quinta-feira, 24 de março de 2011

Terra das Sombras - Capítulos 1 ao 3

TERRA DAS SOMBRAS

1º LIVRO DA SAGA "A MEDIADORA"

DE MEG CABOT 

   Capítulo 1


De modo que lá estava eu naquele avião, com uma ja­queta de motoqueira, vendo as palmeiras pela janela ao aterrissar. E pensei: genial. Jaqueta de couro e palmeiras. Não podia estar acertando mais, exatamente como achava que ia mesmo...
Para não dizer o contrário.
Minha mãe não gosta muito da minha jaqueta de couro, mas eu juro que não a vesti para deixá-la furiosa, ou algo assim. Não fiquei aborrecida com o fato de ela ter decidi­do casar com um sujeito que vive a 4.800 quilômetros de distância, me obrigando a sair do colégio no meio do segun­do ano; a abandonar a melhor - no fundo, a única - ami­ga que tive desde o jardim de infância; a deixar a cidade onde vivi todos os meus 16 anos.
Não mesmo. Não fiquei nada aborrecida.
Pois o fato é que eu realmente gosto do Andy, meu novo padrasto. Ele é bom para a minha mãe. Ele a deixa feliz. E é super bonzinho comigo.
Essa história de mudar para a Califórnia é que me deixou meio fora de esquadro.
E acho até que ainda nem falei dos três filhos do Andy.
Estavam todos lá para me receber quando desci do avião. Minha mãe, Andy e os três filhos dele. Soneca, Dunga e Mestre. É como eu os chamo. São os meus novos meios-irmãos.
- Suze!
Mesmo se eu não tivesse ouvido minha mãe berrando meu nome quando passei pelo portão, não tinha como deixar de vê-los - minha nova família. Andy fazia os dois menores segurarem aquele enorme cartaz dizendo "Seja bem-vinda, Suzannah!". Todos os passageiros que saíam do avião passavam por ali e ficavam dizendo "Olha só que gracinha!" e sorrindo para mim com aquele olhar en­joativo.
É isso aí. Não podia mesmo estar acertando mais. Estou acertando horrores.
- Tudo bem - fui dizendo, enquanto me aproximava depressinha da minha nova família. - Agora podem abaixar isso aí.
Mas a minha mãe estava preocupada demais em me abra­çar para prestar atenção. Ficava dizendo: "Minha Suzinha!" Eu odeio quando alguém que não seja minha mãe me chama de Suzinha, de modo que fui logo tratando de fulminar os garotos com um olhar bem malvado, para que não alimen­tassem qualquer esperança. Eles ficavam só rindo para mim por cima daquele cartaz imbecil, Dunga por ser boboca demais, Mestre porque ... bem, ele até que podia estar con­tente mesmo de me ver. O Mestre tem dessas esquisiti­ces. Soneca, o mais velho, ficava lá parado, com ar de ... de sono, ora.
- Como foi de viagem, guria?
Andy tirou a mochila do meu ombro e botou no dele. Visivelmente, estranhou o peso:
- Uau! O que é que você está trazendo aqui? Não sabia que é considerado crime contrabandear hidrantes de Nova York para outros estados?
Eu sorri para ele. Andy é aquele tipo de pateta granda­lhão, mas é um pateta legal. Não podia ter a menor idéia do que é crime no estado de Nova York, pois só esteve lá umas cinco vezes. E por sinal foi o suficiente para conven­cer minha mãe a se casar com ele.
Não é um hidrante - eu disse. - É um parquímetro. E ainda tenho mais quatro malas.
Quatro? - Andy fingiu que estava espantado. – Você por acaso pensa que está fazendo uma mudança?...
Não sei se já disse que o Andy se acha o maior comedian­te? Só que não é. Ele é carpinteiro.
- Suze - disse o Mestre, todo entusiasmado. - Você repa­rou que na aterrissagem a cauda do avião sacudiu um pouco? Foi uma corrente de ar ascendente. Acontece quando uma massa de ar que se move em grande velocidade vai de en­contro a uma contracorrente de vento com velocidade igual ou maior.
Mestre, o filho menor do Andy, tem 12 anos, mas parece que tem uns 40. Na festa do casamento, ficou quase o tem­po todo me falando de mutilação de cabeças de gado impor­tadas, e que a tal da Área 51 não passa de uma grande farsa do governo americano, que não quer que a gente saiba que "não estamos sós" neste universo...
- Puxa, Suzinha - minha mãe repetia. - Estou tão fe­liz por você ter vindo. Você vai adorar a casa. No início não parecia que era a nossa casa, mas agora que você está aqui... E espere só até ver o seu quarto. Andy deixou-o uma gracinha...
Antes de se casarem, Andy e minha mãe passaram sema­nas procurando uma casa que tivesse pelo menos um quarto para cada filho. Finalmente se decidiram por aquela enorme casa na colina de Carmel, que só puderam comprar porque estava num estado lamentável, e a firma de construção para a qual o Andy costuma trabalhar a reformou por um preço supercamarada. Há dias minha mãe vinha falando sobre o meu quarto, que ela jura ser o mais bonito da casa.
- Que vista! - dizia ela a toda hora. - Da sacada do seu quarto dá para ver o mar! Puxa, Suze, você vai adorar.
Eu sabia mesmo que ia adorar. Exatamente como ado­raria trocar o bagel de Nova York por brotos de alfafa, o metrô pelas pranchas de surfe e tudo mais.
Não sei bem como nem por que, mas Dunga conseguiu abrir a boca e perguntou com aquela voz abobalhada:
- Gostou do cartaz?
Nem consigo acreditar que ele tem a mesma idade que eu. Mas não dava mesmo para esperar outra coisa: ele está na equipe de luta livre. A única coisa em que consegue pen­sar, pelo que pude perceber quando tive que ficar sentada a seu lado na festa do casamento (fiquei sentada entre ele e o Mestre, dá para sentir como a conversa fluiu), é em chaves de pescoço e shakes de proteína para ganhar massa muscular.
- É mesmo, grande cartaz - respondi, arrancando-o das suas manoplas e virando-o de cabeça para baixo para ninguém mais ler os dizeres. - Podemos ir agora? Quero pegar minhas malas antes que alguém tenha a mesma idéia.
- Claro, claro - disse mamãe, dando-me um último abraço. - Puxa, estou tão contente de te ver! Você está tão bem...
Foi então que ela disse, embora estivesse na cara que não queria dizer, mas disse mesmo assim, baixinho, para nin­guém mais ouvir:
- Pensei que já tivesse falado com você sobre a jaqueta, Suze. E achei que você tinha jogado fora esses jeans.
Eu estava usando meus jeans mais velhos, os que são furados nos joelhos. Combinavam perfeitamente com a minha camiseta de seda preta e minhas botas de zíper. Aque­la combinação dos jeans e botas com minha jaqueta preta de motoqueira e minha mochila das forças armadas me fa­ziam parecer uma adolescente rebelde fugindo de casa num filme de televisão.
Mas, puxa, para atravessar o país num avião durante oito horas, a gente tem mais é que se sentir confortável.
Foi o que eu disse, e minha mãe revirou os olhinhos e deixou pra lá. É o lado bom da minha mãe. Ela não fica in­sistindo, como outras mães. Soneca, Dunga e Mestre não têm nem idéia de como são sortudos.
 Tudo bem - concordou ela. - Vamos pegar sua bagagem. E levantando novamente a voz, chamou:
Vamos, Jake. Vamos pegar as coisas da Suze.
Ela precisou chamar Soneca pelo nome, pois ele parecia que já estava dormindo em pé. Uma vez perguntei a mi­nha mãe se o Jake, que já está adiantado no colegial, sofre de narcolepsia ou é viciado em alguma droga, e ela estranhou que eu estivesse dizendo aquilo. É que o cara fica lá piscando o tempo todo sem falar com ninguém.
Espera aí, não é verdade. Uma vez ele realmente me disse uma coisa. Perguntou se eu fazia parte de alguma gangue. Foi no casamento, quando me pegou do lado de fora fu­mando um cigarro, com minha jaqueta de couro por cima do meu vestido de dama de honra.
