quinta-feira, 2 de junho de 2011

As Crônicas de Nárnia - O Sobrinho do Mago, Capítulos 6 ao 10

6
COMEÇAM AS COMPLICAÇÕES DE TIO ANDRÉ


– Me solte! Me solte! – berrava Polly.
– Não estou segurando você! – respondia Digory. Suas cabeças em seguida surgiram do poço e, mais uma vez, a luminosa quietude do Bosque entre Dois Mundos os envolveu. Parecia ainda mais cheio de vida, mais cálido e mais tranqüilo depois dos destroços deteriorados de Charn. Se lhes fosse dada a oportunidade, decerto teriam se esquecido de quem eram, de onde vieram, teriam se estendido no chão, deleitando-se, meio adormecidos, a escutar o crescimento das árvores. Dessa vez, porém, uma coisa os manteve mais acordados do que nunca: logo que pisaram a relva descobriram que não se achavam sós. A rainha, ou feiticeira, tinha viajado com eles, agarrada aos cabelos de Polly. Por isso esta gritava “me solte”.
Isso vinha a provar uma outra coisa sobre os anéis; tio André nada informara a respeito para Digory porque também ignorava o fenômeno. Para mudar de um mundo para outro, trazido pelo anel, não era preciso usá-lo ou tocá-lo; bastava tocar a pessoa que estivesse em contato com ele. O anel funcionava como um imã; se você agarrar um alfinete com um ímã, pode puxar outros alfinetes em contato com o primeiro.
Mas no bosque a rainha Jadis não era a mesma. Para começar, estava muito mais pálida; tão pálida que mal lhe sobrava alguma beleza. Curvada, parecia ter a respiração opressa, como se o ar local a sufocasse. Já não dava medo às crianças.
– Solte o meu cabelo! Solte o meu cabelo! – esbravejou Polly.
– Solte logo o cabelo dela! – gritou Digory. Ambos caíram em cima da rainha e livraram os cabelos de Polly em poucos segundos. Estavam agora mais fortes do que ela, que tinha uma expressão de terror nos olhos.
– Depressa, Digory – disse Polly. – Vamos trocar os anéis e mergulhar no lago que nos leva para casa. – Socorro! Socorro! Tenham pena de mim! – suplicou a feiticeira, com uma voz fraca, enquanto cambaleava, ofegante, na direção deles. – Levem-me também. Se me deixarem aqui será uma crueldade, um crime de morte.
– Trata-se de uma razão de Estado – falou Polly com menoscabo. – A mesma razão pela qual você assassinou aquela gente toda lá no seu mundo. Depressa, Digory.
Colocaram os anéis verdes, mas Digory disse: – Que maçada! O que vamos fazer? – Mesmo sem querer, sentia uma certa pena da rainha.
– Não banque o idiota – disse Polly. – Aposto dez contra um que ela está fingindo. Venha logo. Os dois pularam no lago. Polly ainda pensou: “Que idéia genial ter marcado o lugar!” Mal tinha saltado, Digory sentiu que dois grandes e gélidos dedos haviam pinçado sua orelha. À medida que afundavam e as confusas formas do nosso mundo começavam a surgir, a garra dos dedos apertava mais. Pelo jeito, a feiticeira estava recuperando as forças. Deu tapas e chutes, mas não adiantou nada: já se achavam no estúdio de tio André, que lá estava, olhando boquiaberto a estranha criatura que Digory trouxera de além-mundo.
E era mesmo de abrir a boca. A feiticeira vencera a languidez do Bosque entre Dois Mundos. No nosso mundo, com as coisas de sempre ao redor, a rainha era impressionante. Em Charn já parecera alarmante; em Londres, era de meter medo. Só agora faziam uma idéia exata do tamanho da mulher. “Nem chega a ser humana” – pensou Digory, olhando para ela. E devia estar certo, pois se diz que há sangue de gigante na família real de Charn.
No entanto, a altura da rainha não era nada comparada à sua beleza, impetuosidade e selvageria. Parecia dez vezes mais cheia de vida do que a grande parte das pessoas que a gente encontra em Londres. Tio André, inclinando a cabeça, esfregando as mãos e abrindo os olhos, parecia um coelho acuado. Melhor: ao lado da feiticeira, mais parecia um camarão. Pois, apesar de tudo, como Polly observou mais tarde, havia qualquer semelhança entre ela e ele, qualquer coisa na expressão do rosto. Era o olhar dos bruxos, a marca que Jadis não encontrou na face de Digory.
Pelo menos uma vantagem havia em ver os dois reunidos: não se podia mais ter medo de tio André, assim como não se tem mais medo de minhoca depois de se topar com uma cascavel, ou medo de uma vaca depois de se topar com um touro bravo.
– Bah! – disse Digory para si mesmo. – Feiticeiro, ele! Não dá nem para enganar. Ela, sim, é pra valer!
Tio André continuava a esfregar as mãos e a curvar a cabeça. Procurava uma coisa bem delicada para dizer, mas a boca estava seca como o chafariz de Charn; não conseguia falar. Seu “experimento” com os anéis, como dizia ele, estava sendo um sucesso acima do desejável. Apesar de estar metido em magia há anos, sempre reservara as missões perigosas para outras pessoas. Nada parecido lhe acontecera até então.
Jadis falou. Não muito alto, mas alguma coisa na sua voz fez a sala estremecer.
– Onde está o feiticeiro que me convocou a este mundo?
-Ah... ah... minha senhora – arquejou tio André –,
é uma honra... excelsa... eu... um... encantador prazer... de acolher... se ao menos este seu humílimo servo fosse antes avisado de vossa real chegada... eu... eu...
– Onde está o feiticeiro, idiota? – perguntou Jadis.
– Ah... ah... minha senhora. Espero que a senhora tenha perdoado... hum... quaisquer liberdades que porventura estas crianças levadas tenham tomado diante de tão augusta presença. Posso assegurar-lhe...
– Você, ainda? – disse a rainha, numa voz ainda mais aterradora. Com uma passada, cruzou a sala, apanhou um punhado do cabelo cinzento de tio André e empurrou a cabeça dele para trás. Examinou-lhe o rosto demoradamente, enquanto o velho piscava os olhos e molhava os lábios o tempo todo. Por fim, soltou-o tão abruptamente que ele rodopiou de encontro à parede.
– Sei que tipo de feiticeiro é você – disse a rainha com desprezo. – Fique firme, animal, e pare de rebolar como se estivesse falando com gente de sua laia. Como aprendeu magia? Sangue real posso jurar que você não tem.
– Bem... realmente... real, no estrito senso da palavra, não tenho – voltou a gaguejar tio André. – Não precisamente real, senhora. Os Ketterley, contudo, pertencem a uma velha família... a uma tradicional família...
– Basta – disse a feiticeira. – Já sei o que você é. Não passa de um feiticeiro de meia-tigela, que só opera por meio de livros e fómulas. Não há um pingo de magia verdadeira em seu sangue. Gente de seu tipo foi varrida do meu mundo há mais de mil anos. Aqui, entretanto, concedo que você seja o meu servo.
– Será uma honra... uma grande ventura, senhora, poder prestar-lhe qualquer serviço, um de-de-deleite que...
– Já chega. Você fala demais. Preste atenção em sua primeira tarefa. Estamos numa grande cidade, estou vendo. Vá buscar-me uma carruagem triunfal ou um tapete voador ou um dragão em boa forma... Ou qualquer coisa habitualmente usada pelos nobres de sua terra. Leve-me depois a lugares onde eu possa obter vestidos e jóias e escravos dignos da minha alta posição. Amanhã começarei a conquistar o mundo.
– Eu... eu... vou correndo buscar um cabriolé – disse o ofegante tio André.
– Espere – disse a feiticeira. – Que a sombra da traição nem passe pela sua cabeça. Meus olhos enxergam através das paredes e dentro do espírito dos homens, e estarão dentro de você em todos os lugares. Ao primeiro sinal de desobediência, rogo-lhe esta praga: onde se sentar, será como o ferro em brasa; quando se deitar, invisíveis blocos de gelo pousarão em cima de seus pés. Agora, vá!
O velho saiu como um cachorro com o rabo entre as pernas.
As crianças temiam agora que Jadis quisesse ajustar as contas pelo que ocorrera no bosque. No entanto, a rainha nunca mais mencionou o assunto. Eu acho (e Digory também) que a mente dela era de um tipo que jamais se lembraria daquele lugar calmo. Você poderia levá-la para lá várias vezes, e deixá-la por um longo tempo, que ela continuaria sem lembrança nenhuma.
Agora que ela estava sozinha com as crianças, nem notava a presença delas. Ela era assim mesmo. Em Charn, queria usar Digory e não deu a mínima atenção a Polly; agora, que tinha tio André nas mãos, pouco se importava com Digory. As bruxas em geral são assim. Não estão jamais interessadas nas coisas ou nas pessoas, mas na utilidade eventual destas. São de um espírito prático implacável.
Fez-se silêncio na sala por um ou dois minutos, mas, pelas pancadas do pé de Jadis no chão, via-se que sua impaciência crescia. Por fim falou, como para si mesma:
– Que andará fazendo aquele velho maluco? Devia ter trazido um chicote. – E, sem olhar para as crianças, saiu, como um pavão, à procura de tio André.
