domingo, 27 de março de 2011

Terra das Sombras - Capítulos 10 ao 12

Capítulo 10


 Era uma noite fresca e clara. De lua cheia. Ali, da frente da casa, eu a via sobre o mar, parecendo um lampião aceso - não um farol como o sol, mas uma daquelas lâmpadas de poucos watts que a gente põe em abajures re­torcidos na mesinha-de-cabeceira. O Pacífico, parecendo à distância um espelho tranqüilo, estava negro, exceto numa estreita faixa iluminada pela lua, branca como papel.
À luz da lua eu podia ver a cúpula vermelha da igreja da Missão. Mas só porque eu estava vendo a Missão não que­ria dizer que a Missão estava perto. Ficava a bem uns três quilômetros de distância. Eu trazia no bolso as chaves do Rambler, que havia subtraído meia hora antes. O metal es­tava aquecido pelo calor do meu corpo. O Rambler, que de dia era turquesa, ficava parecendo cinza naquela sombra. Bom, sei perfeitamente que não tenho carteira. Mas se o Dunga pode...
Tudo bem. Acabei vacilando. E não é melhor mesmo que eu tenha decidido não dirigir? Pois se não sabia como fa­zer... Quer dizer, não que eu não saiba dirigir. Claro que sei. É só que eu não tive muita prática, pois passei a vida intei­ra na capital mundial dos transportes públicos...
Ah, esquece. Dei meia-volta e caminhei em direção à garagem. Tinha de haver uma bicicleta em algum lugar. Três garotos, confere? Tinha de haver pelo menos uma bicicleta.
Acabei encontrando uma. Era uma bicicleta de homem, claro, com aquela barra imbecil, e um assento duro demais. Mas parecia funcionar bem. Pelo menos os pneus não esta­vam vazios.
Então pensei: muito bem, lá vou eu vestida de preto, an­dando de bicicleta pelas ruas depois de meia-noite. O que está faltando?
Não esperava mesmo encontrar alguma fita fosforescente, mas fiquei pensando que um capacete não seria mau. Havia um pendurado num cabide ao lado da garagem. Abai­xei o capuz do meu suéter e pus o capacete. Uau! Charmosa e bem protegida, só mesmo eu.
E lá fui eu, descendo a ladeira. Cascalho não é exata­mente a melhor coisa para andar de bicicleta, especialmente descendo. E logo ficou claro que o caminho todo era des­cendente, pois a casa, com vista para a baía, ficava num dos lados daquela espécie de outeiro. Descer certamente era me­lhor que subir - eu nunca ia conseguir voltar para casa subindo aquela ladeira; entendi perfeitamente que na volta teria de empurrar a bicicleta -, mas dava uma aflição enorme aquela descida. A colina era tão íngreme, o cami­nho tão tortuoso e a noite estava tão fria que pedalei com o coração na boca quase o tempo todo, com lágrimas escor­rendo pelas bochechas por causa do vento. E aqueles bura­cos...! Vou te contar! Como aquela porcaria daquele assen­to machucava quando eu passava por um buraco!
Mas a colina não era o pior de tudo. Quando cheguei lá embaixo dei com um cruzamento de pistas. Dava muito mais medo que a colina, pois embora já passasse de meia-noite havia carros passando. Um deles buzinou para mim. Mas não foi culpa minha. Eu estava indo tão rápido, por causa da colina e tudo mais, que se tivesse parado provavel­mente teria voado por cima do guidão. De modo que fui em frente, escapando por pouco de ser atropelada por uma pick-up e, de repente, nem sei como, eu estava entrando no estacionamento do colégio.
A Missão parecia muito diferente à noite. Para começar, durante o dia o estacionamento estava sempre cheio, com todos aqueles carros dos professores, alunos e turistas que visitavam a igreja. Mas agora estava vazio, não havia um único carro, e tão tranqüilo que era possível ouvir, bem longe, o som das ondas na praia de Carmel.
Além disso, por causa do turismo, suponho, eles tinham instalado aqueles focos de luz para iluminar certas partes do prédio, como a cúpula - que estava toda iluminada - e o frontispício da igreja, com seu enorme pórtico de entra­da. Mas a parte posterior do prédio, onde eu fui dar, estava bem escura. O que, afinal, me convinha perfeitamente. Escondi a bicicleta por trás de uma lixeira, deixei o capacete pendurado no guidão e me aproximei de uma janela. A Missão foi construída há mais ou menos um quaquilhão de anos, quando não existia ar-condicionado ou aquecimen­to central e, para refrescar no verão e aquecer no inverno, as construções tinham paredes muito grossas. Com isto, to­das as janelas da Missão tinham uma profundidade de uns trinta centímetros, com mais outros trinta centímetros de recuo na parte interior.
Eu subi num desses parapeitos, olhando ao redor para ver se ninguém estava me vendo. Mas só havia por perto um par de guaxinins fuçando em volta da lixeira, em bus­ca de algum resto do almoço. Levei ao rosto então as mãos em forma de viseira, para proteger os olhos da luz da lua, e olhei lá para dentro.
Era a sala de aula do professor Walden. Com o luar inci­dindo lá dentro, pude ver sua letra no quadro-negro e o grande cartaz de Bob Dylan, seu poeta favorito, pendurado na parede.
Não levei mais que um segundo para quebrar o vidro de uma das antiquadas vidraças de ferro, esticar o braço lá para dentro e abrir a janela. O mais difícil em matéria de arrom­bar uma janela não é propriamente o momento de quebrar o vidro ou mesmo de conseguir abrir a maçaneta. O pior é tirar a mão depois sem se cortar. Eu tinha trazido meu me­lhor par de luvas caça-fantasma, daquelas bem espessas, de borracha preta com enchimento nas juntas, mas minha manga já tinha ficado presa uma vez, deixando meu braço todo arranhado.
Isso não aconteceu desta vez. Além disso, a janela abria para fora, não para cima, o que me facilitou a entrada. Já aconteceu de eu arrombar lugares que tinham alarmes - o que me obrigou a fazer pequenas e desconfortáveis viagens na parte de trás de caminhonetes do serviço público nova-iorquino - mas a Missão ainda não tinha chegado a este requinte em seu sistema de segurança. Na realidade, o sistema de segurança deles parecia consis­tir apenas em trancar as portas e janelas, e seja o que Deus quiser.
O que certamente me convinha.
