terça-feira, 8 de março de 2011

Harry Potter e a Pedra Filosofal - Capítulos 1 e 2

CAPÍTULO UM
O Menino Que Sobreviveu

O Sr. e a Sra. Dursley, da Rua dos Alfeneiros, nº. 4, se orgulhavam de
dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas
pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa estranha
ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de
bobagem.
O Sr. Dursley era Diretor de uma firma chamada Grunnings,
fazia perfurações. Era um homem alto e corpulento quase sem pescoço, embora
tivesse enormes bigodes. A Sra. Dursley era loura e tinha um pescoço quase duas
vezes mais comprido que o normal o que era muito útil porque ela passava grande
parte do tempo espichando-o por cima da cerca do jardim para espiar os vizinhos.
Os Dursley tinham um filhinho chamado Dudley, o Duda, e em sua opinião não
havia garoto melhor em nenhum lugar do mundo.
Os Dursley tinham tudo que queriam, mas tinham também um segredo, e
seu maior receio era que alguém o descobrisse. Achavam que não iriam agüentar
se alguém descobrisse a existência dos Potter.
A Sra. Potter era irmã da Sra. Dursley, mas não se viam há muitos anos,
na realidade a Sra. Dursley fingia que não tinha irmã, porque esta e o marido

imprestável eram o que havia de menos parecido possível com os Dursley. Eles
estremeciam só de pensar o que os vizinhos iriam dizer se os Potter aparecessem
na rua. Os Dursley sabiam que os Potter tinham um filhinho também, mas nunca
o tinham visto. O garoto era mais uma razão para manter os Potter à distância,
eles não queriam que Duda se misturasse com uma criança daquelas.
Quando o Sr. e a Sra. Dursley acordaram na terça-feira monótona e
cinzenta em que a nossa história começa não havia nada no céu nublado lá fora
sugerindo as coisas estranhas e misteriosas que não tardariam a acontecer por
todo o país. O Sr. Dursley cantarolava ao escolher a gravata mais sem graça do
mundo para ir trabalhar e a Sra. Dursley fofocava alegremente enquanto lutava
para encaixar um Duda aos berros na cadeirinha alta.
Nenhum deles reparou em uma coruja parda que passou, batendo as
asas, pela janela.
Às oito e meia, o Sr. Dursley apanhou a pasta, deu um beijinho no rosto
da Sra. Dursley e tentou dar um beijo de despedida em Duda, mas não conseguiu,
porque na hora Duda estava tendo um acesso de raiva e atirava o cereal nas
paredes.
— Pestinha — disse rindo contrafeito o Sr. Dursley ao sair de casa. Entrou
no carro e deu marcha à ré para sair do estacionamento do número quatro.
Foi na esquina da rua que ele notou o primeiro indício de que algo
estranho ocorria um gato lia um mapa. Por um instante o Sr. Dursley não
percebeu o que vira — em seguida virou rapidamente a cabeça para dar uma
segunda olhada. Havia um gato de listras amarela, sentado na esquina da Rua
dos Alfeneiros, mas não havia nenhum mapa à vista. Em que estaria pensando
naquela hora? Devia ter sido um efeito da luz. Ele piscou e arregalou os olhos
para o gato.
O gato o encarou. Enquanto virava a esquina e subia a rua, espiou o gato
pelo espelho retrovisor. Ele agora estava lendo a placa que dizia Rua dos
Alfeneiros — não, não estava olhando a placa: gatos não podiam ler mapas nem
placas. O Dr. Dursley sacudiu a cabeça e tirou o gato do pensamento. Durante o

caminho para a cidade ele não pensou em mais nada exceto no grande pedido de
brocas que tinha esperanças de receber naquele dia, mas ao sair da cidade, as
brocas foram varridas de sua cabeça por outra coisa. Ao parar no costumeiro
engarrafamento matinal, não pode deixar de notar que havia uma quantidade de
gente estranhamente vestida andando pelas ruas. Gente com capas largas. O Sr.
Dursley não tolerava gente que andava com roupas ridículas — os trapos que se
viam nos jovens! Imaginou que aquilo fosse uma nova moda idiota. Tamborilou os
dedos no volante e seu olhar recaiu em um grupinho de excêntricos parados bem
perto dele. Cochichavam excitados. O Sr. Dursley se irritou ao ver que alguns
deles nem eram jovens, ora, aquele homem devia ser mais velho do que ele, e
usava uma capa verde-esmeralda! Que petulância! Mas então ocorreu ao Sr.
Dursley que se tratava prova de alguma promoção boba — essas pessoas
estavam obviamente arrecadando alguma coisa... É, devia ser isto! O tráfego
avançou e alguns minutos depois o Sr. Dursley chegou ao estacionamento da
Grunnings, o pensamento de volta às brocas.
O Sr. Dursley sempre sentava de costas para a parede em seu escritório
no nono andar. Se não o fizesse, talvez tivesse achado mais difícil se concentrar
em brocas aquela manhã. Ele não viu as corujas que voavam velozes em plena
luz do dia, embora as pessoas na rua as vissem, elas apontavam e se
espantavam enquanto um bando de coruja passava no alto. A maioria jamais vira
uma mesmo à noite. O Sr. Dursley, porém, teve uma manhã normal sem corujas.
Gritou com cinco pessoas diferentes. Deu vários telefonemas importantes e gritou
mais um pouco. Estava de excelente humor até a hora do almoço, quando pensou
em esticar as pernas e atravessar a rua para comprar um pãozinho doce na
padaria defronte.
Esquecera completamente as pessoas de capas até passar por um grupo
delas próximo à padaria. Olhou-as com raiva ao passar. Não sabia o porquê, mas
elas o deixavam nervoso. Essas cochichavam também, mas ele não viu nenhuma
latinha de coleta. Foi ao passar por elas na volta, levando uma grande rosca
açucarada que entreouviu algumas palavras do que diziam.

