segunda-feira, 6 de junho de 2011

Desventuras em Série - A Sala dos Répteis, Capítulos 5 ao 8

CAPÍTULO
Cinco

Aquela noite foi das mais longas e terríveis já vividas pelos órfãos Baudelaire, e olhe que noites longas e terríveis eles tiveram muitas em suas vidas. Houve uma, por exemplo, pouco depois de Sunny ter nascido, em que as três crianças passaram por uma gripe tremenda, virando-se e revirando-se na cama dominadas por uma febre que não baixava, enquanto o pai tentava acalmá-los todos ao mesmo tempo, pondo compressas frias sobre as testas suadas dos filhos. Na noite que se seguiu à morte dos pais, os três ficaram na casa do sr. Poe e não pregaram o olho em momento algum, muito arrasados e confusos para tentar dormir. E, é claro, muitas e muitas noites longas e terríveis marcaram a permanência deles na casa do conde Olaf.
Mas esta noite, particularmente, pareceu-lhes a pior de todas. Desde o momento da chegada do tio Monty até a hora de irem dormir, Stephano manteve as crianças sob vigilância constante, isto é, ficou de olho nelas o tempo todo para que não houvesse possibilidade de elas conversarem a sós com o tio Monty e revelarem que ele na verdade era o conde Olaf; e o tio Monty, com tudo o que já tinha para se preocupar, não percebeu a situação estranha que ocorria dentro de casa. Quando trouxeram o resto das compras do tio Monty, Stephano veio com as sacolas carregadas em apenas uma das mãos, mantendo a outra enfiada no bolso do paletó onde estava escondida a faca, no entanto, com a empolgação causada por todos aqueles novos suprimentos, nem ocorreu ao tio Monty perguntar a razão de semelhante postura. Quando foram para a cozinha a fim de preparar o jantar, Stephano sorriu ameaçadoramente para as crianças enquanto partia os champinhons, mas o tio Monty, todo absorto para não deixar que o molho do strogonoff fervesse, nem notou que a faca com que Stephano fatiava os champinhons era de uso pessoal do novo assistente, a mesma que servia para ameaçar os garotos. Durante o jantar, Stephano contou histórias divertidas e elogiou o trabalho científico de Monty; sentindo-se de tal maneira lisonjeado, o tio foi incapaz de imaginar que durante todo o desenrolar da refeição Stephano segurava a faca por baixo da mesa, roçando a lâmina levemente no joelho de Violet. E, após anunciar que aproveitaria aquela noite para mostrar a Sala dos Répteis ao novo assistente, o desejo de fazê-lo o quanto antes absorveu inteiramente a atenção do cientista, a ponto de não perceber que os Baudelaire tinham simplesmente ido para a cama sem dizer uma palavra.
Pela primeira vez, o fato de possuírem quartos individuais teve mais o efeito de provação do que de luxo, pois sem a companhia uns dos outros os órfãos sentiram-se ainda mais solitários e desamparados. Violet olhou para o papel fixado com tachinhas em sua parede e tentou imaginar o que Stephano estava planejando. Klaus sentou-se em sua ampla poltrona estofada e acendeu a lâmpada da luminária para leitura, mas as preocupações não o deixaram sequer abrir um livro. Sunny ficou olhando para seus objetos duros mas não se animou a morder nenhum.
Os três pensaram em seguir andando pelo hall, ir até o quarto do tio Monty, acordá-lo e contar-lhe o que estava acontecendo de errado. Mas, para chegar ao quarto do tio, teriam que passar pelo quarto em que estava hospedado Stephano, e durante toda a noite Stephano montou guarda sentado numa cadeira diante da porta aberta de seu quarto. Quando os órfãos abriram a porta de seus quartos para ter uma vista do corredor, deram com a cabeça pálida e raspada de Stephano movendo-se lentamente como o pêndulo de um relógio de parede antigo. Para lá e para cá, para lá e para cá, cintilando à meia-luz, uma visão tão assustadora que eles não se atreveram a atravessar o corredor.
Finalmente, a casa começou a clarear com o azul cinzento que precede o alvorecer, e os Baudelaire, ainda com os olhos turvos de sono, desceram as escadas para tomar o café da manhã, cansados e com o corpo moído pela noite sem dormir. Sentaram-se em volta da mesa onde haviam comido bolo na manhã em que chegaram à casa do tio Monty, e serviram-se, indiferentes ao que havia para a refeição. Era a primeira vez, desde a mudança para a nova casa, que não morriam de vontade de entrar na Sala dos Répteis e começar o dia de trabalho.
"Acho que está na hora de irmos", disse finalmente Violet, pondo de lado a torrada em que mal havia tocado. "Garanto que o tio Monty já começou a trabalhar e está a nossa espera."
"E garanto que Stephano também está lá", disse Klaus olhando melancolicamente para a sua tigela de cereais. "Não teremos chance de contar ao tio Monty o que sabemos sobre ele."
"Miga", disse Sunny tristemente, deixando cair no chão sua cenoura crua intocada.
"Se ao menos o tio Monty soubesse o que nós sabemos", disse Violet, "e Stephano soubesse que ele sabe o que sabemos. Mas o tio Monty não sabe o que sabemos, e Stephano sabe que ele não sabe o que sabemos."
"Eu sei", disse Klaus.
"Sei que você sabe", disse Violet, "mas o que não sabemos é o que o conde Olaf, quero dizer Stephano, está realmente querendo aprontar. Ele está atrás de nossa fortuna, disso não há a menor dúvida, mas como é que ele pode consegui-la se estamos sob a tutela do tio Monty?"
"Talvez ele simplesmente vá esperar que alcancemos a maioridade, e então roubará a fortuna", disse Klaus.
"Quatro anos é muito tempo para esperar", disse Violet. Os três órfãos ficaram calados, cada qual procurando lembrar o que haviam feito quatro anos antes. Violet tinha dez anos e usava os cabelos bem curtos. Lembrava-se de, por volta do décimo aniversário, ter inventado um novo tipo de apontador de lápis. Klaus tinha oito, e lembrava-se do interesse que os cometas lhe despertavam, lendo na ocasião todos os livros de astronomia da biblioteca dos pais. Sunny, é claro, ainda não havia nascido quatro anos antes, e ficou tentando lembrar-se de como era esse tipo de inexistência. Muito escuro, pensou, sem nada para morder. Para todos eles, quatro anos parecia ser de fato muito tempo.
"Vamos, vamos, vocês estão se mexendo muito devagar esta manhã", disse o tio Monty, surgindo com ímpeto na sala. Seu rosto parecia ainda mais animado que de costume, e ele trazia um pequeno maço de papéis dobrados numa das mãos. "Stephano só está trabalhando aqui há um dia, e já se acha na Sala dos Répteis. Na verdade, ele se levantou da cama antes de mim, alcancei-o quando descia as escadas. Ele é uma pessoa muito interessada. Mas vocês três... estão se movendo no ritmo da Cobra-Preguiça Húngara, que se desloca com a velocidade máxima de um centímetro e meio por hora! Temos muito que fazer hoje, e eu gostaria de pegar a sessão das seis de Zumbis na neve, de forma que precisamos andar depressa, depressa, depressa!"
Violet olhou para o tio Monty e deu-se conta de que essa poderia ser a única oportunidade de falarem com ele a sós, sem Stephano por perto, mas Monty estava tao excitado que não dava para ter certeza de que ele os escutaria.
"Por falar em Stephano", disse ela timidamente, "nós gostaríamos de falar com você sobre ele."
Os olhos de Monty se arregalaram e ele deu uma espiada em volta, como se houvesse espiões na sala, antes de inclinar-se para sussurrar aos garotos: "Eu também gostaria de falar com vocês", disse. "Tenho minhas suspeitas sobre Stephano, e gostaria de discuti-las com vocês."
Os órfãos Baudelaire entreolharam-se, aliviados. "É mesmo?", perguntou Klaus.