– Opa! – exclamou Polly, respirando aliviada. – Tenho de ir já para casa. É tarde pra burro.
– Está bem, mas volte o mais cedo que puder – disse Digory. – Não pode haver nada mais medonho do que ter esta mulher aqui em casa. Temos de combinar um plano.
– O problema é de seu tio. Foi ele quem começou a confusão toda.
– Está certo... mas você volta? Não vá me deixar sozinho numa enrascada destas.
– Vou para casa pelo túnel – disse Polly, com bastante frieza. – É o caminho mais rápido. Se quer mesmo que eu volte, não acha que está na hora de pedir desculpa?
– Desculpa? Mulher é fogo! Que é que eu fiz? – Oh, nada, é claro! – respondeu Polly, com sarcasmo. – Só torceu o meu pulso como um saca-rolha! Só deu uma martelada no sino como um imbecil de fivela! Só bancou o bestalhão, deixando que ela agarrasse em você lá no bosque! Só isso!
– Oh! – exclamou Digory, muito surpreso. – Muito bem, muito bem, desculpe, desculpe. Reconheço a culpa de tudo. Já disse: desculpe! Mas, por favor, volte. Estarei frito se não voltar.
– Não vejo o que poderá acontecer com você... Acho que é o seu tio André quem vai sentar-se nas cadeiras quentes.
– Não é isso, Polly. Estou preocupado com mamãe. Imagine só se aquela coisa aparece no quarto dela; a mamãe morre, na certa.
– Ah, agora estou entendendo – disse Polly, em outro tom de voz. – Perfeito. Pazes feitas! Volto... se puder. Só que tenho mesmo de ir.
E esgueirou-se pelo túnel. O lugar escuro, que fora uma aventura poucas horas antes, parecia agora um lugar manso e doméstico.
Voltemos ao tio André. Seu velho coração ia tuque-tuque-tuque quando ele desceu os degraus do sótão, dando pancadinhas na testa com um lenço. Chegando ao próprio quarto, no andar de baixo, trancou-se. A primeira providência que tomou foi buscar no guarda-roupa uma garrafa e um cálice, mantidos ali fora da vista policialesca da tia Leta. Serviu-se de uma dose heróica da heróica bebida e bebeu de um gole igualmente heróico. Depois respirou profundamente.
– Palavra! – falou para si mesmo. – Estou inteiramente... Que coisa louca! Na minha idade! Bebeu de um gole outro cálice de heroísmo e começou a mudar de roupa: um colarinho muito alto, muito reluzente e muito duro, desses que mantinham o queixo erguido o tempo todo; um colete branco todo trabalhado, a corrente do relógio de ouro atravessando de lado a lado; uma sobrecasaca, que ele usava somente em casamentos e enterros; a cartola muito bem escovada. Apanhou uma flor no vaso (colocado ali por tia Leta), prendendo-a à lapela. Procurou um lenço limpo (um lenço excelente, impossível de se encontrar hoje em dia), deixando cair nele algumas gotas do que se chamava frasco de cheiro. Atarraxou o monóculo de fita preta diante do olho e foi olhar-se no espelho.
As crianças são bobas de um jeito, os adultos de outro. Naquele momento tio André estava começando a ficar bobo ao jeito dos adultos. Como a feiticeira não estivesse com ele na mesma sala, já se esquecera do quanto ficara aterrorizado, passando a pensar no quanto ela era deslumbrantemente bonita. Ficou repetindo para si mesmo: “Que mulher! Que mulher! Que criatura impressionante!”
Também tratara de esquecer que foram as crianças que trouxeram a “criatura impressionante”: sentia-se como se ele próprio, por sua força mágica, tivesse trazido a mulher de um mundo desconhecido. Mirando-se no espelho, disse:
– André, garoto, você está diabolicamente conservado para a sua idade. Um homem de aparência muito distinta, cavalheiro.
Veja você: o tonto do velhote estava de fato começando a imaginar que a feiticeira ficaria apaixonada por ele. Provavelmente os dois goles ajudavam a sustentar essa opinião, e as melhores roupas também. Mas, enfim, sempre fora vaidoso como um pavão; foi só por isso que se fez feiticeiro.
Abriu a porta, desceu as escadas e mandou a empregada procurar um cabriolé (todo o mundo podia ter uma porção de empregadas naquele tempo). Na sala de visitas, como esperava, encontrou tia Leta. Estava ajoelhada, muito entretida em remendar um colchão.
– Ah, minha irmãzinha querida – disse tio André –, eu... ham... hum... tenho de sair. Só queria que me emprestasse umas cinco libras, por aí...
– Não, meu caro André – respondeu tia Leta com sua voz inflexível, sem erguer os olhos do trabalho. – Já disse a você inúmeras vezes que não lhe empresto dinheiro.
– Por favor, mana, não complique; é de uma importância transcendente. Ficarei numa situação terrivelmente embaraçosa se...
– André – disse tia Leta, fitando-o –, você não tem vergonha de me pedir dinheiro emprestado?
Escondia-se toda uma comprida e aborrecida história de gente grande atrás daquelas palavras. Basta você saber o seguinte: tio André “zelava pelos negócios de tia Leta”. Como nunca trabalhou e gastava muito com charutos e conhaque (os quais a irmã sempre pagava), conseguiu deixá-la mais pobre do que era trinta anos antes.
– Minha querida, você não está entendendo. O caso é que eu tenho umas despesas extraordinárias hoje. Sou forçado a levar a passear... uma...
– Levar a passear quem, André?
– Uma... uma estrangeira que acabou de chegar... da mais alta distinção.
– Da mais alta asnice! Há uma hora que a campainha não toca.
Nesse momento a porta escancarou-se. Tia Lera virou-se e, com o maior assombro, viu ali parada uma imensa mulher, esplendorosamente vestida, de braços nus e olhos chamejantes. Era a feiticeira.

7
O QUE ACONTECEU NA RUA


– Escravo, por quanto tempo terei de esperar pela minha carruagem? – bradou a feiticeira.
Tio André encolheu-se todo. Agora, na presença dela, os pensamentos bobos que tivera ao espelho foram desaparecendo. Tia Lera levantou-se logo e foi para o meio da sala.
– André, quem é esta jovem, se e que tenho o direito de saber? – perguntou, em tom glacial.
– Uma distintíssima estrangeira... mu... muito im... im... importante.
– Asneira! – disse tia Lera, virando-se depois para a feiticeira. – Saia desta casa imediatamente, sua sirigaita! Ou eu chamo a polícia! – Achava que a feiticeira era artista de circo e, além disso, não consentia braços nus.
– Quem é esta mulher? – perguntou Jadis. – Ajoelhe-se, sua ordinária, antes que eu a desmonte. – Cuidado com as palavras que usa na minha casa, senhorita! – disse tia Lera.
Nesse momento, tio André teve a impressão de que a rainha ficara ainda mais alta. Seus olhos faiscavam. Estendeu o braço e pronunciou umas palavras de som assustador, como fizera para destruir o portal de Charn. Nada aconteceu; tia Lera, pensando que aquelas palavras horríveis fossem um inglês malfalado, disse:
– Já estou entendendo. A mulher está bêbada. Completamente bêbada! Nem pode falar direito. Deve ter sido horrível para a feiticeira perceber que o seu poder de reduzir pessoas a pó não funcionava em nosso mundo. Mas só perdeu a compostura durante um segundo. Sem gastar tempo com palavras, agarrou tia Lera pelo pescoço e pelos joelhos, levantou-a acima da cabeça como se fosse uma boneca de pano, e fez o lançamento... Enquanto tia Lera rodopiava no ar, a empregada (que estava tendo um dia de maravilhosa animação), enfiou a cabeça na porta e disse:
– O cabriolé chegou.
– Vamos, escravo – disse a feiticeira para tio André.
Ele tentou resmungar qualquer coisa como “uma lamentável violência”, mas ficou mudo ao erguer os olhos para a rainha, que o conduziu para fora da casa. Digory veio correndo pelas escadas e chegou a tempo de ver a porta da rua sendo fechada.
– Puxa! Agora ela está solta em Londres. E com tio André! Pode acontecer tudo neste mundo. – Oh, seu Digory – disse a empregada (que estava vivendo um dia maravilhoso) –, acho que dona Letícia está um pouco machucada.
Ambos correram para a sala de estar.
Se tia Lera tivesse caído na madeira do assoalho ou mesmo no tapete, teria decerto quebrado todos os ossos. Por pura sorte, havia caído no colchão. Era uma velha dura, como costumavam ser as tias solteironas daquele tempo. Depois que cheirou seus sais, descansou por alguns minutos e disse que não era nada: apenas algumas manchas roxas. Não demorou a comandar a situação, falando à empregada:
– Sara, vá imediatamente à delegacia dizer que há uma doida solta por aí. Eu mesma levo o almoço de dona Mabel.
Dona Mabel era a mãe de Digory. Depois de almoçar com a tia, o menino pôs-se a pensar profundamente.