— ... Os Potter, é verdade, foi o que ouvi...
— ... É, o filho deles, Harry...
O Sr. Dursley parou de repente. O medo invadiu-o. Virou a cabeça para
olhar as pessoas que cochichavam como se quisesse dizer alguma coisa, mas
pensou melhor.
Atravessou a rua depressa, correu para o escritório, disse rispidamente à
secretária que não o incomodasse, agarrou o telefone e quase terminara de discar
o número de casa quando mudou de idéia. Pôs o fone no gancho e alisou os
bigodes pensando... Não, estava agindo como um idiota. Potter não era um nome
tão fora do comum assim. Tinha certeza de que havia muita gente chamada Potter
com um filho chamado Harry. Pensando bem nem sequer tinha certeza de que o
sobrinho tivesse o nome de Harry. Jamais viu o menino. Talvez fosse Ernesto. Ou
Eduardo.
Não tinha sentido preocupar a Sra. Dursley, ela sempre ficava
tão perturbada à simples menção da irmã. Não a culpava — se ele tivesse uma
irmã como aquela... Mas mesmo assim aquelas pessoas de capas.
Achou bem mais difícil se concentrar nas brocas aquela tarde e quando
deixou o edifício às cinco horas, continuava tão preocupado que deu um
encontrão em alguém parado ali à porta.
— Desculpe — murmurou, quando o velhinho cambaleou e quase caiu.
Levou alguns segundos até o Sr. Dursley perceber que o homem estava usando
uma capa roxa. Não parecia nada aborrecido por ter sido quase jogado ao chão.
Ao contrario, seu rosto se abriu em um largo sorriso e ele disse numa voz
esganiçada que fez os passantes olharem:
— Não precisa pedir desculpas, caro senhor, porque nada poderia me
aborrecer hoje! Alegre-se! Porque o Você-Sabe-Quem finalmente foi-se embora!
Até trouxas como o senhor deviam estar comemorando um dia tão feliz!
E o velho abraçou o Sr. Dursley pela cintura e se afastou.
O Sr. Dursley ficou pregado no chão. Fora abraçado por um completo
estranho. E também achava que fora chamado de trouxa, o que quer que isso

quisesse dizer. Estava abalado. Correu para o carro e partiu para casa, esperando
que estivesse imaginando coisas, o que nunca esperara que fizesse, porque não
aprovava a imaginação.
Quando entrou no estacionamento do numero quatro, a primeira coisa que
viu — e isso não melhorou o seu estado de espírito,— foi o gato listrado que
notara aquela manhã. Agora ele estava sentado no muro do jardim. Tinha certeza
de que era o mesmo, as marcas em volta dos olhos eram as mesmas.
— Chispa! — disse o Sr. Dursley em voz alta.
O gato não se mexeu. Apenas lançou-lhe um olhar severo. Será que isto
era um comportamento normal para um gato, pensou o Sr. Dursley. Continuava
decidido a então não comentar nada com a esposa.
A Sra. Dursley tivera um dia normal e agradável. Contou-lhe durante o
jantar os problemas da senhora do lado com a filha e ainda que Duda aprendera
uma palavra nova (Nunca). O Sr. Dursley tentou agir normalmente. Depois que
Duda foi se deitar, ele chegou à sala em tempo de ouvir o último noticiário noturno.
"E, por último, os observadores de pássaros em toda
parte registraram que as corujas do país se comportaram de forma
muito estranha hoje. Embora elas normalmente cacem a noite e
raramente apareçam à luz do dia, centenas desses pássaros foram
visto hoje voando em todas as direções desde o alvorecer. Os
especialistas não sabem explicar por que as corujas de repente
mudaram o seu padrão de sono.”
O locutor se permitiu um sorriso.
“Muito misterioso. E agora, com Jorge Mendes, o nosso
boletim meteorológico. “Vai haver mais tempestades de corujas hoje
à noite, Jorge?”

"Bom, Eduardo", disse o meteorologista, não sei lhe dizer,
mas não foram só as corujas que se comportaram de modo estranho
hoje, ouvintes de todo o pais têm telefonado para reclamar que em
vez do aguaceiro que prometi para ontem, eles tem tido chuvas de
estrelas!
Talvez alguém ande festejando a noite das fogueiras uma
semana mais cedo este ano! Mas posso prometer para hoje uma
noite chuvosa".
O Sr. Dursley ficou paralisado na poltrona. Estrelas cadentes em todo o
país? Corujas voando durante o dia? Gente misteriosa capas por todo lado? E um
cochicho, um cochicho a respeito dos Potter...
A Sra. Dursley entrou na sala trazendo duas xícaras de chá.
Não adiantava. Teria que lhe dizer alguma coisa. Pigarreou nervoso.
— Hum, hum, Petúnia, querida, você não tem tido notícias de sua irmã
ultimamente?
Conforme esperava, a Sra. Dursley pareceu chocada e aborrecida. Afinal,
normalmente fingiam que ela não tinha irmã.
— Não. — respondeu ela, seca. — Por quê?
— Uma notícia engraçada — murmurou o Sr. Dursley — Corujas...
Estrelas cadentes e vi uma porção de gente de aparência estranha na cidade
hoje...
— E dai? — cortou a Sra. Dursley.
— Bem, pensei, talvez, tivesse alguma ligação com... Sabe... O pessoal
dela.
A Sra. Dursley bebericou o chá com os lábios contraídos. O Sr. Dursley
ficou em dúvida se teria coragem de lhe contar que ouvira o nome "Potter".
Decidiu que não. Em vez disso, falou com a voz mais displicente que pode:
— O filho deles, teria mais ou menos a idade do Duda agora, não?
— Suponho que sim — respondeu a Sra. Dursley ainda seca.

— Como é mesmo o nome dele? Ernesto, não é?
— Harry. Um nome feio e vulgar se quer saber minha opinião.
— Ah, é — disse o Sr. Dursley, sentindo um aperto horrível no coração. —
E, concordo com você.
Não disse mais nenhuma palavra sobre o assunto a caminho do quarto
onde foram se deitar. Enquanto a Sra. Dursley estava no banheiro, o Sr. Dursley
foi devagarinho até a janela e espiou o jardim da casa. O gato continuava lá.
Observava o começo da Rua dos Alfeneiros como se esperasse alguma coisa.
Estaria imaginando coisas. Será que tudo isto teria ligação com os Potter?
Tinha-se... Se transpirasse que eram aparentados como um casal de... Bem ele
achava que não agüentaria.
Os Dursley se deitaram. A Sra. Dursley, adormeceu logo, mas o Sr.
Dursley continuou acordado pensando no que acontecera. Seu último consolo
antes de adormecer foi pensar que mesmo que os Potter estivessem envolvidos,
não havia razão para se aproximarem dele e da Sra. Dursley. Os Potter sabiam
muito bem o que pensavam deles e de gente de sua laia... Não via como ele e
Petúnia poderiam se envolver com nada que estivesse acontecendo. O Sr.
Dursley bocejou e se virou. Isso não poderia afetá-los...
Como estava enganado.
O Sr. Dursley talvez estivesse mergulhando em um sono inquieto, mas o
gato no muro lá fora não mostrava sinais de sono.
Continuava sentado imóvel como uma estátua, os olhos fixos na esquina
mais distante da Rua dos Alfeneiros. E nem sequer estremeceu quando uma porta
de carro bateu na rua seguinte, nem mesmo quando duas corujas mergulharam do
alto. Na verdade, era quase meia-noite quando o gato se mexeu.
Um homem apareceu na esquina que o gato estivera vigiando.
Apareceu tão súbita e silenciosamente que se poderia pensar que tivesse
saído do chão. O rabo do gato mexeu ligeiramente e seus olhos se estreitaram.
Ninguém jamais vislumbrara nada parecido com este homem na Rua dos
Alfeneiros. Era alto, magro e muito velho a julgar pelo prateado dos seus cabelos

