérrimas, com seus suéteres e suas saias cáqui. Nada disso. As garotas que se aproximaram de mim eram dos mais diversos tipos, umas cheias de acne, outras gordas, ou então completamente es­queléticas. Fiquei horrorizada ao ver que uma delas usava sandálias por cima de meia-calça com reforço nos dedos. E meia calça-bege, ainda por cima! Com sandálias brancas. Em pleno inverno!
Logo vi que meu trabalho ia ser facilitado.
Cee Cee parecia ser a líder daquele grupinho. Editora do jornal do colégio, o Notícias da Missão, ao qual se referia como "mais uma resenha literária do que um jornal de ver­dade", ela dissera a verdade quando me informou que não precisava de ajuda para ir à luta. Munição era o que não lhe faltava, com direito a um belo arsenal de torpedos ver­bais e uma ética do trabalho das mais sérias. Praticamente a primeira coisa que ela me perguntou, depois de superar a raiva que lhe provoquei, foi se eu estaria interessada em escrever alguma coisa para o jornal.
- Nada muito complicado - foi dizendo, toda espevitada. - Quem sabe simplesmente um ensaio comparando a cultura adolescente na Costa Leste e na Costa Oeste. Aposto que você está encontrando um monte de diferenças entre nós e os seus amigos lá de Nova York. Então, que diz? Meus leitores teriam o maior interesse, especialmente garotas como Kelly e Debbie. Talvez você pudesse publicar alguma coisa sobre o mico que pode ser aparecer bronzeado na Costa Leste.
E ela caiu no riso, sem parecer propriamente perversa, mas tampouco sem nada de inocente. Mas eu logo veria que Cee Cee era exatamente assim, toda risonha, com um riso que brilhava ainda mais com aqueles aparelhos terrí­veis, e toda bem-humorada. Aparentemente era tão famosa pelas piadas que soltava quanto por sua gargalhada-quase-relincho, que às vezes parecia sair dela aos borbotões, como se não pudesse controlá-la, numa alegria a toda prova que inevitavelmente atraía os "psiu" das noviças afetadinhas que trabalhavam como bedéis, impedindo-nos de incomo­dar os turistas que vinham tirar fotos de Junipero Serra sendo bajulado por aquelas pobres índias de bronze.
A Academia da Missão era um colégio pequeno. Havia apenas setenta segundanistas. Adorei que o Dunga e eu tivéssemos horários diferentes, pois assim o único período que tínhamos em comum era o do almoço. O almoço, por sinal, acontecia no pátio da escola, que ficava de um dos lados do estacionamento, um enorme playground grama­do dando para o mar, com os veteranos comendo nas mesmas mesas que os calouros e gaivotas mergulhando na di­reção de quem fizesse a besteira de lhes atirar uma batata frita. Posso dizer porque fiz a experiência. A irmã Ernestine - a mesma que tinha sido chamada de baranga pelo Adam, que afinal foi parar na minha classe de estudos sociais - veio na minha direção e me disse para nunca repetir aqui­lo. Como se eu não tivesse entendido perfeitamente o reca­do no exato momento em que cinqüenta enormes gaivotas grasnantes baixaram do céu num turbilhão e me cercaram, exatamente como faziam os pombos na Praça Washington quando alguém fazia a besteira de atirar no chão um pedaci­nho de biscoito.
Seja como for, Soneca e Mestre também tinham o mes­mo horário de almoço que eu. Era o único momento em que eu via algum dos Ackerman no colégio. Era interessante observá-los em seu ambiente. Fiquei feliz de ver que ou havia acertado em minha análise do temperamento de­les. Mestre vivia cercado de um bando de garotos com cara de nerds, a maioria usando óculos e teclando seus laptops no colo. Dunga vivia com os descolados e ao redor deles estavam sempre flutuando - mais ou menos como as gaivotas tinham flutuado em volta de mim - as garotas bonitinhas e bronzeadas da turma, inclusive aquela ao lado da qual eu evitara sentar. A conversa deles parece que girava em torno do que haviam ganho no Natal, pois era o primeiro dia de volta das férias de inverno, e de quem havia que­brado mais costelas esquiando em Tahoe.
Soneca talvez fosse o mais interessante. Não que ele tivesse acordado. Isso não, céus. Mas ficou sentado numa das mesas de piquenique com os olhos fechados e o rosto voltado para o sol. Como isto eu posso ver em casa, não foi o que me interessou. Não. O que me interessou foi o que estava acontecendo ao lado do Soneca. E era simplesmente um garoto incrivelmente lindo que só fazia ficar olhando bem em frente com uma expressão de arrasadora tristeza. De vez em quando passavam umas garotas - sempre pas­sam umas garotas quando há um lindão por perto - e davam alô para ele; ele então afastava o olhar do mar, que era para onde estava olhando, e dizia "Oi", para em seguida voltar a olhar para aquelas ondas hipnóticas.
Fiquei pensando que Soneca e seu amigo bem que po­diam ser chegados a puxar um fumo. Isto explicaria muita coisa sobre o Soneca.
Mas quando perguntei à Cee Cee se sabia quem era o cara e se tinha algum problema com drogas, ela respondeu:
Ah, é o Bryce Martinson. Não, não tem nada a ver com drogas. Está só triste porque a namorada dele morreu nas férias.
É mesmo? - fiz eu, mastigando o lanche que havia trazido, pois a merenda na Academia da Missão deixa muito a desejar. Dava para entender por que tantos alunos traziam lanche de casa. A merenda tinha sido cachorro-quente. Isso mesmo, cachorro-quente. - Mas como ela morreu?
- Meteu uma bala na cabeça - interferiu Adam, o cara que estava no gabinete do diretor, e que ia passando. Ele estava comendo Cheetos de um saco gigante que acabara de tirar de sua mochila de couro. Uma mochila Louis Vuitton, diga-se de passagem. - Esfacelou a parte traseira do crânio.
Uma das garotas sem-graçonas virou-se, ouvindo isto, e comentou:
- Nossa senhora, Adam, como pode ser tão frio? Adam deu de ombros:
- E daí? Eu não gostava mesmo dela quando estava viva. Não vou dizer agora que gostava dela só porque morreu. No fundo, se alguma coisa mudou, é que posso estar odian­do ela ainda mais. Estão dizendo que vamos todos ter de percorrer a Via Crucis na quarta-feira por causa dela.
- Exatamente - retrucou Cee Cee, enojada. - Temos de rezar por sua alma porque ela se matou e agora terá de arder no fogo dos infernos por toda a eternidade.
Adam ficou meio pensativo:
- É mesmo? Pensei que os suicidas iam para o purgatório...
- Nada disso, seu burro. Por que você acha que o mon­senhor Constantine não autoriza o serviço fúnebre da Kelly? Suicídio é pecado mortal. Monsenhor Constantine não pode deixar que uma suicida seja homenageada na sua igreja. Não permitirá nem mesmo que os pais dela a enterrem em solo consagrado - e aqui Cee Cee já estava rolando os olhos de espanto. - Eu nunca gostei da Heather, mas odeio monsenhor Constantine e suas regras cretinas ainda mais. Estou pensando em escrever um artigo sobre isto, e dar o título de O Pai, o Filho e o Hipócrita Santo.
As outras garotas soltaram um risinho nervoso. Esperei até elas pararem e perguntei:
Por que será que ela se matou? Adam fez um ar de tédio.