Uma vez dentro da sala do professor Walden, fechei a janela pela qual havia entrado. Não tinha sentido mesmo chamar a atenção de alguém que por acaso estivesse vi­giando a região (até parece...). Era fácil ir passando entre as carteiras, com todo aquele brilho da Lua. E depois de ter aberto a porta e passado para a galeria, constatei que tam­bém não ia precisar da lanterna. O pátio estava inundado de luz. Concluí que a Missão deve receber turistas até bem tarde, quando já escureceu, pois no beiral do telhado havia focos de luz amarela apontados em diferentes direções: a palmeira mais alta, aquela que tinha o maior arbusto de hi­biscos em sua base; a fonte, que continuava ligada, mesmo àquela hora; e, naturalmente, a estátua do padre Serra, com uma luz brilhando em sua cabeça de bronze e outra nas cabeças das indígenas americanas a seus pés.
Ainda bem que o padre Serra era uma boa pessoa e já es­tava morto. Eu tinha a sensação de que aquela estátua o teria deixado muito embaraçado mesmo.
A galeria estava vazia, assim como o pátio. Não havia ninguém por ali. Eu só ouvia o farfalhar da água da fonte e o canto dos grilos no jardim. Parecia mesmo um lugar bem tranqüilo, o que não deixava de ser surpreendente. Estou querendo dizer é que nenhuma de minhas outras es­colas me parecia tranqüila. Pelo menos aquela ali estava parecendo bem tranqüila, até que eu ouvi aquela voz áspera atrás de mim:
- O que está fazendo aqui?
Dei meia-volta, e lá estava ela. Simplesmente recostada no seu armário - perdão, no meu armário - e de olho gru­dado em mim, os braços cruzados no peito. Estava usando um par de calças negras - bem elegantes - e um twinset de caxemira cinza. Trazia no pescoço um colar de pérolas, com uma pérola para cada Natal e cada aniversário de sua vida, certamente um presente de avós muito amorosos. Nos pés, um par de sapatos negros reluzentes. Seu cabelo, que bri­lhava tanto quanto os sapatos à luz amarelada dos refle­tores, parecia macio e dourado. Ela realmente era uma garo­ta bonita.
Pena que tivesse estourado os miolos.
- Heather - disse eu, tirando o capuz. - Oi. Lamento te incomodar... - sempre ajuda pelo menos começar de uma maneira polida - ... mas acho que a gente precisa muito conversar, você e eu.
Heather nem se mexeu. Não, estou exagerando. Ela aper­tou um pouco os olhos. Tinham uma cor pálida, acho que meio acinzentada, embora fosse difícil saber, apesar dos re­fletores. Os longos cílios, escurecidos com rímel, tinham uma espécie de moldura de lápis negro de muito bom gosto.
- Conversar? - perguntou ela. - Ah sim, claro. Eu tam­bém quero muito falar com você. Estou sabendo perfeitamente sobre você, Suzinha.
Eu tremi nas bases. Não consegui me conter:
Suze - corrigi.
Como quiser. Eu sei o que você está fazendo aqui.
Ótimo, muito bem - respondi. - Neste caso não vou precisar explicar. Quer se sentar para a gente poder conversar?
Conversar? Por que eu haveria de querer conversar com você? O que você está pensando que eu sou, mané? Meu Deus, você se acha mesmo muito esperta, não é? Acha que simplesmente pode ir entrando, assim...
Como assim?... - fiz eu, piscando.
Ir tomando o meu lugar - endireitou-se ela, afastan­do-se do armário e caminhando em direção ao pátio como se estivesse admirando a fonte. - Você, a nova garota - pros­seguiu, olhando-me com o rabo do olho. - A garota nova que acha que pode simplesmente ir tomando o lugar que me pertencia. Você já se apoderou do meu armário. Já está querendo roubar minha melhor amiga. Eu sei que a Kelly te telefonou e te convidou para a porcaria da festa dela. E agora está achando que pode roubar o meu namorado.
Eu botei as mãos nas cadeiras:
- Ele não é mais seu namorado, lembra, Heather? Ele acabou com você. E é por isto que você está morta. Você estourou os miolos na frente da mãe dele.
Heather arregalou os olhos.
- Cala a boca - disse.
- Você estourou os miolos na frente da mãe dele porque era burra demais para entender que nenhum garoto, nem mesmo o Bryce Martinson, merece que a gente morra por ele. - Eu passei por ela, caminhando em direção a uma das galerias de cascalho que cortavam os jardins. Eu não queria reconhecer, nem para mim mesma, mas estava fi­cando meio nervosa de ficar ali naquela galeria coberta depois do que acontecera ao Bryce. - Você deve ter fica­do com muita raiva quando se deu conta do que havia feito. Você se matou. E por uma coisa tão boba. Por causa de um cara.
- Cala a boca! - Dessa vez ela não estava só falando, estava já gritando, tão alto que precisou cerrar os punhos, fechar os olhos e encolher os ombros. Gritou tão alto que meus ouvidos ficaram ressoando um bom tempo. Mas não veio ninguém correndo da reitoria, onde eu vira algumas luzes acesas. Os pombos que eu ouvira arrulhando no beiral da galeria não emitiam um único som desde que a Heather aparecera, e os grilos haviam tratado de adiar o resto de sua serenata.
As pessoas não ouvem fantasmas - bem, não pelo menos a maioria das pessoas -, mas o mesmo não se pode dizer dos animais e mesmo dos insetos. Eles são hipersensíveis a qualquer presença paranormal. Por causa do Jesse, o Max, o cachorro dos Ackerman, nem chega perto do meu quarto.
Não precisa gritar assim - disse eu. - Ninguém mais pode te ouvir além de mim.
Grito quanto quiser - berrou ela, e começou a gritar mesmo.
Bocejando, fui sentar-me num dos bancos de madeira junto à estátua do padre Serra. Percebi então que havia uma placa no pedestal. Graças aos refletores e à luz da lua, eu podia perfeitamente ler a inscrição.
Ao venerável Padre Junipero Serra, 1713-1734 - dizia a pla­ca. - Seu comportamento exemplar e sua abnegação foram um exemplo para todos que o conheceram e receberam seus ensina­mentos.
Hmm... Eu ia ter de olhar abnegação no dicionário quan­do voltasse para casa. Fiquei me perguntando se era a mes­ma coisa que autoflagelação, algo pelo que Serra também era conhecido.
Você está me ouvindo? - gritava Heather. Eu olhei para ela.
Sabe o que significa abnegação? - perguntei.
Ela parou de gritar e ficou olhando para mim. Depois deu uns passos adiante, com a expressão lívida de raiva.