e de sua barba, suficientemente longos para prender no cinto. Usava vestes
longas, uma capa púrpura que arrastava pelo chão e botas com saltos altos e
fivelas. Seus olhos azuis eram claros, luminosos e cintilantes por trás dos óculos
em meia-lua e o nariz, muito comprido e torto, como se o tivesse quebrado
pelo menos duas vezes. O nome dele era Alvo Dumbledore.
Alvo Dumbledore não parecia ter consciência de que acabara numa rua
onde tudo desde o seu nome às suas botas era malvisto.
Estava ocupado apalpando a capa, procurando alguma coisa. Mas parecia
ter consciência de que estava sendo vigiado, porque ergueu a cabeça de repente
para o gato, que continuava a fitá-lo da outra ponta da rua. Por algum motivo, a
visão do gato pareceu diverti-lo. Deu uma risadinha e murmurou:
— Eu devia ter imaginado.
Encontrou o que procurava no bolso interior da capa, parecia um isqueiro
de prata. Abriu-o, ergueu-o no ar e ascendeu. O lampião de rua mais próximo
apagou-se com um estalido seco. Ele fez de novo — o lampião seguinte piscou e
apagou, doze vezes ele acionou o "apagueiro", até que as únicas luzes acesas na
rua eram dois pontinhos minúsculos ao longe, os olhos do gato que os vigiava. Se
alguém espiasse pela janela agora, até a Sra. Dursley, de olhos de contas, não
conseguira ver nada que estava acontecendo na calçada. Dumbledore tornou a
guardar o "apagueiro" na capa e saiu caminhando pela rua em direção ao número
quatro, onde se sentou no muro ao lado do gato. Não para olhar para o bicho,
mas, passado algum tempo, dirigiu-se a ele.
— Imaginava encontrar a senhora aqui, Professora Minerva McGonagall.
E virou-se para sorrir para o gato, mas este desaparecera. Ao invés dele,
viu-se sorrindo para uma mulher de aspecto severo que usava óculos de lentes
quadradas exatamente do formato das marcas que o gato tinha em volta dos
olhos. Ela, também, usava uma capa esmeralda. Trazia os cabelos negros presos
num coque apertado. E parecia decididamente irritada.
— Como soube que era eu? — perguntou.
— Minha cara professora nunca vi um gato se sentar tão duro.
— O senhor estaria duro se tivesse passado o dia todo sentado em um
muro de pedra — respondeu a Professora Minerva.
— O dia todo? Quando podia estar comemorando? Devo ter passado por
mais de dez festas e banquetes a caminho daqui.
A professora fungou aborrecida.
— Ah sim, vi que todos estão comemorando — disse impaciente. — Era
de esperar que fossem um pouco mais cautelosos, mas não, até os trouxas
notaram que alguma coisa estava acontecendo. Deu no telejornal. — Ela indicou
com a cabeça a sala às escuras dos Dursley. — Eu ouvi... Bandos de corujas...
Estrelas cadentes... Ora, eles não são completamente idiotas. Não podiam deixar
de notar alguma coisa.
— Estrelas cadentes em Kent, aposto que foi coisa de Dédalo Diggle.
Ele nunca teve muito juízo. — Você não pode culpá-los — ponderou Dumbledore
educadamente. — Temos tido muito pouco o que comemorar nos últimos onze
anos.
— Sei disso — retrucou a professora mal-humorada. — Mas não é razão
para perdermos a cabeça. As pessoas estão sendo completamente descuidadas,
saem as ruas em plena luz do dia, sem nem ao menos vestir roupa de trouxa, e
espalham boatos.
De esguelha, lançou um olhar atento a Dumbledore, como se esperasse
que ele dissesse alguma coisa, mas ele continuou calado, por isso ela recomeçou:
— Ia ser uma graça se, no próprio dia em que Você-Sabe-Quem parece
ter finalmente ido embora, os trouxas descobrissem a nossa existência. Suponho
que ele realmente tenha ido embora, não é, Dumbledore?
— Parece que não há dúvida. Temos muito o que agradecer. Aceita um
sorvete de limão?
— Um o quê?
— Um sorvete de limão. E uma espécie de doce dos trouxas de
que sempre gostei muito.

— Não, obrigada — disse a Professora Minerva com frieza, como se
não achasse que o momento pedia sorveres de limão. — Mesmo que Você-Sabe-
Quem tenha ido embora.
— Minha cara professora, com certeza uma pessoa sensata como a
senhora pode chamá-lo pelo nome. Toda essa bobagem de Você-Sabe-Quem há
onze anos venho tentando convencer as pessoas a chamá-lo pelo nome que
recebeu: Voldemort — A professora franziu a cara, mas Dumbledore, que estava
separando dois sorvetes de limão, pareceu não reparar — Tudo fica tão confuso
quando todos não param de dizer "Você-Sabe-Quem". Nunca vi nenhuma razão
para ter medo de dizer o nome de Voldemort.
— Sei que não vê — disse a professora parecendo meio
exasperada, meio admirada. Mas você é diferente.. Todo o mundo sabe é o
único de quem Você-Sabe... Ah está bem, de quem Voldemort tem medo.
— Isto é um elogio — disse Dumbledore calmamente. — Voldemort tinha
poderes que nunca tive.
— Só porque você é muito... Bem... Nobre para usá-los.
— É uma sorte estar escuro. Nunca mais corei assim desde que Madame
Gonfrei me disse que gostava dos meus abafadores de orelhas novos.
A Professora Minerva lançou um olhar severo a Dumbledore e disse:
— As corujas não são nada comparadas aos boatos que correm que todos
estão dizendo? Por que ele foi embora? Que foi que finalmente o deteve?
Aparentemente a Professora Minerva chegara ao ponto que
estava ansiosa para discutir, a verdadeira razão pela qual estivera esperando o
dia todo em cima de um muro frio e duro, porque nem como gato nem como
mulher ela fixara antes um olhar tão penetrante em Dumbledore como agora. Era
óbvio que seja o que fosse que "todos" estavam dizendo, ela não iria acreditar até
que Dumbledore confirmasse ser verdade. Dumbledore, porém, estava
escolhendo mais um sorvete de limão e não respondeu.

