terça-feira, 21 de junho de 2011

Harry Potter e a Câmara Secreta, Capítulos 6 ao 10

CAPÍTULO SEIS
Gilderoy Lockhart

 No dia seguinte, porém, Harry mal conseguiu sorrir. As coisas começaram a rolar morro abaixo desde o café da manha no Salão Principal. As quatro mesas compridas, cada uma de uma casa, estavam cobertas de terrinas de mingau de aveia, travessas de peixe defumado, montanhas de torradas e pratos com ovos e bacon, sob o céu encantado (hoje, toldado por nuvens cinzentas). Harry e Rony sentaram-se à mesa da Grifinória ao lado de Hermione, que tinha um exemplar de Viagens com Vampiros, aberto, e apoiado numa jarra de leite. Havia uma certa formalidade na maneira como ela deu "Bom dia", o que informou a Harry que ela continuava a desaprovar a maneira como os garotos tinham chegado. Neville Longbottom, por outro lado, cumprimentou-os animado. Neville era um menino de rosto redondo e dado a acidentes, com a pior memória que Harry já vira em alguém.
— O correio deve chegar a qualquer momento, acho que vovó vai me mandar umas coisas que esqueci.
Harry mal tinha começado a comer o mingau quando, a confirmar o comentário, ouviu-se um rumorejo de asas, no alto, e uma centena de corujas entrou, descrevendo círculos pelo salão e deixando cair cartas e pacotes entre os alunos que tagarelavam. Um grande embrulho disforme bateu na cabeça de Neville, um segundo depois, alguma coisa grande e cinzenta caiu na jarra de Hermione, salpicando todo mundo com leite e penas.
— Errol!— exclamou Rony, puxando pelos pés a coruja molhada para fora da jarra. Errol caiu, desmaiada, em cima da mesa, as pernas para cima e um envelope vermelho e úmido no bico.
— Ah, não... —, exclamou Rony.
— Tudo bem, ele ainda está vivo — disse Hermione, cutucando Errol devagarinho com a ponta do dedo.
— Não é isso, é isto.
Rony estava apontando para o envelope vermelho. Parecia um envelope comum para Harry, mas Rony e Neville olharam para ele como se fosse explodir.
— Que foi? — perguntou Harry.
— Ela... Ela me mandou um "berrador" — disse Rony baixinho.
— É melhor abrir, Rony — sugeriu Neville com um sussurro tímido. — Vai ser pior se você não abrir. Minha avó um dia me mandou um e eu não dei atenção — ele engoliu em seco —, foi horrível.
Harry olhava dos rostos paralisados dos amigos para o envelope vermelho.
— Que é um berrador? — perguntou.
Mas toda a atenção de Rony estava fixa na carta, que começara a fumegar nos cantos.
— Abra — insistiu Neville. — Termina em poucos minutos...
Rony estendeu a mão trêmula, tirou o envelope do bico de Errol e abriu-o. Neville enfiou os dedos nos ouvidos. Uma fração de segundo depois, Harry descobriu o porquê. Pensou por um instante que o envelope explodira; um estrondo encheu o enorme salão, sacudindo a poeira do teto.

“... ROUBAR O CARRO, EU NÃO TERIA ME SURPREENDIDO SE O TIVESSEM EXPULSADO, ESPERE ATE EU PÔR AS MÃOS EM VOCÊ, SUPONHO QUE NÃO PAROU PARA PENSAR NO QUE SEU PAI E EU PASSAMOS QUANDO VIMOS QUE O CARRO TINHA DESAPARECIDO...”

Os berros da Sra. Weasley, cem vezes mais altos do que de costume, fizeram os pratos e talheres se entrechocarem na mesa e produziram um eco ensurdecedor nas paredes de pedra. As pessoas por todo o salão se viravam para ver quem recebera o berrador, e Rony afundou tanto na cadeira que só deixara a testa vermelha visível.

“... A CARTA DE DUMBLEDORE Á NOITE PASSADA, PENSEI QUE SEU PAI IA MORRER DE VERGONHA, NÃO O EDUCAMOS PARA SE COMPORTAR ASSIM, VOCÊ E HARRY PODIAM TER MORRIDO...”

Harry estava imaginando quando é que seu nome iria aparecer. Fez muita força para fingir que não estava escutando a voz que fazia seus tímpanos latejarem.

"... ABSOLUTAMENTE DESGOSTOSA, SEU PAI ESTA ENFRENTANDO UM INQUÉRITO NO TRABALHO, E É TUDO CULPA SUA, E, SE VOCÊ SAIR UM DEDINHO DA LINHA, VAMOS TRAZÊ-LO DIRETO PARA CASA.”

Seguiu-se um silêncio que chegou a ecoar. O envelope vermelho, que caíra das mãos de Rony, pegou fogo e encrespou-se em cinzas. Harry e Rony ficaram aturdidos, como se uma onda gigantesca tivesse acabado de passar por cima deles. Algumas pessoas riram e, aos poucos, a balbúrdia da conversa recomeçou.
Hermione fechou o Viagens com vampiros e olhou para o cocuruto da cabeça de Rony.
— Bem, não sei o que é que você esperava, Rony, mas você...
— Não me diga que mereci — retrucou Rony com rispidez.
Harry empurrou o prato de mingau. Suas entranhas queimavam de remorso. O Sr. Weasley estava enfrentando um inquérito no trabalho. Depois de tudo que o Sr. e a  Sra. Weasley tinham feito por ele durante o verão...
Mas não teve muito tempo para pensar nisso; a Profª. McGonagall vinha passando pela mesa da Grifinória, distribuindo os horários dos cursos. Harry recebeu o dele e viu que a primeira aula era uma aula dupla de Herbologia, com os alunos da Lufa- Lufa.
Harry, Rony e Hermione deixaram o castelo juntos, atravessaram a horta e rumaram para as estufas, onde as plantas mágicas eram cultivadas. Pelo menos o berrador fizera uma coisa boa: Hermione parecia achar que tinham sido suficientemente castigados e voltara a ser absolutamente simpática.
Ao se aproximarem das estufas viram o resto da classe em pé, do lado de fora, esperando a Profª. Sprout. Harry, Rony e Hermione tinham acabado de se reunir à turma quando a professora surgiu caminhando pelo gramado, acompanhada de Gilderoy Lockhart. Ela trazia os braços carregados de bandagens, e, com outro aperto de remorso, Harry viu o salgueiro lutador ao longe, com vários ramos em tipóias.
A Profª. Sprout era uma bruxinha atarracada que usava um chapéu remendado sobre os cabelos soltos; geralmente tinha uma grande quantidade de terra nas roupas, e suas unhas teriam feito tia Petúnia desmaiar. Gilderoy Lockhart, ao contrario, estava imaculado em suas espetaculares vestes azul-turquesa, os cabelos dourados brilhando sob um chapéu também turquesa, com galão dourado e perfeitamente assentado na cabeça.
— Ah, alô — cumprimentou ele, sorrindo para os alunos reunidos. — Acabei de mostrar à Profª. Sprout a maneira certa de cuidar de um salgueiro lutador! Mas não quero que vocês fiquem com a idéia de que sou melhor do que ela em Herbologia! Por acaso encontrei várias dessas plantas exóticas nas minhas viagens...
— Estufa três hoje, rapazes! — disse a Profª. Sprout, que tinha um ar visivelmente contrariado, bem diferente de sua habitual expressão animada.
Houve um murmúrio de interesse. Até então, só tinham estudado na estufa número um — a estufa três guardava plantas muito mais interessantes e perigosas. A Profª. Sprout tirou uma chave enorme do cinto e destrancou a porta. Harry sentiu um cheiro de terra molhada e fertilizante mesclados ao perfume pesado de umas flores enormes, do tamanho de sombrinhas que pendiam do teto. Ia entrar em seguida a Rony e Hermione na estufa quando Lockhart estendeu a mão.
— Harry! Estou querendo dar uma palavra... A senhora não se importa se ele se atrasar uns minutinhos, não é, Profª. Sprout?
A julgar pela cara de desagrado da professora, ela se importava sim, mas Lockhart disse:
— É isso ai — e fechou a porta da estufa na cara dela.
— Harry — disse Lockhart, os dentões brancos faiscando ao sol quando ele balançou a cabeça. — Harry, Harry, Harry.
Completamente estupefato, Harry ficou calado.
— Quando ouvi, bem, é claro que foi tudo minha culpa. Tive vontade de me chutar.
Harry não fazia idéia do que é que o professor estava falando. Ia dizer isso quando Lockhart acrescentou:
— Nunca fiquei tão chocado em minha vida. Chegar a Hogwarts num carro voador!  Bem, é claro, entendi na mesma hora por que você fez isso. Estava na cara. Harry, Harry, Harry.
Era incrível como é que ele conseguia mostrar cada um daqueles dentes brilhantes até quando não estava falando.
— Teve uma provinha de publicidade, não foi? — disse Lockhart. — Ficou mordido. Esteve na primeira página comigo e não pôde esperar para repetir o feito.
— Ah, não, Professor, sabe...
— Harry, Harry, Harry — disse Lockhart, segurando-o pelo ombro. — Eu compreendo.  É natural querer mais depois de provar uma vez, e eu me culpo por ter-lhe dado a oportunidade, porque a coisa não podia deixar de lhe subir à cabeça, mas olhe aqui, rapaz, você não pode começar a voar em carros para tentar chamar atenção para a sua pessoa. É bom se acalmar, está bem? Tem muito tempo para isso quando for mais velho. E, é, sei o que está pensando! "Tudo bem para ele, já é um bruxo internacionalmente conhecido!" Mas quando eu tinha doze anos, era um João-ninguém como você é agora. Diria até que era mais João-ninguém! Quero dizer, algumas pessoas já ouviram falar de você, não é mesmo? Todo aquele episódio com Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado! — Ele olhou para a cicatriz em forma de raio na testa de Harry. — Eu sei, eu sei, não é tão bom quanto ganhar o Prêmio do Sorriso mais Atraente do Semanário dos Bruxos cinco vezes seguidas, como eu, mas é um começo, Harry, é um começo.
Ele deu uma piscadela cordial a Harry e foi-se embora a passos largos. Harry continuou aturdido por alguns segundos, depois, lembrando-se de que devia estar na estufa, abriu a porta e entrou sem chamar atenção.
A Profª. Sprout estava parada atrás de uma mesa de cavalete no centro da estufa. Havia uns vinte pares de abafadores de ouvidos de cores diferentes arrumados sobre a mesa. Quando Harry tomou seu lugar entre Rony e Hermione, a professora disse:
— Vamos reenvasar mandrágoras hoje. Agora, quem é que sabe me dizer as propriedades da mandrágora?
Ninguém se surpreendeu quando a mão de Hermione foi a primeira a se levantar.
— A mandrágora é um tônico reconstituinte muito forte — disse Hermione, parecendo, como sempre, que engolira o livro-texto. — É usada para trazer de volta as pessoas que foram transformadas ou foram enfeitiçadas no seu estado natural.
— Excelente. Dez pontos para a Grifinória — disse a Profº. Sprout. — A mandrágora é parte essencial da maioria dos antídotos. Mas, é também perigosa. Quem sabe me dizer o porquê?
A mão de Hermione errou por pouco os óculos de Harry quando ela a levantou mais uma vez.
— O grito da mandrágora é fatal para quem o ouve — disse a garota prontamente.
— Exatamente. Mais dez pontos. Agora as mandrágoras que temos aqui ainda são muito novinhas.
Ela apontou para uma fileira de tabuleiros fundos ao falar, e todos se aproximaram para ver melhor. Umas cem moitinhas repolhudas, verde arroxeadas, cresciam em fileiras nos tabuleiros. Não pareciam ter nada de mais para Harry, que não fazia a menor idéia do que Hermione quisera dizer com o "grito" da mandrágora.
— Agora apanhem um par de abafadores de ouvidos — mandou a professora.
Os alunos correram para a mesa para tentar apanhar um par que não fosse peludo nem cor-de-rosa.
— Quando eu mandar vocês colocarem os abafadores, certifiquem-se de que suas orelhas ficaram completamente cobertas — disse ela. — Quando for seguro remover os abafadores eu erguerei o polegar para vocês.  Certo... Coloquem os abafadores.
Harry ajustou os abafadores nos ouvidos. Eles vedaram completamente o som. A Profª. Sprout colocou o seu par peludo e cor-de-rosa nas orelhas, enrolou as mangas das vestes, agarrou uma moitinha de mandrágora com firmeza e puxou-a com força.
Harry deixou escapar uma exclamação de surpresa que ninguém ouviu.  Em vez de raízes, um bebezinho extremamente feio saiu da terra. As folhas cresciam diretamente de sua cabeça. Ele tinha a pele verde-clara malhada e era visível que berrava a plenos pulmões.
A professora tirou um vaso de plantas grande de sob a bancada e mergulhou nele a mandrágora, cobrindo-a com o composto escuro e úmido até ficarem apenas as folhas visíveis. Depois, limpou as mãos, fez sinal com o polegar para os alunos e retirou os abafadores dos ouvidos.
— As nossas mandrágoras são apenas miudinhas, por isso seus gritos ainda não dão para matar — disse ela calmamente como se não tivesse feito nada mais excitante do que regar uma begônia. — Mas, elas deixarão vocês inconscientes por varias horas, e como tenho certeza de que nenhum de vocês quer perder o primeiro dia na escola, certifiquem-se de que seus abafadores estão no lugar antes de começarem a trabalhar. Chamarei sua atenção quando estiver na hora da saída.
— Quatro para cada tabuleiro, há um bom estoque de vasos aqui, o composto está nos sacos ali adiante, e tenham cuidado com aquela planta de tentáculos venenosos.  Está criando dentes.
Ela deu uma palmada enérgica em uma planta vermelha e espinhosa ao falar, fazendo-a recolher os longos tentáculos que avançavam sorrateiramente pelo seu ombro.
Harry, Rony e Hermione dividiram o tabuleiro com um garoto de cabelos cacheados da Lufa-Lufa que Harry conhecia de vista, mas com quem nunca falara.
— Justino Finch-Fletchley — apresentou-se ele animado, apertando a mão de Harry. — Eu sei quem você é, claro, o famoso Harry Potter.. E você é Hermione Granger, sempre a primeira em tudo — (Hermione deu um grande sorriso quando o garoto também apertou sua mão) —, e Rony Weasley. O carro voador era seu, não era?
Rony não sorriu. O berrador obviamente continuava em seus pensamentos.
— Aquele Lockhart é o máximo, não acha? — disse Justino, feliz, quando começaram a encher os vasos de planta com fertilizante de bosta de dragão. — Um cara super corajoso. Você leu os livros dele? Eu teria morrido de medo se tivesse sido acuado em uma cabine telefônica por um lobisomem, mas ele continuou na dele e, zás, simplesmente fantástico.  Eu estava inscrito em Eton, sabe. Nem sei dizer como estou contente de, em vez disso, ter vindo para cá. Claro, minha mãe ficou um pouco desapontada, mas desde que a fiz ler os livros de Lockhart acho que começou a perceber como será útil ter na família alguém formado em magia...”
Depois disso não houve muito o que conversar. Tinham tornado a colocar os abafadores e precisavam se concentrar nas mandrágoras. A Profª. Sprout fizera a tarefa parecer extremamente fácil, mas não era. As mandrágoras não gostavam de sair da terra, mas tampouco pareciam querer voltar para ela. Contorciam-se, chutavam, sacudiam os pequenos punhos afiados e arreganhavam os dentes; Harry gastou dez minutos inteiros tentando espremer uma planta particularmente gorda dentro de um vaso.
Lá pelo fim da aula, Harry, como todos os outros, estava suado, dolorido e coberto de terra. Eles voltaram ao castelo para se lavar rapidamente, e então os alunos da Grifinória correram para a aula de Transformaçoes.
As aulas da Profª. McGonagall eram sempre trabalhosas, mas a de hoje estava particularmente difícil. Tudo que Harry aprendera no ano anterior parecia ter-se esvaído de sua cabeça durante o verão. Devia transformar um besouro em um botão, mas a única coisa que conseguiu foi forçar o besouro a fazer muito exercício, pois o inseto corria por toda a superfície da carteira para fugir de sua varinha.
Rony estava enfrentando um problema muito pior. Tinha remendado a varinha com um pouco de fita adesiva que pedira emprestada, mas a varinha parecia danificada para sempre. Não parava de estalar e faiscar nas horas mais estranhas, e cada vez que Rony tentava transformar o besouro ela o envolvia em uma densa fumaça cinzenta que cheirava a ovos podres.
Acidentalmente ele esmagou o seu besouro com o cotovelo e teve que pedir um novo. A Profª. McGonagall não ficou nada satisfeita.
Foi um alívio para Harry ouvir a sineta para o almoço. Seu cérebro parecia ter virado uma esponja espremida. Todos saíram da sala exceto ele e Rony, que, furioso, dava golpes de varinha na carteira.
— Coisa, burra, inútil.
— Escreva para casa pedindo uma nova — sugeriu Harry quando a varinha produziu uma saraivada de tiros feito um rojão.
— Ah, sim, e recebo outro berrador em resposta — disse Rony enfiando na mochila a varinha, que agora sibilava. — "A culpa é sua se sua varinha partiu...”
Os três amigos desceram para o refeitório, onde o humor de Rony não melhorou ao ver a coleção de botões perfeitos que Hermione mostrava ter feito na aula de Transformações.
— Que vamos ter hoje à tarde? — perguntou Harry, mudando de assunto depressa.
— Defesa contra as Artes das Trevas — respondeu Hermione na mesma hora.
— Por que — perguntou Rony, apanhando o horário dela — você sublinhou com coraçõezinhos as aulas de Lockhart?
Hermione puxou o horário da mão de Rony, corando loucamente.
Quando terminaram o almoço os três saíram para o pátio nublado.
Hermione se sentou em um degrau de pedra e tornou a enfiar o nariz em Viagem com Vampiro.
Harry e Rony ficaram discutindo Quadribol durante vários minutos até Harry perceber que estava sendo atentamente vigiado. Ao erguer os olhos, viu que o garoto miudinho de cabelos louro-cinza que ele vira experimentando o Chapéu Seletor na véspera o encarava como que paralisado. Estava agarrado a um objeto que parecia uma máquina fotográfica de trouxas e, no momento em que Harry olhou para ele, ficou escarlate.
— Tudo bem, Harry? Sou... Colin Creevey — disse o menino sem fôlego, adiantando-se hesitante. — Sou da Grifinória também. Você acha que tem algum problema se... Posso tirar uma foto? — disse, erguendo a máquina, esperançoso.
— Uma foto? — repetiu Harry sem entender.
— Para provar que conheci você — disse Colin Creevey ansioso, aproximando-se mais. — Sei tudo sobre você. Todo mundo me contou. Como foi que você sobreviveu quando Você-Sabe-Quem tentou matá-lo e como foi que ele desapareceu e tudo o mais, e como você ainda conserva a cicatriz em forma de raio na testa — seus olhos esquadrinharam a raiz dos cabelos de Harry —, e um garoto no meu dormitório disse que se eu revelar o filme na poção correta, as fotos vão se mexer — Colin inspirou profundamente, estremecendo de excitação, e disse:
— Isto aqui é fantástico, não acha? Eu não sabia que as coisas estranhas que eu fazia eram magia até receber uma carta de Hogwarts. Meu pai é leiteiro, ele também não conseguia acreditar. Então estou tirando um montão de fotos para levar para ele. E seria bem bom se tivesse a sua — o garoto olhou para Harry como se implorasse.
— Quem sabe o seu amigo podia tirar, e eu podia ficar do seu lado? E depois você podia autografar a foto?
— Autografar a foto? Você está distribuindo fotos autografadas, Potter?
A voz de Draco Malfoy, alta e desdenhosa, ecoou pelo pátio. Ele parara logo atrás de Colin, ladeado, como sempre que estava em Hogwarts, pelos capangas grandalhões, Crabbe e Goyle.
— Todo mundo em fila! — gritou Malfoy para os outros alunos. — Harry Potter está distribuindo fotos autografadas!
— Não, não estou não — disse Harry com raiva, cerrando os punhos. — Cale a boca, Malfoy.
— Você está é com inveja — ouviu-se a voz fina de Colin, cujo corpo inteiro era da grossura do pescoço de Crabbe.
— Inveja? — disse Malfoy, que não precisava mais gritar: metade do pátio estava escutando. — De quê? Não quero uma cicatriz nojenta na minha testa, muito obrigado. Por mim, não acho que ter a cabeça aberta faz ninguém especial.
Crabbe e Goyle davam risadinhas idiotas.
— Vá comer lesmas, Malfoy — disse Rony furioso. Crabbe parou de rir e começou a esfregar os nós dos dedos de maneira ameaçadora.
— Cuidado, Weasley — caçoou Malfoy. — Você não vai querer começar nenhuma confusão ou sua mamãe vai aparecer aqui para tirá-lo da escola. — Ele imitou a voz aguda e penetrante: — "Se você sair um dedinho da linha...”
Um grupo de quintanistas da Sonserina que estava próximo deu gargalhadas ao ouvir isso.
— Weasley gostaria de ganhar uma foto autografada, Potter. — riu-se Malfoy. — Valeria mais do que a casa inteira da família dele...
Rony brandiu a varinha emendada, mas Hermione fechou o Viagens com Vampiros com um estalo e cochichou:
— Cuidado!
— Que está acontecendo, que está acontecendo? — Gilderoy Lockhart vinha em passos largos em direção à aglomeração, suas vestes turquesa rodopiando para trás.
— Quem é que está distribuindo fotos autografadas?
Harry começou a falar, mas foi interrompido por Lockhart que passou um braço pelos seus ombros e trovejou jovial:
— Não devia ter perguntado! Nos encontramos outra vez, Harry!
Preso contra o corpo de Lockhart e ardendo de humilhação, Harry viu Malfoy sair de fininho, rindo-se, para junto dos outros colegas.
— Vamos então, Sr. Creevey — disse Lockhart, sorrindo para o garoto. — Uma foto dupla, nada melhor, e nós dois podemos autografá-la para o senhor.
Colin ajeitou a máquina e tirou a foto na hora em que a sineta tocava às costas do grupo, sinalizando o início das aulas da tarde.
— Está na hora, vamos andando vocês aí — gritou Lockhart para os alunos e voltou ao castelo com Harry, que teve vontade de conhecer um bom feitiço para desaparecer, ainda preso ao professor.
— Uma palavra para o bom entendedor, Harry — disse Lockhart paternalmente quando entravam no castelo por uma porta lateral. — Dei cobertura a você lá com o jovem Creevey, se ele estivesse me fotografando, também, os seus colegas não iriam pensar que você está se dando ares...
Surdo aos murmúrios hesitantes de Harry, Lockhart arrebatou-o por um corredor ladeado por estudantes de olhos arregalados e subiu uma escada.
— Devo dizer que distribuir fotos autografadas nessa altura de sua carreira não é sensato, parece meio presunçoso, Harry, para ser franco. Haverá um dia em que, como eu, você vai precisar ter uma pilha de fotos à mão onde quer que vá, mas — ele deu uma risadinha — acho que você ainda não chegou lá.
Ao chegarem à sala de aula de Lockhart ele finalmente soltou Harry. O garoto endireitou as vestes e se dirigiu a uma carteira bem no fundo da sala, onde se ocupou em empilhar os sete livros de Lockhart diante dele, de modo que pudesse evitar olhar para o autor em carne e osso.
O resto da classe entrou fazendo barulho, e Rony e Hermione se sentaram um de cada lado de Harry.
— Você podia ter fritado um ovo na cara — comentou Rony.
— É melhor rezar para Creevey não conhecer a Gina, ou os dois vão começar um fã-clube do Harry Potter.
— Cale a boca — disse Harry ríspido. — A última coisa que precisava era que Lockhart ouvisse a frase "fã-clube do Harry Potter".
Quando a classe inteira se sentou, Lockhart pigarreou alto e fez-se silêncio. Ele esticou o braço, apanhou o exemplar de Viagens com Trasgos de Neville Longbottom e ergueu-o para mostrar a própria foto na capa, piscando o olho.
— Eu — disse apontando a foto e piscando também. — Gilderoy Lockhart, Ordem de Merlin, Terceira Classe, Membro Honorário da Liga de Defesa contra as Forças do Mal e vencedor do Prêmio Sorriso mais Atraente da revista Semanário dos Bruxos cinco vezes seguidas, mas não falo disso. Não me livrei do espírito agourento de Bandon sorrindo para ela.
Ficou esperando que sorrissem; alguns poucos deram um sorrisinho amarelo.
— Vejo que todos compraram a coleção completa dos meus livros, muito bem. Pensei em começarmos hoje com um pequeno teste. Nada para se preocuparem, só quero verificar se vocês leram os livros com atenção, e o quanto assimilaram...
Depois de distribuir os testes ele voltou à frente da classe e falou:
— Vocês têm trinta minutos... Começar, agora!
Harry olhou para o teste e leu:

1. Qual é a cor favorita de Gilderoy Lockhart?
2. Qual é a ambição secreta de Lockhart?
3. Qual é na sua opinião a maior realização de Gilderoy                 Lockhart até o momento?

E as perguntas continuavam, ocupando três páginas, até a última:

54. Quando é o aniversário de Gilderoy Lockhart e qual seria o presente ideal  para ele?

Meia hora depois, Lockhart recolheu os testes e folheou-os diante da classe.
— Tsk, tsk, quase ninguém se lembrou que a minha cor favorita é lilás. Digo isto no Um ano com o Ieti. E alguns de vocês precisam ler Passeios com Lobisomens com mais atenção, afirmo claramente no capítulo doze que o presente de aniversário ideal para mim seria a harmonia entre os povos mágicos e não-mágicos, embora eu não recuse um garrafão do Velho Uísque de Fogo Ogden!
E deu outra piscadela travessa para os alunos. Rony fitava Lockhart com uma expressão de incredulidade no rosto; Simas Finnigan e Dino Thomas, que estavam sentados à frente, sacudiam-se de riso silencioso. Hermione, por outro lado, escutava Lockhart embevecida e atenta e se assustou quando o ouviu mencionar seu nome.
— Mas a Srta. Hermione Granger sabia que a minha ambição secreta era livrar o mundo do mal e comercializar a minha própria linha de poções para os cabelos, boa menina! Na realidade — ele virou o teste — ela acertou tudo! Onde está a Srta. Hermione Granger?
Hermione levantou a mão trêmula.
— Excelente! — disse o sorridente Lockhart. — Excelente mesmo! Dez pontos para a Grifinória! E agora, ao trabalho...
Virou-se para a mesa e depositou nela uma grande gaiola coberta.
— Agora, fiquem prevenidos! É meu dever ensiná-los a se defender contra a pior criatura que se conhece no mundo da magia! Vocês podem estar diante dos seus maiores medos aqui nesta sala. Saibam que nenhum mal vai lhes acontecer enquanto eu estiver aqui. Só peço que fiquem calmos.
Sem querer, Harry se curvou para um lado da pilha de livros que erguera para dar uma olhada melhor na gaiola. Lockhart colocou a mão na cobertura.
Dino e Simas pararam de rir agora. Neville se afundou em sua carteira na primeira fila.
— Peço que não gritem — recomendou Lockhart em voz baixa. — Pode provocá-los.
E a classe inteira prendeu a respiração. Lockhart puxou a cobertura com um gesto largo.
— Sim, senhores — disse teatralmente. — Diabretes da Cornualia recém capturados.
Simas Finnigan não conseguiu se controlar. Deixou escapar uma risada pelo nariz que nem mesmo Lockhart poderia confundir com um grito de terror.
— Que foi? — Ele sorriu para Simas.
— Bem, eles não são... Não são muito... Perigosos, são? — engasgou-se Simas.
— Não tenha tanta certeza assim! — disse Lockhart, sacudindo um dedo, aborrecido, para Simas. — Esses bandidinhos podem ser diabolicamente astutos!
Os diabretes eram azul-elétrico e tinham uns vinte centímetros de altura, os rostos finos e as vozes tão agudas que pareciam um bando de periquitos fazendo algazarra. No instante em que a cobertura foi retirada, eles começaram a falar e a voar de maneira rápida e excitada, a sacudir as grades e a fazer caras esquisitas para as pessoas mais próximas.
— Certo, então — disse Lockhart em voz alta. — Vamos ver o que vocês acham deles! — E abriu a gaiola.
Foi um pandemônio. Os diabretes disparavam em todas as direções como foguetes.
Dois deles agarraram Neville pelas orelhas e o ergueram no ar, Vários outros voaram direto pelas janelas fazendo cair uma chuva de estilhaços de vidro no canteiro. Os demais se puseram a destruir a sala de aula com mais eficiência do que um rinoceronte desembestado. Agarraram tinteiros e salpicaram a sala de tinta, picaram livros e papéis, arrancaram quadros das paredes, viraram a cesta de lixo, pegaram as mochilas e livros e os atiraram contra as vidraças quebradas; em poucos minutos, metade da classe estava abrigada embaixo das carteiras e, Neville, pendurado no teto pelo lustre de ferro.
— Vamos, vamos, reúnam eles, reúnam eles, são apenas diabretes — gritou Lockhart.
Ele enrolou as mangas, brandiu a varinha e berrou:
Peskipiksi ksi pesternomi!
As palavras não produziam efeito algum; um dos diabretes se apoderou da varinha e atirou-a também pela janela.
Lockhart engoliu em seco e mergulhou embaixo da mesa, escapando por pouco de ser esmagado por Neville, que despencou um segundo depois quando o lustre cedeu.
A sineta tocou, e todos desembestaram para a saída. Na calma relativa que se seguiu, Lockhart levantou-se, viu Harry, Rony e Hermione, que estavam quase na porta, e disse:
— Bem, vou pedir a vocês que enfiem rapidamente os restantes de volta na gaiola. — E, passando pelos três, fechou a porta depressa.
— Dá para acreditar? — rugiu Rony quando um dos diabretes restantes lhe deu uma dolorosa mordida na orelha.
— Ele só quer nos dar uma experiência direta — disse Hermione, imobilizando dois diabretes ao mesmo tempo com um inventivo Feitiço Congelante e enfiando-os de volta na gaiola.
— Direta? — disse Harry, que estava tentando agarrar um diabrete que dançava fora do seu alcance dando-lhe língua. — Mione, ele não tinha a menor idéia do que estava fazendo...
— Bobagem. Você leu os livros dele, vê só todas as coisas incríveis que ele fez...
— Que ele diz que fez — murmurou Rony.