Por causa do Bryce, claro. Ele acabou com ela.
Uma garota negra bonitinha chamada Bernadette, que com seu metro e 80 era mais alta que todo mundo ali, incli­nou-se para a frente e sussurrou:
- Ouvi dizer que ele terminou com ela no shopping. Dá para acreditar?
Uma outra menina disse:
Isso mesmo, na véspera de Natal. Eles estavam fazen­ do as compras de Natal juntos e ela mostrou um anel de diamante na vitrine da Bergdorf, e disse: "Quero este." E aí aposto que ele entrou em pânico - sabe como é, era um anel de noivado - e rompeu com ela ali mesmo, na hora.
E por causa disso ela foi para casa e deu um tiro na cabeça? - insisti, achando aquela história toda muito esquisita. Quando eu perguntei à Cee Cee onde todo mundo almoçaria se por acaso chovesse, que Deus nos livre, ela explicou que todo mundo tinha de ficar sentado na sala de aula, para comer lá mesmo, e que as freiras traziam jogos de tabuleiro para todo mundo se distrair. Eu fiquei me perguntando se aquela história, como a história dos almoços em dia de chuva, era uma invenção. Cee Cee era o tipo da guria que sen­tia um frisson em contar uma mentirinha para a aluna nova - não por maldade, só para se divertir um pouco.
- Não imediatamente - explicou Cee Cee. - Ela ainda tentou convencê-lo a voltar com ela durante um tempo. Passou a telefonar para ele de dez em dez minutos, até sua mãe lhe dizer para não telefonar mais. Aí ela começou a mandar-lhe cartas, dizendo o que ia fazer - já sabe, que ia se matar se ele não voltasse com ela. Como ele não respondia, ela pegou o 44 do pai, foi de carro até a casa do Bryce e tocou a campainha.
Adam passou então a contar o resto da história, o que significava provavelmente que ia haver sangue.
Isso mesmo - levantou-se ele para fazer a cena, usando um Cheeto como revólver. - Os Martinson estavam dando uma festa de réveillon, de modo que estava todo mundo em casa. Abriram a porta e lá estava aquela guria ensandecida, apontando um revólver para a cabeça. Ela disse que se não a deixassem falar com o Bryce, ia puxar o gatilho. Mas o Bryce nem estava lá, tinha sido mandado para Antígua...
... para ver se um pouco de sol e umas ondas ajuda­vam a melhorar seus nervos em frangalhos - atalhou Cee Cee -, pois como vocês sabem, ele está bem no meio da época dos exames e a última coisa que queria era mais pressão ainda.
Adam fulminou-a com os olhos e prosseguiu, seguran­do o Cheeto contra o crânio:
- Isso aí, mas foi um erro fatal da parte dos Martinson. Assim que ela ficou sabendo que o Bryce tinha saído do país, puxou o gatilho e arrebentou com a traseira do crânio, e as luzes de Natal que os Martinson tinham espalhado por ali ficaram cheias de pedacinhos de cérebro e outros bi­chos...
Todo mundo, menos eu, deu um gemido ao ouvir esses detalhes. Eu estava pensando em outras coisas.
- A cadeira vazia na sala de aula... Aquela do lado da... como se chama mesmo? Da Kelly. Era onde se sentava a garota que morreu, certo?
Bernadette fez que sim com a cabeça.
- Exatamente. Por isso é que achamos tão esquisito quan­do você simplesmente passou por ela. Era como se você soubesse que era onde a Heather se sentava. Todo mundo ficou pensando que você talvez fosse médium ou coisa assim...
Eu nem me dei ao trabalho de dizer que o motivo pelo qual não tinha sentado na cadeira da Heather não tinha nada a ver com ser médium ou deixar de ser. Na verdade, simplesmente não disse nada. Eu estava pensando: "Valeu, mãe, ter-me dito porque de repente apareceu uma vaga para mim, quando pouco antes o colégio estava tão superlotado que não cabia nem mais um aluno."
Fiquei olhando para o Bryce. Ele ainda estava bronzea­do da viagem a Antígua. Estava sentado à mesa de piquenique com os pés sobre o banco, os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando fixamente para o Pacífico. Uma leve brisa agitou por um momento seus cabelos de um louro cor de areia.
Ele não tem a menor idéia, pensei. Não tem mesmo a menor idéia. Se está pensando que sua vida agora ficou hor­rível, espere só para ver.
Espere só.


Capítulo 8


Ele não precisou esperar muito. Para dizer a verdade,  foi logo depois do almoço que ela veio atrás dele.  Não que ele percebesse, claro. Fui eu que imediata­mente a vi no meio da multidão, quando todo mundo co­meçou a se encaminhar para os armários. Os fantasmas exalam uma luminosidade que os diferencia dos vivos - fe­lizmente, pois caso contrário muitas vezes eu nem saberia a diferença.
Seja como for, lá estava ela fulminando-o com olhares de ódio. Sem saber que ela estava ali, as pessoas simples­mente passavam através dela. Eu até que os invejava. Prefe­ria que os fantasmas fossem invisíveis para mim, como são para todo mundo. Sei que se fosse assim eu não teria des­frutado da companhia do meu pai durante esses últimos anos, mas também não estaria ali agora sabendo que a Heather estava para fazer algo terrível.
Não que eu soubesse o que ela estava pretendendo fazer com ele. Os fantasmas podem ser bem mauzinhos quando querem. Aquele lance do Jesse com o espelho não era nada. Já houve casos de me atirarem objetos com tanta força que, se eu não tivesse me abaixado, também estaria hoje no mun­do dos espíritos. Já sofri concussões e ossos quebrados não sei quantas vezes. Minha mãe acha que eu atraio acidentes. É isso aí, mãe. Isso mesmo. Quebrei o pulso caindo da esca­da. E caí da escada porque o fantasma de um conquistador espanhol de trezentos anos me empurrou.
Mas bastou eu ver a Heather para entender que ela esta­va com intenções nada boas. E eu não chegara a esta conclu­são baseada no nosso encontro prévio. Não, senhor. Apenas acompanhei o olhar da falecida e vi que não era exatamente para Bryce que ela estava olhando. O que atraíra sua atenção fora um dos caibros da parte da galeria por onde o Bryce estava passando. E dali onde estava, eu vi que a madeira es­tava começando a tremer. Mas não em toda a extensão da galeria, claro que não. Era só uma peça que estava tremen­do, daquelas bem pesadas. Exatamente a peça que se encontrava acima da cabeça do Bryce.
Eu agi sem pensar. Joguei-me contra o Bryce com toda força e ambos voamos juntos. O que veio exatamente a calhar. Pois ainda estávamos rolando no chão quando eu ouvi uma enor­me explosão. Abaixei a cabeça para proteger os olhos, de modo que não pude ver quando a peça de madeira explodiu. Mas ouvi. E também senti. As lascas de madeira doeram à beça. Ainda bem que eu estava usando calças de lã.
O Bryce estava tão quietinho debaixo de mim que eu pensei que um pedaço mais pesado da madeira podia tê-lo atingido entre os lobos frontais ou algo assim. Mas quan­do afastei meu rosto do seu peito eu vi que ele estava bem - estava apenas de olho grudado, aterrorizado, na tábua de mais de 25 centímetros de largura e quase 70 centímetros de comprimento que viera aterrissar a poucos metros de nós dois. Por toda parte ao nosso redor estavam espalha­dos pedaços de madeira. Provavelmente o Bryce estava se dando conta de que, se aquela prancha tivesse atingido seu crânio, também haveria agora pedacinhos de Bryce espa­lhados por ali.