— O que estão dizendo — continuou ela — é que a noite
passada Voldemort apareceu em Godric's Hollow. Foi procurar os Potter. O boato
é que Lílian e Tiago Potter estão... Estão mortos.
Dumbledore fez que sim com a cabeça. A Professora Minerva perdeu
o fôlego.
— Lílian e Tiago... Não posso acreditar... Não quero acreditar... Ah, Alvo.
Dumbledore estendeu a mão e deu-lhe um tapinha no ombro.
— Eu sei... Eu sei... — disse deprimido.
A voz da Professora Minerva tremeu ao prosseguir:
— E não é só isso estão dizendo que ele tentou matar o filho dos Potter,
Harry. Mas... Não conseguiu. Não conseguiu matar o garotinho. Ninguém sabe o
porquê nem como, mas estão dizendo que na hora que não pôde matar Harry
Potter, por alguma razão, o poder de Voldemort desapareceu e é por isso que ele
foi embora.
Dumbledore concordou com a cabeça, sério.
— É verdade? — gaguejou a professora. — Depois de tudo o que
ele fez... Todas as pessoas que matou... Não conseguiu matar um garotinho? É
simplesmente espantoso... De tudo que poderia detê-lo... Mas, por Deus, como foi
que Harry sobreviveu?
— Só podemos imaginar — disse Dumbledore. — Talvez
nunca cheguemos à saber.
A Professora Minerva pegou um lenço de renda e secou com delicadeza
os olhos por baixo das lentes dos óculos. Dumbledore deu uma grande fungada
ao mesmo tempo em que tirava o relógio de ouro do bolso e o examinava. Era um
relógio muito estranho.
Tinha doze ponteiros, mas nenhum número, em vez deles pequenos
planetas giravam à volta. Mas, devia fazer sentido para Dumbledore, porque ele o
repôs no bolso e disse:
— Hagrid está atrasado. A propósito, foi ele que lhe disse que eu estaria
aqui, suponho.

— Foi. E suponho que você não vá me dizer por que está aqui e não em
outro lugar.
— Vim trazer Harry para tio e a tia. Eles são a única família que lhe resta.
— Você não quer dizer, você não pode estar se referindo às pessoas que
moram aqui? — exclamou a Professora Minerva, pulando de pé e apontando para
o número quatro — Dumbledore você não pode. Estive observando a família o dia
todo. Você não poderia encontrar duas pessoas menos parecidas conosco. E têm
um filho, vi-o dando chutes na mãe até a rua, berrando porque queria balas. Harry
Potter não pode vir morar aqui!
— É o melhor lugar para ele — disse Dumbledore com firmeza. — os tios
poderão lhe explicar tudo quando ele for mais velho, escrevi-lhes uma carta.
— Uma carta? — repetiu a professora com a voz fraca, sentandose
novamente no muro. — Francamente Dumbledore, você acha que pode
explicar tudo isso em uma carta? Essas pessoas jamais vão entendê-lo! Ele vai
ser famoso, uma lenda. Eu não me surpreenderia se o dia de hoje ficasse
conhecido no futuro como o dia de Harry Potter. Vão escrever livros sobre Harry.
Todas as crianças no nosso mundo vão conhecer o nome dele!
— Exatamente — disse Dumbledore, olhando muito sério por cima dos
óculos de meia-lua. — Isto seria o bastante para virar a cabeça de qualquer
menino. Famoso antes mesmo de saber andar. Famoso por alguma coisa que ele
nem vai se lembrar! Veja que ele estará muito melhor se crescer longe de tudo
isso e tenha capacidade de compreender?
A professora abriu a boca, mudou de idéia, engoliu em seco e então disse:
— É, é, você está certo é claro. Mas como é que o garoto vai chegar aqui,
Dumbledore? — Ela olhou para a capa dele de repente como se lhe ocorresse que
talvez escondesse Harry ali.
— Hagrid vai trazê-lo.
— Você acha que é sensato confiar a Hagrid uma tarefa importante como
essa?
— Eu confiaria a Hagrid minha vida — respondeu Dumbledore.

— Não estou dizendo que ele não tenha o coração no lugar — concedeu a
professora de má vontade — mas você não pode fingir que ele é cuidadoso. Que
tem uma tendência a... Que foi isso?
Um ronco discreto quebrara o silêncio da rua. Foi aumentando cada vez
mais enquanto eles olhavam para cima e para baixo da rua à procura de um sinal
de farol de carro, o ronco se transformou num trovão quando os dois olharam para
o céu — e uma enorme motocicleta caiu do ar e parou na rua diante deles.
Se a motocicleta era enorme, não era nada comparada ao homem que a
montava de lado. Ele era quase duas vezes mais alto do que um homem normal e
pelo menos cinco vezes mais largo. Parecia simplesmente grande demais para
existir e tão selvagem — emaranhados de barba e cabelos negros longos e
grossos escondiam a maior parte do seu rosto, as mãos tinham o tamanho de uma
lata de lixo e os pés calçados com botas de couro pareciam filhotes de golfinhos.
Em seus braços imensos e musculosos ele segurava um embrulho de cobertores.
— Hagrid — exclamou Dumbledore, parecendo aliviado — Finalmente. E
onde foi que arranjou a moto?
— Pedi emprestada, Professor Dumbledore — respondeu o
gigante, desmontando cuidadosamente da moto ao falar — O jovem Sirius
me emprestou. Trouxe ele, professor.
— Não teve nenhum problema?
— Não, senhor. A casa ficou quase destruída, mas consegui tirá-lo inteiro
antes que os trouxas invadissem o lugar. Ele dormiu quando estivemos
sobrevoando Bristol.
Dumbledore e a Professora Minerva curvaram-se para o embrulho
de cobertores. Dentro, apenas visível, havia um menino, que dormia a sono solto.
Sob uma mecha de cabelos muito negros caída sobre a testa eles viram um corte
curioso, tinha a forma de um raio.
— Foi aí que? — sussurrou a professora.
— Foi — confirmou Dumbledore.— Ficará com a cicatriz para sempre.
— Será que você não poderia dar um jeito, Dumbledore?