CAPÍTULO SETE
Sangue Ruim

Harry dedicou muito tempo, nos dias seguintes, a desaparecer de vista sempre que Gilderoy Lockhart aparecia andando por um corredor. Mais difícil foi evitar Colin Creevey, que parecia ter decorado o seu horário. Pelo visto nada dava maior alegria a Colin do que dizer: "Tudo bem, Harry?" seis ou sete vezes por dia e ouvir: "Oi, CoLin", em resposta, por maior irritação que Harry demonstrasse ao dizer isso.
Edwiges continuava aborrecida com Harry por causa da desastrada viagem de carro e a varinha de Rony continuava a, funcionar mal, superando os próprios limites na sexta-feira na aula de Feitiços, ao se atirar da mão de Rony e atingir o Profº. Flitwick bem no meio dos olhos, produzindo um grande furúnculo verde e Latejante no lugar em que bateu. Assim entre uma coisa e outra, Harry ficou muito contente ao ver chegar o fim de semana. Ele, Rony e Mione estavam planejando visitar Hagrid no sábado de manhã. Harry, porém, foi acordado muito antes da hora que pretendera pelas sacudidas de Olívio Wood, capitão do time de Quadribol da Grifinória.
— Que foi? — perguntou Harry tonto de sono.
— Prática de Quadribol! — disse Wood. — Vamos!
Harry espiou pela janela apertando os olhos. Havia uma névoa rala cobrindo o céu rosa e dourado. Agora que acordara, ele não conseguia entender como podia estar dormindo com a algazarra que os passarinhos faziam.
— Olívio — disse ele com a voz rouca. — O dia ainda está amanhecendo.
— Exato — respondeu Wood. Ele era um sextanista alto e forte e, naquele instante, seus olhos brilhavam de fanático entusiasmo. — Faz parte do nosso novo programa de treinamento. Ande, pegue a vassoura e vamos — disse Wood animado. — Nenhum dos times começou a treinar ainda; vamos ser os primeiros a dar a partida este ano...
Aos bocejos e tremores, Harry saiu da cama e tentou encontrar as vestes de Quadribol.
— Muito bem — disse Wood. — Te encontro no campo daqui a quinze minutos.
Depois de procurar o uniforme vermelho do time e vestir uma capa para se aquecer, Harry rabiscou um bilhete para Rony explicando onde fora e desceu a escada em caracol até a sala comunal, a Nimbus 2000 ao ombro. Acabara de chegar ao buraco do retrato quando ouviu um estardalhaço às suas costas, e Colin Creevey apareceu correndo escada abaixo, a máquina fotográfica balançando feito louca ao pescoço e alguma coisa segura na mão.
— Ouvi alguém dizer o seu nome na escada, Harry! Olhe só o que tenho aqui! Mandei revelar, queria lhe mostrar...
Harry examinou confuso a foto que Colin sacudia debaixo do seu nariz.
Numa foto preto-e-branco, um Lockhart em movimento puxava com força um braço que Harry reconhecia como seu. Ficou satisfeito ao ver que o seu eu fotográfico resistia bravamente e recusava a se deixar arrastar para dentro da foto. Enquanto Harry observava, Lockhart desistiu e se largou, ofegante, contra a margem branca da foto.
— Você autografa? — perguntou Colin, ansioso.
— Não — disse Harry sem rodeios, olhando para os lados para verificar se a sala estava realmente deserta. — Desculpe, Colin, estou com pressa, prática de Quadribol...
E atravessou o buraco do retrato.
— Uau! Espere por mim! Nunca — vi um jogo de Quadribol antes!
Colin subiu pelo buraco atrás de Harry.
— Vai ser bem chato — disse Harry depressa, mas o garoto não lhe deu atenção, seu rosto iluminava-se de excitação.
— Você foi o jogador da casa mais novo em cem anos, não foi, Harry? Não foi? — perguntou Collin, caminhando ao lado dele. — Você deve ser genial. Eu nunca voei. É fácil? Esta vassoura é sua? É a melhor que existe?
Harry não sabia como se livrar do coleguinha. Era como ter uma sombra extremamente tagarela.
— Eu não entendo bem de Quadribol — disse Colin sem fôlego. — É verdade que tem quatro bolas? E duas ficam voando em volta dos jogadores tentando tirá-los de cima das vassouras?
— É — disse Harry a contragosto, conformado em explicar as regras complicadas do Quadribol. — Chamam-se balaços. Há dois batedores em cada time armados de bastões para rebater os balaços para longe do seu time. Fred e Jorge Weasley batem pela Grifinória.
— E para que servem as outras bolas? — perguntou Colin, derrapando dois degraus porque olhava boquiaberto para Harry.
— Bem, a goles, a bola vermelha meio grande, é a que faz os gols. Três apanhadores em cada time atiram a goles um para o outro e tentam metê-La entre as balizas na extremidade do campo, são três postes compridos com aros na ponta.
— E a quarta bola...
— ... É o pomo de ouro — disse Harry —, e é muito pequena, muito veloz e difícil de agarrar. Mas é isso que o apanhador tem que fazer, porque um jogo de Quadribol não termina até o pomo ser capturado. E o apanhador que agarra o pomo para o time ganha cento e cinqüenta pontos a mais.
— E você é o apanhador da Grifinória, não é? — perguntou Colin cheio de admiração e respeito.
— Sou — respondeu Harry enquanto deixavam o castelo e começavam a atravessar o gramado encharcado de orvalho. — E tem o goleiro também. Ele guarda as balizas. É isso, em resumo.
Mas Colin não parou de interrogar Harry o tempo todo, desde o gramado ondulante até o campo de Quadribol, e Harry só conseguiu se desvencilhar dele quando chegou aos vestiários; Colin ainda gritou com sua voz fina quando ele se afastava.
— Vou pegar um bom lugar, Harry! — e correu para as arquibancadas.
Os outros jogadores do time da Grifinória já estavam no vestiário. Wood era o único que parecia realmente acordado. Fred e Jorge estavam sentados, os olhos inchados e os cabelos despenteados, ao lado de uma quartanista, Alicia Spinnet, que parecia estar cabeceando contra a parede em que se encostara. As outras artilheiras, suas companheiras, Katie Bell e Angelina Johnson, bocejavam lado a lado de frente para eles.
— Até que enfim, Harry, por que demorou? — perguntou Wood eficiente. — Agora, eu queria ter uma conversinha com vocês antes de irmos para o campo, porque passei o verão imaginando um programa de treinamento completamente novo, que acho que vai fazer toda a diferença...
Wood ergueu um grande diagrama de um campo de Quadribol, em que estavam desenhadas muitas linhas, setas e cruzes em tinta de cores diversas. Depois, puxou a varinha, deu uma batidinha no desenho, e as flechas começaram a se deslocar pelo diagrama como lagartas. Quando Wood deslanchou um discurso sobre as novas táticas, a cabeça de Fred Weasley despencou no ombro de Alicia Spinnet e ele começou a roncar.
O primeiro quadro levou quase vinte minutos para ser explicado, mas havia outro por baixo daquele, e um terceiro por baixo do segundo. Harry mergulhou num estupor durante a falação interminável de Wood.
— Então — disse Wood, finalmente, arrancando Harry de uma irrealizável fantasia sobre o que estaria comendo no café da manhã, naquele instante, no castelo. — Ficou claro? Alguma pergunta?
— Tenho uma pergunta, Olivio — disse Jorge, que acordara assustado. — Você não podia ter explicado tudo isso ontem quando a gente estava acordado?
Wood não gostou.
— Agora, ouçam aqui, vocês todos — disse, amarrando a cara. — Nós devíamos ter ganho a taça de Quadribol no ano passado.
Somos sem favor nenhum o melhor time da escola. Mas, infelizmente, devido a circunstâncias fora do nosso controle...
Harry se mexeu cheio de culpa no banco. Estivera inconsciente na ala hospitalar no último jogo do ano anterior, o que significava que a Grifinória tivera um jogador a menos e sofrera sua pior derrota em trezentos anos.
Wood esperou um instante para recuperar o próprio controle. A última derrota, visivelmente, continuava a torturá-lo.
— Então, este ano, vamos treinar mais do que jamais treinamos... Muito bem, vamos colocar as nossas teorias em prática! — gritou Wood, agarrando a vassoura e saindo do vestiário. As pernas dormentes e, ainda bocejando, o time o acompanhou.
Tinham passado tanto tempo no vestiário que o sol já estava todo de fora, embora ainda se vissem restos de névoa sobre o gramado do estádio. Quando Harry entrou em campo, viu Rony e Mione sentados nas arquibancadas.
— Vocês ainda não acabaram? — gritou Rony surpreso.
— Nem começamos — respondeu Harry, olhando com inveja a torrada com geléia que Rony e Mione tinham trazido do Salão. — Wood esteve ensinando novas jogadas ao time.
Ele montou na vassoura, meteu o pé no chão para dar impulso e saiu voando, O ar frio da manhã bateu em seu rosto, acordando-o com muito mais eficiência do que a longa conversa de Wood. Era uma sensação maravilhosa estar de volta a um campo de Quadribol. Harry sobrevoou o estádio a toda velocidade, apostando corrida com Fred e Jorge.
— Que clique-clique esquisito é esse? — gritou Fred enquanto faziam uma volta rápida.
Harry olhou para as arquibancadas. Colin estava sentado em um dos lugares mais altos, a máquina fotográfica levantada, tirando fotos seguidas, o som estranhamente ampliado no estádio deserto.
— Olhe para cá, Harry! Para cá! — gritava se esganiçando.
— Quem é aquele? — perguntou Fred.
— Não faço a menor idéia — mentiu Harry dando uma bombeada na vassoura que o levou o mais longe possível de Colin.
— Que é que está acontecendo? — perguntou Wood, franzindo a testa, enquanto cortava o ar em direção a eles. — Por que aquele aluninho de primeiro ano está tirando fotos? Não gosto disto. Pode ser um espião da Sonserina, tentando descobrir o nosso novo programa de treinamento.
— Ele é da Grifinória — informou Harry depressa.
— E o pessoal da Sonserina não precisa de espião, Olivio — acrescentou Jorge.
— Por que você está dizendo isso? — perguntou Wood irritado.
— Porque eles vieram pessoalmente — respondeu Jorge apontando.
Vários alunos de vestes verdes estavam entrando em campo, de vassouras na mão.
— Eu não acredito! — sibilou Wood indignado. — Reservei o campo para hoje!
— Vamos cuidar disso.
Wood mergulhou até o chão, aterrissando em sua raiva, com muito mais força do que pretendia, e cambaleou um pouco ao desmontar. Harry, Fred e Jorge o acompanharam.
— Flint! — berrou Wood para o capitão da Sonserina. — Está na hora do nosso treino! Levantamos especialmente para isso!
— Pode ir dando o fora!
Marcos Flint era ainda mais corpulento do que Hood. Tinha uma expressão de trasgo astucioso quando respondeu:
— Tem bastante espaço para todos nós, Wood.
Angelina, Alicia e Katie tinham se aproximado também. Não havia mulheres no time da Sonserina, para ficarem, ombro a ombro, com ar de desdém, encarando os jogadores da Grifinória.
— Mas eu reservei o campo! — disse Wood, praticamente cuspindo de raiva. — Eu reservei!
— Ah, mas tenho um papel aqui assinado pelo Profº. Snape.
"Eu, Profº. Snape, dei ao time da Sonserina permissão para praticar hoje no campo de Quadribol, face á necessidade de treinarem o seu novo apanhador.”
— Vocês têm um novo apanhador? — perguntou Wood, distraído. — Onde?
E por trás dos seis jogadores grandalhões surgiu diante deles um sétimo, menor, com um sorriso que se irradiava por todo o rosto pálido e fino. Era Draco Malfoy!
— Você não é o filho do Lúcio Malfoy? — perguntou Fred, olhando Draco com ar de desagrado.
— Engraçado você mencionar o pai do Draco — disse Flint enquanto o time inteiro da Sonserina sorria com mais prazer.
— Deixe eu mostrar a vocês o presente generoso que ele deu ao time da Sonserina.
Os sete mostraram as vassouras. Sete cabos polidos, novos em folha, e sete conjuntos de letras douradas, formando as palavras Nimbus 2001, reluziam sob os narizes dos jogadores da Grifinória, ao sol do amanhecer.
— Último modelo. Saiu no mês passado — disse Flint displicente, tirando um grão de poeira da ponta de sua vassoura com um peteleco. — Acho que bate de longe a série antiga das 2000. Quanto às velhas Cleansweep — e sorriu de modo desagradável para Fred e Jorge, que seguravam esse tipo de vassoura —, varram o placar com elas.
Nenhum dos jogadores da Grifmória conseguiu pensar em nada para dizer naquele instante. Draco exibia um sorriso tão grande que seus olhos frios estavam reduzidos a fendas.
— Ah, olha ali — disse Flint. — Uma invasão de campo.
Rony e Mione vinham atravessando o gramado para ver o que estava acontecendo.
— Que é que está havendo? — perguntou Rony a Harry. — Por que vocês não estão jogando? E que é que ele está fazendo aqui?
Olhava para Draco, reparando nas vestes de Quadribol com as cores da Sonserina que o garoto usava.
— Sou o novo apanhador da Sonserina, Weasley — disse Draco, presunçoso. — O pessoal aqui está admirando as vassouras que meu pai comprou para o nosso time.
Rony olhou, boquiaberto, as sete magníficas vassouras diante dele.
— Boas, não são? — disse Draco com a voz macia. — Mas quem sabe o time da Grifinória pode levantar um ourinho e comprar vassouras novas, também. Você podia fazer uma rifa dessas Cleansweep 5; imagino que um museu talvez queira comprá-las.
O time da Sonserina dava gargalhadas.
— Pelo menos ninguém do time da Grifinória teve de pagar para entrar — disse Mione com aspereza. — Entraram por puro talento.
O ar presunçoso de Draco pareceu oscilar.
— Ninguém pediu sua opinião, sua sujeitinha de sangue ruim. — xingou ele.
Harry percebeu na hora que Draco dissera uma coisa realmente ofensiva, porque houve um tumulto instantâneo em seguida às suas palavras. Flint teve que mergulhar na frente de Draco para impedir que Fred e Jorge se atirassem contra ele. Alicia gritou com voz aguda:
— Como é que você se atreve! — e Rony mergulhou a mão nas vestes, puxou a varinha e gritou:
— Você vai me pagar! — e apontou a varinha, furioso, para a cara e Draco, por baixo do braço de Flint.
Um estrondo muito forte ecoou pelo estádio, e um jorro de luz verde saiu da ponta oposta da varinha de Rony, atingiu-o na barriga e o atirou de costas na grama.
— Rony! Rony! Você está bem? — gritou Mione.
Rony abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Em vez disso, ele soltou um poderoso arroto e várias lesmas caíram de sua boca para o colo.
O time da Sonserina ficou paralisado de tanto rir. Flint, dobrado pela cintura, tentava se apoiar na vassoura nova. Draco caíra de quatro, dando murros no chão. Os alunos da Grifinória agrupavam-se em torno de Rony, que não parava de arrotar lesmas enormes. Ninguém parecia querer tocar nele.
— É melhor levarmos o Rony para a casa de Hagrid, é mais perto — disse Harry a Mione, que concordou cheia de coragem, e os dois levantaram o amigo pelos braços.
— Que aconteceu, Harry? Que aconteceu? Ele está doente? Mas você pode curá-lo, não pode? — Colin descera correndo das arquibancadas e agora dançava em volta dos meninos que saíam de campo. Rony deu um enorme suspiro e mais lesmas rolaram pelo seu peito.
— "Aaah", exclamou Colin, fascinado, erguendo a máquina fotográfica. "Pode manter ele parado, Harry?”
— Sai da frente, Colin! — disse Harry com raiva. Ele e Mione carregaram Rony para fora do estádio e atravessaram os jardins em direção à orla da floresta.
— Estamos quase lá, Rony — disse Mione quando a cabana do guarda-caça tornou-se visível. — Você vai ficar bom num instante, estamos quase chegando...
Estavam a uns cinco metros da casa de Hagrid quando a porta de entrada se abriu, mas não foi Hagrid que apareceu.
Gilderoy Lockhart, hoje com vestes lilás clarinho, vinha saindo.
— Depressa, aqui atrás — sibilou Harry, arrastando Rony para trás de uma moita próxima. Mione seguiu-o, um tanto relutante.
— É muito simples se você sabe o que está fazendo! — Lockhart dizia em voz alta a Hagrid. — Se precisar de ajuda, você sabe onde estou! Vou-lhe dar uma cópia do meu livro. Estou surpreso que ainda não o tenha comprado: vou autografar um exemplar hoje à noite e mandar para você. Bom, adeus. — E saiu em direção ao castelo.
Harry esperou até Lockhart desaparecer de vista, então puxou Rony da moita até a porta de Hagrid. Bateram apressados.
Hagrid abriu na mesma hora, parecendo muito rabugento, mas seu rosto se iluminou quando viu quem era.
— Estive pensando quando é que vocês viriam me ver, entrem, entrem, achei que podia ser o Profº. Lockhart outra vez...
Harry e Mione ajudaram Rony a entrar na cabana sala-e-quarto, que tinha uma cama enorme em um canto, uma lareira com um fogo vivo no outro.
Hagrid não pareceu perturbado com o problema das lesmas de Rony, que Harry explicou em poucas palavras enquanto baixava o amigo em uma cadeira.
— Melhor para fora do que para dentro — disse Hagrid animado, baixando com ruído uma grande bacia de cobre na frente do menino. — Ponha todas para fora, Rony.
— Acho que não há nada a fazer exceto esperar que a coisa passe — disse Mione ansiosa, observando Rony se debruçar na bacia. — É um feitiço difícil de fazer em condições ideais, ainda mais com uma varinha quebrada...
Hagrid ocupou-se pela cabana preparando chá para os meninos. Seu cão de caçar javalis, Canino, fazia festas a Harry, sujando-o todo.
— Que é que Lockhart queria com você, Hagrid? — perguntou Harry, coçando as orelhas de Canino.
— Estava me dando conselhos para manter um poço livre de algas — rosnou Hagrid, tirando um galo meio depenado de cima da mesa bem esfregada e pousando nela o bule de chá. — Como se eu não soubesse. E ainda fez farol sobre um espírito agourento que ele espantou. Se uma única palavra do que disse for verdade eu como a minha chaleira.
Não era hábito de Hagrid criticar professores de Hogwarts, e Harry olhou-o surpreso. Mione, porém, disse num tom mais alto do que de costume:
— Acho que você está sendo injusto. É óbvio que o Profº. Dumbledore achou que ele era o melhor candidato para a vaga...
— Ele era o único candidato — disse Hagrid, oferecendo-lhes um prato de quadradinhos de chocolate, enquanto Rony tossia e vomitava na bacia. — E quero dizer o único mesmo. Está ficando muito difícil encontrar alguém para ensinar Artes das Trevas. As pessoas não andam muito animadas para assumir esta função. Estão começando a achar que esta enfeitiçada. Ultimamente ninguém demorou muito nela. Agora me contem — disse hagrid, indicando Rony com a cabeça. — Quem é que ele estava tentando enfeitiçar?
— Malfoy chamou Mione de alguma coisa, deve ter sido muito ruim porque ele ficou furioso.
— Foi ruim — disse Rony, rouco, erguendo-se, lívido e suado, até a superfície da mesa. — Malfoy chamou Mione de sangue ruim, Hagrid...
Rony tornou a sumir debaixo da mesa e um novo jorro de lesmas caiu. Hagrid pareceu indignado.
— Ele não fez isso!
— Fez sim — confirmou Mione. — Mas eu não sei o que significa. Percebi que era uma grosseria muito grande, é claro...
— É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer — ofegou Rony, voltando. — Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam de sangue puro. — Ele deu um pequeno arroto, e uma única lesma caiu em sua mão estendida. Ele a atirou à bacia e continuou: — Quero dizer, nós sabemos que isso não faz a menor diferença. Olha só o Neville Longbottom, ele tem sangue puro e sequer consegue pôr um caldeirão em pé do lado certo.
— E ainda não inventaram um feitiço que a nossa Mione não saiba fazer — disse Hagrid orgulhoso, fazendo Mione ficar púrpura de tão corada.
— É  uma coisa revoltante chamar alguém de...— começou Rony, enxugando a testa suada com a mão trêmula — sangue sujo, sabe. Sangue comum. É ridículo. A maioria dos bruxos hoje em dia é mestiça. Se não tivéssemos casado com trouxas teríamos desaparecido da terra.
Ele teve uma ânsia de vômito e tornou a desaparecer de vista.
— Bem, não posso censurá-lo por querer enfeitiçar Draco — disse Hagrid alto para encobrir o barulho das lesmas que caíam na bacia. — Mas talvez tenha sido bom a sua varinha ter errado. Acho que Lúcio Malfoy viria na mesma hora à escola se você tivesse enfeitiçado o filho dele. Pelo menos você não se meteu em apuros.
Harry teria gostado de lembrar que o apuro não podia ser pior do que ter lesmas saindo da boca, mas não pôde; os quadradinhos de chocolate de Hagrid tinham grudado seus maxilares.
— Harry — disse Hagrid abruptamente como se tivesse lhe ocorrido um pensamento repentino. — Tenho uma reclamação sobre você. Ouvi falar que andou distribuindo fotos autografadas. Como é que não ganhei nenhuma?
Furioso, Harry desgrudou os dentes.
— Não andei distribuindo fotos autografadas — disse alterado. — Se Lockhart continua a espalhar este boato...
Mas, então, ele viu que Hagrid estava rindo.
— Só estou brincando — disse, dando palmadinhas amigáveis nas costas de Harry, fazendo-o enfiar a cara na mesa. — Eu sabia que não tinha dado. Eu disse a Lockhart que você não precisava fazer isso. Você é mais famoso do que ele sem fazer a menor força.
— Aposto como ele não gostou disso — comentou Harry erguendo a cabeça e esfregando o queixo.
— Acho que não — respondeu Hagrid, com os olhos cintilando. — E então falei que nunca tinha lido um livro dele e ele resolveu ir embora. Quadradinhos de chocolate, Rony? — acrescentou, ao ver Rony reaparecer.
— Não, obrigado — disse o menino, fraco. — É melhor não.
— Venham ver o que andei plantando — convidou Hagrid quando Harry e Mione terminaram de beber o chá.
Na pequena horta nos fundos da casa havia uma dúzia das maiores abóboras que Harry já vira. Cada uma tinha o tamanho de um pedregulho.
— Estão crescendo bem, não acha? — perguntou Hagrid alegre. — Para a Festa das Bruxas... Até lá já devem estar bem grandes.
— Que é que você está pondo na terra? — perguntou Harry.
Hagrid espiou por cima do ombro para ver se estavam sozinhos.
— Bom, tenho dado, sabe, uma ajudinha...
Harry reparou no guarda-chuva florido de Hagrid encostado na parede dos fundos da cabana. Harry sempre tivera razões para acreditar até aquele momento que aquele guarda-chuva não era bem o que parecia; na verdade, tinha a forte impressão de que a velha varinha escolar de Hagrid se escondia dentro dele. O guarda-caça fora expulso de Hogwarts no terceiro ano, mas Harry nunca descobrira a razão — era só mencionar o assunto, e ele pigarreava alto e se tornava misteriosamente surdo até que se mudasse de assunto.
— Um feitiço de engorda? — perguntou Mione, num tom de quem se diverte e desaprova. — Bem, você fez um bom trabalho.
— Foi o que a sua irmãzinha disse — comentou Hagrid, fazendo sinal a Rony. -Encontrei-a ainda ontem — Hagrid olhou de esguelha para Harry, a barba mexendo.
— Ela me disse que estava só dando uma olhada pelos jardins, mas eu calculo que estava na esperança de encontrar alguém na minha casa. — E piscou para Harry. — Se alguém me perguntasse, ela é uma que não recusaria uma foto...
— Ah, cala a boca — disse Harry. Rony deu uma risada abafada e o chão ficou cheio de lesmas.
— Cuidado! — rugiu Hagrid, puxando Rony para longe das suas preciosas abóboras.
Era quase hora do almoço e como Harry só comera uns quadradinhos de chocolate desde o amanhecer, estava doido para voltar à escola e almoçar. Eles se despediram de Hagrid e regressaram ao castelo. Rony tossia de vez em quando, mas só vomitou duas lesminhas.
Mal tinham entrado no saguão quando ouviram uma voz.
— Aí estão vocês, Potter, Weasley. — A Profª. McGonagall veio em direção a eles, com a cara séria. — Vocês dois vão cumprir suas detenções hoje à noite.
— O que nós fizemos, professora? — perguntou Rony, contendo, nervoso, um arroto.
— Você vai polir as pratas na sala de troféus com o Sr. Filch. E nada de magia, Weasley, no muque.
Rony engoliu em seco. Argo Filch, o zelador, era detestado por todos os alunos da escola.
— E você, Potter, vai ajudar o Profº. Lockhart a responder as cartas dos fãs.
— Ah, não... Professora, não posso ir também para a sala de troféus? — perguntou Harry desesperado.
— É claro que não — respondeu ela, erguendo as sobrancelhas. — O Profº. Lockhart fez questão de que fosse você. Oito horas em ponto, os dois.
Harry e Rony entraram curvados no Salão Principal, no pior estado de ânimo possível, Hermione atrás deles, com aquela expressão Bom-vocês-desobedeceram-o-regulamento.
Harry nem apreciou o empadão tanto quanto pretendera. Os dois, ele e Rony, acharam que tinham se dado muito mal.
— Filch vai me prender lá a noite inteira — disse Rony, com a voz deprimida. — Nada de magia! Deve ter umas cem taças naquela sala. Não entendo nada de limpeza de trouxas.
— Eu trocaria com você numa boa — disse Harry num tom calmo. — Treinei um bocado com os Dursley. Responder as cartas dos fãs de Lockhart... Ele vai ser um pesadelo...
À tarde de sábado pareceu se evaporar no que pareceu um segundo, já eram cinco para as oito, e Harry já ia se arrastando pelo corredor do segundo andar em direção à sala de Lockhart. Cerrou os dentes e bateu na porta.
A porta se escancarou na mesma hora. Lockhart sorria para ele.
— Ah, aqui temos o bagunceiro! — exclamou. — Entre, Harry, Rebrilhando nas paredes, à luz das muitas velas, havia uma quantidade de fotografias emolduradas de Lockhart. Havia até algumas autografadas. Outra grande pilha aguardava sobre a mesa.
— Você pode endereçar os envelopes! — disse Lockhart a Harry como se isso fosse um prêmio. — O primeiro vai para Gladys Gudgeon, que Deus a abençoe, uma grande fã minha...
Os minutos se arrastaram. Harry deixou a voz de Lockhart passar por ele, respondendo ocasionalmente "Hum" e "Certo" e "Sim". Vez por outra, ele captava uma frase do tipo "A fama é um amigo infiel, Harry" ou "A celebridade é o que ela faz, lembre-se disto".
As velas foram se consumindo, fazendo a luz dançar sobre os muitos rostos de Lockhart que o observavam. Harry estendeu a mão dolorida para o que lhe pareceu ser o milésimo envelope, e escreveu o endereço de Veronica Smethley. Deve estar quase na hora de sair pensou Harry infeliz, por favor, tomara que esteja quase na hora...
Então ele ouviu uma coisa — uma coisa muito diferente do ruído das velas que espirravam já no finzinho e a tagarelice de Lockhart sobre os fãs.
Foi uma voz, uma voz de congelar o tutano dos ossos, uma voz venenosa e gélida de tirar o fôlego.
Venha... Venha para mim... Me deixe rasgá-lo... Me deixe rompê-lo... Me deixe matá-lo...
Harry deu um enorme pulo e, com isso, fez aparecer um enorme borrão na Rua de Veronica Smethley.
— Que! — exclamou em voz alta.
— Eu sei! — disse Lockhart. — Seis meses inteiros encabeçando a lista dos livros mais vendidos! Bati todos os recordes!
— Não — disse Harry assustado. — Essa voz!
— Perdão? — disse Lockhart, parecendo intrigado. — Que voz?
— Aquela, a voz que disse, o senhor não ouviu?
Lockhart estava olhando para Harry muito surpreso.
— Do que é que você está falando, Harry? Talvez você esteja ficando com sono? Nossa, olhe só a hora! Estamos aqui há — quase quatro horas! Eu nunca teria acreditado, o tempo voou, não acha?
Harry não respondeu. Apurava os ouvidos para captar novamente a voz, mas não havia som algum exceto Lockhart a lhe dizer que não devia esperar uma moleza como aquela todas as vezes que pegasse uma detenção. Sentindo-se atordoado, Harry foi-se embora.
Era tão tarde que a sala comunal da Grifinória estava quase vazia.
Harry subiu direto ao dormitório. Rony ainda não voltara. Harry vestiu o pijama, meteu-se na cama e esperou. Meia hora depois, Rony apareceu, aconchegando o braço direito e trazendo um forte cheiro de liquido de polimento para o quarto escuro.
— Os meus músculos estão em cãibra — gemeu, afundando-se na cama. — Catorze vezes ele me fez dar brilho naquela taça de Quadribol antes de ficar satisfeito.  E tive mais um acesso de lesmas em cima de um prêmio especial por serviços prestados à escola. Levou séculos para retirar as lesmas... Como foi com o Lockhart?
Em voz baixa para não acordar Neville, Dino e Simas, Harry contou a Rony exatamente o que ouvira.
— E Lockhart disse que não estava ouvindo nada? — perguntou Rony. Harry podia até vê-lo franzindo a testa ao luar. — Você acha que ele estava mentindo? Mas não entendo, mesmo alguém invisível teria tido que abrir a porta. 
— Eu sei — disse Harry, recostando-se na cama de colunas e fixando o olhar no dossel. — Eu também não entendo.