O problema era o seguinte: como enviar a feiticeira para o mundo dela, ou pelo menos expulsá-la do nosso o mais cedo possível? O importante, fosse como fosse, era impedir que ela continuasse a tumultuar a casa. Não podia de maneira nenhuma ser vista por sua mãe. Igualmente, se possível, não deveria tumultuar a cidade de Londres. Digory não estava na sala de estar quando ela tentou “desmontar” tia Lera, mas tinha assistido ao “desmonte” do portal de Charn. Não sabia que ela perdera seus medonhos poderes em nosso mundo, mas sabia que pretendia conquistar a Inglaterra e o resto. Naquele momento só podia estar desmontando o Palácio de Buckingham ou o Parlamento. Muitos policiais já deviam estar reduzidos a pó. Haveria alguma coisa que pudesse fazer?
“Os anéis funcionam como ímãs”, pensava ele. “Se eu tocar nela e agarrar o amarelo, iremos para o Bosque entre Dois Mundos. Será que ela perderá suas forças de novo ao chegar lá? Ou foi apenas o choque da primeira experiência? Tenho de arriscar. E como é que vou encontrar aquela imbecil aqui em Londres? Aliás, acho que tia Lera não me deixará sair se eu não disser aonde vou. E o dinheiro que tenho não dá nem para a condução. Nem sei onde começar a procurar. Será que tio André ainda está com ela?”
Por fim, concluiu que só podia fazer uma coisa: esperar que tio André e a feiticeira voltassem. Se voltassem, agarraria a feiticeira; colocaria o anel amarelo antes que ela entrasse em casa. Tinha de ficar observando da porta da rua como um gato de olho num rato. Foi para a sala de jantar e amassou o rosto contra a vidraça. Podia ver os degraus da entrada e a rua, e ficou imaginando o que Polly estaria fazendo.
A primeira meia hora escorreu lentamente. Polly havia chegado tarde para o jantar, com as meias e os sapatos muito molhados. Quando lhe perguntaram onde estivera e o que andara fazendo, respondeu que tinha saído com Digory Kirke. Havia molhado os pés numa poça. A poça estava num bosque. Onde era o bosque, não sabia. Em algum parque da cidade? Parecia com um parque.
A mãe de Polly achou então que a filha havia ido, sem dizer nada a ninguém, a um lugar de Londres que não conhecia, brincando aí de chapinhar em poças. Resultado: tinha sido uma menina muito levada, e estaria proibida de brincar com “o tal de Digory” se aquilo acontecesse de novo. Não ganhou sobremesa e não devia sair do quarto durante duas horas. Acontecia isso com muita freqüência naquele tempo.
Assim, enquanto Digory estava de olho na janela da sala de jantar, Polly estava estendida na cama, pensando ambos como o tempo custa a passar.
Acho que a situação de Digory era pior. Polly tinha apenas de esperar que as duas horas passassem, enquanto ele, ao ouvir qualquer barulho de rodas na rua, logo se sobressaltava, pensando “São eles”, para em seguida verificar que estava enganado. Entre esses falsos alarmes, o relógio continuava soando e uma mosca esvoaçava na vidraça, fora do alcance da mão. Era uma dessas casas que ficam muito quietinhas e aborrecidas durante a tarde e que sempre cheiram à carne de carneiro.
Um pequeno fato aconteceu durante a longa espera: uma senhora chegou à porta trazendo umas uvas para a mãe de Digory. Tia Leta foi recebê-la e Digory não pôde deixar de ouvir a conversa entre ambas.
– Que uvas maravilhosas! – disse a tia. – Ela vai gostar tanto! Mas, coitada da minha Mabelzinha, acho que agora só uma fruta da Terra da Eterna juventude poderia fazer bem a ela. Frutas deste mundo já não resolvem, infelizmente.
As duas começaram a falar baixo e ele não pôde escutar mais. Caso Digory ouvisse sobre a Terra da Eterna Juventude uns dias antes, teria pensado que tia Leta falava de algo sem nenhum sentido verdadeiro ou especial, como é costume entre as pessoas grandes. Mas de repente ocorreu ao menino que sabia agora que os outros mundos existiam de fato, e já estivera em um deles. Assim, tinha de existir em algum lugar a Terra da Eterna Juventude. Quase tudo devia existir. Devia existir num outro mundo alguma fruta que realmente curasse sua mãe! E oh...
Sabemos o que acontece quando uma pessoa tem a esperança de obter uma coisa desesperadamente desejada; parece bom demais para ser verdade. Mas tinha de ser verdade. Tantas coisas estranhas já haviam acontecido. E possuía os anéis. Poderia explorar, um por um, todos os lagos do bosque. E depois... mamãe vai ficar boa. Tudo certinho de novo. Chegou a esquecer-se da feiticeira. A mão já estava quase segurando o anel amarelo, quando ouviu um galope de cavalo. “Que será? Algum carro de bombeiro? Onde será o incêndio? Ih!, está vindo para cá. Ó não! É ela!”
O cabriolé foi o primeiro a surgir. Não havia ninguém na boléia. No teto do cabriolé (não sentada, mas em pé), gingando com um equilíbrio magnífico, surgiu da esquina, com uma roda no ar e a toda velocidade, a rainha Jadis, o terror de Charn. Seus dentes estavam à mostra; seus olhos relampejavam; seus compridos cabelos, caídos nas costas, brilhavam como a cauda de um cometa. Castigava o cavalo sem pena. As ventas do animal estavam dilatadas e vermelhas. Espumando, o cavalo galopou feito um doido até a porta de entrada e ergueu-se sobre as patas traseiras. O cabriolé bateu contra o poste, espalhando-se em pedaços por todos os lados. Com um salto acrobático, a feiticeira esquivou-se a tempo do choque e foi aterrissar no dorso do animal. Ajeitou-se na montaria e inclinou-se para a frente, dizendo coisas ao ouvido do cavalo. Não eram certamente coisas para acalmá-lo, mas para excitá-lo ainda mais. Outra vez ele ergueu-se sobre as patas traseiras e começou a relinchar como se berrasse. Era todo olhos e patas e dentes. Só um exímio cavaleiro se agüentaria em cima dele.
Antes que Digory tomasse fôlego, novas coisas começaram a acontecer. Outro cabriolé parou aos pinotes atrás do primeiro: dele saltaram um homem gordo vestindo sobrecasaca e um policial. Chegou depois mais um cabriolé com dois policiais. Umas vinte pessoas (na maioria meninos que não têm nada a fazer) apareceram em bicicletas, fazendo soar as campainhas, dando vivas e vaias. Por fim surgiu um bando de gente a pé, rostos afogueados com a corrida, divertindo-se a valer. Janelas abriam-se em todas as casas da rua, e empregadas e mordomos surgiam em todas as portas. Queriam apreciar a bagunça.
Enquanto isso, um velho senhor tentava desvencilhar-se dos restos do primeiro cabriolé. Muitos correram para ajudá-lo, uns puxando-o para um lado, outros para o outro. Digory imaginou que só podia ser tio André, mas não conseguia ver-lhe o rosto, tapado e tampado pelo chapéu. O menino saiu correndo e juntou-se à multidão.
– É esta a mulher, é esta a mulher – gritava o homem gordo, apontando para Jadis. – Cumpra o seu dever, seu guarda! Levou coisas valiosíssimas da minha loja. Veja só o cordão de pérolas no pescoço dela. É meu. E além disso me deixou de olho roxo. – Puxa! – disse alguém na multidão. – Que belo trabalho ela fez nesse olho, hein?! A mulher é forte mesmo!
– Coloque um pedaço de carne crua no olho, senhor – recomendou um açougueiro. – É tiro e queda.
– Um momento! – falou o chefe de polícia. – Que confusão é esta aqui?
– Foi o seguinte: ela... – mas o gordo foi interrompido.
– Não deixe o cara do cabriolé fugir.
O senhor de idade, que só podia ser tio André, tinha conseguido colocar-se em pé e esfregava suas escoriações. O policial virou-se para ele: – Afinal, o que está acontecendo aqui?
– Onf... punf... ronf... – Era a voz do tio André de dentro da cartola.
– Pare com essa palhaçada – disse o policial, com a voz severa. – Não é hora de brincar. Tire logo essa cartola.
Era mais fácil falar do que fazer. Dois policiais pegaram a cartola pela aba e arrancaram-na à força.
– Muito grato, muito grato – disse tio André num fio de voz. – Nossa! Estou todo batido. Se alguém fizesse a fineza de me dar um pouco de conhaque...
– Preste atenção, por favor – disse o guarda, tirando do bolso um enorme caderno de anotações e um toco de lápis muito curto. – É o senhor o responsável por essa jovem?
– Cuidado! – gritaram várias vozes, e o policial deu um pulo para trás, na horinha. O cavalo tinha armado um coice para ele, provavelmente mortal.
A feiticeira manobrou o cavalo de maneira que pudesse encarar a multidão; com um facão reluzente, libertara o animal dos destroços do cabriolé.
Durante esse tempo todo, Digory procurava um jeito de tocar na feiticeira. Não era fácil: de um lado, havia a multidão; para chegar ao outro lado, teria de passar perto das patas do cavalo. Assim, de dentes cerrados, o menino aguardava um momento favorável.
Um homem de carão vermelho e chapéu~ coco tinha conseguido chegar à frente do ajuntamento.