- Dá licença, dá licença - disse a voz assustada do padre Dominic, que logo vi abrindo caminho pela multidão apavo­rada que se juntava ali. Ele ficou congelado quando viu aque­le pedação de madeira, mas ao dar com Bryce e comigo voltou à ação: - Deus do céu! - exclamou, acorrendo a nós. - Vocês estão bem, crianças? Suzannah, você se feriu? Bryce?
Lentamente eu fui me sentando. Eu já tinha me acos­tumado a me apalpar para ver se algum osso estava que­brado, e acabei descobrindo, ao longo dos anos, que quanto mais lentamente a gente se reerguer, mais chances terá de descobrir o que está quebrado, e menos chances de apoiar o peso do corpo nessas partes.
Mas daquela vez nada parecia estar quebrado. Fiquei en­tão de pé.
- Deus de misericórdia! - dizia o padre Dom. - Têm certe­za de que estão bem?
Estou bem - disse eu, me sacudindo toda. Estava toda coberta de pedacinhos de madeira, por cima da minha me­lhor jaqueta Donna Karan. Olhei em volta para ver se via a Heather: pode crer que se a tivesse visto ali naquela hora eu a teria matado, realmente teria... só que ela já estava morta, claro. Mas ela já tinha ido embora.
 Meu Deus! - exclamou Bryce, aproximando-se de mim. Ele não parecia estar ferido, só um tanto abalado. Na ver­dade seria difícil ferir um grandalhão como ele, com seu metro e 80 de altura e aqueles ombros largos, um verdadeiro Baldwin.
E era comigo que ele estava falando. Comigo! - Caramba, você está bem? - quis saber. - Obrigado. Meu Deus! Acho que você salvou a minha vida.
Ora, não foi nada - disse eu, e não resisti a esticar a mão e pinçar uma farpa de madeira do seu suéter. Caxemira. Exatamente como eu imaginara.
O que está acontecendo aqui?
Um sujeito alto metido num monte de túnicas e com uma calota vermelha na cabeça abria caminho na multi­dão. Quando viu aquela madeira toda no chão e olhou para cima para avaliar o buraco que fora aberto, ele se virou para o padre Dom e disse:
- Viu? Está vendo, Dominic? É nisto que dá permitir que os seus lindos passarinhos façam ninhos onde bem enten­dem! O sr. Ackerman nos avisou que isto podia acontecer,- e agora veja só! Ele tinha razão! Alguém podia ter morrido!
Só podia mesmo ser monsenhor Constantine.
Sinto muito, monsenhor, sinto muito mesmo - disse padre Dom. - Não sei como uma coisa dessas foi aconte­cer. Graças a Deus ninguém ficou ferido - e, voltando-se para Bryce e para mim: - Vocês dois estão bem mesmo? Parece-me que a senhorita Simon está meio pálida. Vou levá-la para ver a enfermeira, se não se importa, Suzannah. E vocês, crianças, voltem todas para a sala de aula. Todos estão bem. Foi apenas um acidente. Agora vão indo.
Incrivelmente, todo mundo obedeceu. Padre Dominic era assim mesmo. De uma maneira ou de outra, você acaba­va fazendo o que ele dizia. Felizmente ele usava seus poderes para o bem, e não para o mal!
Gostaria de poder dizer o mesmo sobre o monsenhor. Lá estava ele de pé no corredor, que de repente ficara vazio, contemplando o enorme pedaço de madeira. Qualquer um poderia dizer só de olhar que ele não tinha nada de po­dre. Claro que a madeira não era nova, mas estava perfei­tamente seca.
- Vou mandar tirar daí esses ninhos, Dominic - disse monsenhor, asperamente. - Todos eles. Nós simplesmente não podemos correr este tipo de risco. E se um turista esti­vesse em pé aqui? E Deus nos livre, o arcebispo!... O arce­bispo estará aqui no mês que vem, como você sabe. E se o arcebispo Rivera estivesse bem aqui e esta viga caísse? E en­tão, Dominic?
As freiras que haviam acorrido, ouvindo todo aquele fuzuê, lançavam olhares de tamanha reprovação para o po­bre padre Dominic que eu quase disse alguma coisa. Cheguei até a abrir a boca, mas o padre Dom apertou mais o meu braço e começou a caminhar comigo para longe dali.
Naturalmente - concordou. - Tem toda razão. Vou mandar o pessoal da manutenção cuidar disso imediata­mente, monsenhor. Imagine se o arcebispo fosse ferido!... Nem pensar.
Meu Deus, quanta besteira! - desabafei, assim que nos vimos dentro do gabinete do diretor, com a porta fechada. - Ele só pode estar brincando, pensar que um casal de passa­rinhos podia fazer tudo aquilo.
Padre Dominic tinha atravessado todo o gabinete dire­to para um armário onde se encontravam alguns troféus e placas - prêmios de magistério, como eu viria a descobrir. Antes de ser removido pela diocese para um cargo adminis­trativo, padre Dominic havia sido um professor de biolo­gia muito popular e estimado. Ele estendeu o braço por trás de um dos troféus e apanhou um maço de cigarros.
Receio que talvez seja um pouco sacrílego, Suzannah, dizer que um monsenhor da Igreja católica pensa bestei­ras - disse ele, de olhos baixos sobre o maço vermelho e branco.
Ainda bem então que eu não sou católica - disse eu. - E pode ficar à vontade para fumar se quiser. Não vou dizer a ninguém.
Ele continuou contemplando o maço de cigarros sonha­doramente por mais um minuto, deu um suspiro profun­do e voltou a guardá-lo onde estava.
- Não, muito obrigado, mas é melhor não - concluiu.
Minha nossa! Devia ser mesmo uma grande vantagem eu nunca ter me viciado com essa história de cigarro. Achei melhor mudar de assunto e então me debrucei para dar uma olhada nos troféus.
1964 - disse. - O senhor já está aqui há um certo tempo...
Estou mesmo - reconheceu padre Dom, sentando-se em sua escrivaninha. - Mas, Santo Deus, Suzannah, o que exatamente que aconteceu lá?
Ora - dei de ombros -, foi só a Heather. Acho que ago­ra já sabemos por que ela ainda está rondando por aí. Quer matar o Bryce Martinson.
Padre Dominic sacudiu a cabeça:
Mas isto é terrível! Terrível mesmo. Eu nunca vi tan­ta... tanta violência partindo de um espírito. Nunca, em to­dos estes anos como mediador.
É mesmo? - fiz eu, olhando pela janela. O gabinete do diretor não dava para o mar, mas para as colinas onde eu morava. - Olha só - prossegui. - Daqui se pode ver a mi­nha casa!
E era uma moça tão boa - continuou ele. - Nunca tivemos qualquer problema disciplinar com Heather Chambers em todos os anos que ela passou na Academia da Missão. Por que estaria sentindo tanto ódio de um rapaz que dizia amar?
Eu olhei para ele de lado:
- O senhor está brincando comigo?
- Não, tudo bem, eu sei que eles tinham acabado o namoro... Mas emoções tão violentas... essa fúria assassina a que ela se entregou... É tão inusitado...
Eu balancei a cabeça.