CAPÍTULO OITO
A Festa do Aniversário de Morte

Outubro chegou, espalhando, pelos jardins, uma friagem úmida que entrava pelo castelo.
Madame Pomfrey, a enfermeira, esteve multo ocupada com uma repentina onda de gripe entre professores, funcionários e alunos. Sua poção reanimadora fazia efeito instantâneo, embora deixasse quem a bebia fumegando pelas orelhas durante muitas horas. Gina Weasley, que andava pálida, foi intimada por Percy a tomar a poção. A fumaça saindo por baixo dos seus cabelos muito vivos dava a impressão de que a cabeça inteira estava em chamas.
Gotas de chuva do tamanho de balas de revólver fustigavam as janelas do castelo durante dias seguidos; as águas do lago subiram, os canteiros de flores viraram um rio lamacento, e as abóboras de Hagrid ficaram do tamanho de um barraco. O entusiasmo de Olívio Wood pelas sessões de treinamento regulares, no entanto, não esfriou, razão por que Harry pôde ser encontrado, no fim de uma tarde de sábado tempestuosa, nas vésperas do Dia das Bruxas, voltando à torre da Grifinória, encharcado até os ossos e coberto de lama.
Mesmo tirando a chuva e o vento não fora um treino alegre. Fred e Jorge, que tinham andado espionando o time da Sonserina, tinham visto com os próprios olhos a velocidade das novas Nimbus 2001. Eles comentaram que o time da Sonserina parecia sete borrôezinhos cortando o céu com a velocidade de mísseis.
Quando Harry vinha acabrunhado pelo corredor deserto encontrou alguém que parecia tão preocupado quanto ele. Nick Quase Sem Cabeça, o fantasma da torre da Grifinória, olhava desanimado pela janela, murmurando para si mesmo "... Não satisfaz os requisitos... Pouco mais de um centímetro, se tanto...”
— Oi, Nick — cumprimentou Harry.
— Olá, olá — assustou-se ele olhando para os lados. Usava um elegante chapéu emplumado sobre a longa cabeleira crespa e uma túnica com rufos, que escondia o fato do seu pescoço estar quase completamente separado da cabeça. Nick era transparente como fumaça, e Harry via através dele o céu escuro e a chuva torrencial lá fora.
— Você parece preocupado, jovem Potter —, disse Nick, dobrando, ao falar, uma carta transparente e guardando-a no interior do gibão.
— Você também — disse Harry.
— Ah — Nick Quase Sem Cabeça fez um aceno com a mão elegante — uma questão de menor importância... Não é que eu queira realmente entrar... Achei que devia me candidatar, mas pelo visto "não satisfaço as exigências"...
Apesar do seu tom leve, tinha no rosto uma expressão de muita amargura.
— Mas a pessoa pensaria, não é — disse ele de repente, tirando mais uma vez a carta do bolso — que ter levado quarenta e cinco golpes de machado cego no pescoço qualificaria alguém a entrar para a Caça Sem Cabeça?
— Ah, sim — respondeu Harry, que obviamente deveria concordar.
— Quero dizer, ninguém gostaria mais do que eu que o corte tivesse sido rápido e limpo, e que minha cabeça tivesse realmente caído, quero dizer, teria me poupado muita dor e ridículo. No entanto... — Nick Quase Sem Cabeça abriu a carta com uma sacudidela e leu furioso:

 “Só podemos aceitar caçadores cujas cabeças tenham se separado dos corpos. O senhor compreenderá que, do contrário, seria impossível os sócios participarem das atividades de caça como: Balanço de Cabeça à Cavalo e Pólo de Cabeça. É com o maior pesar, portanto, que devemos informar-lhe que o senhor não satisfaz as nossas exigências.
Com os nossos cumprimentos,
Sir Patrício Delanqy-Podmore.”

 Espumando de raiva, Nick Quase sem cabeça guardou a carta.
— Pouco mais de um centímetro, se tanto..." de pele..." e um tendão seguram minha cabeça, Harry! A maioria das pessoas acharia que fui decapitado, mas ah, não, não é o bastante para o Sr. Realmente Decapitado Podmore.
Nick Quase Sem Cabeça respirou fundo várias vezes e então disse, num tom muito mais calmo:
— Então... O que é que o está preocupando? Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Não — disse Harry. — A não ser que saiba onde podemos arranjar sete Nimbus 2001 de graça para o nosso jogo contra Sonse...
O resto da frase de Harry foi abafado por um miado agudo de alguém junto aos seus calcanhares. Ele olhou e deu com um par de olhos amarelos que mais pareciam globos de luz. Era Madame Nor-r-ra, a gata esquelética e cinzenta que o zelador, Argo Filch, usava como uma espécie de delegada na sua luta incansável contra os estudantes.
— É melhor você sair daqui, Harry — disse Nick depressa. — Filch não está de bom humor, pegou a gripe, e uns alunos do terceiro ano sem querer grudaram miolos de sapo pelo teto da masmorra cinco. Ele esteve limpando a manhã inteira e se vir você pingando lama para todo lado...
— Certo — disse Harry se afastando do olhar acusador de Madame Nor-r-ra, mas não foi suficientemente rápido. Atraído ao local pela força misteriosa que parecia ligá-lo àquela gata nojenta, Argo Filch irrompeu de repente pela tapeçaria à direita de Harry, chiando furioso à procura do infrator. Trazia um lenço de grossa lã escocesa amarrado à cabeça e seu nariz estava estranhamente purpúreo.
— Sujeira! — gritou, os maxilares tremendo, os olhos assustadoramente saltados, apontando a poça de lama que pingava das vestes de Quadribol de Harry. — Bagunça e sujeira por toda parte! Para mim, chega, é o que lhe digo. Venha comigo, Potter!
Então Harry acenou um triste adeus a Nick Quase Sem Cabeça e acompanhou Filch ao andar de baixo, duplicando o número de pegadas de lama no assoalho.
Harry nunca estivera no interior da sala de Filch antes; era um lugar que a maioria dos estudantes evitava, O local era encardido e escuro, sem janelas, iluminado por uma única lâmpada de óleo pendurada no teto baixo. Um leve cheiro de peixe frito impregnava a sala.
Arquivos de madeira estavam dispostos ao longo das paredes; pelas etiquetas, Harry pôde ver que continham detalhes sobre cada aluno que Filch já castigara. Fred e Jorge Weasley tinham uma gaveta separada. Uma coleção muitíssimo polida de correntes e algemas estava pendurada na parede atrás da mesa de Filch. Era do conhecimento geral que ele estava sempre pedindo a Dumbledore que o deixasse pendurar os alunos no teto pelos tornozelos.
Filch pegou uma pena no tinteiro em cima da mesa e começou a procurar um pergaminho.
— Bosta — resmungou furioso —, bosta frita de dragão... Miolos de sapos... Tripas de ratos... Para mim já chega... Vou fazer disto um exemplo... Onde está o formulário... Aqui...
Ele retirou um grande rolo de pergaminho da gaveta da escrivaninha e abriu-o à sua frente, mergulhando a longa pena negra no tinteiro.
— Nome... Harry Potter. Crime...
— Foi só um pouquinho de lama! — exclamou Harry.
— Foi só um pouquinho de lama para você, moleque, mas para mim é mais uma hora de limpeza! — gritou Filch, uma gota nojenta estremecendo na ponta do nariz de bolota. — Crime... Sujar o castelo... Sentença sugerida..
Filch, secando o nariz sempre a pingar, lançou um olhar desagradável a Harry, que esperava prendendo a respiração, a sentença desabar sobre sua cabeça.
Mas quando Filch baixou a pena, ouvi-se um forte estampido no teto da sala, que fez a lâmpada a óleo chocalhar.
— PIRRAÇA! — rugiu Filch, atirando a pena no chão num assomo de raiva. — Desta vez eu te pego, eu te pego!
E sem nem olhar para Harry, Filch saiu correndo da sala, com Madame Nor-r-ra do lado.
Pirraça era o poltergeist da escola, uma ameaça aérea e sorridente que vivia a provocar desordem e aflição. Harry não gostava muito do Pirraça, mas não pôde deixar de se sentir grato pelo seu senso de oportunidade. Era de esperar, seja o que for que Pirraça tivesse feito (e parecia que desta vez estragara alguma coisa muito importante), desviasse a atenção de Filch de Harry.
Achando que devia provavelmente esperar Filch voltar, Harry afundou em uma cadeira comida por traças ao lado da escrivaninha. Sobre ela só havia uma coisa além do formulário incompleto: um envelope roxo, grande e brilhante com letras prateadas na face. Com uma olhada rápida à porta para ver se Filch já estava voltando, Harry apanhou o envelope e leu:


FEITICEXPRESSO
 Um curso de magia por correspondência para principiantes.

 Intrigado, Harry sacudiu o envelope aberto e puxou o maço de pergaminhos que havia dentro, com inscrições prateadas dizendo:

Você se sente antiquado no mundo da magia moderna? Vê-se inventando desculpas para não executar feitiços simples?
Ouve caçoadas por manejar tão mal uma varinha de condão?
Feiticexpresso é um curso inteiramente novo, que garante resultados rápidos e fácil assimilação.
Centenas de bruxos e bruxas já se beneficiaram com o método do Feiticexpresso!
Madame Z. Nettles of Topsham nos escreve:
"Eu não tinha memória para guardar encantamentos e minhas poções eram motivo de riso na família! Agora, depois do curso Feiticexpresso, sou o centro das atenções nas festas, e meus amigos me pedem a receita da Minha Solução Cintilante!”
Bruxo D. J. Prod of Didsbury nos conta:
"Minha mulher costumava caçoar dos meus feitiços pouco eficientes, mas depois de um mês no seu fabuloso Feiticexpresso consegui transformá-la num iaque! Muito obrigado, Feiticexpresso!

Fascinado, Harry correu os dedos pelo resto do conteúdo do envelope. Para que na vida Filch queria um curso feiticexpresso? Será que isto queria dizer que ele não era um bruxo formado? Harry estava começando a ler a "Lição Um: Como segurar sua varinha (Algumas dicas úteis)" quando o ruído de passos arrastados pelo corredor lhe avisara que Filch estava voltando. Harry enfiou o pergaminho de volta no envelope e atirou-o sobre a mesa pouco antes da porta se abrir.
Filch exibia um ar triunfante.
— Aquele armário que desaparece foi muitíssimo valioso! — disse todo alegre à Madame Nor-r-ra. — Vamos acabar com o Pirraça desta vez, minha doce...
Seus olhos pousaram em Harry e daí correram para o envelope do Feiticexpresso que, o garoto percebeu tarde demais, fora colocado meio metro mais longe do que estava antes.
A cara cerosa de Filch ficou vermelho-tijolo. Harry se preparou para uma maré de fúria. Filch capengou até a escrivaninha, agarrou o envelope e jogou-o dentro de uma gaveta.
— Você... Você leu...?-gaguejou.
— Não — mentiu Harry depressa.
Filch torcia as mãos nodosas.
— Se eu sonhar que você leu a minha, minha não, a correspondência de um amigo, seja como for, mas...
Harry olhava fixo para ele, assustado; Filch nunca parecera mais furioso. Seus olhos saltavam, um tique nervoso estremecia sua bochecha mole, e o lenço escocês não melhorava sua aparência.
— Muito bem, pode ir, e não diga uma palavra, não que... Mas, se você não leu, vá logo, tenho que fazer o relatório sobre o Pirraça, va...
Espantado com a sua sorte, Harry saiu correndo da sala e tomou o corredor de volta para o saguão. Escapar da sala de Filch sem castigo provavelmente era uma espécie de recorde na escola.
— Harry! Harry! Funcionou?
Nick Quase Sem Cabeça saiu deslizando de uma sala de aula. Atrás dele, Harry pôde ver os destroços de um grande armário preto e dourado que parecia ter sido jogado de uma grande altura.
— Convenci Pirraça a largá-lo bem em cima da sala de Filch — disse Nick ansioso. — Achei que iria distraí-lo...
— Aquilo foi você? — perguntou Harry, grato. — Funcionou sim, eu não peguei nem uma detenção. Obrigado, Nick!
Os dois saíram juntos pelo corredor. Nick Quase Sem Cabeça, Harry reparou, ainda segurava a carta de recusa de Sir Patrício.
— Eu gostaria de poder fazer alguma coisa sobre a Caça Quase Sem Cabeça — comentou Harry.
Nick Quase Sem Cabeça parou de repente, e Harry passou por dentro dele. Gostaria de não ter feito isso; era como entrar embaixo de um chuveiro gelado.
— Mas tem uma coisa que você pode fazer por mim — disse Nick animado. — Harry, seria pedir muito, mas, não, você não iria...
— Aonde?
— Bem, este Dia das Bruxas será o meu qüingentésimo aniversário de morte — disse Nick Quase Sem Cabeça, empertigando-se com o ar solene.
— Ah — exclamou Harry, sem saber se devia fazer cara triste ou alegre com a notícia. — Certo.
— Estou dando uma festa em uma das masmorras maiores. Vêm amigos de todo o país. Seria uma honra tão grande se você pudesse comparecer! O Sr. Weasley e a Srta. Granger também seriam muito bem-vindos, é claro, mas você não vai preferir comparecer à festa da escola? — Ele observava Harry cheio de dedos.
— Não — disse Harry depressa —, eu vou...
— Meu caro rapaz! Harry Potter no meu aniversário de morte! E... — hesitou, parecendo agitado — você acha que seria possível mencionar a Sir Patrício que me acha muito assustador e impressionante?
— Claro... Claro.
O rosto de Nick Quase Sem Cabeça se abriu num grande sorriso.
— Uma festa de aniversário de morte? — disse Hermione muito interessada quando Harry finalmente trocou de roupa e foi-se reunir a ela e a Rony na sala comunal.
— Aposto que não existe muita gente viva que possa dizer que foi a uma festa dessas, vai ser fascinante!
— Por que alguém iria querer comemorar o dia em que morreu? — exclamou Rony, que estava quase terminando o dever de Poções, mal-humorado. — Me parece uma coisa mortalmente deprimente...
A chuva continuava a açoitar as janelas, que agora estavam pretas feito tinta, mas dentro da sala tudo parecia claro e alegre. As chamas da lareira iluminavam as inúmeras poltronas fofas onde os alunos estavam sentados lendo, conversando, fazendo o dever de casa ou, no caso de Fred e Jorge Weasley, tentando descobrir o que aconteceria se a pessoa fizesse uma salamandra comer um fogo Filibusteiro. Fred "salvara" o lagarto de couro laranja, que vive no fogo, de uma aula de O Trato das Criaturas Mágicas, e ele agora fumegava suavemente em cima de uma mesa rodeada de meninos curiosos.
Harry ia começar a contar a Rony e Mione sobre Filch e o curso Feiticexpresso quando, de repente, a salamandra saiu rodopiando descontrolada pelo ar, soltando fagulhas e estampidos. A visão de Percy berrando de ficar rouco com Fred e Jorge, a exibição espetacular de estrelas cor de tangerina que jorravam da boca da salamandra e sua fuga para a lareira, acompanhada de explosões, afugentaram Filch e o envelope do Feiticexpresso da cabeça de Harry.
Até chegar o Dia das Bruxas, Harry já se arrependera de sua promessa precipitada de ir à festa do aniversário de morte. O resto da escola estava animado com a proximidade da Festa das Bruxas; o Salão Principal fora decorado com os morcegos vivos de sempre, as enormes abóboras de Hagrid tinham sido recortadas para fazer lanternas tão grandes que cabiam três homens dentro, e havia boatos de que Dumbledore contratara uma trupe de esqueletos dançarinos para divertir o pessoal.
— Promessa é dívida — Mione lembrou a Harry com ar de mandona. — Você disse que iria ao aniversário de morte.
Então, às sete horas, Harry, Rony e Mione passaram direto pela porta do Salão Principal apinhado de gente, que brilhava convidativo com pratos de ouro e velas, e tomaram o caminho das masmorras.
O corredor que levava à festa de Nick Quase Sem Cabeça tinha sido iluminado, também, com velas em toda a sua extensão, embora o efeito não fosse nada alegre: eram velas longas, finas e pretas, de luz azul, que projetavam uma claridade fantasmagórica mesmo nos rostos de gente viva. A temperatura caía a cada passo que davam. Quando Harry estremeceu e puxou as vestes mais para junto do corpo, ouviu um som que lembrava mil unhas arranhando um imenso quadro-negro.
— Será que isso é música? — cochichou Rony. Eles dobraram um canto e viram Nick Quase Sem Cabeça parado em um portal adornado com reposteiros de veludo negro.
— Meus caros amigos — disse ele pesaroso. — Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos... Fico tão contente que tenham podido vir...
E tirou o chapéu emplumado fazendo uma reverência e indicando a porta.
Era uma cena incrível. A masmorra continha centenas de pessoas esbranquiçadas e translúcidas, a maioria deslizando por uma pista de dança, valsando ao som medonho de trinta serrotes musicais, tocados por uma orquestra reunida em cima de uma plataforma drapeada de negro. Um lustre no alto projetava uma luz azul meia-noite com outras mil velas negras. A respiração dos garotos se condensava, formando uma névoa à frente deles; parecia que estavam entrando em uma câmara frigorífica.
— Vamos dar uma circulada? — sugeriu Harry, querendo esquentar os pés.
— Cuidado para não atravessar ninguém — recomendou Rony, nervoso, e os três saíram contornando a pista de dança. Passaram por um grupo de freiras soturnas, um homem vestido de trapos que usava correntes e o Frade Gordo, um alegre fantasma da Lufa-Lufa, que conversava com um cavalheiro que tinha uma flecha espetada na testa. Harry não se surpreendeu ao ver que os outros fantasmas davam distância ao Barão Sangrento, um fantasma da Sonserina, muito magro, de olhos arregalados e coberto de manchas de sangue prateado.
— Ah, não — exclamou Mione, parando de repente. — Dêem meia-volta, dêem meia volta, não quero falar com a Murta Que Geme...
— Quem? — perguntou Harry ao retrocederem.
— Ela assombra um boxe no banheiro das meninas no primeiro andar — disse Mione.
— Ela assombra um boxe?
— É. O boxe esteve quebrado o ano inteiro porque ela não pára de ter acessos de raiva e inundar o banheiro. Eu nunca entrei lá sempre que pude evitar; é horrível tentar fazer xixi com ela gemendo do lado...
— Olhem, comida! — exclamou Rony.
Do lado oposto da masmorra havia uma longa mesa, também coberta de veludo negro.
Eles se aproximaram pressurosos, mas no instante seguinte pararam de chofre, horrorizados. O cheiro era bem desagradável. Grandes peixes podres estavam dispostos em belas travessas de prata; bolos carbonizados estavam arrumados em salvas; havia uma grande terrina de picadinho de miúdos de carneiro cheio de vermes, um pedaço de queijo coberto de uma camada de mofo esverdeado e, o orgulho do bufê, um enorme bolo cinzento em forma de sepultura, com os dizeres em glacê de asfalto: SIR NICOLAS DE MIMSY-PORPINGTON FALECIDO EM 31 DE OUTUBRO DE 1492.
Harry observou, espantado, um fantasma imponente se aproximar da mesa, abaixar-se e atravessá-la, a boca aberta de modo a engolir um salmão fedorento.
— O senhor pode provar a comida quando a atravessa? — perguntou-lhe Harry.
— Quase — respondeu o fantasma triste e se afastou.
— Imagino que tenham deixado o peixe apodrecer para acentuar o gosto — disse Mione em tom de quem sabe das coisas, apertando o nariz e se debruçando para examinar o picadinho pútrido.
— Podemos ir andando? Estou me sentindo enjoado — disse Rony.
Nem bem tinham se virado, porém, quando um homenzinho saiu voando de repente de debaixo da mesa e parou no ar diante deles.
— Alô, Pirraça — cumprimentou Harry cauteloso.
Ao contrário dos fantasmas à volta, Pirraça, o poltergeist era o oposto de pálido e transparente. Usava um chapéu de festa laranja-vivo, uma gravata-borboleta giratória e exibia um largo sorriso no rosto largo e maldoso.
— Aperitivos — disse simpático, oferecendo aos garotos uma tigela de amendoins cobertos de fungo.
— Não, muito obrigada — disse Mione.
— Ouvi você falando da coitada da Murta — disse Pirraça, os olhos dançando. — Que grosseria com a coitada. — Ele tomou fôlego e berrou: — OI! MURTA!
— Ah, não, Pirraça, não conte a ela o que eu disse, ela vai ficar realmente chateada — cochichou Mione frenética. — Não falei por mal, ela não me incomoda, ah, alô, Murta.
O fantasma atarracado de uma moça deslizou até eles. Tinha a cara mais triste que Harry já vira, meio oculta por cabelos escorridos e espessos, e óculos perolados.
— Que foi? — perguntou aborrecida.
— Como vai, Murta? — cumprimentou Mione fingindo animação. — Que bom ver você fora do banheiro.
Murta fungou.
— A Srta. Granger estava mesmo falando em você... — disse Pirraça sonsamente ao ouvido da Murta.
— Só estava dizendo... Dizendo... Como você está bonita esta noite — completou Mione, fechando a cara para Pirraça.
Murta olhou para Mione desconfiada.
— Você está caçoando de mim — disse, lágrimas prateadas marejando rapidamente os seus olhos penetrantes.
— Não, sério, eu não acabei de falar como a Murta está bonita? — falou Mione, cutucando dolorosamente Harry e Rony nas costelas.
— Ah, claro...
-Falou...
— Não mintam para mim — exclamou Murta, as lágrimas agora escorrendo livremente pelo rosto, enquanto Pirraça, feliz, dava risadinhas por cima do ombro dela. — Vocês acham que não sei como as pessoas me chamam pelas costas? Murta Gorda! Murta Feiosa! Murta infeliz, chorona, apática!
— Você esqueceu do espinhenta — sibilou Pirraça ao ouvido dela.
A Murta Que Geme prorrompeu em soluços aflitos e fugiu da masmorra. Pirraça disparou atrás dela, jogando amendoins mofados e gritando:
— Espinhenta! Espinhenta!
— Ah, meu Deus! — lamentou-se Hermtone.
Nick Quase Sem Cabeça agora deslizava por entre os convidados em direção aos garotos.
— Estão se divertindo?
— Ah, claro — mentiram.
— Um número de convidados bem grande — disse Nick Quase Sem Cabeça, orgulhoso. — A rainha viúva veio lá de Kent... Está quase na hora do meu discurso, é melhor eu ir avisar a orquestra...
A orquestra, porém, parou de tocar naquele exato instante. E, todas as pessoas na masmorra se calaram, olhando para os lados excitadas, ao ouvirem uma trompa de caça.
— Ah, lá vamos nós — disse Nick Quase Sem Cabeça amargurado.
Pelas paredes da masmorra irromperam doze cavalos fantasmas, cada um montado por um cavaleiro sem cabeça. Os convidados aplaudiram calorosamente. Harry começou a aplaudir, também, mas parou depressa ao ver a cara de Nick.
Os cavalos galoparam até o meio da pista de dança e pararam, levantando e baixando as patas dianteiras. A frente da cavalgada havia um fantasma corpulento que segurava a cabeça sob o braço, posição de onde ele tocava a trompa. O fantasma apeou, levantou a cabeça no ar de modo que pudesse ver as pessoas (todos riram) e se dirigiu a Nick Quase Sem Cabeça, recolocando a cabeça sobre o pescoço.
— Nick! — rugiu. — Como vai? A cabeça ainda pendurada?
Ele soltou uma gargalhada cordial e deu uma palmadinha no ombro de Nick Quase Sem Cabeça.
— Seja bem-vindo, Patrício — disse Nick secamente.
— Gente viva! — exclamou Sir Patrício, vendo Harry, Rony e Mione, e dando um grande pulo fingindo espanto, de modo que sua cabeça tornou a cair (os convidados gargalharam).
— Muito engraçado — disse Nick Quase Sem Cabeça com ferocidade.
— Não liguem para o Nick! — gritou a cabeça de Sir Patrício lá do chão. — Ainda está aborrecido porque não o deixamos se associar à Caçada! Mas quero dizer... Olhem só para ele...
— Acho — disse Harry depressa, a um olhar significativo de Nick —, Nick é muito... Assustador e...
— Ha! — gritou a cabeça de Sir Patrício. — Aposto como ele lhe pediu para dizer isso!
— Se todos pudessem me dar atenção, está na hora do meu discurso! — avisou Nick Quase Sem Cabeça em voz alta, caminhando com firmeza até o pódio e tomando posição sob a luz de um refletor azul-gelo.
— Meus saudosos cavalheiros, damas e senhores, tenho o grande pesar...
Mas ninguém ouviu muito mais do que isso. Sir Patrício e os Caçadores Sem Cabeça começaram uma partida de hóquei de cabeça e as pessoas foram se virando para assistir. Nick Quase Sem Cabeça tentou em vão reconquistar sua platéia, mas desistiu quando a cabeça de Sir Patrício passou navegando por ele em meio aos berros de vivas.
Harry, por esta altura, estava sentindo muito frio, para não falar na fome.
— Não dá para agüentar muito mais que isso — murmurou Rony, os dentes batendo, quando a orquestra tornou a entrar em ação, e os fantasmas voltaram à pista de dança.
— Vamos — concordou Harry.
Os três saíram em direção à porta, acenando com a cabeça e sorrindo para todos que olhavam, e um minuto depois estavam andando depressa pelo corredor cheio de velas.
— Talvez o pudim ainda não tenha acabado — disse Rony esperançoso, seguindo à frente em direção à escada do saguão de entrada.
E então Harry ouviu: “Rasgar... romper... matar..”
Era a mesma voz, a mesma voz gélida e assassina que ouvira na sala de Lockhart.
Ele parou quase tropeçando, apoiando-se na parede de pedra, escutando com toda a atenção, olhando para os lados, apertando os olhos para ver nos dois sentidos do corredor mal iluminado.
— Harry, que é que você...?
— É aquela voz de novo, fiquem quietos um minuto... "Tanta fome... Tanto tempo...”
— Ouçam! — disse Harry com urgência, e Rony e Mione pararam, observando-o.
“Matar.. Hora de matar...”
A voz foi ficando mais fraca. Harry tinha certeza de que estava se afastando — se afastando para o alto. Uma mistura de medo e excitação se apoderou dele ao fixar o olhar no teto escuro; como é que ela podia estar se afastando para o alto? Seria um fantasma, para quem tetos de pedra não faziam diferença?
— Por aqui — gritou ele e começou a subir correndo as escadas para o saguão. Não adiantava querer ouvir nada ali, o vozerio na festa do Salão Principal ecoava pelo saguão. Harry subiu correndo a escadaria de mármore até o primeiro andar, com Rony e Mione nos seus calcanhares.
— Harry, que é que estamos...
— PSIU!
Harry apurou os ouvidos. Longe, vinda do andar de cima, cada vez mais fraca, ele ouviu a voz: "... Sinto cheiro de sangue... SINTO CHEIRO DE SANGUE!" Sentiu um aperto no estômago...
— Vai matar alguém! — gritou ele, e sem dar atenção aos rostos perplexos de Rony e Mione, subiu correndo o lance seguinte de escada, três degraus de cada vez, tentando escutar apesar do barulho que seus passos faziam...
Harry precipitou-se pelo segundo andar, Rony e Mione ofegantes atrás dele, e não parou até entrar no último corredor deserto.
— Harry, do que é que você estava falando? — perguntou Rony, enxugando o suor do rosto. — Eu não ouvi nada...
Mas Mione soltou uma súbita exclamação, apontando para o corredor.
— Olhem!
Alguma coisa brilhava na parede em frente. Eles se aproximaram devagarinho, apertando os olhos para ver na penumbra. Alguém tinha pintado palavras de uns trinta centímetros na parede entre as duas janelas, que refulgiam à luz das chamas das tochas.