— Mesmo que pudesse, eu não o faria. As cicatrizes podem vir a ser úteis.
Tenho uma acima do joelho esquerdo que é um mapa perfeito do metrô de
Londres. Bem, me dê ele aqui, Hagrid, é melhor acabarmos logo com isso.
Dumbledore recebeu Harry nos braços e virou-se para a casa dos Dursley.
— Será que eu podia... Podia me despedir dele, professor? — perguntou
Hagrid.
Ele curvou a enorme cabeça descabelada para Harry e lhe deu o que
deve ter sido um beijo muito áspero e peludo. Depois, sem aviso, Hagrid soltou um
uivo como o de um cachorro ferido.
— Psiu! — sibilou a Professora Minerva — Você vai acordar os trouxas!
— Desculpe — soluçou Hagrid, puxando um enorme lenço sujo
e escondendo a cara nele. — Mas na... Nã... Não consigo suportar, Lílian e Tiago
mortos, e o coitadinho do Harry ter de viver com os trouxas...
— É, é muito triste, mas controle-se, Hagrid, ou vão nos descobrir —
sussurrou a professora, dando uma palmadinha desajeita no braço de Hagrid
enquanto Dumbledore saltava a mureta de pedra e se dirigia à porta da frente.
Depositou Harry devagarinho no batente, tirou uma carta da capa, meteu-a entre
os cobertores do menino e em seguida, voltou para a companhia dos dois.
Durante um minuto inteiro os três ficaram parados olhando para o embrulhinho, os
ombros de Hagrid sacudiram, os olhos da Professora Minerva piscaram
loucamente e a luz cintilante que sempre brilhava nos olhos de
Dumbledore parecia ter-se extinguido.
— Bem — disse Dumbledore finalmente — acabou-se. Não temos mais
nada a fazer aqui já podemos nos reunir aos outros para comemorar.
— É — disse Hagrid com a voz muito abafada. — Vou devolver a moto de
Sirius. Boa noite, Professora Minerva, Professor Dumbledore...
Enxugando os olhos na manga da jaqueta, Hagrid montou na moto e
acionou o motor com um pontapé, com um rugido ela levantou vôo e desapareceu
na noite.

— Nos veremos em breve, espero, Professora Minerva —
falou Dumbledore, com um aceno da cabeça. A Professora Minerva assou o nariz
em resposta.
Dumbledore se virou e desceu a rua. Na esquina parou e puxou o
"apagueiro". Deu um clique e doze esferas de luz voltaram aos lampiões de modo
que a Rua dos Alfeneiros de repente iluminou-se com uma claridade laranja e ele
divisou o gato listrado se esquivando pela outra ponta da rua. Mal dava para
enxergar o embrulhinho de cobertores no batente do número quatro.
— Boa sorte, Harry — murmurou ele. Girou nos calcanhares e, com um
movimento da capa, desapareceu.
Uma brisa arrepiou as cercas bem cuidadas da Rua dos
Alfeneiros, silenciosas e quietas sob o negror do céu, o último lugar do mundo
em que alguém esperaria que acontecessem coisas espantosas. Harry Potter
virou-se dentro dos cobertores sem acordar. Sua mãozinha agarrou a carta ao
lado, mas ele continuou a dormir, sem saber que era especial, sem saber que era
famoso, sem saber que iria acordar dentro de poucas horas com o grito da Sra.
Dursley ao abrir a porta da frente para pôr as garrafas de leite do lado de fora,
nem que passaria as próximas semanas levando cutucadas e beliscões do primo
Duda. Ele não podia saber que neste mesmo instante, havia pessoas se
reunindo em segredo em todo o país que erguiam os copos e diziam com
vozes abafadas.
— À Harry Potter, o menino que sobreviveu.

CAPÍTULO DOIS
O Vidro Que Sumiu

Quase dez anos haviam se passado desde o dia em que os Dursley
acordaram e encontraram o sobrinho no batente da porta, mas a Rua dos
Alfeneiros não mudara praticamente nada. O sol nascia para os mesmos jardins
cuidados e iluminava o número quatro de bronze à porta de entrada dos Dursley, e
penetrava sorrateiro a sala de estar que continuava quase igual ao que fora
na noite em o Sr. Dursley ouvira a funesta notícia sobre as corujas.
Somente as fotografias sobre o console da lareira mostravam o tempo que
já passara. Dez anos antes havia uma porção de fotografias de uma coisa que
parecia uma grande bola de brincar na praia, usando diferentes chapéus coloridos,
mas Duda Dursley não era mais bebê, e agora as fotografias mostravam um
menino grande e louro na primeira bicicleta, no carrossel de uma feira, brincando
com o computador do pai, recebendo um beijo e um abraço da mãe. A sala não
continha nenhuma indicação de que havia, outro menino na casa.
No entanto Harry Potter continuava lá, no momento adormecido, mas não
por muito tempo. Sua tia Petúnia acordara e foi sua voz aguda que produziu o
primeiro ruído do dia.
— Acorde! Levante-se! Agora!
Harry acordou assustado. A tia bateu à porta outra vez.
— Acorde! – gritou.
Harry ouviu-a caminhar em direção à cozinha e em seguida uma frigideira
bater no fogão. Virou-se de costa e tentou se lembrar do sonho em que estava.

