sexta-feira, 17 de junho de 2011

Percy Jackson e o Ladrão de Raios - Capítulos 16 ao 18

DEZESSEIS
A ida de uma zebra para Las Vegas.

O deus da guerra nos esperava no estacionamento do restaurante.
— Bem, bem — disse ele. —Você conseguiu não ser morto.
— Você sabia que era uma armadilha — retruquei.
Ares me deu um sorriso malvado.
— Aposto que aquele ferreiro aleijado ficou surpreso quando pegou na rede um par de
crianças estúpidas. Você ficou bem na tevê.
Empurrei o escudo para ele.
— Você é um imbecil.
Annabeth e Grover pararam de respirar.
Ares agarrou o escudo e o girou no ar como massa de pizza. escudo mudou de forma,
transformando-se em um colete à prova de balas. Ele o pendurou nas costas.
— Estão vendo aquele caminhão logo ali? — Apontou um caminhão de dezoito rodas
estacionado do outro lado da rua. — É a carona de vocês. Vai levá-los direto a Los
Angeles, com uma parada em Vegas.
O caminhão tinha uma placa na parte de trás, que eu só pude ler porque estava pintada
ao contrário, em branco sobre preto, uma boa combinação para a dislexia: CARIDADE
INTERNACIONAL: TRANSPORTE HUMANITÁRIO DE ZOOLÓGICO.
CUIDADO: ANIMAIS SELVAGENS VIVOS
Eu disse:
— Fala sério!
Ares estalou os dedos. A porta traseira do caminhão se destrancou.
— Carona grátis para oeste, imprestável. Pare de reclamar. E aqui está uma coisinha por
ter feito o serviço.
Ele suspendeu uma mochila de náilon azul do seu guidom e a jogou para mim.
Dentro havia roupas limpas para todos nós, vinte dólares em dinheiro, uma bolsa cheia
de dracmas de ouro e uma embalagem de biscoito Oreo recheado.
Eu disse:
- Não quero a porcaria do seu...
- Obrigado, Senhor Ares — interrompeu Grover, me fuzilando com seu melhor olhar de
alerta vermelho. — Muito obrigado.
Rangi os dentes. Devia ser um insulto mortal recusar algo de um deus, mas eu não
queria nada que Ares tivesse tocado. Pendurei a mochila no ombro relutando. Sabia que
minha raiva era causada pela presença do deus da guerra, mas ainda sentia uma
vontadezinha de lhe dar um murro no nariz. Ele me lembrou de todos os valentões que
já havia enfrentado: Nancy Bobofit, Clarisse, Gabe Cheiroso, professores debochados
— todos os imbecis que me chamaram de estúpido na escola ou riram de mim quando
fui expulso.
Olhei para o restaurante atrás de mim, que tinha agora apenas um ou dois clientes. A
garçonete que nos servira o jantar olhava, nervosa, pela janela, como se tivesse medo de
que Ares nos machucasse. Ela arrastou o cozinheiro de dentro da cozinha para ver.
Disse algo a ele. Ele assentiu, ergueu uma pequena câmera descartável e tirou uma foto
de nós.
Boa, pensei. Amanhã vamos estar de novo nos jornais.
Imaginei a manchete: CRIMINOSO DE DOZE ANOS ESPANCA MOTOCICLISTA
INDEFESO.
— Você me deve mais uma coisa — disse a Ares, tentando manter o volume de minha
voz. —Você me prometeu informações sobre minha mãe.
— Tem certeza de que é capaz de suportar a notícia? - Ele deu a partida no pedal da
moto. — Ela não está morta.
O chão pareceu girar embaixo de mim.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que ela foi levada pelo Minotauro antes de morrer. Foi transformada em
uma chuva de ouro, certo? Isso é metamorfose. Não morte. Ela está sendo mantida
presa.
— Presa. Por quê?
— Você precisa estudar guerra, coisinha imprestável. Reféns. Você prende alguém para
controlar outro alguém.
— Ninguém está me controlando.
Ele riu.
— Ah, não? A gente se vê por aí, garoto.
Cerrei os punhos.
— Você é bem convencido, Senhor Ares, para um cara que foge de estátuas de Cupido.
Atrás dos óculos escuros, o fogo brilhou. Senti um vento quente nos cabelos.
— Nós nos encontraremos novamente, Percy Jackson. Na próxima vez em que estiver
numa briga, cuide de sua retaguarda.
— Isso não foi muito inteligente, Percy.
— Não estou nem aí.
— Você não quer um deus como inimigo. Especialmente esse deus.
— Ei, gente — disse Grover. — Detesto interromper, mas...
Ele apontou na direção do restaurante. No caixa, os dois últimos clientes estavam
pagando suas contas, dois homens de macacões pretos idênticos, com uma logomarca
branca nas costas que combinava com a do caminhão da CARIDADE
INTERNACIONAL.
— Se vamos pegar o expresso do zoológico — disse Grover —, precisamos nos
apressar.
Eu não tinha gostado daquilo, mas não havia opção melhor. Além disso, já tinha visto o
suficiente de Denver.
Atravessamos a rua correndo e subimos na traseira do veículo enorme,, fechando as
portas atrás de nós.

*****

A primeira coisa que percebi foi o cheiro. Era como a maior caixa de areia para cocô de
gato do mundo.
O interior da carreta estava escuro até eu tirar a tampa de Anaklusmos. A lâmina lançou
uma leve luz de bronze sobre uma cena muito triste. Em uma fileira de jaulas metálicas
imundas havia três dos mais patéticos animais de zoológico que eu já vira: uma zebra,
um leão albino e um tipo estranho de antílope, cujo o nome eu não sabia.
Alguém jogara para o leão um saco de nabos que ele obviamente não queria comer. A
zebra e o antílope tinham ganhado uma bandeja de isopor de carne de hambúrguer cada
um. A crina da zebra estava toda emaranhada em goma de mascar, como se alguém
ficasse cuspindo nela nas horas vagas. O antílope tinha um estúpido balão de
aniversário amarrado em um dos seus chifres que dizia PASSEI DA IDADE!
Tudo indicava que ninguém quisera chegar perto o bastante do leão para mexer com ele,
mas o pobre andava de um lado para outro em cima de cobertores sujos, em um espaço
que era mais do que muito pequeno para ele, arfando com o ar abafado da carreta.
Moscas zumbiam em volta de seus olhos cor-de-rosa, e as costelas apareciam no pêlo
branco.
— Isso é caridade? — gritou Grover. —Transporte humanitário de zoológico?
Ele provavelmente teria saído de volta para bater nos caminhoneiros com suas flautas de
bambu, e eu o teria ajudado, mas bem naquele momento o motor roncou, a carreta
começou a chacoalhar e fomos forçados a nos sentar ou cair.
Nós nos amontoamos no canto em cima de alguns sacos de ração embolorados, tentando
ignorar o cheiro, o calor e as moscas. Grover falou com os animais em uma série de
balidos de bode, mas eles apenas olharam tristemente para ele. Annabeth era a favor de
arrombar as jaulas e soltá-los ali mesmo, mas argumentei que isso não ia adiantar muito
até o caminhão parar de se mover. Além disso, tinha a sensação de que, para o leão,
poderíamos paracer bem mais apetitosos do que aqueles nabos.
Achei um jarro de água e reabasteci as tigelas deles, depois usei Anaklusmos para puxar
os alimentos trocados para fora das jaulas. Dei a carne ao leão e os nabos para a zebra e
o antílope.
Grover acalmou o antílope enquanto Annabeth usava sua faca para tirar o balão preso ao
chifre. Pensou também em cortar a goma de mascar da crina da zebra, mas concluímos
que seria muito arriscado com o caminhão aos solavancos. Pedimos a Grover para
prometer aos animais que os ajudaríamos mais pela manhã, e então nos acomodamos
para a noite.
Grover se enrodilhou sobre um saco de nabos; Annabeth abriu nosso pacote de Oreos e
mordiscou um deles sem muito entusiasmo, tentei ficar animado com a idéia de que
estávamos a meio caminho de Los Angeles. Próximo de nosso destino. Ainda era 14
junho. O solstício só aconteceria no dia 21. Tínhamos tempo de sobra.
Por outro lado, não tinha idáia do que nos esperava. Os deuses estavam brincando
comigo. Pelo menos Hefesto teve a decência de ser honesto quanto a isso — instalou
câmeras e me anunciou como entretenimento. Mas até quando não havia câmeras
filmando eu tinha a sensação de que a minha missão estava sendo observada. Eu era
uma fonte de diversão para os deuses.
- Ei — disse Annabeth. — Sinto muito por ter me apavorado lá no parque aquático,
Percy.
- Tudo bem.
- É só que... — Ela estremeceu. — Aranhas.
- Por causa da história de Aracne — adivinhei. — Ela foi transformada em aranha por
desafiar sua mãe para uma competição de tecelagem, certo?
Annabeth assentiu.
- Os filhos de Aracne têm se vingado nos filhos de Atena desde então. Se houver uma
aranha a um quilômetro de distância de mim, ela me encontrará. Eu odeio aquelas
coisinhas rastejantes. De qualquer jeito, lhe devo uma.
- Somos uma equipe, está lembrada? Além disso, Grover fez aquele vôo fantástico.
Pensei que estivesse dormindo, mas ele murmurou do seu canto:
— Fui o máximo, não fui?
Annabeth e eu demos risada.
Ela separou as duas partes do biscoito recheado e me deu uma.
— Na mensagem de Íris...Luke realmente não disse nada?
Mastiguei meu biscoito e pensei em como responder. A conversa via arco-íris me
incomodara a noite toda.
— Luke disse que você e ele se conhecem há muito. Também disse que Grover não iria
fracassar dessa vez. Ninguém seria transformado em pinheiro.
Na pálida luz de bronze da lâmina da espada, era difícil ler a expressão deles.
Grover soltou um balido lamentoso.
— Eu devia ter contado a verdade a você desde o começo. — Sua voz tremia. — Pensei
que, se soubesse o fracasso que eu era, não iria querer que eu viesse junto.
— Você era o sátiro que tentou salvar Thalia, a filha de Zeus.
Ele assentiu, com tristeza.
— E os outros dois meios-sangues que Thalia protegeu, os que chegaram ao
acampamento em segurança... — Olhei para Annabeth. — Eram você e Luke, não é?
Ela pôs seu biscoito de lado, intocado.
— Como você disse, Percy, uma meio-sangue de sete anos de idade não teria chegado
muito longe sozinha. Atena me guiou até a ajuda. Thalia tinha doze anos. Luke, catorze.
Os dois haviam fugido de casa, como eu. Ficaram contentes em me levar com eles.
Eram... fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino. Viajamos da Virgínia
para o norte sem nenhum plano de verdade, nos defendemos dos monstros por cerca de
duas semanas antes de Grover nos encontrar.
— Eu devia escoltar Thalia até o acampamento - disse ele, fungando. - Somente Thalia.
Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que
Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke e
Annabeth. Achei... achei que conseguiria levar todos os três até um lugar seguro. Foi
minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no
caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um
pouco mais rápido...
— Pare com isso — disse Annabeth. — Ninguém culpa você. Thalia também não o
culpou.
— Ela se sacrificou para nos salvar — disse ele, desconsolado. Sou culpado pela morte
dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.
— Porque você não deixou outros dois meios-sangues para trás? — disse eu. — Isso
não é justo.
— Percy tem razão — disse Annabeth. — Eu não estaria aqui hoje se não fosse por
você, Grover. Nem Luke. Não estamos nem aí para o que diz o conselho.
Grover continuou fungando no escuro.
— É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais
poderosos do século, Thalia e Percy.
— Você não é fraco — insistiu Annabeth. — Tem mais coragem do que qualquer sátiro
que já conheci. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy
está muito contente por você estar aqui agora.
Ela me chutou na canela.
- Sim — falei, o que teria feito mesmo sem o chute. — Não foi por sina que você
encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é
um buscador natural. É isso que é você quem vai achar Pan.
Ouvi um suspiro profundo e satisfeito. Esperei que Grover dissesse algo, mas sua
respiração só ficou mais pesada. Quando o som se transformou em ronco, percebi que
ele tinha caído no sono.
— Como ele faz isso? — maravilhei-me.
— Não sei — disse Annabeth. — Mas foi realmente legal o que você disse a ele.
— Eu fui sincero.
Viajamos em silêncio por alguns quilômetros, sacudindo acima dos sacos de ração. A
zebra mascou um nabo. O leão lambeu o que restara da carne de hambúrguer dos lábios
e olhou pa ra mim esperançoso.
Annabeth esfregou seu colar como se estivesse bolando grandes estratégias.
— Essa conta do pinheiro — disse eu. — É do seu primeiro ano?
Ela olhou. Não havia percebido o que estava fazendo.
— É — falou. —Todo mês de agosto os conselheiro escolhem o evento mais importante
do verão, e o pintam nas contas daquele ano. Eu fiquei com o pinheiro de Thalia, uma
trirreme grega em chamas, um centauro vestido para um baile... bem, aquele foi um
verão estranho...
— E o anel de formatura é do seu pai?
— Isso não é da sua... — Ela se interrompeu. — Sim. Sim, é.
— Você não precisa me contar.
— Não... tudo bem. — Ela respirou fundo, vacilante. – Meu pai o mandou para mim
dentro de uma carta, há dois verões. O anel era, bem, sua maior recordação de Atena.
Ele não teria conseguido terminar o doutorado em Harvard sem ela... É uma longa
história. De qualquer modo, ele disse que queria que eu ficasse com o anel. Desculpouse
por ser um idiota, disse que me amava e sentia saudades de mim. Queria que eu fosse
para casa.
- Isso não parece tão ruim assim.
- É, mas... o problema é que eu acreditei nele. Tentei ir para casa naquele ano escolar,
mas minha madrasta era a mesma de sempre. Não queria ver seus filhos em perigo por
viver com uma aberração. Monstrons atacavam. A gente brigava. Monstros atacavam. A
gente brigava. Não agüentei nem mesmo até as férias inverno. Chamei Quíron e voltei
direto para o Acampamento Meio-Sangue.
- Você acha que vai tentar viver com seu pai de novo?
Ela não me olhou nos olhos.
- Por favor. Não estou a fim de me autoflagelar.
- Você não devia desistir — falei. — Devia lhe escrever uma carta, ou coisa assim.
- Obrigada pelo conselho — disse ela, friamente —, mas meu pai escolheu com quem
quer viver. Passamos mais alguns quilômetros em silêncio.
— Então, se os deuses brigarem — falei —, as coisas vão ficar como na Guerra de
Tróia? Será Atena contra Poseidon?
Ela encostou a cabeça na mochila que Ares nos dera e fechou olhos.
— Não sei o que a minha mãe vai fazer. Só sei que vou lutar junto com você.
— Por quê?
— Porque você é meu amigo, cabeça de alga. Mais alguma pergunta boba?
Não consegui pensar em uma resposta para aquilo. Felizemente, não precisei. Annabeth
estava dormindo.
Tive dificuldade em seguir o exemplo dela, com Grover roncando e um leão albino me
olhando com ar esfomeado, mas por fim fechei os olhos.