- Escuta aqui, sua vaca - foi dizendo, parando de caminhar quando estava já quase grudada em mim. - Quero que você simplesmente desapareça, está entendendo? Quero que desapareça desse colégio. Este armário é meu! A Kelly é a minha melhor amiga. E o Bryce é o meu namorado! Vê se trata de desaparecer, de voltar para o lugar de onde veio. Estava tudo muito bem aqui antes de você chegar... Eu tive de interromper.
- Sinto muito, Heather, mas as coisas não estavam nada bem antes de eu chegar aqui. E sabe por que eu sei disso? Porque você está morta. Entendeu? Você está morta. Os mor­tos não têm armários, nem amigas, nem namorados. E sabe por quê? Porque estão mortos.
Parecia que a Heather ia começar a berrar de novo, mas eu me adiantei, dizendo com toda suavidade e clareza:
Eu sei que você cometeu um erro. Você cometeu um erro terrível, horrível mesmo...
Não fui eu que cometi o erro - atalhou ela, cortante. - Foi o Bryce que cometeu o erro. Foi ele que rompeu comigo.
Eu respondi:
Tudo bem, não era desse erro que eu estava falando. Estava me referindo ao fato de você dar um tiro na cabeça porque um boboca de um garoto acabou com você...
Se acha que ele é tão imbecil assim - disse ela, com uma expressão de zombaria - por que vai sair com ele no sábado? Isso mesmo. Eu ouvi ele te convidando. Aquele desgraçado. Ele provavelmente não foi fiel nem durante um dia enquanto a gente estava saindo.
Sensacional - disse eu. - Mais um motivo para você se matar por causa dele...
Eu vi que havia lágrimas se acumulando por baixo das pestanas dela.
Eu o amava - suspirou ela, - Se não pudesse tê-lo para mim, eu não queria viver.
E agora que você está morta fica achando que ele devia ir ao seu encontro, não é mesmo? - perguntei, já cansada.
Não gosto deste lugar - disse ela mansamente. - Nin­guém me vê. Só você e o padre Dominic. Eu me sinto tão sozinha...
OK. É compreensível. Mas, Heather, mesmo que você consiga matá-lo, ele provavelmente não vai gostar muito de você por ter feito isto.
Eu sei como fazer para que ele goste de mim - disse ela, confiante. - Afinal, seremos só eu e ele. Ele vai ter de gostar de mim.
Eu balancei a cabeça:
Não, Heather, não funciona assim, Ela olhou bem fixo para mim:
Que quer dizer?
Se você matar o Bryce, não há a menor garantia de que ele acabe ficando com você, O que acontece com as pes­soas depois que morrem... bem, eu não tenho muita certeza, mas acho que é diferente para cada pessoa. Se você matar o Bryce, ele vai mesmo para onde tem de ir. Céu, inferno, a próxima vida - não sei ao certo. Mas sei que ele não vai se juntar a você. Não funciona assim,
Mas... - e ela parecia furiosa. - Não é justo!
Muita coisa não é justa, Heather. Não é justo, por exem­plo, que você tenha de sofrer por toda a eternidade por causa de um erro que cometeu no calor da hora. Tenho certeza de que se você soubesse como era estar morta, não teria se matado. Mas não tem de ser assim, Heather.
Ela ficou olhando para mim. As lágrimas pareciam con­geladas, como pedacinhos de gelo.
Não tem mesmo?... - fez ela.
Não. Não tem.
Você quer dizer... está querendo dizer que eu posso voltar?
Eu fiz que sim com a cabeça.
Pode sim. Você pode começar de novo. Ela fungou.
Como? Eu respondi:
Só precisa tomar a decisão.
Uma sombra passou em seu lindo rostinho.
- Mas eu já decidi que é isto que eu quero. Só o que eu que­ro desde... desde que aconteceu... é ter minha vida de volta.
Eu balancei a cabeça.
- Não, Heather - disse então. - Você não entendeu o que eu estou dizendo. Você nunca vai ter de volta a sua vida, a sua velha vida. Mas pode começar uma outra. E ela só poderá ser melhor do que isto, do que ficar por aí para sempre sozi­nha, vagando enfurecida, machucando as pessoas...
Ela gritou:
- Você disse que eu poderia ter minha vida de volta! Naquele instante eu me dei conta de que ela estava per­dida.
- Eu não estava querendo dizer a sua antiga vida. Quis dizer uma vida...
Mas já era tarde demais. Ela estava surtando.
Agora eu estava entendendo por que os pais do Bryce o haviam mandado para Antígua. E até eu gostaria de estar lá - ou em qualquer outro lugar, desde que fosse longe da ira daquela garota.
Você disse - gritava ela -, você disse que eu podia ter de volta a minha vida! Você mentiu para mim!
Heather, eu não menti! Só estava querendo dizer que a sua vida... bem, a sua vida acabou. Heather, você mesma acabou com ela. Eu sei que é uma droga, mas, puxa, você devia ter pensado nisso.
Ela me interrompeu com um gemido meio... sobrena­tural, claro.
Não vou permitir... Não vou deixar você tomar a mi­nha vida! - berrou.
Heather, eu já lhe disse, não estou tentando tirar a sua vida. Eu tenho a minha própria vida. Não preciso da sua...
Com os grilos e os pássaros calados, o som da água borbulhando na fonte a poucos passos dali era o único ruído no pátio - à parte os gritos da Heather, claro. Mas de repen­te o som da água ficou estranho. Parecia que havia alguma coisa estalando. Olhei na direção da fonte e vi que estava saindo uma fumaça. Eu não teria estranhado tanto - afi­nal, estava bem frio, e a temperatura da água podia estar mais quente que a do ar - se não tivesse visto uma enorme bolha rebentar de repente na superfície da água.
Foi aí que me dei conta. Ela estava fazendo a água fer­ver. Estava fervendo a água com a força da sua fúria.
Heather - disse eu, sentada no banco. - Heather, ouça me. Você precisa se acalmar. Não podemos conversar com você assim...
Você... você disse... - e eu via com alarme que seus olhos estavam revirando para trás. - Que eu... que eu podia... começar de novo!
Tudo bem. Estava na hora de fazer alguma coisa. Eu não precisava ficar ali sentada naquele banco se era para ser sacudida com tanta força que quase fui jogada ao chão. Deu para sacar que era a hora de me levantar.
E foi o que fiz, bem depressa. Bem rápido, para não ser atingida pelo banco. Tão rápido que a Heather nem teria chance de perceber que eu ia derrubá-la com uma direita bem no queixo.