Era um sonho gostoso. Havia uma motocicleta. Tinha a estranha sensação que já
vira esse sonho antes.
A tia voltara a porta.
— Você já se levantou? — perguntou.
— Quase — respondeu Harry.
— Bem, ande depressa, quero que você tome conta do bacon. E não se
atreva a deixá-lo queimar. Quero tudo perfeito no armário no aniversário de Duda.
Harry gemeu.
— Que foi que você disse? — perguntou a tia com rispidez.
— Nada, nada...
O aniversário de Duda — como podia ter esquecido? Harry levantou-se
devagar e começou a procurar as meias. Encontrou-as debaixo da cama e depois
de retirar uma aranha de um pé, calçou-as.
Harry estava acostumado com aranhas, porque o armário sob a escada
vivia cheio delas e era ali que ele dormia.
Já vestido saiu para o corredor que levava à cozinha. A mesa quase
desaparecera tantos eram os presentes de aniversário de Duda. Pelo que via,
Duda ganhara o novo computador que queria, para não falar na segunda televisão
e na bicicleta de corrida. Para o quê exatamente, Duda queria uma bicicleta de
corrida era um mistério para Harry, porque Duda era muito gordo e detestava fazer
exercícios — a não ser, é claro, que envolvessem bater em alguém. O saco de
pancadas preferido de Duda era Harry, mas nem sempre Duda conseguia pegá-lo.
Harry não parecia, mas era muito rápido.
Talvez fosse porque vivia num armário escuro, mas Harry sempre fora
pequeno e muito magro para a idade. Parecia ainda menor e mais magro do que
realmente era porque só lhe davam para vestir as roupas velhas de Duda e Duda
era quatro vezes maior do que ele. Harry tinha um rosto magro, joelhos
ossudos, cabelos negros e olhos muito verdes. Usava óculos
redondos, remendados com fita adesiva, por causa das muitas vezes que Duda
socara no nariz. A única coisa que Harry gostava em sua aparência era uma

cicatriz fininha na testa que tinha a forma de um raio. Existia desde que se
entendia por gente e a primeira pergunta que se lembrava de ter feito à tia Petúnia
era como a arranjara.
— No desastre de carro em que seus pais morreram — respondera ela. —
E não faça perguntas.
Não faça perguntas — está era a primeira regra para levar uma vida
tranqüila como os Dursley.
Tio Válter entrou na cozinha quando Harry estava virando o bacon.
— Penteie o cabelo — mandou, a guisa de bom-dia.
Mais ou menos uma vez por semana, tio Válter espiava por cima do jornal
e gritava que Harry precisava cortar os cabelos.
Harry deve ter feito mais cortes que o resto dos meninos de sua classe
somados, mas não fazia diferença, seus cabelos simplesmente cresciam daquele
jeito — para todo lado.
Harry estava fritando os ovos na altura em que Duda chegou à cozinha
com a mãe. Duda se parecia muito com o tio Válter. Tinha um rosto grande e
rosado, pescoço curto, olhos azuis pequenos e aguados e cabelos louros muito
espessos e assentados na cabeça enorme e densa. Tia Petúnia dizia com
freqüência que Duda parecia um anjinho — Harry dizia com freqüência que Duda
parecia um “porco de peruca”.
Harry pôs os pratos de ovos com bacon na mesa, o que foi porque não
havia muito espaço. Entrementes, Duda contava os presentes. Ficou
desapontado.
— Trinta e seis — disse, erguendo os olhos para o pai e a mãe a — Dois a
menos do que no ano passado.
— Querido, você não contou o presente de tia Guida, e aqui está um
grandão do papai e da mamãe, está vendo?
— Está bem, então são trinta e sete — respondeu Duda ficando vermelho.
Harry, percebendo que Duda estava preparando acesso de raiva começou a
engolir seu bacon o mais depressa possível caso o primo virasse a mesa.

Tia Petúnia obviamente também sentiu o perigo, porque na hora disse:
— E vamos comprar mais dois presentes para você hoje. Que tal fofinho?
Mais dois presentes está bem assim?
Duda pensou um instante. Pareceu um esforço enorme. Finalmente
responde hesitante:
— Então vou ficar com trinta... Trinta...
— Trinta e nove, anjinho — disse tia Petúnia.
— Ah. — Duda largou-se na cadeira e agarrou o pacote mais próximo. —
Então, está bem.
Tio Válter deu uma risadinha.
— O baixinho quer tudo a que tem direito, igualzinho ao pai. É isso ai,
garoto! — e arrepiou os cabelos de Duda com os dedos.
Naquele instante o telefone tocou e tia Petúnia foi atendê-lo, enquanto
Harry e tio Válter assistiam Duda desembrulhar a bicicleta de corrida, a câmara de
filmar, um aeromodelo com controle remoto, dezesseis jogos de computador e um
gravador de vídeos. Estava rasgando a embalagem de um relógio de ouro quando
tia Petúnia voltou do telefone parecendo ao mesmo tempo zangada e preocupada.
— Más noticias, Válter a Sra. Figg fraturou a perna. Não pode ficar com
ele. — e indicou Harry com a cabeça.
Duda boquiabriu-se de horror, mas o coração de Harry deu um salto. Todo
ano, no aniversário de Duda, os pais dele o levavam para passar o dia com um
amiguinho em parques de aventuras, lanchonetes ou no cinema. Todo ano
deixavam Harry com a Sra. Figg, uma velha maluca que morava ali perto. Harry
detestava o lugar. A casa inteira cheirava a repolho e a Sra. Figg lhe
mostrava fotografias de todos os gatos que já tivera.
— E agora? — perguntou tia Petúnia, olhando furiosa para Harry como se
ele tivesse planejado tudo. Harry sabia que devia sentir pena da Sra. Figg que
quebrara a perna, mas não era fácil quando lembrava que ia passar um ano sem
ter que olhar para o Tobias, o Néris, Seu Patinhas e o Pompom outra vez.
— Poderíamos ligar para a Guida — sugeriu tio Válter.

— Não diga bobagem, Válter, ela detesta o menino.
Com freqüência, os Dursley falavam de Harry assim, como se ele não
estivesse presente, ou melhor, como se ele fosse alguma coisa muito desprezível
que não conseguisse entendê-los, como uma lesma.
— E aquela sua amiga, como é mesmo o nome dela, Ivone?
— Está passando férias em Majorca — respondeu Petúnia, com rispidez.
— Vocês podiam me deixar aqui — arriscou Harry esperançoso (ele
poderia assistir ao que quisesse na televisão para variar e, quem sabe, até dar
uma voltinha no computador de Duda).
Tia Petúnia parecia que tinha engolido um limão.
— E quando voltarmos, encontrar a casa destruída? — rosnou.
— Não vou explodir a casa — prometeu Harry, mas os tios não estavam
mais escutando.
— Talvez pudéssemos levá-lo ao zoológico — disse tia
Petúnia lentamente — e deixá-lo no carro.
— O carro é novo. Não vou deixá-lo sentado no carro sozinho.
Duda começou a chorar alto. Na realidade não estava chorando, fazia
anos que não chorava de verdade, mas sabia que se fizesse cara de choro e
gritasse a mãe lhe daria o que quisesse.
— Dudinha, querido, não chore, mamãe não vai deixar ele estragar o seu
dia! — exclamou abraçando-o.
— Não... Quero... Que... Ele... Vá! — Duda berrou entre grandes soluços
fingidos — Ele sempre estraga tudo! — E lançou um riso maldoso por entre os
braços da mãe.
Naquele instante a campainha tocou.
— Ah, meu Deus, são eles chegando! — disse tia Petúnia nervosa um
minuto depois, o melhor amigo de Duda, Pedro entrou acompanhado da mãe.
Pedro era um menino magricela, com cara de rato. Em geral era quem segurava
por trás os garotos enquanto Duda batia neles. Na mesma hora Duda parou de
fingir que estava chorando.