*****

Meu pesadelo começou como um milhão de vezes antes: eu sendo forçado a fazer um
teste usando uma camisa-de-força. Todas as outras crianças estavam saindo para o
recreio, e o professor dizendo: Vamos, Percy. Você não é burro, não é? Pegue seu
lápis.
Então o sonho tomou um rumo diferente.
Olhei para a carteira ao lado e vi uma menina sentada, que também usava uma camisade-
força. Tinha a minha idade, com um cabelo preto rebelde, estilo punk, delineador
escuro em volta dos olhos verdes tempestuosos, e sardas no nariz. De algum modo, eu
sabia quem era. Thalia, filha de Zeus.
Ela se debateu na camisa-de-força, olhou para mim com raiva e frustração, e disparou:
E então, cabeça de alga? Um de nós precisa sair daqui.
Ela tem razão, pensei no sonho. Vou voltar para aquela caverna. Vou dizer o que penso
na cara de Hades.
A camisa-de-força se dissolveu e fiquei livre. Caí através do piso da sala de aula. A voz
do professor mudou até ficar fria e maligna, ecoando das profundezas de um grande
abismo.
Percy Jackson, disse. Sim, a troca foi bem, estou vendo.
Eu estava novamente na caverna escura, com os espíritos dos mortos flutuando à minha
volta. De dentro do poço, sem ser vista, a coisa monstruosa falava, mas não se dirigia a
mim. O poder entorpecedor de sua voz parecia dirigir-se a outro lugar.
E ele não suspeita de nada?, perguntou.
Outra voz, uma que quase reconheci, respondeu junto ao meu ombro: Nada, meu
senhor. Ele é tão ignorante quanto o resto.
Ohei, mas não havia ninguém lá. Quem falara estava invisível.
Mentira em cima de mentira, refletiu em voz alta a coisa no poço. Excelente.
Na verdade, meu senhor, disse a voz ao meu lado, o nome O Trapaceiro lhe foi muito
bem aplicado, mas aquilo foi de fato necessário? Eu poderia ter trazido o que roubei
diretamente para o senhor...
Você?, escarneceu o monstro. Você já mostrou seus limites. Teria falhado
completamente sem minha intervenção.
Mas, meu senhor...
Por favor, pequeno servo. Nossos seis meses nos renderam muito. A ira de Zeus
cresceu. Poseidon jogou sua cartada mais desesperada. Agora devemos usá-la contra
ele. Logo você terá a recompensa que deseja, e sua vingança. E assim que ambos os
itens forem entregues em minhas mãos... mas espere. Ele está aqui.
O quê?
O servo invisível de repente pareceu tenso.
Acaso o convocou, meu senhor?
Não.
Toda a força da atenção do monstro agora se despejava sobre mim, paralisando-me.
Maldito seja o sangue de seu pai — ele é inconstante demais, imprevisível demais. O
menino trouxe a si mesmo para cá.
Impossível!, exclamou o servo.
Para alguém fraco como você, talvez, rosnou a voz. Depois sua força gélida se voltou
de novo para mim. Então... você quer sonhar com sua missão, meio-sangue? Pois vou
atendê-lo.
O cenário mudou.
Eu estava numa vasta sala com um trono, com paredes de mármore negro e piso de
bronze. O horripilante trono vazio era feito de ossos humanos fundidos. Postada ao pé
do degrau estava minha mãe, uma estátua de luz dourada tremeluzente, os braços
estendidos.
Tentei avançar em sua direção, mas minhas pernas não se moviam. Estendi a mão para
ela, apenas para perceber que minhas mãos haviam murchado até os ossos. Esqueletos
sorridentes de armadura grega se juntavam ao meu redor, vestindo-me com mantos de
seda, coroando-me com louros que fumegavam com veneno da Quimera, queimandome
o couro cabeludo.
A voz maligna começou a rir. Vivas ao herói conquistador!