Para minha surpresa, no entanto, ela nem pareceu sen­tir nada. Estava em outra. Em outra muito diferente. O mur­ro não teve o menor efeito - só serviu para me deixar os dedos doendo. E é claro que pareceu deixá-la ainda mais furiosa, o que sempre ajuda quando estamos lidando com uma pessoa perturbada demais.
- Você vai se arrepender disto - proferiu ela numa voz cavernosa que não tinha nada a ver com seus gritinhos de líder da torcida.
De repente a água da fonte chegou ao ponto de ebulição, projetando ondas enormes para o lado de fora. Os jatos, que normalmente iam a uma altura de apenas um metro e pouco, de repente começaram a subir a até três, seis me­tros, caindo de volta num verdadeiro caldeirão borbulhante e fervente. Todos os pássaros saíram voando das árvores ao mesmo tempo, formando momentaneamente uma nuvem que bloqueou a luz do luar.
Eu estava com uma estranha sensação de que a Heather estava falando sério. Pior ainda, tinha a sensação de que ela seria mesmo capaz. Não precisaria nem levantar um dedinho.
O que foi confirmado quando de repente a cabeça de Junipero Serra foi brutalmente arrancada do corpo da está­tua. Exatamente. Simplesmente saltou longe, como se aque­la sólida peça de bronze fosse na verdade de confeito. E sem o menor barulho. Por alguns instantes, ela ficou flutuando no ar, com sua expressão de suave compaixão transforma­da, do estranho ângulo no qual pendia sobre o meu rosto, numa careta demoníaca. E, de repente, enquanto eu esta­va ali completamente paralisada, vendo as luzes se refle­tirem na bola de metal, ela caiu... e mergulhou na minha direção, zunindo tão depressa na noite que parecia até um cometa ou...
Eu nem tive tempo de pensar com que mais aquilo se parecia, pois uma fração de segundo depois uma coisa dura atingiu o meu estômago e me projetou no chão, onde eu fiquei, olhando para o céu estrelado. Que estava lindo. A noite estava tão escura, e as estrelas, tão frias e distantes, piscando...
- Levante-se - disse asperamente uma voz de homem no meu ouvido. - Pensei que você era boa nisso!
Alguma coisa explodiu no chão a menos de um palmo da minha bochecha. Virei o rosto e vi a cabeça de Junipero Serra rindo grotescamente para mim.
Quando vi, o Jesse estava tentando me botar de pé e me empurrando na direção da galeria.


Capítulo 11


Nós conseguimos voltar para a sala do professor Walden. Não sei como, mas conseguimos, com a cabeça da estátua zunindo atrás de nós o tem­po todo, a uma tal velocidade que chegava a fazer um api­to medonho, como se o padre Serra estivesse gritando. A cabeça foi dar com a força de uma bala de canhão contra a pesada porta de madeira, uma fração de segundo depois de nós entrarmos e batermos a porta.
- Díos! - exclamou Jesse, enquanto jogávamos o peso de nossas costas contra a porta, ofegantes, como se pudéssemos impedir a passagem simplesmente com nosso peso... logo a Heather, que, se quisesse, podia atravessar paredes. - Você disse que era perfeitamente capaz de cuidar de si mesma. Disse também que precisava primeiro livrar-se dela. Perfeito...
Eu estava tentando recuperar o fôlego, pensar no que fa­zer. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Nunca.
Cala a boca - disse.
Bafo de cadáver... - Jesse voltou-se para me olhar de frente. Seu peito arfava, subindo e descendo. - Você se dá conta de que me chamou de bafo de cadáver? Magoou hermosa. Magoou mesmo.
Eu já disse... - Alguma coisa pesada estava esmurran­do a porta. Eu a sentia bem na altura da minha espinha. Não era preciso ser um gênio para adivinhar que era a cabeça do fundador de uma certa Missão. -... para não me chamar de hermosa!
Pois eu também ficaria agradecido se você não fizesse comentários desabonadores a meu respeito.
Olha aqui - disse eu. - Esta porta não vai agüentar para sempre.
Não - concordou ele, no exato momento em que a cabeça de metal começou a aparecer por uma fenda que se ia abrindo na madeira. - Posso dar uma sugestão?
Eu estava horrorizada, com os olhos arregalados gruda­dos naquela cabeça de metal, que se havia voltado, metade para dentro e metade para fora da porta, para ficar me olhan­do com frios olhos de bronze. Parece maluquice, mas sou capaz de jurar que ela estava sorrindo para mim.
Claro - eu disse,
Corra!
Eu não hesitei nem um segundo em aceitar o conselho. Corri para o peitoril da janela, e, sem dar a menor bola para os cacos de vidro quebrado, agarrei-me a ela. Levei apenas alguns segundos para abrir a janela, mas foi o suficiente para que Jesse, ainda lutando contra o que já agora começa­va a soar como um furacão, pedisse:
- Poderia andar mais rápido, POR FAVOR?
Eu saltei em direção ao estacionamento. Lá fora, do outro lado das espessas paredes de tijolo cru da Missão, era engraçado que nem dava para dizer que uma violen­ta manifestação paranormal estava acontecendo do lado de dentro. O estacionamento ainda estava vazio e tran­qüilo, acariciado pela sonoridade ritmada das ondas do mar. É impressionante como podem acontecer as coisas mais absurdas bem debaixo do nariz das pessoas e elas nem percebem...
-Jesse! - sussurrei através da janela. - Vamos, venha!
Eu não tinha a menor idéia se a Heather seria capaz de querer descarregar sua raiva em cima de algum passante, ou se o Jesse, caso ela o fizesse, tinha algum truque guarda­do para reagir, como aquele que ela tinha usado com a cabeça da estátua. Eu só sabia que quanto mais cedo a gente saísse do alcance dela, melhor.
Bom, quero deixar logo claro que eu não sou nenhuma covarde. Realmente não sou. Mas também não sou nenhu­ma maluca. Considero que quando a gente se dá conta de que está enfrentando uma força muito maior que a nossa, não tem nada de mais sair correndo.
Mas deixar os outros para trás não é certo.
-Jesse!!! - berrei através da janela.
- Acho que já mandei você correr - disse atrás de mim uma voz muito irritada.
Eu engoli em seco e dei meia-volta. Lá estava o Jesse, de pé no asfalto do estacionamento, com a Lua por trás dele, o que deixava seu rosto na sombra.
- Oh meu Deus! - Meu coração batia tão depressa que eu pensei que ele fosse explodir. Eu nunca tinha sentido tanto medo em toda a minha vida. Nunca.