- Olha, eu sei que o senhor fez voto de castidade e tudo isso, mas o senhor nunca se apaixonou? Não sabe como é? Aquele cara passou ela para trás. Ela achava que eles iam se casar. Sei que parece bobagem, ainda mais que ela só tinha - quantos anos mesmo? Dezesseis? Ainda assim, ele sim­plesmente botou ela no chinelo. Se isso não é suficiente para levar uma garota a um acesso de fúria assassina...
Ele me olhava pensativo.
Você parece estar falando por experiência própria.
Quem, eu? Absolutamente. Isto é, já gostei de uns ca­ras e tal, mas não posso dizer que algum deles tenha cor­respondido - o que lamento muito. Ainda assim, posso ima­ginar como a Heather deve ter-se sentido quando ele acabou com ela.
Com vontade de se matar, suponho - disse padre Dominic.
Exatamente. Mas se matar acabou não sendo suficiente. Ela não vai ficar satisfeita enquanto não o levar com ela.
Isto é terrível - disse padre Dominic. - Realmente ter­rível. Eu conversei com ela até acabar a saliva, mas ela não ouve. E agora, no primeiro dia de aula, acontece isso. Vou ter que recomendar que esse rapaz fique em casa até que tudo seja resolvido.
Eu achei graça:
E como é que o senhor vai fazer isso? Vai dizer a ele que sua namorada morta está tentando matá-lo? Aposto que monsenhor adoraria...
Em absoluto - respondeu padre Dom, abrindo uma gaveta e começando a remexer nela. - Com um mínimo de engenhosidade, podemos conseguir uma boa semana ou duas para ele em casa...
Mas o que é isto?! - exclamei, lívida. - O senhor vai envenená-lo? Pensei que o senhor fosse um padre! Esse tipo de coisa não é proibido?
Envenenar? Não, não, Suzannah. Vou infestá-lo com lêndeas. A enfermeira examina a cabeça dos alunos uma vez por semestre em busca de piolhos. Apenas vou dar um jeito para que o jovem sr. Martinson apresente um caso bem adiantado de infestação...
Oh meu Deus! - berrei. - Que horror! O senhor não pode encher a cabeça dele de piolhos!
Padre Dominic levantou os olhos da gaveta.
E por que não? Servirá perfeitamente para o que pre­cisamos. Mantê-lo longe do perigo por tempo suficiente para que você e eu possamos convencer a srta. Chambers e...
O senhor não pode encher a cabeça dele de piolhos! - repeti, talvez com mais veemência que necessário. Nem sei por que eu estava tão contra a idéia, só que... bem, ele tinha um cabelo tão bonito. Eu tinha dado uma sacada legal quan­do estávamos lá jogados no chão juntos. Era um cabelo macio e encaracolado, o tipo de cabelo bom para ficar passando os dedos. A simples idéia de insetos rastejando por ali embrulhava meu estômago. Como era mesmo aquela canção?...
Você me olhou nos olhos. E eu fui ficando. Passei a mão nos seus cabelos. E um piolho mordeu meu dedo.
Puxa vida - eu disse, sentando no tampo da escriva­ninha. - Guarda os piolhos, tá bem? Deixa que eu cuido da Heather. O senhor disse que está falando com ela há quanto tempo? Uma semana?
Desde o Ano Novo - respondeu padre Dominic. - Exatamente. Foi quando ela apareceu aqui pela primeira vez. Agora entendo que ela só estava esperando que Bryce voltasse.
- OK. Então deixa que eu cuido disso. Talvez ela só esteja precisando de uma conversa entre garotas.
Não sei... - fez padre Dominic, olhando-me meio de soslaio. - Fico achando que você tem uma certa tendência para... bem, para tentar resolver as coisas um tanto... fisicamente. O mediador deve desempenhar um papel não-violento, Suzannah. Você deve ser alguém que ajuda os espíritos perturbados, em vez de machucá-los.
Alô, alô! O senhor por acaso não estava lá fora ainda há pouquinho? Acha que eu podia simplesmente ficar ali e convencer aquela viga a não esmagar o crânio do Bryce? Claro que não. Só estou querendo dizer que, se você tentasse demonstrar um pouco de compaixão...
Caramba! Eu tenho muita compaixão, padre. Meu coração ficou partido com a história dessa garota, realmente ficou. Mas este aqui é o meu colégio, entende? O meu colé­gio. Não o dela. Não é mais. Ela tomou uma decisão e agora tem que agüentar as conseqüências. E eu não vou permitir que ela leve o Bryce ou quem quer que seja com ela.
Padre Dominic parecia cético:
Bem, se você está tão segura assim...
Estou segura, sim - respondi, quase saltando por cima da escrivaninha. - Deixe comigo, está bem?
Padre Dominic concordou, mas sem muita convicção, deu para ver. Precisei que ele me desse um passe por escrito, para poder voltar à sala de aula sem ser interceptada no corredor por uma das freiras. Eu estava esperando que uma delas, uma noviça de cara murcha, acabasse de examinar o passe, para poder passar para o corredor, quando uma por­ia lateral onde estava escrito ENFERMARIA se abriu e lá de dentro saiu o Bryce com o seu próprio passe.
- Ei! - não pude impedir-me de gritar. - Que aconteceu? Ela por acaso... quer dizer, aconteceu mais alguma coisa? Você está ferido?
Ele deu um sorriso algo tímido:
- Não. Só esta farpa desgraçada que me entrou debaixo da unha. Estava tentando me livrar de todas aquelas farpas que se agarraram à minha calça e uma delas entrou ali, e... ele mostrou a mão direita, com uma enorme bandagem envolvendo o polegar.
Eca! - fiz eu.
É isso aí - disse ele, todo injuriado. - E ainda por cima ela usou mercúrio cromo. Odeio esse troço.
Cara! - disse eu. - Foi mesmo um dia de cão para você...
Nem tanto assim - respondeu ele, baixando o polegar. - Pelo menos não foi tão ruim quanto teria sido se você não estivesse lá. Se não fosse você, eu estaria morto.
Ele percebeu que eu havia saído da sala do diretor e per­guntou:
- Algum problema?
-  Não - respondi. - Padre Dominic só queria que eu preenchesse uns formulários. Sou nova aqui, você sabe.
- E como a aluna nova - interrompeu a noviça com se­veridade - deve ficar sabendo que não é permitido ficar perambulando pelos corredores. É melhor vocês dois irem para suas salas.
Eu me desculpei e apanhei de volta o meu passe. Muito cavalheirescamente, Bryce se ofereceu para me mostrar onde seria minha próxima aula, e a noviça se afastou, aparente­mente satisfeita. Quando já se havia distanciado o bastante para não poder mais ouvir o que dizíamos, Bryce disse:
Você é a Suze, certo? O Jake me falou de você. Você é a meia irmã dele que chegou de Nova York.
Exatamente - respondi. - E você é o Bryce Martinson.
Ah, o Jake falou de mim?
Eu quase dei uma risada só de pensar no Soneca falan­do alguma coisa. E expliquei:
- Não, não foi o Jake.
Ele fez um "Oh" tão decepcionado que quase senti pena dele.
Aposto que as pessoas devem estar falando de mim, não?
Um pouco - arrisquei. - Sinto muito pelo que aconte­ceu com a sua namorada.