"Certamente", respondeu o tio Monty. "Na noite passada comecei a alimentar sérias suspeitas sobre esse meu novo assistente. Há qualquer coisa de estranho nele, e eu...", o tio Monty olhou mais uma vez à sua volta e começou a falar ainda mais baixo, a ponto de as crianças precisarem prender a respiração para ouvi-lo. "E eu acho que devemos discutir o assunto lá fora. Vamos?"
As crianças fizeram que sim com a cabeça, e levantaram-se da mesa. Sem se preocupar com os pratos sujos que haviam ficado na mesa, o que em geral não é uma coisa certa de se fazer mas perfeitamente aceitável quando se trata de uma emergência, elas foram andando com o tio Monty para a entrada da frente. Passaram pelo quadro com as duas cobras entrelaçadas, saíram pela porta principal e dirigiram-se para o gramado, como se quisessem falar para os arbustos em forma de cobras e não uns com os outros.
"Não é que eu queira me vangloriar", começou o tio Monty, usando uma palavra que aqui significa "contar vantagem", "mas de fato sou um dos mais respeitados herpetologistas do mundo."
Klaus piscou. Era um começo inesperado para a conversa. "Não resta dúvida de que o senhor é", disse ele, “mas...”
"E, por causa disso, é triste dizer", prosseguiu o tio Monty, como se não tivesse ouvido a intervenção de Klaus, "muitas pessoas sentem inveja de mim."
"Estou certa de que isso é verdade", disse Violet, intrigada.
"E quando as pessoas sentem inveja", disse o tio Monty balançando a cabeça, "são capazes de fazer qualquer coisa. Fazem coisas loucas, absurdas. Quando eu estava preparando minha tese para me formar como herpetologista, meu companheiro de quarto sentiu tanta inveja por eu ter descoberto uma nova espécie de sapo que roubou e comeu o único espécime que eu tinha. Na apresentação, foi preciso radiografar seu estômago e usar o raio X, em lugar do sapo. E algo me diz que pode estar ocorrendo uma situação semelhante aqui."
De que o tio Monty estava falando?
"Não sei, mas acho que não estou seguindo bem o...", disse Klaus, encontrando uma maneira polida para expressar "Do que é que você está falando, tio Monty?".
"A noite passada, depois que vocês foram para a cama, Stephano foi um pouco insistente em me fazer perguntas demais sobre todas as cobras e sobre a minha próxima expedição. E sabem por quê?"
"Acho que sim", começou Violet, mas o tio Monty a interrompeu.
"Porque esse homem que se diz chamar Stephano", disse ele, "é na verdade um membro da Sociedade Herpetológica, e está aqui para tentar encontrar a Víbora Incrivelmente Mortífera e assim esvaziar minha apresentação. Vocês entendem o que eu quero dizer com esvaziar?"
"Não", disse Violet, "mas..."
"Quero dizer que o que eu acho é que Stephano vai roubar a minha cobra", disse o tio Monty, "e apresentá-la à Sociedade Herpetológica. Como se trata de uma espécie nova, não tenho como provar que fui eu quem a descobriu. Antes que chegue ao nosso conhecimento, a Víbora Incrivelmente Mortífera terá recebido o nome de Cobra Stephano ou algo abominável no gênero. E se é o que está planejando, imaginem o que ele fará à nossa expedição peruana. Cada sapo que apanharmos, cada amostra de veneno que guardarmos num tubo de ensaio, cada entrevista sobre cobras que gravarmos, cada pequeno passo que dermos no trabalho irá cair nas mãos desse espião da Sociedade Herpetológica."
"Ele não é um espião da Sociedade Herpetológica", disse Klaus, impaciente, "ele é o conde Olaf!"
"Entendo o que você quer dizer!", exclamou o tio Monty inflamando-se. "Esse tipo de comportamento é de uma sordidez que seria de esperar apenas de um homem terrível como aquele. Por isso é que vou fazer isto que estou fazendo." Levantou uma das mãos e agitou os papéis dobrados no ar. "Como vocês sabem", disse, "amanhã estamos partindo para o Peru. Estas são as nossas passagens para embarcar às cinco da tarde no Próspero, um magnífico navio que cruzará o Atlântico para nos levar à América Latina. Há uma passagem para mim, uma para Violet, uma para Klaus, uma para Stephano, mas nenhuma para Sunny porque vamos escondê-la dentro de uma mala e assim economizar dinheiro."
"Epa!"
"Brincadeira minha. Mas em tudo o mais não estou brincando." Tio Monty, com o rosto afogueado de excitação, pegou um dos papéis dobrados e começou a rasgá-lo em muitos pedacinhos. "Esta é a passagem de Stephano. Ele simplesmente não irá conosco ao Peru. Amanhã de manhã vou lhe dizer que precisa ficar aqui tomando conta dos meus espécimes. Assim faremos em paz essa expedição com a certeza de ser bem-sucedida."
"Mas tio Monty...", disse Klaus.
"Quantas vezes preciso dizer a você que é falta de educação interromper quem está falando?", interrompeu o tio Monty, balançando a cabeça. "De qualquer maneira, sei o que o está incomodando. Você se preocupa com o que possa acontecer se ele ficar aqui sozinho com a Víbora Incrivelmente Mortífera. Mas não se aflija. A Víbora vai conosco na expedição, viajando numa das malas que levaremos para trazer cobras capturadas. Não sei por que está com essa cara tão triste, Sunny. Pensei que fosse gostar de ter a companhia da Víbora. Vamos, chega de fazerem esse ar de preocupação, bambini! Como podem ver, o tio Monty tem o controle da situação."
Quando alguém comete um pequeno engano — digamos, quando um garçom põe leite desnatado no seu café expresso e não leite semidesnatado —, às vezes é bem fácil explicar a essa pessoa como e por que ela se enganou. Mas, se o engano cometido assume proporções além de todos os limites — digamos, quando um garçom morde o seu nariz em vez de anotar o pedido —, a surpresa causada pode ser tanta que somos incapazes de dizer o que quer que seja. Paralisada pelas proporções do engano do garçom, a pessoa fica meio boquiaberta, os olhos começam um pisca-pisca incontrolável, mas não se consegue pronunciar uma palavra. Foi isso o que aconteceu com os Baudelaire. Tio Monty estava tão enganado a respeito de Stephano ao identificá-lo como um espião herpetológico e não como o conde Olaf que os três irmãos nem conseguiam imaginar um meio de restaurar a verdade dos fatos.
"Agora vamos, meus queridos", disse o tio Monty. "Já gastamos uma boa parte da manhã com nossa conversa. Temos que... ai!!!" Ele interrompeu o que estava dizendo com um grito de surpresa e de dor, desabando direto no chão.
"Tio Monty!", gritou Klaus. Os Baudelaire viram que um objeto grande e brilhante estava em cima do tio, e um instante depois perceberam o que era esse objeto: a luminária para leitura, aquela que se erguia junto à ampla poltrona estofada no quarto de Klaus.
"Ai!!!", voltou a gemer o tio Monty, afastando a luminária de cima dele. "Essa realmente doeu! Pode ter deslocado meu ombro. Ainda bem que não bateu na minha cabeça, ou teria feito um estrago sério."
"Mas veio de onde?", perguntou Violet.
"Deve ter caído da janela", disse o tio Monty, apontando para cima, onde ficava o quarto de Klaus. "De quem é esse quarto? Klaus, parece-me ser o seu. Você precisa ter mais cuidado. Não pode deixar objetos pesados em posição insegura, projetando-se para fora da janela desse jeito. Veja só o que quase aconteceu."
"Mas a luminária não estava nem um pouco perto da minha janela", disse Klaus. "Eu a deixo num vão protegido da parede, onde aproveito para ler sentado naquela poltrona tão confortável."
"Francamente, Klaus", disse o tio Monty levantando-se e passando a luminária para ele. "Você espera mesmo que eu vá acreditar que isso saltou da janela numa espécie de dança e foi pousar bem no meu ombro? Faça o favor de levá-la de volta para o seu quarto, num lugar seguro, e não falamos mais nisso."