Talvez por isto eu tenha decidido então esticar os dois braços e agarrar a camisa do Jesse com as duas mãos.
Oh meu Deus - repeti. - Jesse, você está bem?
Claro que estou. - Ele parecia surpreso que eu me desse ao trabalho de perguntar. E acho que era mesmo uma per­gunta cretina. Afinal, que mal a Heather podia fazer ao Jesse? Não dá para imaginar que ela fosse matá-lo... - E você, está bem?
Eu? Estou ótima. - Voltei-me então para as janelas da sala do professor Walden. - Você acha que conseguimos... neutralizá-la?
Por enquanto - disse Jesse.
E como você sabe? - Eu estava chocada de ver que estava tremendo, tremendo de verdade, da cabeça aos pés. - Como sabe que ela não vai atravessar aquelas paredes feito um tufão e começar a arrancar as árvores por aí e jogá-las contra nós?
Jesse balançou a cabeça, e eu vi que ele estava sorrindo. Até que para um sujeito que morreu antes de inventarem a ortodontia ele tinha uns dentes bem bonitos. Quase tão bonitos quanto os do Bryce.
- Pode estar certa que não.
Mas como é que você sabe?
Porque não. Ela nem sabe que é capaz disto. Ela é muito nova no ramo, Suzannah. Ainda não sabe do que é capaz.
Se o objetivo era me fazer sentir melhor, não funcio­nou. O fato de ele reconhecer que ela era capaz de arrancar árvores e começar a atirá-las à distância - sim, ela tinha este poder - e só não o fazia por falta de experiência bas­tou, entretanto, para eu parar de tremer feito vara verde e largar a camisa dele. Não que eu não achasse que a Heather podia ter-me seguido se quisesse. Ela era perfei­tamente capaz disso, exatamente como o Jesse me havia seguido até a Missão. Mas a diferença é que o Jesse sabia que era capaz. Ele já era fantasma há muito mais tempo que a Heather. Ela estava apenas começando a explorar suas novas possibilidades.
Era isto que dava mais medo. Ela era tão nova naquilo tudo... e já tão poderosa.
Eu comecei a caminhar pelo estacionamento feito uma maluca.
Precisamos fazer alguma coisa - disse. - Temos de avi­sar o padre Dominic... e também o Bryce. Meu Deus, temos de avisar ao Bryce que não venha ao colégio amanhã. Ela vai matá-lo. Vai matá-lo no exato momento em que ele puser o pé no campus...
Suzannah - disse Jesse,
Acho que podemos telefonar para ele. É uma hora da manhã, mas podemos telefonar e dizer a ele... nem sei o que a gente pode dizer para ele. Talvez possamos dizer que houve uma ameaça de morte contra ele, ou alguma coisa assim. Talvez funcione. Ou então podemos mandar uma ameaça de morte. Isso mesmo! É isso aí! Podemos telefonar para a casa dele, aí eu disfarço a minha voz e digo algo do tipo "Não venha ao colégio amanhã ou poderá morrer". Talvez ele entenda. Talvez ele...
Suzannah - voltou a dizer o Jesse.
Ou então o padre Dom se encarrega! A gente faz o padre Dom telefonar para o Bryce e dizer para ele não vir ao colégio, que houve algum acidente ou coisa assim...
Suzannah. - Jesse postou-se na minha frente no exa­to momento em que eu dei meia-volta mais uma vez, para percorrer feito uma siderada o mesmo caminho que estava percorrendo há alguns minutos. Fui obrigada a parar, apanhada de surpresa com sua proximidade, meu nariz prati­camente batendo no exato ponto em que o colarinho da sua camisa estava aberto. Jesse agarrou os meus dois braços com firmeza e rapidez, para me fazer parar.
Não foi uma boa idéia. Claro, eu sei que um minuto antes eu o tinha agarrado - bem, não exatamente a ele, mas a sua camisa. Mas em circunstâncias normais eu não gosto de ser tocada, e muito menos por fantasmas. E sobretudo não gosto de ser tocada por fantasmas que têm mãos grandes e fortes como as do Jesse.
- Suzannah - disse ele mais uma vez, antes que eu con­seguisse dizer-lhe que tirasse suas manoplas de cima de mim. - Tudo bem. Não é culpa sua. Você não podia fazer nada.
Eu meio que esqueci de ficar irritada com as mãos dele.
Eu não podia fazer nada? Você está brincando? Eu de­via ter dado um pontapé naquela garota para ela ir parar de volta no seu túmulo!
Não - e Jesse sacudia a cabeça. - Ela a teria matado.
Uma ova! Eu podia perfeitamente com ela. Se ela não tivesse feito aquilo com a cabeça daquele cara...
Suzannah.
Eu sei o que estou dizendo, Jesse. Eu podia perfei­tamente ter dado conta dela se ela não tivesse ficado tão enlouquecida. Aposto que se esperar só um pouqui­nho até ela se acalmar e voltar lá dentro, consigo con­vencê-la...
Não. - Ele soltou-me, mas logo tratou de passar um dos braços em volta do meu ombro e começou a me con­duzir para longe do colégio, em direção à lixeira onde eu havia deixado a bicicleta. - Vamos. Vamos para casa.
Mas e...
- Não - cortou ele, apertando mais os meus ombros. - Jesse, você não está entendendo. Este trabalho é meu.
Eu tenho de...
É uma tarefa do padre Dominic também, não? Deixe que daqui para a frente ele cuida. Não há motivo para você ficar com toda a responsabilidade em cima dos seus ombros.
Pois há sim. Fui eu que estraguei tudo.
Foi você que encostou o revólver na cabeça dela e pu­xou o gatilho?
Claro que não. Mas fui eu que a deixei tão furiosa. Não foi o padre Dom. Eu não vou ficar pedindo ao padre Dom que conserte as minhas besteiras. Não teria o menor sentido.
O que não tem sentido nenhum - explicou Jesse, ten­tando mostrar-se paciente - é alguém esperar que uma garo­ta como você entre em luta com um demônio dos infernos como...
Ela não é um demônio dos infernos. Só está com raiva. E está com raiva porque o único cara em quem achava que podia confiar revelou-se um...
Suzannah - e Jesse parou de caminhar de repente. Eu só não me desequilibrei e caí de cara no chão porque ele ainda estava segurando os meus ombros.