– Ei, seu guarda! O cavalo que ela está montando é meu; o cabriolé que virou lenha também é meu.
– Um de cada vez, um de cada vez – disse o policial.
– Mas a gente não tem tempo – replicou o cocheiro. – Conheço bem este cavalo. Não é igual aos outros. O pai dele foi da cavalaria. Se essa mulher continuar espicaçando ele, vai ter assassinato aqui. Deixe eu segurar ele.
O policial só podia ficar satisfeito de ter um motivo para afastar-se do cavalo. O cocheiro deu mais um passo, olhou para Jadis e disse, com uma voz até amável:
– Eu seguro ele, a senhorita apeia. Afinal, a senhora é uma dama, e não vai querer que esses desordeiros partam para cima da senhora. Melhor ir para casa direitinho e tomar um bom chá.
Ao mesmo tempo, estendeu a mão para a cabeça do animal, dizendo:
– Quieto, Morango, quieto, companheiro!
Aí, pela primeira vez, a feiticeira falou, dominando tudo:
– Seu porco! Tire esta mão suja daí! Eu sou Jadis, a Imperatriz!

8
A BRIGA


– Vamos ver se ela é mesmo uma imperatriz – gritou uma voz.
– Três vivas à Imperatriz de Tiririca da Lagoa do Bode!
Uma onda ruborizada banhou o rosto da feiticeira, que chegou a agradecer com uma leve inclinação de cabeça. Mas os vivas acabaram em explosões de gargalhadas e ela percebeu que era tudo zombaria. Sua expressão mudou e ela passou o facão para a mão esquerda. Em seguida, sem aviso prévio, fez uma coisa terrível de se ver. Com um leve toque, como se fosse a coisa mais fácil deste mundo, estendeu o braço e arrancou uma das pesadas barras do poste da rua. Se perdera os poderes mágicos em nosso mundo, não perdera a força bruta. Era ainda capaz de partir uma barra de ferro como se fosse uma bisnaga de pão. Lançou para o alto sua nova arma, segurou-a na queda, brandiu no ar a pesada massa e fez o cavalo ir em frente.
“É a minha vez”, pensou Digory. Disparou entre o cavalo e as grades. Se o animal ficasse quieto um pouquinho, poderia agarrar o calcanhar da feiticeira. Enquanto corria, ouviu um barulho de coisa esmagada e um baque. A feiticeira havia descido a barra de ferro em cima do capacete do chefe de polícia. O homem caiu como um pino de boliche.
– Depressa, Digory, temos de acabar com isto – disse uma voz a seu lado. Era Polly, que viera correndo depois de acabado o castigo.
– Puxa, você! Segure em mim com força. Tem de colocar o anel. O amarelo, hein! Mas só quando eu gritar.
Mais um capacete esfacelado e outro policial caindo como um pacote. A multidão berrava: – Jogue ela no chão. Vamos pegar as pedras do calçamento. Chamem o exército.
Mas quase todos fugiam para tão longe quanto possível. O cocheiro, no entanto, sem dúvida o mais valente e gentil entre os presentes, mantinha-se perto do cavalo, saltando para cá e para lá a fim de evitar os golpes da barra, mas sempre procurando agarrar a cabeça de Morango.
A multidão apupava e rugia novamente. Uma pedra passou assoviando pela orelha de Digory. Foi quando soou a voz da feiticeira, clara como um toque de sino e mostrando que, naquele momento pelo menos, ela estava próxima da felicidade.
– Canalhas! Hão de pagar muito caro por isso quando eu tiver conquistado este mundo. Não deixarei pedra sobre pedra nesta cidade. Vou fazer como fiz com Charn, com Felinda, com Sorlois, com Bramandin.
Por fim Digory agarrou-lhe o tornozelo. A feiticeira deu-lhe um chute de calcanhar, atingindo-lhe a boca. Com a dor, lábio cortado, a boca cheia de sangue, Digory soltou o pé de Jadis. De algum lugar próximo chegou-lhe o grito tremido de tio André:
– Minha senhora... minha boa senhora... por favor... por favor... comporte-se.
Digory deitou a mão outra vez no calcanhar e mais uma vez foi chutado para trás. Outros homens iam sendo atingidos pela barra de ferro. Digory fez a terceira tentativa; segurou o calcanhar, dessa vez para valer, berrando para Polly: “Agora!” Aí...
Graças a Deus. As caras iradas e apavoradas sumiram. As vozes raivosas e tremidas fizeram silêncio. Menos a de tio André. Perto de Digory na escuridão, a voz do tio choramingava:
– Oh, oh, devo estar delirando... só pode ser a morte... não agüento mais... não está direito. Nunca na minha vida quis ser feiticeiro. Foi tudo um mal-entendido. Tudo culpa da madrinha. Eu protesto. E nas minhas condições de saúde! Eu, de uma família tão tradicional!
– Que droga! – disse Digory. – A gente não queria trazer o velho. Que atrapalhada, puxa vida! Você está aí, Polly?
– Estou. Pare de empurrar. – Não estou empurrando.
Não teve tempo de dizer mais nada. Haviam surgido na cálida e esverdeada luminosidade do bosque. Polly já gritava ao pisar fora do lago:
– Não é possível! Trouxemos também o cavalo! E até o Sr. André. E o cocheiro! Que confusão! Quando a feiticeira percebeu que se encontrava de novo no bosque, ficou muito pálida, vergando-se até sua face tocar a crina do cavalo. Estava passando mal. Tio André tremia feito vara verde. Mas Morango sacudiu a cabeça e relinchou, muito contente; parecia sentir-se melhor. Era a primeira vez que Digory via o cavalo tranqüilo. As orelhas, que antes estavam caídas, voltaram à posição normal; os olhos brilharam de novo.
– Está tudo bem, companheiro – disse o cocheiro, dando uns tapinhas no pescoço do cavalo. É só ter cuidado.
Morango fez a coisa mais natural do mundo. Morrendo de sede (o que não era de espantar), andou tranqüilamente até o lago mais próximo para beber água. Digory ainda segurava o calcanhar da feiticeira, e Polly, a mão de Digory. Uma das mãos do cocheiro pousava em Morango; a outra estava na mão de tio André, que ainda tremelicava.
– Rápido! – disse Polly, dando um olhar inteligente para Digory. – Verdes!
O coitado do cavalo nem chegou a beber. O bando todo viu-se de novo mergulhado na escuridão. Morango deu um relincho; tio André soltou um gemido. Digory exclamou:
– Que sorte!
Uma pausa. Depois ouviu-se a voz de Polly: – A gente já não devia estar perto?
– Parece que chegamos a algum lugar – respondeu Digory. – Pelo menos estou em cima de algo sólido.
– É verdade – disse Polly. – Agora é que estou percebendo. Mas por que esta escuridão? Quer dizer, será que entramos no poço errado?
– Talvez estejamos em Charn – disse Digory. – Só que voltamos durante a noite.
– Aqui não é Charn. – Era a voz da feiticeira. – Aqui é um mundo vazio. Aqui é Nada.
E, de fato, parecia mesmo Nada. Não havia uma única estrela. Era tão escuro que não se enxergavam; tanto fazia ficar de olhos abertos ou fechados. Sob seus pés havia uma coisa fria e plana, que podia ser chão, mas que não era relva nem madeira. O ar era seco e frio e não havia vento.
– Chegou a hora do meu destino – disse a feiticeira, com uma voz horrivelmente calma.
– Não diga isso, por favor – balbuciou tio André. – Minha boa senhora, por obséquio, não diga uma coisa dessas. Cocheiro... meu amigo... por acaso não tem aí uma garrafinha? Estou precisando de uma dosezinha.
– Calma, muita calma – disse o cocheiro, com uma voz firme e animadora. – Ninguém quebrou nada? Ótimo. Só por isso devemos ficar agradecidos; afinal, foi um tombo daqueles. Escutem: se caímos num buraco... desses da construção do metrô – alguém vai aparecer e tirar a gente daqui. E se a gente morreu – pode ter acontecido –, tinha mesmo de morrer um dia. Quem levou uma vida direita, não precisa ter medo, é ou não é? Se querem saber minha opinião, o jeito agora, para passar o tempo, é cantar um hino de igreja.
E começou a cantar. Escolheu de saída um hino de ação de graças, falando em “boa colheita”. Não eram palavras muito adequadas ao local, onde planta nenhuma parecia ter brotado desde o princípio dos tempos. Mas era a letra que ele sabia melhor. Tinha uma voz bonita. As crianças fizeram coro com ele. Ajudava a afastar o medo. Tio André e a feiticeira não cantaram.
No fim do hino Digory sentiu que alguém lhe agarrava o cotovelo. Pelo cheiro de conhaque e de charuto, só podia ser tio André. Este, muito cautelosamente, puxava o sobrinho para longe dos outros. Quando estavam a uma certa distância, o velho pôs a boca tão perto da orelha do menino que fez cócegas.
– Agora, meu caro. Pegue o anel. Vamos cair fora.
Mas a feiticeira tinha ouvido fino. Saltando do cavalo, gritou:
– Idiota! Já se esqueceu de que posso ouvir o pensamento dos humanos? Solte o menino. Se tentar trair-me de novo, vou arranjar-lhe uma vingança de que ainda não se ouviu falar desde que os mundos são mundos.