*****

Acordei assustado.
Grover sacudia meu ombro.
— O caminhão parou — disse ele. — Achamos que eles vêm checar os animais.
— Escondam-se! — Annabeth falou baixinho.
Para ela foi fácil. Pôs na cabeça seu boné mágico e desapareceu. Grover e eu tivemos de
mergulhar atrás dos sacos de ração e torcer para parecermos dois nabos.
As portas da carreta se abriram com um rangido. A luz e o calor do sol entraram.
— Cara! — disse um dos caminhoneiros, abanando a mão na frente do nariz feio. —
Queria estar transportando eletrodomésticos. — Ele trepou para dentro e despejou um
pouco d’água nas vasilhas dos animais.
— Com calor, garotão? — perguntou ao leão, e então esvaziou o resto do balde direto
na cara do animal. O leão rugiu de indignação.
— Certo, certo, certo — disse o homem.
Ao meu lado, embaixo dos sacos de nabos, Grover se resetou. Para um herbívoro
amante da paz, ele parecia absolutarnente sanguinário.
O caminhoneiro jogou um saco meio esmagado de McLanche Feliz para o antílope. E
arreganhou um sorriso para a zebra:
- Tudo em cima, Listradona? Ao menos nos livraremos de você nesta parada. Gosta de
shows de mágica? Vai adorar este. Vão serrar você no meio!
A zebra, com os olhos arregalados de medo, olhou diretamente para mim.
Não houve som nenhum, mas claro como o dia, eu a ouvi dizer: Liberte-me, senhor.
Por favor.
Fiquei perplexo demais para reagir.
Houve um forte toque-toque-toque na lateral da carreta.
O caminhoneiro que estava dentro, conosco, gritou:
— O que você quer, Eddie?
Uma voz do lado de fora — deve ter sido a de Eddie — gritou volta:
— Maurice? O que você disse?
— Por que está batendo?
Toque-toque-toque.
De fora, Eddie gritou:
— Quem está batendo?
O nosso cara, Maurice, revirou os olhos e voltou para fora, xingando Eddie por ser tão
idiota.
Um segundo depois, Annabeth apareceu ao meu lado. Devia ser ele quem fez as batidas,
para tirar Maurice da carreta. Ela isse:
— Esse negócio de transporte não deve ser legal.
— Mentira? — disse Grover. Ele fez uma pausa, como se estivesse escutando. — O
leão diz que esses caras são contrabandistas de animais!
É verdade, disse a voz da zebra dentro da minha cabeça.
— Temos de libertá-los! — disse Grover. Ele e Annabeth olharam para mim, esperando
meu comando.
Eu tinha ouvido a zebra falar, mas não o leão. Por quê? Talvez fosse mais uma
deficiência de aprendizado... Será que eu só podia entender zebras? Então pensei:
cavalos. O que Annabeth dissera sobre Poseidon criar cavalos? Uma zebra seria
próxima o bastante de um cavalo? Será que era por isso que eu podia entendê-la?
A zebra disse: Abra minha jaula, senhor. Por favor. Ficarei bem, depois disso.
A zebra disparou para fora. Virou-se para mim e inclinou a cabeça. [o]Obrigada, senhor.
Grover ergueu as mãos e disse algo a ela em sua fala de bode, como uma bênção.
No momento em que Maurice enfiava a cabeça para verificar que barulho era aquele lá
dentro, a zebra saltou por cima dele para a rua. Houve berros, gritos e carros buzinando.
Corremos para as portas da carreta a tempo de ver a zebra galopando por uma avenida
ladeada por hotéis, cassinos e letreiros de néon. Tínhamos acabado de soltar uma zebra
em Las Vegas.
Maurice e Eddie correram atrás dela, com alguns policiais correndo atrás deles e
gritando:
— Ei! Vocês precisam de permissão para isso!
— Agora seria um bom momento para dar o fora – disse Annabeth.
— Primeiro os outros animais — disse Grover.
Cortei as trancas com minha espada. Grover ergueu as mãos e falou a mesma bênção de
bode que usara para a zebra.
— Boa sorte — disse aos animais. O antílope e o leão dispararam para fora das jaulas e
foram juntos para as ruas.
Alguns turistas gritaram. A maioria recuou e tirou fotos, provavelmente pensando que
se tratasse de algum tipo de show de um dos cassinos.
- Os animais vão ficar bem? — perguntei a Grover. — Quer dizer, o deserto e tudo...
—Não se preocupe — disse ele. — Eu lhes dei uma bênção de sátiro.
- O que quer dizer isso?
— Quer dizer que chegarão à floresta em segurança — disse ele. — Encontrarão água,
comida, sombra, e o que mais precisarem até acharem um lugar seguro para viver.
— Por que você não pode fazer uma oração dessas para nós? - perguntei.
— Só funciona com animais.
— Então só iria afetar Percy — ponderou Annabeth.
— Ei! — protestei.
— Brincadeirinha — disse ela. — Venha. Vamos sair desse caminhão imundo.
Cambaleamos para fora, para a tarde do deserto. Fazia quarenta e três graus, fácil, e
devíamos estar parecendo vagabundos fritos, mas todos estavam interessados demais
nos animais selvagens para prestar muita atenção em nós.
Passamos pelo Monte Carlo e pela MGM. Passamos por pirâmides, por um navio pirata
e pela Estátua da Liberdade, que era uma réplica bem pequena, mas ainda assim me
deixou com saudades de casa.
Não sabia muito bem o que estávamos procurando. Talvez apenas um lugar para fugir
do calor por alguns minutos, achar um sanduíche e um copo de limonada, bolar um
novo plano para chegar ao oeste.
Provavelmente, entramos numa rua errada, pois chegamos em um beco sem saída, em
frente ao Hotel e Cassino Lotus. A entrada era uma enorme flor de néon, as pétalas
acendendo e piscando. Ninguém entrava nem saía, mas as reluzentes portas cromadas
estavam abertas, espalhando ar condicionado com cheiro de flores — flor-de-lótus,
quem sabe. Eu nunca cheirara uma, por isso não tinha certeza.
O porteiro sorriu para nós.
— Ei, crianças. Vocês parecem cansados. Querem entrar e sentar?
Tinha aprendido a ser desconfiado, mais ou menos na última semana. Imaginava que
qualquer um poderia ser um monstro ou um deus. Não dava para saber. Mas aquele cara
era normal. Era só olhar. Além disso, fiquei tão aliviado de ouvir alguém que parecia
simpático que assenti e disse que adoraríamos entrar. Dentro, demos uma olhada em
volta e Grover disse:
— Uau.
O saguão inteiro era uma sala de jogos gigante. E não estou falando de joguinhos
vagabundos como o velho Pac-Man ou os caça-níqueis. Havia um toboágua
serpenteando em volta do elevador de vidro, que subia pelo menos quarenta andares.
Havia uma parede de escalada ao lado de um edifício, e uma ponte interna para bungeejumping.
Trajes de realidade virtual com pistolas laseres que funcionavam. E centenas
de videogames, cada qual do tamanho de uma tevê widesmen. Basicamente, o que você
disser, o lugar tinha. Havia algumas outras crianças jogando, mas não muitas. Não havia
espera para nenhum dos jogos. Garçonetes e lanchonetes estavam por toda parte,
servindo todo tipo de comida que se possa imaginar.
— Ei! — disse um mensageiro. Pêlos menos achei que fosse um mensageiro. Usava
uma camisa havaiana branca e amarela com desenhos de lótus, short e sandálias de
dedo. — Bem-vindos ao Cassino Lótus. Aqui está a chave do seu quarto.
Eu gaguejei:
- Ahn, mas...
- Não, não — disse ele, rindo. — A conta já foi paga. Sem taxas extras, sem gorjetas.
Vocês só precisam subir para o último andar, quarto 4001. Se precisarem alguma coisa,
como mais espuma para a banheira quente ou alvos para tiro ao prato, ou o que for, é só
ligar para a recepção. Aqui estão os seus cartões GranaLótus. Eles funcionam nos
restaurantes e em todos os jogos e brinquedos.
Ele entregou a cada um de nós um cartão de crédito de plástico verde.
Eu sabia que devia haver algum engano. Obviamente ele pensa¬ra que éramos crianças
milionárias. Mas peguei o cartão e disse:
— Quanto tem aqui?
Ele juntou as sobrancelhas.
— O que quer dizer?
— Quero dizer quanto temos de crédito?
Ele riu.
— Ah, é uma piada. Ei, legal. Aproveitem sua estada.
Subimos de elevador e conferimos nosso quarto. Era uma suíte com três dormitórios
separados e um bar cheio de doces, refrigerantes e salgadinhos. Uma linha direta para o
serviço de quarto. Toalhas fofas e camas d'água com travesseiros de penas. Uma
tele¬visão enorme com satélite e Internet banda larga. A varanda tinha sua própria
banheira quente e, de fato, uma máquina de lançar pratos e uma espingarda — dava para
lançar pombos de louça sobre a paisagem de Las Vegas e acertá-los com a espingarda.
Não ntendi como aquilo podia ser permitido, mas achei muito legal.
A vista para a Vegas Boulevard e o deserto era maravilhosa, muito embora eu duvidasse
que teríamos tempo para admirar a paisagem com um quarto como aquele.
— Ah, deuses — disse Annabeth. — Este lugar é...
— Maravilhoso — disse Grover. — Supermaravilhoso.
Havia roupas no armário, e cabiam em mim. Franzi a testa, achando um pouco estranho.
Joguei a mochila de Ares na lata de lixo. Não precisaria mais daquilo. Quando fôssemos
embora, poderia comprar uma nova loja do hotel.
Tomei um banho, o que foi uma sensação ótima depois de uma semana de viagem suja.
Troquei de roupa, comi um saco de salgadinhos, bebi três Cocas e não me sentia tão
bem havia muito tempo. Bem no fundo da cabeça, um probleminha me incomodava. Eu
tivera um sonho, ou coisa assim... Precisava falar com meus amigos. Mas certamente
aquilo podia esperar.
Saí do quarto e vi que Annabeth e Grover também tinham tomado banho e trocado de
roupa. Grover estava comendo batatinhas até se fartar, enquanto Annabeth sintonizava o
National Geographic Channel.
— Todos esses canais — disse a ela —, e você liga no National Geographic. Está
maluca?
— É interessante.
— Eu me sinto bem — disse Grover. — Adoro este lugar.
Sem que ele se desse conta, as asas apareceram nos seus tênis e o suspenderam a trinta
centímetros do chão, depois o desceram de novo.
— Então, o que fazemos agora? — perguntou Annabeth. - Dormimos?
Grover e eu nos entreolhamos e sorrimos. Ambos erguemos os nossos cartões
GranaLótus de plástico verde.
- Hora do recreio — falei.
Não conseguia me lembrar da última vez em que me divertira tanto. Eu vinha de uma
família relativamente pobre. Para nós esbanjar era comer fora no Burger King e alugar
um vídeo. Um hotel cinco estrelas em Vegas? Nem pensar.
Pulei de bungee-jump no saguão cinco ou seis vezes, andei no toboágua, fiz snowboard
na rampa de neve artificial, joguei lasertag e atirador de elite do FBI em realidade
virtual. Vi Grover algumas vezes, indo de jogo em jogo. Ele tinha gostado mesmo
daquela coisa do caçador às avessas — em que os cervos saem e atiram contra os
caipiras. Vi Annabeth jogando trívia e outros jogos de cabeçudos. Havia um Sim
enorme em 3D, no qual você podia construir sua própria cidade e realmente ver os
edifícios holográfico subirem no tabuleiro. Não dei muita importância para esse, mas
Annabeth adorou.
Não sei muito bem quando percebi que algo estava errado.
Provavelmente, foi quando reparei no cara que estava em pé ao meu lado no jogo dos
atiradores de elite virtuais. Tinha cerca de treze anos, eu acho, mas suas roupas eram
esquisitas. Achei que fosse filho de algum dublê do Elvis Presley. Usava jeans boca-desino
e uma camiseta vermelha com enfeites pretos, e o cabelo era cacheado e cheio de
gel, como o de uma garota de New Jersey em noite de reunião de ex-alunos.
Brincamos juntos no jogo de atiradores, e ele disse:
— Joinha, bicho. Estou aqui há duas semanas e os jogos estão cada vez melhores
Joinha, bicho?
Mais tarde, enquanto conversávamos, eu disse que alguma coisa era "irada" e ele me
olhou meio surpreso, como se nunca tivesse ouvido a palavra ser usada daquele jeito
antes.
Disse que seu nome era Darrin, mas assim que comecei a fazer perguntas ele se
aborreceu e fez menção de voltar para a tela do computador.
Eu disse:
— Ei, Darrin?
— O quê?
— Em que ano estamos? Ele franziu a testa para mim.
— No jogo?
— Não. Na vida real. Ele precisou pensar.
— Mil novecentos e setenta e sete.
— Não — falei, começando a ficar um pouco assustado. - De verdade.
— Ei, bicho. Vibrações ruins. Estou no meio de um jogo.
Depois disso ele me ignorou totalmente.
Comecei a falar com as pessoas e descobri que não era fácil.
Elas estavam grudadas na tela da tevê ou no videogame ou no que fosse. Achei um cara
que me disse que era 1985. Outro cara me disse que era 1993. Todos alegavam não estar
ali há muito tempo, alguns dias, algumas semanas no máximo. Realmente não sabiam,
nem se importavam com isso.
Então me ocorreu: havia quanto tempo eu estava ali? Pareciam apenas algumas horas,
mas seriam mesmo?
Tentei lembrar por que estávamos ali. Íamos para Los Angeles. Deveríamos encontrar a
entrada para o Mundo Inferior. Minha mãe... por um momento apavorante, tive
dificuldade de lembrar o nome dela. Sally. Sally Jackson. Eu tinha de encontrá-la.
precisava impedir Hades de desencadear a Terceira Guerra Mundial.
Achei Annabeth ainda construindo sua cidade.
- Vamos – disse a ela. — Precisamos sair daqui.
Nenhuma resposta.
- Annabeth?
Ela ergueu os olhos, aborrecida.
- O quê?
- Escute. O Mundo Inferior. A nossa missão!
- Ora, vamos, Percy. Só mais alguns minutos.
- Annabeth, há gente aqui desde 1977. Crianças que nunca cresceram. Quando você
entra, fica para sempre.
- E dai? — perguntou ela. — Você pode imaginar lugar melhor?
Agarrei o pulso dela e a arranquei do jogo.
- Ei! — ela gritou e me bateu, mas ninguém sequer se incomodou em olhar. Estavam
ocupados demais.
Eu a fiz olhar em meus olhos. Falei:
- Aranhas. Grandes aranhas peludas.
Aquilo mexeu com ela. Sua visão clareou.
- Ah, meus deuses — falou. — Há quanto tempo nós...
- Não sei, mas temos de encontrar Grover.
Saímo à procura dele, e o encontramos ainda jogando Caçador de Cervos Virtual.
- Grover! — gritamos juntos.
Ele disse:
- Morra, ser humano! Morra, pessoa tola e poluente!
- Grover!
Ele apontou a arma de plástico para mim e começou a clicar, como se eu fosse apenas
mais uma imagem na tela.
Olhei para Annabeth e juntos pegamos Grover pelos braços e o arrastamos para longe.
Os tênis voadores despertaram e começaram a puxar as pernas dele na diração oposta,
enquanto ele gritava:
— Não! Acabei de passar de nível! Não!
O mensageiro do Lótus correu até nós.
— E então, estão prontos para os seus cartões platinum?
— Estamos indo embora — disse a ele.
— Que pena — disse ele, e tive a sensação de que ele estava sendo sincero, de que
íamos despedaçar seu coração partindo. — Acabamos de anexar um novo andar cheio
de jogos para portadores de cartões platinum.
Ele mostrou os cartões, e eu queria um. Sabia que, se pegasse jamais iria embora.
Ficaria ali, feliz para sempre, jogando para sempre, e logo esqueceria minha mãe, e
minha missão, e talvez até meu próprio nome. Ficaria jogando Atirador Virtual com o
bicho joinha Darrin Discoteca para sempre.
Grover estendeu a mão para o cartão, mas Annabeth puxou o braço dele e disse:
— Não, obrigada.
Fomos andando em direção à porta, e quando fizemos isso, o cheiro de comida e os sons
dos jogos pareceram ficar mais e mais convidativos. Pensei em nosso quarto lá em
cima. Podíamos só passar a noite, dormir em uma cama de verdade para variar...
Então disparamos pelas portas do Cassino Lótus e saímos correndo pela calçada. A
sensação era de meio de tarde, mais ou menos a mesma hora que havíamos entrado no
cassino, mas algo estava errado. O tempo mudara completamente. Estava tempestuoso,
com raios de calor relampejando no deserto.
A mochila de Ares estava pendurada em meu ombro, o que era estranho, pois eu tinha
certeza de que a jogara na lata de lixo do quarto 4001. Mas naquele momento eu tinha
outros problemas com que me preocupar.
Corri para o jornal mais próximo e li o ano primeiro. Graças aos deuses, era o mesmo
ano de quando entramos. Então reparei na data: 20 de junho.
Tínhamos ficado no Cassino Lótus por cinco dias.
Restáva-nos só um dia até o solstício de verão. Um dia para completar nossa missão.