Eu também, pode acreditar - disse ele, sem aparentar ter ficado aborrecido porque eu mencionara o assunto. - Eu nem queria voltar aqui depois... você sabe. Tentei me transferir, mas não tinha vaga. Nem a escola pública quis me receber. É muito difícil conseguir transferência faltan­do só um semestre. Eu não teria voltado de jeito nenhum, só que... bem, você sabe. As faculdades só te aceitam quan­do você já concluiu o segundo grau.
Eu achei graça. - Já ouvi falar.
- Seja como for...
Bryce percebeu que eu estava segurando meu casaco. E realmente eu o estivera carregando o dia inteiro, já que não consegui usar o meu armário, cuja porta não se abria por ter ficado muito amassada com o impacto do corpo astral da Heather. Então ele perguntou:
- Quer que eu leve para você?
Fiquei tão apatetada com tanta gentileza que, sem nem pensar, fui dizendo que sim e entregando o casaco. Ele o apanhou dobrado num dos braços e disse:
- Quer dizer então que todo mundo deve estar me cul­ pando pelo que aconteceu... Pelo que aconteceu à Heather.
Não creio - respondi. - No máximo, as pessoas estão culpando a Heather pelo que aconteceu com ela.
Sei - disse Bryce -, mas estou querendo dizer que fui eu que a levei a isto, sabe? O problema é este. Se eu não tivesse rompido com ela...
Você se tem mesmo em muito alta conta, não é? Ele foi apanhado de surpresa.
Como?
- Bem, o fato de você deduzir que ela se matou porque você rompeu com ela... Não acho que ela tenha se matado por isto. Ela se matou porque estava doente. E você não tinha nada a ver com o fato de ela estar assim. O fato de você ter terminado com ela pode ter sido a gota d'água para o colapso final, mas podia perfeitamente ter sido outro o motivo - o divórcio dos pais dela, o fato de ela não ter sido escolhida chefe da torcida, a morte do gato... Qualquer coisa. Portanto, tente não ser tão duro consigo mesmo.
Tínhamos chegado à porta da minha sala: acho que era geometria, com irmã Mary Catherine. Virei para ele e peguei de volta o meu casaco.
- Bom, eu desço aqui. Obrigada pela carona. Ele agarrou uma das mangas do meu casaco.
- Espera aí - disse, olhando-me firmemente. Era difícil ver seus olhos, pois estava bem escuro na galeria, protegi­da como era do sol. Mas eu lembrava, daquele momento em que havíamos caído juntos no chão, que seus olhos eram azuis. De um azul muito lindo. - Espera um pouco - disse ele. - Deixe-me levá-la para sair hoje à noite. Para agradecer por ter salvo a minha vida e tudo mais.
- Obrigada - respondi, dando uma puxada no meu casaco
- Mas já tenho planos para hoje à noite.
Eu só não disse que meus planos envolviam sua pessoa de uma maneira bem íntima.
Então amanhã à noite - insistiu ele, ainda agarrado ao meu casaco.
Olha, eu não tenho permissão para sair à noite em dias de semana - disse eu.
Era a maior mentira. À parte o fato de ter sido levada para casa algumas vezes pela polícia, estava implícito que minha mãe confiava em mim. Se eu quisesse sair à noite num dia de semana, ela deixaria. O fato é que nunca tínhamos falado desse assunto, pois nenhum cara tinha me convidado para sair, fosse em dia de semana ou em qualquer outro.
Não que eu seja um horror ou algo assim. Posso não ser nenhuma Cindy Crawford, mas também não sou um bagu­lho. Acho que no fundo o que acontece é que eu sempre fui considerada meio esquisita em minha antiga escola. É o que costuma acontecer com garotas que ficam falando sozinhas e se metendo com a polícia.
Mas não me entendam mal. De vez em quando chegavam caras novos na escola e eles mostravam interesse por mim... mas só até que alguém que me conhecesse passasse a eles as informações... Aí eles passavam a me evitar como se eu fosse uma leprosa.
Garotos da Costa Leste. Não sabem de nada...
Mas agora eu tinha a oportunidade de começar tudo de novo, com toda uma nova população de caras que não sabiam nada do meu passado - quer dizer, exceto Soneca e Dunga, mas duvido que eles fossem dar com a língua nos dentes, pois nenhum dos dois poderia ser considerado muito... loquaz, por assim dizer.
Seja como for, o fato é que nenhum dos dois havia entra­do em contato com Bryce, pois logo em seguida ele insistiu:
- Então no fim de semana. O que você vai fazer no sába­do à noite?
Eu não estava certa de que fosse lá uma idéia tão boa as­sim me envolver com um cara cuja falecida namorada esta­va tentando matá-lo. E se ela descobrisse e ficasse ressenti­da comigo? Eu podia apostar que o padre Dominic não ia achar muito legal eu estar saindo com o Bryce.
Mas por outro lado, quantas vezes uma garota como eu é convidada para sair por um cara sensacional como Bryce Martinson?
- OK - concordei. - No sábado. Me pega às sete?
Ele deu um sorriso. Tinha dentes lindos, brancos e regulares.
Às sete - confirmou, largando o meu casaco. - Até lá. Se não antes...
Até lá, então - disse eu, com a mão na porta da classe de geometria da irmã Mary Catherine. - Ah, sim, Bryce!
Ele já estava seguindo para sua sala pela galeria.
Sim...
Cuidado por onde passa...
Acho que ele piscou para mim, mas era difícil dizer na sombra.


Capítulo 9


Quando eu entrei no Rambler no fim do dia, Mestre estava todo agitado. - Está todo mundo comentando! - gritou, pulan­do no assento. - Todo mundo viu! Você salvou a vida daque­le cara! Você salvou a vida do Bryce Martinson!
Eu não salvei a vida de ninguém - retruquei, ajeitan­do calmamente o espelho retrovisor para dar uma olhada nos cabelos. Jóia. O ar salgado definitivamente me faz bem.
Salvou sim. Eu vi aquela tora de madeira. Se tivesse caído na cabeça dele, estava morto! Você o salvou, Suze! Pode crer que salvou.
Bem - disse eu, passando brilho nos lábios. - Talvez.
Caramba, você só foi ao colégio um dia e já é a garo­ta mais popular da área!
Mestre não conseguia mesmo se conter. Às vezes eu fica­va pensando se um Lexotan não seria uma boa. Não que eu não gostasse dele. Na realidade, era o filho do Andy de que eu gostava mais - o que no fundo não quer dizer mui­ta coisa, mas é o melhor que posso dizer. Mestre é que chega­ra para mim na noite da véspera, quando eu estava ten­tando decidir o que vestiria no primeiro dia de aula, e me perguntara, muito pálido, se eu tinha certeza que não que­ria trocar de quarto com ele.
Fiquei olhando para ele como se ele estivesse maluco. Seu quarto era bem legal, e tudo mais, mas espera aí. Desistir do meu próprio banheiro e da vista para o mar? Nem pen­sar. Nem que isso significasse que eu estaria me livrando do meu incômodo companheiro de quarto, o Jesse, que na realidade não tinha voltado a aparecer desde que eu o ti­nha mandado passear.
- Por que diabos eu haveria de querer trocar o meu quar­to? - perguntei.
Mestre deu de ombros.
-É que... é que este quarto aqui é meio horripilante, não acha não?
Fiquei olhando para ele. Vocês deviam ver como o meu quarto estava. Com o abajur da mesinha-de-cabeceira ace­so, envolvendo tudo numa maravilhosa luz rosada, e o meu CD player tocando Janet Jackson - tão alto que duas vezes minha mãe tinha gritado para eu abaixar -, hor­ripilante era a última coisa que alguém diria sobre o meu quarto.