A CÂMARA DOS SEGREDOS FOI ABERTA.
INIMIGOS DO HERDEIRO CUIDADO.

— Que coisa é aquela, pendurada ali embaixo? — perguntou Rony, com um ligeiro tremor na voz.
Ao se aproximarem, Harry quase escorregou — havia uma grande poça de água no chão; Rony e Mione o seguraram, e continuaram a avançar devagar até a mensagem, os olhos fixos na sombra escura embaixo. Os três logo perceberam o que era e deram um salto para trás espalhando água.
Madame Nor-r-ra, a gata do zelador, estava pendurada pelo rabo em um suporte de tocha. Estava dura como um pau, os olhos arregalados e fixos.
Durante alguns segundos eles não se mexeram. Então Rony falou:
— Vamos dar o fora daqui.
— Será que não devíamos tentar ajudar... — começou a dizer Harry, sem jeito.
— Confie em mim — disse Rony. — Não podemos ser encontrados aqui.
Mas era tarde demais. Um ronco, como o de um trovão distante, informou-lhes que a festa terminara naquele instante. De cada ponta do corredor onde estavam, ouviram o barulho de centenas de pés que subiam as escadas, e a conversa alta e alegre de gente bem alimentada; no instante seguinte os alunos entravam aos encontrões pelos dois lados do corredor.
A conversa, o bulício, o barulho morreu de repente quando os garotos que vinham à frente viram o gato pendurado. Harry, Rony e Mione estavam sozinhos no meio do corredor e os estudantes que se empurravam para ver a cena macabra se calaram.
Então alguém gritou em meio ao silêncio.
— Inimigos do herdeiro, cuidado! Vocês vão ser os próximos, sangues ruins!
Era Draco Malfoy. Ele abrira caminho até a frente dos alunos, seus olhos frios muito intensos, seu rosto, em geral pálido, corara, e ele ria diante do gato pendurado imóvel.
