Por um minuto, apenas um minuto, realmente fiquei pensando... bem, cheguei a pensar que ele ia me beijar. Eu nunca tinha sido beijada antes, mas parecia que estavam dadas todas as condições necessárias para que acontecesse um beijo naquela hora: sabe como é, o braço dele estava ao redor do meu ombro, tinha o luar, nossos corações estavam batendo mais depressa - e, claro, ambos acabávamos de escapar de ser mortos por um fantasma completamente ensandecido.
Naturalmente, eu não sabia como me sentia ante a pos­sibilidade de que meu primeiro beijo fosse dado por alguém do outro mundo, mas sabe como é, quem está em petição de miséria não pode ficar escolhendo, e posso garantir uma coisa, o Jesse era muito mais gracinha do que qualquer cara vivo que eu tinha conhecido ultimamente. Eu nunca tinha visto um fantasma tão bonitão. Parecia que ele não podia ter mais de vinte anos quando morreu. Fiquei me pergun­tando de que tinha morrido. Em geral é difícil dizer no caso dos fantasmas, pois seus espíritos tendem a assumir a for­ma que seus corpos tinham quando deixaram de funcio­nar. Meu pai, por exemplo, não é diferente hoje, quando aparece para mim, do que era um dia antes de sair para aquela fatal corrida no Prospect Park dez anos atrás.
Eu só podia deduzir que o Jesse tinha morrido nas mãos de alguém, pois ele me parecia com uma saúde de ferro. Era bem provável que tivesse sido atingido por uma daquelas balas que deixaram buracos na varanda lá em baixo. Legal que o Andy os tivesse preservado para a posteridade.
E agora aquele fantasma sensacional parecia que ia me beijar. E quem era eu para impedi-lo?
De modo que inclinei um pouco a cabeça para trás, olhei para ele com as pestanas meio fechadas e meio que deixei minha boca ficar bem relaxada, sabe como é... E foi aí que eu percebi que a atenção dele não estava exatamente foca­lizada na região dos meus lábios, mas muito abaixo. Nem estava voltada para os meus seios, o que seria uma excelen­te segunda opção.
- Você está sangrando - disse ele.
Foi o suficiente para estragar completamente aquele mo­mento. E para deixar meus olhos bem arregalados.
- Não estou não - respondi automaticamente, pois não estava sentindo dor nenhuma. Então olhei para baixo. Pequenas manchas iam surgindo no piso debaixo dos meus pés. Não dava para dizer de que cor eram porque estava muito escuro. À luz da lua, pareciam negras. E logo em seguida constatei horrorizada que havia manchas escuras semelhantes na camisa do Jesse.
Mas era óbvio que as manchas estavam vindo de mim. Comecei a me olhar e a me apalpar toda, e vi que eu tinha conseguido abrir uma das menores veias do meu pulso, mas ainda assim uma veia importante. Enquanto falava com a Heather, eu tinha tirado as luvas e as havia guardado nos bolsos, e em minha pressa de escapar, durante o acesso de raiva dela, esquecera de voltar a vesti-las. Provavelmente eu me havia cortado nos estilhaços de vidro que ainda esta­vam no parapeito da janela da sala de aula do professor Walden quando a pulei para fugir. O que servia para provar minha teoria de que é sempre na saída que a gente se machuca.
Oh! - disse eu, vendo o sangue escorrer. Sem conseguir dizer nada que tivesse alguma utilidade, acrescentei: - Mas que horror! Sujei a sua camisa toda...
Não é nada. - Jesse meteu a mão num dos bolsos da calça e tirou alguma coisa branca e macia que foi passan­do ao redor do meu pulso algumas vezes, para em seguida amarrá-la num laço. Enquanto fazia isto, não disse nada, totalmente concentrado no que estava fazendo. Quero regis­trar aqui que era a primeira vez que eu era atendida em primeiros socorros por um fantasma. Não era exatamente tão interessante quanto teria sido um beijo, mas também não posso dizer que era uma chatice.
Pronto - disse ele ao concluir. - Está doendo?
Não - respondi, pois não estava mesmo. Eu sabia por experiência própria que só começaria a doer algumas ho­ras depois. - Obrigada.
Não há de quê - disse ele.
Não... - De repente, a coisa mais ridícula, eu estava com vontade de chorar. Mesmo. E eu nunca choro. - Não, obrigada mesmo. Obrigada por ter vindo me ajudar. Mas não precisava... Quer dizer, estou feliz que você tenha vin­do. E... bem, obrigada de novo. Só isso.
Ele parecia ter ficado embaraçado. Acho que no fundo era perfeitamente natural que eu ficasse daquele jeito, toda dengosa com ele. Não consegui evitar. O fato é que eu ain­da não estava conseguindo acreditar. Nenhum fantasma nunca tinha sido tão bonzinho assim comigo. Claro que meu pai tentou... Mas ele não era exatamente o tipo de pessoa de quem você pode esperar esse tipo de coisa. Na verdade eu nunca podia contar realmente com ele, especialmente numa crise.
Mas o Jesse... O Jesse tinha vindo em meu socorro. E eu nem tinha pedido nada a ele. Na verdade, tinha até sido muito desagradável com ele, de maneira geral.
- Esquece - foi tudo que ele conseguiu dizer. E acres­centou: - Vamos para casa.


Capítulo 12


Vamos para casa. Aquele "Vamos para casa" tinha um ar tão acon­chegante...
Só que a casa na qual ambos estávamos vivendo ainda não me parecia exatamente como se fosse um lar. E como poderia? Eu só estava vivendo lá há uns poucos dias...
E por outro lado, claro, ele não tinha nada de estar viven­do lá...
De qualquer maneira, fantasma ou não fantasma, ele sal­vara a minha vida. Isto não se podia negar. E talvez só o tivesse feito para cortejar o meu lado bom, para que eu não acabasse por expulsá-lo completamente da casa.
Independentemente do motivo, o fato é que tinha sido muito legal da parte dele. Até então ninguém nunca tomara a iniciativa de me ajudar - principalmente, é claro, porque ninguém sabia que eu precisava de ajuda. Nem a Gina, que estava presente quando madame Zara declarou que eu era uma mediadora, sabia por que eu aparecia às vezes na es­cola com os olhos muito fundos, ou onde é que eu me metia quando faltava às aulas - coisa que eu fazia com bastante freqüência. E eu não podia explicar o que estava aconte­cendo. Não que a Gina fosse pensar que eu estava maluca ou alguma coisa assim, mas ela acabaria dizendo a alguém mais (a gente só consegue manter segredo sobre essas coisas quando estão acontecendo conosco), que por sua vez diria a mais alguém e eu sabia que em algum momento alguém acabaria dizendo a minha mãe.