"Mas...", balbuciou Klaus, logo interrompido por sua irmã.
"Eu ajudo você, Klaus", disse Violet. "Vamos encontrar um lugar que seja seguro."
"Mas vejam se não se demoram", disse o tio Monty, esfregando o ombro. "A gente se encontra na Sala dos Répteis. Venha, Sunny."
Depois de percorrer o hall de entrada, os quatro separaram-se na escada, tio Monty e Sunny encaminhando-se para a enorme porta da Sala dos Répteis enquanto Violet e Klaus carregavam a pesada luminária metálica para o quarto de Klaus.
"Você sabe muito bem", sussurrou Klaus para sua irmã, "que não houve falta de cuidado de minha parte em relação a essa luminária."
"Claro que sei", sussurrou Violet. "Mas não adianta tentar explicar isso para o tio Monty. Ele acha que Stephano é um espião herpetológico. Você sabe tão bem quanto eu que Stephano foi o responsável por isso."
"Mas que esperteza a sua, de chegar a essa descoberta", disse uma voz vinda do alto da escada, e Violet e Klaus ficaram tão surpresos que quase deixaram a luminária cair. Era Stephano, ou, se preferem, o conde Olaf. Era o vilão. "Mas a verdade é que vocês sempre foram crianças espertas", continuou ele. "Um pouco espertas demais, para o meu gosto, mas vocês não vão estar aqui por muito tempo, de modo que isso não me aflige."
"De você não se pode dizer que seja tão esperto", disse Klaus, furioso. "Essa luminária pesada por pouco não nos atingiu, no entanto se alguma coisa acontecer a minhas irmãs ou a mim, você nunca irá pôr as mãos na fortuna dos Baudelaire."
"Coitadinho de mim, pobrezinho de mim", disse Stephano, mostrando seus dentes encardidos ao sorrir. "Se eu quisesse fazer mal a você, querido órfão, seu sangue já estaria jorrando por essa escada abaixo como uma cachoeira. Nem pretendo fazer mal a um fio de cabelo sequer da cabeça de qualquer Baudelaire, não aqui dentro desta casa. Vocês não precisam ter medo de mim, meus pequenos, até estarmos num lugar em que os crimes fiquem mais difíceis de apurar."
"E onde seria isso?", perguntou Violet. "Planejamos não arredar pé daqui até crescermos."
"É mesmo?", disse Stephano com aquela voz bem, bem dissimulada. "Pois eu tinha a impressão de que íamos deixar o país amanhã."
"Tio Monty rasgou a sua passagem", disse Klaus, triunfante. "Ele estava suspeitando de você, e então mudou os planos e agora você não viaja mais conosco."
Stephano na mesma hora apagou o sorriso e franziu a testa, os dentes encardidos pareciam ter ficado maiores. Seus olhos ganharam um brilho tão intenso que chegaram a fazer os olhos de Klaus e Violet doer, ao encará-lo. "Eu não confiaria muito nisso", disse, com uma voz muito, muito terrível. "Até mesmo os melhores planos se alteram quando acontece um acidente." Ele indicou com um dedo bem pontudo a luminária metálica: "Acidentes acontecem o tempo todo".






CAPÍTULO
Seis

Quando as circunstâncias são más, elas têm o dom de estragar o que, não fosse por elas, seria agradável. Foi o que aconteceu com os órfãos Baudelaire e o filme Zumbis na neve. A tarde inteira as três crianças passaram sentadas com suas preocupações na Sala dos Répteis sob o olhar zombeteiro de Stephano e ouvindo a conversa de alienado do tio Monty — a palavra "alienado" aqui significa "sem saber que Stephano era realmente o conde Olaf e, portanto, sem consciência do perigo real que corria". De tal forma que, ao anoitecer, os irmãos não estavam com a melhor das disposições para assistir a uma sessão de cinema. O jipe do tio Monty era na verdade pequeno demais para que coubessem o tio, Stephano e os três órfãos; assim, Klaus e Violet dividiram um assento, enquanto a pobre da Sunny teve que ficar no colo do abominável Stephano, mas os três Baudelaire estavam preocupados demais para notar seu desconforto.
As crianças sentaram-se na primeira fila do cinema, com o tio Monty numa das pontas, enquanto Stephano, no meio, monopolizava as pipocas. Mas os Baudelaire, ansiosos como se achavam, não estavam nem aí para pipocas, e a preocupação em descobrir o que Stephano estaria planejando os impedia de desfrutar Zumbis na neve, que era um ótimo filme. Quando os zumbis surgiram dos bancos de neve pela primeira vez, cercando a minúscula aldeia alpina de pescadores, Violet tentou imaginar de que maneira Stephano poderia embarcar no Próspero sem ter uma passagem e acompanhá-los até o Peru. Quando os líderes da aldeia construíram uma barreira com toras de carvalho — em vão, porque os zumbis venceram o obstáculo devorando a madeira —, Klaus tentou tornar claro no seu pensamento o que exatamente Stephano quisera dizer ao mencionar os acidentes. E quando Gerta, a garotinha que ordenhava a vaca, fez amizade com os zumbis e pediu-lhes que por favor parassem de comer os habitantes da aldeia, Sunny, que evidentemente não tinha ainda idade para compreender direito a situação dos órfãos, tentou bolar uma forma de derrotar os planos de Stephano, quaisquer que eles fossem. Na cena final do filme, zumbis e aldeões celebravam juntos o Primeiro de Maio, mas os três órfãos Baudelaire estavam nervosos e amedrontados demais para relaxar e aceitar qualquer tipo de diversão. No caminho de volta para casa, o tio Monty tentou falar com os garotos, o tempo todo preocupados e silenciosos, mas praticamente não obteve resposta alguma e afinal calou-se também.
Quando o jipe estacionou junto aos arbustos em forma de cobras, os Baudelaire saltaram correndo do carro e dispararam em direção à porta da frente sem sequer dar boa-noite para o seu perplexo tutor. Com todo aquele peso no coração, subiram as escadas até os quartos, mas ao chegar diante das portas não suportaram a idéia de separar-se.
"Não poderíamos passar a noite todos juntos no mesmo quarto?", perguntou Klaus a Violet timidamente. "A noite passada me senti como se estivesse preso numa cela, solitário às voltas com minhas preocupações."
"Eu também", confessou Violet. "Já que não vamos conseguir dormir, pelo menos estaríamos sem dormir mas juntos no mesmo lugar."
"Tico", concordou Sunny, e seguiu seus irmãos para dentro do quarto de Violet. Violet lançou um olhar em volta do quarto e lembrou-se da empolgação com que havia tão pouco tempo estreara seu novo espaço. Agora, a enorme janela com vista para os arbustos em forma de cobras tornara-se deprimente e não mais estimulante, enquanto as folhas em branco pregadas em sua parede, em vez de práticas e oportunas, só conseguiam fazê-la lembrar-se dos motivos que tinha para estar tão ansiosa.
"Estou vendo que você não fez muitos progressos em suas invenções", disse Klaus gentilmente. "Eu tampouco li muita coisa. Com o conde Olaf por perto, a imaginação fica tolhida."
"Nem sempre", observou Violet. "Quando morávamos com ele, você leu tudo em matéria de legislação sobre casamento para descobrir qual era o plano dele, e eu inventei um arpéu para a operação de resgate de Sunny."
"Só que na situação atual", disse Klaus melancolicamente, "nem sequer sabemos o que o conde Olaf pretende fazer. Como podemos arquitetar um plano se não sabemos qual é o plano dele?"
"Bem, vamos tentar tirar isso a limpo", disse Violet, usando uma expressão que aqui significa "esmiuçar uma questão, discutindo-a e analisando-a até compreendê-la inteiramente". "O conde Olaf, sob o falso nome de Stephano, veio para essa casa disfarçado e é evidente que está atrás da fortuna dos Baudelaire."
"E", continuou Klaus, "uma vez que se apodere dela, planeja matar-nos."