CAPÍTULO NOVE
A pichação na parede

— Que está acontecendo aqui? Que está acontecendo?
Atraído, sem dúvida, pelo grito de Draco, Argo Filch apareceu, abrindo caminho com os ombros por entre os alunos aglomerados. Então ele viu Madame Nor-r-ra e recuou, levando as mãos ao rosto horrorizado.
— Minha gata? Minha gata! Que aconteceu a Madame Norr-ra? — gritou ele.
E seus olhos saltados pousaram em Harry.
— Você! — gritou. — Você! Você assassinou a minha gata? Você a matou! Vou matá-lo! Vou...
— Argo! — Dumbledore chegara à cena, seguido de vários professores. Em segundos, passou por Harry, Rony e Hermione e soltou Madame Nor-r-ra do porta-archote.
— Venha comigo, Argo — disse a Filch. — Os senhores também, Sr. Potter, Sr. Weasley e Srta. Granger.
Lockhart deu um passo à frente pressuroso.
— A minha sala fica mais próxima, diretor, logo aqui em cima, por favor, fique à vontade...
— Muito obrigado, Gilderoy — disse Dumbledore.
Os presentes se afastaram para os lados em silêncio para deixá-los passar.
Lockhart, com o ar agitado e importante, acompanhou Dumbledore, apressado; o mesmo fizeram a Profª. McGonagall e o Profº. Snape.
Ao entrarem na sala escura de Lockhart, ouviram uma agitação passar pelas paredes; Harry viu vários Lockharts nas molduras se esconderem, com os cabelos presos em rolinhos. O verdadeiro Lockhart acendeu as velas sobre a escrivaninha e se afastou um pouco. Dumbledore pôs Madame Nor-r-ra na superfície polida e começou a examiná-la. Harry, Rony e Hermione trocaram olhares tensos e se sentaram, observando, em cadeiras fora do círculo iluminado pelas velas.
A ponta do nariz comprido e curvo de Dumbledore estava a menos de três centímetros do pêlo de Madame Nor-r-ra. Ele a examinou atentamente através dos óculos de meia-lua, apalpou-a e cutucou-a com os dedos longos. A Profª. McGonagall estava curvada quase tão próxima, os olhos apertados. Snape esticava-se por trás deles, meio na sombra, com uma expressão estranhíssima no rosto: era como se estivesse fazendo força para não sorrir. E Lockhart andava à volta do grupo, oferecendo sugestões.
— Decididamente foi um feitiço que a matou, provavelmente a Tortura Transmogrifiana. Já a usaram muitas vezes, que pena que eu não estava presente, conheço exatamente o contra feitiço que a teria salvado...
Os comentários de Lockhart eram pontuados pelos soluços secos e violentos de Filch. Ele se afundara em uma cadeira ao lado da escrivaninha, incapaz de olhar para Madame Nor-rra, o rosto coberto com as mãos. Por mais que detestasse Filch, Harry não pôde deixar de sentir uma certa pena dele, embora não tanta quanto a que sentia de si mesmo. Se Dumbledore acreditasse em Filch, o garoto com certeza seria expulso.
Dumbledore agora murmurava palavras estranhas para si mesmo, tocando Madame Nor-r-ra com a varinha, mas nada aconteceu: ela continuava parecendo que fora empalhada recentemente.
— Lembro-me de algo muito parecido que aconteceu em Ouagadogou — disse Lockhart —, uma série de ataques, a história completa se encontra na minha autobiografia, naquela ocasião pude fornecer aos habitantes da cidade vários amuletos, que resolveram imediatamente o problema...
As fotografias de Lockhart na parede concordavam com a cabeça quando ele falava. Uma delas se esquecera de tirar a rede dos cabelos.
Finalmente Dumbledore se ergueu.
— A gata não está morta, Argo — disse ele baixinho.
Lockhart parou imediatamente de contar o número de assassinatos que evitara.
— Não está morta? — engasgou-se Filch, olhando por entre os dedos para Madame Nor-r-ra. — Então por que é que ela está toda... Toda dura e gelada?
— Ela foi petrificada — disse Dumbledore ("Ah Eu bem que achei!", disse Lockhart.) — Mas de que forma, eu não sei dizer..
— Pergunte a ele! — gritou Filch, virando o rosto manchado e escorrido de lágrimas para Harry.
— Nenhum aluno de segundo ano poderia ter feito isto — disse Dumbledore com firmeza. — Seria preciso conhecer Magia Negra avançadíssima...
— Foi ele, foi ele! — cuspiu Filch, o rosto balofo congestionado. — O senhor viu o que ele escreveu na parede! Ele encontrou... No meu escritório... Ele sabe que eu sou um... Sou um...
— O rosto de Filch se contorceu de modo horrendo. — Ele sabe que sou um aborto! — terminou.
— Jamais encostei o dedo em Madame Nor-r-ra! — disse Harry em voz alta, sentindo-se incomodado por saber que todos o olhavam, inclusive todos os Lockhart nas paredes. — Nem mesmo sei o que é um aborto.
— Mentira! — rosnou Filch. — Ele viu a carta do Feiticexpresso!
— Se me permite falar, diretor — disse Snape de seu lugar nas sombras, e Harry sentiu seus maus pressentimentos aumentarem; tinha certeza de que nada que Snape tivesse a dizer iria beneficiá-lo.
— Talvez Potter e seus amigos simplesmente estivessem no lugar errado na hora errada —, disse ele, um ligeiro trejeito de desdém lhe encrespando a boca como se duvidasse do que dizia. — Mas temos um conjunto de circunstâncias suspeitas neste caso.  Por que é que estavam no corredor do andar superior? Por que não estavam na Festa das Bruxas?”
Harry, Rony e Hermione, todos desataram a dar explicações sobre a festa do aniversário de morte.
— ... Havia centenas de fantasmas na festa, que poderão confirmar que estávamos lá...
— Mas por que não foram depois para a Festa das Bruxas? — perguntou Snape, os olhos negros faiscando à luz das velas. — Por que subir àquele corredor?
Rony e Hermione olharam para Harry.
— Porque... Porque... — disse Harry, o coração disparado; alguma coisa lhe disse que seria muito difícil eles acreditarem se confessasse que fora levado por uma voz sem corpo que ninguém, exceto ele, tinha podido ouvir — porque estávamos cansados e queríamos nos deitar.
— Sem jantar? — disse Snape, um sorriso vitorioso perpassou o seu rosto magro. — Eu não sabia que nas festas os fantasmas ofereciam comida própria para consumo de gente viva.
— Não estávamos com fome — disse Rony em voz alta ao mesmo tempo que sua barriga dava um enorme ronco.
O sorriso maldoso de Snape se ampliou.
— Suspeito, diretor, que Potter não esteja dizendo toda a verdade. Talvez fosse uma boa idéia privá-lo de certos privilégios até que esteja disposto a nos contar tudo. Pessoalmente, acho que deveria ser suspenso do time de Quadribol da Grifinória até que se disponha a ser honesto.
— Francamente, Severo — disse a Profª. McGonagall com aspereza —, não vejo razão para impedir o menino de jogar Quadribol. Esta gata não foi enfeitiçada com um golpe de vassoura. Não há qualquer evidência de que Potter tenha feito algo errado.
Dumbledore lançou a Harry um olhar penetrante. Seus olhos azuis cintilantes faziam Harry sentir que estava sendo radiografado.
— Inocente até que se prove o contrário, Severo — disse com firmeza.
Snape pareceu furioso. E Filch também.
— Minha gata foi petrificada! — gritou, os olhos esbugalhados. — Quero ver alguém ser castigado!
— Vamos curá-la, Argo — disse Dumbledore, paciente. — A Profº. Sprout recentemente obteve umas mandrágoras. Assim que elas crescerem, vou mandar fazer uma poção que ressuscitará Madame Nor-r-ra.
— Eu faço — Lockhart entrou na conversa. — Devo ter feito isto centenas de vezes. Seria capaz de preparar um Tônico Restaurador de Mandrágora até dormindo...
— Desculpe-me — disse Snape num tom gelado. — Mas creio que sou o professor de Poções aqui nesta escola.
Houve uma pausa muito incômoda.
— Vocês podem ir — disse Dumbledote a Harry, Rony e Hermione.
Os três saíram o mais depressa que puderam sem chegar a correr. Quando estavam um andar acima da sala de Lockhart, entraram em uma sala de aula e fecharam a porta silenciosamente. Harry procurou enxergar o rosto dos amigos no escuro.
— Vocês acham que eu devia ter falado a eles daquela voz que ouvi?
— Não — respondeu Rony sem hesitar. — Ouvir vozes que ninguém mais ouve não é bom sinal, mesmo no mundo da magia.
Alguma coisa na voz de Rony fez Harry perguntar:
— Você acredita em mim, não é?
— Claro que acredito — respondeu Rony depressa. — Mas... Você vai concordar que é estranho...
— Eu sei que é estranho — disse Harry. — A coisa toda é estranha. O que era aquela pichação na parede? A Câmara Secreta foi aberta... Que será que significa isso?
— Sabe, me lembra alguma coisa — disse Rony lentamente. — Acho que alguém certa vez me contou uma história de uma câmara secreta em Hogwarts... Talvez tenha sido o Gui...
— E afinal o que é um aborto? — perguntou Harry.
Para sua surpresa, Rony sufocou uma risadinha.
— Bem... Não é realmente engraçado... Mas é o que Filch é — disse ele. — Um aborto é alguém que nasceu em uma família de bruxos, mas não tem poderes mágicos.  De certa forma é o oposto do bruxo que nasceu trouxa, mas os abortos são muito raros. Se Filch está tentando aprender magia em um curso Feiticexpresso, imagino que ele seja um aborto. Isto explicaria muita coisa. Por exemplo, a razão por que ele odeia tanto os alunos. — Rony deu um sorriso de satisfação. — É um amargurado. — Um relógio bateu as horas em algum lugar.
— Meia-noite — disse Harry — É melhor irmos deitar antes que Snape apareça e tente nos culpar de outra coisa qualquer.
Durante alguns dias, a escola praticamente não conseguiu falar de outra coisa a não ser do ataque à Madame Nor-r-ra. Filch o manteve vivo na lembrança de todos, perambulando pelo lugar onde ela fora atacada, como se achasse que o atacante poderia voltar. Harry o vira esfregando a mensagem na parede com Removedor Mágico Multiuso Skower, mas sem resultado; as palavras continuavam a brilhar na pedra, mais fortes que nunca. Quando Filch não estava guardando a cena do crime, esquivava-se pelos corredores, os olhos vermelhos, investindo contra estudantes distraídos e tentando impingir-lhes uma detenção por coisas do tipo "respirar fazendo barulho" e "parecer feliz".
Gina Weasley parecia ter ficado muito perturbada com o destino de Madame Nor-r-ra. Segundo Rony, ela adorava gatos.
— Mas você nem chegou a conhecer Madame Nor-r-ra direito — disse Rony animando-a. — Francamente, estamos muito melhor sem ela. — Os lábios de Gina tremeram. — Coisas assim não acontecem todo dia em Hogwarts — tranqüilizou-a Rony. — Vão pegar o maníaco que fez isso e mandá-lo embora daqui na hora. Só espero que ele tenha tempo de petrificar o Filch antes de ser expulso. Brincadeirinha... — acrescentou Rony depressa, ao ver Gina empalidecer.
O ataque também afetara Mione. Tornou-se comum ela passar muito tempo lendo, mas agora não fazia quase mais nada. Nem Harry e Rony tampouco obtinham alguma resposta quando lhe perguntavam o que pretendia fazer, e somente na quarta-feira seguinte ficaram sabendo.
Harry se demorara na sala de Poções, onde Snape o retivera depois da aula para raspar os vermes deixados em cima das carteiras. Depois de um almoço apressado, ele foi ao encontro de Rony na biblioteca e viu Justino Finch-Fletchley, o garoto da Lufa-Lufa que tinham conhecido na aula de Herbologia, vindo em sua direção.
Harry acabara de abrir a boca para dizer "Olá" quando Justino o viu, virou-se abruptamente e saiu correndo na direção oposta.
Harry encontrou Rony no fundo da biblioteca, medindo o dever de História da Magia. O Profº. Binns tinha pedido uma redação de um metro sobre o "Congresso Medieval de Bruxos Europeus".
— Não acredito que ainda faltem vinte centímetros... — disse Rony furioso, largando o pergaminho, que tornou a se enrolar. — E Mione escreveu um metro e vinte e oito e a letra dela é miudinha.
— Onde é que ela está agora? — perguntou Harry, pegando a fita métrica e desenrolando a própria redação.
— Ali adiante — disse Rony indicando as estantes. — Procurando outro livro. Acho que está tentando ler a biblioteca inteira antes do Natal.
Harry contou a Rony que Justino Finch-Fletchley fugira dele.
— Não sei por que você se importa — disse Rony escrevendo sem parar, fazendo a caligrafia o maior possível. — Toda aquela baboseira sobre a importância de Lockhart...
Hermione saiu do meio das estantes. Tinha um ar irritado, mas parecia, finalmente, disposta a falar com eles.
— Todos os exemplares de Hogwarts: uma história foram retirados — anunciou ela, sentando-se com Harry e Rony. — E tem uma lista de espera de duas semanas. Eu gostaria de não ter deixado o meu exemplar em casa, mas não consegui enfiá-lo no malão com todos os livros de Lockhart.
— Para que você quer a história? — perguntou Harry.
— Pela mesma razão que todo mundo quer: para ler a lenda da Câmara Secreta.
— Que vem a ser isso? — perguntou Harry depressa.
— Esta é a questão. Não consigo me lembrar — disse Mione, mordendo o lábio. — E não consigo encontrar a história em lugar nenhum...
— Mione, me deixe ler a sua redação — pediu Rony desesperado, consultando o relógio de pulso.
— Não, deixo não — disse a garota com severidade. — Você teve dez dias para terminá-la...
— Eu só preciso de mais cinco centímetros, deixe, vai...
A sineta tocou. Rony e Mione se dirigiram à aula de História da Magia, discutindo.
A História da Magia era a matéria mais sem graça do programa. O Profº. Binns, encarregado de ensiná-la, era o único professor fantasma, e a coisa mais excitante que acontecia em suas aulas era ele entrar em classe atravessando o quadro-negro.
Velhíssimo e enrugado, muita gente dizia que ainda não percebera que estava morto. Um belo dia ele simplesmente se levantara para dar aula e deixara o corpo sentado numa poltrona diante da lareira da sala de professores; sua rotina não se alterara nem um pingo desde então.
Hoje estava chato como sempre. O Profº. Binns abriu seus apontamentos e começou a ler num tom monótono como um aspirador de pó velho, até que quase todos os alunos na sala caíram num estupor profundo, de que emergiam ocasionalmente o tempo suficiente de copiar um nome ou uma data e, em seguida, tornar a adormecer.
Estava falando havia meia hora quando aconteceu uma coisa que nunca acontecera antes.
Hermione levantou a mão.
O Profº. Binns ergueu os olhos no meio de um discurso mortalmente maçante sobre a Convenção Internacional de Bruxos de 1289 e fez uma cara surpresa.
— Senhorita... Ah...?
— Granger, professor. Eu gostaria de saber se o senhor poderia nos contar alguma coisa sobre a Câmara Secreta — pediu Mione com voz clara.
Dino Thomas, que estivera sentado com a boca aberta, espiando para fora da janela, acordou de repente do seu transe; a cabeça de Lilá Brown deitada sobre os braços se ergueu e o cotovelo de Neville Longbottom escorregou da carteira.
O Profº. Binns pestanejou.
— Minha matéria é História da Magia — disse ele naquela voz seca e asmática. — Lido com fatos, Srta. Granger, não com mitos nem com lendas. — Ele pigarreou fazendo um barulhinho como o de um giz que se parte e continuou. — Em setembro daquele ano, um subcomitê de bruxos sardos...
O professor gaguejou antes de parar. A mão de Mione estava outra vez no ar.
— Srta. Granger?
— Por favor, professor, as lendas não se baseiam sempre em fatos?
O Profº. Binns olhou-a com tal espanto, que Harry teve certeza de que nenhum aluno vivo ou morto, jamais o interrompera antes.
— Bem — disse o Profº. Binns lentamente —, é um argumento válido, suponho. — Ele estudou Mione como se nunca antes tivesse olhado direito para um aluno. — Contudo, a lenda de que a senhorita fala é tão sensacionalista e até tão absurda que...
A classe inteira ficou pendurada em cada palavra que o professor dizia. Ele correu um olhar míope por todos, rosto por rosto virado em sua direção. Harry percebeu que ele estava completamente desconcertado por aquela manifestação incomum de interesse.
— Ah, muito bem — disse vagarosamente. — Vejamos... A Câmara Secreta...
— Os senhores todos sabem, é claro, que Hogwarts foi fundada há mais de mil anos... a data exata é incerta... pelos quatro maiores bruxos e bruxas da época. As quatro casas da escola foram batizadas em homenagem a eles: Godrico Gryffindor, Helga Hufflepuff, Rowena Ravenclaw e Salazar Slytherin. Eles construíram este castelo juntos, longe dos olhares curiosos dos trouxas, porque era uma época em que a magia era temida pelas pessoas comuns, e os bruxos e bruxas sofriam muitas perseguições.
Ele fez uma pausa, percorreu a sala com os olhos lacrimejantes e continuou:
— Durante alguns anos, os fundadores trabalharam juntos, em harmonia, procurando jovens que revelassem sinais de talento em magia e trazendo-os para serem educados no castelo. Mas então surgiram os desentendimentos. Ocorreu uma cisão entre Slytherin e os outros. Slytherin queria ser mais seletivo com relação aos estudantes admitidos. Ele acreditava que o aprendizado de magia devia ser mantido no âmbito das famílias inteiramente mágicas. Desagradava-lhe admitir alunos de pais trouxas, pois os achava pouco dignos de confiança. Passado algum tempo houve uma séria discussão sobre o assunto entre Slytherin e Gryfflndor, e Slytherin abandonou a escola.
O Profº. Binns parou de novo, contraindo os lábios, parecendo uma velha tartaruga enrugada.
— É o que nos contam as fontes históricas confiáveis. Mas estes fatos honestos foram obscurecidos pela lenda fantasiosa da Câmara Secreta. Segundo ela, Slytherin construiu uma câmara secreta no castelo, da qual os outros nada sabiam. Slytherin teria selado a Câmara Secreta de modo que ninguém pudesse abri-la até que o seu legítimo herdeiro chegasse a escola. Somente o herdeiro seria capaz de abrir a Câmara Secreta, libertar o horror que ela encerrava e usá-lo para expurgar a escola de todos que não fossem dignos de estudar magia.
Fez-se silêncio quando ele acabou de contar a história, mas não foi o de sempre, o silêncio modorrento que dominava as aulas do Profº. Binns. Havia no ar um certo constrangimento enquanto todos continuavam a olhá-lo, esperando mais. O Profº. Binns fez um ar ligeiramente aborrecido.
— A história inteira é um perfeito absurdo, é claro. Naturalmente, a escola foi revistada à procura de provas da existência dessa câmara, muitas vezes, pelos bruxos e bruxas mais cultos. Ela não existe. Uma história contada para assustar os crédulos.
A mão de Mione voltou a se erguer.
— Professor.. O que foi exatamente que o senhor quis dizer com "o horror que a câmara encerra"?
— Acredita-se que haja algum tipo de monstro, que somente o herdeiro de Slytherin pode controlar — respondeu o Profº. Binns com sua voz seca e esganiçada.
Os alunos trocaram olhares nervosos.
— Afirmo que a coisa não existe — disse ele folheando suas anotações. -Não há Câmara alguma e monstro algum.
— Mas, professor — perguntou Simas Finnigan —, se a Câmara só pode ser aberta pelo verdadeiro herdeiro de Slytherin, ninguém mais seria capaz de encontrá-la, não é?
— Bobagem, Flaherty — disse o Profº. Binns, num tom irritado. — Se uma longa sucessão de diretores e diretoras de Hogwarts não encontraram a coisa...
— Mas, professor — ouviu-se a voz fina de Parvati Paúl —, a pessoa provavelmente terá de usar Magia Negra para abri-la...
— Só porque um bruxo não usa Magia Negra não significa que não possa, senhorita Pennyfeather — retrucou oProfº. Binns. — Eu repito, se uma pessoa como Dumbledore...
— Mas talvez a pessoa tenha que ser parente de Slytherin, por isso Dumbledore não poderia... — começou Dino Thomas, mas para o professor aquilo já era demais.
— Basta — disse com rispidez. — É um mito! Não existe!  Não há a mínima prova de que Slytherin tenha algum dia construído sequer um armário secreto de vassouras! Arrependo-me de ter contado aos senhores uma história tão tola. Vamos voltar, façam-me o favor, à história, aos fatos sólidos, criveis e verificáveis!
E em cinco minutos a classe voltara a mergulhar em seu torpor habitual.
— Eu sempre soube que Salazar Slytherin era um velho maluco e tortuoso — contou Rony a Harry e Mione enquanto tentavam passar pelo corredor apinhado de alunos ao fim das aulas, para guardarem as mochilas antes do jantar — Mas não sabia que ele é quem tinha começado toda essa história de puro sangue. Eu não ficaria na casa dele nem que me pagassem. Francamente, se o Chapéu Seletor tivesse tentado me mandar para Sonserina, eu teria tomado o trem de volta para casa...
Mione concordou fervorosamente, mas Harry não disse nada. Sentira o estômago afundar e o comentário lhe causara mal estar.
Harry nunca contara a Rony e Mione que o Chapéu Seletor considerara seriamente mandá-lo para Sonserina. Ainda lembrava, como se fosse ontem, a vozinha que lhe falara ao ouvido quando no ano anterior ele colocara o chapéu na cabeça:
“Você poderá ser grande, sabe, está tudo aí em sua cabeça, e Sonserina o ajudaria a galgar o caminho para a grandeza, não há dúvida...”
Mas Harry, que já ouvira falar da reputação que tinha Sonserina de produzir bruxos das trevas, pensou desesperado:
"Sonserina, não!" e o chapéu lhe respondera: "Bom, se você tem certeza... então é melhor Grifinória...
Enquanto se deslocavam pela multidão, Colin Creevey passou.
— Oi, Harry!
— Olá, Colin — respondeu Harry automaticamente.
— Harry, Harry, um garoto da minha classe anda dizendo que você...
Mas Colin era tão pequeno que não conseguiu resistir à maré de gente que o empurrava em direção ao Salão Principal; eles ouviram sua voz pequenininha:
— Vejo você depois, Harry! — e desapareceu.
— O que será que um garoto da classe dele anda dizendo de você? — perguntou Mione.
— Que sou o herdeiro de Slytherin, imagino — disse Harry, o estômago afundando mais uns dois centímetros e ele, de repente, lembrou-se de Justino Finch-Fletchey fugindo dele na hora do almoço.
— O pessoal daqui acredita em qualquer coisa — disse Rony desgostoso.
A multidão foi-se esgarçando e eles puderam subir a escada seguinte sem dificuldade.
— Você naturalmente acha que existe uma Câmara Secreta? — perguntou Rony a Mione.
— Não sei — respondeu ela franzindo a testa. — Dumbledore não conseguiu curar Madame Nor-r-ra, e isto me faz pensar que aquilo que a atacou talvez não fosse... Bem... Humano.
Ao falar, eles dobraram um canto e se viram no fim do mesmíssimo corredor em que ocorrera o ataque. Pararam e olharam. A cena era exatamente a daquela noite, exceto que não havia nenhum gato duro pendurado no porta-archote, e havia uma cadeira encostada na parede em que se lia a mensagem "A Câmara Secreta foi Aberta".
— É onde Filch tem estado de guarda — murmurou Rony.
Eles se entreolharam. O corredor estava deserto.
— Não faria mal algum dar uma espiada por aí — disse Harry, largando a mochila e ficando de quatro de modo a poder engatinhar à procura de pistas.
— Marcas de fogo! — disse. — Aqui... E aqui...
— Venham só dar uma espiada nisso! — chamou Mione. — Que coisa engraçada...
Harry se levantou e foi até a janela junto à mensagem na parede. Mione estava apontando o caixilho superior da janela, onde havia umas vinte aranhas correndo e brigando para entrar em uma pequena fenda. Um fio longo e prateado estava pendurado como uma corda, como se todas o tivessem usado na pressa de sair.
— Vocês já viram aranhas se comportarem assim? — perguntou Mione pensativa.
— Não — disse Harry —, e você, Rony? Rony?
Ele olhou por cima do ombro. Rony estava parado bem longe e parecia lutar contra o impulso de correr.
— Que aconteceu?— perguntou Harry.
— Eu... Não... Gosto... De aranhas — disse Rony muito tenso.
— Eu nunca soube disso — comentou Mione, olhando para Rony surpresa. — Você usou aranhas na aula de Poções um monte de vezes...
— Não me importo quando estão mortas — explicou Rony, que tomava o cuidado de olhar para todo lado menos para a janela. — Não gosto do jeito como elas andam...
Hermione riu.
— Não tem graça — disse Rony, furioso. — Se precisa mesmo saber, quando eu tinha três anos, Fred transformou o meu... Meu ursinho numa enorme aranha nojenta porque eu quebrei a vassoura de brinquedo dele... Você também detestaria aranhas se estivesse segurando um urso e de repente ele ganhasse um monte de pernas e...
Ele estremeceu, sem terminar a frase. Mione continuava obviamente a fazer força para não rir. Harry, achando que era melhor mudarem de assunto, disse:
— Vocês se lembram daquela água toda no chão? De onde terá vindo? Alguém a enxugou.
— Estava mais ou menos por aqui — disse Rony, recobrando-se para andar até um pouco além da cadeira de Filch e apontar.
— Na altura desta porta.
Ele levou a mão à maçaneta de latão mas, de repente, puxou a mão como se tivesse se queimado.
— Que foi? — perguntou Harry.
— Não posso entrar aí — explicou impaciente. — É o banheiro das garotas.
— Ah, Rony, não vai ter ninguém ai — disse Mione, ficando em pé e se aproximando. — É o lugar da Murta Que Geme.
Vamos, vamos dar uma olhada.
E desconsiderando o grande aviso de INTERDITADO, ela abriu a porta.
Era o banheiro mais escuro, mais deprimente em que Harry já entrara. O piso estava molhado e refletia a luz fraca dos tocos de vela que brilhavam nos castiçais: as portas de madeira dos boxes estavam descascadas e arranhadas e uma delas se soltara das dobradiças.
Mione levou o dedo aos lábios e se encaminhou para o último boxe. Ao chegar, disse:
— Olá, Murta, como vai?
Harry e Rony foram olhar. A Murta Que Geme estava flutuando acima da caixa de descarga do vaso, cutucando uma manchinha no queixo.
— Isto aqui é um banheiro de garotas — disse ela, olhando desconfiada para Rony e Harry. — Eles não são garotas.
— Não — concordou Mione. — Eu só queria mostrar a eles como... Ah... É bonitinho aqui.
Ela fez um gesto vago indicando o velho espelho sujo e o piso molhado.
— Pergunte a ela se viu alguma coisa — pediu Harry disfarçando.
— Que é que você está cochichando? — perguntou Murta, encarando-o.
— Nada — disse Harry depressa. — Queríamos perguntar...
— Eu gostaria que as pessoas parassem de falar às minhas costas! — disse Murta numa voz engasgada de choro. — Eu tenho sentimentos, sabe, mesmo que morta...
— Murta, ninguém quer aborrecê-la — disse Mione. — Harry só...
— Ninguém quer me aborrecer! Essa é boa! — uivou Murta.
— Minha vida foi uma infelicidade só neste lugar, e agora as pessoas aparecem para estragar a minha morte!
— Nós queríamos perguntar se você viu alguma coisa esquisita ultimamente — falou Mione depressa. — Porque uma gata foi atacada bem ali na porta de entrada, no Dia das Bruxas.
— Você viu alguém por aqui naquela noite? — perguntou Harry.
— Eu não estava prestando atenção — respondeu a Murta teatralmente. — Pirraça me aborreceu tanto que entrei aqui e tentei me matar. Depois, é claro, lembrei-me que já estou... Que estou...
— Morta — disse Rony querendo ajudar.
Murta soltou um soluço trágico, subiu no ar, deu uma cambalhota e mergulhou de cabeça no vaso, espalhando água neles e desaparecendo de vista, embora pela direção dos seus soluços abafados, devesse ter ido pousar em algum ponto da curva em U.
Harry e Rony ficaram boquiabertos, mas Mione deu de ombros cansada e disse:
— Francamente, vindo da Murta isto foi quase animador... Vamos, vamos embora.
Harry mal fechara aporta, abafando os soluços gargarejantes de Murta, quando uma voz alta fez os três darem um salto.
— RONY!
Percy Weasley tinha estacado de repente no alto da escada, a insígnia de monitor reluzindo e uma expressão de absoluto choque no rosto.
— Isto é um banheiro de garotas! Que é que você...?
— Só estava dando uma olhada — Rony sacudiu os ombros.
— Pistas, sabe...
Percy inchou de um jeito que lembrou a Harry, com eloqüência, a Sra. Weasley.
— Suma... Daqui... — disse Percy, caminhando em direção a eles e começando a afugentá-los, agitando os braços. — Vocês não se importam com o que isto parece? Voltarem aqui enquanto todos estão jantando...
— Por que não deveríamos estar aqui? — retrucou Rony exaltado, parando de repente para encarar Percy. — Olhe aqui, nunca pusemos um dedo naquela gata!
— Foi o que eu disse a Gina — respondeu Percy com ferocidade —, mas ainda assim ela parece pensar que você vai ser expulso, nunca a vi tão perturbada, chorando de se acabar, você poderia pensar nela, todos os alunos de primeiro ano estão excitadíssimos com essa história...
— Você nem se importa com a Gina — disse Rony, cujas orelhas agora estavam vermelhas. — Você só está preocupado que eu estrague suas chances de se tornar monitor-chefe...
— Cinco pontos a menos para a Grifinória! — disse Percy concisa e autoritariamente, levando a mão à insígnia de monitor.
— E espero que isto seja uma lição para vocês! Nada de trabalho de detetive ou vou escrever para a mamãe!
E saiu a passos firmes, a nuca tão vermelha quanto as orelhas de Rony.
Àquela noite, Harry, Rony e Mione escolheram poltronas na sala comunal o mais afastado possível de Percy. Rony continuava de muito mau humor e não parava de borrar com a pena o dever de Feitiços. Quando ele esticou a mão distraidamente para remover os borrões, ela tocou fogo no pergaminho. Fumegando quase tanto quanto o seu dever, Rony fechou com estrondo o Livro Padrão de Feitiços, série. Para surpresa de Harry Mione fez o mesmo.
— Mas quem é que pode ser? — perguntou ela baixinho, como se estivesse continuando uma conversa já iniciada. — Quem iria querer afugentar todos os abortos e trouxas de Hogwarts?
— Vamos pensar — disse Rony fingindo-se intrigado. — Quem é que conhecemos que acha que os que nascem trouxas são escória?
Ele olhou para Mione. Mione retribuiu o olhar sem se convencer.
— Se você está pensando no Draco...
— Claro que estou! — exclamou Rony. — Você ouviu quando ele disse: "Você será o próximo, Sangue Ruim!", vem cá, a gente só precisa olhar para aquela cara nojenta de rato para saber que é de...
— Draco, o herdeiro de Slytherin? — disse Mione cética.
— Olha só a família dele — disse Harry, fechando os livros também. — Todos foram da Sonserina; ele está sempre se gabando disso. Podiam muito bem ser descendentes de Slytherin. O pai dele decididamente é bem malvado.
— Eles poderiam ter guardado a chave para a Câmara Secreta durante séculos! — disse Rony. — Passando-a de pai para filho...
— Bem — disse Mione, cautelosa —, suponhamos que seja possível...
— Mas como vamos provar isso? — disse Harry deprimido.
— Talvez haja um jeito — disse Mione pausadamente, baixando a voz ainda mais e lançando um breve olhar a Percy do outro lado da sala. — Claro que seria difícil. E perigoso, muito perigoso. Estaríamos desrespeitando umas cinqüenta normas da escola, acho...
— Se, dentro de mais ou menos um mês, você tiver vontade de explicar, você nos avisa, não é? — disse Rony, irritado.
— Muito bem — disse Mione friamente. — O que precisamos é entrar na sala comunal da Sonserina e fazer umas perguntas a Draco, sem ele perceber que somos nos.
— Mas isto é impossível — exclamou Harry enquanto Rony dava risada.
— Não, não é — disse Mione. — Só precisaríamos de um pouco de Poção Polissuco.
— Que é isso? — indagaram Rony e Harry juntos.
— Snape mencionou essa poção na aula há umas semanas...
— Você acha que não temos nada melhor a fazer na aula de Poções do que prestar atenção a Snape? — resmungou Rony.
— Ela transforma você em outra pessoa. Pense só nisso! Poderíamos nos transformar em alunos da Sonserina. Ninguém saberia que somos nós. Draco provavelmente nos contaria qualquer coisa. Provavelmente anda se gabando disso na sala comunal da Sonserina neste instante, se ao menos pudéssemos ouvi-lo.
— Essa história de Polissuco me parece meio suspeita — disse Rony, franzindo a testa. — E se a gente acabasse parecendo três alunos da Sonserina para sempre?
— Sai depois de algum tempo — disse Mione, fazendo um gesto de impaciência. — Mas conseguir arranjar a receita vai ser muito difícil. Snape falou que estava em um livro chamado “Pociones Muy Potentes” e vai ver está na Seção Reservada da biblioteca.
Só havia um jeito de retirar um livro da Seção Reservada: O aluno precisava de uma permissão escrita do professor.
— Vai ser difícil entender por que queremos o livro — disse Rony —, se não temos intenção de preparar uma das poções.
— Acho — disse Mione — que se fizermos parecer que só estamos interessados na teoria, talvez haja uma chance...
— Ah, qual é, nenhum professor vai cair nessa — disse Rony.
— Teria que ser muito tapado...