DEZESSETE
Vamos comprar camas d’água.

A idéia foi de Annabeth.
Ela nos meteu no banco de trás de um táxi de Las Vegas como se realmente tivéssemos
dinheiro, e disse ao motorista:
— Los Angeles, por favor.
O taxista mascou seu charuto e nos mediu com os olhos.
— São quatrocentos e oitenta e dois quilômetros. Para isso, vocês têm de pagar
adiantado.
— Aceita cartão de débito de cassinos? — perguntou Annabeth.
Ele deu de ombros.
— Alguns. Funcionam como os cartões de crédito. Preciso passar o cartão primeiro.
Annabeth estendeu o cartão GranaLótus verde para ele.
O motorista olhou com ar desconfiado.
— Passe o cartão — convidou Annabeth.
Ele fez isso.
O taxímetro começou a crepitar. Luzes se acenderam. Por fim, um símbolo do infinito
apareceu ao lado do cifrão.
O charuto caiu da boca do motorista. Ele olhou para nós de olhos arregalados.
- Em que lugar de Los Angeles... ahn... Sua Alteza?
- O píer Santa Monica. — Annabeth endireitou um pouco o corpo. Dava para perceber
que ela gostara daquilo de "Sua Alteza”. – Leve-nos depressa, e pode ficar com o troco.
Talvez ela não devesse ter dito aquilo.
O velocímetro do táxi não caiu nem por um instante abaixo de cento e sessenta ao longo
de todo o percurso pelo deserto de Mojave.

*****

Na estrada, tivemos tempo à vontade para conversar. Contei a Annabeth e Grover sobre
meu último sonho, mas, quanto mais tentava me lembrar, mais imprecisos foram
ficando os detalhes. O Cassino Lótus parecia ter causado um curto-circuito na minha
memória. Eu não conseguia me lembrar de como era o som da voz do servo, embora
tivesse certeza de que era de alguém que eu conhecia. O servo chamara o monstro no
abismo de algum outro nome além de "meu senhor"... Algum nome ou título especial...
- O Silencioso? — sugeriu Annabeth. — O Rico? Ambos são apelidos de Hades.
- Talvez... — falei —, embora nenhum dos dois parecesse muito certo.
- A sala do trono parece ser a de Hades — disse Grover. - É assim que costumam
descrevê-la.
Eu sacudi a cabeça.
- Alguma coisa está errada. A sala do trono não era a parte principal do meu sonho. E
aquela voz no abismo... Eu não sei. Simplesmente não parecia a voz de um deus.
Os olhos de Annabeth se arregalaram.
- O que foi? — perguntei.
— Ah... nada. Eu estava só... Não, tem de ser Hades. Talvez ele tenha mandado esse
ladrão, essa pessoa invisível, para pegar o raio-mestre, e algo tenha dado errado...
— Tipo o quê?
— Eu... eu não sei — disse ela. — Mas se ele roubou o símbolo do poder de Zeus do
Olimpo, e os deuses o estavam caçando, quer dizer, uma porção de coisas poderia dar
errado, ou ele o perdeu de algum modo. De qualquer jeito, não conseguiu levá-lo até
Hades. Foi isso o que a voz disse no seu sonho, certo? O cara fracassou. Isso explicaria
o que as Fúrias estavam procurando quando vieram atrás de nós no ônibus. Talvez
achem que recuperamos o raio.
Não sabia muito bem o que estava errado com ela. Parecia pálida.
— Mas se eu já tivesse recuperado o raio — falei —, por que estaria viajando para o
Mundo Inferior?
— Para ameaçar Hades — sugeriu Grover. — Para suborná-lo ou chantageá-lo para
devolver sua mãe.
Eu assobiei.
— Você tem pensamentos perversos para um bode.
— Ora, obrigado.
— Mas a coisa no abismo disse que estava esperando dois — falei. — Se o raio-mestre
é um, qual é o outro?
Grover sacudiu a cabeça, claramente perplexo.
Annabeth olhava para mim como se soubesse qual seria a minha próxima pergunta e
estivesse desejando silenciosamente que eu não a fizesse.
— Você tem idéia do que poderia estar naquele abismo tem? — perguntei a ela. —
Quer dizer, se não for Hades.
— Percy... não vamos falar sobre isso. Porque se não for Hades... Não. Tem de ser
Hades.
A desolação passava por nós. Passamos por uma placa que dizia DIVISA DO ESTADO
DA CALIFÓRNIA, VINTE QUILÔMETROS.
Tive a sensação de que estava deixando de notar alguma informação simples e crucial.
Era como quando eu olhava para uma palavra que deveria conhecer, mas ela não fazia
sentido porque uma ou duas letras estavam flutuando fora do lugar. Quanto mais eu
pensava sobre minha missão, mais certeza tinha de que confrontar Hades não era a
verdadeira resposta. Havia algo mais acontecendo, algo ainda mais perigoso.
O problema era: estávamos disparados na direção do Mundo Inferior a cento e sessenta
quilômetros por hora, apostando que que Hades tinha o raio-mestre. Se chegássemos lá
e descobríssemos que estávamos errados, não teríamos tempo para corrigir o erro. O
prazo do solstício passaria e a guerra começaria.
- A resposta está no Mundo Inferior — assegurou Annabeth. — Você viu os espíritos
dos mortos, Percy. Só há um lugar onde isso é possível. Estamos fazendo a coisa certa.
Ela tentou levantar a nossa moral sugerindo estratégias engenhosas para entrar na Terra
dos Mortos, mas meu coração não estava naquilo. O fato é que havia muitos fatores
desconhecidos. Era como estudar loucamente para uma prova sem saber qual é o
assunto. E, acredite-me, isso eu já fizera muitas vezes.
O táxi ia a toda para oeste. Cada rajada de vento no Vale da Morte parecia um espírito
dos mortos. Cada vez que os freios chiavam atrás de um caminhão de dezoito rodas,
aquilo me lembrava a voz reptiliana de Equidna.