"Tadu", murmurou Sunny solenemente, com a provável intenção de significar algo como "Estamos metidos numa encrenca dos diabos".
"No entanto", disse Violet, "se ele nos fizer mal, lá se vai a chance de ficar com nossa fortuna. Foi por isso que tentou casar-se comigo da última vez."
"Graças a Deus isso não funcionou", disse Klaus, estremecendo todo. "Senão, o conde Olaf seria meu cunhado. Mas desta vez ele não está planejando casar-se com você. Ele mencionou alguma coisa sobre um acidente."
"E ir para um lugar onde seja mais difícil apurar crimes", disse Violet, lembrando palavra por palavra do que ele havia dito. "Ou seja, o Peru. Mas Stephano não vai para o Peru. Tio Monty rasgou a passagem dele."
"Duc!", gritou Sunny, num desabafo genérico de frustração, e socou o chão com o pequeno punho. A palavra "genérico" aqui significa "quando a gente é incapaz de pensar em qualquer outra coisa para dizer", e não era somente Sunny que se via nessa situação: Violet e Klaus já não tinham mais idade, naturalmente, para dizer coisas como "Duc!" mas bem que gostariam de desabafar assim. Gostariam de ser capazes de adivinhar o plano do conde Olaf. Gostariam que a sua situação não parecesse tão misteriosa e tão sem esperanças, e gostariam de ter uma idade que lhes permitisse simplesmente gritar "Duc!" e socar o chão com seus punhos. Mais que tudo, é claro, gostariam que seus pais estivessem vivos e que os Baudelaire estivessem sãos e salvos no lar onde nasceram.
E tão ardorosamente quanto os órfãos Baudelaire gostariam que a situação deles fosse diferente, eu desejaria poder de algum modo mudar as circunstâncias desta história para vocês. Mesmo sentado aqui onde estou, em toda a segurança e tão longe do conde Olaf, mal consigo suportar escrever mais uma palavra. Talvez o melhor fosse vocês fecharem este livro imediatamente e não lerem nunca a continuação desta horripilante história. Podem imaginar, se assim desejarem, que uma hora depois os órfãos Baudelaire tiveram uma súbita percepção do que Stephano estava planejando fazer e conseguiram salvar a vida do tio Monty. Podem visualizar a polícia chegar com todos os pisca-piscas e sirenes ativados, e levar Stephano algemado para passar o resto da vida na cadeia. Podem fazer de conta — mesmo que não seja verdade — que os Baudelaire moram felizes com o tio Monty até hoje. Ou, melhor ainda, podem alimentar a ilusão de que os Baudelaire pais não morreram, e que o incêndio terrível e o conde Olaf e o tio Monty e todos os outros tristes acontecimentos não passaram de um sonho, uma fantasia da imaginação.
Mas esta não é uma história feliz, e não me agrada dizer-lhes que os órfãos Baudelaire passaram o restante da noite sentados, emudecidos, no quarto de Violet. Se ao nascer do sol alguém espiasse pela janela do quarto, teria visto as três crianças agarradas juntinhas na cama, com os olhos bem abertos e sombrios de preocupação. Mas ninguém espiou pela janela. Alguém bateu à porta, quatro pancadas firmes como que para pregar alguma coisa que não devesse se soltar mais.
As crianças pestanejaram e se entreolharam."Quem é?", perguntou Klaus para ser ouvido pelo lado de fora, mas com a voz falhando por causa do longo tempo que passara em silêncio.
Em lugar de uma resposta, a pessoa que bateu simplesmente girou a maçaneta e a porta se abriu lentamente. Lá estava Stephano, com as vestes todas amarrotadas e os olhos brilhando mais do que nunca.
"Bom dia", disse. "Está na hora de partir para o Peru. O espaço no jipe é a conta certa para três órfãos e eu. Vamos logo."
"Ontem nós lhe dissemos que você não ia", disse Violet. Ela esperava que sua voz tivesse deixado transparecer mais coragem.
"É o seu tio Monty quem não vai", disse Stephano, e ergueu a parte da testa onde deveriam estar as sobrancelhas.
"Não seja ridículo", disse Klaus. "O tio Monty não perderia essa expedição por nada deste mundo."
"Pergunte a ele", disse Stephano, e os Baudelaire viram no seu rosto uma expressão que lhes era familiar. A boca praticamente imóvel, mas um brilho intenso nos olhos como se tivesse acabado de dizer uma piada. "Por que não vai perguntar a ele? Está lá embaixo na Sala dos Répteis."
"Vamos perguntar a ele sem a menor dúvida", disse Violet. "Tio Monty não tem nenhuma intenção de deixar que você nos leve sozinho ao Peru." Ela se levantou da cama, pegou os irmãos pelas mãos e passou às pressas por Stephano, que os encarou com um sorriso escarninho junto à porta. "Você vai ver", reforçou Violet, e Stephano fez, com deboche, uma pequena mesura quando as crianças se retiraram do quarto.
O corredor estava estranhamente silencioso, e vazio como o lugar dos olhos numa caveira. "Tio Monty?", Violet chamou, chegando ao fim do corredor. Ninguém respondeu.
A não ser por alguns estalidos que ressoavam quando eles desciam os degraus da escada, a casa inteira estava imersa num silêncio fantasmagórico, como se houvesse sido abandonada havia muitos anos. "Tio Monty?", Klaus chamou, ao terminar de descer a escada. Não ouviram som algum.
Caminhando na ponta dos pés, Violet abriu a enorme porta da Sala dos Répteis e por um momento os órfãos ficaram olhando para a sala como se estivessem hipnotizados, sob o fascínio da estranha luz azulada que o nascer do sol produzia ao atravessar com seus raios o teto e as paredes de vidro. Nessa iluminação assim tênue eles só conseguiam ver as silhuetas dos inúmeros répteis que se moviam de um lado para o outro em suas gaiolas, ou que dormiam enroscados uns nos outros parecendo escuras massas informes.
Com o eco de seus passos dissolvendo no brilho suave das paredes, os três irmãos caminharam pela Sala dos Répteis até chegar ao extremo mais distante, onde a biblioteca do tio Monty os esperava no seu remanso. Mesmo com toda a sensação de mistério e estranheza que a sala quase às escuras despertava, podia-se dizer que era um mistério confortador e uma estranheza sem ameaças. Eles se lembraram da promessa do tio Monty: uma vez que se informassem devidamente sobre os animais, nenhum mal lhes poderia ser causado ali na Sala dos Répteis. Entretanto, vocês e eu estamos bem lembrados de que a promessa do tio Monty estava carregada de ironia dramática, e agora, no lusco-fusco do amanhecer na Sala dos Répteis, essa ironia viria à mostra brutalmente e os Baudelaire finalmente tomariam conhecimento dela. Pois, ao chegarem aonde estavam os livros, os três irmãos viram à curta distância um vulto sombrio desabado sobre uma das poltronas. Nervoso, Klaus acendeu uma das lâmpadas de leitura para enxergar melhor. O vulto sombrio era o tio Monty. A boca estava meio aberta como se estivesse surpreso, e os olhos escancarados, mas ele não os parecia estar vendo. Seu rosto, em geral tão rosado, estava bastante pálido, e sob seu olho esquerdo viam-se dois furos, alinhados na mesma altura, a marca característica deixada pelas duas presas de uma cobra.
"Divo otum?", perguntou Sunny, e puxou fortemente pela calça a perna do tio. Monty não se moveu. Confirmando a promessa dele, nenhum mal fora causado aos órfãos Baudelaire na Sala dos Répteis. O que o tio Monty não previra era que a vítima naquela sala seria ele mesmo.

CAPÍTULO
Sete

"Mas ora vejam!", disse uma voz por trás deles, e os Baudelaire viraram-se e deram com Stephano de pé a pouca distância, carregando a maleta preta com o cadeado de prata, um ar de factícia surpresa no rosto. "Factícia" é um sinônimo tão rebuscado para "artificial", "fabricado" etc. que nem Klaus sabia o que significava, mas não foi preciso dizer às crianças que a surpresa de Stephano era puro fingimento. "Que terrível acidente aconteceu aqui! Mordido por uma cobra! Que horror!"