E minha mãe entraria em surto. Claro que é isto que as mães costumam fazer, e a minha não é diferente das ou­tras. Ela já tinha me obrigado a fazer terapia e eu tinha de me sentar lá e ficar inventando mentiras complicadas na esperança de explicar meu comportamento anti-social. Eu não tinha a menor intenção de ir parar num asilo de loucos, que certamente era onde eu iria acabar se minha mãe algu­ma vez tivesse descoberto a verdade.
De modo que só podia me sentir agradecida por ter Jesse ao meu lado, embora ele me deixasse meio nervosa. Depois de toda aquela catástrofe lá na Missão, ele me acompanhou até em casa, um perfeito cavalheiro. E até insistiu em em­purrar ele mesmo a bicicleta, por causa da minha ferida. Se alguém tivesse olhado pelas janelas das casas por onde íamos passando, teria pensado que estava vendo coisas: eu me arrastando com dificuldade e aquela bicicleta deslizando ao meu lado sem o menor problema - com o detalhe de que mi­nhas mãos nem tocavam nela.
Ainda bem que na Costa Oeste as pessoas vão dormir cedo.
O tempo todo, enquanto voltávamos para casa, a única coisa em que eu conseguia pensar era o que havia saído errado no confronto com a Heather. Não voltei a falar do assunto - já o havia feito bastante; não queria ficar pare­cendo um disco quebrado, ou uma pianola quebrada ou o que quer que se usasse na época do Jesse. Mas era o único assunto em que eu conseguia pensar. Nunca, mas nunca mesmo, em todos aqueles meus anos como mediadora, eu havia encontrado um espírito tão violento e irracional. Eu simplesmente não sabia o que fazer. E eu sabia que preci­sava encontrar uma saída, e bem depressa; faltavam só umas poucas horas para começarem as aulas e o Bryce cair di­reitinho na armadilha mortal que estava sendo preparada para ele.
Não sei se o Jesse percebeu por que eu estava tão cala­da, ou se ele estava pensando na Heather também... Só sei que de repente ele quebrou o silêncio e disse:
- Não há no céu fúria comparável ao amor transforma­do em ódio nem há no inferno ferocidade como a de uma mulher desprezada.
Eu olhei para ele.
Está falando por experiência própria? Ele deu um pequeno sorriso à luz da lua.
É uma citação de William Congreve.
- Ah... Mas, como você sabe, às vezes a mulher desprezada está cheia de razões de ficar furiosa.
- E você, está falando por experiência própria? - quis saber ele.
Eu dei uma risada.
- Nem de longe.
Para te desprezar, é porque antes o cara gostou de você. Mas isto eu não disse em voz alta. Não há a menor hipótese de que eu pudesse alguma vez dizer uma coisa dessas em voz alta. Não que eu estivesse preocupada com o que o Jesse podia pensar de mim. Por que haveria de me preocupar com o que um caubói morto podia pensar de mim?
Mas eu não ia reconhecer diante dele que nunca havia tido um namorado. A gente não sai por aí dizendo coisas as­sim a caras gostosões como ele, mesmo que estejam mortos.
Mas a gente não sabe o que aconteceu entre a Heather e o Bryce. No fundo, não sabemos. Ela podia ter muitas razões para estar ressentida.
Ressentida com ele, acho que sim - disse Jesse, embo­ra parecesse relutante em admiti-lo. - Mas não com você. Ela não tinha direito de tentar machucá-la.
Ele parecia tão furioso com aquilo que achei melhor mu­dar de assunto. No fundo, eu é que devia ter ficado dana­da com o fato de a Heather ter tentado me matar, mas sabe como é, já estou meio acostumada a lidar com gente irra­cional. Tudo bem, não tão irracional como a Heather, mas vocês sabem o que estou querendo dizer. E se há uma coisa que eu já aprendi, é que não se pode tomar as coisas pelo lado pessoal. Certo, ela tinha tentado me matar, mas como é que eu vou saber se ela tinha algum discernimento? Quem pode garantir como eram os pais dela, afinal de contas? E se eles eram do tipo que saía por aí matando o primeiro ca­paz de contrariá-los?...
Mas depois de ver aquele colar de pérolas eu fiquei du­vidando que eles fossem desse tipo.
Enquanto estava pensando nessas matanças, acabei me perguntando por que o Jesse acabara ficando tão indigna­do. Foi aí que me dei conta de que provavelmente ele ti­nha sido assassinado. Ou então tinha se matado. Mas não achava que ele fosse capaz de se matar. Achava que ele pode­ria ter morrido de alguma doença arrasadora...
Talvez não tenha sido muito delicado da minha parte (mas de qualquer forma eu nunca fui propriamente famosa pela delicadeza), mas acabei indo em frente e perguntei, quando estávamos subindo a longa ladeira coberta de cas­calho até em casa:
- Mas e você? Como foi mesmo que morreu?
Jesse não disse nada logo em seguida. Provavelmente eu o tinha ofendido. Já pude notar que os fantasmas não gostam muito de falar sobre como morreram. Às vezes nem se lem­bram. Vítimas de acidentes de carro geralmente não têm a menor idéia do que lhes aconteceu. Por isto é que eu sem­pre as vejo vagando em busca das outras pessoas que es­tavam no carro com elas. Tenho então de explicar o que aconteceu e tentar de alguma maneira imaginar onde po­dem estar as pessoas que elas estão procurando. E isto é também um bocado doloroso, podes crer. Eu tenho de me abalar até a delegacia onde foi registrado o acidente, fingir que estou fazendo um trabalho para o colégio ou algo as­sim, copiar os nomes das vítimas e tentar descobrir o que aconteceu com elas.
Posso garantir que às vezes parece que meu trabalho nun­ca chega ao fim.
Seja como for, Jesse ficou calado por um momento e eu achei que ele não ia me contar. Ele estava olhando bem para a frente, na direção da casa - a casa onde tinha morrido, a casa onde haveria de ficar rondando até que... bem, até que pudesse resolver o problema que o estava retendo neste mundo.
A lua ainda estava à vista, bem alto lá no céu, e eu po­dia ver o rosto do Jesse como se fosse dia. Ele não estava parecendo muito diferente do habitual. Sua boca, que era mais para larga, de lábios finos, parecia estar meio carrancuda, o que, até onde eu sabia, era o que costumava fazer. E por baixo daquelas espessas sobrancelhas negras, seus olhos, de cílios tão densos, eram tão reveladores quanto um espelho - quer dizer, eu provavelmente seria capaz de ver meu reflexo neles, mas não adivinharia nada sobre o que ele estava pensando.