*****

Ao pôr-do-sol, o táxi nos deixou na praia de Santa Monica. Era exatamente como as
praias de Los Angeles que se vêem nos filmes, só que o cheiro era pior. Havia
carrosséis de parque de diversão ao longo do píer, palmeiras nas calçadas, sem-teto
dormindo nas dunas e surfistas esperando a onda perfeita,
Grover, Annabeth e eu caminhamos até a beira-mar.
— E agora? — perguntou Annabeth.
O Pacífico estava ficando dourado ao sol poente. Pensei em quanto tempo se passara
desde que estivera na praia de Montauk, do outro lado do país, olhando para um mar
diferente.
Como podia haver um deus capaz de controlar aquilo tudo? O que meu professor de
ciências dizia — dois terços da superfície da Terra são cobertos de água? Como eu
podia ser filho de alguém tão poderoso?
Entrei na arrebentação.
— Percy? — disse Annabeth. — O que está fazendo?
Continuei andando, até a água chegar à minha cintura, depois ao peito.
Ela gritou para mim:
— Tem idéia de quanto essa água está poluída? Há todos os tipos de coisas tóxicas...
Foi quando minha cabeça submergiu.
De início, prendi a respiração. É difícil inalar água de propósito. Por fim não pude mais
aguentar. Inspirei. De fato, eu conseguia respirar normalmente.
Desci andando até os bancos de areia. Não deveria conseguie enxergar naquelas águas
escuras, mas de algum modo podia dizer onde tudo estava. Conseguia sentir a textura
ondulada do fundo. Podia distinguir colônias de estrelas-do-mar pontilhando os bancos
de areia. Podia até ver as correntes, quentes e frias, rodopiando juntas.
Senti algo roçando a minha perna. Olhei para baixo e pulei para fora da água como um
míssil. Deslizando ao meu lado, havia um tubarão-sombreiro de um metro e meio de
comprimento.
Mas ele não estava atacando, apenas esfregava o nariz em mim. Estava nos meus
calcanhares como um cachorro. Vacilante, toquei sua barbatana dorsal. Ele resistiu um
pouco, como se estivesse me convidando a segurar mais forte. Agarrei a barbatana com
as duas mãos. Ele partiu, me puxando. O tubarão me arrastou para o fundo, para a
escuridão, e me largou à beira do oceano propriamente dito, onde o banco de areia
despencava em um imenso abismo. Era como estar na beira do Grand Canyon à meianoite,
sem conseguir ver muita coisa mas sabendo que o vazio estava bem ali.
A superfície tremeluzia a uns cinquenta metros. Eu sabia que devia ter sido esmagado
pela pressão. Mas, por outro lado, o natural era que também não respirasse. Fiquei
imaginando se haveria um limite até o qual eu poderia avançar, e se era possível descer
direto até o fundo do Pacífico.
Então vi algo reluzindo na escuridão abaixo, ficando maior e mais brilhante à medida
que subia na minha direção. Uma voz de mulher, como a da minha mãe, chamou:
- Percy Jackson.
Quando ela chegou mais perto, sua forma ficou mais clara. Tinha cabelos pretos soltos e
usava um vestido de seda verde. A luz tremeluzia a seu redor, e os olhos eram tão
perturbadoramente bonitos que mal notei o cavalo-marinho do tamanho de um corcel
em que ela estava montando.
Ela desmontou. O cavalo-mannho e o tubarão-sombreiro se afastaram rapidamente e
começaram uma brincadeira que parecia esconde-esconde. A dama submarina sorriu
para mim.
- Você chegou longe, Percy Jackson. Muito bem!
Eu não sabia muito bem o que fazer, então me curvei.
— Você é a mulher que falou comigo no rio Mississipi.
— Sim, criança. Eu sou uma nereida, um espírito do mar. Não foi fácil aparecer tão
longe, rio acima, mas as náiades, minhas primas da água doce, ajudaram a sustentar
minha força vital. Elas honram o Senhor Poseidon, embora não sirvam em sua corte.
— E... você serve na corte de Poseidon?
Ela assentiu.
— Muitos anos se passaram desde que nasceu uma criança do Deus do Mar. Nós o
observamos com grande interesse.
De repente me lembrei dos rostos nas ondas perto da praia de Montauk quando eu era
pequeno, reflexos de mulheres sorridentes. Como com tantas coisas estranhas em minha
vida, nunca havia pensado muito naquilo.
— Se meu pai se interessa tanto por mim — falei —, por que não está aqui? Por que
não fala comigo?
Uma corrente fria subiu das profundezas.
— Não julgue o Senhor do Mar tão duramente — disse-me a nereida. — Ele está
prestes a lutar em uma guerra indesejada. Tem muito com que ocupar seu tempo. Além
disso, está proibido de ajudá-lo diretamente. Os deuses não podem demonstrar tal
favoritismo.
— Mesmo com seus próprios filhos?
— Especialmente com estes. Os deuses só podem agir por influência indireta. E por isso
que lhe dou um aviso, e um presente.
Ela estendeu a mão aberta e três pérolas brancas brilharam.
— Sei de sua jornada aos domínios de Hades — disse. - Poucos mortais já fizeram isso
e sobreviveram: Orfeu, que possuía grande talento musical; Hércules, que tinha grande
força; Houdini, que podia escapar até mesmo das profundezas do Tártaro. Você tem
esses talentos?
- Ahn... não, senhora.
- Ah, mas você tem algo mais, Percy. Possui dons que esta apenas começando a
descobrir. Os oráculos vaticinaram um grande e extraordinário futuro para você, desde
que sobreviva até a idade adulta. Poseidon não aceitará que morra antes do tempo,
Portanto pegue estas pérolas, e quando estiver em apuro, esmague elas a seus pés.
- O que vai acontecer?
- Depende do apuro. Mas lembre: o que pertence ao mar sempre retornará ao mar.
- E o aviso?
Os olhos dela brilharam com uma luz verde.
- Faça o que seu coração manda, ou perderá tudo. Hades se alimenta de dúvidas e
desesperança. Ele o enganará se puder, o fará desconfiar de seu próprio julgamento.
Depois que estiver nos dompinios dele, Hades jamais permitirá voluntariamente que
você parta. Mantenha a fé. Boa sorte, Percy Jackson.
Ela chamou seu cavalo-marinho e partiu para o vazio.
— Espere! — gritei. — No rio, você disse para não confiar em presentes. Que
presentes?
— Adeus, jovem herói — gritou ela de volta, a voz desaparecendo nas profundezas. —
Você deve ouvir seu coração. — Ela se transformou em um ponto verde luminoso e
depois desapareceu. Eu quis segui-la para as profundezas escuras. Quis ver a corte de
Poseidon. Mas ergui os olhos para o crepúsculo que se transformava em noite na
superfície. Meus amigos estavam esperando. Tínhamos tão pouco tempo...
Tomei impulso para cima em direção à arrebentação.
Quando cheguei à praia, minhas roupas secaram instantaneamente. Contei a Grover e a
Annabeth o que acontecera, e mostrei as pérolas a eles.
Annabeth fez uma careta.
— Nenhum presente vem sem um preço.
— Elas foram de graça.
— Não. — Ela sacudiu a cabeça. — "Não existe almoço grátis." É um antigo ditado
grego que se aplica perfeiramente hoje em dia. Haverá um preço. Aguarde.
Com esse pensamento feliz, demos as costas para o mar.