"Você...", começou a dizer Violet, mas sentiu um espasmo na garganta como se a morte do tio Monty fosse um alimento de gosto horrível. "Você...", tornou a dizer.
Stephano nem deu bola. "Claro que depois de descobrir que o dr. Montgomery morreu vão querer saber que fim levaram aqueles órfão nojentos que rodavam pela casa. Mas então eles já terão partido há muito tempo. E, por falar nisso, está na hora de partirmos. O Próspero faz-se ao mar deixando Porto Enevoado às cinco horas, e eu gostaria de ser o primeiro passageiro a embarcar. Assim, terei tempo de beber uma garrafa de vinho antes do almoço."
"Como é que você foi capaz?", sussurrou Klaus numa voz rouca. Não conseguia tirar os olhos do rosto pálido, muito pálido do tio Monty. "Como é que você foi capaz de uma coisa dessas? Como é que foi capaz de assassiná-lo?"
"Ora essa, Klaus, você me surpreende", disse Stephano, e deu alguns passos em direção ao cadáver do tio Monty. "Um sabichão como você deveria perceber logo que o seu velho tio gorducho morreu de uma mordida de cobra, não morreu assassinado. Veja estas marcas de dentes. Veja este rosto absoluta­mente sem cor. Veja estes olhos esgazeados."
"Pare!", gritou Violet. "Não fale assim!"
"Tem razão!", disse Stephano. "Não há tempo pa­ra conversa fiada! Temos que pegar um navio! Va­mos indo!"
"Não vamos com você a lugar nenhum!", disse Klaus. Seu rosto se franzira no esforço de fazer fren­te à situação, em vez de se desmanchar no desespe­ro. "Ficaremos aqui até a polícia chegar."
"E como você imagina que a polícia ficará saben­do e virá?"
"Nós avisaremos", disse Klaus com o que espera­va ser um tom de voz firme, e começou a andar em direção à porta.
Stephano largou sua mala, o que produziu um ruído estrondoso quando o cadeado de prata bateu no chão de mármore. Deu alguns passos e bloqueou a passagem de Klaus, abrindo bem os olhos aver­melhados de raiva. "Estou cansado, sabe", rosnou Stephano, "de ter que explicar tudo para você. Vo­cê, que se diz tão esperto, mas parece estar sempre se esquecendo disto!”, enfiou a mão no bolso e tirou a faca serreada. "Esta é a minha faca. Muito afiada e muito a fim de te machucar, quase tão a fim quan­to eu. Se você não fizer o que eu mando, vai se dar mal, fisicamente mal. Deu para entender agora? An­de, já para o jipe, ou que o diabo o carregue!"
Como vocês bem sabem, não é educado, e além do mais é desnecessário, usar de blasfêmias ou irre­verências, mas os Baudelaire estavam aterrorizados demais para fazer essa observação a Stephano. Lan­çando um último olhar a seu pobre tio Monty, as três crianças seguiram Stephano até a porta da Sala dos Répteis para pegar o jipe ou para o diabo os car­regar. Para piorar ainda mais — no caso, obrigar al­guém a uma tarefa desagradável quando já passa por contrariedades —, Stephano forçou Violet a carre­gar a mala dele até fora da casa, mas ela estava por demais absorvida em seus pensamentos para se im­portar com isso. Lembrava-se da última conversa que ela e seus irmãos haviam tido com o tio Monty, e então foi tomada por um sentimento de vergo­nha, pois aquela não havia sido uma conversa de forma alguma. Vocês lembram, é claro, que na volta de carro para casa, depois de terem assistido a Zum­bis na neve, as crianças se achavam de tal maneira preocupadas com Stephano que não disseram uma só palavra ao tio Monty, e que, quando o jipe esta­cionou diante da casa, os órfãos Baudelaire lança­ram-se escada acima correndo para o quarto, a fim de discutir entre eles a situação, sem sequer dar um boa-noite ao homem que agora jazia morto debaixo de um lençol na Sala dos Répteis. Quando chegaram ao jipe, Violet tentou lembrar se haviam pelo menos agradecido ao tio pelo cinema, mas a memória havia feito daquela noite um borrão. Ela achava que Klaus e Sunny provavelmente haviam dito "Obrigado, tio Monty" quando estavam todos juntos diante da bilheteria, mas não tinha certeza. Stephano abriu a porta do jipe e fez um gesto com a faca indicando para Klaus e Sunny o assento apertado de trás e para Violet, com a pesada maleta preta no colo, o lugar da frente, ao lado dele. Os órfãos tiveram por um instante a esperança de que o motor não fosse dar partida quando Stephano girasse a chave de ignição, vã esperança, porque o tio Monty cuidava muito bem do seu jipe e o motor deu partida na mesma hora.
Violet, Klaus e Sunny olharam para trás quando Stephano começou a avançar com o carro pelo caminho dos arbustos em forma de cobras. Ao ver a Sala dos Répteis, onde o tio havia disposto tão cuidadosamente os seus espécimes, e onde agora ele próprio de certa forma se incorporara como um espécime, o desespero dos Baudelaire pesou demais e eles começaram a chorar baixinho. É uma coisa curiosa, a morte de um ente querido. Todos sabemos que nosso tempo neste mundo é limitado, e que finalmente todos acabaremos debaixo de algum lençol, para não acordar nunca mais. No entanto, é sempre uma surpresa quando isso acontece a alguém que conhecemos. É como subir a escada para o seu quarto no escuro, e achar que há mais um degrau do que realmente há. O pé resvala no ar e segue-se um aflitivo momento em que, colhida às cegas pela surpresa, a pessoa tenta adaptar-se à escuridão. Os órfãos Baudelaire estavam chorando não apenas pelo tio Monty, mas por seus próprios pais, às cegas nessa curiosa sensação de queda que acompanha todas as grandes perdas.
Que iria lhes acontecer? Stephano assassinara sem dó nem piedade o homem que fora encarregado de cuidar deles, e agora estavam absolutamente sós. O que Stephano faria com eles? Tinha sido estabelecido que ele seria deixado para trás quando fossem ao Peru, e agora estava partindo junto com eles a bordo do Próspero. Que coisas terríveis aconteceriam no Peru? Alguém iria lá salvá-los? Stephano se apoderaria da fortuna? E, depois, o que aconteceria aos garotos? Essas perguntas são aterrorizantes, e quando se pensa em questões desse tipo elas absorvem toda a nossa atenção, por isso os órfãos, que não conseguiam pensar em outra coisa, não perceberam que Stephano estava a ponto de colidir com outro carro até o momento em que houve efetivamente a batida.
Ouviu-se um som horrível de metais e vidros se espatifando, um carro preto chocou-se com o jipe do tio Monty e os Baudelaire foram atirados ao chão com uma forte pancada e a sensação de terem deixado seus estômagos no assento de onde haviam sido lançados. A maleta preta foi parar sobre o ombro de Violet e em seguida projetada para o pára-brisa, que na mesma hora se estilhaçou em doze rachaduras, parecendo uma teia de aranha. Stephano soltou um grito de surpresa e ficou girando o volante para um lado e para outro, mas os dois veículos estavam firmemente engatados e acabaram sendo arremessados num monte de lama para fora da estrada. É raro poder dizer que um acidente de carro foi um golpe de sorte, mas certamente foi esse o caso com o jipe que levava os meninos. Com os arbustos em forma de cobras ainda claramente visíveis atrás deles, o percurso dos Baudelaire em direção ao Porto Enevoado terminara ali.