Vê se me esquece, tá bem? Foi o primeiro e único cigar­ro que eu jamais fumei. O estresse era muito grande. Eu es­tava preocupada com o casamento da minha mãe, ela ia se mudar para a Califórnia e podia até me esquecer. Juro que nunca mais fumei nenhum cigarro.
E não me interpretem mal quando eu falo do Jake. Com seu metro e oitenta e tal, a mesma cabeleira loura rebelde e os mesmos olhos azuis brilhantes do pai, ele é o que a minha melhor amiga, Gina, chamaria de um pedaço. Ape­nas, não é exatamente a mente mais brilhante do mundo, se é que me entendem.
O Mestre continuava falando da velocidade do vento. Estava explicando qual a velocidade necessária para que o avião possa romper a força gravitacional da Terra. É conhe­cida como velocidade de decolagem. Decidi então que pode­ria ser útil ter o Mestre por perto para os deveres de casa, mesmo eu sendo três períodos mais adiantada que ele.
Enquanto o Mestre falava, eu ia olhando em volta. Era a primeira vez que eu ia à Califórnia, e vou dizer uma coisa: embora ainda estivéssemos no aeroporto - e não era qual­quer um, mas o Aeroporto Internacional de San José – já dava para sentir que não estávamos mais em Nova York. Quer dizer, para começar, era tudo limpo. Nada de sujeira, nem de bagunça, nem pichações. O saguão era todo em tons pastéis, e qualquer um sabe que a sujeira aparece mais em cores claras. Por que você acha que os nova-iorquinos se vestem de preto o tempo todo? Nada a ver com estar na onda. Não mesmo. É só para não precisar botar as roupas para lavar toda vez que saímos com elas.
Mas este problema não parecia existir na ensolarada Califórnia. Pelo que eu podia perceber, a onda eram os tons pastéis. Passou por nós uma mulher vestindo calça colante de ginástica cor-de-rosa e top branco. E só. Se aquilo era es­tar vestido a caráter na Califórnia, dava para ver que eu ia passar pelo maior choque cultural.
E sabe o que mais achei estranho? Ninguém estava brigan­do. Havia filas de passageiros aqui e ali, mas eles não esta­vam levantando a voz com os balconistas. Em Nova York, todo cliente está sempre brigando com os atendentes, não importa onde: no aeroporto, na Bloomingdales, na carrocinha de cachorro quente, em qualquer lugar.
Aqui não. Estava todo mundo perfeitamente calmo.
E acho que eu sabia por quê. Simplesmente não me pare­cia que houvesse qualquer motivo para se irritar. Lá fora, o sol se derramava nas palmeiras que eu havia visto do céu. No estacionamento havia gaivotas ciscando - nada de pom­bos, gaivotas mesmo, grandes gaivotas brancas e cinzentas. E quando fomos apanhar minha bagagem, ninguém se preo­cupou em saber se os adesivos nelas combinavam com os meus canhotos. Nada disso. Todo mundo só ficava dizen­do "Até logo! Tenham um bom dia!".
Completamente irreal.
Antes de eu viajar, a Gina (ela era a minha melhor ami­ga no Brooklyn; bem, na verdade, a minha única amiga) tinha me dito que eu ia ver que ter três meios-irmãos tinha lá suas vantagens. E ela sabia do que estava falando, pois tinha quatro - não meios-irmãos, mas irmãos de verdade. Seja como for, não acreditei nela, assim como não havia acreditado nas pessoas que falavam das palmeiras. Mas quando o Soneca pegou duas malas minhas e o Dunga pe­gou as outras duas e eu não precisei carregar absolutamente nada, pois o Andy já estava com a minha mochila de mão, finalmente eu entendi do que ela estava falando: os irmãos podem ter sua utilidade. Podem carregar o que é pesado mesmo, como se não fosse nada.
Afinal, eu tinha feito minhas malas, e sabia o que havia nelas. Não estavam nada leves. Mas Soneca e Dunga iam andando assim, tipo, sem problema, vamos nessa.
De posse da minha bagagem, fomos para o estaciona­mento. Quando as portas automáticas se abriram, todo mundo - inclusive minha mãe - levou a mão ao bolso para botar os óculos escuros. Aparentemente estavam todos sabendo alguma coisa que eu não sabia. Mas bastou chegar à calçada para entender o que era.
Aqui faz sol!
E não é só que faça sol - é uma luminosidade incrível, tão forte e colorida que os olhos doem. Eu também tinha os meus óculos escuros; estavam em algum lugar, mas como estava fazendo uns cinco graus e caindo chuva de granizo quando eu saí de Nova York, nem me passou pela cabeça deixá-los à mão. Quando minha mãe me disse que nós íamos nos mudar - ela e Andy decidiram que era mais fá­cil ela se mudar, pois tinha só uma filha e trabalhava como repórter de televisão, do que ele, que tinha três filhos e um negócio próprio -, ela me explicou que eu ia adorar o norte da Califórnia.
- É lá que foram feitos todos aqueles filmes da Goldie Hawn e do Chevy Chase! - disse ela.
Eu gosto da Goldie Hawn e do Chevy Chase, mas não sabia que eles tinham feito algum filme juntos.
- Lá é que se passam as histórias de todos aqueles ro­mances do Steinbeck que você leu na escola - explicou. - Você lembra, O pônei vermelho...
Bom, não fiquei tão impressionada assim. Do Pônei ver­melho, só me lembrava que não havia meninas na história, embora houvesse um bocado de colinas. E agora ali no esta­cionamento, passando os olhos pelas colinas ao redor do Aeroporto Internacional de San José, eu podia ver que havia mesmo muitas colinas, e que a relva nelas estava ressecada e amarelada.
Mas, espalhadas pelas colinas, havia umas árvores dife­rentes de todas que eu já tinha visto. Eram achatadas no alto, como se um punho gigantesco tivesse vindo do céu e dado um murro. Mais tarde eu ficaria sabendo que eram ciprestes.
E pelo estacionamento todo, que evidentemente tinha um sistema de irrigação, havia arbustos enormes com flo­res vermelhas gigantescas, quase sempre ao redor de pal­meiras incrivelmente altas e grossas. Depois, olhando me­lhor as flores, eu descobriria que eram hibiscos. E os estra­nhos besouros que ficavam pairando em volta, com um zumbido, não eram besouros coisa nenhuma, mas beija-flores.
- Claro - disse minha mãe quando eu observei isto. - Eles estão em toda parte. Lá em casa nós temos bebedouros para eles. Se quiser você pode pendurar um na sua janela também.
Beija-flores bebendo agüinha na nossa janela? Lá no Brooklyn os únicos pássaros que vinham até a minha janela eram pombos. E minha mãe não chegava exatamente a me estimular a alimentá-los.
Meu momento de alegria com os beija-flores foi interrom­pido quando o Dunga de repente anunciou que ia dirigir, e se encaminhou para o assento do motorista do enorme utilitário de que nos aproximávamos.
Eu vou dirigir - disse Andy com firmeza.
Puxa, pai - fez o Dunga. - Como é que eu vou conse­guir a minha carteira se você nunca me deixa praticar?
Você pode praticar no Rambler - respondeu o Andy, abrindo a mala do Land Rover e começando a acomodar minha bagagem. - Você também, Suze, Fiquei espantada.
- Eu também o quê?
- Você pode praticar direção no Rambler, mas só tendo ao lado alguém que tenha carteira de motorista - respon­deu ele, sacudindo o dedo indicador na minha direção.
Eu pisquei para ele.
- Não sei dirigir - disse.
Dunga soltou uma gargalhada que parecia um relincho.
Você não sabe dirigir? - e com o cotovelo ele cutu­cou o Soneca, que estava recostado na lateral do carro, com o rosto voltado para o sol. - Olha aí, Jake, ela não sabe dirigir!
Não é tão incomum assim que um nova-iorquino não tenha carteira de motorista, Brad - disse o Mestre. – Você não sabe que Nova York tem o tráfego mais pesado de todo o país, com uma população de mais de 13 milhões de pes­soas num perímetro de 6.400 quilômetros que vai até Connecticut, passando por Long Island? E que sua ampla ma­lha de metrô, ferrovias e ônibus atende a um bilhão e setecentos milhões de usuários anualmente?