*****

Tomamos o ônibus para West Hollywood com um pouco dos trocados que sobraram na
mochila de Ares. Mostrei ao motorista o recibo com o endereço do Mundo Inferior que
eu pegara no Empório de Anões de Jardim da Tia Eme, mas ele nunca ouvira falar nos
Estúdios de Gravação M.A.C. — Morto ao Chegar.
— Você me lembra alguém que vi na tevê — falou, ator infantil, ou coisa assim?
— Ahn... eu sou dublê... de uma porção de atores infantis.
— Ah! Está explicado.
Agradeci e desci rapidamente na parada seguinte.
Perambulamos por quilômetros à procura do M.A.C. Ninguém parecia saber onde era.
Não constava da lista telefônica.
Duas vezes nos esquivamos para becos, para evitar viaturas de polícia.
Fiquei paralisado na frente da vitrine de uma loja de eletrodomésticos porque uma
televisão mostrava uma entrevista com alguém que pareceu muito familiar — meu
padrasto, Gabe Cheiroso. Ele estava falando com Barbara Walters — parecendo uma
grande celebridade. Ela o entrevistava em nosso apartamento, no meio de um jogo de
pôquer, e havia uma jovem loira sentada ao lado dele, afagando-lhe a mão.
Uma lágrima falsa brilhou na bochecha dele enquanto ele dizia:
- Honestamente, sra. Walters, se não fosse aqui pela Fofinh, minha conselheira nas
horas tristes, eu estaria um caco. Meu enteado levou tudo o que me era caro... Minha
esposa... meu Camaro... EU... desculpe. Sinto dificuldade em falar sobre isso.
- Ai está, América. — Barbara Walters voltou-se para a câmera. - Um homem
destroçado. Um menino adolescente com sérios problemas. Deixem-me mostrar agora a
última foto desse problemático jovem fugitivo, tirada há uma semana em Denver.
A tela cortou para uma foto granulada em que eu, Annabeth e Grover do lado de fora do
restaurante Colorado estávamos falando com Ares.
- Quem são as outras crianças nesta foto? — perguntou Barbara Walters com
dramaticidade. — Quem é o homem que está com elas? Percy Jackson é um
delinquente, um terrorista ou uma vítima da lavagem cerebral de uma nova e
assustadora seita? Quando voltarmos, vamos conversar com uma renomada psicóloga
infantil. Fique conosco, América.
- Vamos — disse-me Grover. Ele me arrastou para longe antes que eu abrisse um
buraco na vitrine da loja de eletrodomésticos com um murro.
Anoiteceu, e personagens de aparência esfomeada começaram a sair para as ruas para
representar seus papéis. Não me entendam mal. Sou nova-iorqumo. Não me assusto
facilmente. Mas estar em Los Angeles era bem diferente de estar em Nova York. Onde
eu morava tudo parecia perto. Embora fosse uma grande cidade, era possível se chegar a
qualquer lugar sem se perder. O padrão das ruas e o metrô faziam sentido. Havia um
critério de funcionamento das coisas. Desde que não fosse bobo, um garoto podia se
sentir seguro lá.
Los Angeles não era assim. Era espalhada, caótica, ficava difícil se locomover. Fazia
lembrar Ares. Para Los Angeles, não bastava ser grande; era preciso também provar-se
grande sendo barulhenta, estranha e difícil de navegar. Eu não sabia como iríamos
encontrar a entrada para o Mundo Inferior até o dia seguinte, o solstício de verão.
Passamos por gangues, vagabundos e camelôs, que nos olhavam como se tentassem
avaliar se nos atacar seria um bom negócio.
Quando passamos apressados pela entrada de um beco, uma voz disse no escuro:
— Eí, você.
Como um idiota, parei.
Antes que nos déssemos conta, estávamos cercados, Uma gangue de garotos estava ao
nosso redor. Seis ao todo — garotos brancos com roupas caras e expressão perversa.
Como os garotos da Academia Yancy; moleques ricos brincando de ser malvados.
Por instinto, destampei Contracorrente.
Quando a espada apareceu do nada, eles recuaram, mas seu líder ou era muito estúpido
ou muito valente, porque continuou avançando em minha direção com um canivete de
mola.
Cometi o erro de desferir um golpe.
O garoto deu um grito agudo. Mas ele devia ser cem por cento mortal, porque a lâmina
passou inofensiva por seu peito. Ele olhou para baixo.
— Mas que...
Calculei que teria mais ou menos três segundos antes que o choque dele se
transformasse em raiva.
— Corram! — gritei para Annabeth e Grover.
Empurramos dois deles para fora do caminho e dísparamos pela rua, sem saber aonde
estávamos indo. Dobramos uma esquina numa curva bem fechada.
— Ali! — gritou Annabeth.
Somente uma loja do quarteirão parecia aberta, as vitrines brilhando em néon. O letreiro
acima da porta dizia algo como LACIÁPO ADS MASCA Á’GDUS OS SCRATO.
- Palácio das Camas d'Água do Crosta? — traduziu Grover.
Não parecia o tipo de lugar onde eu entraria a não ser em uma emergência, mas sem
dúvida era essa a situação.
Irrompemos pelas portas, corremos para trás de uma cama dágua e nos abaixamos. Uma
fração de segundo depois, a gangue de garotos passou correndo do lado de fora.
- Acho que os despistamos — ofegou Grover.
Uma na voz atrás de nós retumbou:
- Despistaram quem?
Nos três pulamos.
Logo atrás, em pé, estava um cara que parecia um tiranossauro em trajes de passeio.
Tinha pelo menos dois metros e tanto de altura, completamente careca. A pele era
cinzenta e curtida como couro, olhos de pálpebras grossas e sorriso frio, reptiliano.
Aproximava-se lentamente, mas tive a sensação de que poderia se mover depressa se
precisasse.
Seu traje parecia saído do Cassino Lótus. Era dos gloriosos anos 70. A camisa era de
seda estampada, desabotoada até a metade do peito sem pêlos. As lapelas do casaco de
veludo eram largas como pistas de pouso. Eram tantas correntes de prata no pescoço
que nem consegui contar.
- Eu sou o Crosta — disse com um sorriso amarelo de tanto tártaro.
Resisti ao impulso de dizer, Sim, está na cara.
- Desculpe a invasão — falei. — Estamos só, ahn, dando uma olhada.
Você quer dizer, se escondendo daqueles garotos mal-encarados — resmungou ele. —
Eles ficam vadiando por aqui todas as noites. Entra uma porção de gente na loja, graças
a eles. Digam, querem ver uma cama d'água?
Eu já ia dizer Não, obrigado quando ele pôs uma pata enorme no meu ombro e me
empurrou mais para dentro do salão da loja.
Havia todos os tipos de camas d'água que você possa imaginar: diferentes tipos de
madeira, lençóis de padronagem variadas; queen-size, king-size, gigantescas.
— Este é meu modelo de maior sucesso. — Crosta passou as mãos orgulhosamente
sobre uma cama coberta com cetim preto, com lâmpadas de lava embutidas na
cabeceira. O colchão vibrava, e a coisa ficava parecendo gelatina de petróleo.
— Massagem de um milhão mãos — disse Crosta. – Vão em frente, experimentem.
Tirem uma soneca, mandem ver. Eu não importo. Tem pouco movimento hoje.
— Ahn — falei. — Não acho que...
— Massagem de urn milhão de mãos! — exclamou Grover, e mergulhou na cama. —
Ah, gente! Isso é legal.
— Hummm — disse Crosta, coçando o seu queixo de couro. — Quase, quase.
— Quase o quê? — perguntei.
Ele olhou para Annabeth.
— Faça-me um favor e experimente aquela lá, meu bem. Pode servir.
Annabeth disse:
— Mas o que...
Ele lhe deu algumas palmadinhas tranqüilizadoras no ombro e a levou para o modelo
Safári Deluxe, com leões de teca entalhados na armação e um acolchoado de leopardo.
Como Annabeth não quis deitar, Crosta a empurrou.
— Ei! — protestou ela.
Crosta estalou do dedos.
- Ergo!
Cordas pularam das laterais da cama e envolveram Annabeth como chicotes,
prendendo-a ao colchão.
Grover tentou se levantar, mas cordas pularam também de sua cama de cetim preto, e o
prenderam.
- N-não é l-l-legal! — gritou ele, a voz vibrando com a massagem de um milhão de
mãos. — N-n-nada l-l-legal!
O gigante olhou para Annabeth, voltou-se para mim e arreganhou um sorriso.
- Quase. Droga.
Tentei me afastar, mas a mão dele se arremessou e me agarrou pela nuca.
- Opa, garoto. Não se preocupe. Vamos achar uma para você em um segundo.
- Solte meus amigos.
- Ah, certamente, eu vou. Mas vou ter de ajustá-los primeiro.
- O que quer dizer?
- Todas as camas têm exatamente um metro e oitenta, sabia? Seus amigos são baixinhos
demais. Tenho de ajustá-los para servir nas camas.
Annabeth e Grover continuaram se debatendo.
- Não tolero medidas imperfeitas — resmungou Crosta. – Ergo!
Um novo conjunto de cordas pulou dos pés e da cabeceira da cama, enrolando-se nos
tornozelos e axilas de Grover e Annabeth. As cordas começaram a se esticar, puxando
meus amigos pelas duas extremidades.
- Não se preocupe — disse Crosta para mim. — É um servicinho de estiramento. Talvez
uns oito centímetros a mais nas colunas deles. Podem até sobreviver. Agora, por que
não achamos uma cama de que você goste, heim?
— Percy! — gritou Grover.
Minha cabeça estava a mil. Sabia que não conseguiria dominar sozinho aquele gigante
vendedor de camas d'água. Ele quebraria meu pescoço antes mesmo que eu pegasse a
espada.
— Seu nome de verdade não é Crosta, é? — perguntei.
— Na certidão é Procrusto — admitiu ele.
— O Esticador.
Lembrei-me da história: o gigante que tentara matar Teseu excesso de hospitalidade a
caminho de Atenas.
— Sim — disse o vendedor. — Mas quem é capaz de pronunciar Procrusto? É ruim
para os negócios. Agora, "Crosta' um pode dizer.
— Tem razão. Soa muito bem. Os olhos dele se iluminaram.
— Acha mesmo?
— Ah, sem dúvida — disse eu. — E o acabamento dessas camas? Fabuloso!
Ele abriu um enorme sorriso, mas os dedos não afrouxaram em meu pescoço.
— Digo isso aos meus fregueses. Sempre. Ninguém se preocupa em examinar o
acabamento. Quantas lâmpadas de lava embutidas você já viu?
— Não muitas.
— Claro!
— Percy! — gritou Annabeth. — O que está fazendo?
— Não ligue para ela — disse eu a Procrusto. — Ela impossível.
O gigante riu.
- Todos os meus fregueses são. Nunca têm um metro e oitenta exato. Muito
desatencioso. E depois se queixam do ajuste.
- O que você faz quando eles têm mais de um metro e oitenta?
- Ora, isso acontece sempre. É um ajuste simples.
Ele soltou meu pescoço, mas antes que eu pudesse reagir esticou o braço para trás de
um balcão próximo e de lá tirou um enorme machado de bronze com lâmina dupla. Ele
disse:
- É só centralizar o freguês o melhor possível e aparar o que estiver sobrando nas duas
extremidades.
- Ah — falei, engolindo em seco. — Sensato.
- Estou tão satisfeito em cruzar com um freguês inteligente!
Agora as cordas estavam realmente esticando meus amigos. Annabeth estava ficando
pálida. Grover fazia sons gorgolejantes, como um ganso estrangulado.
- Então, Crosta... — falei, tentando manter a voz despreocupada. Olhei de relance para a
cama Lua-de-Mel Especial, em forma de coração. — Esta aqui tem mesmo
estabilizadores dinâmicos para compensar o movimento ondulatório?
- É claro. Experimente.
Sim, talvez eu experimente. Mas funcionaria também para um cara grande como você?
Sem nenhuma ondulação?
- Garantido.
- Não acredito.
— Pode acreditar.
— Mostre.
Ele sentou com vontade na cama e deu uma palmadmha no colchão.
— Nenhuma ondulação. Viu?
Estalei os dedos.
- Ergo!
As cordas saltaram em volta de Crosta e o achataram no colchão.
— Ei! — gritou ele.
— Centralizar bem — falei.
As cordas se reajustaram ao meu comando. A cabeça inteira de Crosta ficou para fora da
cabeceira. Os pés ficaram para fora na outra ponta.
— Não! — disse ele. — Espere! E só uma demonstração.
Destampei Contracorrente.
— Alguns ajustezinhos...
Não tive nenhum escrúpulo quanto ao que estava prestes a fazer. Se Crosta não fosse
humano, eu, de qualquer jeito, não poderia feri-lo. Se fosse um monstro, merecia ser
transformado em pó por algum tempo.
— Você negocia duro — disse-me ele. — Dou-lhe trinta por cento de desconto nos
modelos em exposição!
— Acho que vou começar com a parte de cima. — Ergui a espada.
— Sem entrada! Financiamento em seis meses sem juros!
Desci a espada. Crosta parou de fazer ofertas.
Cortei as cordas nas outras camas. Annabeth e Grover puseram-se em pé, gemendo e se
encolhendo e me xingando muito.
— Vocês parecem mais altos — falei.
— Muito engraçado — disse Annabeth. — Da próxima vez seja mais rápido.
Olhei para o quadro de avisos atrás do balcão de Crosta. Havia uma propaganda do
Serviço de Entregas Hermes e outra do Guia Completo dos Monstros na Área de Los
Angeles — "As únicas Páginas Amarelas Monstruosas de que você vai precisar!".
Embaixo daquilo, um panfleto em laranja vivo dos Estúdios de Gravação M.A.C.
oferecendo comissões por almas de heróis. "Estamos sempre a procura de de novos
talentos!" O endereço estava logo abaixo, com um mapa.
- Vamos — disse a meus amigos.
- Espere só um minuto — queixou-se Grover. — Fomos praticamente esticados até a
morte!
- Então estão preparados para o Mundo Inferior — falei. - Fica apenas uma quadra
daqui.

DEZOITO
Annabeth usa a aula de adestramento.