CAPÍTULO DEZ
O Balaço Errante

Desde o desastroso episódio com os diabretes, o Profº. Lockhart não trouxera mais seres vivos para a aula. Em vez disso, lia trechos dos seus livros para os alunos, e, por vezes, dramatizava algumas passagens mais pitorescas. Em geral ele escolhia Harry para ajudá-lo nessas dramatizações; até aquele momento o garoto fora obrigado a representar um camponês simplório da Transilvânia, de quem Lockhart curara um feitiço de gagueira, um iéti com um resfriado na cabeça e um vampiro que se tornara incapaz de comer outra coisa a não ser alface, depois que Lockhart dera um jeito nele.
Harry foi chamado à frente da classe na aula seguinte de Defesa contra as Artes das Trevas, desta vez para representar um lobisomem. Se não tivesse uma boa razão para deixar Lockhart de bom humor, ele teria se recusado.
— Um belo uivo, Harry, exato, e então, queiram acreditar, eu saltei sobre ele, assim, joguei-o contra a porta, assim, consegui contê-lo com uma das mãos, com a outra apontei a varinha para o pescoço dele, e então reuni toda a força que me restava e lancei o Feitiço Homorfo, muitíssimo complicado, e ele soltou um gemido de dar pena... Vamos, Harry mais alto, bom, o pêlo dele desapareceu, as presas encurtaram, e ele voltou a virar homem. Simples, mas eficiente, e mais uma aldeia que se lembrará de mim para sempre como o herói que os salvou do terror dos ataques de lobisomem.
A sineta tocou e Lockhart ficou em pé.
— Dever de casa... Compor um poema sobre a minha vitória sobre o lobisomem de Wagga Wagga! Exemplares autografados de O Meu Eu Mágico para o autor do melhor trabalho!
Os alunos começaram a sair. Harry voltou ao fundo da sala, onde Rony e Mione esperavam.
— Prontos? — murmurou Harry.
— Espere até todos saírem — pediu Mione nervosa. — Certo...
Ela se aproximou da mesa de Lockhart, um papelzinho seguro firmemente na mão, Harry e Rony logo atrás.
— Ah... Profº. Lockhart? — gaguejou Mione. — Eu queria... Retirar este livro da biblioteca.  Só para ter uma idéia geral do assunto. — Ela estendeu o papelzinho, a mão ligeiramente trêmula. — Mas o problema é que ele é guardado na Seção Reservada da biblioteca, então preciso que um professor autorize, tenho certeza de que o livro me ajudaria a entender o que o senhor diz em Como se Divertir com Vampiros sobre os venenos de ação retardada...
— Ah, Como se divertir com vampiros!— exclamou Lockhart apanhando o papelzinho de Hermione e lhe dando um grande sorriso. — Possivelmente é o livro de que mais gosto. Você gostou?
— Gostei — disse Hermione depressa. — Muito esperto o modo com que o senhor apanhou aquele último, com o coador de chá...
— Bem, tenho certeza de que ninguém vai se importar que eu dê à melhor aluna do ano uma ajudinha extra — disse Lockhart calorosamente, e puxou uma enorme pena de pavio. — Bonita, não é? — disse ele, interpretando mal a expressão de indignação no rosto de Rony. — Em geral eu a uso para autografar livros.
Ele rabiscou uma enorme assinatura cheia de floreios no papel e devolveu-o a Hermione.
— Então, Harry — disse Lockhart, enquanto Hermione dobrava o papel com dedos nervosos e o guardava na mochila. — Creio que amanhã é a primeira partida de Quadribol da temporada. Grifinória contra Sonserina, não é? Ouvi dizer que você é um jogador muito útil. Eu também fui apanhador. Convidaram-me para tentar a seleção nacional, mas preferi dedicar minha vida à erradicação das Forças das Trevas. Ainda assim, se algum dia você achar que precisa de um treino pessoal, não hesite em me pedir. Fico sempre feliz de passar minha experiência a jogadores menos capazes...
Harry fez um barulhinho discreto na garganta e saiu correndo atrás de Rony e Hermione.
— Eu não acredito — disse ele quando os três examinaram a assinatura no papel. — Ele nem olhou o nome do livro que queríamos.
— É porque ele é um panaca desmiolado — disse Rony. — Mas quem se importa, temos o que precisávamos...
— Ele não é um panaca desmiolado — disse Hermione em voz alta quando se dirigiam quase correndo à biblioteca.
— Só porque ele disse que você é a melhor aluna do ano...
Eles baixaram a voz ao entrar na quietude abafada da biblioteca. Madame Pince, a bibliotecária, era uma mulher magra e irritável que parecia um urubu subnutrido.
— Pociones Muy Potentes? — repetiu ela desconfiada, tentando tirar a autorização da mão de Hermione; mas a garota não deixou.
— Eu pensei que talvez pudesse guardar a autorização — disse Hermione ofegante.
— Ah, qual é? — protestou Rony, arrancando a autorização da mão dela e entregando-a a Madame Pince. — Nós lhe arranjamos outro autógrafo. Lockhart assina qualquer coisa que fique parada tempo suficiente.
Madame Pince ergueu o papel contra a luz, como se estivesse decidida a descobrir uma falsificação, mas a autorização passou no teste. Ela desapareceu silenciosamente entre as estantes altas e voltou vários minutos depois trazendo um livro grande de aparência mofada. Hermione guardou-o cuidadosamente na mochila e os três foram embora, procurando não andar demasiado rápido nem parecer muito culpados.
Cinco minutos depois, estavam barricados mais uma vez no banheiro interditado da Murta Que Geme. Hermione tinha vencido as objeções de Rony lembrando que seria o último lugar em que alguém sensato iria, e com isso garantiram alguma privacidade.
Murta Que Geme chorava alto no seu boxe, mas eles não lhe prestavam atenção nem a fantasma aos garotos.
Hermione abriu o Pociones Muy Potentes com cuidado, e os três se debruçaram sobre as páginas manchadas de umidade. Era claro, ao primeiro olhar, a razão por que o livro pertencia à Seção Reservada. Algumas das poções produziam efeitos medonhos demais só de se imaginar, e havia algumas ilustrações muito impressionantes, que incluíam um homem que parecia ter virado do avesso e uma bruxa com vários pares de braço que saíam da cabeça.
— Aqui — exclamou, excitada, ao encontrar a página intitulada “A Poção Polissuco”. Estava decorada com desenhos de pessoas a meio caminho de se transformarem em outras. Harry sinceramente desejou que as expressões de dor intensa em seus rostos fossem imaginação do artista.
— Esta é a poção mais complicada que já vi — disse Hermione quando examinavam a receita. — Hemeróbios, sanguessugas, descutainia e sanguinária — murmurou ela, correndo o dedo pela lista de ingredientes. — Bem, esses são bem fáceis, estão no armário dos alunos, podemos tirar o que precisarmos... Ah, olhem só isso, pó de chifre de bicórnio, não sei onde vamos arranjar isso... Pele de ararambóia picada, essa vai ser uma fria também... E, é claro, um pedacinho da pessoa em quem quisermos nos transformar.
— Dá para repetir isso? — pediu Rony ríspido. — Que é que você quer dizer com um pedacinho da pessoa em quem quisermos nos transformar? Não vou tomar nada que tenha unhas do pé de Crabbe dentro...
Hermione continuou como se não tivesse ouvido o amigo.
— Ainda não temos que nos preocupar com isso, porque os pedacinhos só entram no fim...
Rony virou-se, sem fala, para Harry, que tinha outra preocupação.
— Você percebe quanta coisa vamos ter que roubar, Mione? Pele de ararambóia picada, decididamente não está no armário dos alunos. Que vamos fazer, assaltar o estoque particular de Snape? Não sei se é uma boa idéia...
Hermione fechou o livro com força.
— Bem, se vocês dois vão amarelar, ótimo. — Seu rosto se malhara de vermelho vivo e os olhos cintilavam mais do que o normal. — Eu não quero desrespeitar o regulamento, vocês sabem muito bem. Acho que ameaçar gente que nasceu trouxa é muito mais sério do que preparar uma poção difícil. Mas se vocês não querem descobrir se é o Draco, eu vou direto à Madame Pince agora mesmo e devolvo o livro, e...
— Eu nunca pensei que veria o dia em que você nos convenceria a desrespeitar o regulamento — disse Rony — Muito bem, nós topamos. Mas unhas dos pés não, está bem?
— E quanto tempo vai levar para preparar a poção? — perguntou Harry, de cara feliz, quando Hermione reabriu o livro.
— Bom, uma vez que a descurainia tem que ser colhida na lua cheia e os hemeróbios precisam cozinhar durante vinte e um dias... Eu diria que vai levar mais ou menos um mês para ficar pronta, se conseguirmos todos os ingredientes.
— Um mês? — exclamou Rony. — Até lá, Draco poderia atacar metade dos nascidos trouxas na escola! — Mas os olhos de Hermione tornaram a se estreitar perigosamente e ela acrescentou depressa:
— Mas é o melhor plano que temos, portanto, vamos tocar para frente a todo vapor!
No entanto, quando Hermione foi verificar se a barra estava limpa para eles saírem do banheiro, Rony cochichou para Harry:
— Daria muito menos trabalho se você simplesmente derrubasse Draco da vassoura amanhã.
Harry acordou cedo no sábado e continuou deitado por algum tempo, pensando na partida de Quadribol que se aproximava. Estava nervoso, principalmente quando pensava no que Wood diria se a Grifinória perdesse, mas também com a idéia de enfrentar um time montado nas vassouras de corrida mais velozes que o ouro podia comprar.
Nunca tivera tanta vontade de vencer a Sonserina. Depois de passar meia hora deitado ali com as tripas dando nós, ele se levantou, se vestiu e desceu logo para tomar café e já encontrou o resto dos jogadores da Grifinória sentados juntos à mesa comprida e vazia, todos parecendo nervosos e falando muito pouco.
Á medida que às onze horas se aproximaram, a escola inteira começou a tomar o caminho do estádio de Quadribol.
Fazia um dia mormacento com sinais de trovoada no ar. Rony e Hermione vieram correndo desejar a Harry boa sorte quando ele ia entrando no vestiário. O time vestiu os uniformes vermelhos da Grifinória e depois se sentou para ouvir a preleção que Wood sempre fazia antes do jogo.
— Hoje, Sonserina tem vassouras melhores que nós — começou ele. — Não adianta negar. Mas nós temos jogadores melhores nas nossas vassouras. Treinamos com maior garra do que eles, estivemos no ar fosse qual fosse o tempo... ("Quem duvida", murmurou Jorge Weasley. "Não sei o que é estar seco desde agosto")... E vamos fazer com que eles se arrependam do dia em que deixaram aquele trapaceiro do Draco pagar para entrar no time.
O peito arfando de emoção, Wood virou-se para Harry.
— Vai depender de você, Harry, mostrar a eles que um apanhador tem que ter mais do que um pai rico. Chegue ao pomo antes de Draco ou morra tentando, porque temos que vencer hoje, é muito simples.
— Por isso nada de pressioná-lo, Harry — disse Fred piscando o olho.
Quando entraram no campo, foram saudados por um vozerio, muitos vivas, porque a Corvinal e a Lufa-Lufa estavam ansiosas para ver a Sonserina derrotada, mas os alunos da Sonserina nas arquibancadas vaiaram e assobiaram, também. Madame Hooch, a professora de Quadribol, mandou Flint e Wood se apertarem as mãos, o que eles fizeram, lançando um ao outro olhares ameaçadores e pondo mais força no aperto que era necessário.
— Quando eu apitar — disse Madame hooch. -Três... Dois... Um...
Com um rugido de incentivo das arquibancadas, os catorze jogadores subiram em direção ao céu carregado. Harry foi mais alto do que qualquer outro, apertando os olhos à procura do pomo.
— Tudo bem aí, ó Cicatriz? — berrou Draco, passando por baixo dele como se quisesse mostrar a velocidade de sua vassoura.
Harry não teve tempo de responder. Naquele mesmo instante, um pesado balaço negro veio voando a toda em sua direção; ele o evitou por tão pouco que sentiu o balaço arrepiar seus cabelos ao passar.
— Esse foi por um triz, Harry! – disse Jorge, emparelhando com ele de bastão na mão, pronto para rebater o balaço para os lados de um jogador da Sonserina. Harry viu Jorge dar uma forte bastonada na direção de Adriano Pucey, mas o balaço mudou de rumo em pleno ar e tornou a voar direto para Harry.
O garoto mergulhou depressa para evitá-lo, e Jorge conseguiu atingir o balaço com força na direção de Draco. Mais uma vez, o balaço voltou como um bumerangue e disparou contra a cabeça de Harry.
Harry imprimiu velocidade à vassoura e voou para o outro extremo do campo. Ouvia o assobio do balaço vindo em seu encalço. Que estava acontecendo? Os balaços nunca se concentravam em um único jogador; sua função era tentar desmontar o maior número possível de jogadores...
Fred Weasley aguardava o balaço no outro extremo. Harry se abaixou quando Fred rebateu o balaço com toda força, desviando-o de curso.
— Peguei você! — berrou Fred alegremente, mas estava enganado; como se estivesse magneticamente atraído para Harry, o balaço saiu atrás dele outra vez, e o garoto foi forçado a voar a toda velocidade.
Começara a chover; Harry sentiu grossos pingos de chuva caírem em seu rosto, molhando seus óculos. Não tinha a menor idéia do que estava acontecendo no jogo até ouvir Lino Jordan, locutor da partida, dizer: "Sonserina na liderança, sessenta a zero...”
As vassouras superiores da Sonserina obviamente estavam dando conta do recado, enquanto o balaço furioso estava fazendo o possível para tirar Harry do ar.
Fred e Jorge agora voavam tão junto dele, um de cada lado, que Harry não via nada exceto braços se agitando no ar e não tinha chance de procurar o pomo, muito menos de apanhá-lo.
— Alguém... Alterou... Esse... Balaço... — rosnou Fred, brandindo o bastão com toda força quando o balaço desfechou um novo ataque contra Harry.
— Precisamos de tempo — disse Jorge, tentando simultaneamente fazer sinal a Wood e impedir o balaço de quebrar o nariz de Harry.
Wood obviamente entendera o sinal. O apito de Madame Hooch soou e Harry, Fred e Jorge mergulharam até o chão, ainda tentando evitar o balaço maluco.
— Que está acontecendo? — perguntou Wood quando o time da Grifinória se reuniu à sua volta ao som das vaias da Sonserina.
— Estamos sendo arrasados. Fred, Jorge, onde é que vocês estavam quando aquele balaço impediu Angelina de fazer gol?
— Estávamos seis metros acima dela, impedindo outro balaço de matar Harry, Olivio — respondeu Jorge aborrecido. — Alguém alterou aquele balaço, ele não deixa o Harry em paz. E não tentou pegar mais ninguém o tempo todo. O pessoal da Sonserina deve ter feito alguma coisa com ele.
— Mas os balaços estiveram trancados na sala de Madame Hooch desde o nosso último treino, e não havia nada errado com eles... — disse Wood, ansioso.
Madame Hooch veio andando em direção ao grupo. Por cima do ombro Harry viu o time da Sonserina caçoando e apontando para ele.
— Escutem — disse Harry ao vê-la chegar cada vez mais perto —, com vocês dois voando em volta de mim o tempo todo o único jeito de apanhar aquele pomo é ele entrar voando na minha manga. Se juntem ao resto do time e deixem que eu cuido do balaço errante.
— Não seja burro — disse Fred. — Ele vai arrancar sua cabeça.
Wood olhava de Harry para os Weasley.
— Olivio, isso é loucura — disse Alicia Spinnet zangada. — Você não pode deixar o Harry enfrentar aquela coisa sozinho.  Vamos pedir uma investigação...
— Se pararmos agora, perderemos a partida! — disse Harry. — E não vamos perder para a Sonserina só por causa de um balaço maluco! Anda, Olivio, diz para eles me deixarem em paz!
— Isto é tudo culpa sua — disse Jorge furioso com Wood. — "Apanhe o pomo ou morra tentando", que coisa idiota para dizer a ele...
Madame Hooch se reunira aos jogadores.
— Estão prontos para recomeçar a partida? — perguntou a Wood.
Wood olhou para a expressão decidida no rosto de Harry.
— Muito bem. Fred, Jorge, vocês ouviram o que Harry disse, deixem-no em paz e deixem que ele cuide do balaço sozinho.
A chuva caía mais pesada agora. Ao apito de Madame Hooch, Harry deu um forte impulso para o alto e ouviu o assobio que indicava que o balaço vinha atrás dele. Ganhou cada vez mais altura; fez loops e subiu, espiralou, ziguezagueou e balançou.
Mesmo ligeiramente tonto, mantinha os olhos bem abertos, a chuva molhando seus óculos e entrando por suas narinas quando ele voava de barriga para cima, evitando outro mergulho furioso do balaço. Ele ouvia as risadas do público; sabia que devia estar parecendo muito idiota, mas o balaço errante era pesado e não podia mudar de direção tão rápido quanto Harry; o garoto começou a voar pela orla do estádio como se estivesse em uma montanha-russa, procurando ver as balizas da Grifinória através da cortina prateada de chuva. Adrian Pucey tentava ultrapassar Wood...