Todo mundo ficou olhando para o Mestre. Até que mi­nha mãe conseguiu dizer, modestamente:
- Eu nunca ando de carro na cidade.
Andy fechou a porta da traseira do Land Rover.
- Não se preocupe, Suze - disse ele. - Vamos te matri­cular sem demora numa auto-escola. Num piscar de olhos você vai se equiparar ao Brad. Eu olhei para Dunga. Jamais teria imaginado que alguém pudesse dizer que eu ainda precisava me equiparar ao Brad em alguma coisa.
Mas dava para ver que muitas surpresas ainda me es­peravam. As palmeiras tinham sido apenas o começo. No trajeto para casa, que ficava bem a uma hora do aeroporto - e uma hora que não passava nada rápido, espremida que eu estava entre o Dunga e o Soneca, com Mestre empoleirado em cima da minha bagagem lá atrás e sem parar de discor­rer sobre as maravilhas do departamento de trânsito da cidade de Nova York -, eu comecei a me dar conta de que as coisas seriam diferentes, mas muito, muito diferentes do que eu imaginara, e com certeza diferentes de tudo a que eu estava acostumada.
E não apenas porque eu passaria a viver do outro lado do continente. Não só porque, para qualquer lado que eu olhasse, via coisas que nunca havia visto em Nova York: quiosques de beira de estrada vendendo alcachofras e romãs a um dólar a dúzia; quilômetros e quilômetros de vinhedos se enrascando infindavelmente em caramanchões; planta­ções de limão e abacate; toda uma vegetação de um verde deslumbrante que eu nem era capaz de identificar. E por cima de tudo aquilo, um céu tão azul, tão vasto, que o enorme balão de gás que ia passando lá adiante parecia in­crivelmente minúsculo - como um botão no fundo de uma piscina olímpica.
E além do mais havia o mar, que aparecia tão de repente diante dos nossos olhos que de início eu não o reconheci, achando que era apenas mais uma plantação. Até que eu notei que aquela plantação estava brilhando, refletindo o sol e me enviando pequenas mensagens de SOS em código Morse. A luz era tão resplandecente que ficava difícil olhar sem óculos escuros. Mas lá estava ele, o Oceano Pacífico... enorme, quase tão vasto quanto o céu, uma coisa viva e pulsante se projetando contra uma tira de praia em forma de vírgula.
Como eu era de Nova York, só muito raramente tinha visto o mar, pelo menos com praia. Fiquei mesmo de boca aberta quando o vi, era mais forte que eu. E quando meu queixo caiu todo mundo parou de falar - exceto Soneca, claro, que estava dormindo.
Que foi? - perguntou minha mãe, espantada. – Que aconteceu?
Nada - respondi. Eu estava sem graça. Claro que todos ali estavam acostumados a ver o mar. Iam pensar que eu era uma aberração, ficando tão impressionada com aquilo. - Nada não, é só o mar.
Ah, sim - disse minha mãe. - É mesmo, não é lindo? Aí foi a vez do Dunga:
Ondas muito maneiras. Vou à praia antes do jantar.
Só depois de terminar aquele trabalho - cortou o pai.
- Poxa, paiêee!...
Foi a deixa para minha mãe começar a fazer uma longa e detalhada descrição do colégio para o qual eu ia, o mes­mo que era freqüentado por Soneca, Dunga e Mestre. O colégio, batizado com o nome de Junipero Serra, um espa­nhol que chegou no século XVIII e obrigou os indígenas americanos que já viviam na região a trocar sua religião pelo cristianismo, era na realidade uma gigantesca missão construída com tijolos crus, que todo ano atraía vinte mil turistas ou coisa parecida.
Na realidade eu não estava ouvindo o que minha mãe dizia. Meu interesse pela escola sempre foi mais ou menos igual a zero. O único motivo pelo qual eu não pudera mu­dar-me para cá antes do Natal é que não havia vaga para mim no Colégio da Missão; tive então de esperar o semes­tre seguinte para aparecer alguma coisa. Mas não me im­portei - acabei morando com minha avó por alguns meses, o que não foi nada mau. Minha avó, além de ser uma exce­lente advogada criminal, é uma cozinheira de mão cheia.
Eu ainda estava me recuperando da impressão causada pelo mar, que havia desaparecido por trás das colinas. Eu ficava esticando o pescoço, na esperança de dar mais uma olhadela, e de repente me ocorreu!... E eu disse:
Espera aí. Quando esse colégio foi construído?
No século XVIII - respondeu Mestre. - As missões, im­plantadas pelos franciscanos de acordo com as normas da Igreja Católica e do governo espanhol, foram criadas não só para cristianizar os indígenas americanos, mas também para torná-los comerciantes bem preparados no contexto da sociedade espanhola. Inicialmente, a missão servia como...
Século XVIII? - insisti, inclinando-me para a frente. Eu estava espremida entre o Soneca (cuja cabeça já estava re­pousando no meu ombro, de tal modo que eu era capaz de dizer, só de respirar, que ele usava xampu Finesse) e Dunga. A Gina não tinha me dito nada sobre o espaço que os garo­tos são capazes de ocupar, e que não é pouca coisa não, quando eles passam do metro e oitenta de altura e podem pesar algo em torno de 90 quilos. - Século XVIII?
Minha mãe deve ter percebido o pânico na minha voz, pois virou-se no assento da frente e disse, com sua voz suave:
Suze, nós já conversamos sobre isto. Eu te expliquei que no colégio Robert Louis Stevenson a lista de espera é de um ano e você me disse que não queria ir para um colé­gio só de meninas, de modo que o Sagrado Coração fica descartado e o Andy ficou sabendo de histórias terríveis de drogas e violência nos colégios públicos aqui da região...
Mas, século XVIII? - insisti, já sentindo meu coração bater forte, como se estivesse correndo. - Isto quer dizer que ele tem trezentos anos!
Não estou entendendo - disse o Andy.
Já estávamos atravessando a cidadezinha de Carmel-sobre-o-Mar, cheia de chalés pitorescos - alguns deles com telhados de palha - e pequenos restaurantes e galerias de arte cheios de charme. Andy tinha de dirigir com cuidado, pois as ruas estavam cheias de carros com placas de outros estados e não havia sinais luminosos, algo de que os mora­dores por algum motivo se orgulhavam.
- O que há de tão errado com o século XVIII? - ele quis saber.
Minha mãe respondeu, sem a menor inflexão na voz - aquela voz que eu chamo de voz das más notícias, a que ela usa na televisão para noticiar desastres de avião e assas­sinatos de crianças: - Suze nunca gostou muito de prédios antigos.
- Ah - fez o Andy. - Então é provável que ela não goste da casa.
Eu me agarrei no encosto de cabeça do assento dele.
- Por quê? - perguntei numa voz seca. - Por que não vou gostar da casa?
É claro que eu percebi o motivo assim que chegamos. A casa era enorme e inacreditavelmente bonita, com direito até a torrinhas de estilo vitoriano e uma plataforma-mirante no telhado. Minha mãe mandara pintá-la de azul, bran­co e creme, e ela era cercada de grandes pinheiros frondosos e arbustos floridos por toda parte. Com três andares, toda construída em madeira e não a terrível combinação de vidro e aço ou a terracota de que eram feitas as casas ao redor, pode-se dizer que era a casa mais charmosa e de bom gos­to da vizinhança.
Mas eu não queria pisar lá dentro.
Quando concordei em me mudar para a Califórnia com minha mãe, eu sabia que teria de enfrentar muitas mu­danças. As alcachofras à beira da estrada, as plantações de limão, o mar... nada disso tinha importância. No fundo, a maior mudança seria ter de compartilhar minha mãe com outras pessoas. Desde que o meu pai morrera há dez anos, éramos só nós duas. E eu tenho de reconhecer que gostava das coisas desse jeito. Na realidade, se não fosse pelo fato de que o Andy tão evidentemente fazia a minha mãe feliz, eu teria fincado pé e dito não à mudança.
Mas era impossível simplesmente olhar para os dois - Andy e minha mãe - e não ver logo de cara que babavam completamente um pelo outro. E que tipo de filha eu seria se dissesse "nem pensar"? De modo que aceitei o Andy, aceitei seus três filhos e aceitei o fato de que teria de deixar para trás tudo que eu tinha e amava - minha melhor ami­ga, minha avó, os bagels, o bairro do Soho - para dar à mi­nha mãe a felicidade que ela merecia.