Estávamos nas sombras da Valência Boulevard, olhando para as letras douradas
gravadas no mármore negro: ESTÚDIOS DE GRAVAÇÃO M.A.C.
Embaixo, impresso nas portas de vidro, PROIBIDA A ENTRADA DE ADVOGADOS,
VAGABUNDOS E VIVENTES.
Já era quase meia-noite, mas o saguão estava iluminado e cheio de gente. Atrás do
balcão da segurança estava sentado um guarda de aparência agressiva, com óculos
escuros e um fone de ouvidos.
Virei-me para meus amigos.
— Certo. Vocês se lembram do plano.
— O plano — Grover engoliu seco. — Isso. Adoro o plano.
Annabeth disse:
— O que vai acontecer se o plano não funcionar?
— Sem pensamentos negativos.
— Certo — disse ela. — Estamos entrando na Terra dos Mortos e eu não devo ter
pensamentos negativos.
Tirei as pérolas do bolso, as três esferas cor de leite que a nereida me dera em Santa
Monica. Elas não pareciam un recurso para o caso de algo dar errado.
Annabeth pôs a mão em meu ombro.
- Desculpe, Percy. Você tem razão, vamos conseguir. Vai dar tudo certo.
Ela deu uma cutucada em Grover.
- Ah, está certo! — concordou ele. — Chegamos ate aqui. Vamos encontrar o raiomestre
e salvar sua mãe. Sem problemas.
OIhei para os dois e me senti realmente grato. Alguns minutos antes, eu quase os tinha
feito ser esticados até a morte em camas d’água de luxo, e agora eles tentavam bancar
os corajosos por minha causa, tentavam fazer com que me sentisse melhor.
Enfiei as pérolas de volta no bolso.
- Vamos chutar alguns traseiros no Mundo Inferior.
Entramos no saguão do M.A.C.
Alto-falantes embutidos tocavam uma música ambiente suave. O carpete e as paredes
eram cinza-chumbo. Cactos cresciam nos cantos como mãos de esqueletos. Os móveis
eram de couro preto, e todos os assentos estavam ocupados. Havia gente sentada em
sofás, gente em pé, gente olhando pela janela ou aguardando o elevador. Ninguém se
mexia, nem falava, não faziam nada. Com o canto do olho, eu podia vê-los muito bem,
mas, se me concentrasse em qualquer um em particular, eles começavam a parecer...
transparentes. Dava para ver através dos seus corpos.
O balcão da segurança ficava em cima de um degrau, portanto tínhamos de olhar para o
alto para falar com o guarda.
Ele era alto e elegante, com pele na cor de chocolate e cabelo tingido de loiro, cortado
em estilo militar. Usava armação de tartaruga e um terno de seda italiano que
combinava com o cabelo. Uma rosa negra estava presa à lapela, embaixo de um crachá
de prata.
Li o nome no crachá e olhei para ele perplexo.
- Seu nome é Quíron?
Ele se inclinou por cima da mesa. Não consegui ver nada em seus óculos exceto meu
próprio reflexo, mas seu sorriso era doce e frio, como o de uma jibóia exatamente antes
de devorar você.
— Que rapaz mais engraçadinho. — Ele tinha um sotaque estranho... inglês, talvez, mas
como se tivesse aprendido inglês como segunda língua. — Diga-me, parceiro, eu pareço
um centauro?
— N-não.
— Senhor — acrescentou ele suavemente.
— Senhor — falei.
Ele segurou o crachá e correu o dedo embaixo das letras.
— Consegue ler isto, parceiro? Aqui diz C-A-R-O-N-T-E. Diga comigo: CA-RON-TE.
— Caronte.
— Fantástico! Agora: senhor Caronte.
— Senhor Caronte — disse eu.
— Muito bem. — Ele se recostou. — Detesto ser confundido com aquele homemcavalo.
E agora, como posso ajudá-los, pequenos defuntos?
A pergunta dele me acertou o estômago como uma bola de beisebol. Olhei para
Annabeth em busca de ajuda.
— Queremos ir para o Mundo Inferior — disse ela.
A boca de Caronte repuxou-se.
— Bem, isso é revigorante.
— É mesmo? — perguntou ela.
— Direto e honesto. Sem gritos. Sem "Deve haver algum engano, sr. Caronte". — Ele
nos olhou de cima a baixo. – Então, como vocês morreram?
Cutuquei Grover.
— Ah — disse ele. — Ahn... afogados... na banheira.
— Os três? — perguntou Caronte.
Nos assentimos.
- Que banheira grande. — Caronte pareceu levemente impressionado. — Suponho que
vocês não têm moedas para passagem. Com adultos, vocês sabem, eu poderia debitar no
cartão de crédito, ou acrescentar o preço da travessia na sua última conta de telefone.
Mas com crianças... infelizmente, vocês nunca morrem preparadas. Acho que terão de
ficar sentados por alguns séculos.
- Ah, mas nós temos moedas. — Pus três dracmas de ouro sobre o balcão, parte da
provisão que eu encontrara na mesa do escritório de Crosta.
- Ora vejam... — Caronte umedeceu os lábios. — Dracmas de verdade. Não vejo uma
dessas faz...
Seus dedos pairaram avidamente sobre as moedas.
Estávamos muito perto.
Então Caronte me olhou. O olhar frio atrás dos óculos pareceu abrir um buraco em meu
peito.
- Mas você não conseguiu ler meu nome direito. Você é disléxico, rapaz?
- Não. Sou um morto.
Caronte inclinou-se para a frente e deu uma cheirada.
- Você não está morto. Eu devia saber. É um filhote de deus.
- Temos de chegar ao Mundo Inferior — insisti.
Caronte rosnou no fundo da garganta.
No mesmo instante, todas as pessoas na sala de espera se levantaram e começaram a
andar de um lado para outro, agitadas, acendendo cigarros, passando as mãos pelos
cabelos ou olhando para os relógios de pulso.
- Vão embora enquanto podem — disse-nos Caronte. — Vou ficar com estas moedas e
esquecer que os vi.
Ele começou a esticar a mão para as moedas, mas eu as puxei de volta.
— Sem serviço, sem gorjeta. —Tentei parecer mais valente do que me sentia.
Caronte rosnou de novo — um som profundo, de gelar sangue. Os espíritos dos mortos
começaram a bater nas portas do elevador.
— É uma pena — suspirei. —Tínhamos mais para oferecer.
Ergui a sacola inteira com o tesouro de Crosta. Tirei um punhado de dracmas e deixei as
moedas escorregarem entre os dedos.
O rosnado de Caronte se transformou em algo mais parecido com um ronronar de leão.
— Acha que pode me comprar, filhote de deus? Ahn... curiosidade, quanto você tem aí?
— Muito — falei. — Aposto que Hades não lhe paga o bastante por um trabalho tão
duro.
— Ah, você não sabe nem da metade. Iria gostar de ser babá desses espíritos o dia
inteiro? Sempre com "Por favor, não me deixe ficar morto" ou "Por favor, deixe-me
atravessar de graça”. Não tenho um aumento há três mil anos. Acha que ternos como
este custam barato?
— Você merece coisa melhor — concordei. — Algum reconhecimento. Respeito. Bom
salário.
A cada palavra, eu empilhava outra moeda de ouro no balcão.
Caronte baixou os olhos para o paletó de seda italiana, como se estivesse se imaginando
com algo ainda melhor.
— Devo dizer, rapaz, que a gente está começando a falar a mesma língua. Um pouco.
Empilhei mais algumas moedas.
— Eu poderia mencionar um aumento de salário quando estiver falando com Hades.
Ele suspirou.
— Bem, o barco já está quase cheio. Poderia muito bem encaixar vocês três e zarpar.
Ele se pôs de pé, pegou nosso dinheiro e disse:
— Venham comigo.
Abrimos caminho entre a multidão de espíritos que aguarda¬vam, os quais começaram
a puxar nossas roupas como o vento, ds vozes sussurrando coisas que eu não podia
distinguir. Caronte empurrou-os do caminho, resmungando:
— Parasitas.
Ele nos escoltou até o elevador, que já estava apinhado de algumas dos mortos, todos
segurando um cartão de embarque verde. Caronte agarrou dois espíritos que tentavam
entrar conosco e os empurrou de volta para o saguão.
— Muito bem. Agora, ninguém comece a ter idéias enquanto eu estiver fora —
anunciou ele para a sala de espera. — E se alguém tirar minha estação de música de
sintonia novamente, farei vocês ficarem aqui por outro milénio. Entendido?
Ele fechou as portas. Enfiou um cartão-chave em uma fenda no painel do elevador e
começamos a descer.
- O que acontece com os espíritos que ficam esperando no saguão? — perguntou
Annabeth.
- Nada — disse Caronte.
- Por quanto tempo?
- Para sempre, ou até eu me sentir generoso.
- Ah — disse ela. — Isso é... justo.
Caronte ergueu uma sobrancelha.
— Quem disse que a morte era justa, mocinha? Espere até chegar a sua vez. Você vai
morrer em pouco tempo, no lugar está indo.
— Vamos sair vivos — falei.
— Ah.
Tive de repente uma sensação de vertigem. Não estávamos mais indo para baixo, mas
para a frente. O ar ficou enevoado. Os espíritos à minha volta começaram a mudar de
forma. Suas roupas modernas tremiam e se transformavam em mantos cinzentos com
capuz. O piso do elevador começou a oscilar.
Pisquei com força. Quando abri os olhos, o terno creme italiano de Caronte fora
substituído por um longo manto negro. Seus óculos de tartaruga haviam desaparecido.
Onde deviam estar os olhos havia órbitas vazias — como os olhos de Ares, só que os de
Caronte eram totalmente escuros, repletos de noite, trevas e desespero.
Ele me viu olhando e disse:
— O quê?
— Nada — consegui dizer.
Achei que ele estivesse sorrindo, mas não era isso. A pele de seu rosto estava ficando
transparente, deixando que eu visse até o crânio.
O chão continuou oscilando.
Grover disse:
— Acho que estou ficando enjoado.
Quando pisquei de novo, o elevador não era mais um elevador. Estávamos dentro de
uma barcaça de madeira. Caronte usava uma vara para nos mover ao longo de um rio
escuro, cheio de óleo, com ossos, peixes mortos e outras coisas estranhas girando na
superfície... bonecas de plástico, cravos esmagados, diplomas encharcados com bordas
douradas.
- O rio Styx — murmurou Annabeth. — É tão...
— Poluído — disse Caronte. — Há milhares de anos vocês, seres humanos, quando o
atravessam, jogam tudo nele... esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornam
realidade. Um modo irresponsável de tratar seu lixo, se querem saber.
A névoa subia em espirais da água imunda. Acima de nós, quase perdido nas sombras,
havia um teto de estalactites. A frente, a costa distante brilhava com uma luz
esverdeada, a cor do veneno.
O pânico obstruiu minha garganta. O que eu estava fazendo ali? Aquelas pessoas ao
meu redor... estavam mortas.
Annabeth agarrou minha mão. Em circunstâncias normais, isso teria me embaraçado,
mas entendi como ela se sentia. Queria se assegurar de que mais alguém estava vivo
naquele barco.
Percebi que eu murmurava uma oração, embora não soubesse bem para quem estava
rezando. Ali embaixo só um deus importava, e era ele que eu fora confrontar.
A praia do Mundo Inferior surgiu à vista. Rochas escarpadas e areia vulcânica negra se
estendiam terra adentro por cerca de cem metros até um muro alto de pedra, que se
prolongava para os lados até onde a vista podia alcançar. De algum lugar por perto nas
sombras verdes, veio um som, reverberando nas pedras — o uivo de um grande animal.
— O velho Três-Caras está com fome — disse Caronte. Seu sorriso se tornou
esquelético à luz esverdeada. — Má sorte para vocês, filhotes de deuses.
O fundo do nosso barco deslizou sobre a areia preta. Os mortos começaram a
desembarcar. Uma mulher segurando a mão de uma menininha. Um casal de idosos
capengando lentamente, de braços. Um menino que não era mais velho que eu arrastava
os pés em silêncio em seu manto cinzento.
Caronte disse:
— Eu lhe desejaria sorte, parceiro, mas isso não existe por aqui. Lembre-se, não deixe
de mencionar meu aumento de salário.
Ele contou nossas moedas de ouro em sua bolsa, depois a vara. Gorjeou algo que
parecia uma canção de Barry Manilow enquanto empurrava a barcaça de volta através
do rio.
Seguimos os espíritos por um caminho já muito percorrido.