Stephano soltou mais um grito, dessa vez de raiva. "Azar dos infernos!", exclamou, enquanto Violet esfregava o ombro para certificar-se de que não estava gravemente ferida. Klaus e Sunny levantaram-se cautelosamente do chão do jipe e olharam para fora do pára-brisa despedaçado. Parecia só haver uma única pessoa no outro carro, mas não dava para ter certeza, porque o veículo sofrerá muito mais danos que o jipe de Monty. A frente havia sido inteiramente amassada, como uma sanfona, e uma calota ficara girando com muito estardalhaço sobre o Mau Caminho, em círculos velocíssimos que a vista não conseguia fixar, como uma gigantesca moeda que alguém tivesse deixado cair. Do motorista, vestido num terno cinzento, pareceu vir um som surdo, rouquenho, quando ele abriu a porta amassada e se espremeu para conseguir sair do carro. Tornou a fazer aquele som surdo, depois enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um lenço branco.
"É o sr. Poe!", exclamou Klaus.
Era mesmo o sr. Poe, tossindo como de costume, e os meninos sentiram-se tão felizes por vê-lo que até sorriram apesar da situação horrível em que se achavam. "Sr. Poe! Sr. Poe!", gritou Violet contornando a maleta de Stephano num esforço para abrir a porta do carro.
Stephano esticou um braço e segurou o ombro dela, voltando a cabeça lentamente para que os meninos, um por um, pudessem ver como seus olhos brilhavam. "Isto não muda nada!", sussurrou para eles. "Um lance de sorte, mas é o último, acabou-se! Vocês três vão voltar para este carro comigo, vamos em direção a Porto Enevoado e chegaremos a tempo de embarcar no Próspero, posso garantir."
"Isso veremos!", respondeu Violet, abrindo a porta e resvalando o corpo por baixo da maleta para sair. Klaus abriu a porta e seguiu a irmã, carregando Sunny. "Sr. Poe! Sr. Poe!"
"Violet?", perguntou o sr. Poe. "Violet Baudelaire? É você?"
"Sim, sr. Poe", disse Violet. "Somos nós todos e somos tão gratos ao senhor por ter batido assim em nós."
"Bem, eu não diria que bati em vocês", disse o sr. Poe. "A culpa foi claramente do outro motorista. Vocês que bateram em mim."
"Como se atreve!", gritou Stephano, saindo por sua vez do carro e torcendo o nariz por causa do cheiro de raiz-forte que empestava o ar. Avançou com passadas firmes até onde se erguia o sr. Poe, mas a meio caminho as crianças viram o rosto dele se transformar, passando da raiva absoluta a uma tristeza e um desconcerto que eram puro fingimento. "Desculpe-me", disse ele, numa voz fina e trêmula. "Foi tudo culpa minha. Estava tão abatido com tudo o que aconteceu que nem prestei atenção às regras da estrada. Espero que não tenha se machucado, sr. Po."
"É Poe", disse o sr. Poe. "Meu nome é Poe. Não estou machucado. Por sorte, parece que ninguém se feriu. Gostaria que o mesmo se pudesse dizer do meu carro. Mas quem é o senhor, e o que está fazendo com os Baudelaire?"
"Eu vou dizer para o senhor quem ele é", disse Klaus. "Ele é..."
"Por favor, Klaus", admoestou o sr. Poe, palavra que aqui significa "repreendeu Klaus embora a interrupção tivesse bons motivos". "É falta de educação interromper as pessoas."
"Meu nome é Stephano", disse Stephano, cumprimentando o sr. Poe com um aperto de mão. "Sou, quero dizer... era assistente do dr. Montgomery."
"Que quer dizer com 'era'?", perguntou o sr. Poe, sério. "Foi despedido?"
"Não. Dr. Montgomery... oh! me desculpe", Stephano desviou o rosto e fingiu cobrir os olhos com os dedos, como se a tristeza não o deixasse prosseguir. Nessa posição, o sr. Poe não podia ver para onde ele olhava, e o infame aproveitou-se disso dando uma forte piscadela para os meninos antes de continuar. "Lamento dizer ao senhor que aconteceu um acidente horrível, sr. Po. O dr. Montgomery morreu."
"Poe", corrigiu o sr. Poe. "Morreu? Mas isso é terrível. Como foi?"
"Não sei", disse Stephano. "Eu diria que foi picada de cobra, mas não entendo nada de cobras. Era para isso que eu estava indo à cidade, procurar um médico. Os meninos me pareceram muito abalados, e achei que não devia deixá-los sozinhos."
"Ele não está nos levando para procurar nenhum médico!", gritou Klaus. "Ele está nos levando para o Peru!"
"O senhor entende o que eu estou querendo dizer?", disse Stephano ao sr. Poe, acariciando a cabeça de Klaus. "As crianças estão evidentemente muito abatidas. O dr. Montgomery ia levá-las para o Peru hoje."
"Sim, eu sei", disse o sr. Poe. "Por isso é que vim correndo para cá esta manhã, com o objetivo de finalmente trazer-lhes as bagagens. Klaus, sei quanto você está confuso e acabrunhado por causa deste acidente, mas por favor tente compreender que, se o dr. Montgomery de fato morreu, a expedição está cancelada."
"Mas, sr. Poe...", disse Klaus, indignado.
"Por favor", disse o sr. Poe. "Esse é um assunto para ser discutido entre adultos, Klaus. Não resta dúvida de que é preciso chamar um médico."
"Bem, por que o senhor não vai indo de carro até a casa", disse Stephano, "enquanto eu levo os meninos e procuro um médico?"
"Padaguibo!", gritou Sunny, querendo dizer provavelmente algo como "Nada disso!".
"Por que não vamos todos para a casa", disse o sr. Poe, "e de lá telefonamos para um médico?"
Stephano piscou, e por um instante seu rosto enfureceu-se de novo antes de conseguir retomar a calma e responder delicadamente. "É claro", disse ele. "Já devia ter chamado antes. Evidentemente não estou pensando com a mesma clareza que o senhor. Vamos, garotada, voltem para dentro do jipe, e o sr. Poe nos seguirá."
"Não vamos voltar para dentro daquele carro com você", disse Klaus com firmeza.
"Por favor, Klaus", disse o sr. Poe. "Procure compreender. Houve um grave acidente. Todas as demais discussões passam para um segundo plano. O único problema é que não tenho certeza de que o motor do meu carro pegará. O carro está todo amassado."
"Experimente a ignição", disse Stephano. O sr.
Poe concordou com um movimento de cabeça e foi andando de volta para o carro. Sentou-se diante do volante e girou a chave. O motor fez um ruído rouco e meio úmido — muito parecido com as tosses do sr. Poe — mas não pegou.
"Acho que o motor morreu mesmo", disse o sr. Poe.
"Uma questão de tempo", murmurou Stephano para os Baudelaire, "e com vocês acontecerá o mesmo.
"Perdão", disse o sr. Poe, "mas não ouvi o que o senhor falou."
Stephano sorriu. "Eu disse somente que é uma pena. Então, que tal eu levar os órfãos de volta para casa, e o senhor vir andando atrás de nós? O espaço não dá para todos."
O sr. Poe franziu a testa. "Mas as malas das crianças estão aqui. Não quero deixá-las sem ninguém para tomar conta. Por que não colocamos a bagagem no seu carro, e as crianças vão andando comigo de volta para a casa?"
Stephano franziu a testa. "Bem, então uma das crianças vem comigo, para que eu não me perca."
O sr. Poe sorriu.
"Mas daqui o senhor pode ver a casa. Não tem como se perder."
"Stephano não quer que a gente fique a sós com o senhor", disse Violet, finalmente resolvendo falar. Ela havia esperado o momento próprio para pôr tudo a limpo. "Ele tem medo de que a gente conte para o senhor quem ele é realmente e o que realmente está querendo aprontar."
"Do que é que ela está falando?", perguntou o sr. Poe a Stephano.
"Não faço a menor idéia, sr. Po", respondeu Stephano, balançando a cabeça e lançando um olhar feroz para Violet.
Violet respirou fundo. "Esse homem não é Stephano", disse, apontando para ele. "Ele é o conde Olaf, e está aqui para nos levar embora."
"Quem é que eu sou?", perguntou Stephano. "E estou fazendo o quê?"