Mas eu ainda não tinha parado para pensar realmente no fato de que, pela primeira vez na minha vida, ia morar numa casa,
E não uma casa qualquer, e sim, como ia dizendo o Andy cheio de orgulho enquanto tirava minha bagagem do car­ro e a entregava aos filhos, um casarão que havia funcionado como estalagem no século XIX. Construído em 1849, ele aparentemente tinha uma péssima reputação na época. No salão principal haviam ocorrido tiroteios por causa de jo­gos de cartas e mulheres. Ainda era possível ver os buracos das balas. Um deles, inclusive, havia sido emoldurado pelo Andy. Ele confessava que era um pouco mórbido, mas ar­gumentava que não deixava de ser interessante. E aposta­va que estávamos morando na única casa da colina de Carmel que tinha um buraco de bala feito no século XIX.
- Hmmm, eu disse. E aposto que era verdade.
Enquanto subíamos os muitos degraus até a varanda da frente, minha mãe ficava olhando para mim. Eu sabia que ela estava apreensiva com o que eu ia pensar. E eu estava mesmo meio danada com ela por não me ter avisado. Mas acho que posso entender por que ela não disse nada. Se ela tivesse me dito que tinha comprado uma casa com mais de cem anos, eu não teria mudado para lá. Teria ficado com a vovó até chegar a hora de entrar para a faculdade.
Pois o fato é que a minha mãe tem toda razão: eu não gosto de construções antigas.
Embora desse para ver que em matéria de prédios anti­gos aquele era realmente especial... De pé na varanda, a gente podia ver toda Carmel lá embaixo, a cidadezinha, o vale, a praia, o mar. Era uma vista sensacional, e muita gente estaria disposta a pagar milhões para tê-la - e na verdade pagava mesmo, a julgar pelo luxo das casas em volta; uma vista para ninguém botar defeito.
Ainda assim, quando minha mãe me chamou para ver meu quarto, eu tremi um pouco nas bases.
A casa era tão bonita por dentro quanto por fora, toda alegre com seus amarelos e azuis e seus alaranjados bri­lhantes. Eu logo reconheci as coisas da minha mãe, o que me fez sentir um pouco melhor. Lá estava a cristaleira que tínhamos comprado num fim de semana em Vermont. Lá estavam minhas fotos de bebê, penduradas na parede da sala de estar, bem ao lado das fotos de Soneca, Dunga e Mestre. Lá estavam os livros da minha mãe, nas prateleiras embutidas na saleta. Suas plantas, por cujo transporte ela pagara tão caro, por não conseguir se separar delas, es­tavam por toda parte, em tripés de madeira, penduradas em frente às janelas, encarapitadas no alto do corrimão da escada.
Mas também havia coisas que eu não estava reconhe­cendo: um belo de um computador branco na escrivaninha que minha mãe costumava usar para assinar cheques e pagar as contas; uma televisão de tela gigante absurda­mente enfiada numa lareira na saleta, com fios ligando-a a uma espécie de videogame; pranchas de surfe encostadas na parede ao lado da porta que dava para a garagem; um enorme cachorro babão, que parecia convencido de que eu trazia comida nos bolsos, onde não parava de enfiar seu enorme focinho úmido.
Todas essas coisas pareciam estranhamente masculinas, objetos estranhos no tipo de vida que eu e minha mãe tí­nhamos cultivado. Ia ser necessário algum tempo para eu me acostumar a elas.
Meu quarto ficava no primeiro andar, bem em cima do telhado da varanda. Durante todo o percurso do aeropor­to minha mãe ficara falando agitada sobre o assento que o Andy tinha instalado na janela de três faces projetada para fora, do tipo conhecido como bay window. A janela dava para a mesma vista que a varanda, aquela paisagem impres­sionante que abarcava toda a península. Era mesmo uma gracinha da parte deles me darem um quarto tão bom, o quarto com a melhor vista da casa.
E quando eu vi a trabalheira que eles tiveram, para que eu me sentisse em casa naquele quarto (ou pelo menos para que alguma garota excessivamente feminina e fantasma­górica se sentisse em casa... não, eu... Eu nunca tinha sido do tipo penteadeira com tampo de vidro e telefone cor de rosa), quando vi que o Andy mandara botar papel de parede creme com miosótis azuis por cima dos intrincados lambris brancos ao longo das paredes; que as paredes do meu banheiro particular eram recobertas pelo mesmo pa­pel; e que eles tinham comprado uma cama nova para mim - uma cama com armação de quatro colunas e dossel de rendas, do tipo que minha mãe sempre quisera me dar e dessa vez não pudera resistir, eu me senti culpada pela maneira como me havia comportado no carro. Realmente me senti. Caminhando pelo quarto, eu dizia a mim mes­ma: tudo bem, não é tão ruim assim. Por enquanto você está na boa. Talvez tudo dê certo, talvez ninguém tenha sido infeliz nesta casa, talvez aquelas pessoas todas que levaram tiros merecessem mesmo...
Até que me virei para a janela e vi que alguém já estava aboletado no assento que o Andy fizera para mim com tan­to carinho.
Era uma pessoa que não era minha parenta, nem de Soneca, Dunga ou Mestre.
Voltei-me para o Andy, para ver se ele tinha notado a presença do intruso. Mas ele não tinha, embora a pessoa estivesse bem ali, bem diante do seu rosto.
Minha mãe também não a havia visto. Ela só estava ven­do o meu rosto. Desconfio que a minha expressão não de­via ser das mais agradáveis, pois a expressão da minha mãe mudou completamente, e ela disse, num suspiro:
- Ah, Suze, outra vez?!..

   Capítulo 2

Vou ter de explicar. É que eu não sou exatamente como qualquer garota de 16 anos. Quer dizer, acho que eu pareço bastante normal. Não uso drogas, nem bebo, nem fumo - tudo bem, só daquela vez em que o Soneca me pegou. Não tenho nenhum piercing, só furos nas orelhas, e só um em cada lóbulo. Não tenho ne­nhuma tatuagem. Nunca pintei o cabelo. À parte minhas bo­tas e minha jaqueta de couro, não exagero no preto. Nem uso esmalte escuro nas unhas. No final das contas, sou uma ado­lescente americana perfeitamente normal e comum.
Só que eu falo com os mortos.
Talvez não devesse dizer assim. Talvez devesse dizer que os mortos é que falam comigo. Quer dizer, eu não ando por aí procurando esse tipo de conversa. Na realidade, tento evitar essa coisa toda o mais que posso.
Mas o negócio é que às vezes eles não me largam.
Estou me referindo aos fantasmas.
Não acho que eu seja maluca. Pelo menos não mais malu­ca que qualquer outra adolescente de 16 anos. Suponho que posso parecer maluca para certas pessoas. A maioria do pessoal no bairro onde eu morava certamente achava isto. Que eu era biruta. Mais de uma vez puseram os conselhei­ros da escola para cuidar de mim. Às vezes chego a pen­sar que talvez até fosse mais fácil simplesmente deixar que me trancafiassem.
Mas mesmo no nono andar de Bellevue - que é onde eles trancafiam os loucos em Nova York - eu provavelmente ainda não estaria a salvo dos fantasmas. Eles me achariam.
Eles sempre me acham.
Ainda me lembro do primeiro. Lembro-me dele com a mesma clareza das minhas outras lembranças daquela época, o que significa que não me lembro muito bem, pois tinha apenas cerca de dois anos. Acho que me lembro tão bem quanto me lembro de ter livrado um camundongo das garras do nosso gato, mantendo-o protegido em meus braços até que minha mãe, horrorizada, o arrancasse das minhas mãos.
Puxa vida, eu só tinha 2 anos, tá? Na época, ainda não sabia que a gente devia ter medo de ratos. Nem de fan­tasmas, por sinal. Por isto é que, quatorze anos depois, nenhum dos dois me assusta. Talvez me espantem, às vezes. E certamente me chateiam um bocado. Mas me dar medo?
Nunca.