Um assobio no ouvido de Harry lhe disse que o balaço deixara de acertá-lo por pouco outra vez; ele imediatamente deu meia-volta e disparou na direção oposta.
— Está treinando para fazer balé, Potter? — berrou Draco quando Harry foi obrigado a dar uma volta ridícula em pleno ar para evitar o balaço e fugir, o balaço rastreando-o a pouco mais de um metro; e então, virando-se para olhar Draco cheio de ódio ele viu... O pomo de ouro. Pairava poucos centímetros acima da orelha esquerda de Draco, e o garoto, ocupado em rir-se de Harry, não o vira.
Por um momento de agonia, Harry imobilizou-se no ar, sem ousar voar na direção de Draco, com medo de que ele olhasse para cima e visse o pomo.
BAM.
Permanecera parado um segundo a mais. O balaço finalmente atingi-o, bateu no seu cotovelo e Harry sentiu o braço rachar. Sem enxergar direito, atordoado pela terrível dor no braço, escorregou para um lado da vassoura encharcada, um joelho ainda enganchando-a por baixo, o braço direito pendurado inútil — o balaço retornava a toda para um segundo ataque, desta vez mirando o seu rosto , Harry desviou-se, uma idéia alojada com firmeza no cérebro entorpecido: chegar até Draco.
Através da névoa de chuva e dor, ele mergulhou em direção à cara debochada abaixo dele e viu os olhos de Draco se arregalarem de medo. O garoto achou que Harry ia atacá-lo.
— Que di...— exclamou, inclinando-se para longe de Harry.
Harry tirou a mão boa da vassoura e tentou agarrar o pomo às cegas; sentiu os dedos se fecharem sobre a bola fria, mas agora só estava preso à vassoura pelas pernas, e ouviu-se um urro das arquibancadas quando ele rumou direto para o chão, tentando por tudo não desmaiar.
Ele bateu no chão, levantando lama, e rolou para o lado para desmontar da vassoura.
Seu braço estava pendurado num ângulo muito estranho; varado de dor, ele ouviu, como se fosse à grande distância, muitos assobios e gritos. Focalizou o pomo seguro na mão boa.
— Aha — disse vagamente. — Ganhamos.
E desmaiou.
Voltou a si, a chuva batendo no rosto, ainda deitado no campo, com alguém debruçado sobre ele. Viu um brilho de dentes.
— Ah, o senhor, não — gemeu.
— Ele não sabe o que está dizendo — falou Lockhart em voz alta para o ajuntamento de alunos da Grifinória que cercavam ansiosos os dois. — Não se preocupe Harry. Já vou endireitar o seu braço.
— Não! — exclamou Harry. -Vou ficar com ele assim, obrigado...
O garoto tentou se sentar, mas a dor foi terrível. Ele ouviu um clique conhecido ali por perto.
— Não quero uma foto deste momento, Colin — disse em voz alta.
— Deite-se, Harry — mandou Lockhart acalmando-o. — É um feitiço muito simples que já usei muitíssimas vezes...
— Por que não posso simplesmente ir para a ala hospitalar? — disse Harry com os dentes cerrados.
— Ele devia mesmo, professor — disse um enlameado Wood, que não pôde deixar de sorrir mesmo com o seu apanhador machucado. — Grande captura, Harry, realmente espetacular, a melhor que já fez, eu diria...
Por entre a floresta de pernas à sua volta, Harry viu Fred e Jorge Weasley, lutando para enfiar o balaço errante numa caixa. A bola continuava a resistir ferozmente.
— Afastem-se — pediu Lockhart, enrolando as mangas de suas vestes verde-jade.
— Não... Não faça isso... — disse Harry com a voz fraca, mas Lockhart agitava a varinha e um segundo depois apontou-a diretamente para o braço de Harry.
Uma sensação estranha e desagradável surgiu no ombro de Harry e se espalhou até a ponta dos dedos da mão. Era como se o braço estivesse se esvaziando. Ele nem se atreveu a verificar o que estava acontecendo. Fechara os olhos, virara o rosto para longe do braço, mas os seus piores temores se confirmaram, as pessoas em volta exclamaram e Colin Creevey começou a fotografar furiosamente. Seu braço não doía mais — e nem de longe se parecia com um braço.
— Ah — disse Lockhart. — É, às vezes isso pode acontecer. Mas o importante é que os ossos não estão mais fraturados. Isto é o que se precisa ter em mente. Então, Harry, vá, dê uma chegada na ala hospitalar, ah, Sr. Weasley, Srta. Granger, podem acompanhá-lo? E Madame Pomfrey poderá... Hum... Dar um jeito nisso.
Quando Harry se levantou, sentiu-se estranhamente inclinado para um lado. Tomando fôlego, olhou para baixo, para o braço direito. O que ele viu quase o fez desmaiar de novo.  Pela manga das vestes saía uma coisa que lembrava uma grossa luva de borracha cor de pele. Ele tentou mexer os dedos. Nada aconteceu.  Lockhart não emendara os ossos de Harry Ele os removera.
Madame Pomfrey não ficou nada satisfeita.
— Você deveria ter vindo me procurar diretamente! — dizia furiosa, erguendo a lamentável sobra do que fora, meia hora antes, um braço útil. — Posso emendar ossos num segundo, mas fazê-los crescer outra vez...
— A senhora vai conseguir, não é? — perguntou Harry desesperado.
— Claro que vou, mas vai ser doloroso — disse Madame Pomfrey sombriamente, atirando um pijama para Harry. — Você vai ter que passar a noite...
Hermione esperava do outro lado da cortina que fora fechada em torno da cama de Harry, enquanto Rony o ajudava a vestir o pijama. Levou algum tempo para enfiar na manga o braço mole e sem ossos.
— Como é que você consegue defender o Lockhart agora, Hermione, hein? — Rony perguntou através da cortina enquanto puxava os dedos inertes de Harry pelo punho da manga. — Se Harry quisesse ser desossado ele teria pedido.
— Qualquer um pode se enganar — respondeu Hermione. — E não está doendo mais, está Harry?
— Não — disse Harry, entrando na cama. — Mas também não faz mais nada.
Quando ele se deitou, o braço balançou molemente.
Hermione e Madame Pomfrey deram a volta à cortina.
Madame Pomfrey vinha segurando um garrafão de alguma coisa rotulada Esquelesce.
— Você vai enfrentar uma noite difícil — disse, servindo um copo grande de boca larga e fumegante e entregando-o a Harry.
— Fazer ossos crescerem de novo é uma coisa complicada. E tomar Esquelesce, também.
O liquido queimou a boca e a garganta de Harry e desceu, fazendo-o tossir e cuspir. Ainda lamentando os esportes perigosos e os professores ineptos, Madame Pomfrey se retirou, deixando Rony e Hermione ajudarem Harry a engolir um pouco de água.
— Mas ganhamos — disse Rony, um grande sorriso se abrindo no rosto. — Foi uma captura e tanto a que você fez. A cara do Malfoy... Ele parecia que ia matar alguém...
— Eu queria saber como foi que ele alterou aquele balaço — disse Hermione sombriamente.
— Podemos acrescentar mais esta à lista de perguntas que vamos fazer a ele quando tomarmos a Poção Polissuco — disse Harry deixando-se afundar nos travesseiros. — Espero que tenha um gosto melhor do que esta coisa...
— Com pedacinhos de alunos da Sonserina dentro? Você deve estar brincando — disse Rony.
A porta do hospital se escancarou naquele momento. Imundos e encharcados, os demais jogadores da Grifinória chegaram para ver Harry.
— Incrível aquele vôo, Harry — disse Jorge. — Acabei de ver Marcos Flint berrando com Draco. Estava falando alguma coisa sobre ter o pomo sobre a cabeça e nem notar. Draco não parecia muito feliz.
Os jogadores tinham trazido bolos, doces e garrafas de suco de abóbora que arrumaram em volta da cama de Harry e davam início ao que prometia ser uma festança, quando Madame Pomfrey apareceu como um tufão, gritando:
— Esse menino precisa de descanso, precisa fazer crescer trinta e três ossos! Fora!  FORA!
E Harry foi deixado sozinho, sem nada para distraí-lo da dor horrível no braço inerte.
Muitas horas depois, Harry acordou de repente numa escuridão de breu e deu um ligeiro ganido de dor: o braço agora parecia cheio de grandes lascas. Por um segundo ele pensou que fora isso que o acordara. Então, com um choque de terror, percebeu que alguém estava passando uma esponja em sua testa.
— Fora daqui! — gritou ele alto e em seguida. — Dobby!
Os olhos arregalados, parecendo bolas de tênis, do elfo doméstico espiavam Harry na escuridão. Uma lágrima solitária escorria pelo seu nariz longo e fino.
— Harry Potter voltou para a escola — murmurou ele infeliz. — Dobby avisou e tornou a avisar Harry Potter. Ah, meu senhor, por que não prestou atenção em Dobby? Por que Harry Potter não voltou para casa quando perdeu o trem?
Harry se ergueu, apoiando-se nos travesseiros e empurrou para longe a esponja de Dobby.
— Que é que você está fazendo aqui? — perguntou. — E como sabe que perdi o trem?
O lábio de Dobby tremeu, e Harry foi assaltado por uma repentina suspeita.
— Foi você! — disse lentamente. — Você impediu a barreira de nos deixar passar!
— Com certeza, meu senhor — Dobby confirmou vigorosamente com a cabeça, as orelhas abanando. — Dobby se escondeu e esperou Harry Potter e selou o portão, e Dobby teve que passar as mãos a ferro depois — mostrou a Harry os dez dedos compridos enfaixados —, mas Dobby não se importou, meu senhor, porque pensou que Harry Potter estava seguro, e Dobby nunca sonhou que Harry Potter fosse chegar a escola por outro meio!
O elfo se balançava para frente e para trás, sacudindo a cabeça feia.
— Dobby ficou tão chocado quando soube que Harry Potter tinha voltado a Hogwarts que deixou o jantar do seu dono queimar! Dobby nunca foi tão açoitado, meu senhor...
Harry afundou de volta nos travesseiros.
— Você quase fez com que Rony e eu fôssemos expulsos — disse furioso. — É melhor desaparecer antes que os meus ossos voltem, Dobby, ou eu ainda estrangulo você.
Dobby deu um leve sorriso.
— Dobby está acostumado com ameaças de morte, meu senhor. Em casa, Dobby as recebe cinco vezes por dia.
O elfo assoou o nariz numa ponta da fronha imunda que usava, parecendo tão patético, que Harry sentiu a raiva se esvair contra a sua vontade.
— Por que você usa isso, Dobby? — perguntou curioso.
— Isso, meu senhor? — disse Dobby, puxando a fronha. — Isto é a marca de escravidão do elfo doméstico, meu senhor. Dobby só pode ser libertado se seus donos o presentearem com roupas, meu senhorr. A família toma cuidado para não passar a Dobby nem mesmo uma meia, meu senhor, se não ele fica livre para deixar a casa para sempre.
Dobby enxugou os olhos saltados e disse de repente:
— Harry Potter precisa ir para casa! Dobby achou que o balaço dele seria suficiente para fazer..
— O seu balaço? — disse Harry, a raiva tornando a subir-lhe a cabeça. — Que é que você quer dizer com o seu balaço?  Você fez aquele balaço tentar me matar?
— Não matar, meu senhor, nunca matá-lo! — disse Dobby, chocado. — Dobby quer salvar a vida de Harry Potter! Melhor mandá-lo para casa, seriamente machucado, do que ficar aqui, meu senhor! Dobby só queria que Harry Potter se machucasse o bastante para ser mandado para casa!
— Só isso? — exclamou Harry furioso. — Suponho que você não vai me contar por que queria me mandar para casa aos pedaços?
— Ah, se ao menos Harry Potter soubesse! — gemeu Dobby, mais lágrimas escorrendo pela fronha esfarrapada. — Se ele soubesse o que significa para nós, para os humildes, para os escravizados, para nos escória do mundo mágico! Dobby se lembra de como era quando Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado estava no auge dos seus poderes, meu senhor! Nós, elfos domésticos, éramos tratados como vermes, meu senhor! É claro que Dobby ainda é tratado assim, meu senhor — admitiu, enxugando o rosto na fronha.
— Mas em geral, meu senhor, a vida melhorou para gente como eu desde que o senhor venceu Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Harry Potter sobreviveu, e o poder do Lord das Trevas foi subjugado, e raiou uma nova alvorada, meu senhor, e Harry Potter brilhou como um farol de esperança para todos nós que achávamos que os dias de trevas nunca terminariam, meu senhor... E agora, em Hogwarts, coisas terríveis vão acontecer, talvez já estejam acontecendo, e Dobby não pode deixar Harry Potter ficar aqui, agora que a história vai se repetir, agora que a Câmara Secreta foi reaberta...
Dobby congelou, tomado de horror, e agarrou a jarra de água de Harry sobre a mesa de cabeceira e quebrou-a na própria cabeça, desaparecendo de vista. Um segundo depois, tornou a subir na cama, vesgo, murmurando:
-Dobby ruim, Dobby muito ruim 
— Então há uma Câmara Secreta! — sussurrou Harry. — E... Você está me dizendo que ela já foi aberta antes? Me conte, Dobby? Ele agarrou o elfo pelo pulso ossudo quando viu a mão dele tornar a se aproximar devagarinho da jarra de água. — Mas eu não nasci trouxa, como posso estar ameaçado pela Câmara?
— Ah, meu senhor, não pergunte mais nada ao pobre Dobby. — gaguejou o elfo, os olhos enormes na escuridão. — Feitos tenebrosos estão sendo tramados em Hogwarts, mas Harry Potter não deve estar aqui quando acontecerem, vá para casa, Harry Potter, vá para casa. Harry Potter não deve se meter nisso, meu senhor, é perigoso demais...
— Quem é, Dobby? — perguntou Harry, mantendo o pulso de Dobby preso para impedi-lo de bater outra vez na cabeça com o jarro de água. — Quem abriu a Câmara? Quem a abriu da outra vez?
— Dobby não pode, meu senhor, Dobby não pode, Dobby não deve falar! — guinchou o elfo. — Vá para casa, Harry Potter, vá para casa!
— Eu não vou a lugar nenhum! — respondeu Harry com ferocidade. — Uma das minhas melhores amigas nasceu trouxa; ela será a primeira da lista se a Câmara realmente foi aberta...
— Harry Potter arrisca a própria vida pelos amigos! — gemeu Dobby numa espécie de êxtase de infelicidade. — Tão nobre! Tão valente! Mas ele precisa se salvar, deve, Harry Potter, não deve...
Dobby de repente congelou, suas orelhas de morcego estremeceram. Harry ouviu, também. Havia ruído de passos no corredor.
— Dobby tem que ir! — suspirou o elfo, aterrorizado. Houve um estalo alto, e o punho de Harry subitamente não estava segurando mais nada. Ele tornou a afundar na cama, os olhos fixos no portal escuro da ala hospitalar enquanto os passos se aproximavam.
No momento seguinte, Dumbledore entrou de costas no dormitório, usando uma longa camisola de lã e uma touca de dormir. Carregava uma extremidade de alguma coisa que parecia uma estátua. A Profª. McGonagall apareceu um segundo depois, carregando os pés. Juntos, eles depositaram a carga sobre uma cama.
— Chame Madame Pomfrey — sussurrou Dumbledore, e a Profª. McGonagall desapareceu rapidamente de vista, passando pelos pés da cama de Harry. O garoto ficou deitado muito quieto, fingindo que dormia. Ouviu vozes urgentes e então a Profª. McGonagall reapareceu, seguida de perto por Madame Pomfrey, que vestia um casaquinho por cima da camisola. Ele ouviu alguém inspirar com força.
— Que aconteceu? — cochichou Madame Pomfrey para Dumbledore, debruçando-se sobre a estátua na cama.
— Mais um ataque — respondeu Dumbledore. — Minerva encontrou-o na escada.
— Havia um cacho de uvas ao lado dele — disse a professora. — Achamos que ele estava tentando chegar aqui escondido para visitar Potter.  O estômago de Harry deu um tremendo salto. Lenta e cuidadosamente, ele se ergueu alguns centímetros para poder ver a estátua na cama. Um raio de luar iluminava o rosto de expressão fixa.
Era Colin Creevey. Seus olhos estavam arregalados e, as mãos, erguidas diante dele, segurando a máquina fotográfica.
— Petrificado? — sussurrou Madame Pomfrey.
— Está — respondeu a Profª. McGonagall. — Mas estremeço de pensar... Se Alvo não estivesse descendo para tomar um chocolate quente... Quem sabe o que poderia...
Os três contemplaram Colin. Então Dumbledore se curvou e tirou a máquina fotográfica das mãos rígidas do menino.
— Você acha que ele conseguiu bater uma foto do atacante? — perguntou a professora, ansiosa.
Dumbledore não respondeu. Abriu a máquina.
— Meu Deus! — exclamou Madame Pomfrey.
Um jato de vapor saiu sibilando da máquina. Harry, a três camas de distância, sentiu o cheiro acre do plástico queimado.
— Derretidas — disse Madame Pomfrey pensativa. — Todas derretidas...
— O que significa isto, Alvo? — perguntou pressurosa a Profª. McGonagall.
— Significa que de fato a Câmara Secreta foi reaberta.
Madame Pomfrey levou a mão à boca.
McGonagall arregalou os olhos para Dumbledore.
— Mas, Alvo... Com certeza... Quem?
— A pergunta não é quem — disse Dumbledore, com os olhos postos em Colin. — A pergunta é, como...
E pelo que Harry pôde ver do rosto sombreado da Profª. McGonagall, ela não entendia muito mais que ele.

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