- Horripilante? - repeti, olhando ao redor. Nenhum sinal do Jesse. Nenhum sinal de nada anormal. Estávamos perfeitamente instalados no reino dos seres vivos. - O que tem de horripilante aqui? Mestre franziu a boca.
- Não diga nada ao papai - explicou então -, mas tenho andado um bocado por aí pesquisando esta casa, e cheguei à conclusão, sem sombra de dúvida, de que ela é mal-assombrada.
Fiquei olhando para sua carinha sardenta, e vi que ele estava falando sério. Muito sério, como deixou claro o seu comentário seguinte.
- Embora a maioria dos cientistas tenha descartado quase todas as alegações de casos de atividades paranormais no país, persistem muitos indícios de fenômenos espectrais acontecendo no mundo sem explicação. Minha investi­gação aqui em casa ficou a desejar em matéria de indícios considerados tradicionais de presença de espíritos, como os chamados pontos frios. Mas ainda assim, Suze, ficou perfei­tamente evidente a variação de temperatura neste quarto, levando-me a concluir que provavelmente houve aqui pelo menos um caso de grande violência, talvez até um assassi­nato, e que alguns remanescentes da vítima (que você pode chamar de alma, se quiser) ainda estão por aqui, talvez na vã esperança de conseguir justiça para sua morte violenta.
Eu me recostei numa das colunas da minha cama. Caso contrário, poderia ter caído.
- Caramba - disse, fazendo força para manter a voz normal. - Impossível fazer uma garota se sentir mais bem- vinda.
Mestre ficou meio embaraçado.
- Lamento - disse ele, com a ponta das orelhas ficando vermelha. - Não devia ter dito nada. Falei sobre isto com o Jake e o Brad e eles disseram que eu estava maluco. Talvez esteja mesmo. - E depois de engolir em seco, tomando coragem: - Mas considero meu dever, como homem, me ofe­recer para trocar de quarto com você. Como vê, não estou com medo.
Eu sorri para ele, esquecendo completamente meu choque numa súbita onda de afeto. Fiquei realmente sensi­bilizada. Dava para ver que o carinha tinha precisado reu­nir toda a coragem para fazer aquela proposta. Ele realmente estava convencido de que o meu quarto era mal-assombrado, apesar de tudo que a ciência lhe dizia e no entanto se mostrava disposto a se sacrificar por minha causa, por puro cavalheirismo. Impossível não gostar do carinha. Impossível mesmo.
- Beleza, Mestre - disse eu, esquecendo completamente de tudo, numa onda de sentimentalismo, e chamando-o pelo apelido que inventara para ele. - Acho que seria perfei­tamente capaz de enfrentar qualquer fenômeno paranormal que viesse a ocorrer aqui.
Ele não pareceu se importar com o apelido. Evidente­mente aliviado, disse:
Bom, se você realmente não se importa...
 Não, está tudo bem. Mas queria te perguntar uma coisa - continuei, abaixando a voz, para o caso de o Jesse estar em algum lugar por ali. - Nessas suas pesquisas, em algum momento você ficou sabendo o nome desse pobre coitado cuja alma estaria vagando pelo meu quarto? Mestre sacudiu a cabeça.
- Se você quiser realmente, posso conseguir para você. Posso dar uma olhada na biblioteca. Eles têm lá todos os jornais que foram publicados aqui na região desde que começou a imprensa local, pouco antes da construção desta casa. Está tudo em microfilmes, e tenho certeza de que se ficar algum tempo dando uma olhada...
A coisa me parecia meio absurda, um garoto passando o tempo todo numa biblioteca bolorenta vendo micro­filmes, com uma praia daquelas a dois quarteirões dali. Mas cada um na sua, certo?
- Beleza - foi tudo que consegui dizer.
Agora eu estava vendo que o fraco que o Mestre tinha por mim ameaçava adquirir dimensões completamente des­proporcionais. Primeiro eu tinha me prontificado a viver num quarto que segundo diziam podia ser mal-assombrado, depois tinha salvado a vida de Bryce Martinson. E depois, que grande façanha me esperava? Correr os cem metros ra­sos em 10s04?
- Veja bem - disse eu, enquanto Soneca pelejava com a ignição, que aparentemente tinha uma certa tendência a não funcionar na primeira tentativa. - Eu fiz apenas o que qualquer um de vocês teria feito se estivesse lá.
- O Brad estava lá e não fez nada - atalhou Mestre. Dunga interferiu:
- Corta essa, eu não vi nenhuma droga de viga, está bem?
Se tivesse visto, também teria empurrado ele dali. Minha nossa!
- Tudo bem, mas você não viu. Provavelmente estava ocupado demais olhando para Kelly Prescott.
Dizendo isto, Mestre levou um belo safanão no braço:
Fecha essa matraca, David - disse o Dunga. - Você não sabe do que está falando.
Cala a boca todo mundo! - cortou o Soneca, num raro acesso de mau humor. - Nunca vou conseguir tirar este carro do lugar se vocês continuarem me atrapalhando desse jeito. Brad, pare de bater no David, David, pare de gritar no meu ouvido, e Suze, se você não tirar este seu cabeção aí do espelho nunca vou conseguir ver para onde estamos indo. Vou te contar, mal posso ver a hora de botar minhas mãos naquele Camaro!
Foi depois do jantar que o telefone tocou. Minha mãe teve de berrar lá de baixo porque eu estava com meus fones de ouvido. Embora ainda fosse o primeiro dia do novo se­mestre, eu já tinha um bocado de dever de casa para fazer, sobretudo de geometria. Na minha antiga escola nós só tínhamos chegado ao capítulo sete. Os segundanistas da Academia da Missão já estavam no capítulo doze. E eu sabia que estaria acabada se não começasse a recuperar o atraso.
Quando desci para atender o telefone, minha mãe já estava tão furiosa comigo por ter precisado gritar - o trabalho dela exige que cuide muito bem das cordas vocais - que nem quis dizer quem era. Eu peguei o telefone e disse alô.
Houve uma pausa, e eu ouvi a voz do padre Dominic.
- Alô? Suzannah? É você? Desculpe incomodá-la em casa, mas estive pensando muito, e realmente estou achando... eu cheguei à conclusão de que precisamos fazer alguma coisa imediatamente. Não consigo parar de pensar no que teria acontecido ao pobre Bryce se você não estivesse lá.
Eu olhei para os lados. O Dunga estava jogando Cool Boarders (com o pai, a única pessoa na casa que deixava ele ganhar), minha mãe estava trabalhando no computador, Soneca tinha saído para substituir um entregador de pizza que estava doente e Mestre estava na mesa da sala de jan­tar trabalhando num projeto de ciências que só teria de apre­sentar em abril.
Hmm - disse eu. - Olha só, realmente não vou poder falar agora.
Entendo - disse o padre Dom. - E não se preocupe, quem fez a chamada atendida pela sua mãe foi uma das noviças. Sua mãe está achando que foi uma nova amiguinha sua da escola. Mas o fato, Suzannah, é que precisamos fazer alguma coisa, de preferência esta noite...
Olha - respondi. - Não se preocupe. Está tudo sob controle.
Padre Dom pareceu surpreso.