Hmm... - disse eu. - Sabe o que mais? Esquece. Se não quiser, não precisa me dizer...
Não - ele respondeu. - Tudo bem.
É só que eu estava meio curiosa, só isso. Mas se você achar que é uma coisa muito pessoal...
Não, não é. - Nós já havíamos chegado à casa. Ele em­purrou a bicicleta até o ponto onde ela devia ficar e a recostou no muro da garagem. Estava mergulhado na som­bra quando afinal disse: - Como você sabe, nem sempre esta casa foi uma casa de família.
Como se fosse a primeira vez que o ouvia falar daquilo, exclamei:
É mesmo?!
Sim. Houve uma época em que era um hotel. Quer di­zer, mais uma estalagem propriamente do que um hotel.
Perguntei então, toda animada:
E você estava hospedado aqui?
Sim. - Ele saiu da sombra da garagem, mas em vez de olhar para mim quando voltou a falar, estava com o olhar apertado voltado para o mar. Eu tentei animá-lo:
E... Aconteceu alguma coisa quando você estava aqui?
Sim. - E ele olhou para mim. Ficou me olhando por um longo momento. Depois, disse: - Mas esta é uma longa história, e você deve estar muito cansada. Vá se deitar. Amanhã de manhã decidiremos o que fazer sobre a Heather.
Pode ser mais injusto?
- Espera um pouco - interrompi. - Não vou a lugar nenhum enquanto você não acabar de contar essa história.
Ele balançou a cabeça:
Não, já é muito tarde. Eu conto uma outra vez.
Puxa vida! - Eu devia estar parecendo uma garotinha recebendo ordens da mãe para ir-se deitar cedo, mas estava pouco ligando. Estava danada da vida. - Você não pode começar uma história assim e não acabar de contá-la. Você tem de...
Agora o Jesse estava rindo de mim.
Vá se deitar, Suzannah - disse ele, empurrando-me suavemente para a escada. - Você já foi suficientemente assustada esta noite.
Mas você...
Quem sabe outra vez... - insistiu ele. Já me havia condu­zido na direção da varanda e agora eu estava no primeiro degrau, voltando-me para vê-lo rindo de mim.
Você promete?
Seus dentes brilharam no luar.
Prometo. Boa noite, hermosa.
Já disse para não me chamar disso - resmunguei, subindo os degraus com toda força.
Mas já eram quase três horas da manhã e o máximo que eu conseguia era fingir indignação. É bom lembrar que eu ainda estava no horário de Nova York, três horas na frente. Já era difícil levantar na hora para ir para a escola quando eu conseguia dormir oito horas inteirinhas. Como é que haveria de ser com apenas quatro horas de sono?
Entrei na casa o mais discretamente possível. Felizmente, todo mundo, menos o cachorro, dormia profundamente. Ao me ver, ele levantou a cabeça no sofá onde se havia espi­chado e começou a sacudir o rabo. Grande cão de guarda. E minha mãe, que não queria saber de vê-lo dormindo no sofá branquinho... Mas eu é que não ia transformar o Max em inimigo, enxotando-o dali. Se bastava deixar que ele continuasse dormindo no sofá para impedir que avisasse à casa inteira que eu tinha saído, valia a pena.
Fui me arrastando como podia escada acima, pensando o tempo todo no que haveria de fazer com a Heather. Prova­velmente teria de me levantar cedo e telefonar para o colé­gio, avisando ao padre Dom que fosse ao encontro do Bryce assim que ele pusesse os pés no campus e o mandasse de volta para casa. E decidi que nem mesmo me haveria de opor se fosse necessário recorrer aos piolhos. No fim das contas, a única coisa que interessava era impedir que a Heather conseguisse o que queria.
Ainda assim, a simples idéia de ter de levantar cedo para fazer alguma coisa - mesmo que fosse salvar a vida do cara com quem eu tinha um encontro no sábado à noite - não parecia das mais atraentes. Agora que a adrena­lina toda já havia passado, eu me dava conta de que esta­va morta de cansaço. Fiz mais um esforcinho e consegui chegar até o banheiro para vestir o pijama - claro, pois embora tivesse certeza de que o Jesse não estava me espio­nando, ele ainda não havia dito como tinha morrido, e portanto eu não ia arriscar nada. Ele bem que podia ter sido enforcado por voyeurismo, uma pena que eu acredi­tava ter sido aplicada algumas vezes uns cento e cinqüen­ta anos antes.
Foi só no momento em que decidi mudar a atadura no meu pulso que prestei atenção no que ele havia usado.
Era um lenço. Antigamente todo mundo usava lenço de pano, pois não havia lenços de papel. E as pessoas pare­ciam dar a maior importância, costurando neles as suas ini­ciais, para que não se perdessem ao serem lavados.
Só que o lenço do Jesse não tinha suas iniciais, conforme pude notar ao lavá-lo e tentar tirar o meu sangue o melhor que pude. Era um grande quadrado de linho, branco (bom, já então meio cor-de-rosa) com um debrum de delicada ren­da branca. Meio delicadinho para um cara como ele. Eu teria ficado meio cismada com a orientação sexual do Jesse se não tivesse visto as iniciais que estavam bordadas num dos can­tos. Os pontos eram minúsculos, linha branca sobre tecido branco, mas as letras propriamente eram enormes, numa caligrafia floreada: MDS. Isso mesmo. MDS. Nada de J.
Estranho. Muito estranho.
Pendurei o lenço para secar. Não precisava me preocu­par com a possibilidade de alguém vê-lo. Para começo de conversa, só eu usava o meu banheiro, e além disso ninguém era mesmo capaz de ver o Jesse, portanto ninguém pode­ria ver o seu lenço. Amanhã de manhã ele estaria lá exata­mente como agora. E talvez eu decidisse exigir explicações sobre aquelas letras antes de devolvê-lo. MDS.
Só quando estava começando a adormecer é que me dei conta de que MD devia ser uma garota. Caso contrário, por que tanta rendinha? E aquelas letras todas caprichadas? Será então que o Jesse não tinha morrido num tiroteio, como eu acreditava inicialmente, e sim em alguma briga de amantes?
Não sei por que, mas o fato é que esta idéia me deixou bem perturbada. Por causa dela fiquei acordada bem uns três minutos. Até que virei para o outro lado, senti falta da minha antiga cama por um instantinho só e caí no sono.

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