Digory, por sua vez, acrescentou:
– E se o senhor acha que sou um monstrinho nojento capaz de ir embora, deixando Polly... e o cocheiro... e o cavalo... num lugar como este, está redondamente enganado.
– Você não passa de um menino muito malcriado e atrevido – disse tio André.
– Silêncio! – bradou o cocheiro.
No escuro, finalmente, alguma coisa começava a acontecer. Uma voz cantava. Muito longe. Nem mesmo era possível precisar a direção de onde vinha. Parecia vir de todas as direções, e Digory chegou a pensar que vinha do fundo da terra. Certas notas pareciam a voz da própria terra. O canto não tinha palavras. Nem chegava a ser um canto. De qualquer forma, era o mais belo som que ele já ouvira. Tão bonito que chegava a ser quase insuportável. O cavalo também parecia estar gostando muito, pois relinchou como faria um cavalo de carga se, depois de anos e anos de duro trabalho, se encontrasse livre na mesma campina onde correra quando jovem e, de repente, visse um velho amigo cruzando a relva e trazendo-lhe um torrão de açúcar.
– Meu Deus! – exclamou o cocheiro. – Não é uma beleza?
E duas coisas maravilhosas aconteceram ao mesmo tempo.
Uma: outras vozes reuniram-se à primeira, e era impossível contá-las. Vozes harmonizadas à primeira, mais agudas, vibrantes, argênteas.
Outra: a escuridão em cima cintilava de estrelas. Elas não chegaram devagar, uma por uma, como fazem nas noites de verão. Um momento antes, nada havia lá em cima, só a escuridão; num segundo, milhares e milhares de pontos de luz saltaram, estrelas isoladas, constelações, planetas, muito mais reluzentes e maiores do que em nosso mundo. Não havia nuvens. As novas estrelas e as novas vozes surgiram exatamente ao mesmo tempo. Se você tivesse visto e ouvido aquilo, tal como Digory, teria tido a certeza de que eram as estrelas que estavam cantando e que fora a Primeira Voz, a voz profunda, que as fizera aparecer e cantar.
– Louvado seja! – disse o cocheiro. – Se eu soubesse que existiam coisas assim, teria sido um homem muito melhor.
A Voz na terra estava agora mais alta e triunfante, mas as vozes no céu, depois de entoar com ela por algum tempo, tornaram-se mais suaves.
Longe, perto da linha do horizonte, o céu se acinzentava. Movia-se uma aragem leve e refrescante. O céu naquele ponto tornava-se gradualmente mais pálido. Já se viam formas de colinas recortadas contra ele. E a Voz continuava a cantar.
A luminosidade agora já era suficiente para que se vissem. O cocheiro e as crianças estavam de boca aberta e olhos acesos: bebiam o som, o som que parecia lembrar-lhes alguma coisa. Também a boca de tio André estava aberta, mas não de júbilo. Parecia mais que o queixo dele tinha se separado do resto do rosto. Seus ombros estavam caídos, e os joelhos tremiam. Não estava gostando da Voz. Se houvesse ali um buraco de rato, já teria sumido por ele. Mas a feiticeira olhava como se, de algum modo, entendesse mais daquela música do que ninguém. De boca fechada, lábios contraídos, punhos cerrados, desde que a canção começara, sentia que aquele mundo se enchia de uma magia diferente da sua, e mais forte. E ela a detestava. Teria, se pudesse, esmagado aquele mundo, todos os mundos, só para interromper o canto. O cavalo permanecia de orelhas atentas, pisoteando às vezes o solo. Já não era um cavalo de tração velho e cansado; já se podia até acreditar que seu pai estivera mesmo na guerra.
O céu do oriente passou de branco para rosa, e de rosa para dourado. A voz subiu, subiu, até que todo o ar vibrou com ela. E quando atingiu o mais potente e glorioso som que já havia produzido, o sol nasceu.
Digory nunca tinha visto um sol daqueles. O sol sobre as ruínas de Charn parecera mais velho do que o nosso, mas este parecia mais jovem. Tinha-se a impressão de que ele ria de alegria enquanto ia subindo. E, quando seus raios cobriram a terra, os viajantes puderam verificar em que lugar estavam. Tratava-se de um vale através do qual serpenteava um grande e caudaloso rio, que corria para o leste, na direção do sol. Ao norte, colinas suaves; ao sul, montanhas altas. Mas era um vale apenas de terra, rocha e água; não havia uma única árvore, arbusto ou folhinha de capim.
A terra tinha muitas cores – cores novas, quentes e brilhantes, que faziam a gente exaltar... Até que se visse o próprio Cantor. Então, todo o resto seria esquecido.
Era um Leão. Enorme, peludo e luminoso, ele estava de frente para o sol que nascia. Com a boca aberta em pleno canto, ali estava ele, a menos de trezentos metros de distância.
– Que mundo medonho! – exclamou a feiticeira. – Temos de fugir imediatamente. Prepare a magia. – Estou perfeitamente de acordo, madame! – falou tio André. – Que lugar mais desagradável! Sem qualquer civilização! Se pelo menos eu fosse um pouco mais moço e tivesse uma espingarda... – O senhor – disse o cocheiro – não está achando que ia poder matar... ele... ou está?
– E quem poderia? – perguntou Polly.
– Prepare a magia, imbecil – retornou Jadis.
– Perfeitamente, ,madame – replicou tio André, com ar astuto. – É preciso que ambas as crianças me toquem. Ponha o anel que nos levará para casa, Digory.
Estava pretendendo cair fora sem a feiticeira. – Ah, anéis! Então é isso? – disse Jadis.
Antes que se pudesse dizer faca, ela teria metido a mão no bolso de Digory; mas este segurou Polly e gritou:
– Cuidado! Se algum de vocês chegar um centímetro que seja mais para cá, nós dois desapareceremos, e aí é que eu quero ver! É verdade: aqui no meu bolso tem um anel que me levará para casa com Polly. E, olhem, minha mão já está aqui, prontinha. Por isso, fiquem longe. Sinto pelo senhor (olhou para o cocheiro) e pelo cavalo, mas não posso fazer nada. Quanto a vocês (olhou para tio André e para a rainha), os dois são feiticeiros e acho que merecem ficar juntos.
– Bico calado, todo o mundo! – clamou o cocheiro. – Quero ouvir a música.
Pois a canção agora era outra.

9
A CRIAÇÃO DE NÁRNIA


O Leão andava de um lado para o outro na terra nua, cantando a nova canção. Era mais suave e ritmada do que a canção com a qual convocara as estrelas e o sol; uma canção doce, sussurrante. A medida que caminhava e cantava, o vale ia ficando verde de capim. O capim se espalhava desde onde estava o Leão, como uma força, e subia pelas encostas dos pequenos montes como uma onda. Em poucos minutos deslizava pelas vertentes mais baixas das montanhas distantes, suavizando cada vez mais aquele mundo novo. Podia-se ouvir a brisa encrespando a relva.
E surgiam outras coisas além da relva. As mais altas encostas iam ficando escuras de urzes. Manchas de um verde mais intenso apareciam no vale. Digory não sabia ainda o que eram, até que surgiu uma pertinho dele: uma coisinha espigada que ia lançando braços para os lados, e os braços se cobriam de verde e iam ficando maiores a uma grande velocidade. Havia muitas dessas coisas à sua volta agora. Quando ficaram quase do seu tamanho, viu o que era:
– São árvores! – exclamou.
O único problema, como Polly observou mais tarde, é que não se podia ter um só momento de paz para olhar bem. Mal Digory dissera “árvores”, teve de saltar, pois tio André já vinha para roubar-lhe o anel do bolso. Não teria sido grande vantagem para o tio, caso o tivesse conseguido, pois visou o bolso esquerdo, pensando ainda que eram os anéis verdes que levariam para casa. Mas Digory não queria perder nenhum dos dois.
– Pare! – gritou a feiticeira. – Volte. Mais longe. Se alguém chegar a dez passos de distância das crianças, estouro-lhe os miolos. – Ela tinha nas mãos aquela barra de ferro que arrancara do poste e dava mostras de que cumpriria sua palavra... E acrescentou: – Então, você está querendo partir com o menino para o seu mundo, deixando-me aqui!
Dessa vez, a revolta de tio André levou a melhor sobre o seu terror:
– Sim, minha senhora, estou! Sem dúvida alguma! É um direito que me assiste. Fui vergonhosa, abominavelmente tratado. Fiz o que pude para mostrar-lhe certas normas de civilidade. E qual foi a minha recompensa? A senhora assaltou – repito a palavra –, assaltou um distintíssimo joalheiro. Levou-me a obsequiá-la com um almoço excessivamente oneroso, para não dizer luxuoso, embora para isso eu tivesse de empenhar meu relógio. E, fique sabendo, minha senhora, nossa família não peca pelo hábito de freqüentar casas de penhor, a não ser meu primo Eduardo, quando serviu como voluntário da Cavalaria. Durante aquela indigesta refeição, seu comportamento e sua conversação atraíram a desfavorável atenção de todas as pessoas presentes. Sinto que estou socialmente arruinado. jamais poderei mostrar o meu rosto outra vez naquele restaurante. A senhora agrediu a polícia. A senhora roubou...