A aparição, exatamente como o camundongo, era peque­na, cinzenta e desprotegida. Até hoje não sei quem era. Mas eu falei com ela, algum tatibitate de bebê que ela não enten­deu. Os fantasmas não entendem crianças de dois anos, como aliás ninguém entende. Ela só ficou me olhando tristemente do alto da escada do nosso prédio. Acho que eu estava com pena dela, assim como tivera pena do camundongo, e que­ria ajudá-la. Só não sabia como. De modo que fiz o que qual­quer criança de dois anos faria. Corri para a minha mãe.
Foi então que aprendi minha primeira lição a respeito dos fantasmas: só eu sou capaz de vê-los.
Quer dizer, é claro que outras pessoas também podem vê-los. Caso contrário, não teríamos casas mal-assombradas, histórias de fantasmas, seriados de mistério e tudo mais. Mas existe uma diferença. A maioria das pessoas que vêem fantasmas só vêem um. Já eu vejo todos os fantasmas.
Todos mesmo. Qualquer um. Qualquer pessoa que tenha morrido e por algum motivo ainda esteja por aí, em vez de ir para onde deveria ir, eu sou capaz de ver.
E posso lhe garantir que isto significa um bocado de fan­tasmas.
No mesmo dia em que vi meu primeiro fantasma tam­bém descobri que a maioria das pessoas - até mesmo minha mãe - não consegue vê-los. E aliás ninguém que eu tenha conhecido consegue. Ou pelo menos ninguém confessa.
O que me faz lembrar da segunda coisa que aprendi so­bre os fantasmas naquele mesmo dia, há quatorze anos: no fim das contas, é sempre melhor não dizer que você viu um fantasma. Ou, no meu caso, qualquer fantasma.
Não estou dizendo que minha mãe entendeu que eu es­tava apontando para um fantasma ao mesmo tempo que balbuciava umas coisas incompreensíveis naquela tarde, quando tinha 2 anos. Duvido que ela soubesse. Provavel­mente pensou que eu estava querendo dizer alguma coisa sobre o camundongo que ela havia tirado de mim naque­la manhã. Mas ela parecia descontraída lá no alto da esca­da e concordou com a cabeça, dizendo:
- Rã-rã... Escuta, Suze. O que vai querer para o almoço? Queijo quente? Atum?
Eu não esperava exatamente uma reação semelhante à que ela teve no caso do camundongo. Minha mãe, que na época também estava cuidando do bebê de uma vizinha, soltara um berro daqueles ao ver o camundongo nos meus braços e berrara mais alto ainda quando eu anunciei orgu­lhosamente que agora também tinha o meu bebê - e hoje eu me dou conta de que ela podia não ter entendido, já que não sacou a história do fantasma.
Mas eu esperava pelo menos que ela percebesse aquela coisa que estava flutuando no alto da escada. Diariamente estavam me dando explicações sobre praticamente tudo que eu encontrava pela frente, dos hidrantes às insta­lações elétricas. Por que não sobre aquela coisa no alto da escada?
Mas quando eu estava comendo o meu queijo quente, um pouco depois, entendi que minha mãe não havia explicado nada sobre aquela coisa cinzenta porque não a tinha visto. Para ela, a coisa não estava lá.
Com dois anos de idade, isto não me pareceu absurdo. Na época, pareceu simplesmente mais uma coisa que tor­nava as crianças diferentes dos adultos. As crianças tinham de comer os legumes até o fim. Os adultos não precisavam. As crianças podiam andar no carrossel no parque. Os adul­tos, não. As crianças podiam ver as coisas cinzentas. Os adultos não conseguiam.
E embora eu tivesse apenas dois anos, entendi que aque­la coisinha cinzenta no alto da escada não deveria ser co­mentada. Não deveria ser comentada com ninguém. Nunca.
E eu nunca comentei. Nunca falei com ninguém sobre o meu primeiro fantasma, nem nunca comentei com nin­guém sobre as centenas de fantasmas que viria a encontrar nos anos seguintes. E no fim das contas, comentar o quê? Eu os via. Eles falavam comigo. Na maioria das vezes, eu não entendia o que eles estavam dizendo, o que queriam, e geralmente eles iam embora. Ponto final.
Provavelmente a coisa teria continuado assim indefini­damente se meu pai não tivesse morrido de repente.
Isso mesmo. Simples assim. Lá estava ele um belo dia na cozinha, cozinhando e contando piadas como sempre fazia, e no dia seguinte tinha partido.
E durante toda a semana que se seguiu à sua morte - que eu passei na varanda em frente ao nosso prédio, esperando meu pai voltar para casa - as pessoas ficavam me dizendo a toda hora que ele nunca voltaria.
Claro que eu não acreditava. E por que haveria de acredi­tar? Meu pai não ia voltar? Eles tinham ficado malucos? Tudo bem, ele podia ter morrido. Esta parte eu tinha pego. Mas certamente ia voltar. Quem ia me ajudar com o dever de matemática? Quem ia acordar cedo comigo nos sábados para fazer waffles e ver desenhos animados? Quem ia me ensinar a dirigir quando eu tivesse 16 anos, como ele havia prometido? Meu pai podia ter morrido, mas com toda certeza eu voltaria a vê-lo. Todo dia eu estava vendo uma quantidade de pessoas mortas. Por que não haveria de ver o meu pai?
E no fim eu estava certa. Puxa vida, meu pai tinha mor­rido. Quanto a isto não havia a menor dúvida. Ele morreu de um enfarte fulminante. Minha mãe mandou cremar seu corpo, e guardou suas cinzas numa antiga caneca de cerveja alemã - aquela com alça. Meu pai adorava cerveja. Ela botou a caneca numa prateleira bem alta, onde o gato não pudesse derrubá-la, e às vezes, quando achava que eu não estava por perto, eu a surpreendia conversando com ela.
Isto me deixava muito triste. Quer dizer, ela não tinha culpa. Se estivesse na situação dela, sem saber o que eu sabia, provavelmente eu também conversaria com a caneca.
Mas, como você vê, era aí que todas aquelas pessoas do meu quarteirão se enganavam. Meu pai estava morto, é ver­dade. Mas eu realmente voltei a vê-lo.
Na realidade, é provável que o veja mais hoje em dia do que quando ele estava vivo. Quando estava vivo, ele tinha de ir para o trabalho quase todo dia. Agora que está morto, já não tem muito o que fazer. De modo que o vejo um bocado. Às vezes até demais, no fundo. O passatempo fa­vorito dele é aparecer de repente quando eu menos espero. É meio chato.
Foi meu próprio pai que finalmente me explicou tudo. De modo que num certo sentido é bom que ele tenha mor­rido, pois de outra forma eu nunca ficaria sabendo.
Na verdade, não é bem verdade. Certa vez, uma carto­mante de tarô disse algo a respeito. Foi numa festa na esco­la. Eu só fui porque a Gina não queria ir sozinha. Para mim ia ser uma chatice, mas acabei indo porque é para essas coisas que servem as melhores amigas. A mulher - Zara, médium vidente - leu as cartas da Gina, dizendo exata­mente o que ela queria ouvir: você terá muito sucesso, será neurocirurgiã, vai se casar com 30 anos, terá três filhos, blablablá. Quando ela acabou, eu me levantei para ir embora, mas Gina insistiu em que Madame Zara também lesse car­tas para mim.
Você pode imaginar o que aconteceu. Madame Zara leu as cartas uma vez, ficou confusa, embaralhou-as e leu de novo. Depois olhou para mim:
- Você fala com os mortos - disse ela. Gina ficou agitada:
- Meu Deus do céu! Meu Deus! É mesmo? Suze, você ou­ viu isso? Você é capaz de falar com os mortos! Você tam­bém é médium!
- Médium, não - atalhou Madame Zara. - Mediadora. Gina ficou com ar de absoluto espanto.
- O quê? Que diabo é isso?
Mas eu sabia. Não sabia que nome davam, mas sabia o que era. Meu pai não tinha explicado as coisas exatamente daquela maneira quando falou comigo, mas de qualquer modo eu peguei a raiz da questão: simplesmente eu sou o contato para praticamente todo mundo que estica as canelas deixando as coisas... digamos, incompletas. E aí, quando posso, eu ajeito as coisas.