Meia hora depois, Harry, que não conseguia acreditar em sua sorte,
estava sentado no banco traseiro do carro dos Dursley, com Pedro e Duda a
caminho do jardim zoológico, pela primeira vez na vida. O tio e a tia não tinham
conseguido pensar no que fazer com ele, mas antes de saírem, tio Válter puxara
Harry para o lado.
— Estou lhe avisando — disse, aproximando a cara grande e vermelha de
Harry — Estou-lhe avisando, moleque, a primeira gracinha que fizer, a primeira,
vai ficar preso naquele armário até o Natal.
— Não vou fazer nada — disse Harry — juro...
Mas tio Válter não acreditou nele. Ninguém nunca acreditava.
O problema era que sempre aconteciam coisas estranhas à volta de Harry
e simplesmente não adiantava dizer aos Dursley que não era sua culpa.
Uma vez tia Petúnia, cansada de ver Harry voltar do barbeiro como se não
tivesse estado lá, apanhara uma tesoura de cozinha e cortara o cabelo dele tão
curto que o deixara quase careca, exceto por uma franja, que ela deixou, para
esconder aquela cicatriz horrorosa. Duda morrera de rir de Harry, que passou à
noite acordado imaginando como que seria a escola no dia seguinte, onde já riam
dele por causa das roupas folgadas e dos óculos emendados com fita adesiva. Na
manha seguinte, porém, quando se levantou os cabelos estavam exatamente
como eram antes de tia Petúnia cortá-los. Tinham-no deixado preso uma semana
no armário por causa disso, apesar de sua tentativa de explicar que não
saberia explicar como é que os cabelos tinham crescido tão depressa.
Outra vez, tia Petúnia tentara obrigá-lo a vestir um macacão velho de
Duda (marrom com pompons cor de laranja). Quanto mais tentava enfiá-lo pela
cabeça dele, tanto menor o macacão ficava, até que finalmente parecia feito para
um fantochinho de dedo, e com certeza não ia servir para o Harry. Tia
Petúnia concluiu que devia ter encolhido na lavagem e Harry, para seu grande
alivio, não foi castigado.
Por outro lado, ele se metera numa grande encrenca quando
o encontraram no telhado da cozinha da escola. A turma de Duda o estava

perseguindo, como sempre, e tanto para surpresa de Harry quanto dos outros, ele
apareceu sentado na chaminé. Os Dursley receberam uma carta muito zangada
da diretora de Harry, contando que Harry andara escalando os prédios da escola.
Mas só o que tentara fazer (conforme gritou para tio Válter através da porta
trancada do armário) fora saltar para trás das grandes latas de lixo da porta da
cozinha. Harry supunha que o vento devia tê-lo apanhado na hora em que saltou.
Mas hoje nada ia dar errado. Valia até a pena estar em companhia de
Duda e Pedro para passar o dia em outro lugar que não fosse à escola, o armário,
ou a sala com cheiro de repolho da Sra. Figg.
Enquanto dirigia, tio Válter se queixava à tia Petúnia. Ele gostava de se
queixar de tudo: das pessoas no trabalho, de Harry, do conselho, de Harry, do
banco e Harry eram seus dois assuntos preferidos. Esta manhã eram as
motocicletas.
— ... Roncando pelas ruas como loucos, os arruaceiros — disse, quando
uma moto emparelhou com eles.
— Tive um sonho com uma motocicleta — falou Harry, lembrando-se de
repente — Ela voava.
Tio Válter quase bateu no carro da frente. Virou-se para trás e gritou com
Harry, seu rosto parecendo uma beterraba gigante e bigoduda:
— MOTOCICLETAS NÃO VOAM!
Duda e Pedro deram risadinhas.
— Sei que não voam — respondeu Harry — Foi só um sonho.
Mas desejou que não tivesse dito nada. Se havia uma coisa que os
Dursley detestavam mais do que as suas perguntas, era quando falava de coisas
que faziam o que não deviam, não interessava se era sonho ou desenho animado,
pareciam pensar que ele poderia arranjar idéias perigosas.
Era um sábado muito ensolarado e o zôo estava cheio de famílias. Os
Dursley compraram grandes sorvetes de chocolate para Duda e Pedro à entrada
e, então, porque a mulher sorridente na carrocinha perguntara o que Harry ia
querer antes que pudessem afastá-lo depressa dali, eles lhe compraram um

picolé barato de limão. Não era ruim, Harry pensou, lambendo-o enquanto
observavam um gorila que coçava a cabeça e se parecia demais com Duda,
exceto pelos cabelos que não eram louros.
Harry passou a melhor manhã que já tivera em muito tempo.
Cuidou de andar um pouco afastado dos Dursley, de modo que Duda e
Pedro, que ali pela hora do almoço estavam começando a se chatear com os
bichos, não recaíssem no seu passatempo favorito de bater no primo. Almoçaram
no restaurante do zôo e quando Duda teve um acesso de raiva porque seu
sorvetão não era bastante grande, tio Válter comprou-lhe outro e deixou
Harry terminar o primeiro.
Depois Harry achou que devia ter adivinhado que estava bom demais para
durar muito tempo.
Terminado o almoço foram visitar o alojamento dos répteis.
Era fresco e escuro ali, com quadrados iluminados ao longo das paredes.
Por trás dos vidros, rastejavam e deslizavam em pedaços de pau e em pedras
todos os tipos de cobras e lagartos. Duda e Pedro queriam ver as enormes cobras
venenosas e as grossas pitons que esmagavam um homem. Duda logo encontrou
a maior cobra que havia. Poderia dar duas voltas no carro de tio Válter e amassálo
até reduzi-lo ao tamanho de uma lata de lixo, mas naquela hora ela não estava
disposta a fazer nada. Na realidade, estava dormindo a sono solto.
Duda parou, o nariz comprimido contra o vidro, observando as espirais
marrons e reluzentes.
— Faz ela se mexer — choramingou para o pai. Tio Válter bateu no vidro,
mas a cobra no se mexeu.
— Faz outra vez — mandou Duda. Tio Válter bateu no vidro com os nós
dos dedos, mas a cobra continuou dormindo.
— Que chato — queixou-se Duda. E saiu arrastando os pés, Harry veio se
postar na frente do tanque e estudou a cobra com atenção. Não se admiraria se a
própria cobra morresse de tédio. Não tinha companhia a não ser aquela gente
idiota que batucava no vidro, tentando incomodá-la o dia inteiro. Era pior do que