– Oh, pare com isso, distinto, pare com isso – disse o cocheiro. – É hora de ver e ouvir, não de falar.
Havia mesmo muito para ver e ouvir. A árvore que Digory notara em primeiro lugar já se tornara adulta, com os galhos balançando levemente, e eles pisavam agora numa relva macia, salpicada de margaridas e botões-de-ouro. Mais adiante, ao longo da margem do rio, cresciam salgueiros. Do outro lado, fechavam-se sobre eles emaranhados de arbustos de groselha floridos, lilases, rosas silvestres e azaléias. O cavalo fartava-se de relva nova.
Todo esse tempo, prosseguiam a canção do Leão e seu majestoso caminhar, de um lado para outro, para a frente e para trás. Aproximava-se mais e mais, o que era meio alarmante. Polly achava a canção cada vez mais interessante, pois começara a perceber uma ligação entre a música e as coisas que iam acontecendo. Quando uma fileira de abetos saltou a uns cem metros dali, sentiu que os mesmos estavam ligados a uma série de notas profundas e longas que o Leão cantara um segundo antes. Quando ele entoou uma seqüência de notas rápidas e mais altas, não ficou nada surpresa ao ver primaveras surgindo por todos os cantos. Com um indescritível frêmito, teve quase certeza de que todas as coisas (como disse mais tarde) “saíam da cabeça do Leão”. Ouvir a canção era ouvir as coisas que ele estava criando: olhava-se em volta, e elas estavam lá. Era tão emocionante que Polly nem teve tempo de sentir medo. Mas Digory e o cocheiro ficaram um tanto nervosos com a aproximação do Leão. Quanto ao tio André, seus dentes estalejavam, mas, como seus joelhos tremiam demais, não saiu do lugar.
De repente a feiticeira caminhou ostensivamente na direção do Leão. Este se aproximava, sempre cantando, com passos lentos e pesados. Estava a menos de dez metros. Ela ergueu o braço e arremeteu a barra de ferro bem na sua cabeça.
Ninguém (muito menos Jadis) erraria àquela distancia. A barra acertou o Leão bem entre os olhos e caiu na relva. O Leão continuou a caminhar: seu passo não era nem mais lento nem mais apressado do que antes. Nem mesmo era possível afirmar que fora atingido. Embora não fizesse barulho ao andar, dava para sentir o seu peso, enquanto se aproximava.
A feiticeira deu um berro e correu, desaparecendo entre as árvores. Tio André quis fazer o mesmo, mas tropeçou numa raiz e caiu de cara num riacho. As crianças não se moveram. Não podiam. Nem sabiam se queriam. O Leão não lhes deu atenção. Sua boca imensa estava aberta, mas para cantar, não para rosnar. Passou tão perto que poderiam ter tocado em sua juba. Temiam que se voltasse para o lado e desse com eles; mas, apesar do medo, desejavam que isso acontecesse. Era, no entanto, como se fossem invisíveis e inodoros. Depois de dar alguns passos, o Leão voltou-se, passou novamente por eles, continuando o seu caminho na direção do oriente.
Tio André, tossindo e respingando, saiu do riacho.
– Temos de ficar livres dessa mulher, Digory! A fera já se foi. Dê-me a mão e pegue logo o anel.
– Longe daqui! – gritou Digory, afastando-se. – Cuidado com ele, Polly; venha aqui ao meu lado. Vou lhe dizer uma coisa, tio André: nem mais um passo, senão a gente some.
– Faça o que eu lhe falei, rapaz – disse o tio. – Você é muito desobediente, um jovenzinho muito malcomportado.
– Calma! – disse Digory. – Queremos ficar e ver o que vai acontecer. Pensei que o senhor gostasse de conhecer outros mundos. Não gosta mais?
– Gostar?! – pulou tio André. – Olhe o estado em que estou! A minha melhor roupa!
Estava mesmo uma coisa! Quanto mais elegante está uma pessoa, pior fica depois de embolar-se num cabriolé em frangalhos e cair dentro de um córrego:
– Não estou dizendo que o lugar não seja interessante – acrescentou o tio. – Se eu fosse mais moço, talvez arranjasse um bom companheiro para voltar aqui. Um desses caçadores destemidos. O lugar não é nada desprezível. O clima, por exemplo, é uma delícia. Nunca respirei um ar assim. Acho que me teria feito bem à saúde, se as condições não fossem tão desfavoráveis. Se tivéssemos ao menos uma espingarda!
– Que espingarda que nada! – falou o cocheiro. – É melhor eu ir ver se consigo dar uma limpada no Morango. Olhe, esse cavalo tem mais juízo que certa gente que eu conheço...
Andou até o animal e começou a fazer os barulhinhos que fazem os tratadores de cavalos.
– O senhor acha que aquele leão pode morrer com um tiro? – perguntou Digory. – Ele nem ligou para a barra de ferro!
– Apesar de tudo, aquela moça é valente. Era preciso coragem para fazer aquilo. – E o tio começou a esfregar as mãos e a estalar os dedos, como se mais uma vez se esquecesse do medo que tinha da feiticeira.
– Foi uma covardia – interveio Polly. – Que mal ele fez a ela?
– Ei, o que é aquilo? – gritou Digory, ao avistar algo a uns metros de distância. – Polly, venha correndo.
Tio André também foi, não porque estivesse curioso, mas por querer ficar perto das crianças, à espera de uma oportunidade de apoderar-se dos anéis. Ao ver do que se tratava, acabou interessado. Era um poste de luz, dos antigos, perfeito, com uns poucos palmos de altura, mas que foi crescendo à medida que olhavam, como as árvores haviam crescido.
– Está vivo também... quer dizer, está aceso – exclamou Digory.
Era verdade. A claridade do sol, naturalmente, tornava difícil ver a pequena chama dentro do lampião, a não ser quando uma sombra se projetava nele.
– Notável, notabilíssimo! – murmurou tio André. – Nem mesmo eu poderia imaginar magia como esta. Estamos num mundo onde as coisas todas, mesmo os postes, nascem e crescem. Não posso atinar com o tipo de semente que dá poste de iluminação.
– Não está vendo? – perguntou Digory. – É o lugar onde caiu a barra de ferro... a barra que ela arrancou do poste de Londres. Está virando um postezinho.
Mas já não era tão pequeno assim, pois enquanto ele falava isso o poste alcançava a sua altura.
– Fantástico, fantástico! – exclamava tio André, esfregando as mãos com mais energia do que nunca. – Ah, ah! Eles se riam das minhas magias. Aquela louca da minha irmã me considera um lunático. Quero ver o que vão dizer agora! Descobri um mundo onde tudo explode de vitalidade e cresce. Colombo, falam muito de Colombo. Que é a América, comparada a isto? As possibilidades comerciais deste país são ilimitadas. É só trazer uns pedacinhos de ferro velho para cá, enterrá-los, e eles crescerão como locomotivas, como navios de guerra, o que se quiser. O preço de custo é nada, e eu posso vendê-los aos preços do mercado inglês. Desta vez fico milionário. Sem falar no clima! Já estou me sentindo vinte anos mais jovem. Posso fazer disto aqui um lugar de tratamento. Uma boa clínica aqui não pode valer menos do que vinte milhões por ano. É claro que algumas poucas pessoas têm de ser iniciadas no meu segredo. A primeira coisa a fazer é liquidar aquela fera.
– O senhor é igual à feiticeira, sem tirar nem pôr – disse Polly. – Só pensa em matar.
– E, quanto a mim – continuava o tio num sonho feliz –, e imprevisível por quanto tempo poderei viver enquanto estiver aqui. Isso é uma coisa de capital importância quando já se chegou aos sessenta anos. Não ficaria nada espantado se eu não envelhecesse nem um dia a mais nesta terra! Fantástico! A terra da eterna juventude!
– Oh! – exclamou Digory. – A terra da eterna juventude! Acha que é isso realmente? – Lembrou-se do que dissera tia Lera à senhora das uvas, e doces esperanças o animaram outra vez. – Tio André, acha que alguma coisa por aqui poderia curar a mamãe?
– Que história é esta, menino? Isto não é farmácia. Mas eu estava dizendo...
– O senhor não dá a mínima importância a ela – proferiu Digory, irritado. – Pois acho que está errado; afinal, trata-se de sua irmã também. Bem, deixe para lá. Vou perguntar diretamente ao Leão se ele pode me ajudar.
Virou-se e saiu bruscamente. Polly esperou um instante e foi atrás.
– Epa! Espere! Volte aqui! Esse menino ficou doido...
Tio André seguiu as crianças, com a maior cautela: não queria nem ficar longe demais dos anéis, nem perto demais do Leão.
Em poucos minutos Digory atingiu a orla do bosque. O Leão continuava a cantar, mas a canção era de novo diferente, mais agreste do que as outras. Fazia a gente querer correr, pular, subir nas árvores, gritar, ir ao encontro dos outros para abraçá-los ou esmurrá-los.
Digory ficou com o rosto quente, vermelho. Nem tio André escapou aos efeitos da música, pois Digory o ouviu dizer: “Moça valente! Que pena o temperamento dela! Mas que mulher, que mulher danada!”