 Está mesmo? Tem certeza? Como? Como você está conseguindo manter a coisa sob controle?
Não tem importância. Mas eu já fiz isto antes. Tudo vai dar certo, prometo.
- Ora, está bem, é ótimo prometer que tudo vai dar certo , mas eu já a vi em ação, Suzannah, e não posso dizer que fiquei muito bem impressionado com o seu método. Daqui a um mês o arcebispo estará chegando, e realmente eu não posso...
O telefone sinalizou que havia outra chamada, eu pedi que ele esperasse um minutinho, apertei o botão e disse:
Casa dos Ackerman Simon.
Suze? - disse uma voz de garoto, que eu não reconheci.
Sim...
Oi, tudo bem? É o Bryce. Então. Qual é a boa?
Eu olhei para minha mãe. Estava com a cara completa­mente enfiada na reportagem em que estava trabalhando.
- Hmm - disse eu -, nada demais. Pode esperar só um pouquinho, Bryce? Estou com uma pessoa na outra linha.
- Claro - respondeu ele. Voltei para o padre Dominic.
- Então - retomei, com cuidado para não dizer alto o seu nome. - Agora preciso ir. Minha mãe está esperando uma chamada muito importante na outra linha. Um senador. Um senador muito importante.
Eu provavelmente iria para o inferno por causa disto - se é que existe este lugar -, mas não podia dizer a verdade ao padre Dominic: que eu ia sair com o ex-namorado do fantasma.
Ora, mas é claro - disse padre Dominic. - Eu... bem, se você tiver um plano...
Tenho sim. Não se preocupe. Nada vai estragar a visita do arcebispo. Prometo. Tchau - e desliguei, voltando para o Bryce: - Oi, desculpe... E aí?
  Nada, não. Eu estava só pensando em você. Que vai querer fazer no sábado? Quer dizer... quer sair para jantar, ir a um cinema, ou quem sabe as duas coisas? A  outra linha acendeu. Respondi:
- Bryce, eu sinto muito realmente, mas a casa aqui está uma zona... Pode esperar um minutinho? Obrigada. Alô? Uma voz de garota que eu nunca tinha ouvido disse: Oi, tudo bem? É a Suze?
- Falando - eu disse.
- Oi, Suzinha, é a Kelly. Kelly Prescott, da sua classe. Só queria te dizer... aquilo que você fez hoje pelo Bryce... foi muito legal. Puxa, nunca vi tanta coragem na minha vida!  Deviam abrir manchete para você no jornal, no mínimo. Vou reunir uns amigos em casa neste sábado, nada de mais, só uma festinha na piscina, o pessoal lá de casa vai viajar no fim de semana, e a piscina é aquecida, claro... Então fiquei achando que se você quisesse, poderia aparecer...
Fiquei ali segurando o telefone, completamente abestalhada. Kelly Prescott, a garota mais rica e mais bonita da segunda série, estava me convidando para uma festa na piscina na mesma noite em que eu tinha um encontro com o garoto mais sexy da escola. Que ainda por cima estava na outra linha.
Puxa, Kelly, claro - respondi. - Eu adoraria. O Brad sabe onde fica?
Brad? - fez a Kelly, logo emendando: - Ah, o Brad! Claro, ele é seu meio-irmão ou algo assim, certo? Isso mesmo, traz ele também. Mas, olha...
Adoraria ficar conversando, Kelly, mas estou com uma pessoa na outra linha. Podemos conversar sobre isto ama­nhã no colégio?
Claro, sem problema. Tchauzinho.
Apertei de novo o botão do Bryce, pedi que esperasse mais um pouquinho, tampei o bocal do fone com a mão e gritei:
- Brad, festa na piscina da casa daí Kelly Prescott neste sábado. Se não for, eu te mato.
Dunga largou o controle remoto.
- Nem pensar! - berrou, exultante. - O cacete que eu não vou!
Andy aplicou-lhe um cascudo.
- Olha a linguagem!
Eu voltei a falar com o Bryce.
-Jantar seria genial - disse. - Qualquer coisa, menos co­mida natureba.
Ótimo! - fez ele. - Isso mesmo, eu também odeio co­mida natural. Não tem nada igual a um bom pedaço de carne, com umas fritas e um bom molho...
Beleza, Bryce. Desculpe, mas é aquela outra chamada de novo, lamento mesmo mas vou ter de ir, tá bom? Falo com você amanhã no colégio.
OK, tudo bem - concordou Bryce, mas parecendo surpreso. Aposto que eu era a primeira garota que se preocupa­va em atender a outra linha durante um telefonema dele. - Tchau, Suze. E obrigado de novo.
Sem problema. Disponha - e desliguei, atendendo à outra ligação.
- Suze? É Cee Cee!
No fundo, ouvi o Adam gritando: - E eu também!
- E aí, garota? - foi dizendo a Cee Cee. - Estamos indo para o Clutch. Quer que a gente te apanhe? O Adam acaba de tirar carteira de motorista.
Sou perfeitamente legal! - gritou o Adam no telefone.
Clutch?
É, o Café Clutch, no centro. Você não gosta de café? Você não é de Nova York?
Aquela eu tive que pensar.
Podes crer. O problema... é que eu já estou meio com­prometida.
Ah, corta essa! Que compromisso você pode ter? Vai lavar o casaco? Sei que você é a maior heroína e coisa e tal, e talvez não tenha tempo para nós, simples mortais, mas...
Ainda não acabei minha redação sobre a batalha de Bladensburgo para o professor Walden - disse. - E ainda preciso estudar muita geometria se quiser chegar perto de vocês, gênios.
Ai meu Deus - retrucou Cee Cee. - Falou, então. Mas vai ter que prometer que senta do nosso lado no almoço amanhã. Queremos saber direitinho como você apertou o seu corpo contra o do Bryce e como se sentiu e tudo mais...
Não quero saber nada disso - cortou o Adam, fingindo-se de horrorizado.
- É isso aí - concluiu Cee Cee. - Eu quero saber tudinho. Eu prometi a ela que não omitiria nenhum detalhe e desliguei. Olhei para o telefone, e, para grande alívio meu, ele não estava tocando. Eu nem podia acreditar. Nunca na vida eu havia sido tão popular. Sinistro.
Claro que eu tinha pregado a maior mentira sobre o de­ver de casa. Já tinha escrito a redação e estudara dois capí­tulos de geometria - o máximo que eu conseguiria numa noite. Mas a verdade, claro, é que eu tinha uma missão a cumprir, e precisava me preparar.
Não é preciso muita coisa para fazer uma mediação. Cruzes e água benta são coisas que podem ser necessárias para matar um vampiro - e posso lhes garantir que nunca na vida encontrei um vampiro, e não foram poucas as ho­ras que eu passei em cemitérios -, mas no caso de fantas­mas, basta ter uma boa lábia.
Mas às vezes, para que o trabalho fique bem-feito, é ne­cessário mesmo tomar certas providências. E para isso são necessárias algumas ferramentas. Recomendo sempre usar objetos encontrados no local, pois assim você não tem que carregar muita coisa. Mas não deixo de levar comigo um cinturão de ferramentas com lanterna, uma chave de fen­da, alicates e coisas assim, que eu uso por cima de um par de leggings pretos. Eu estava apertando o cinturão por volta de meia-noite, feliz porque todo mundo na casa já es­tava dormindo - inclusive o Soneca, que àquela altura já tinha voltado das entregas de pizzas -, e acabava de me me­ter na minha jaqueta de moto quando recebi uma visita, adivinha de quem?...