ter um armário por quarto, onde a única visita era a tia Petúnia esmurrando a porta
para acordá-lo, mas ao menos ele podia visitar o resto da casa.
A cobra inesperadamente abriu os olhos, que pareciam contas.
Devagarinho, muito devagarinho, levantou a cabeça até seus
olhos chegarem ao nível dos de Harry.
E piscou.
Harry arregalou os olhos. E olhou depressa a toda volta para ver se havia
alguém olhando. Não havia. E retribuiu o olhar da cobra, piscando também.
A cobra acenou com a cabeça na direção de tio Válter e de Duda, depois
levantou os olhos para o teto. Lançou um olhar a Harry que dizia com todas as
letras:
— “Isso é o que me acontece o tempo todo”.
— Eu sei — murmurou Harry pelo vidro, embora não tivesse muita certeza
se a cobra poderia ouvi-lo — deve ser bem chato.
A cobra concordou com um aceno de cabeça enfático.
— Mas de onde é que você veio? — perguntou Harry.
A cobra apontou com o rabo uma placa próxima ao vidro.
Harry espiou.
— Boa Constrictor, Brasil, era bom lá?
A jibóia apontou novamente a placa com o rabo e Harry leu:
“Este espécime nasceu em cativeiro”.
— Ah, entendo, então você nunca esteve no Brasil?
A cobra sacudiu a cabeça, mas um grito ensurdecedor atrás de Harry fez
os dois pularem:
— DUDA! SR. DURSLEY! VENHAM VER ESSA COBRA! VOCÊS NÃO
VÃO ACREDITAR NO QUE ESTÁ FAZENDO!
Duda veio bamboleando até onde o amigo estava o mais depressa que
pôde.
— Cai fora — falou dando um soco nas costelas de Harry.
Apanhado de surpresa, Harry caiu com força no chão de concreto.

O que se passou em seguida aconteceu tão depressa que ninguém viu
como foi: num segundo, Pedro e Duda estavam encostados no vidro, no segundo
seguinte, estavam saltando para trás soltando uivos de terror.
Harry sentou-se e parou de respirar: o vidro da frente do tanque da jibóia
tinha sumido. A grande cobra se desenrolou depressa e escorregou pelo chão, as
pessoas no alojamento dos répteis gritaram e começaram a correr para as saídas.
Quando a cobra passou rápido por ele, Harry poderia jurar que uma voz
baixa e sibilante tinha dito: "Brasil, aqui vou eu... Obrigado, amigo”.
O zelador do alojamento dos répteis ficou em estado de choque.
— Mas o vidro — ele não parava de repetir, para onde foi o vidro?
O diretor do zôo em pessoa preparou uma xícara de chá forte para tia
Petúnia enquanto se desculpava mil vezes.
Pedro e Duda só conseguiam balbuciar. Pelo que Harry vira, a cobra não
fizera nada a não ser fingir abocanhar os calcanhares deles quando passou, mas
quando chegaram finalmente ao carro do tio Válter, Duda estava contando que a
cobra quase lhe arrancara a perna a dentadas, enquanto Pedro jurava que a cobra
tentara apertá-lo até matar. Mas o pior de tudo, pelo menos para Harry, foi Pedro
ter se acalmado o suficiente para perguntar:
— Harry estava conversando com ela, não estava, Harry?
Tio Válter esperou até Pedro estar longe da casa para brigar com Harry,
Estava tão zangado que mal podia falar. Conseguiu apenas dizer:
— Vá... Armário,... Harry... Sem comida — antes de desmontar em uma
cadeira e tia Petúnia ter que correr para lhe servir uma boa dose de conhaque.
Muito mais tarde, deitado no seu armário, Harry desejou ter um relógio.
Não sabia que horas eram e não tinha certeza se os Dursley já estariam dormindo.
Até que estivessem, ele não poderia se arriscar a ir escondido até a cozinha
buscar alguma coisa para comer.
Vivia com os Dursley havia quase dez anos, dez infelizes anos, desde que
se lembrava, desde que era bebê e seus pais tinham morrido naquele acidente de
carro. Não conseguia se lembrar de ter estado no carro quando os pais morreram.

Às vezes, quando forçava a memória durante longas horas em seu
armário, lembrava-se de uma estranha visão: um lampejo ofuscante de luz verde e
uma queimadura na testa. Isto supunha ele, era o acidente, embora não
conseguisse lembrar de onde vinha toda aquela luz verde. Não conseguia lembrar
nada dos pais. A tia e o tio nunca falavam neles e naturalmente tinham-no proibido
de fazer perguntas. E não havia fotografias deles na casa.
Quando era mais novo Harry sonhara muitas vezes com um parente
desconhecido que vinha levá-lo embora, mas isto nunca acontecera, os Dursley
eram sua única família. Ainda assim, ele achava (ou talvez fosse só uma
esperança) que estranhos na rua o conheciam. E eram estranhos muito estranhos.
Um homenzinho de cartola roxa se curvara para ele uma vez quando estava
fazendo compras com tia Petúnia e Duda. Depois de perguntar a Harry, furiosa, se
ele conhecia o homem, tia Petúnia tinha empurrado os meninos depressa para
fora da loja sem comprar nada. Uma velha amalucada toda vestida de verde uma
vez acenara alegremente para ele no ônibus. Um careca com um longo casaco
púrpura, chegara a apertar sua mão na rua um dia desses e em seguida
se afastara sem dizer nada. A coisa mais estranha nessas pessoas era a maneira
com que pareciam desaparecer no instante em que Harry tentava vê-los melhor.
Na escola Harry não tinha ninguém. Todos sabiam que a turma de Duda
odiava aquele estranho Harry Potter com suas roupas velhas e folgadas e os
óculos remendados, e ninguém gostava de contrariar a turma do Duda.

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