No entanto, o que a canção provocava nos seres humanos não era nada, se comparado com o que estava acontecendo ao resto daquele mundo.
Você é capaz de imaginar um monte de terra relvosa a borbulhar como água na chaleira? Não pode haver melhor descrição do que estava acontecendo. Por todos os lados a terra se inchava em corcovas. Eram montes de tamanhos diversos,
alguns do tamanho de um formigueiro, outros do tamanho de um barril, outros do tamanho de uma cabana. E as corcovas mexiam-se e ficavam inchadas até estourarem: aí, a terra se derramava e de cada monte surgia um bicho. As toupeiras iam aparecendo, e também os cachorros, latindo no momento em que livravam a cabeça, do mesmo modo como fazem para atravessar uma passagem estreita na cerca. Os mais divertidos eram os veados, pois os galhos dos chifres surgiam muito antes do resto, dando a impressão de árvores. As rãs iam logo, coaxando, coaxando, dar um mergulho no rio. Panteras, leopardos e os bichos desse gênero punham-se logo a limpar as patas traseiras e as garras dianteiras. Borboletas esvoaçavam. Abelhas começavam imediatamente a trabalhar com as flores como se não tivessem um segundo a perder. Mas o grande momento, o maior de todos, foi quando o maior dos montes de terra partiu-se como um pequeno terremoto e de lá surgiram o vasto costado, o carão ajuizado e as quatro colunas que servem de pernas ao elefante. Já mal se escutava o canto do Leão: era um mugir, um crocitar, um uivar, um bramir, um relinchar, um latir, um trinar, as vozes todas dos animais.
Mas Digory ainda podia ver o Leão. Estava tão grande e tão brilhante que era impossível tirar os olhos dele. Os outros animais não mostravam o menor medo. Digory ouviu naquele instante um som de cascos. Um momento depois o velho cavalo do cabriolé passou a trote e foi reunir-se aos outros animais. (O ar fizera-lhe bem, como fizera bem a tio André; já não parecia nem um pouco com o pobre e velho escravo das ruas de Londres; pisava firme, de cabeça erguida.)
Pela primeira vez, o Leão ficou em total silêncio, indo e vindo entre os animais. Aqui e ali aproximava-se de dois deles (sempre dois de cada vez) e tocava-lhes os focinhos com o seu. Escolhia dois castores dentre todos os castores; dois leopardos dentre todos os outros; e deixava os demais. Algumas espécies não foram tocadas. Os pares tocados imediatamente abandonavam os outros e seguiam o Leão. Este finalmente ficou imóvel. Todas as criaturas tocadas por ele aproximaram-se e formaram um círculo ao seu redor. Os outros começaram a dispersar-se. Os bichos eleitos ficaram em completo silêncio, todos com os olhos fixos no Leão. Só os felinos uma vez ou outra davam uma rabanada.
Pela primeira vez naquele dia havia silêncio absoluto, exceto pelo barulho da água corrente. O coração de Digory batia desordenadamente: sentia que algo muito solene estava para acontecer. Não se esquecera de sua mãe, mas também sabia que, nem mesmo em nome dela, poderia interromper a solenidade.
O Leão, cujos olhos jamais piscavam, olhava para os animais com dureza, como se fosse incendiá-los com o olhar. Uma transformação gradativa começou a ocorrer neles. Os menorzinhos – os coelhos, as toupeiras e outros do tipo – ficaram um pouco maiores. Os grandões ficaram um pouco menores. Muitos animais estavam sentados nas patas traseiras. Muitos viravam a cabeça de lado como se quisessem entender. O Leão abriu a boca, mas não produziu nenhum som: estava soprando, um sopro prolongado e cálido. O sopro parecia balançar os animais todos, como o vento balança uma fileira de árvores. Lá em cima, além do véu de céu azul que as esconde, as estrelas cantaram novamente: uma música pura, gelada, difícil. Depois, vindo do céu ou do próprio Leão, surgiu um clarão feito fogo (mas que não queimou nada). As duas crianças sentiram o sangue gelar-lhes nas veias. A voz mais profunda e selvagem que jamais haviam escutado estava dizendo:
– Nárnia, Nárnia, desperte! Ame! Pense! Fale! Que as árvores caminhem! Que os animais falem! Que as águas sejam divinas!

10
A PRIMEIRA PIADA


Era decerto a voz do Leão. As crianças já haviam adivinhado que ele falava. Mesmo assim, quando falou, foi um choque para elas, ao mesmo tempo agradável e terrível.
Das árvores surgiram criaturas selvagens, deuses e deusas da floresta; chegaram com eles os faunos, os sátiros e os anões. Das águas saíram o deus do rio com suas filhas, as náiades. E todos eles e todos os animais, com suas vozes diversas, graves ou estridentes, roucas ou claras, replicaram:
– Salve, Aslam! Ouvimos e obedecemos. Estamos despertos. Amamos. Pensamos. Falamos. Sabemos.
– Mas, com licença, ainda não sabemos muito – falou uma voz nasal e bufante. As crianças levaram um susto, pois fora o próprio Morango que falara.
– Formidável! O velho Morango! – exclamou Polly. – Estou feliz de saber que ele também foi escolhido para ser um animal falante.
E o cocheiro, que estava então ao lado das crianças, disse:
– Macacos me mordam! Sempre falei que aquele cavalo tinha muita inteligência, sempre.
A voz forte e feliz de Aslam ressoou:
– Criaturas, eu lhes dou a si mesmas. Dou-lhes para sempre esta terra de Nárnia. Entrego-lhes as matas, os frutos e os rios. Entrego-lhes as estrelas e entrego-lhes a mim mesmo. Seus também são os animais mudos. Cuidem deles com bondade, mas não lhes sigam os caminhos, sob pena de perder a fala. Pois deles foram gerados e a eles poderão retornar. Não o façam.
– Não o faremos, Aslam, não o faremos – disseram todos.
Mas uma gralha atrevida acrescentou em voz alta: “Deixe conosco!”, quando todas as outras vozes já haviam cessado; as palavras soaram claramente no solene silêncio. A gralha ficou tão encabulada que escondeu a cabeça sob as asas como se quisesse dormir. E todos os outros animais passaram a fazer barulhos engraçados, jamais ouvidos em nosso mundo: é assim que eles riem. Tentaram a princípio conter o riso, mas Aslam lhes disse:
– Riam sem temor, criaturas. Agora, que perderam a mudez e ganharam o espírito, não são obrigados a manter sempre a gravidade. Pois também o humor, e não só a justiça, mora na palavra. Assim sendo, riram-se todos a valer. E foi a maior festa quando a própria gralha retomou coragem, subiu à cabeça de Morango, ruflou as asas e disse:
– Aslam! Aslam! Sou eu a autora da primeira piada? Todas as gerações serão informadas de que fui eu a fazer a primeira piada.
– Não, minha amiga – respondeu o Leão. – Não foi você que fez a primeira piada: você apenas foi a primeira piada.
Aí é que a turma se riu às bandeiras despregadas. A gralha não se agastou; pelo contrário, começou também a rir alto, até que o cavalo sacudiu a cabeça e ela perdeu o equilíbrio e caiu; mas antes de bater no chão lembrou-se das asas (novinhas em folha).
– Nárnia está fundada – disse Aslam. – Zelemos por mantê-la livre. Convocarei alguns para o meu Conselho. Cheguem até mim o chefe Anão, o Deus do rio, o Carvalho, o Sr. Coruja, o casal Corvo e o Sr. Elefante. Devemos parlamentar. Pois, apesar de o mundo não ter mais que cinco horas de idade, o mal já penetrou nele.
As criaturas nomeadas adiantaram-se e seguiram o Leão. Os outros começaram a conversar, dizendo coisas assim: “– Que é que penetrou no mundo? – O nau – Que é o nau? – Não, ele disse o vau. – Mas o que é o vau?”
– Olhe, Polly – disse Digory –, tenho de ir atrás de Aslam, quer dizer, do Leão. Preciso falar com ele de qualquer jeito.
– Você acha que a gente pode? Tenho os meus receios.
– Não tenho outra saída: é por causa da mamãe. Acho que só ele poderá me dar alguma coisa que faça bem a ela.
– Vou com você – disse o cocheiro. – Gostei do jeitão dele. E quero também trocar umas idéias com o Morango.
Os três avançaram intrepidamente – tão intrepidamente quanto possível – na direção da assembléia dos bichos. Encontravam-se estes tão ocupados em falar uns com os outros e fazer amigos, que só perceberam os três humanos quando estes se achavam bem perto. Também não ouviram tio André, que, tremendo à distância, gritava sem muita vontade de fazer barulho:
– Volte, Digory! Obedeça-me! Volte logo! Quando por fim os três chegaram ao círculo dos bichos, estes calaram a boca e olharam para eles. Falou o Sr. Castor, finalmente:
– Bem, em nome de Aslam, quem são vocês?
– Por favor... – mal Digory disse isto, sem fôlego, um coelho interrompeu:
– Só pode ser uma espécie de alface graúda.
– Não somos alface, sinceramente, não somos – protestou Polly com toda a pressa necessária. – Não somos de ser comidos.