- Minha nossa! - exclamei ao dar com o reflexo dele por trás do meu no espelho em que eu estava me olhando. Eu juro, há anos que vejo fantasmas, mas sempre me dá um calafrio quando algum deles se materializa na minha frente. Dei meia-volta, muito danada, não porque ele estivesse ali, mas por ter me apanhado de surpresa. - Por que ainda está por aqui? Achei que tinha dito para você se mandar.
Jesse estava recostado no maior relax numa das pilastras da minha cama. Com seus olhos negros, me examinava do alto do meu capuz à ponta dos meus tênis.
Não acha que já é um pouco tarde para sair, Suzannah? - perguntou ele, com a maior naturalidade, como se esti­véssemos no meio de uma conversa sobre, sei lá, digamos, a segunda Lei dos Escravos Foragidos, que deve ter sido pro­mulgada mais ou menos na época em que ele morreu.
Hmm - fiz eu, tirando o capuz. - Olha só, sem querer ofender, Jesse, mas isto aqui é o meu quarto. Que tal você tentar se mandar? E que tal deixar que eu cuide da minha vida?
Jesse nem se mexeu.
Sua mãe não vai gostar de saber que você está saindo tão tarde da noite.
Minha mãe? - E fiquei olhando para ele, lá em cima, pois era surpreendentemente alto para alguém que está mor­to. - Que é que você sabe da minha mãe?
Gosto muito da sua mãe - disse Jesse calmamente. - É uma boa mulher. Você tem muita sorte de ter uma mãe que a ame tanto. Acho que ela ficaria muito preocupada em ver que você está se expondo ao perigo.
Me expondo ao perigo... É isso aí!
- Tudo bem. Segura esta agora, Jesse. Há muito tempo eu saio de noite e minha mãe nunca disse uma palavra so­bre isto. Ela sabe perfeitamente que eu sei cuidar de mim.
OK, uma bela duma mentirinha, mas ele não tinha como saber mesmo...
- Sabe mesmo? - perguntou ele, erguendo dubitativamente uma das sobrancelhas negras. Não pude deixar de perceber que havia uma cicatriz cortando pelo meio essa sobrancelha, como se alguém tivesse zunido uma faca de raspão em seu rosto. Eu meio que senti a sensação que de­via dar. Especialmente quando ele deu uma risadinha de satisfação e disse: - Acho que não sabe não, hermosa. Não neste caso.
Eu levantei as duas mãos.
- OK. Para começo de conversa: não fale comigo em es­panhol. Número dois: você nem sabe aonde eu estou indo, de modo que sugiro que largue do meu pé.
- Mas eu sei perfeitamente aonde você está indo, Suzannah. Você está indo para o colégio para tentar falar com aquela garota que está tentando matar o rapaz, aque­le de que você parece estar... gostando. Mas estou lhe avisando, hermosa, você não agüenta com ela sozinha. Se tiver mesmo de ir, devia levar o padre com você.
Fiquei olhando para ele. Tinha a sensação de que meus olhos estavam saltando para fora, mas não podia acreditar no que estava acontecendo.
- O quê? Como pode estar sabendo de tudo isso? Por acaso você está... me perseguindo?
Ele deve ter percebido pela minha reação que não devia ter dito aquilo, pois se endireitou e disse:
Não sei o que significa esta palavra, perseguindo. Só sei que você está se expondo ao perigo.
Você anda me seguindo - insisti, apontando para ele um dedo acusador. - Vai dizer que não anda? Tenha dó, Jesse, eu já tenho um irmão mais velho, não preciso de outro não. Não preciso que ande por aí me espionando...
Oh, claro - disse ele, com todo sarcasmo. - Esse irmão cuida muito bem de você. Quase tão bem quanto cuida do próprio sono.
Espera aí! - exclamei, saindo em defesa do Soneca, contra todas as probabilidades. - Ele trabalha de noite, está sabendo? Está economizando para comprar um Camaro!
Jesse fez um gesto que muito provavelmente era gros­seiro, lá pelos idos de 1850.
Você não vai a lugar nenhum - disse então.
Ah, é mesmo? - desafiei, rodando no calcanhar e saindo porta afora. - Tente me segurar, bafo de cadáver.
Ele foi de uma precisão cirúrgica. Minha mão já estava na maçaneta quando a tranca da porta se fechou. Eu nem tinha notado ainda que havia uma tranca na minha porta - ela devia ser muito antiga. O controle manual estava ar­rebentado e só Deus sabia onde é que podia estar a chave.
Fiquei parada ali bem meio minuto, olhando para mi­nha mão sem acreditar muito enquanto ela girava em vão a maçaneta. Até que resolvi respirar bem fundo, como havia sugerido a terapeuta da minha mãe. Ela não estava querendo dizer que eu devia respirar fundo quando estivesse en­frentando um fantasma perseguidor. Achava apenas que de­via fazê-lo de maneira geral, sempre que estivesse me sentindo estressada.
Mas o fato é que ajudou. E ajudou muito.
- OK - disse afinal, voltando-me. - Jesse, isto não é nada legal.
Jesse ficou muito sem graça. Bastava olhar para ele para entender que não estava nada satisfeito com o que acabara de fazer. Não sei o que foi que causou a sua morte na vida anterior, mas certamente não foi por ele ser um sujeito cruel ou por gostar de machucar as pessoas. Ele era um bom su­jeito. Ou pelo menos estava tentando ser.
- Eu não posso... - disse ele, já agora bem na minha frente. - Suzannah, não vá. Essa mulher... essa garota, a Heather, não é como os outros espíritos que você pode ter encontrado. Ela está cheia de ódio. Se puder, vai matá-la.
Eu dei um sorriso encorajador:
- Aí mesmo é que eu devo acabar com ela, não? Vamos lá, abra a porta.
Ele hesitou. Por um momento, achei que ele ia abri-la. Mas ele acabou não abrindo. Apenas ficou lá, meio sem graça, mas firme.
- Como quiser - disse eu, e o contornei, caminhando direto para a janela. Botei um pé no assento que o Andy havia feito e levantei a persiana da janela. Já estava com uma perna passando sobre o peitoril quando senti sua mão agarrando meu pulso.
Voltei-me para olhar para ele. Não consegui ver seu ros­to, pois a luz da minha cabeceira estava por trás dele, mas ouvia perfeitamente sua voz e o tom suave em que pedia:
- Suzannah...
Só isso: apenas o meu nome.
Eu não disse nada. Nem podia. Quer dizer, claro que po­dia, não era como se houvesse um caroço na minha gargan­ta ou coisa assim. Simplesmente... sei lá.
Em vez disso, fiquei olhando para a mão dele, que era muito grande e meio escura, mesmo por cima do couro pre­to da minha jaqueta. Ele tinha um bocado de força naque­la mão, para um sujeito que estava morto. E até para um sujeito vivo. Viu que o meu olhar estava baixando, olhou na mesma direção e se deu conta de que sua mão estava agarrando o meu pulso,
E então me soltou de repente, como se minha pele tivesse começado a queimar ou coisa parecida. Eu continuei subindo na janela. Quando consegui atravessar o telhado da varanda e chegar ao chão lá embaixo, voltei-me em di­reção à janela do meu quarto.
Mas é claro que ele já tinha ido embora.

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