É a única maneira que eu consigo explicar a coisa. Não sei por que fui ter tanta sorte - quer dizer, nas outras coisas eu sou tão normal. Bom, quase... Simplesmente e infelizmente tenho essa capacidade de me comunicar com os mortos.
Mas não qualquer morto. Só os que estão infelizes.
Você já entendeu então que nos últimos 16 anos a mi­nha vida tem sido mesmo um mar de rosas.
Imagine só, ser assombrada - literalmente assombrada - pelos mortos, a cada minuto de cada dia da sua vida. Não é nada agradável. Você vai ali na lanchonete tomar um re­frigerante... opa, falecido na esquina. Alguém o baleou. E se você puder levar os tiras ao sujeito que fez aquilo, ele pode finalmente descansar em paz.
E tudo que você queria era um refrigerante.
Ou você vai à biblioteca... e pá, lá vem o fantasma de uma dona de livraria querendo que você vá dizer ao sobri­nho dela que está furiosa com a maneira como ele passou a tratar os gatos depois que ela bateu as botas.
E esses são só os caras que sabem por que ainda estão rondando por aí. A metade deles não tem a menor idéia de por que ainda não foram para o tipo de vida que os espera­va depois que morreram.
O que não deixa de ser um saco, claro, pois eu sou a boboca que tem de ajudá-los a tomar rumo.
Eu sou a mediadora.
Pode crer que não é o destino que eu desejaria a ninguém.
Não se pode dizer que nesse campo da mediação as recom­pensas sejam generosas. Ninguém nunca se deu ao traba­lho de me oferecer um salário ou coisa parecida. Nem se­quer um pagamento por hora. Só aquele calorzinho gostoso, de vez em quando, quando você faz alguma coisa boa para alguém. Como por exemplo dizer a uma garota que não conseguiu se despedir do avô antes de ele morrer que ele realmente a ama, e a perdoa por aquela vez em que ela jo­gou fora sua coleção de selos. Esse tipo de coisa realmente pode acalentar o coração.
A maioria das vezes, no entanto, são mesmo calafrios o tempo todo. Além do estresse - estar sendo o tempo todo atormentada por gente que só você consegue ver -, o fato é que muitos fantasmas são estúpidos à beça. Isso mesmo. São chatos de doer. Esses são em geral os que realmente querem ficar mesmo rondando aqui neste mundo em vez de seguirem para o outro. Provavelmente eles sabem que por seu comportamento na vida mais recente não podem esperar muito boa coisa na que está por vir. De modo que ficam por aí atazanando as pessoas, batendo portas, fazen­do barulho com os objetos, provocando frio, gemendo. Você sabe do que estou falando. A velha história de fantasmas...
Mas às vezes eles são bem brutos. É quando tentam machucar as pessoas. De propósito. É aí que em geral eu fico danada. É quando me dá vontade de dar um pontapé no traseiro de um fantasma.
E era disso que minha mãe estava falando quando disse aquela frase - "Ah, Suze, outra vez?!..." Quando eu chuto os fundilhos de um fantasma, as coisas tendem a ficar um pouco... complicadas.
Não que eu tivesse a menor intenção de bagunçar meu novo quarto. Por isto é que dei as costas para o fantasma sentado perto da minha janela e disse:
- Deixa pra lá, mãe. Está tudo bem. O quarto é mara­vilhoso. Obrigada mesmo.
Deu para ver que ela não estava acreditando em mim. Não é nada fácil enganar minha mãe. Eu sei que ela está desconfiando que há alguma coisa comigo. Simplesmente ela não consegue imaginar o quê. O que provavelmente é bom, pois do contrário todas as certezas dela ficariam abala­das demais. Sabe como é, ela é repórter de televisão. Só acredita no que vê. E fantasmas ela não consegue ver.
Você não imagina o quanto eu gostaria de ser como ela.
- Que bom, que bom que você gostou - disse ela. - Eu estava meio preocupada. Isto é, sabendo como você não gosta... bem, de lugares antigos.
Lugares antigos são os piores para mim porque quanto mais velha for uma construção, mais chances haverá de que alguém tenha morrido nela e de que ele ou ela ainda este­jam rondando por ali, em busca de justiça ou querendo transmitir alguma mensagem final a alguém. Para você ficar sabendo, isto resultou em alguns lances dos mais interessan­tes, na época em que minha mãe e eu estávamos procu­rando apartamento na cidade. A gente entrava naqueles apartamentos que pareciam perfeitamente OK, e eu começa­va a dizer "Não, não, de jeito nenhum" sem uma razão aparente que eu pudesse explicar. É mesmo um espanto que minha mãe não tenha me despachado depressinha para um internato.
- Na boa, mamãe - disse eu. - Muito bom. Adorei.
Ouvindo isto, Andy começou a zanzar agitado pelo quar­to, mostrando-me que as luzes podiam ser acesas e apaga­das com palmas (ai, meu Deus...) e várias outras gracinhas que ele havia providenciado. Eu ia atrás dele, mostrando que estava encantada, mas tomando o cuidado de não olhar na direção do fantasma. Era mesmo comovente ver como o Andy queria me ver feliz. E como ele parecia querer tan­to, eu estava decidida a ser mesmo feliz. Ou pelo menos tão feliz quanto é possível para uma pessoa como eu.
Depois de um certo tempo, Andy já não tinha mais o que me mostrar e saiu para começar a preparar o churras­co, pois em homenagem à minha chegada teríamos um jan­tar especial. Soneca e Dunga foram "pegar uma onda" en­quanto não chegava a hora e Mestre, balbuciando miste­riosamente alguma coisa sobre uma "experiência" em que estava trabalhando, meteu-se em alguma outra parte da casa, deixando-me sozinha com minha mãe... quer dizer, mais ou menos.
Está tudo bem mesmo, Suze? - quis saber ela. - Eu sei que é uma mudança muito grande. Sei que é pedir muito de você...
Eu tirei minha jaqueta de couro. Não sei se já disse, mas estava quente à beça para o mês de janeiro. Uns 25 graus. Eu quase havia torrado no carro.
Está tudo bem, mãe - respondi. - Mesmo.
Estou querendo dizer que pedir que você se separasse da vovó, da Gina, de Nova York... Foi egoísmo meu, eu sei. Sei que as coisas não têm sido... como dizer, fáceis para você. Especialmente desde que papai morreu.
Minha mãe gosta de pensar que o motivo pelo qual eu não sou a adolescente tradicional do jeito que ela era quan­do tinha a minha idade - ela era chefe de torcida, rainha de beleza, tinha montes de namorados e coisas do tipo - é por eu ter perdido meu pai tão cedo. Ela culpa a morte dele por tudo, desde o fato de eu não ter amigos - com a exce­ção da Gina - até minhas eventuais demonstrações de comportamento bizarro.
E acho mesmo que muitas coisas que fiz no passado podiam parecer bem bizarras para alguém que não sou­besse por que eu estava agindo daquela maneira, ou que não pudesse ver para quem eu estava fazendo aquilo. Muitas vezes fui apanhada em lugares onde não deveria estar. Algumas vezes cheguei a ser levada para casa pela polícia, acusada de invasão de propriedade, vandalismo ou arrombamento.
E embora nunca tenha sido condenada por nada, já pas­sei muitas horas no consultório da terapeuta da minha mãe, ouvindo que esta minha tendência para falar comigo mes­ma é perfeitamente normal, mas que provavelmente o mesmo não se pode dizer da minha inclinação para conver­sar com pessoas que não estão presentes.
O mesmo quanto à minha aversão a qualquer edifício que não tenha sido construído nos cinco últimos anos.
O mesmo quanto ao número de horas que costumo pas­sar em cemitérios, igrejas, templos, mesquitas, casas ou apar­tamentos (trancados) de outras pessoas e na escola depois do horário,
Acho que os garotos do Andy devem ter ouvido falar al­guma coisa sobre isto, daí aquela pergunta sobre andar em gangues. Mas, como disse, nunca tive de cumprir nenhu­ma pena por nada.
E as duas semanas de suspensão na oitava série nem chegaram a ser anotadas em minha caderneta.