– Taí – falou a toupeira. – Eles falam. Quem já ouviu dizer de uma alface que falasse?
– Quem sabe não são a segunda piada? – sugeriu a gralha.
Uma pantera que lavava a cara deteve-se para comentar:
– Se isso é uma piada, gostei mais da primeira.
Não acho graça nenhuma nessa aí – e, bocejando, voltou a lavar-se. Digory continuou:
– Por favor, não tenho tempo a perder. Preciso falar com o Leão.
Enquanto isso, o cocheiro tentava encontrar Morango; até que por fim deu com ele:
– Morango, companheiro velho de guerra. Não se lembra de mim? Ou vai dizer que não me conhece? – O que é esta Coisa conversando com você, cavalo? – perguntaram.
– Bom – começou a responder Morango, com a maior lentidão –, não sei precisamente. Acho que nenhum de nós sabe muito a respeito de qualquer coisa assim. Tenho uma vaga idéia de já ter visto antes uma coisa assim. Tenho a impressão de já ter vivido em outro lugar – ou de ter sido uma outra coisa – antes que Aslam nos despertasse há poucos minutos. Está tudo muito confuso na minha mente. Parece um sonho. Mas no sonho aparecem coisas como estas três aqui.
– Hein? – exclamou o cocheiro. – Não me reconhece mais? Logo eu que lhe dava, quando podia, uma comidinha especial? Eu, que esfregava você! Eu, que cobria você com um cobertor velho no tempo do frio! Não esperava isso de você, Morango, francamente!
– Estou começando a me lembrar – falou Morango, pensativamente. – Ah, é. Deixe-me pensar um pouco mais. Isso mesmo: você costumava amarrar nas minhas costas uma coisa escura, horrível... Costumava bater em mim para que eu corresse... Eu corria, corria, mas aquela coisa escura não saía de cima de mim.
– Morango, cá para nós: a gente tinha de ganhar a vida, é ou não é? A sua e a minha. Sem trabalhar, sem chicote, como é que podia haver estábulo, feno, ração? Não vai negar que de vez em quando pegava a sua raçãozinha?
– Ração? – disse o cavalo, levantando as orelhas. – Sim, tenho uma ligeira idéia a respeito. Ah, estou me lembrando: você ficava sempre sentado atrás de mim, e eu ia correndo na frente, puxando você e a coisa escura. Era eu que fazia o trabalho todo.
– No verão, no verão, Morango. Trabalho duro para você e eu ali atrás na frescata. Mas, companheiro, e quando chegava o inverno? No inverno era você quem ficava quentinho, e eu lá atrás, gelado como um sorvete, com o nariz no vento, com as mãos duras, que quase nem dava para segurar as rédeas. Era ou não era?
– É uma história dura e cruel – disse Morango. – Não havia relva no caminho: tudo pedra.
– Verdade, pura verdade, companheiro! Que mundo duro aquele! Sempre falei que aqueles pedregulhos eram de matar o meu cavalo. Londres. Londres é dura. Eu também não gostava nem um pouco. Você era um cavalo do campo e eu também era um homem do campo. Eu até cantava no coro da igreja! Mas como é que eu ia ganhar a vida lá na roça?
– Por favor, por favor – pediu Digory. – Será que não podemos ir em frente? O Leão está cada vez mais longe. E eu tenho de falar com ele de qualquer jeito!
– Olhe aqui, Morango – disse o cocheiro –, este jovem tem uma coisa para conversar com o Leão, o tal de Aslam. Será que você não podia levar ele nas costas? Ele monta com jeito, é claro. Eu e a menina seguimos vocês.
– Montar? – perguntou Morango. – Estou me lembrando. Nas minhas costas... Já levei algumas vezes um pequenino de duas pernas, há muito, muito tempo. Ele costumava me dar uns quadradinhos brancos. Eram... oh, gostosíssimos, mais doce do que grama.
– É açúcar – informou o cocheiro.
– Por favor, Morango – implorou Digory –, leve-me para falar com Aslam.
– Está bem – respondeu o cavalo. – Uma vez ou outra, eu não me importo. Pode montar.
– Bom Morango! – disse o cocheiro. – Espera aí, rapaz, eu dou uma ajuda.
Digory, que já havia montado em pêlo em seu próprio pônei, sentiu-se muito à vontade.
– Toque, Morango – disse o menino ao cavalo.
– Por acaso teria aí um quadradinho branco? – perguntou o animal.
– Lamento muito, não tenho – respondeu o menino.
– Que se há de fazer! – disse Morango, partindo. Nesse momento, um enorme buldogue que andara farejando ruidosamente, disse:
– Olhem. Aquilo ali não é uma outra dessas criaturas esquisitas? Lá, na beira do rio, debaixo da árvore?
Os animais todos olharam e viram tio André muito quietinho entre os rododentros, esperando não ser descoberto.
– Vamos lá. Vamos ver o que é.
Assim, enquanto Morango trotava numa direção com Digory, acompanhado de Polly e do cocheiro, grande parte das criaturas corria para tio André, com rugidos, latidos, grunhidos e outros ruídos animados.
Precisamos voltar um pouco para explicar como a cena toda parecera a tio André. A impressão que ele teve foi muito diferente daquela das crianças e do cocheiro. Pois o que você ouve e vê depende do lugar em que se coloca, como depende também de quem você é.
Desde que os bichos apareceram, tio André foi se encolhendo cada vez mais na moita – e, é claro, não conseguiu ver muito bem. Mas ele não estava de fato interessado no que presenciava: sua única preocupação era que não corressem na direção dele. Como a feiticeira, era um homem incrivelmente prático. Nem chegou a reparar que Aslam escolhera um par de cada espécie de animal. Tudo o que viu, ou pensou que viu, foi um bando de animais selvagens rondando por ali. E não entendia por que os bichos não fugiam do Leão.
Quando chegou o momento solene e os bichos falaram, não percebeu nada, e por uma razão bem interessante. Assim que o Leão começou a cantar, ainda em meio à escuridão, tio André percebeu que o barulho era uma canção, e não gostou nada.
A canção fazia com que sentisse e pensasse coisas que não queria sentir nem pensar. Quando o sol nasceu e viu que o cantor era um leão (“um mero leão”, como disse para si mesmo), fez tudo para convencer-se de que não havia canto algum, mas apenas rugidos, como fazem os leões em nosso mundo. “Devo ter imaginado que o Leão cantava; é porque estou com os nervos descontrolados. Alguém já ouviu um leão cantar?” Quanto mais belo o canto, mais tio André imaginava ouvir rugidos. O negócio é este: quando a gente quer se fazer de tolo, quase sempre consegue. Tio André conseguiu. Passou a ouvir apenas rugidos na canção de Aslam. Mesmo que quisesse voltar atrás, já era tarde. Quando afinal o Leão falou e disse “Nárnia, desperte”, o tio não ouviu palavras; ouviu somente um rosnado. Quando os bichos responderam, ouviu latidos, uivos, zurros, miados. Quando caíram na risada... bem, você pode imaginar. Esse foi o pior momento para tio André. Aquela zoeira infernal de feras sanguinárias e esfomeadas! Depois, para arrematar-lhe a raiva e o terror, viu os outros três seres humanos se encontrarem, na maior calma, com os outros animais.
“Imbecis!”, falou para si mesmo. “As feras vão comer os anéis junto com as crianças, e nunca mais poderei voltar para casa. Mas que menino egoísta este Digory! E os outros são da mesma laia. Se querem morrer, o problema é deles. Mas... e eu? Será que não pensam nisso? Ninguém se lembra de mim.”
Por fim, quando um bando de bichos veio correndo para o lado dele, tio André virou as costas e também saiu em disparada. E agora podemos todos verificar que de fato o ar do mundo jovem fizera muito bem ao velho. Em Londres, já era velho demais para dar uma corridinha; em Nárnia, correu a uma velocidade que daria para bater todos os recordes de corridas de cem metros. Era de ver a aba do casacão revoando ao vento. É claro que a velocidade de nada lhe valia. Muitos dos animais eram mais rápidos; pela primeira vez na vida corriam e estavam doidos para exercitar os músculos. “Corre! Corre!”, gritavam. “Deve ser o vau! Vamos cercar o vau! Depressa! Agarra!”
Em poucos instantes alguns lhe tomaram a dianteira, fechando-lhe o caminho. Outros o acuaram pela retaguarda. Por todos os lados tio André via o terror. Chifres de enormes alces e o carão imenso de um elefante sobrepunham-se à frente. Ursos muito sérios rugiam atrás. Leopardos de olhar frio e panteras de feições sarcásticas (como imaginou) miravam-no, agitando as caudas. O que mais o abatia era o grande número de bocas escancaradas. Os animais ofegavam; para ele, no entanto, era fome.
Tio André pôs-se a tremer. jamais gostara de animais, dos quais em geral sentia medo. Além disso, anos de experiências cruéis com os bichos só fizeram com que mais os temesse e odiasse.
– Bem, Sr. Coisa – disse o buldogue, com seu jeito de homem de negócios –, responda-me: você é animal, vegetal ou mineral?
Foi o que ele disse, na realidade; mas o que tio André ouviu foi:
– GRRR!

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