*****

Não sei muito bem o que estava esperando — os Portões do Céu, uma ponte levadiça
grande e escura ou coisa assim. Mas a entrada para o Mundo Inferior parecia uma
mistura de segurança de aeroporto com a auto-estrada de New Jersey.
Havia três entradas separadas embaixo de um enorme arco negro que dizia VOCÊ
ESTÁ ENTRANDO EM ÉREBO. Em cada entrada havia um detector de metais com
câmeras de segurança instaladas no alto. Depois disso, havia cabines de pedágio
operadas por ghouls como Caronte.
Os uivos de animal faminto eram agora muito altos, mas eu não conseguia ver de onde
vinham. O cão de três cabeças, Cérbero, que deveria guardar a porta do Hades, não
estava em lugar nenhum.
Os mortos formaram três filas, duas identificadas como ATENDENTE DE SERVIÇO e
uma como MORTE ESPRESSA. A fila MORTE EXPRESSA estava avançando sem
parar. As outras duas se arrastavam.
— O que você imagina? — perguntei a Annabeth.
— A fila rápida deve ir diretamente para os Campos Asfódelos — disse ela. — Sem
contestação. Eles não querem se arriscar ao julgamento do tribunal, porque pode ir
contra eles.
— Existe um tribunal para gente morta?
— Sim. Três juizes. Eles se revezam na na magistratura. O rei Minos, Thomas
Jefferson, Shakespeare... pessoas assim. Às vezes olham para uma vida e concluem que
aquela pessoa precisa de uma recompensa especial: os Campos Elísios. Às vezes
decidem por um castigo. Mas a maioria das pessoas, bem, elas apenas viveram. Nada de
especial, nem bom nem mau. Então vão para os Campos Asfódelos.
- E fazem o quê? C irover disse:
- Imagine-se em um campo de trigo no Kansas. Para sempre.
- Dureza — disse eu.
- Não tanto quanto aquilo — murmurou Grover. — Olhe.
Uma dupla de ghouls de mantos negros havia puxado um espírito para o lado e o estava
revistando junto à mesa da segurança. O rosto do morto parecia vagamente familiar.
- Ele é o pregador que saiu no noticiário, está lembrado? - perguntou Grover.
- Ah, sim — eu lembrava. Nós o tínhamos visto na tevê uma ou duas vezes no
dormitório da Academia Yancy. Era um tele-evangelista chato do norte do estado de
Nova York que arrecadara milhões de dólares para orfanatos e depois foi pego gastando
o dinheiro em artigos para a sua mansão, como assentos de privada foleados a ouro e
um campo de mmigolfe. Morrera numa perseguição da polícia quando seu
"Lamborghini abençoado" despencou de um penhasco.
- O que estão fazendo com ele? — perguntei.
O castigo especial de Hades — adivinhou Grover. — As pessoas realmente más
recebem atenção particular dele quando chegam. As Fúr... as Benevolentes vão preparar
uma tortura para ele.
Pensar nas Fúrias me fez estremecer. Percebi que naquele MOmento estava no território
delas. A velha sra. DodJds devia estar lambendo os beiços de expectativa.
— Mas se ele é um pregador — falei —, e acredita em um inferno diferente...
Grover encolheu os ombros.
— Quem disse que ele está vendo este lugar do mesmo modo que nós? Os seres
humanos vêem o que querem ver. Vocês são muito teimosos... ahn, persistentes, nisso.
Chegamos mais perto dos portões. Os uivos ali eram tão altos que sacudiam o chão
embaixo de meus pés, mas ainda assim eu não conseguia perceber de onde vinham.
Então, cerca de quinze metros à nossa frente, a névoa verde tremulou. Exatamente no
lugar onde o caminho se dividia em três estava um monstro enorme e indistinto.
Eu não o tinha visto antes porque ele era meio transparente, como os mortos. Até se
mexer, sua imagem se fundia com o quer que estivesse atrás dele. Somente os olhos e os
dentes pareciam sólidos. Ele estava me encarando.
Meu queixo caiu. Tudo o que pude pensar em dizer foi:
— É um rottweiler.
Sempre imaginara Cérbero como um grande mastim preto. Mas ele era obviamente um
rottweiler de raça pura, a não ser, é claro, por ter duas vezes o tamanho de um mamute,
ser quase invisível e ter três cabeças.
Os mortos andavam na direção dele — sem nenhum medo. As filas das placas
ATENDENTE EM SERVIÇO se separavam, cada uma para um lado do monstro. Os
espíritos de MORTE EXPRESSA caminhavam direto por entre as patas da frente e por
baixo da barriga, o que podiam fazer sem sequer se abaixar.
Estou começando a vê-lo melhor — murmurei. – Por que será?
- Acho... — Annabeth umedeceu os lábios. — Sinto muito, mas acho que é porque
estamos mais perto de ser pessoas mortas.
A cabeça do meio do cão se esticou em nossa direção. Ele farejou o ar e rosnou.
— Ele consegue farejar os vivos — falei.
— Mas está tudo bem — disse Grover, trémulo ao meu lado. Porque temos um plano.
— Certo — disse Annabeth. Nunca tinha ouvido a voz dela soar tão baixa. — Um
plano.
Avançamos na direção do monstro.
A cabeça do meio rosnou para nós, depois latiu tão alto que minhas pupilas
chacoalharam.
—Você consegue entender? — perguntei a Grover.
— Ah, sim — disse ele. — Eu consigo entender.
— O que ele está dizendo?
— Não acredito que os seres humanos possuam um palavrão tão grande assim.
Peguei um pedaço de madeira que tinha na mochila — um pé de cama que eu tinha
arrancado de um modelo em exposição de Crosta, a Safári Deluxe. Segurei-o no alto e
tentei canalizar pen¬samentos caninos felizes para o Cérbero — comerciais de ração,
cães engraçadinhos, postes. Tentei sorrir, como se não estivesse prestes a morrer.
— Ei, garotão — gritei. — Aposto que eles não brincam muito com você aqui.
"GRRRRRRRRRAUl"
— Bom menino — falei, fraquejando.
Acenei o bastão. A cabeça do meio do cão acompanhou o movimento. As outras duas
fixaram os olhos em mim, ignorando completamente os espíritos. Eu tinha toda a
atenção de Cérbero. Não sabia muito bem se isso era bom.
— Vá buscar! — atirei o bastão para as sombras, um lançamento perfeito. Ouvi o
tíbum! no no Styx.
Cérbero me olhou, feroz, nada impressionado. Os olhos eram cheios de ódio e frios.
Fim do plano.
O monstro agora produzia um novo tipo de rosnado, mais profundo nas suas três
gargantas.
— Ahn — disse Grover. — Percy?
— Sim?
— Apenas achei que você gostaria de saber.
— Sim?
— Cérbero... Ele está dizendo que temos dez segundo rezar para o deus que
escolhermos. Depois disso... bem... ele está com fome.
— Espere! — disse Annabeth. Ela começou a revirar sua mochila.
Epa, pensei.
— Cinco segundos — disse Grover. — Corremos agora?
Annabeth surgiu com uma bola de borracha vermelha do tamanho de uma grapefruit. A
etiqueta dizia PARQUE AQUÁTICO AQUALÂNDIA – DENVER, COLORADO.
Antes que eu pudesse impedi-a, ergueu a bola e marchou na direção de Cérbero.
Ela gritou:
— Está vendo a bola? Quer a bola, Cérbero? Senta!
Cérbero parecia tão perplexo quanto nós.
As três cabeças se inclinaram de lado. Seis narinas se dilataram.
- Senta! — gritou Annabeth outra vez.
Eu tinha certeza de que a qualquer momento ela se transformaria no maior biscoito para
cachorro do mundo.
Em vez disso, porém, Cérbero lambeu seus três pares de lábios, sacudiu o traseiro e
sentou, esmagando imediatamente uma dúzia de espíritos que passavam por baixo dele
na fila MORTE EXPRESSA. Os espíritos produziram um chiado abafado ao se dissipar,
como ar escapando de pneus.
— Bom menino! — disse Annabeth.
E atirou a bola para Cérbero.
Ela a agarrou com a boca do meio. A bola mal tinha tamanho suficiente para ele
morder, e as outras cabeças começaram a avançar na do meio, tentando pegar o novo
brinquedo.
— Solta! — ordenou Annabeth.
As cabeças de Cérbero pararam de brigar e olharam para ela, A boIa estava presa entre
dois dos seus dentes como um pedacinho de chiclete. Ele soltou um lamento alto e
assustador, depois largou a bola, gosmenta e quase rasgada no meio, aos pés de
Annabeth.
— Bom menino. — Annabeth pegou a bola, ignorando a baba de monstro.
Ela se virou para nós.
— Vão, agora. Fila da MORTE EXPRESSA... essa anda mais rápido.
— Mas... — argumentei.
— Agora! — ordenou ela, no mesmo tom que estava usando com o cão.
Grover e eu avançamos devagarzinho, cautelosos.
Cérbero começou a rosnar.
— Fica! — ordenou Annabeth ao monstro. – Se quer a bola, fica!
Cérbero ganiu, mas ficou onde estava.
— E você? — perguntei a Annabeth quando passamos por ela.
— Sei o que estou fazendo, Percv — murmurou ela. – Pelo menos, tenho quase
certeza...
Grover e eu seguimos por entre as pernas do monstro.
Por favor, Annabeth, eu rezei. Não o mande sentar de novo.
Conseguimos passar. Cérbero não era menos assustador visto de trás.
— Bom cachorro! — disse Annabeth.
Ela ergueu a bola vermelha esfrangalhada e, provavelmente, chegou à mesma conclusão
que eu — se recompensasse Cérebro, não restaria nada para mais um truque.
Assim mesmo, ela jogou a bola. A boca esquerda do monstro a agarrou imediatamente,
só para ser atacada pela cabeça do meio enquanto a cabeça da direita gemia em protesto.
Enquanto o monstro estava distraído, Annabeth marchou energicamente por baixo da
barriga dele e juntou-se a nós perto do detector de metais.
— Como fez aquilo? — perguntei, admirado.
— Aula de adestramento — disse ela sem fôlego, e fiquei surpreso ao ver que havia
lágrimas em seus olhos. — Quando eu pequena, na casa do meu pai, nós tínhamos um
dobermann...
— Não tem importância — disse Grover puxando minha camisa. —Vamos!
Estávamos a ponto de disparar pela fila de MORTE EXPRESSA quando Cérbero
gemeu de dar dó, com todas as três bocas. Annabeth parou.
Cérbero arfava ansioso, a pequenina bola vermelha despedaçada em uma lagoa de baba
a seus pés.
- Bom menino — disse Annabeth, mas sua voz pareceu melâcolica e insegura.
As cabeças do monstro se inclinaram, como se ele estivesse preocupado com ela.
- Logo vou trazer uma bola nova para você – prometeu Annabeth, insegura. —Você
quer?
O monstro choramingou. Eu não precisava falar língua de cachorro para saber que
Cérbero ainda estava esperando a bola.
— Bom cachorro. Venho logo visitar você. Eu... eu prometo. Annabeth virou-se para
nós. —Vamos.
Grover e eu passamos pelo detector de metais, que imediatamente soou e disparou a
piscar luzes vermelhas.
"Pertences não autorizados! Mágica detectada!"
Cérbero começou a latir.
Nós nos lançamos pelo portão MORTE EXPRESSA, o que dis¬parou ainda mais
alarmes, e corremos para dentro do Mundo Inferior.
Alguns minutos depois, estávamos nos escondendo, sem fôle¬go, no tronco apodrecido
de uma imensa árvore negra, enquanto os espíritos da segurança passavam correndo,
berrando pela ajuda das Fúrias.
Grover murmurou:
— Bem, Percy, o que aprendemos hoje?
— Que cães de três cabeças preferem bolas de borracha a pedaços de pau?
— Não — disse Grover. — Aprendemos que seus planos são muito, muito ruins!
Eu não tinha essa certeza. Talvez fosse o caso de eu e Annabeth termos tido a idéia
certa. Mesmo ali, no Mundo Inferior, todo mundo – até mesmo os monstros – precisa de
um pouco de atenção de vez em quando.
Pensei nisso enquanto esperávamos que os ghouls passassem. Fingi que não vi
Annabeth enxugar uma lágrima ao ouvir o lamento triste de Cérbero a distância,
sentindo falta da nova amiga.

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