De modo que não era de estranhar que minha mãe esti­vesse ali sentada na minha cama, falando de "começar de novo" e coisas assim. Não deixava de ser estranho que ela o estivesse fazendo enquanto aquele fantasma estava sentado ali a alguns passos apenas, nos observando. Mas não impor­ta. Parecia que ela tinha necessidade de falar sobre como as coisas iam ser muito melhores para mim lá na Califórnia.
E se era isto que ela queria, eu ia fazer tudo que estivesse ao meu alcance para satisfazê-la. Já tinha resolvido não fazer nada que pudesse acabar me levando para a cadeia, o que já era um bom começo.
- Bom - fez minha mãe, já meio sem fôlego depois de todo aquele discurso para dizer que eu não ia fazer amigos se não fosse simpática. - Então, se você não quer ajuda para desfazer as malas, acho que vou ver como é que o Andy está se saindo com o jantar.
Além de ser capaz de construir praticamente qualquer coisa, o Andy também era um excelente cozinheiro, o que minha mãe certamente não era nem de longe. Eu respondi:
- Isso aí, mãe. Faça isso. Vou só me ajeitar um pouco aqui e daqui a pouco desço.
Minha mãe concordou e se levantou - mas não ia me deixar escapulir assim tão facilmente. No momento em que ia passar pela porta, voltou-se e disse, com os olhos azuis cheios de lágrimas:
- Eu só quero que você seja feliz, Suzinha, É a única coisa que eu sempre quis. Você acha que vai ser feliz aqui?
Eu dei um abraço nela. Quando estou com minhas boti­nas, tenho a mesma altura que ela.
- Claro, mãe - respondi. - É claro que vou ser feliz aqui. Já estou me sentindo em casa.
- É mesmo? - fez minha mãe, fungando. - Jura? - Juro.
E eu não estava mentindo, pois se no meu quarto no Brooklyn também havia fantasmas o tempo todo...
Ela saiu e fechou a porta. Esperei até que não estivesse mais ouvindo os passos dela na escada e então me voltei.
- OK - fui dizendo para aquela presença no assento da janela. - Quem diabos é você?



Capítulo 3


Se eu dissesse que o cara ficou surpreso de ser interpe­lado daquela maneira, estaria muito longe de dar idéia da reação dele. Ele não ficou apenas surpreso. Chegou até a olhar ao redor para ver se era com ele mes­mo que eu estava falando.
Mas é claro que a única coisa que havia atrás dele era a janela e, além dela, aquela vista inacreditável da Baía de Carmel. De modo que acabou se voltando novamente para mim e deve ter visto que meu olhar estava grudado no seu rosto, pois suspirou "Nombre de Dios" de um jeito que pro­vavelmente faria desmaiar a Gina, que tem um fraco por latinos.
- Não adianta invocar seus espíritos superiores - comu­niquei-lhe, arrastando a cadeira com bordados cor-de-rosa para minha nova penteadeira e sentando-me nela, de frente para o encosto. - Se ainda não notou, Ele não está prestando muita atenção em você. Caso contrário, não o teria deixa­do por aqui apodrecendo todos estes anos... - e então dei uma olhada mais firme nas suas roupas, que pareciam muito com algo saído do velho oeste. - Quantos anos mesmo?... Uns cento e cinqüenta anos? Já passou mesmo este tempo todo desde que você bateu as botas?
Ele me olhou fixamente com seus olhos negros e úmi­dos. E perguntou, com uma voz rouca por falta de uso:
- Que quer dizer... bateu as botas?
Eu não pude deixar de revirar os olhos de impaciência. E traduzi:
- Esticou as canelas. Dobrou o Cabo da Boa Esperança. Foi desta para melhor.
Quando vi por sua expressão de perplexidade que ele continuava sem entender, finalmente eu disse, algo exas­perada:
Morreu.
Ah - fez ele. - Morri.
Mas em vez de responder a minha pergunta, ele balançou a cabeça.
Não estou entendendo - disse, com ar de espanto. - Não entendo como você consegue me ver. Durante todos esses anos, ninguém nunca...
Claro - fui cortando, pois como você já deve estar saben­do estou cansada de ouvir esse tipo de coisa. - Olha só, os tempos mudaram um bocado, sabia? Então, qual é a sua?
Ele piscou com aqueles enormes olhos negros. Suas pes­tanas eram mais longas que as minhas. Não é sempre que eu dou de cara com um fantasma que também é uma graça, mas aquele cara... caramba, ele devia ter sido alguma coisa quando vivo, pois ali estava ele morto e eu já estava queren­do adivinhar como eram as coisas por baixo da camisa bran­ca que usava, bem aberta, mostrando um bocado o peito, e até um pouco do abdômen. Será que fantasma também faz abdominal? Era o tipo da coisa que eu nunca tivera opor­tunidade - ou vontade - de explorar até então.
Não que eu fosse me deixar perturbar por esse tipo de coisa àquela altura dos acontecimentos. Afinal de contas, sou uma profissional.
- A minha? - repetiu ele.
Até sua voz parecia liqüefeita, com um inglês monóto­no e sem acentuação como eu achava que era o meu, com aquele jeito de amortecer os "t" que a gente tem no Brooklyn. Era evidente que ele tinha alguma coisa de hispânico, como deixavam claro aquele "Nombre de Dios" que havia soltado e a cor da sua pele, mas com certeza era tão americano quan­to eu - ou pelo menos tão americano quanto podia ser al­guém que tivesse nascido antes de a Califórnia tornar-se um estado.
- É - disse eu para limpar a garganta. Ele se voltara um pouco e apoiara uma botina na almofada azul claro do assento da janela, e então eu pude ter certeza de que os fantasmas realmente podem fazer abdominais. Seus músculos abdominais eram muito definidos, e cobertos com uma leve penugem de sedosos pêlos negros.
Eu engoli em seco. Bota seco nisso.
- Sim, a sua - disse então. - Qual o seu problema? Por que ainda está aqui?
Ele olhou para mim, sem expressão no olhar, mas inte­ressado. Eu fui mais clara:
- Por que você ainda não foi para o outro lado?
Ele balançou a cabeça. Não sei se já disse que seu cabe­lo era curto e escuro e parecia bem crespo, dando a impres­são de que se você tocasse nele seria muito áspero mesmo.
- Não sei o que você está querendo dizer.
Eu estava ficando com calor, mas já tinha tirado a ja­queta de couro, de modo que não sabia mais o que fazer. Não podia tirar mais nada com ele ali me olhando. O fato de eu ter percebido isto é que deve ter contribuído para que de repente eu não me sentisse nada boazinha.
- Como assim não sabe o que eu estou querendo dizer? - rebati, afastando uma mecha de cabelos dos olhos. - Você está morto. Não tem mais que ficar aqui. Deveria estar em algum outro lugar fazendo alguma coisa que as pessoas devem fazer depois que morrem. Cantando entre os anjinhos, ardendo no inferno, reencarnando, subindo para algum outro plano da consciência, ou o que seja. Você não devia... estar simplesmente andando por aí.
Ele ficou olhando para mim pensativo, equilibrando o cotovelo no joelho levantado, com o braço meio vacilante.
- E se por acaso eu gostar exatamente de andar por aí? - quis saber.
Eu não tinha muita certeza, mas estava com a impressão de que ele estava zombando de mim. E eu não gosto nada que zombem de mim. Não gosto mesmo. No Brooklyn, o pessoal costumava fazer isso toda hora - pelo menos até eu descobrir que um punho bem fechado no nariz é capaz de calar uma boca.
Eu ainda não estava em condições de dar um murro na­quele cara - ainda não. Mas faltava pouco. Simplesmente, eu tinha viajado um quaquilhão de quilômetros, num per­curso que parecia ter tomado dias e dias, para viver com um bando de garotos bobocas; ainda nem tinha desfeito as malas; praticamente já tinha feito a minha mãe chorar; e de repente dou com um fantasma no meu quarto... Al­guém poderia me acusar de estar sendo... digamos, injus­ta com ele?
Olhe aqui - fui dizendo, levantando de um salto e pas­sando a perna por cima do encosto da cadeira. - Você pode ficar andando por aí o quanto quiser, amigo. Vai fundo. Não estou dando a mínima. Mas aqui, não.