O sr. Poe olhou Stephano de alto e baixo, depois balançou a cabeça. "Perdoe as crianças", disse. "Elas estão bastante abaladas. O conde Olaf é um homem terrível que tentou roubar o dinheiro delas, por isso ficaram com muito medo dele."
"E eu pareço com esse conde Olaf?", perguntou Stephano, com os olhos brilhando intensamente.
"Não parece, não", disse o sr. Poe. "O conde Olaf tem uma única e longa sobrancelha, e o rosto escanhoado. O senhor tem barba, e, se não me leva a mal, não tem sobrancelha nenhuma."
"Ele raspou a sobrancelha", disse Violet "e deixou crescer a barba. Qualquer um percebe isso."
"E ele tem a tatuagem!", gritou Klaus. "A tatuagem de um olho, no tornozelo! Olhe a tatuagem!"
O sr. Poe encarou Stephano e encolheu os ombros como que se desculpando: "Sinto muito lhe pedir isso", disse, "mas os meninos me parecem tao nervosos que, antes de discutir qualquer outro assunto, eu gostaria de primeiro tranqüilizá-los. O senhor se importa de me mostrar seu tornozelo?".
"Com o maior prazer", disse Stephano, sorrindo para os meninos com todos os dentes à mostra. "Esquerdo ou direito?"
Klaus cerrou os olhos e pensou um instante. "Esquerdo", disse.
Stephano pousou o pé no pára-choque do jipe do tio Monty. Encarando os órfãos Baudelaire com seus olhos muito, muito brilhantes, começou a puxar e levantar a bainha de sua calça listrada. Violet, Klaus, Sunny e o sr. Poe tinham os olhos fixos no tornozelo de Stephano.
A calça subiu, como uma cortina antes de iniciar um espetáculo. Mas não havia nenhuma tatuagem de olho para ser vista. Os órfãos Baudelaire pregaram os olhos num pedaço de pele lisa, vazia e pálida como o rosto do pobre tio Monty.

CAPÍTULO
Oito

Enquanto o jipe avançava com o motor pipocando à frente deles, os órfãos Baudelaire fizeram a pé o caminho de volta para a casa do tio Monty, com o cheiro de raiz-forte invadindo suas narinas e um sentimento de frustração dominando integralmente seu ânimo. É muito exasperante quando alguém prova que estamos errados, sobretudo se na verdade estamos certos e a pessoa que na verdade está errada é aquela que prova que estamos errados, desse modo dando a entender erroneamente que está certa. Certo?
"Não sei como foi que ele se livrou da tatuagem", disse Klaus teimosamente para o sr. Poe, que tossia no lenço, "mas não há a menor dúvida de que é o conde Olaf."
"Klaus", disse o sr. Poe quando parou de tossir, "isso está ficando muito cansativo, essa insistência, essa repetição. Acabamos de ver o tornozelo imaculado de Stephano. Imaculado significa..."
"Nós sabemos o que significa imaculado", disse Klaus, prestando atenção nos movimentos de Stephano, que saiu do jipe do tio Monty e caminhou rapidamente para dentro da casa. '"Sem tatuagens'. Mas é sem sombra de dúvida o conde Olaf! Como é que o senhor não percebe?”.
"Tudo o que eu percebo", disse o sr. Poe, "é o que está diante de mim. Vejo um homem sem sobrancelhas, com barba e nenhuma tatuagem: ora, o conde Olaf não é assim. De qualquer modo, ainda que por algum acaso esse Stephano quisesse fazer mal a vocês, não há o que possam recear. É bem chocante que o dr. Montgomery tenha morrido, mas nós simplesmente não vamos entregar vocês e a sua fortuna ao assistente dele. Meu Deus, esse homem não consegue sequer lembrar-se do meu nome!"
Klaus olhou para as irmãs e suspirou. Seria mais fácil, pensou, discutir com um dos arbustos em forma de cobra do que com o sr. Poe depois de ele ter formado uma opinião. Violet estava a ponto de tentar convencê-lo mais uma vez, quando soou por trás do grupo a buzinada forte de um carro. Os Baudelaire e o sr. Poe afastaram-se para dar passagem ao veículo que se aproximava, um pequeno automóvel cinzento com um motorista muito magro. O carro parou em frente à casa e dele saiu uma criatura muito magra, um homem alto de paletó branco.
"Posso ajudá-lo em alguma coisa?", disse-lhe o sr. Poe, aproximando-se dele com as crianças.
"Sou o dr. Lucafont", disse o homem alto, apontando para si próprio com uma das mãos, grande e sólida. "Recebi um telefonema a propósito de um acidente terrível que envolve uma cobra."
"O senhor já está aqui?", perguntou o sr. Poe. "Mas se Stephano mal teve tempo de telefonar, que dizer então do tempo que o senhor precisou para vir até aqui!"
"Creio que a velocidade é essencial numa emergência, o senhor não acha?", disse o dr. Lucafont. "Se há uma autópsia a ser feita, é preciso que seja feita imediatamente."
"É claro, é claro", apressou-se em dizer o sr. Poe. "Eu só estava surpreso."
"Onde se acha o corpo?", perguntou o dr. Lucafont, caminhando em direção à porta.
"Stephano lhe dirá", falou o sr. Poe, abrindo a porta da casa. Stephano estava esperando no hall de entrada, com uma cafeteira nas mãos.
"Vou fazer um pouco de café", disse. "Quem quer?"
"Aceito uma xícara", disse o dr. Lucafont. "Nada como uma estimulante xícara de café para começar o dia."
O sr. Poe franziu a testa. "O senhor não deveria ir primeiro dar uma olhada no dr. Montgomery?"
"É verdade, dr. Lucafont", disse Stephano. "O tempo é fator essencial numa emergência, o senhor não acha?"
"Sim, certo, acho que o senhor tem razão", disse o dr. Lucafont.
"O pobre dr. Montgomery está na Sala dos Répteis", disse Stephano, indicando com um gesto o local onde ainda jazia o tutor dos Baudelaire. "Por favor, faça um exame completo, e depois tu. lhe servirei o café."
"O senhor é quem manda", respondeu-lhe o dr. Lucafont, abrindo a porta da Sala dos Répteis com uma mão estranhamente rígida. Stephano levou o sr. Poe até a cozinha, e os meninos os seguiram, melancólicos. Quando nos sentimos inúteis e incapazes de ajudar, é hábito usar a expressão "sentir-se como uma quinta roda" (equivalente em outras línguas a "sentir-se como um peso morto"), porque se alguma coisa tem quatro rodas, como um vagão ou um carro, na verdade uma quinta não faz a menor falta. Enquanto Stephano preparava o café para os adultos, as três crianças sentaram-se à mesa da cozinha onde, fazia pouco tempo, haviam comido bolo de creme de coco com o tio Monty — e Violet, Klaus e Sunny sentiram-se como a quinta, a sexta e a sétima rodas de um carro que seguia para a direção errada: ou seja, rumo ao Porto Enevoado e ao Próspero, pronto para partir.
"Quando falei com o dr. Lucafont pelo telefone", disse Stephano, "mencionei o acidente com o seu carro. Assim que ele terminar o exame médico, irá de carro com o senhor até a cidade para buscar um mecânico, e eu ficarei aqui com as crianças."
"Não", disse Klaus com firmeza. "Não ficaremos a sós com ele nem por um instante."
O sr. Poe sorriu enquanto Stephano lhe servia uma xícara de café, e olhou severo para Klaus. "Klaus, eu compreendo que você esteja muito abalado, mas não se justifica que você continue tratando Stephano tão grosseiramente. Por favor, peça-lhe desculpas imediatamente."
"Não!", exclamou Klaus.
"Tudo bem, sr. Po", disse Stephano, querendo apaziguar. "As crianças estão abaladas com o assassinato do dr. Montgomery, e não é mesmo de esperar que se portem como modelos de boa educação."
"Assassinato?", disse Violet. Ela virou-se para Stephano e tentou parecer apenas polidamente curiosa, quando na verdade estava furiosa. "Por que você disse assassinato, Stephano?"