Jesse - disse ele, sem se mexer.
O quê?
Você me chamou de amigo. Achei que gostaria de ficar sabendo que eu tenho um nome. Eu me chamo Jesse.
Eu fiz que sim com a cabeça.
Certo. Faz sentido. Muito bem então, Jesse. Você não pode ficar aqui, Jesse.
E você?
Jesse agora estava sorrindo para mim. Ele tinha um belo rosto. Uma cara boa. O tipo de rosto que no meu colégio antigo bastaria para ser eleito na hora o rei do baile. O tipo de rosto que a Gina recortava das revistas para colar na parede do quarto.
Não que ele fosse bonitinho. Não era mesmo. O que ele parecia mesmo era perigoso. E não era pouco, não.
E eu o quê? - retruquei, sabendo que estava sendo rude, mas não dando a mínima.
Como se chama?
Eu olhei bem fixo para ele.
- Olha aqui. Vai dizendo logo o que você quer e cai fora. Estou com calor e quero trocar de roupa. Não tenho tem­po para...
Ele me interrompeu com perfeita amabilidade, como se não estivesse me ouvindo:
Aquela mulher, sua mãe, chamou-a de Suzinha - disse ele, com os olhos negros brilhando para mim. - É apelido de Susan?
Suzannah - eu disse, corrigindo-o automaticamente. - Como naquela canção, "Não chore por mim".
Ele sorriu:
Eu conheço.
Isso aí. Provavelmente estava entre as 40 mais tocadas no ano em que você nasceu, certo?
Ele continuou sorrindo.
Quer dizer então que este agora é o seu quarto, Su­zannah?
Isso mesmo - respondi. - Isso aí, este agora é o meu quarto. De modo que você vai ter que se mandar.
Eu vou ter que me mandar? - fez ele, levantando uma sobrancelha. - Esta aqui é a minha casa há um século e meio. Por que eu teria de sair?
Porque sim - e eu já estava ficando realmente muito danada, em grande parte porque estava com tanto calor, e queria abrir uma janela, mas a janela estava atrás dele, e eu não queria me aproximar tanto assim. - Este quarto é meu. Não vou dividi-lo com um caubói morto.
Dessa vez ele entendeu direitinho. Levou o pé de volta ao piso, batendo com força, e se endireitou. Imediatamente eu lamentei ter dito o que disse. Ele era alto, bem mais alto que eu, e olhe que com minhas botas eu tenho um metro e setenta e cinco.
- Não sou nenhum caubói - informou ele, zangado. E acrescentou alguma coisa baixinho em espanhol, mas como eu sempre optara por francês na escola, não tinha a menor idéia do que ele estava dizendo. Ao mesmo tempo, o espe­lho antigo pendurado sobre minha nova penteadeira come­çou a balançar perigosamente no gancho que o prendia à parede. E eu sabia que aquilo não se devia a nenhum terremo­to californiano, mas à agitação do fantasma que estava na minha frente, cujos poderes, obviamente, eram do tipo telecinético, aquele negócio de mover coisas com a mente.
É este o problema com os fantasmas: eles são tão susce­tíveis! Ficam alterados ao menor motivo.
- Uaaau! - fiz eu, esticando os braços para cima, com as palmas das mãos voltadas para fora. - Menos! Calma aí, rapaz!
Todos na minha família - enfureceu-se Jesse, com o dedo em riste no meu rosto - trabalharam feito escravos para conseguirem alguma coisa neste país, mas nunca, nun­ca houve nela nenhum vaqueiro...
Ei! - interrompi, e foi aí que cometi o meu maior erro; muito irritada com aquele dedo na minha cara, eu o agarrei com toda força, torcendo sua mão e puxando-o para mim para ter certeza de que ele ia me ouvir dizer bem bai­xinho: - Pare com o espelho agorinha. E tira este dedo do meu nariz. Se fizer de novo, será um dedo quebrado.
Empurrei sua mão para o lado e constatei com satisfação que o espelho parará de balançar. Mas foi então que olhei para o seu rosto.
Fantasmas não têm sangue. E como poderiam ter? Pois se não estão vivos... Mas posso jurar que naquele momen­to o rosto de Jesse ficou completamente sem cor, como se cada gota de sangue que por acaso lá estivesse tivesse se evaporado de uma hora para outra.
Como não estão vivos nem têm sangue correndo nas veias, é claro que os fantasmas também não são feitos de matéria. De modo que não fazia o menor sentido que eu tivesse conseguido agarrar o seu dedo. Minha mão devia ter atravessado ele, certo?
Errado. É assim que acontece com a maioria das pessoas. Mas não com pessoas como eu. Com os mediadores não é assim. Nós vemos fantasmas, falamos com fantasmas e, se necessário, podemos perfeitamente dar um pontapé no tra­seiro de um fantasma.
Mas eu não gosto de sair por aí dizendo isto para todo mundo. Sempre tento o máximo possível não tocar neles - e aliás, não tocar em ninguém. Quando falham todas as tentativas de mediação e eu preciso recorrer a uma certa dose de coerção física com um espírito recalcitrante, geral­mente prefiro que ele ou ela não fique sabendo antes da hora que eu sou capaz disto. Os ataques inesperados são a melhor coisa quando estamos tratando com integrantes do outro mundo, que, como todo mundo sabe, sempre jogam sujo.
Olhando para o próprio dedo como se eu tivesse feito um buraco nele, Jesse parecia completamente incapaz de dizer o que quer que fosse. Provavelmente era a primeira vez em que ele era tocado por alguém em um século e meio. O tipo da coisa que pode deixar um sujeito de cabeça zon­za. Sobretudo um sujeito morto.
Aproveitando que ele estava atarantado, eu disse, com a voz mais firme e séria do mundo:
- Agora ouça bem, Jesse. Este quarto é meu, entendido? Você não pode ficar aqui. Ou você me deixa ajudá-lo a ir para onde deve estar ou vai ter de achar outra casa para as­sombrar. Sinto muito, mas é assim.
Jesse tirou os olhos do dedo, ainda com uma expressão de quem não está absolutamente acreditando.
- Mas quem é você? - perguntou, suavemente. - Que tipo de... garota é você?
Ele hesitou tanto tempo antes de conseguir dizer a palavra garota que pareceu claro que não estava certo de que fosse a palavra adequada no meu caso. Isto me deixou meio intriga­da. Afinal, eu posso não ter sido a garota mais popular da es­cola, mas ninguém nunca negou que eu fosse mesmo uma garota. Caminhoneiros buzinam para mim vez ou outra e não é porque querem que eu saia da frente. Peões de obra às vezes dizem coisas bem pesadas quando eu passo, especialmente se estou usando minha minissaia de couro. Eu não sou feiosa, nem de jeito nenhum masculinizada. É claro que eu tinha acabado de ameaçar quebrar o dedo dele, mas vamos e venha­mos, isto não queria dizer que eu não fosse uma garota!
- Pois vou dizer-lhe que tipo de garota eu não sou - fui dizendo, danada da vida. - O que eu não sou é o tipo de garota disposta a compartilhar o quarto com um membro do sexo oposto. Deu para entender? De modo que ou você se arranca ou eu vou botá-lo daqui para fora. Você decide. Vou lhe dar algum tempo para pensar. Mas quando voltar aqui, Jesse, não quero vê-lo mais.
Dei as costas e saí.
Não tinha outra saída. Geralmente eu não perco dis­cussão com fantasmas, mas tinha a impressão de que esta­va perdendo aquela, e feio. Eu não devia ter sido tão ríspi­da com ele, nem devia ter sido rude. Não sei o que me deu, realmente não sei. É que...
Acho que simplesmente eu não esperava encontrar o fantasma de um cara tão gracinha no meu quarto, só isso.
Meu Deus do céu, pensei enquanto descia as escadas, que vou fazer se ele não for embora? Não vou poder nem trocar de roupa no meu próprio quarto!
Dá um tempo pra ele, começou a dizer uma voz na mi­nha cabeça. Uma voz sobre a qual eu tomara o maior cuida­do de não dizer nada à terapeuta da minha mãe.
Dá um tempo pra ele. Ele vai entender. Eles sempre en­tendem.
Bom, quase sempre.

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