O rosto de Stephano anuviou-se, e as mãos dele agarraram-se aos quadris. Poderíamos dizer que neste momento o que ele mais gostaria de fazer era arrancar os olhos de Violet. "Troquei as palavras", disse, finalmente.
"Claro que sim", disse o sr. Poe, sorvendo o conteúdo de sua xícara. "Mas as crianças podem vir com o dr. Lucafont e comigo, se preferirem."
"Não sei se vão caber", disse Stephano, com os olhos brilhando. "É um carro muito pequeno. Mas se os órfãos preferirem não ficar, poderiam ir comigo no jipe e seguiríamos o senhor e o dr. Lucafont até o mecânico."
Os três órfãos entreolharam-se e ficaram pensando, muito concentrados. A situação se apresentava como um jogo, se bem que esse jogo envolvesse apostas muito altas. O objetivo era não ficarem sozinhos com Stephano, pois, caso ficassem, ele na mesma hora dispararia com eles para o Próspero. E o que então iria lhes acontecer, quando estivessem a sós no Peru com essa pessoa tão gananciosa e desprezível, era algo em que nem queriam pensar. Tinham que pensar era em como impedir que isso acontecesse. Parecia incrível que para salvar suas vidas dependessem de uma conversa sobre "quem daria carona a quem", mas muitas vezes na vida os pequenos detalhes acabam sendo os mais importantes.
"Por que não vamos com o dr. Lucafont", disse Violet cautelosamente, "e o sr. Poe vai no carro de Stephano?"
"Mas para quê?", perguntou o sr. Poe.
"Eu sempre quis ver o interior do automóvel de um médico", disse Violet, sabendo que essa era uma explicação pouco convincente.
"Pois eu também!", disse Klaus. "Por favor, podemos ir com o dr. Lucafont?"
"Sinto muito, mas não dá", disse o dr. Lucafont, chegando à porta de entrada e surpreendendo a todos com suas palavras. "Todos os três, pelo menos, é impossível. Coloquei o corpo do dr. Montgomery no meu carro e sobra espaço apenas para mais dois passageiros."
"O senhor já completou o exame?", perguntou o sr. Poe.
"O preliminar, sim", disse o dr. Lucafont. "Tenho que levar o corpo para testes ulteriores, mas minha autópsia mostra que o doutor morreu de uma mordida de cobra. Sobrou um pouco de café para mim?"
"É claro", respondeu Stephano, e serviu-lhe uma xícara.
"Como é que o senhor pode ter certeza?", Violet perguntou ao médico.
"Que é que você quer dizer?", falou o dr. Lucafont, achando muita graça na pergunta. "Posso ter certeza de que sobrou café porque o estou vendo diante de mim."
"O que Violet quer dizer, me parece", disse o sr. Poe, "é como o senhor pode ter certeza de que o dr. Montgomery morreu de uma mordida de cobra?"
"Encontrei em suas veias o veneno da Mamba do Mal, uma das cobras mais venenosas do mundo."
"Isso significa que há uma cobra venenosa solta nesta casa?", perguntou o sr. Poe.
"Não, nada disso", respondeu o dr. Lucafont. "A Mamba do Mal está isolada em sua gaiola. Deve ter saído, mordido o dr. Montgomery, e em seguida trancou-se de novo."
"O quê?!", perguntou Violet. "Que explicação mais absurda! Uma cobra não consegue abrir um cadeado sozinha."
"Talvez contasse com a ajuda de outras cobras", disse o dr. Lucafont, saboreando seu café tranqüilamente. "Há alguma coisa aqui para se comer? Tive que vir para cá correndo, com o estômago vazio."
"Sua história parece, de fato, um pouco estranha", disse o sr. Poe. Ele olhou interrogativamente para o dr. Lucafont, que estava neste momento abrindo um armário e olhando o que havia dentro.
"A experiência tem me mostrado que esses acidentes terríveis costumam ser estranhos", respondeu ele.
"Não pode ter sido um acidente", disse Violet. "O tio Monty é..." Ela se deteve. "O tio Monty foi um dos mais respeitados herpetologistas do mundo. Jamais deixaria uma cobra venenosa numa gaiola que ela pudesse abrir sozinha."
"Se não foi um acidente", disse o dr. Lucafont, "alguém teria feito isso de propósito. É óbvio que vocês três, crianças, não o mataram. E a única outra pessoa na casa era Stephano."
"E eu", apressou-se em acrescentar Stephano, "não entendo praticamente nada de cobras. Só estou trabalhando aqui há dois dias e mal tive tempo de aprender o que quer que fosse."
"Certamente parece ter sido um acidente", disse o sr. Poe. "É uma pena. Sinto muito, crianças. O dr. Montgomery tinha todo o perfil de um tutor adequado para vocês."
"Ele era mais do que isso", disse Violet sem levantar a voz. "Ele era muito, muito mais do que um tutor adequado."
"Essa comida é do tio Monty!, gritou Klaus de repente, com o rosto encrespado de raiva. Ele apontou para o dr. Lucafont, que havia tirado uma lata de dentro do armário. "Pare de avançar na comida dele!"
"Eu só ia apanhar uns pêssegos", disse o dr. Lucafont. Com uma das mãos estranhamente rígidas, ele segurava uma lata de pêssegos em calda comprada na véspera pelo tio Monty.
"Fique à vontade", disse o sr. Poe gentilmente ao dr. Lucafont. "As crianças estão muito abaladas. Estou certo de que o senhor pode compreender. Violet, Klaus e Sunny, por que não se afastam um pouco? Temos muito que discutir, e vocês estão obviamente muito estressados para participar. Vejamos, dr. Lucafont, vamos ver como podemos resolver este caso. O senhor tem espaço para três passageiros, incluindo o corpo do dr. Montgomery. E você, Stephano, tem espaço para três passageiros também."
"É muito simples", disse Stephano. "O senhor e o cadáver irão no carro do dr. Lucafont, e eu irei seguindo os senhores no meu carro com as crianças."
"Não", disse Klaus com firmeza.
"Ouçam, Baudelaire", disse o sr. Poe com igual firmeza, "podem fazer-nos o favor de se retirar um momento?"
"Afu!", gritou Sunny, o que provavelmente significava "Não".
"Claro que podemos", disse Violet, lançando a Klaus e Sunny um olhar significativo; tomando-os pelas mãos, foi meio que os levando, meio que os arrastando para fora da cozinha. Klaus e Sunny ergueram os olhos para a irmã mais velha e notaram que algo havia mudado nela. Seu rosto parecia mais decidido do que triste, e ela andava depressa como se estivesse atrasada ou algo parecido.
Vocês se lembram, é claro, de que, mesmo depois de passados muitos anos do episódio, Klaus ficaria deitado na cama sem conseguir dormir, tomado pelo arrependimento de não ter feito nenhum sinal chamando de volta o motorista do táxi que reintroduzira o conde Olaf mais uma vez em suas vidas. Com relação a isso, Violet teve mais sorte do que seu irmão. Pois, ao contrário de Klaus — tão surpreso quando reconheceu pela primeira vez Stephano que deixara passar a oportunidade de agir a respeito —, Violet, ouvindo a lengalenga interminável dos adultos, sentiu que aquele era o momento de agir. Não direi que Violet, anos depois, conseguisse dormir sem problemas ao pensar no que ficara para trás em sua vida — foram tantas as ocasiões dolorosas para os Baudelaire que dificilmente qualquer um deles teria um sono tranqüilo pela vida afora —, mas ela sempre se orgulhou de ter percebido no momento certo que ela e seus irmãos deveriam então retirar-se da cozinha e passar a um lugar que oferecesse maiores chances de ajuda.
"Que estamos fazendo?", perguntou Klaus. "Para onde estamos indo?" Sunny também olhou interrogativamente para a irmã, mas Violet, em resposta, simplesmente balançou a cabeça e andou ainda mais depressa na direção da Sala dos Répteis.

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